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H I S T Ó R I A E ANTOLOGIA DA LITERATURA PORTUGUESA S é c u l o XVI SERVIÇO DE EDUCAÇÃO E BOLSAS N.º 26 FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN

romances de cavalaria portuguesa

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H I S T Ó R I AE A N T O L O G I ADA L I T E R AT U R AP O R T U G U E S A

S é c u l o

XVI

SERVIÇO DE EDUCAÇÃO E BOLSAS

N.º 26

FUNDAÇÃOCALOUSTE

GULBENKIAN

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HALP N. 26

Professores/Investigadores

Eduardo LourençoEttore Finazzi-AgròEugénio AsensioIsabel Adelaide Penha Dinis de Lima e AlmeidaLuciana Stegagno PicchioManuel Rodrigues Lapa

Agradecimentos

Armando da Costa LapaEdições 70, Lda.Instituto CamõesUniversidade de Lisboa – Faculdade de Letras

Ilustrações

[Folha de rosto]“Terceira parte da chronica de Palmeirim de Inglaterra,na qual se tratam as grandes cavallarias de feu filho oPrincipe Dom Duardos fegundo & dos mais Principes,& cavalleiros que na ylha deleytofa fe criaram”. Lisboa:Afonso Fernandes, 1587.

Ficha Técnica

Edição da Fundação Calouste GulbenkianServiço de Educação e BolsasAv. de Berna 45A – 1067-001 LisboaAutora: Isabel Allegro de MagalhãesConcepção Gráfica de António Paulo GamaComposição, impressão e acabamentoG.C. Gráfica de Coimbra, LdaTiragem de 10.000 exemplaresDistribuição gratuitaDepósito Legal n.º 206390/04ISSN 1645-5169Série HALP n.º 26 – Dezembo de 2003

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N A R R A T I V A SC AVA L E I R E S C A S

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ÍndiceNota Prévia ........................................................ 7

INTRODUÇÕES:

“A narrativa cavaleiresca”Ettore Finazzi-Agrò ............................................. 13

“Os livros de cavalarias portuguesas”Isabel Almeida ..................................................... 20

“Clarimundo: da ideologia à simbologia imperial”Eduardo Lourenço ............................................... 25

“Proto-história dos Palmeirins: A Corte de Cons-tantinopla do Cligès ao Palmerín de Olivia”

Luciana Stegagno Picchio .................................... 29

TEXTOS LITERÁRIOS

João de BarrosCrónica do Imperador Clarimundo (1522)

PrólogoParte I, caps. III, IX,Parte II, caps. VII, X,Parte III, cap. IV ............................................... 35

Francisco de MoraisCrónica de Palmeirim de Inglaterra (1567)

Caps. XIV, XVIII, XXXVI, LXXXVI, CVII,CXIII, CXIV .......................................... 48

Jorge Ferreira de VasconcelosMemorial das Proezas da Segunda Távola Redonda

(1567)Caps. I, II, III, VIII, XLVIII ................................ 60

Diogo FernandesTerceira e Quarta Partes da Crónica de Palmei-

rim de Inglaterra (1604)III Parte: Cap. I, II, IV, VIII, XVIV Parte: Cap. XLV ........................................... 72

Baltazar Gonçalves LobatoCrónica do famoso príncipe Dom Clarisol de Bre-

tanha (1602)[Quinta e Sexta partes da Crónica de Palmeirim de

Inglaterra]

V Parte: Cap. II, III, IV, XVI Parte: Cap. XX ............................................. 82

Bibliografia Sumária ..................................... 87

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estreitamente vinculados à corte. Analisam tambéma tendência destes textos para fugir aos seus pró-prios códigos, o que releva a instabilidade genéricarenascentista, ou visam às idiossincrasias na criaçãode personagens (algumas das mulheres que encon-tramos nos Palmeirins, por exemplo); propõem-sequestionamentos de convenções narrativas, dis-cutem-se formas pelas quais se pode “nacionalizar”um género. A este respeito resulta fascinante – epouco estudada – a familiaridade de tantos cava-leiros com o mar, que navegam constantemente, eaté com as suas lides. Isto, em parte, é determinadopelo facto de Constantinopla ser fulcro narrativodo ciclo dos Palmeirins, bem como pelo natu-ralismo oriundo do tráfico luso por outros mundos,que terá igualmente influido na reiterada cons-ciência da necessidade e da preeminência dodinheiro e do comércio – coisa de que DomQuixote, contemporâneo da Terceira parte doPalmeirim (2.ª ed.1604), mas émulo de heróis menosprecavidos, faz caso omisso. Por estudar perma-necem ainda as últimas continuações dos Palmeirins,sobre os que Finazzi-Agrò nos fornece algunsdados, aqui incluídos junto com a sua útil visãode conjunto. De ressaltar nestes textos, entre outraspeculiaridades, é a propensão para o que já foichamado a vertente maneirista ou barroca, evidente,entre outras coisas, na acentuação do bizarro, oumesmo grotesco. Note-se ainda a convivência decódigos, que vincula os livros de cavalarias àliteratura pastoril, à lírica e à épica, de que osleitores encontrarão nos excertos escolhidos alguns“ecos”. Sobre este tema destacam-se os estudos deJorge A. Osório, particularmente com relação aBernardim Ribeiro.

Incluem-se nesta antologia cinco textos:

Crónica do Imperador Clarimundo deJoão de Barros. Impresso pela primeira vez em

Dois factores fundamentais condicionam qual-quer antologia ou avaliação crítica da produçãoquinhentista portuguesa de livros de cavalaria: afalta de edições fiáveis dos principais textos conhe-cidos, assim como a escassa bibliografia disponível.Existem ainda textos manuscritos, fragmentos, semfalar do esquecimento a que ficou entregue aprodução contemporânea em castelhano publi-cada em Portugal, o que também contribui paraa dificuldade em abalizar este corpus e o seuambiente cultural e literário.

Por outro lado, a escassa crítica que sobre otema se tem debruçado, se não peca pela falta dequalidade, implicitamente nos obriga a reconheceroutras lacunas: a do ainda limitado conhecimentosobre a recepção dos livros de cavalarias portu-gueses. Por exemplo, como conciliar criticamentea distância que separa a valoração com frequêncianegativa dos preceptistas e moralistas da época, eas ocasionais proibições ou censura inquisitorial(o Palmeirim de Francisco de Morais, por exemplo,mas não o Clarimundo, foi rigorosamente expur-gado nas edições de finais do século XVI), daenorme popularidade do género na PenínsulaIbérica, em vista da proliferação de continuaçõesdestas famílias cavaleirescas e do número de ediçõesquinhentistas que sabemos terem existido?

Recentemente, sobretudo a partir do encora-jador aumento de teses de mestrado e doutora-mento nos últimos anos, tem-se procedido a umareavaliação dos livros de cavalaria, assinalando ver-tentes e tendências, revendo interpretações, herdadasalgumas do século XIX. Os novos estudiososapontam agora a propensão destes livros para seadequarem a uma visão política ou ideológica,implícita ou explícita nos prólogos e, com mais oumenos destreza, articulada através dos textos(Clarimundo, Memorial), mormente no caso dostrês primeiros textos aqui incluídos, obras de autores

Nota Prévia

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1522, e dirigido originalmente ao Príncipe D.João (e em edição posterior ao mesmo, já Rei D.João III), que aparentemente teria “corrigido” oserros do escritor novel, é obra de um rapaz depouco mais de vinte anos, que muito jovem entrouao serviço de D. Manuel. Embora hoje em dia seconheça o autor por obras mais sisudas, as suasDécadas da Asia, por exemplo, em vida a fama sedevia sobretudo a esta crónica, testemunho elo-quente da popularidade do género e da maneiracomo João de Barros o apropriou. Reflecte, estanarrativa, a opulência e o optimismo do momentode maior brilho para a corte e a empresa imperialportuguesas, através da justaposição do passadomítico/cavaleiresco com o presente histórico, comoo próprio título indica: Crónica do Imperador Clari-mundo donde os Reys de Portugal desçendem. Intro-duz, simultaneamente, e não sem manifesta cons-ciência e orgulho do autor, elementos, sobretudoretóricos, do humanismo.

Palmeirim de Inglaterra de Francisco de Morais.Possivelmente publicado primeiro em portuguêsentre 1543-1545, a primeira edição conhecida,anónima, é a de Toledo (1546-1547), em castelhano,o que deu azo a quase dois séculos de acesasdisputas sobre a autoria (portuguesa? castelhana?)do livro, hoje indiscutivelmente atr ibuída aFrancisco de Morais. A primeira edição portuguesafoi publicada em Évora, em 1567. A narrativaacompanha dois irmãos de personalidades opostas– Palmeirim, o perfeito amante, e Floriano, sensuale curto de memória no que às mulheres se refere– um contraste que se pode analisar de diferentesmaneiras mas que dão pé, no caso de Floriano, aalgumas das passagens mais divertidas da famíliados Palmeirins. Entre outros aspectos originais,além da prosa ágil e de um naturalismo certeiroque questiona ou subverte o idealismo conven-cional do género, encontram-se o episódio deMiraguarda – ambiguamente celebrado no escru-tínio da biblioteca de Dom Quixote – e aintrodução de uma série de personagens femininasbaseadas numas damas francesas que o autor terá

conhecido e que retratou com suma ironia, emcarta anterior a este livro.

Memorial das Proezas da Segunda TávolaRedonda de Jorge Ferreira de Vasconcelos. Impressopela primeira vez em 1567, é uma vez mais obrade autor vinculado à corte, já que J.F.V. foi moçode câmara do Infante D. Duarte e, depois damorte deste, esteve ao serviço do príncipe D. João,a quem dedicou um livro de cavalaria – Triunfosde Sagramor – que poderá ter sido uma primeiraversão do M.P.S.T.R. Este último é dedicado a D.Sebastião, facto que vem complicar ainda mais ainterpretação de um texto marcado pelo paradoxo.Livro de cavalarias, nele não consta a figura ante-cipada do cavaleiro exemplar. Os familiaresencontros e torneios entre cavaleiros parecem jogosde espelhos desenhados para preparar o leitorpara o cruzamento com a realidade – a minuciosadescrição do torneio de Xabregas que fecha anarrativa. E se de amores tratam sempre as históriasde cavaleiros, nos intervalos das lides, ao contráriodo que era costume não há aqui nenhum decisivoenlace. Espelho de príncipes? Trajectória iniciáticade cariz neo-platónico? Ou “exemplário amoroso”,como propôs recentemente Cláudia Pereira? Omais difícil resulta evitar ler nele a angustiadaespera do que sabemos que depois foi.

Terceira parte da Crónica de Palmeirim deInglaterra de Diogo Fernandes. Nada se sabedeste autor. Publicado originalmente em 1587,hoje a única edição disponível deste livro é asegunda, de 1604. Independentemente da criseque, na segunda metade do século XVI, causariaa exaustão do género, nota--se já no prólogo oclaro propósito de reconhecer e reivindicar umpúblico mais amplo para os livros de cavalaria doque o aristocrático a que anteriormente se diri-giam. Numa trama que habilmente manejanumerosas personagens e fios narrativos, e ondeabundam as características mais empolgantes quetipicamente faziam as delicias do público –exotismo, encantamentos, figuras mitológicas,

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amores profanos e divinizados (e um Florianoagora domesticado) –, deparamos com outroselementos curiosos. Por exemplo, Constantinopla,tópico frequente nos livros de cavalaria, apareceno início destruída. A sua restauração é minu-ciosamente descrita, e o texto delicadamente nosleva já no início a considerar temas como a liber-dade dos povos governados e a tirania, a recons-trução de um país depois da sua derrota, osdeveres de novos monarcas vindos do estrangeiroquando os naturais tinham sido mortos. Comoseriam lidas estas páginas em Portugal, em 1587e 1604? Não menos curioso é o estreito convíviode códigos cavaleirescos e pastoris, que Cervantesdesenvolve com enorme perícia no Dom Quixote(1.ª parte, 1604).

Quinta e Sexta Partes do Palmeirim deInglaterra, escrito por Baltazar Gonçalves Lobato,de quem nada se sabe. Publica-se em Lisboa, em1602. Nele se multiplicam aventuras, nas quais oscavaleiros combatem, além dos habituais anta-gonistas (gigantes, etc.), também uma infinidadede heróis da Antiguidade, mesmo os mitológicos.No entanto, deparamos com elementos insólitos,entre os quais o entrelaçamento de narrativas decariz popular, como a da dama do marido feio,aqui incluída, o que faz pensar em moldes estéticosjá barrocos, em que se justapõe, ou contrapõe,como o fez Cervantes, o cavaleiresco e o burlesco,logrando com isso uma renovação, ou pelo menosum indício de novos trilhos a seguir. Nota-se,como no caso anterior, a assimilação da épicarenascentista e do código pastoril, cujo eco fran-camente camoniano encerra esta antologia.

Agradeço a Isabel de Sena a modernização,parcial, da grafia, nos textos usados a partir da suaprimeira edição.

Isabel Allegro de Magalhães

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I N T R O D U Ç Õ E S

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A narrativacavaleiresca(excerto)

ETTORE FINAZZI -AGRÒ*

* Novelística Portuguesa do Século XVI. (Biblioteca Breve 24).Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa, 1978.

[...]

JOÃO DE BARROS E A CRÓNICADO IMPERADOR CLARIMUNDO

[...]A intenção de João de Barros foi evidentemente,desde o início, a de exaltar a coroa portuguesa;mas a matéria, fruto duma tradição e vinculante,deve-lhe ter, de certo modo, forçado a mão. Éassim que, nos primeiros dois livros, os de inspiraçãodeclaradamente heróico-cavaleiresca, o Clarimundonão se afasta em nada, ou quase, dos modeloscastelhanos, repetindo personagens, situações emotivos já anteriormente tratados, sobretudo noAmadis. [...]Nascido do casamento de Adriano, rei da Hungria,com a filha do rei de França, Clarimundo étirado aos pais pelas intrigas de uma ama. Aban-donado junto duma fonte, é recolhido porGrionesa, nobre viúva italiana, e educado por estacomo filho. Ainda muito jovem pede e consegueser armado cavaleiro pelo rei de França, que ignorater diante de si o próprio filho. Iniciam-se, nesteponto, as maravilhosas aventuras e as muitas pere-grinações do herói que é, entretanto, reconhecidopela mãe, acabando depois por encontrar Clarinda,a mulher da sua vida, filha de Apolinário, impe-rador de Constantinopla.

A relação amorosa segue os esquemas clássicos dogénero: é um sentimento sublime que conseguesuperar os obstáculos e dificuldades de toda aespécie e que será coroado pelo matrimónio,primeiro consumado em segredo, depois realizadooficialmente, após Clarimundo, com outroscavaleiros, ter derrotado as forças do Grão-Turcoque haviam chegado a ameaçar as muralhas deConstantinopla.No contexto destas aventuras deve ser referidaaquela que, com todo o direito, pode ser con-siderada a mais importante do romance, visto queconstitui o verdadeiro objectivo da sua composição.No capítulo IV do terceiro e último livro encon-tramos Clarimundo em Portugal, na companhiado mago Fanimor, desde sempre o seu protectoroculto. Este condu-lo ao alto da torre de Sintrae aqui, tomado pelo espírito profético, descreve-lheem versos a sua gloriosa descendência: dele pro-cederão os reis de Portugal que estenderão o seudomínio desde as regiões orientais extremas até àsmais ocidentais.A profecia de Fanimor ocupa no seu conjunto 41oitavas e uma quadra em versos de arte maior, maspor si só confere um sentido novo a todo oromance. Clarimundo não é, ou não é mais, umdos muitos heróis dos romances de cavalaria; a suafunção não se resolve simplesmente ao nível peda-gógico-exemplar, já que a sua acção, o seu heroísmoe a sua corteisie, recebem também um superiorcrisma épico.O valor literário desta parte lírica não é, atenda-sebem, proporcionado à importância que ela assumeno interior do romance: longe de qualquer tentativade crítica histórica, tudo se reduz a uma árida listade nomes que nada têm em comum com a históriada dinastia portuguesa que nos é apresentada porCamões nos Lusíadas, e em que a figura queadquire maior relevo é a de D. Manuel, de quemse enumeram os domínios e as terras conquistadas.Trata-se, todavia, da primeira tentativa quinhentistade poesia épica em Portugal e como tal terá que

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ser avaliada, em função, também, do contexto emque é introduzida.João de Barros antecipa-lhe o aparecimento desdeo Prólogo em que afirma ter sabido, de um«fidalgo alemão», como Afonso Henriques fora narealidade filho segundo de um rei da Hungria,neto, por sua vez, do imperador Clarimundo. Areferência a este parentesco lendário se, por umlado, introduz aquela dimensão fantástica queinformará depois as vicissitudes cavaleirescas, colocaao mesmo tempo o romance num plano diferentedos anteriores castelhanos: o leitor português éposto em condições de captar, graças àquela adver-tência, o sentido profundo, histórico se se quiser,do protagonista, seguindo-o nas suas aventurasatravés do mundo sem limites da narrativa cava-leiresca.Sem aquela antecipação, para um nível mais baixode leitura, a história de Clarimundo, tal como nosé narrada nos primeiros dois livros, não apre-sentaria nenhum elemento de novidade no querespeita à tradição, sentindo-se apenas no iníciodo terceiro livro uma inesperada mudança doregisto estilístico e narrativo. O próprio cenário,com efeito, muda neste ponto, passando-se deuma moldura imaginosa e ausente de qualquerreferência espácio-temporal precisa, para umPortugal geograficamente conotado, em que aacção cavaleiresca acaba por adquirir um sentidonovo. Não se pode falar, evidentemente, de realismo,mas sim de uma atmosfera onírica em que ofantástico é mediado através da experiência real(veja-se, por exemplo, a justificação mítica que oautor dá de alguns topónimos).A Crónica do Imperador Clarimundo vive e é vivi-ficada por este desdobramento de planos: de umaparte o maravilhoso fantástico, da outra o mara-vilhoso histórico, ambos em relação dialéctica entresi. Por esta via o romance adquire uma nova fun-cionalidade enquanto se precisam, em perspectiva,as motivações narrativas.

A própria colocação da profecia de Fanimor parece,neste caso, significativa: o aperfeiçoamento do heróiatravés da avanture atinge o seu cume no fim dosegundo livro, pelo que ele é agora finalmentedigno de receber o carisma. Este, por sua vez,põe-no em estado, não tanto de desposar Clarinda,o que pode considerar-se fim secundário (desdeque um casamento, ainda que em segredo, foraconsumado), mas de desbaratar os infiéis, deapresentar-se como o primeiro campeão daqueleespírito de cruzada que tanta importância tinhana ideologia monarco-nobiliárquica quinhentistaportuguesa.Por outras palavras, Clarimundo, antepassado fan-tástico da dinastia henriquina, realiza e cumpre,com aquelas roupagens, o propósito a que esta seteria votado: dilatar a Fé e o Império. A guerraaos mouros, que pode considerar-se um tópico danarrativa cavaleiresca do século XVI, encontradeste modo no livro de João de Barros umadimensão histórica precisa. Manuel Severim deFaria define Clarimundo, como se disse, como umahistória fabulosa, sem dar-se conta, talvez, de que éexactamente pela união dos dois termos que nasceo carácter distintivo da obra. É o próprio autor,com efeito, que precisa no prólogo por que pontode vista se deve considerar o elemento fantásticono seu romance: «Pois das antigas cousas nãotemos outra certeza, é necessário darmos-lhes tantafé, quanta nos elas testificam. Quanto mais, que aexperiência das nossas presentes autorizam todasas suas passadas. E quem nesta verdade duvidar,ponha os olhos na grandeza das obras del-Reivosso padre, e desfará a roda do pouco créditoque a todas as outras der».Está já nestas palavras o futuro autor das Décadas:na constatação de como a história por si só ésuficiente para criar o mito e de como o epos nãoé, no fundo, senão o fruto artisticamente deformadoda realidade. Em Clarimundo, João de Barrosexperimentou a possibilidade de explorar a matéria

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lendária para fins históricos e nacionais; caberá aCamões, avançando pelos caminhos por eleindicados, percorrer a via contrária que leva dahistória à épica.

FRANCISCO DE MORAISE O PALMEIRIM DE INGLATERRA

[...]Não sabemos muito do autor de Palmeirim deInglaterra. Nasceu, com toda a probabilidade, nosfinais do século XV ou nos inícios do séculoseguinte. O pai, Bastião ou Sebastião, membro dapequena nobreza brigantina, era provavelmenteempregado na Fazenda Real. Francisco entrou,por sua vez, ao serviço do conde de Linhares, D.António de Noronha. Em 1541 tomou parte, comfunções de secretário, na embaixada enviada porD. João III ao rei de França, e que era encabeçadapelo filho de D. António, D. Francisco de Noronha.[...]Mais na qualidade de confidente do que na desecretário, envia de Melun ao conde de Linharesuma longa carta.[...]Trata-se de um documento original já que nelese descrevem, num tom vivo e agradável, os costumesda corte francesa, bastante livres aos olhos de umobservador português. Nela se referem, para alémdisso, os nomes de três damas francesas, Latranja,Talensi e Mansy, que voltaremos a encontrar depoiscomo protagonistas dum curioso episódio do Palmei-rim.Referimo-nos, naturalmente, ao trecho autobiográ-fico de que já se fez menção, no qual aparecetambém o nome de uma outra dama da cortefrancesa, mademoiselle de Torsi, de quem sabemoster-se enamorado perdidamente o escritorportuguês durante a sua permanência em França– em idade, portanto, já madura, e por quem foirepudiado depois de uma longa corte.

O episódio (que ocupa os capítulos 137-142 dasegunda parte), embora também banhado pelamesma atmosfera fantástica que percorre todo oromance, denota, não obstante isso, uma escassaarticulação lógica com o resto da narração noplano temático: aqui se conta como quatro damasfrancesas, que têm exactamente os nomes dasgentis-donas há pouco citadas, prometem con-ceder-se como prémio ao mais valente cavaleiroque por elas combatesse. O vencedor é Floriano,o galante irmão de Palmeirim que, todavia, acabapor fugir da sua presença ao dar-se conta do seuespírito fútil e vazio.É a primeira vez, tanto quanto se sabe, que numromance de cavalaria são inseridas de maneiradirecta personagens reais e que o autor se permiteexprimir, a seu respeito, sentimentos pessoais. Nãoé difícil, em boa verdade, descobrir em Floriano– limitando-nos, por certo, a este episódio – umaprojecção de Francisco de Morais, que tenta, poresta via, uma desforra moral em relação amademoiselle de Torsi, que é repudiada pelo cavaleiro,tal como ela, na vida real, tinha repudiado oescritor.O único precedente possível, no âmbito quinhen-tista, é constituído pelo episódio da profecia noClarimundo em que, embora com intenções dife-rentes, se articula a lenda com a história, enquantoum novo exemplo de irrupção do real na ficçãocavaleiresca se dará com o torneio de Xabregasdescrito no Memorial de Jorge Ferreira deVasconcelos.A pergunta que espontaneamente surge é se épossível, neste ponto, considerar tal mistura entrerealidade e fantasia como um elemento distintivoda narrativa portuguesa de inspiração cavaleiresca.[...]As finalidades com que João de Barros ou JorgeFerreira de Vasconcelos introduzem nas suas obrasepisódios ou figuras históricas são, evidentemente,de natureza diferente das de Francisco de Morais,alheio a quaisquer intenções épicas ou apologéticas

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precisas pelo que seria bem mais fácil invocar aseu respeito modelos de narrativa sentimental comoa Elegia di Madonna Fiammetta de Bocaccio –: étodavia digna de relevo esta atitude comum dosautores portugueses ao funcionalizar a matériacavaleiresca numa perspectiva pessoal ou nacional,isto é, ao servir-se dela como de um veículoexpressivo privilegiado em oposição à acçãoniveladora da tradição. [...]O romance de Francisco de Morais, apresenta-se,tematicamente, como uma continuação doPrimaleón, em que se narravam principalmente, asfaçanhas do cavaleiro deste nome, filho dePalmeirim de Oliva. No livro, todavia, dava-serelevo também à figura de D. Duardos, filho dorei Fradique de Inglaterra, o qual acabará pordesposar Flérida, filha de Palmeirim.Ora, enquanto os dois romances castelhanos, intitu-lados Platir e Flotir, de que se fez referência, seocupavam da descendência por linha masculinado primeiro Palmeirim (narram, de facto, asaventuras, respectivamente, do filho e do neto dePrimaléon), no âmbito português prestou-se,singularmente, uma maior atenção à história dosamores de Flérida e de D. Duardos.Gil Vicente, indo buscar o tema a um episódio doPrimaleón, compõe em 1522 a tragicomédia D.Duardos onde se conta como o filho do rei deInglaterra, disfarçado de hortelão, consegue apro-ximar-se e cortejar a mulher amada. Por sua vez,o livro de Francisco de Morais abre com a des-crição da difícil gravidez de Flérida que acabarápor dar à luz, em circunstâncias dramáticas, osgémeos Palmeirim, depois chamados de Inglaterra,e Floriano do Deserto.A narração segue, a partir daqui, os cânones clás-sicos do género cavaleiresco, já que os dois recém--nascidos são roubados à mãe por um «selvagem»e educados pela mulher deste. Feitos cavaleiros edescoberta a sua ascendência darão início à suaaventura heróica e sentimental. Palmeirim, em par-ticular, enamora-se de Polinarda, filha de Primaleão

(o Primaleón do romance castelhano) imperadorde Constantinopla; também no romance deFrancisco de Morais, antes de desposar a amada– sempre a nível oficial, pois secretamente as núpciashaviam já sido consumadas – o protagonista deverávencer os infiéis que assediavam a cidade. O espíritode cruzada não podia ser, evidentemente, descura-do nem sequer numa obra que, diferente doClarimundo, não tinha intenções declaradamenteépicas.Mencionada brevemente a história do protagonista,dever-se-á também recordar a presença, no roman-ce, de figuras secundárias em cujo traçado o autorprescinde largamente dos estereótipos tradicionais,revelando, neste sentido, uma notável dose de origi-nalidade.É o caso de Miraguarda e Florendos e da suahistória sentimental: ela, dama caprichosa, submeteo seu apaixonado às provas mais duras recusandosempre, com maneiras de coquette, condescender aoseu amor; ele, amante, receoso, mais digno defigurar num roromance sentimental ou bucólico,suporta em silêncio as intemperanças da mulher,conseguindo realizar o seu sonho de amor apenaspela intervenção compadecida de Palmeirim ePrimaleão.[...]

JORGE FERREIRA DE VASCONCELOSE O MEMORIAL DAS PROEZASDA SEGUNDA TÁVOLA REDONDA

Em 1567 é impresso em Coimbra, «em casa deJoão de Barrera», o Memorial das Proezas da SegundaTávola Redonda, dedicado ao «muito alto e muitopoderoso Rei dom Sebastião».[...]A obra de Jorge Ferreira de Vasconcelos deve [...]ser colocada na linha de desenvolvimento do Clari-mundo, através da experiência literária do Palmei-

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rim de Inglaterra, teria conduzido ao nascimentodo epos nacional. É bom recordar, de facto, queentre a data de publicação do Memorial e a dosLusíadas decorrem somente cinco anos; e queentre as duas obras, embora tão distantes entre si,quer pelas intenções quer pelos efeitos artísticos,não se pode deixar de encontrar, como veremos,ideais estéticos e interesses históricos comuns.Com efeito, se pela matéria o Memorial é aindalargamente devedor da tradição medieval, quantoà forma e às intenções participa, ainda que demaneira superficial, dos novos tempos: «respira»como afirma Massaud Moisés, «os ares quinhen-tistas». [...]Neste sentido, a escolha da matéria arturiana podiaconsiderar-se obrigatória dada a simbologia ligadaà Távola Redonda; mas, ao mesmo tempo, JorgeFerreira de Vasconcelos apercebeu-se da impossibi-lidade de reportar-se directamente àquele mundomítico de base estritamente medieval, cujos com-ponentes alegóricos e éticos se adaptavam mal àexpressão da ideologia quinhentista tardia da corteportuguesa. Imagina, por conseguinte – querendoquase marcar a distância –, uma segunda távolaredonda presidida pelo rei Sagramor, sucessor deArtur, em que participam cavaleiros que são, nasua maioria, filhos de heróis-personagens dosromances de Chrétien de Troyes.O Memorial narra a sua gesta, as suas aventurassentimentais e os gloriosos feitos de armas, situados,todavia, num cenário que tende a tornar-se, emrelação aos romances precedentes, sempre maisestilizado: dele parecem quase ausentes todas asformas de movimento ou de vida. Mais do queno Clarimundo, a parte dedicada às questões pro-priamente cavaleirescas acaba por ser apenas umquadro, isto é, um momento preparatório queintroduz o acontecimento-função, constituído noMemorial pelo torneio de Xabregas.Trata-se, neste caso, de um facto real, de uma justatravada durante o reinado de D. João III (5 deAgosto de 1552) na qual tomara parte também o

Príncipe D. João que, de resto, fora armadocavaleiro naquela ocasião.Também aqui, como no Clarimundo, somos adver-tidos logo no prólogo de que este é o verdadeiroobjectivo da composição do romance: mitificar,através do torneio de Xabregas, D. João – e comele a monarquia e a nobreza portuguesas. Seme-lhante ao utilizado por João de Barros é tambémaqui o mecanismo que serve para introduzir oacontecimento: é a maga Merlíndia que faz o reiSagramor assistir ao torneio graças aos seus mara-vilhosos poderes, depois de ter exaltado a belezado Tejo e dos lugares que são o cenário – real,também neste caso – da acção.Como conclusão lógica da história, o capítulofinal (Do remate destes males) mostra-se, pelocontrário, pleno de tristeza: aí se anuncia a morteprematura de D. João e as Charites são chamadasa entoar para ele uma triste elegia fúnebre.Quer neste episódio quer, mais em geral, por todoo romance encontram-se disseminadas figuras mito-lógicas e citações clássicas, como se, exclusivamentepor esta via, Jorge Ferreira de Vasconcelos pensassepoder chegar a dar do romance de cavalaria umaversão profundamente renovada, dir-se-iarenascentista. [...]O escritor, entregue a uma tarefa precisa (a deexaltar a monarquia e a nobreza portuguesas atravésdo torneio de Xabregas) e ao mesmo tempo tolhidopor vínculos materiais e ideológicos, não conseguiu,evidentemente, criar uma dimensão poética e literáriaadequada, acabando por compor uma obra que,sob o artifício humanístico-renascentista, não chegaa esconder a sua matriz medieval. Pode em todoo caso concluir-se que ele não fez senão fornecer,em boa medida, o produto literário que lhe foraencomendado, ornamentando-o com toda a períciaformal de que era capaz. Era nisso que todo umambiente social procurava ainda reconhecer-se.Não admira que D. Sebastião, formado nesta escola,tenha depois conduzido o seu povo ao desastrede Alcácer-Quibir: assim, numa batalha que,

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contrariamente ao que acontecia nos romancesde cavalaria, se concluiu a favor dos infiéis,declinavam as ilusões de um corpo social quetinha acreditado poder utilizar, para finsexpansionistas ou genericamente ideológicos, umideal originário de um contexto socioculturaldemasiado distante no tempo.

AS CONTINUAÇÕES DO PALMEIRIM.DECADÊNCIA DA NARRATIVACAVALEIRESCA

[...]Deve todavia chamar-se a atenção para o acto enão ser possível estabelecer-se uma relação directaentre a presumível crise dos romances de cavalariana segunda metade do século XVI e o aumentodas críticas por parte do elemento clerical.Paradoxalmente, poder-se-ia sustentar que nãoexiste sintoma mais preciso do favor gozado pelosromances cavaleirescos do que a frequência dasreprovações que contra eles se levantam. De resto,é também verdade que não temos notícia deintervenções inquisitoriais que proibissem, demaneira explícita, a sua difusão.O único a ser posto no índice foi, significativa-mente, a Caballería celestial, obra do castelhanoHierónimo de San Pedro, em que se procuravaconciliar o ideal cavaleiresco com a ética cristã.Segundo esta perspectiva, podemos perguntar se élícito falar de uma crise do romance de cavalariana segunda metade do século XVI, como fazemmuitos especialistas e, no caso da existência dessacrise, quais as suas causas reais.O problema mostra-se, na realidade, bastante com-plexo, já que se, na verdade, o número de novosromances diminui sensivelmente para o fim dacentúria, não é menos certo que se continuam aimprimir os da primeira metade do século, demodo especial os clássicos, como o Amadis deGaula e os Palmeirins. E, ultrapassando os limites

do século, ver-se-á como tal situação se perpetuadepois no período seiscentista, e até no setecentista,ainda que a frequência das reedições se vá tor-nando, com o tempo, menos importante. Emcompensação, os valores tradicionais do romancede cavalaria continuam a animar, neste período,uma produção literária que, embora perdendonaturalmente o contacto com as motivaçõesideológico-culturais dos arquétipos, e adaptando-se,ainda que lentamente, ao espírito dos novostempos, decalca daqueles modelos temáticos emecanismos compositivos.Este tipo de narrativa, agora definitivamente pri-vado de qualquer conotação elitista e favorecidona sua difusão pelo impetuoso desenvolvimentoda imprensa, vai alimentar – poder-se-ia perfeita-mente sustentar que é dele, em certo sentido, oprotótipo – o filão da literatura dita popular oude consumo, em que o mito cavaleiresco se deterioraperdendo todo o carácter de necessidade peda-gógica e esvaziando-se de todas as suas compo-nentes simbólicas. [...]A Quinta e Sexta Partes do Palmeirim podem consi-derar-se consequentemente, e não apenas no planocronológico, como o ponto final da degradaçãodo ideal cavaleiresco, de matriz medieval, emPortugal.Por outro lado, é também possível verificar nolivro uma certa tendência para o conceptismo ea hipóstase dos motivos narrativos tradicionais, oque pode fazer supor uma sua participação nasorientações estético-literárias do gosto barroconascente; tratar-se-ia, neste caso, de uma nova provada «adaptabilidade» do romance de cavalaria aosambientes culturais epocais, aspecto donde derivará,como se disse, a possibilidade para a nobrezacavaleiresca de sobreviver a si mesma, ligando osseus destinos, no plano literário, aos da narrativade cunho popular ou popularesco.

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OUTROS ROMANCES DE CAVALARIADEIXADOS MANUSCRITOS

[...]A par das obras impressas, devem ser recordadasas muitas que ficaram manuscritas de que não épossível, infelizmente, avaliar em pleno nem aquantidade numérica, nem tão-pouco a validadeliterária. [...]Um primeiro grupo de obras é constituído pelascontinuações manuscritas do Palmeirim de Inglaterra.Diogo Fernandes, no prólogo do seu romance,afirma ter decidido publicar a continuação dolivro de Francisco de Morais depois de muitasincertezas e «alimpando» o texto por ele já com-posto. Pode deduzir-se que a Terceira Parte deve tercirculado manuscrita num primeiro tempo e sódepois terá sido impressa, em 1587.Com efeito, existem muitos códices de uma obracujo título varia também em notável medida (desdea Vida de Primaleão, Emperador de Constantinopla atéà Cronica do invicto D. Duardos de Bretanha): trata-se,na realidade, do mesmo romance intitulado demaneira diferente, no qual se contam as aventurasde Palmeirim e dos seus descendentes, retomandoa narração a partir do ponto onde fora interrom-pida por Francisco de Morais.Pode-se identificar nesta obra a redacção manus-crita da Terceira Parte do Palmeirim de Inglaterra?Por um confronto, ainda que sumário, das duasobras e considerando, para mais, que DiogoFernandes afirma ter simplesmente limpo a suaprimitiva compilação, deveremos excluir tal hipó-tese: o único ponto de contacto entre elas é cons-tituído pelo facto de serem ambas continuaçõesdo mesmo romance. As poucas semelhançasverificáveis, no plano temático, limitam-se, comefeito, apenas à parte inicial, enquanto no pros-seguimento da narrativa os dois livros diferemtambém em notável medida.De resto, a Vida de Primaleão (ou Cronica de D.Duardos) deve ser considerada como o primeiro

elemento duma trilogia que compreende aSegunda Parte da Cronica do Príncipe dom Duardose que é concluída pela Terceira Parte da mesmaCronica (de ambos estes romances existem maismanuscritos).Não é difícil formular a hipótese de que as trêsobras sejam de um único autor, mau grado todaselas apresentarem a mesma falsa atribuição depaternidade a um imaginário «chronista ingrês»,Henrique Frusto, enquanto a tradução em portu-guês teria sido realizada nada menos que porGomes Eanes de Zurara.[...]Além das continuações directas do Palmeirim deInglaterra, conserva-se manuscrita uma outra obradividida em quatro partes, também ela intituladade vários modos: Cronica do Imperador Beliandro, ouCronica de D. Belindo ou ainda, História Grega. Narealidade, são narradas neste romance as aventurasde D. Beliandro, imperador da Grécia, de seu filhoD. Belliflor e de D. Belindo, príncipe lendário dePortugal, enamorado de Beliandra, filha do impe-rador. A única circunstância digna de nota é,exactamente, a presença no romance de uma per-sonagem portuguesa, de um príncipe de nomefantástico que, casando com Beliandra, acabarápor subir ao trono da Grécia, dando-nos assim,em definitivo, a medida precisa das transformaçõesoperadas na narrativa cavaleiresca portuguesa apartir de obras como o Memorial e o Clarimundo.Nesta última, em particular, exaltava-se a dinastiade Aviz através de uma personagem imaginária,acabando por ligar, com fins épicos, fantasia ehistória. A figura de D. Belindo, pelo contrário,não desempenha essa função: ele é um cavaleirocomo os outros, que vive e actua num mundoabsolutamente irreal. O seu destino resolve-se nesteâmbito fantástico, fora de quaisquer consideraçõeshistóricas ou épicas, podendo suspeitar-se, atravésdele, que o autor tenha querido lisonjear oorgulho nacional.

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[género e renovação]Se é iniludível a tipicidade das crónicas fabulosase segura a dependência de uma gramática narrativacomum, [...] não é menos verdade que a projecçãode traços canónicos e de uma traça essencial con-sentiu variações e permitiu ágeis cruzamentos. Aoleitor enfadado ou que não ultrapasse as primeirasfolhas, os livros de cavalarias soarão eventualmentecomo cópias desinteressantes: as personagensconfundem-se, as linhas da intriga diluem-se numjogo de intensos reflexos. Olhados de perto, porém,para lá de inequívocas similitudes que, num grauextremo, chegam a atingir contorno de citação,revelam diferenças, uma vitalidade que se traduzem adaptação e permeabilidade: a persistênciavigorosa de características basilares não impediu oesforço ou o prazer da invenção (1970: 86) (12)

[leitores e difusão dos livros de cavalarias][...] A existência de uma obra numa bibliotecanão garante em absoluto que tenha sido de factomanuseada, tal como a ausência de títuloscavaleirescos não significa obrigatoriamente o seudesconhecimento [...]. Então, como hoje, ao longo

Os Livrosde CavalariasPortuguesas(excerto)

ISABEL ALMEIDA *

* Dissertação de Doutoramento. Lisboa: Faculdade de Letrasda Universidade de Lisboa, 1998.

[...]No que se refere à autoria da obra, foi propostopor diversos autores atribuí-la a D. LeonorCoutinho, condessa da Vidigueira, que viveu entreo fim do século XVI e a primeira parte do séculoseguinte.[...]Não deve de forma alguma causar-nos admiraçãoque uma dama tenha podido compor uma obrade assunto cavaleiresco: as mulheres, com efeito,como se depreende de vários testemunhos, eramleitoras entusiastas dos romances do género, estandomesmo atribuído a uma escritora um dos primeirose mais importantes romances de cavalaria do séculoXVI: o espanhol Palmerín de Olivia.Entre os romances de cavalaria que ficaram manus-critos e conservados em bibliotecas portuguesasdever-se-á, por último, citar a Cronica do PrincipeAgesilau e da Rainha Sidônia.Conhece-se até hoje um único testemunho destaobra: um códice miscelâneo do século XVII,propriedade da Biblioteca Geral da Universidadede Coimbra. Infelizmente, a letra com que talobra foi transcrita torna-lhe a leitura bastantedifícil. Parece significativo, todavia, que na intitulaçãose diga que ela contém «muitos exemplos favolososutilíssimos à Poesia.»

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Clarimundo é dirigido a D. João III; Palmeirim deInglaterra à Infanta D. Maria; Triunfos de Sagramorao príncipe D. João Manuel, tal como o Memorialviria a ser oferecido a D. Sebastião. À data dapublicação dos livros que lhes foram endereçados,D. João tinha 20 anos, o príncipe D. João, seu filho,16, D. Maria rondaria os 23, D. Sebastião era umadolescente de 13; leitores jovens e poderosos, cujasombra protectora é solicitada nos prólogos, ondeinvariavelmente se apregoam os estreitos laços como mundo pação. E não se trataria de letra vã. Emdois casos (Clarimundo e Memorial) esta produçãocorresponde a um “progetto encomiastico e cor-tigiano”, à semelhança do que se verificava emromanzi italianos [...]: subjacente a cada obra esteve,se não uma explícita encomenda, pelo menos oaval de um patrono, cuja imagem elogiosamentese urde no texto. (39)

[Inquisição e a censura dos livros de cavalariaportugueses]

Que a divulgação das crónicas fingidas, em recep-ções de conjunto ou individuais, foi uma realidade,percebêmo-lo através de sinais dispersos – entreeles, a preocupação de quem tinha por ofício ocontrole de livros e leituras. Note-se que, à seme-lhança da política seguida pela sua congénereespanhola, a Inquisição portuguesa sempre tratouas crónicas fabulosas com surpreendente bene-volência: por vezes obedecendo a influências ouconveniências de que hoje apenas conseguimossuspeitar (severos na limpeza de uma obra comoPalmeirim de Inglaterra, de Francisco Morais, oscensores adoptariam para com Clarimundo umaimpassividade total, inclusive em trechos queidênticas razões fariam crer expurgáveis); em geral,aceitando estas narrativas por imperativo do usoinstituído.Importa não esquecer que a edição de 1592 [doPalmeirim de Inglaterra de Francisco de Morais],severamente expurgada, foi oferecida ao Cardeal

da vida perdiam-se e descartavam-se livros, conhe-ciam-se outros por empréstimo. Além disso, [...] éimprescindível ter em conta que a leitura não seresumia, nos séculos XVI e XVII, a um actosilencioso e individual, podendo ser uma práticagregária, centrada na recitação oral (sempre abertaao improviso e à glosa), o que multiplica hipótesesde circulação dos textos, das quais só raramenteficou memória.Bastaria [...] a enérgica campanha adversa movidapor moralistas, eclesiásticos e humanistas, e emparticular os vários esforços legislativos visandocercear a difusão dos livros de cavalarias, paramostrar o duradouro e extenso interesse despertadopor este género. Em Espanha, vozes críticas comoas de Luís Vives, Alejo Vanegas de Busto, JuanPérez de Moya, soaram, ásperas, denunciando operigo que a apetência por crónicas fabulosasrepresentaria para “moços”, “ociosos” e “livianos”,bem como para “donzellas recogidas”, “deso-cupadas” e de “ânimos tiernos”. Para algunsdetractores, essa ameaça remontava à infância, ouporque “suelen algunos padres recitar a sus hijoslas patrañas de los cavalleros de burlas”, comocensurava, ao que parece fundadamente, Jerónimode Sampedro, em 1554 (ap. Gayangos, 1950: 56), ouporque, já nas escolas, numa fase elementar deaprendizagem, os livros de cavalarias (ou narrativascavaleirescas breves?) seriam utilizados para oexercício de leitura. (27-28)[...]

[os livros de cavalarias e a corte][Os livros de cavalarias] terão feito parte de hábitose preferências de nobres e áulicos, e sabe-se quenão faltavam na guarda-roupa real. Entre os bensde D. Manuel contavam-se Amadis de Gaula, Sergasde Esplandião, Florisando [...] (31-32)

Foi precisamente na órbita do monarca ou deseus próximos que gravitaram, até meados deQuinhentos, os autores de livros de cavalarias.

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Alberto, Regente e Inquisidor. Sem dúvida,procurava-se a mais alta protecção para a obra,mas não deixa de ser curiosa a oferta de umacrónica fabulosa ao mais destacado representantedo Santo Ofício. (nota 44, 59)

[recepção]No nosso país a história da recepção do livro decavalarias é a de uma branda conquista: de umgrupo de elite, primeiro; de um conjunto cada vezmais vasto, depois, sem perder o favor dos queinicialmente o estimularam. Para cada um ter “asignificado algo diverso: espelho de comporta-mentos; pretexto de evasão; entretenimento frutuoso.E é precisamente nessa plurivalência que estasobras se destacam e encontram garantia de sobre-vivência, na sua capacidade proteica de assimilartendências e desejos, de condensar modelos e osajustar à medida do tempo. Para lá da seduçãopoderosíssima que o código da cavalaria por siasseguraria, e das características peculiares do género,onde a aventura e o amor constituem traves mestrasde um potencial sucesso, esse parece ter sido osegredo da longa vida das crónicas fabulosas.” (74)

O livro de cavalarias floresceu em Portugal, até aoinício de Seiscentos, sem que assumidos esforçosde teorização lhe fossem dedicados. Desconhe-cem-se tratados em que sobre o género se desen-volvesse um discurso construtivo, apurando as suascaracterísticas essenciais, definindo-lhe regras emodelos, traçando-lhe uma história, situando-ono sistema literário, enfim, estabelecendo-lhe umcódigo próprio.Em contrapartida, em pleno século XVII, quandotudo levaria a crer que o interesse pelo livro decavalarias estava em declínio, foram concebidosdois textos de especulação poética em que ogénero constitui abertamente objecto de reflexão:o diálogo I da Corte na aldeia (1619), de FranciscoRodrigues Lobo, e o discurso “Do romanço e doslivros de batalha e dos livros de cavalaria”

(c. 1630), um dos muitos trabalhos deixados inéditospor Manuel Pires de Almeida. (77)

A condenação dos livros de cavalarias envolve, [...],com nítida frequência e preponderância, razõesde ordem moral. Estas diatribes revelam-se tantomais incisivas quanto se reconhece o fascínio dogénero; tanto mais ríspidas quanto se sabe e temeo seu sucesso. Se a envergadura da campanha éproporcional à dimensão do alvo, a quantidade edureza destas invectivas contra as histórias fingidasconstituirá indirecta mas eloquente medida da suaimportância e resistência. Muitos detractores nãonegam, de resto, a sedução por elas exercida.Admitem-na, ao mesmo tempo que denunciam oque julgam ser o seu perigo fundamental: a atracçãoirrecusável, a influência traiçoeira, porque sub-reptícia. (104)

[sobre as obras: aspectos individuais e visão deconjunto]Se choviam críticas sobre a acção nefasta da ficção,dita fonte de maus exemplos e perniciosas influên-cias, os prólogos mostram-se pregoeiros de juízoinverso. Além de que a tanto obrigava a duracampanha movida por numerosos críticos, é possívelque no protagonismo assumido pela questão serepercuta, por vezes confundindo-se com reflexoshoracianos, o arreigado uso peninsular segundo oqual, como lembrou Walter Pabst (1972: 184-295),se associou persistentemente às formas narrativasuma função exemplar. Porventura mais tímida, noslivros antigos, essa perspectiva ganha firmeza eeloquência à medida que o tempo corre e que,ao longo de Quinhentos, a teorização literáriadesenvolve razões que nestes discursos acabam porser aplicadas.Assim, enquanto João de Barros reclama para asua obra a pertinência de uma crónica, diluindoquanto possível fronteiras entre verdade e fábula[...], Francisco de Morais sugere, algo titubeante,que “às vezes escrituras de leve fundamento têm

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palavras, costumes e feitos de que nace algumfruto”. (123-24)

Subjacente ao universo cavalheiresco construidoem sucessivos textos ficcionais encontra-se umprofundo, persistente desejo de ordem. A afirmaçãoparecerá paradoxal, dada a teia de peripécias,enganos, aventuras, agravos e conflitos quecaracteriza estas obras, mas na verdade tais sobres-saltos, além de expressão do regimento do mundo,constituem aqui uma necessária medida de valor.Nas crónicas fingidas não se compreende o bemsem a luta contra o mal, nem a vida sem o reversoda morte, nem a força da razão sem as tentadorasexigências da vontade; a alegria implica o contrastetriunfante com a dor, do mesmo modo que a pazradica nas cinzas da guerra, ou que, perante o feio,o belo reluz mais. E é neste constante jogo detensões que o equilíbrio (ou, melhor, cada equi-líbrio conseguido – muitas vezes fugaz, ameaçado)se revela tão precioso quanto rara a sua condiçãoe alto o seu preço.[...]O xadrez seria, até certo ponto, uma metáforafeliz para representar estes livros: a bipartição, arígida organização lúdica, que, embora traduzidanuma hierarquia e num conjunto de normas fixas,permite combinatórias quase infinitas e resultanum desafio estimulante, tudo isso se poderiaaplicar em larga medida às crónicas fingidas, coma sua divisão axial entre bons e maus (por vezes,mas não sempre, coincidente com a distinção entrecristandade e mourisma), com o seu repertório detipos articulados segundo códigos nítidos, pro-duzindo lances que, se geralmente previsíveis, todavianão excluem a novidade e a surpresa. Reis, cava-leiros, monstros, damas, sábios, são as peças fun-damentais que se cruzam e confrontam nestemagno tabuleiro. Entre a constância de suas carac-terísticas basilares e a flexibilidade da invençãofabulosa, abre-se um caminho que urge percorrer:assim se percebem mutações diacronicamente

orientadas, que, sendo prova da capacidade derenovação do género em que se integram, valemtambém como sinais de mudanças (poéticas,culturais, sociais, políticas), ali reflectidas, estimuladas,sonhadas. (151-52)

Ao oferecer a D. Sebastião o [Memorial dasProezas...], Jorge Ferreira de Vasconcelos cultivoucom esmero a humildade convencional nessascircunstâncias [...] Será digno de registo a elogiosamenção de qualidades do soberano, mas convirásobretudo observar que as profissões de modéstiafeitas na dedicatória não escondem o orgulho doautor, flagrante na sugestão de que o Memorialpoderia, a seu modo, ilustrar a ciência reputadapor Aristóteles como a mais excelente: “a queensina a fazer um bom príncipe.” [...] (155)Estas afirmações, parte da exaltação do géneroque teve em Vasconcelos um dos seus mais audazesmentores, ganham redobrado interesse quando severifica que na vastidão da “matéria heróica”, ricade possibilidades e assim apresentada como via deformação do príncipe, acho Jorge Ferreira [...]terreno para deixar elementos muito especifi-camente respeitantes ao ofício de reinar, numaopção afim à de João de Barros, que tão-poucohavia esquecido de encarecer no prólogo a D.João a importância de Clarimundo enquanto“figura” [...] dos monarcas portugueses. O assuntoera caro a ambos autores, decerto, e sabe-se queVasconcelos terá igualmente dedicado a D. Sebastião,“quando era minino” (Barreto, ms.: 674), “para asua instrução” (Machado, 1966, 11: 806), o Diálogodas grandezas de Salomão, interlocutores Bernardo eLuis, deixado inédito e hoje perdido.Barros endereçou o seu trabalho a um soberanocom quem privava; o objectivo de Vasconcelosseria provavelmente suscitar no Desejado acontinuação do favor que de seu pai (presenteado,recorde-se, com uma primeira versão do Memorial)recebera. Por ironia do destino, revelou-se estra-nhamente certeira a sua eleição de matéria artu-

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riana, em particular a incógnita do paradeiro dorei levado para Avalon após a trágica batalhaonde se perdeu a flor da Távola Redonda. (156)

Na Crónica do emperador Clarimundo, Barros nãopôde e soube apenas moldar uma visão míticaencomiástica das origens de Portugal: realizandoessa empresa, ergueu entusiástica leitura do presentee apurou ideais que o conceito periodológico deRenascimento subsume. Alegar-se-á, eventualmente,que falta ali a marca nítica dos clássicos, pois foidecerto em textos como Amadís que João deBarros elegeu o seu padrão primordial. Ao fazê-lo,porém, recriou-os, elaborando na sua “pinturametafórica” uma exaltação da dignitas hominis quenão se errará supondo devedora do magistério dePico della Mirandola, poucos anos depois apre-goado por frei António de Beja, na Breve doutrinae ensinança de príncipes (1525) também dedicada aojovem D. João III. Um imenso triunfo da ordem– tal se apresenta o “debuxo” do futuro cronista.Nele cabem um risonho hedonismo e a perse-verante, grave busca de plenitude: com delicadamesura, Barros gravou na fábula e, em particular,simbolizou no herói apolíneo, uma mundividênciaesperançada, confiante na razão e na harmoniaedificada pelo homem, em serena relação consigo,com os outros e com Deus.Bastaria cotejar a narrativa de Francisco de Moraiscom a Clarimundo para obter a prova dessadiversidade na unidade que os livros portuguesesoferecem. Se no texto de Barros é de longe alonge detectável um olhar distanciado de factos efiguras da ficção, nada se compara ao que sucedeno Palmeirim de Inglaterra, onde o exalçamentoheróico e a definição de valores se cruzam comrevelações por vezes ácidas, cruas e não raro irónicasdo seu reverso. Pesaria, porventura, a maturidadedo secretário de D. Francisco de Noronha naescolha desse caminho e na representacão decontrastes e desencantos da experiência humana.A euforia da Clarimundo não se repete aqui, nem

a sua harmoniosa proporção entre homem, razão,Deus. Contudo, não há lugar para inquietaçõesmetafisicas: a hierarquia que distingue divino ehumano é clara, e o que o autor se reserva pareceser o direito de tratar com desembaraçada levezao mundo dos homens. Morais cria um universoficcional como quem joga, explorando lances comnotável liberdade crítica ou desassombrada lucidez,o que não deixa de lembrar estratégias lúdicascomo as que por diferentes formas Castiglione eErasmo praticaram.Outras questões que o Memorial de Proezas levaa formular. Jorge Ferreira terá tentado umanobilitação do género através do estabelecimentode estreitas relações com modelos clássicos (Antigose Modernos), imitando-os em desvairados passosda obra, que desde logo impressiona por essealargamento de horizontes que faz do livro decavalarias o texto de todos os textos. Visivelmenteheterogéneo, o Memorial tenta a perpetuação deum ideal sem que o animem as certezas confiantesda Clarimundo ou da ironia segura de Franciscode Morais: o percurso do cavaleiro das ArmasCristalinas, na sua errância por um amor impossível,determinado pela magia, mostra-o bem, e nanarrativa atravessada por tensões percebe-se umavisão do mundo inquieta e descrente, a que nãoserá impróprio chamar maneirista.Dados os vínculos de família que se estabelecemna prossecução cíclica do género, os derradeirosPalmeirins constituem casos especialmente interes-santes. Em qualquer um deles é iniludível o relevodo exemplo moldado por Morais, e por issomesmo significativas as diferenças que os distinguemdessa matriz. Se for lícito admitir uma maneiranova de tratar um padrão, se for aceitável falar deuma imitação livre de um modelo, imediatamentese destacam vários traços próprios: o gosto pelamaravilha e o artificioso, a atenção ao desmesuradoe ao bizarro, o comprazimento em contrastes,senão desequilíbrios. Lembremos que é nestas obrasque mais reverentemente se preconiza a submissão

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a Deus e à Igreja (reflectindo manifestamenteuma cultura contra-reformista), mas é tambémaqui que à magia se confere espantoso realce;intensa e abertamente, encarece-se a cortesia, paranoutros passos dar dramática expressão ao furore à violência; o “político comedimento” pode serquebrado (e a raridade dos casos mais avoluma aestranheza) pela paródia graciosa ou até por umregisto satírico. Sem dúvida, privilegia-se o raro, operegrino, o patético, e não exclusivamente peloque se conta, mas também pelo modo como anarração é conduzida. E nesta diversidade extra-vagante em que convivem racionalismo e irra-cionalismo, mesura e desregramento, os livros deFernandes e Lobato podem ilustrar o conceitoestilístico-periodológico de maneirismo, estimu-lando uma reflexão sobre a história da poética emPortugal. (712-15).

Clarimundo:da ideologiaà simbologiaimperial(excerto)

EDUARDO LOURENÇO *

O Clarimundo não é um simples romance decavalaria, mais ou menos decalcado do Amadis,versão idealizada do perfeito cavaleiro andante edo perfeito amante. Sendo também isso, e emtermos exacerbados, é ainda e sobretudo umaoutra coisa: sob véu do romance de amor, oumemorial de amor, com ares de autêntica «cartedu Tendre» para uso das formosas damas e donzelasda corte já renascentista e romanesca de D. Manuel,o Clarimundo é, fundamentalmente, uma alegoriapreciosa – nos dois sentidos do termo – do sonhoimperial nascente de que Portugal é o sujeito e oobjecto.[...]De maneira deliberada e consciente, João de Barrosapresenta o seu texto como texto simbólico «pin-tura metafórica de combates e de vitórias huma-nas sob figura nacional do Emperador Clarimundo»,destinado como escreve o seu biógrafo Serafim deFaria (1583-1655), a servir de pórtico imaginárioà verdadeira pintura do triunfo dos Portuguesesna Ásia. Há, por conseguinte, ao nível em que

* “Clarimundo: da ideologia à simbologia imperial.” InHomenagem a J. S. da Silva Dias. Nº especial de Cultura –História e Filosofia, 5 (1986): 61-72.

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oferece um quadro mais profundo, por significativoe assumidamente simbólico, desse imaginário. Nãosão as páginas em que João de Barros, pela bocade Fanimor evoca em termos explícitos a crónicareal da sucessão dos reis de Portugal e das suas virtudesque exprimem melhor o sentido épico, providenciale imperial do destino português, mas a própriaficção épica, cavaleiresca, mítica de Clarimundo, o seudestino arquétipo e simbólica de «luz do mundo»que iluminam o funcionamento efectivo doimaginário implicado na futura obra histórica deJoão de Barros, obra em torno da qual toda amemória do presente nacional se vai articular aolongo do século. Em resumo, é a ficção mitológicaque ao fim e ao cabo sob-determina o texto--histórico, e não o contrário, pois foi aí e nãonoutro lado que o inconsciente da época desen-rolou os seus sonhos e ritualizou as suas formasde vida ideal.Contrariamente à maioria dos heróis dos romancesde Cavalaria, Clarimundo – claridade ou luz domundo – é, enquanto personagem, um ser sobre--humano. Não apenas porque é invulnerável einvencível – semelhante nisso aos heróis da «Guerradas Estrelas» ou a Super-Man – mas porque épré-destinado ao Amor perfeito e à glória supremado Império. João de Barros atribui-lhe um destinoque encantaria Marthe Robert: filho do Rei,Clarimundo é trocado no berço por um outro,em seguida abandonado e recolhido por Moiséspor uma nobre Dama, junto de uma fonte,recebendo então o seu primeiro nome críptico:Belifonte. Adolescente, percorrerá o mundo paracumprir o seu destino de cavaleiro errante. Depoisde peripécias numerosas em que a sua vida perigamenos que a sua alma, tão solicitado é por prin-cesas mais sensíveis aos encantos da sua beleza queà sua valentia, Clarimundo é, enfim, reconhecido,graças à marca impressa no seu peito: uma chagaincurável, chaga de amor que só o Amor mesmopode curar. Vencedor de todos os maus cavaleiros,renegados, monstros que povoam as páginas do

João de Barros se coloca, uma circularidade perfeitaentre a pintura metafórica do seu texto cavaleirescoe o texto da aventura real que ele tem, por assimdizer, diante dos olhos, a que ele integrará, a essetítulo, no texto fabuloso da sua Crónica. Comefeito, Clarimundo, na sua peregrinação iniciáticaem busca do perfeito amor e do império universal,terá um dia a revelação do futuro glorioso da raça,de que ele é, sem o saber, a raiz mítica. Esseconhecimento acrescentará um suplemento deconsciência e de sentido à sua aventura: «Em boaverdade, disse Clarimundo, eu sou agora posto emmaior cuidado, do que estes dias tinha; porque agrandeza de tão maravilhosas cousas (as futurasproezas dos Portugueses) me não deixa cuidar emal».Todos os que se ocuparam de Clarimundo reduzi-ram a sua importância ao facto da crónica apre-sentar, em dado momento, através da profecia domago Fanimor, a primeira expressão da mitificaçãoépica do destino português, enquanto destino comvocação ao império universal. Em suma, tal comoo autor das Décadas, o de Clarimundo só parecemerecer consideração como percursor da visãoépica e mítica da aventura cultural e espiritualrepresentada pelos Lusíadas. Em termos de mito-logia literária, a exegese pode defender-se, mas eladeixa de lado o essencial, que é bem menos essepapel antecipador em matéria épica que a funçãodeterminante de Clarimundo enquanto fonte eespelho do imaginário de uma época, e a essetítulo, base efectiva e afectiva em torno da qualse organiza a leitura épica da aventura históricadas descobertas e conquistas. [...]. Foi a partir daencenação do imaginário da sociedade dos finsdo século XV e dos começos do século XVI quese organizou a leitura épica da realidade nacionalque conduzirá a Os Lusíadas. E nenhum texto,mais do que o de Clarimundo, escrito por umjovem cortesão no coração mesmo da corte e dasociedade em que se elabora a justificação ideo-lógica e espiritual da prática histórica e política,

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romance, Clarimundo confessar-se-á vencido diantedo cavaleiro misterioso de que não conhece aindao poder irresistível e que não é outro que opróprio Amor, revestido de signos e de umaarmadura onde já se reflecte mais a face radiosae perturbante do jovem Renascimento que aclássica alegoria medieval. Clarimundo, o romance,é uma iniciação amorosa, de cores quase neo--platónicas. Clarimundo enamorar-se-á primeiro,perdidamente, por uma imagem ideal – de certomodo, a ideia de Beleza, tão presente ao longo dolivro – imagem que tomará em seguida os traçosde Clarinda (beleza e claridade-luz do mundo nofeminino), filha mais velha do imperador de Cons-tantinopla. Mas não se merece uma tão alta recom-pensa sem franquear obstáculos de todas as ordens,tentação de novos amores, provação do esque-cimento infligida por Farpinda, beleza abandonadapelo cavaleiro fiel, esquecimento de que será libertopela intervenção sobrenatural do mago Fanimor,espécie de deus «ex-machina» do romance. É a eleque o narrador confia a missão de conduzir oherói, sem que ele o saiba, através de todas asperipécias para um fim premeditado e feliz: ocasamento de Clarimundo e de Clarinda, pais deSancho que por sua vez será o pai de Henriquede Borgonha, fundador da casa real portuguesa.Assim, sob a forma romancesca e mítica, João deBarros dá corpo a duas lendas genealógicas quese referem ao herói fundador da nossa pátria:aquela que o faz proceder da Hungria (e queCamões reitera…) e aquela que o faz descenderdos imperadores gregos. A grandeza nascente dePortugal, nunca parco em sonhos, exigia oupostulava então esta genealogia imaginária egrandiosa. [...]É no fim do primeiro livro que João de Barrosdá livre curso à sua inclinação alegórica, incum-bindo Clarimundo, então Cavaleiro das LágrimasTristes, depois da sua derrota em face do Amore do encontro da imagem amada, pintada numpano trazido por uma mensageira desconhecida,

de conquistar uma a uma as moradas misteriosasque possuem cada uma o nome de uma virtude:Fé, Esperança, Caridade etc. e cujo conjunto sechama a Casa Perfeita. Antes do combate com osdefensores desta casa, último obstáculo iniciático,o Cavaleiro das Lágrimas é recebido por um corode vozes que anunciam e confirmam o seu futuroglorioso: «Bem-aventurado te deves cavaleirochamar, pois a divina providência te criou paraprincípio de cristianíssimos e poderosos reis». Jáem passagem anterior tinhamos tido, no momentoem que Clarimundo tenta tomar o Castelo dasVirtudes, uma ideia do «galardão» quer dizer, dapromessa reservada àquele que afrontasse comsucesso a prova suprema: «antes que entrasse, olhan-do em cima do portal, viu uma imagem de umcavaleiro mui temeroso, que sustinha a redondezado Mundo sobre as costas, da maneira que pintamo grande Hércules, e pela zona do meio daquelaesfera e redondeza, estavam umas letras em grego,que diziam: «Esta parte, e as outras duas contráriasa ela, obedecerão àquele que me há-de vencer».O Cavaleiro das Lágrimas, atento à mensagem,compreendeu «que aquele que em saber e forta-leza vencesse a Hércules, este venceria e dominariaas outras partes do Mundo não conhecidas, quesão as duas frias e a outra em extremo quente».Mais tarde virá e, tempo em que o Cavaleiroentenderá «claramente o que isso significava eoutras muitas coisas que estavam na ilha».Estamos assim preparados para o episódio centralde Clarimundo, a profecia e a visão de Fanimorque João de Barros trata na segunda parte doromance. O Mago faz aportar Clarimundo emterras que serão mais tarde as de Portugal, depoisde o ter curado do estranho esquecimento de si emque o tinha mergulhado o ciúme de Farpinda«ferida, escreve Barros, daquele que faz esquecerhonra, fazenda, ódio, inda que seja maior do queele tinha a Clarimundo, mas não que soubesse serele». Este episódio, aliás, o do Cavaleiro sem Cuidadoé um dos mais originais do romance e faz de

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Clarimundo uma espécie de Hamlet prisioneirovoluntário da sua loucura. Na primeira parte doromance, Fanimor enviara a Clarimundo umescudo pintado, tendo no centro uma ilha escon-dida por nuvens, alegoria do Império do Mar,ainda por vir. Agora, na última parte, fá-lo passarpelos Açores e aí lhe anuncia que um dia estasilhas pertencerão a um senhor do seu sangue. Énesta ocasião que Barros se refere com insistênciaà figura mais misteriosa da sua narrativa, àqueleque ele chama o filho do leão altivo e da docecordeira, que, em princípio, só pode ser o InfanteD. Henrique: «não se sabe quem será aquele filhoda mansa cordeira, e bravo leão, em cujo tempo(a ilha) será descoberta», escreve ele; «porém se euousasse, e as minhas palavras tivessem muitas cãs,elas abririam este coração onde jazem algumascousas que sente, e a tenra idade não quer quediga», acrescenta obscuramente Barros.Só à vista da futura terra de Portugal, no sítioonde mais tarde se elevará Sintra é que Fanimorelevará o tom e nós entramos então no plano daprofecia épica: «Esta é a mãe de todo o esforço,que dará seus filhos para o reparo do sangue deCristo, chamado o Monte da Lua, o qual nomeantes de pouco tempo perderá, chamando-se aRoca de Sintra, para enquanto o mundo durar;e não ficará parte nele, que o não saiba, assimcomo aquele que os sinais desta terra terá tãovivos, que nunca os perderá dos olhos; a qual rocaé mostra do reino de Portugal, que em linguagemSítica quer dizer Todo Bem». É nessas circunstânciasque ele oferece a Clarimundo as suas armas deum verde alegre, com arminho branco sem outrosigno e no escudo em campo verde a Saudadepintada, tão triste e chorosa, como a dos quemuito amam, o que alegrou Clarimundo por sertão própria para o seu estado. Nós diríamos, aonosso estado, de Portugueses… No fundo, oconteúdo real da profecia de Fanimor, relem-brando e nomeando as diversas descobertas econquistas do futuro Império Português, importa

bem menos do que a unção, por assim dizer místicaque respira todo este capítulo IV do terceiro livroe os seguintes. Clarimundo não pode ouvir aevocação destes esplendores, sem antes se libertarde todas as impurezas terrestres e o próprioFanimor se reveste da túnica, sacerdotal: «E paracousas tão altas, como vos são prometidas, e quedo consistório da Sacra Trindade vêm forjadas,cumpre despedirdes de vós todas as lembranças, ecuidado, que vos podem turvar o juízo, e terdesconsciência mui casta e limpa para as ouvir. Ecomeçarei a contar das obras do vosso neto (D.Henrique) até onde Deus quiser». É escusadorepetir a mais célebre passagem de Clarimundo, naqual, toscamente apenas, se viu inspiração para OsLusíadas futuros. Mas aqui, neste lugar (Tomar)seria imperdoável não lembrar o comentário deque João de Barros acompanha a evocação épicade D. Dinis. Como em nenhum outro, e não serápor acaso, aqui apercebemos, de uma maneiraclara, a passagem da ideologia e da mística cavaleirescasà sua expressão militante, conquistadora e já imperial.«E porque o seu desejo será sempre ocupado nadestruição de Mafamede (Mahomet), e no exal-çamento da Fé de Cristo, ordenará uma OrdemSagrada e Militar; os membros da qual, para seremconhecidos entre os outros homens, trarão nospeitos um sinal de sangue, como aquele que paraa nossa redenção foi ordenado». Com a sua chagaem pleno coração, o que é Clarimundo senão oarquétipo do Perfeito Cavaleiro de Cristo?[...]

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[...]Que a Constantinopla histórica forneceu mais deum material à própria lenda, está fora de dúvida.Mas é entretanto certo que essa mesma, lenda, naqual confluem materiais pertencentes a diversasépocas da história da cidade, em breve cristalizounum topo literário e nessa qualidade penetrounos romances de cavalaria. ibéricos de Quinhentos.Na sua forma mais esquemática, a «fábula», nosentido formal do termo, apresenta-se, entre oséculo XIII e o século XVI, nos termos seguintes:no enquadramento da cidade «soberana entre todasno mundo», um velho imperador, investido dasuprema autoridade espiritual e temporal naqualidade de herdeiro do trono de Constantinopla,

Proto-históriados Palmeirins:A Corte deConstantinoplado Cligèsao Palmerínde Olivia(excerto)

LUCIANA STEGAGNO PICCHIO *

* In A Lição do Texto. Filologia e Literatura. 2 vols. I – IdadeMédia. Tradução Alberto Pimenta. Lisboa: Edições 70, 1978.

mas fisicamente debilitado e abatido pela dor quelhe causara a morte do filho, caído na guerracontra os Turcos, aceita a ajuda que lhe é ofere-cida por um cavaleiro andante para se defenderdos inimigos que lhe assediam de perto o território.O cavaleiro cumpre dignamente a incumbência,desbaratando os infiéis e ascendendo ele mesmopor fim ao trono bizantino, após ter desposado abela filha do monarca do Oriente.A nacionalidade do cavaleiro é importante para ainterpretação ideológica dos textos. Nas cançõesde gesta, é naturalmente francês ou, pelo menos,ocidental. A história secular das relações entre oImpério Bizantino e o Ocidente oferece mais deum caso que, uma ou outra vez, poderia serapontado como ponto de partida para o nasci-mento da lenda. De resto, todo o topo, tal comoo esquematizámos, mostra uma estratificação àbase de elementos históricos. Nas páginas que seseguem teremos ocasião de indicar os principais.Mas o que aqui interessa para a interpretação domotivo e do seu uso em textos de glorificaçãonacionalista ocidental é a oposição Ocidente –Oriente, exemplificada na relação cavaleiro ocidental– Corte de Constantinopla, e na explícita superio-ridade do Ocidente, que traz consigo a soluçãofinal desta «literatura de cruzada». [...]Género por excelência heterogéneo, os romancesde cavalaria ibéricos dos séculos XV, XVI e XVIIrepresentam com efeito a junção, numa nova fór-mula literária, de elementos próprios de diversastradições estilísticas. O favor de que gozou anarrativa cavaleiresca e a sua resistência, ao longodo tempo, aos ataques de uma crítica nascidaquase conjuntamente com ela, porém incapaz, nãoobstante a sua subtileza, de suster-lhe a difusão,fornecem a prova histórica da felicidade destanova fórmula, bem como da sua contínua capaci-dade de adaptação às exigências de largos estratosda sociedade sua contemporânea. A incorporaçãodos diversos materiais não se realiza no entantosempre da mesma maneira. Se os heróis protago-

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Presbyter» da tradição medieval, rei-sacerdote,senhor de riquezas fabulosas e de um vasto impériocristão do Oriente, o qual, a partir de Quatro-centos, tende na Península Ibérica a localizar-secada vez mais não já na Ásia (ou seja, no Gog eMagog de Marco Polo, ou na Índia nestoriana),mas sim na Núbia e na Etiópia.As rápidas anotações históricas, os episódios mar-ginais, as descrições de lugares, vão buscar porémalimento a outras fontes: sobretudo a livros deviagem, onde a específica experiência ibérica, odirecto conhecimento de países longínquos, deaventuras marítimas, matiza cada episódio de umrealismo peculiar, muito seu. [...]A 29 de Maio de 1453 caíra o último Constantino,de arma na mão, como quer a lenda, defendendoa capital do Oriente do assédio dos Turcos. Aentrada de Maomé II em Constantinopla encerraráa história daquele império bizantino que, havendosobrevivido de mil anos à queda de Roma, nãosó pudera arvorar-se constantemente em herdeiroe continuador desta, mas igualmente fazer-se centrode uma nova civilização cristã, educadora doOriente, eslavo e asiático, capaz de por sua vezrestituir ao Ocidente os fermentos elaborados deuma tradição cultural que não chegara a serquebrada.Para os autores do Tirant, dos Amadises e dosPalmeirins vindos depois da conquista turca deixapois de se tratar de tomar posição numa «querelle»Ocidente-Oriente, sobre a qual os acontecimentosde 1453 haviam vindo pôr uma pedra. No campocristão não existem agora duas autoridades naspessoas dos imperadores romanos do Oriente edo Ocidente, formalmente associados na luta contraos infiéis, no fundo porém, rivais preocupados emafirmar a própria superioridade, material e espi-ritual, sobre o adversário. No novo equilíbriomediterrânico que a entrada dos Turcos emConstantinopla determinara, as posições, se assimse quiser, são mais claras, e a querela Ocidente-Orientede novo se reduz à oposição entre mundo cristão

nistas partilham de um ideal humano de tiporenascentista, o ambiente pode manter aspectotradicional. Isto, de resto, sucede intencionalmente;de modo que o próprio emprego de modelosestilísticos antiquados é efectuado com uma cons-ciência nova que leva ora a frisar ironicamente odado convencional, ora a recuperá-lo com delibe-rada função polémica: tal como em certos quadrosde Quatrocentos e de Quinhentos, em que aspersonagens de primeiro plano são delineadassegundo os cânones estéticos da época, enquantoa paisagem em torno mantém a sua curiosa fixidezarcaica. Outras vezes, a inovação dá-se na periferia,no particular, enquanto o tema central reflecte ocliché fixado pela tradição: tal como (e eis comouma vez mais se mostra atraente o confronto como que se dá nas artes figurativas) em certos retá-bulos, onde a Virgem, o Cristo e os Santos centraisrepetem antigos modelos estilísticos, e o dadonovo, as observações recentes se refugiam às orlas,na paisagem, nas cenas menores do soco.O tema da Corte de Constantinopla chega aosromances de cavalaria catalães, espanhóis e portu-gueses do Renascimento pelas costumadas vias dacultura ocidental, de modo que os protagonistas,os Amadises, os Palmeirins, podem retomar afisionomia de heróis (franceses quase sempre) quese assinalaram na gesta do ultramar: por exemplo,de Henrique, filho de Oliva, cujas aventuras, jádifundidas em Castela, nos começos do séc. XV,tinham justamente como episódio central a defesade Constantinopla dos ataques turcos e a ascensãoao trono do Oriente, depois dos esponsais com aformosa filha do Imperador. Por seu lado, dentrodo mosaico ideal em que se encastoam, as per-sonagens orientais podem assumir um vulto nobreou vicioso, em ambos os casos, porém, carregadosempre da história que a lenda «bizantina» empres-tara no decurso de séculos aos súbditos de Bizâncio.Confluem, no mito do Imperador de Constan-tinopla, motivos elaborados na senda de outraslendas: da do Prestes João, por exemplo, o «Johannes

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e mundo islâmico. Trata-se de uma relação emque a Espanha dos Reis Católicos desempenha,agora, um papel de primeiro plano, de modo queos monarcas espanhóis podem apresentar aomundo o desfecho da reconquista como a últimae a mais frutuosa das Cruzadas, e podem exibirGranada, recuperada em 1492, como compensaçãopara a cristandade após a perda de Constantinopla,entretanto ratificada por quarenta anos de silêncio.É neste clima que nascem os novos livros decavalaria ibéricos e nascem justamente destesimpulsos ideológicos e para satisfazer este novoespírito de missão, de que os Espanhóis se sentemagora investidos: de forma que a sua luta privadae secular contra os Mouros da casa se transferepara o Mediterrâneo, ao serviço da cristandadeinteira. Assim se revela lógico que, nos novosromances, ao cavaleiro arturiano, pronto em todoo momento à aventura como à ocasião capaz deaumentar o mérito individual do herói, venhasobrepor-se o cavaleiro católico, contaminação dosideais arturiano e carolíngio, disposto esse tambémà aventura que possa ainda apresentar-se-lhe comlaivos de maravilhoso, pondo-lhe pelo caminhomonstros, anões e princesas encantadas, porémmais compenetrado da sua moral de cristão, mono-gâmico até à descortesia (Amadis-Briolanja), esobretudo mais cônscio do facto de que o seuinimigo natural não é, em geral, o cobarde e odesonesto, o opressor de viúvas e de donzelas, maso Turco ou, lato senso, o Mouro, o Infiel.Daí que o velho motivo da Corte de Constanti-nopla adquira também nova qualidade. Exauridoo tom polémico, para os autores de romances decavalaria ibéricos, Constantinopla passa a ser apenasum mito: um mito com o qual infelizmente éinútil medir-se e do qual, esfumados em indeter-minação as premissas reais, qualquer narrador podereconstruir livremente a fisionomia, ancorando-seem meia dúzia de elementos da autêntica história,entretanto porém, petrificados pela literatura comoatributos supra-temporais.

Os autores ibéricos que herdam este topos dosromances e das canções de gesta precedentes jálhe não sentem o espírito polémico, a «razão» queestivera na base da sua aceitação. Adaptando-o àssuas narrativas, e inserindo-se nelas com umafidelidade formal, destinada a permitir a fruiçãode todo o pormenor ou de todo o cambiantehistórico, sentem-se na obrigação de lhe encontraruma nova «razão»: encontrá-la-ão no maravilhosooriental, no desejo de novamente se apossarempelo conhecimento daquele mundo que os recentesêxitos turcos haviam tomado ainda mais longínquoe problemático. Dentro desta nova dimensãonarrativa, Constantinopla torna-se o ponto departida para a aventura oriental, para o conheci-mento in loco dessa civilização «moura» que séculosde convivência em terras de Espanha haviam jásingularmente aproximado, na sua modalidade deexportação, da civilização ibérica. Sentimentos opos-tos guiam os autores dos novos romances decavalaria no que toca à descrição de terras e decostumes dos Infiéis, acontecendo que o espíritode Cruzada, que vê no Turco o inimigo, se associaa uma compreensão feita de experiência que podechegar a tomar cores de «maurofilia». É o queacontece, veremos, no nosso Palmerín de Olivia.Com o fim de uma classificação de textos, omotivo da Corte de Constantinopla pode assumirno caso dos romances de cavalaria ibéricos carácterdecisório. Conforme intervenha ou não na tramae de acordo com o relevo que lhe é dado, assima narrativa caberá mais num ou noutro ramo dafamília, com todas as consequências estilísticas quea escolha implica.Cavaleiros andantes no sentido mais rigoroso dotermo, os protagonistas dos livros de cavalariadeslocam-se com extrema facilidade de Londres aBizâncio, de Paris às costas berberes do Mediter-râneo. Mas a agulha do seu destino individual estásempre voltada para Ocidente, ou para Oriente,para os tronos de Artur e de Constantino, querepresentam os dois pólos magnéticos de duas

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tradições históricas e literárias diversas e opostas.Quando o herói gravita em direcção do trono deBizâncio, o romance assume aquelas cores ocidentaisque caracterizarão todo um ramo desta narrativa:e é aqui que se situa o nosso Palmerín de Olivia,cujos episódios se desenrolam ao longo do fio deuma progressiva tomada de consciência, por partedo herói, da sua própria identidade e da conse-quente auto-identificação com o Imperador deConstantinopla. No romance, este simboliza nãosó o mais alto poder temporal e espiritual, mastambém a ligação com o mundo árabe e turcopor um lado, com o mundo eslavo por outro,senhor de um lugar em que os antagonistas,irredutíveis por exemplo no Mediterrâneo oci-dental, podem chegar a transformar-se em convi-vência, se não em mútua compreensão. Quando,pelo contrário, o herói pende para o Ocidente,acentua-se menos a abertura a outras concepçõesde vida, os princípios cavaleirescos são mais rígidos,de estrita ortodoxia francesa. [...]

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T E X T O S

L I T E R Á R I O S

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[...]Digo isto, preclaro Senhor, porque entre alguns alemães,e estrangeiros, que com a Rainha nossa Senhora a estesreinos de Portugal vieram, foi Carlim Delamor (homemfidalgo, e bem douto em todas as cousas que a tal pessoaconvinham.) E como as suas me contentavam, trabalheipor alcançar dele sua conversação e amizade. Econhecendo ele isto de mim, deu-me tanta parte dela,que satisfez a meu desejo. E enquanto nestes reinosesteve, entre muitas cousas de passatempo que nestetínhamos, era contar ele as grandezas dos Imperadoresde Alemanha e Constantinopla, com tanta ordem, econcerto, que parecia ter o próprio original delas namemória. E as que ali lustravam em mais admiraçãoe grandeza, eram do Imperador Glarimundo, que,segundo são maravilhosas, fazem presumir, serem maisfavor de escritores, que verdadeira relação da verdade.Porém, pois das antigas cousas não temos outra certeza,é necessário darmos-lhes tanta fé, quanta nos elastestificam. Quanto mais que a experiência das nossaspresentes autorizam todas as suas passadas. E quemnesta verdade duvidar, ponha os olhos na grandeza dasobras del-Rei vosso padre, e desfará a roda do poucocrédito que a todas as outras der.E já no tempo deste não menos Cristianíssimo queesforçado Príncipe, mostrava uma figura do que os de

Crónicado ImperadorClarimundo*

JOÃO DE BARROS

sua linguagem no seu fariam: porque a ele escolheuDeus para origem dos reis de Portugal, donde VossaAlteza havia de descender (como adiante neste Pri-meiro capítulo se dirá.)E porque sòmente os Húngaros e Gregos de suasmemoráveis façanhas tinham lembrança, (pelas em sualinguagem terem escritas,) quis trespassar esta primeiraparte de sua Crónica em a nossa Portuguesa, porquea nós suas cousas também públicas fossem, pois nostocam pela parte que dele recebemos: que foram tãocristianíssimos e poderosos reis, como os Portuguesestêm alcançado, (sendo primeiro da Suma Potênciaconcedido.)

PRÓLOGO

feito depois desta obra impressa. Ao muialto, e poderoso Rei D. João III, deste nome,por João de Barros, seu criado

E ele me fez dispor os dias passados para servir VossaAlteza na trasladação desta Crónica. E sabendo isto demim, usastes tão liberalmente comigo, dando-me a issofavor, que em espaço de oito meses acabei de a trasladar.Da qual a Vossa Real Casa leva a maior glória: porqueela foi o claro estudo em que toda minha vida empreguei.E por cima das arcas da vossa guarda-roupa, pùblica-mente, como muitos sabem, sem outro repouso, semmais recolhimento, onde o juízo quieto pudesse escolheras cousas que a fantasia lhe representava; fiz o que meuamor, e vosso favor ordenaram. E como colhi este fruto,mais temporão do que devera, mandei-o imprimir. Noqual tempo por vontade da Suma Potência, recebesteso real ceptro digno de Vós, e Vós muito mais dele. Eeste cuidado de governar, reger, e prover todas asparticularidades de vossos Povos, e Reinos, me fizeramestimar em muito o que tinha começado. Porque quandolho dirigi no seguinte Prólogo, as menos ocupações queentão tinha, lhe faziam tomar alguma para emendarmeus erros. Mas agora na segunda mão, que é a maistrabalhosa, conhecendo a fraqueza de meu estilo, e a

* Crónica do Imperador Clarimundo. Prefácio e notas porMarques Braga. 3 vols. Lisboa: Sá da Costa, 1953.

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grandeza de Vosso Real Estado, fizeram-me duvidar oque faria: se perder o gasto que tinha feito na impressão,entregando o meu trabalho ao fogo, ou sair à luz comele.[...]

Concordância que o trasladador faz entredois cronistas, sobre a vinda de D. Henriquea estes reinos de Espanha, e sobre a suagenealogia.

Ainda que isto seja fora da ordem e princípio destacrónica; por ser mui necessário à trasladação dela, mepareceu cousa justa e devida, tocar aquilo de que temnecessidade, porque aqueles que as crónicas dos reis dePortugal e Castela lerem, não tenham alguma dúvida,em que fossam embicar.Digo isto, forque segundo Duarte Galvão no Princípioda Crónica que del-Rei D. Afonso Henriques compôs(Primeiro deste nome em Portugal) contandoda vinda de D. Henrique, seu pai, no tempo del-ReiD. Afonso de Castela, que Imperador de Espanha sechamava, diz ser este D. Henrique segundo génitodel-Rei de Hungria, e de uma irmã do conde D.Reimão de Tolosa, que com o conde D. Reimão de SãoGil todos juntos a estes reinos de Espanha vieram. EMossem Diogo de Valera na sua Valereana tem ocontrário, dizendo como D. Henrique era natural deConstantinopla, e que servindo na guerra a el-Rei D.Afonso de Castela, fazendo obras dignas de tal galar-dão, lhe dera sua filha Tareja por legítima mulher, e,em dote, as terras que então em Portugal aos Mouroseram tomadas, como se mais largamente na crónicadel-Rei D. Afonso mostra.Pois parece nesta contrariedade da pátria, e natureza deD. Henrique, que estes dois cronistas discordam, e quemnão souber a razão que ambos tinham para fazer estadiferença, não sei como isto julgarão. Porém, pois nosDeus trouxe em nossos tempos História por ondefôssemos certos da genealogia deste bem-aventurado D.Henrique, primeiro fundamento da Casa de Portugal,poderemos dar razão a quem dela tiver necessidade. E

porque no terceiro livro desta parte se manifesta muiclaro, e por extenso, as cousas do pai de D. Henrique,e as suas, e a razão por que veio a estes reinos deEspanha, se deixa aqui de to-car. Sòmente digo, segundoo que nestas partes vi, que D. Henrique era neto deClarimundo (as grandezas e obras do qual, neste volume,com tanto louvor e glória sua se manifestam,) que foirei de Hungria, por falecimento de Adriano seu pai: epor parte de Clarinda, sua mulher, herdou o Impériode Constantinopla, ao qual sucedeu nestes dois senhoriosD. Sancho, seu filho, pai de D. Henrique. Assim quenão sem causa diz una cronista que veio de Constan-tinopla; e outro, que era natural de Hungria, pois seupai neste tempo estes dois tão grandes senhorios governava,e possuia.

PARTE I

CAPÍTULO III

Como o príncipe Clarimundo foi dado acriar à condessa Urbina, mulher do condeDrongel, e do que lhe nesta criação acon-teceu.

Neste tempo que o príncipe nasceu, criava acondessa Urbina, mulher do conde Drongel, umfilho que seria de dois meses, e porque era oprimogénito, não no quis dar a criar a ninguém,se não aos seus peitos. E el-Rei vendo a suadisposição para em tal caso a encarregar, e lem-brando-lhe os serviços tão assinalados que doconde na frontaria dos Turcos tinha recebido,onde por sua indústria e esforço tomara muitasvilas, lugares e algumas cidades fizera tributárias,de que não pequena renda cada ano, mas muigrande e honrosa alcançava, quis-lhe pagar estesserviços, e assim os do dia passado, dando-lhe opríncipe para que sua mulher o criasse, e ele fosseseu aio, depois que idade para isso tivesse, crendo

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com quanto cuidado e amor destas duas tãonobres pessoas havia de ser criado.Com a qual mercê o conde ficou mui satisfeito,por ela em si ser de tanto preço, que vencia omerecimento de seus serviços, e pudera ser galardãode quantos lhe neste mundo tinha feito.Mas a sua ventura ordenou o contrário do queele esperava, e foi bem desviada de seu pensamentoa criação deste príncipe porque entre algumasturcas, que a condessa em sua casa trazia, eram trêsfilhas de Biscarnão, fronteiro-mor do gram turco,as quais Drongel cativou, e estavam em sua casatidas naquele estado e reputação, que a filhas detão grande senhor convinha.E a mais velha, que Fainama se chamava, vinhaprenhe de seu marido, com quem pouco haviaque casara, e em casa da condessa pariu ummenino, que não durou mais de três meses, e oamor que lho tinha, porque em alguma maneirase parecia com Filinem, o filho da condessa,converteu nele. Donde se causou que o serviucom tanto cuidado e diligência, que quando arainha entregou o príncipe à condessa, não quisela que outrem criasse seu filho, senão Fainama,por este amor que nela via, e por ter muimaravilhoso leite, além de seu aviso e fidalguia. Ea este tempo seria já o menino Filinem de doismeses, e ainda que os levava em idade ao príncipenão no parecia, porque assim como o Deusengrandeceu nas outras perfeições, assim ao tempode seu nascimento lhe deu um corpo, que pareciacriatura de mais dias.E tornando a Fainama, que já estava tida por ama,e tão contente, que em alguma maneira esqueciaa morte de seu filho e desterro de sua pátria,aconteceu uma noite que descuidando do meninoFilinem encostou-se na cama sobre ele, e com opeso do corpo, quando acordou, vendo que otinha afogado, com muitas lágrimas começou amaldizer sua ventura. E com esta paixão cuidavao remédio para se salvar de tamanho perigo,como lhe estava aparelhado, se a condessa vissemorto aquele filho que tanto amava.

E revolvendo muitas cousas na fantasia, achou queeste era o melhor remédio, que por em tantopodia ter, até buscar outro mais seguro. E com estadeterminação foi-se mui passo onde Urbina tinhao príncipe, e despiu-lhe os vestidos com queestava pensado, e pensou com eles a Filinem omais apressadamente que pôde, e assim pô-lo àilharga da cama, porque cuidasse a condessa oque depois verdadeiramente creu.E acabada esta troca, tomou o príncipe nos braçose foi-o pensar na sua câmara, e então lançou-sea dormir, como aquela que não fizera cousa poronde perdesse o seu sono. Porém ela, contudo,tinha tão pouco descanso, quanto os culpadoscom seus erros têm.

CAPÍTULO IX

Como se apresentaram diante do imperadorseis cavaleiros anciãos; e por causa da novaque deram se partiu Clarimundo em socorroda Ilha Deleitosa, com a flor de todos oscavaleiros da corte, e da fala, que antes desua partida com Clarinda passou.

Com esta vinda de D. Dinarte renovou o impe-rador as festas, nas quais continuadamente faziamui grandes mercês, por atrair não sòmente aosseus naturais em amor, mas ainda aos estrangeirosem seu serviço. E porque algumas cousas doimpério estavam mal ordenadas, por haver tempoque se nelas não provera, fez tudo de maneira quefoi proveito do povo e honra de seu Estado,principalmente nas da guerra, porque havia algunsvassalos, que com desejo de novidades, trabalha-vam pelo anojar, favorecendo el-Rei de Bitinia oel-Rei Escremol, que eram grandes senhores emTurquia, com quem ele de contínuo tinha guerra.Em ajuda dos quais eram muitos gigantes, quesenhoreavam a maior parte das cidades; e por estacausa proveu o imperador nisso antes que a

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necessidade o obrigasse (porque quando ela nestes,e em outros casos chega, sempre o remédio étrablhoso, e mal ordenado). [...]E além destes, foram outros estrangeiros por causadas mercês e honra, que do imperador tinhamrecebido, e assi, pela conversação de Clarimundo.E porque a este tempo andava ele já maisfavorecido de Clarinda, atreveu-se Filena a lhepedir que o ouvisse de noite por uma fresta desua câmara, que sobre o laranjal da imperatrizdava. E passando sobre isto com ela muitas razõesescusando-se de o fazer, contudo tiveram as palavrasde Filena tanta força, que a fez conceder nisso. Econcertada a hora em que havia de ser, a noiteantes de sua partida levou Clarimundo a Carfel,que o ajudou a subir por um quebrado da parededo laranjal, e depois que foi dentro subiu-se emum loureiro que diante da janela estava tão pertoque colhiam de cima os ramos. E como a estetempo a Lua se esforçava em sua claridade, e oVerão com suas flores, estava tudo tão graciosonaquele fresco jardim, que lhe parecia a Clarimundonele consistir toda a bem-aventurança; porque deuma parte a harmonia dos rouxinóis e da outrao tom das águas, que por meio do jardim corriam,com o meneio das árvores se concertava uma tãosuave música, que todas as outras à vista delaperderiam seu gosto; e o que anais espertava aClarimundo era a certa esperança de falar com osegredo de sua alma.E estando nesta contemplação metido entre asramas do loureiro, que assombravam toda a janela,viu estar a câmara com uma claridade cega, comoque tinham a vela escondida, e tendo nisto o sen-tido, ouviu a Clarinda, que chegava à janela rezan-do por umas contas, e algumas vezes deixava cairuma, e outras erguia a voz, porque soubesseClarimundo que estava ali, e como ele a conheceu,saltou-lhe tamanho tremor nas pernas e em todoo corpo, não ousando de lhe falar, que fez tremero loureiro.

Clarinda, porque lhe pareceu o que era, e quenão ousava falar com receio de não ser ela, dissecom um alto: – Alderiva, toma lá essas contas.– Senhora, respondeu ele, se as deixais para astomar de meu mal, e vossas obras, assaz de bem--aventurado me fará com tal galardão; mas nãocreio que bem de tanto bem sentirá esta alma,imortal nas penas, que a têm abrasado, e na féde sua tenção; e vosso merecimento, e minhadesaventura contrária às cousas, que me podemdescansar, me fazem incerto desta glória. E poistantas cousas tenho por inimigas, e vossa con-dição, que o confirma, que remédio pode esperareste triste em sentir, e contente em padecer? Masque me aproveita este contentamento, pois monegais não consentindo que seja vosso, porquesabeis que com tal lembrança algum tantosustentaria meus males? Ó males tão malmerecidos, que vos farei, ou que faremos, poisquem vos causa, mostra que vos não sente?– Não creais, Clarimundo, respondeu ela, que tenhotão fraco juízo, que não saiba julgar quanto nestetempo se perde de minha fama, e vós cobrais deglória, pois não soube resistir a vossas importu-nações, que causaram pôr-me naqueste lugar, nãopara mais, que para vos dar o desengano de vossoengano (ainda que jagora eu estou mais enganadanisto que faço) porém a tenção me salva; e porquejá nesta detença de palavras acrescento em meudano, peço-vos que não queirais mais o que fingisquerer, pois tanto me mata, e a vós não aproveita.– Ó desaventurado, disse Clarimundo, de quem taiscousas ouve e sente, pois no fim delas o não vê desua vida! Que direi, ou que invenção de palavrasdirá a novidade de meu mal inventado com novaspenas para minha destruição? Não sei, senhora,porque com tal galardão despedis minha fé, contentede me matardes. Peço-vos que olheis, que nãoposso com tantos males, nem tenho parte onde ospôr, senão na vontade que nunca se contenta comquantos lhe fazeis, antes é cobiçosa de mais.Pois quem negar que a este tempo Clarimundo

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não estava banhado em lágrimas, bem lhe podemoschamar herege de amor, e como elas atraem oscorações por duros e livres que sejam, tiveramestas tanto poder, que começou Clarinda a abran-dar-se, dizendo:– Senhor Clarimundo, bem creio que vossas cou-sas são tão verdadeiras como dizeis, porque de talpessoa não se pode menos esperar. Mas que farei,que descansando-vos a vós, me condeno a mim?Pois se isto assim é, para que vos quereis vingarde quem vo-lo não merece? Não será melhornegardes à vontade o desejo, e ficareis descansado,e eu livre de bocas maldizentes? Porque nãoconsiderais o lugar onde estou, e a pessoa doimperador e a sua honra, posta na ventura deminha fraqueza, pois assim me venço, por quemse irá rindo como se daqui partir, manifestandoa todos meu atrevimento? Peço-vos pelo amorque dizeis que me tendes, considereis nisto e vereisquanta mais razão tenho de negar o que pedis,que vós de vos queixar de mim.– Senhora, respondeu ele, se eu cuidasse que emalgum tempo havia de negar esta fé que vostenho, fundada sobre a honra de vosso estado, sevós disso fordes contente (mas não sou eu tãobem-aventurado, que veja essa glória) eu tomariade mim a vingança igual a tamanho erro; masporque tenho sabido o contrário, fico disso satis-feito. Portanto, peço-vos que concedais em me daressa mão por minha senhora, e eu por vosso (oanais não direi, porque nesta palavra desfalece omeu merecimento se não for suprido comgalardoardes meus males.)– Ai, desaventurada de mim! respondeu ela. Quefarei em tal extremo? pois de uma parte o desejome obriga por quem vós sois, e da outra o errode tal caso desfaz meu pensamento. Peço-vos quesejais contente com desejar de vos ter por marido,e o mais fique para quando Deus quiser, porquesem ele e sem vontade do imperador e daimperatriz minha senhora, eu perderei antes avida, que cobrar-vos a vós.

A estas palavras chegou Clarimundo tremendo, etomou-lhe uma manga da camisa, que estava foradas grades, e beijou-a mil vezes, porque mais nãoousava, dizendo tantas piedades, que Clarinda estavatão vencida, quanto ele de contente.Mas a bondade desta senhora impedia e refreavatodas as cousas, que à sua honra eram contrárias,e isto que fez era com fundamento virtuoso, lem-brando-lhe a valia, sangue e senhorio que Clari-mundo tinha; e por esta causa lhe quis dar talcontentamento. E havendo já grã pedaço queambos estavam nesta bem-aventurança, despe-diram-se com diversos contentamentos, porqueClarinda, tanto que se recolheu, começou a dizerconsigo mesma:– Ó triste de mim! Que tenho feito! Com quesalvarei minha fama, pois a vendi por tão pequenopreço? Que sei eu agora se Clarimundo é tãoenganoso, que soube todo este tempo dissimularo que lhe eu fui crer, porque não pus diante demim ser ele um cavaleiro andante desejoso deenganar tão fracas e simples como eu sou! Quepena posso tomar por tamanho erro? Mas quedigo! Tão mau e desleal há-de ser um homem tãovirtuoso e esforçado, e em suas cousas verdadeiro!Pois se ele isto obra com os bravos e esquivosgigantes, porque será para mim mais cruel, sendoeu para suas cousas mui mansa? Certo, eu soudigna de grande pena, pois tanto real e enganosuspeito de quem o nunca tratou. Não será melhorpôr diante sua valia e estado conveniente para omeu estar posto em maior prosperidade? Porventura venci-me de algum homem de baixa sorte,como algumas princesas fizeram? Em verdade, não;antes daquele, que eu não mereço ter por marido,pois a menor cousa que nele há, vence meumerecimento. Esforça, esforça, coração, não des-faleças em cousas de tamanho contentamento, poistens debaixo de teu senhorio aquele esforçadoClarimundo, exemplo de toda a bondade.Desta maneira esteve Clarinda toda aquela noitedando mil voltas, fantasiando ora uma cousa, ora

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outra, até que na alvorada da manhã começou aadormecer, e não seria de todo trespassada, quandoFilena bateu à porta, que se vinha despedir dela;e entrando na câmara viu-a estar entre os lençóiscom os olhos tão agravados, que logo parecianeles terem aquela noite menos repouso, que asoutras. E quando viu a Filena com os seus cheiosde lágrimas, disse: – Ai amiga Filena, que cousa éessa?– Senhora, respondeu ela, são partidas que meapartam de vos ver, e antes que o faça, venho-vosbeijar as mãos e saber o que mandais de mim, quea mágoa deste sentimento não me deixa outracousa dizer.Clarinda ficou tão triste com esta vista de Filena,que lhe caíram logo as lágrimas a pares, e compalavras mui amorosas despedindo-se dela chamousua colaça Alderiva, e mandou-lhe que desse aFilena um vestido, que ela no dia das justas tirara,dizendo que por seu amor, pois nunca dela nadaquisera aceitar, tomasse aquela peça como de umadonzela tão pobre como ela era.

Filena lhe tornou a beijar as mãos por aquelamercê. E despedida, dela e da imperatriz e Lindarifa,foi-se à pousada de Clarimundo, que estava comtodos aqueles cavaleiros, para entrarem em seucaminho; e ordenadas as cousas que lhe cumpriam,cavalgou com aquele pequeno exército, tão grandeem preço, e assim a cavalo passaram por baixo dasjanelas onde o imperador estava, todos armadosde mui frescas armas, e corações dispostos para asempregar em qualquer perigo. [...]

PARTE II

CAPÍTULO VII

Como a noite, que se o conde partiu,sonhava a rainha Briaina um sonho, e dosgrandes prantos que se fizeram, depois quese soube a morte do príncipe Clarimundo.

Conta a história que a noite que se o conde e acondessa por tamanho desastre de sua casa partiram,jazendo a rainha Briaina em seu leito, no maiorrepouso de seu descansado sono, sonhava que vinhaa ela uma loba com um filho atravessado na boca,e com muitos afagos, assim como se a conhecera,soltava-lho, no regaço, e des hi tomava o príncipe,que ela nos braços tinha, a partia com ele na boca,sem ter ninguém que lho pudesse tomar.E estando mui triste e descontente com esta perda,vinha um homem de dois corpos mui grande etemeroso, e lançava-lho nos braços, banhado emsangue das muitas chagas, com que vinha tãodemudado que o não podia conhecer, até queuma daquelas chagas lhe dizia que conhecesse seufilho, que aquele era o seu amado Clarimundo, eque desse graças a Deus, que lho mandava paraseu descanso, e também que o guardasse melhor,do que o fizera em sua meninice, porque aindauma onça lho havia de roubar, da qual ele maiordano receberia. Por isso, que tivesse mui bomaviso em o desviar dos lugares onde ela andasse,e que se o assim não fizesse, sua vida seria duvidosa.Quando a rainha pela manhã acordou, espantadacom a novidade deste sonho, mandou logo sabernovas de Clarimundo, e dando-lhe recado decomo estava morto, ficou tão trespassada, desfa-lecendo-lhe todos os espíritos, que não se pôdemais mover do estrado em que estava, tanto lhecortou esta dor a alma.E correndo logo esta desaventurada nova muiprestes por todo o paço, foi-se a el-Rei. O qualcom muita pressa, quando chegou a rainha,vendo-a por todas as partes fria, e que comnenhumas águas nem remédios a espertavam,começou de a chamar por muitas vezes, falando-lhepalavras amorosas com aquela vontade e paixãode pessoa que lhe tanto queria.Quando ela ouviu a sua voz, conhecendo ser ele,ainda que assim estava abriu algum tanto os olhos,suspirando mui gravemente como se a alma se lhearrancasse.

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– Certo, senhora, disse el-Rei, não me pareceuque tão pouco sofrimento houvesse em vós, poisfazeis cousas fora do limite de toda a razão, nãopondo diante de vós que, graças a Nosso Senhor,ainda temos idade para nos ele dar outro, e outrosde que se nesta vida sirva, pois lhe aprouve levareste para a outra, que é mais segura. E pois dissoé servido, para que mostrais pesar com as obras,que sua vontade ordena, sofrei, senhora, esta dorcom paciência, porque em outra maneira anojar-me-eis em grande extremo, e cuidarei que me nãotendes verdadeiro amor, se o contrário fizerdes.Nem creais, que sentira pouco a perda, queperdemos, pois tanta parte nela tinha como vós.Mas lembrando-me estas cousas, me esquece ograve sentimento, que por tal desastre pudera ter.Com estas e outras palavras abrandou algum tantoa rainha, e passada a maior parte do ímpeto destepranto, que todos faziam, mandou el-Rei chamaressas mulheres, que a condessa em sua casa tinha,e perguntou-lhes se sentiram aquilo como fora, eque se fizera do conde e de sua mulher.– Senhor, disseram elas, estando nosoutras dor-mindo, à meia noite ouvimos a condessa muigravemente chorar, chamando-se mal-aventurada,pois viera a tal estado, que visse morto diante desi o lume de seus olhos, e esperança de seu bem.E querendo uma de nós saber o que era, nãoousámos, por ouvir dizer ao conde:– Senhora, calai-vos, não sejamos sentidos, queserá maior dano vosso. E depois destas palavras,nunca os mais sentimos.– Certamente, disse então el-Rei ao marquês Or-lete, e a outros senhores, que em seu sentimentoo acompanhavam, muito mais sinto isto por nãosaber como foi, do que o sentira, sendo da verdadecertificado, porque eu creio ser mais por meuspecados, que por pouco cuidado e aviso dacondessa, segundo a diligência e resguardo comque críava o príncipe, e sòmente esta mágoa é aque me dá maior dor. Que perder um filho,quando se Deus disso serve, por grande mercê o

devem os homens estimar, mas não saber comoisto se sente com maior paixão.E depois que com estas e com outras cousasesteve gastando parte daquele triste dia, retraídoem uma câmara, foi-se o marquês para sua casa,e mandou trazer a Fainama e suas irmãs: a qualvinha tão dissimulada, como se nada tivera feito,a quem o marquês fez muita honra, tanto porcriar seu sobrinho, como por ser filha de quemera.E estando ela assim com o príncipe nos braços,mais pensativa no que havia de fazer, que tristepelo que tinha feito, como todas as cousas andavamem revolta, chamou a Marquinar, um primo seu,que estava em casa do marquês, e disse-lhe:– Primo, vás bem vedes como este pranto traztudo baralhado: e dizer-vos, que procureis porliberdade, parece-me escusado, pois tendes sabidoque é cousa que as pessoas neste mundo maisestimam. E porque não sei quando outro taltempo teremos, peço-vos que esta noite trabalheispor haver à mão alguma fusta, e nos passemos aoprimeiro lugar de meu pai. E se vos parecer quenão tereis para isso remédio, vedes aqui estas jóias,que foram as primeiras peças que me dou meuesposo, que tudo bem valerá mil pesos de ouro,e dai-as a algum marinheiro, que nos ponha emporto seguro, e seja logo esta noite; porque semprenestas cousas a dilação é danosa e a diligência trazproveito.– Muito folgo, respondeu Maquinar, de vos vertão conforme ao que eu andava fantasiando, eporque, vendo-me falar convosco, daremos algumasuspeita, não é mais necessário, senão estardes demaneira prestes, que quando eu vier e tempo for,partamos sem outro impedimento.Com este concerto se partiu Maquinar dela,levando as jóias. E tanto que foi noite, tornou muicontente, dizendo que partissem logo, porque játinha tudo aparelhado.E como todos andavam anais cheios de paixão,que de suspeita contra elas, tiveram maneira para

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saírem da cidade mui seguramente, levandosempre Fainama o príncipe nos braços, porquelhe tinha tanto amor, que esperava de o criar,assim como o fizera a seu filho, se vivo fora.E tanto andaram desde o princípio da noite, quechegaram à Floresta Combatida, e chamava-se assim,porque na fralda dela bate o mar, e tambémquando el-Rei não estava naquela parte, faziam osTurcos dali algumas presas. Por esta causa lhepuseram tal nome.E chegando todos a uma fonte, que no meio delaestava, disse Maquinar:– Senhora, porque não sei se são já vindos doismarinheiros, a quem dei as vossas jóias, que nestaparte me haviam de esperar, não vos partais daqui,até que eu venha. E despedido delas, mais ao quetinha determinado, que a fazer o que dizia, acon-teceu que, estando todas três assentadas esperandopelo leal de seu primo, passava pelo caminho umadona acompanhada de uma sobrinha sua e trêsescudeiros, os quais ouvindo o tom da água, quede uma penha mui alta na fonte caía, com anecessidade de sede, atiraram a ela, que à bordado caminho estava.Fainarna e suas irmãs, tanto que ouviram o estru-pido dos cavalos, crendo que era alguém que emsua busca vinha, meteram-se pela maior espessurado bosque e com esta turvação esqueceu-lhe opríncipe à borda da fonte.Um daqueles escudeiros, que a dona consigo trazia,descendo-se a dar de beber a sua senhora, topouno menino, em maneira que o fez chorar, e quandoo sentiu debaixo dos pés, disse: – Santa Maria, quecousa é esta! Porém, com todo o espanto, tomandoo menino nos braços, viu ao luar, que mui claroera, uma criatura tão formosa, que ficou maisespantado.Grionesa, que assim havia nome sua senhora,ouvindo as coisas que dizia, perguntou o que era.– Senhora, respondeu ele, vós julgai se isto é cousadivina ou humana, que eu mal saberei determinara verdade.

Quando Grionesa o viu em seus braços, contem-plando a sua formosura, quanto ao luar se podiaver, disse: – Ó piedoso Senhor! que nunca desam-paraste a quem alguma hora a ti se encomendou.E pois me deste por tal acontecimento o quecatorze anos há que tenho desejado, e com tantaslágrimas pedido, e agora, que mais desviada dissoestava, tendo meu marido morto, houve este filhoda tua mão enviado para consolação de minhaalma, e ser herdeiro dessa pobreza, que a fortuname deixou. Bem-aventurada te deves, terra, chamar,pois em ti tanto bem recebeste: e vós, meus olhos,já vos não podeis agravar; pois tendes diante oque vos tão caro custou.Estas e outras cousas dizia Grionesa com tantoprazer, entremetido com lágrimas de alegria, que osseus estavam espantados de ver nela tal novidade,porque segundo os nojos, em que sempre vivia, nãocuidavam que pudera vir cousa que tão leda a fizera.Milina, sua sobrinha, se chegou então a ela, etornou-lhe o menino dos braços, dizendo: –Senhora, pois Deus para isto ordenou que emvossa companhia viesse, daqui me ofereço porama desta sua criatura. E então começou a dar demamar ao menino, e como do caminho estavasequioso e cansado, tanto que sentiu os peitos deMilina, tomou-os de mui boa vontade, e com estamansidão e facilidade acrescentou mais amor aoque lhe de súbito tiveram. Portanto, muito apro-veita uma meiguice e mansidão, pois por ela sealcança aquilo que a soberba e aspereza perde.

CAPÍTULO X

Da criação do príncipe Clarimundo, quedepois se chamou Belifonte, e como se partiucom Grionesa em uma nau para se ir armarcavaleiro ao reino de Sicília, e do que lheneste caminho sucedeu.

Belifonte (que assim havia já nome Clarimundo,

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por causa da fonte, onde o Grionesa achara, e dabeldade de sua formosura) estava naquela IlhaAvondosa, que com o reino de Sicília confina, ecrescia assim em virtude e cortesia, como emesforço e disposição.E depois de Grionesa mandar traze de Grécia umgrande filósofo para o ensinar em todas as artes,que a tal pessoa convinham, e ele ser já nisso muiperfeito, gastava o tempo em ler as cousas doscavaleiros passados, e folgava de ouvir as que ospresentes faziam, louvando muito este exercício. Eenfadando-se às vezes nisto, ia a montear, por seracto de guerra, onde matava muitos porcos, veados,e outras alimárias feras, em que levava tanto gosto,que o mais do tempo de sua mocidade, enquantonão recebeu ordem de cavalaria, neste desen-fadamento gastou.E muitas vezes Grionesa, vendo que se aventuravaem cousas tão perigosas, lhe defendia as montariascom receio de lhe acontecer algum desastre. Porémele com uma fala amorosa chegava-se a ela, dizendo:– Senhora, não sei porque não consentis que usedaquilo, em que maior gosto levo, pois não tenhoem que vos possa servir. E estas palavras sòmentetinham tanta força, que logo abrandavam a Grio-nesa, e tomando-o em seus abraços, com lágrimasde prazer, dizia: – Filho da minha alma, não háaí cousa, em que vós sintais algum contentamento,que vo-lo eu negue, se em meu poder for. Porémvendo-vos tão ousado em cometer cousas perigosas,me fazem medrosa. Portanto, vos queria desviardisso, e não por outro algum respeito.[...]

PARTE III

CAPÍTULO IV

Como partidos os moradores de Sintra,quisera Clarimundo ir ao castelo de Torres

Vedras, mas foi desviado por Fanimor. Edas grandes profecias que profetizou acercadas cousas de Portugal.

Clarimundo, depois que agradeceu a vontade queos moradores de Sintra mostravam de seu serviço,despediu-os com muito agasalhado, fazendo-lhesoutros tantos oferecimentos enquanto ali estivesse.E partidos eles, falou com Fanimor, dizendo queele desejava muito, pelo amor que tinha àquelaterra, ir ao castelo de Torres Vedras ver-se com oirmão de Morbanfo, por lhe dizerem aquelesmoradores de Sintra ser homem mui cruel, edestruidor da terra, e que não o achando ali, eranecessário chegar a uma cidade, que chamamCoimbra, porque soubera também deles, que eraido lá a fazer uma presa de donzelas em umasbodas.Senhor Clarimundo, disse Fanimor, não sem causatendes amor a esta terra, pois tanta parte as vossascousas nela hão-de ter. E posto que para vós sejapequena glória vencer esse irmão de Morbanfo,não se pode tão fàcilmente como cuidais, outrahonra vos está nela guardada de maior louvor.Tomai o que vos Deus quer dar, e o mais deixaipara quem ele na vontade tem criado, contentai-vosem vos escolher para princípio de tão grandecousa. E por saberdes quanta mercê vos faz, alémdas que tendes vistas, é necessário encomendar-vosa Ele, dando-lhe graças por tamanhos benefícios;porque com sua ajuda eu vos direi hoje algumaparte de quantas cousas serão feitas nesta terra,entre todas a de maior perfeição, assim na vontadede Deus, como no uso dos homens. E para cousastão altas, como vos são prometidas, e que doconsistório da Sacra Trindade vêm forjadas, cumpredespedirdes de vós todas as lembranças, e cuidado,que vos podem turvar o juízo, e terdes umaconsciência mui casta e limpa para as ouvir. Ecomeçarei a cantar das obras de vosso neto atéonde Deus quiser; porque da maior parte das devossos filhos, antes que deste mundo partais, sereis

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testemunha delas; e por este lugar não ser con-veniente para o que quero dizer, vamos a outromais contemplativo.Com estas palavras tomando-o pela mão subiramao eirado da mais alta torre, donde se via grandeparte do mar e terra. E porque a este tempo aLua estava na força de sua claridade, fazia umanoite tão serena e graciosa, que todas as estrelaspareciam assim como no oitavo céu estão pintadas.E com as ondas do rio que a maré fazia bater aopé da torre, tremia a Lua debaixo delas, saltandode uma parte a outra, como quem se alegravacom o cantar dos rouxinóis, que por aquelespomares andavam namorados. Fanimor, por ficarno hábito que aquele acto pedia, ficou sòmenteem umas roupas de linho largas a maneira de alvaque debaixo trazia, e apertada uma touca nacabeça, pondo-se de joelhos, e as mãos levantadas,começou a invocar, dizendo:

Ó tu Imensa e Sacra verdade,Verdade da suma e clara potência,Que mandas, que reges com tal providênciaAs cousas que obraste na mente, e vontade;Ó trina em pessoas, e só divindade,Infunde em mim graça para dizerAs obras tão grandes que hão-de fazerOs reis portugueses com sua bondade.

Não teria estas palavras ditas, quando foi arreba-tado de um espírito divino, que o acendeu emtanto furor, que às vezes parecia um gigante, outrasde muito menos corpo do que era; tudo tãomaravilhosa, que Clarimundo se espantava dosmeneios que lhe via fazer, porque ora olhavacontra o Oriente, ora ao Ocidente, fazendo paratodas as partes o sinal da cruz, e com o fervordaquele espírito profético, pondo os olhos na Luadisse:

No tempo que Afonso o imperadorDer a seu sangue, por dar galardão

A aqueles que dor nunca sentirãoEm o derramar por seu Redentor,Dará também, por mais seu louvor,A Henrique em dote matrimonialAs terras da terra do grã PortugalPara as Possuir como justo senhor.

Aqueste com ferro mui vitoriosoRompendo as carnes de contos de mouros,Deixara de obras de tão grandes tesouros,Quanto no céu estará triunfoso;Sucedendo a ele o mui generosoEl-Rei D. Afonso Henriques primeiro,Primeiro em nome, e em verdadeiroRei enviado por Deus glorioso.

[D. Dinis]E porque o seu desejo será sempre ocupado nadestruição de Mafamede, e no exalçamento da Féde Cristo, ordenará uma Ordem Sagrada e Militar;os membros da qual, para serem conhecidos entreos outros homens, trarão nos peitos um sinal desangue, como aquele que para nossa, redenção foiordenado. E a este tal número dará um Superior,a que chamarão Mestre de Cristo. E porque a suapopulosa Lisboa, não seja isenta, de suas maravi-lhosas obras, fará nela a grã Rua Nova dos Mer-cadores, que em todas as partes será tão nomeada,como temida. E deixando em ordem todas ascousas de seus reinos, dará sua alma nas mãos dequem lha criou, e o corpo ao mosteiro de Odivelas,que ele para isso fez.

Tânger e Alcaçar não hão-de escaparDo grande poder de Afonso o Quinto.Ó Joane seu filho, que obras que sinto,Que hás-de fazer quando se entrar,A vila de Arzila pelo Albacar.Isto em tempo, que a tua idadeO peso das armas com dificuldadeNas brandas carnes poderá sustentar.

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Porque o teu magnânimo coração abrasado emaltos pensamentos, sempre nos trabalhos perigososandará tão diligente, quanto sofrimento terás paravencer os terrores suspeitosos que te darão durávelmemória do mais excelente príncipe dos cristãos.E com tuas obras começará a abrir caminho paraque a fama portuguesa seja conhecida em todasas partes; e tu farás os fundamentos para elachegar ao superior assento do mais alto merecer;mas a crua morte não te deixará ver o fim de teusprincípios, e inda que isto percas, alegra-te, que oteu corpo será remédio a muitos males, obrandonele uma divina virtude em galardão de teusmerecimentos.

Ó tempos, ó tempos, temos de guerra,De guerra com Mouros, e paz com CristãosQuem fosse então por beijar as mãos,As mãos que terão por divisa Espera!Ó divinas obras, nas quais se esmeraA fama famosa do grã Manuel,Quem se visse naquele tropelQue vós cercareis as partes de terra!Os maus, e ingratos, que a Cristo mataram,Por ele tão santo, e poderoso reiSerão convertidos tornados à lei,A lei da Graça, que eles negaram.E assim cobraram o que nunca cobraram,Depois de perder o que tinham perdidoCom suas maldades, e endurecidoO mau coração, que nunca abrandaram.

E este princípio de suas obras se ordenará comtanto mistério, e por tantos rodeios de cousas, quelogo darão sinal de sua grandeza, porque as terras,mares, e toda alma sensitiva sentirá o seu nome;e aquela não terá ser, que de seu conhecimentofor apartada. E sòmente os raios de seu resplendorqueimarão de maneira os males alheios, que serãoconvertidos em satisfação de grandes louvores. Ede suas mãos soltarão aves sem espírito com cruzesde sangue nas asas, as quais voarão por tantas

partes, que darão a conhecer ao mundo, que émaior do que ele de si cuidava; descobrindo comseus bicos tantos recantos, e fraldas da terra, queajuntados em número farão por si outro maiorcorpo do que ela tinha. E em todas estas partes,aquelas Divinas Armas e Reais Quinas, serãoadoradas por amor e temor. [...]E os inocentes, que nas partes de Etiópia nuncaouviram a palavra de nosso Redentor, principal-mente o grande príncipe de Congo, com fervorde nossa Fé, por este novo apóstolo que lha pre-gará será baptizado com grande número, de todosos povos, os quais imprimirão na alma suas palavras,de maneira que serão depois mestres daqueles queas não souberem. E os termos da terra, que daoutra parte jaz, inda que a este tempo não sejamperfeitamente conhecidos, também virão algunstrazendo o fruto, que dará alegre cor às roupasque nele forem tintas, e com muitos penachos dasaves, que se ali criam se apresentarão ante quemos deu a conhecer ao Mundo.

E aquele grã Cabo de Boa EsperançaQue tanta de terra esconde ao MundoVirá mui alegre com rosto jocundoA lhe obedecer sem alguma tardança.De terras, e povos fazendo uma dança,Vindo cantando com doce harmoniaEstas palavras de grande alegria:Vivamos contentes com tanta bonança.

Quiloa, Mombaça, Melinde, Patém,Baraba cidade, e Abalandarim,Com a fraca gente do forte ApenimZapenda, Guardafui, e o cabo que temTrarão consigo a grande Adem,Inda que venha ensanguentada,E com sua dura cabeça quebradaDas forças do Rei Daquém e Dalém [...]

E ajuntada esta diversidade de linguagens entrarãopela barra da populosa Lisboa, que ficará anui

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espantada quando ouvir novo tom em suasorelhas, mas contudo alegrar-se-á sabendo quehá-de ser adorada como princesa de todas elas.E no meio destas festas, que ela em si verá, vejoeu na sua cabeça nascido um resplendor, quedará claridade aos lugares sombrios, onde nunca,os raios do sol entrarão; portanto, é necessárioque vós, mui esforçado Clarimundo, tenhais aquios sentidos muito mais prontos; porque as obrasdesta luz, assim como, são novas, assim levamoutra nova ordem favorecidas da sumaprovidência, que as ordena para seu serviço, eamparo daqueles que padeceram fome de justiça.

[...]

A ti, Portugal, que estás descontente,Quero eu dar alegre esperança,Com que dos males hajas vingançaDos males passados de toda tua gente.A justa justiça do muito clementeEl-Rei D. João deste nome terceiroFará com que vivas em mui verdadeiroDescanso eterno, e muito contente.

Aqui nestas palavras trabalhou tanto Fanimor paraprosseguir no mais, que se lhe representava diante,que com fraqueza, do espírito, receando o golfopor onde hávia de passar; caiu esmorecido suandogotas de sangue.Clarimundo quando o viu naquele estado, indaque estava mui contemplativo no que ouvira, con-tudo remeteu a ele, e tomando-o nos braçoscomeçou Fanimor de se apertar com ele, quasetemendo a vontade de Deus, que era deixar omais que via para outro tempo. E depois que umpouco esteve tramando com todas os membrosdo corpo, acordou mui esperto, e disse: – SenhorClarimundo, já agora em alguma maneira ficareiscontente, pois de vós hão-de preceder aquelesque todas estas cousas, sòmente com o seu nome,terão sujeitas, e em sua vida com tanta glóriafarão. [...]

E acabando os Troianos de fundar a sua cidade,estando já mui descansados com grão número defilhos, e geração, começaram a sentir novos movi-mentos, porque a cidade de Lisboa, que então sechamava Ulissipo, ordenou guerra, contra eles, é arazão que para isto tiveram é esta: Mui manifestoé, que para se tomar Tróia eram necessárias muitascousas, e a mais principal era Aquiles, e sabido istoentre os Gregos, mandaram Ulisses por ele, o qualsagazmente o veio achar nestas partes de Lusitâniaem um mosteiro de monges, que serviam a deusaTétis, mãe de Aquiles, o qual mosteiro se chamavaCheles, porque uma dona que o fundou, e consa-grou à deusa Tétis tinha os pés furados, e quemisto tem chamam-lhe os Gregos Cheles, e cor-rompido o e em a, ficou-lhe Chèlas. Assim queesta foi a causa donde tomou tal nome, posto queaí haja outras opiniões falsas. E acerca de Aquilese onde o acharam, conta Homero o contrário,dizendo que o achou Ulisses na ilha Siros, reinode Nicómedes, entre uma filha sua chamadaDeidamia, e outras donzelas, onde o a sua mãe emhábito feminil tinha escondido; porém, segundoos moradores desta terra, por escrituras antigas, aesta terra veio ter Ulisses, e as memórias que neladeixou são disso verdadeiro testemunho, porquede um companheiro seu, que se chamava Tagus,que no Tejo caiu, ficou tal nome ao rio, e assimse chama entre os Latinos; e a mais principalcousa que nesta terra, fez foi a cidade de Lisboajunto do mosteiro de Chelas, onde Aquiles estava.E não foi a fundação dela sem grão mistério,porque estando Ulisses dormindo, apareceu-lheJúpiter dizendo:– Ulisses, quão pouco te hão-de aproveitar teustrabalhos ordenados para a destruição de Tróia,pois no fim deles e dela, ficarás mais vencido quevencedor! que não se conta por vitória a que porengano e traição dos naturais se alcança; e porquevós outros desta maneira cobrareis Tróia, não sereischamados vitoriosos, mas inventores de enganos, eem galardão de tais, obras nenhum de vós outros

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tornará à sua pátria descansado, senão que commuitos trabalhos alcançareis a vista dela, e depoismortes desonradas; e os Troianos desbaratados evencidos cobrarão gloriosa fama; porque da suacidade sairá aquele, da geração do qual nascerá ofundador de Roma, que em tamanha alteza nasarmas florescerá, que grandes partes do Mundolhe serão sujeitas; e a vossa Grécia mui humildeserá submetida debaixo de seus pés; e porque atua geração não fique com estas cousas abatida,faze o que te disser, que este só remédio te farátão glorioso, que não hajas inveja aos Troianos,nem a seus fundadores.Onde esta segunda noite vires cair um sinal de fogo,ali fundarás uma cidade, a qual depois que a grãRoma desfalecer de seu senhorio perdendo o nomede imperatriz, crescera em tamanho poder e alteza,que em todas as partes do Mundo será temida eamada, fazendo tais obras, que as armas gregas eromanas perderão sua glória. Isto será para ti maiorlouvor, que quantas cousas no cerco de Tróia fizeres;portanto, vive contente, que o teu nome será exalçadopor ser fundados de tal monarquia.Acabando Ulisses de ouvir estas cousas, ficou muiespantado com a novidade delas, e como eracapaz e agudo, considerando o bem e louvor, quepor tal obra lhe prometiam, dando de isto contaa seus companheiros, estiveram toda a noiteesperando pelo sinal, até que viram cair do céuna maior altura de um monte um raio de fogo,e começou de queimar aquele arvoredo verdeque tinha, até que ficou a terra tão escampada,como se nunca, ali outra cousa estivera.Ulisses ao outro dia atinando onde vira cair o raio,foi dar com uma esfera lavrada em uma pedra dacor do mesmo fogo, e pelo zodíaco tinha umasletras que diziam: Sobre este fundamento seja posta aprimeira pedra da minha cidade, porque outra tal figuracomo esta será sujeita a quem me tiver por cimento.Quando Ulisses e seus companheiros entenderamque naquele lugar, e sobre tal fundamento lhesera mandado edificar, fizeram a cidade de Lisboa,

a que pôs nome Ulíssipo. E este princípio foi detanta força, que sempre se aumentou em poder,honra, riqueza, e toda perfeição; e acabando-a defundar, deixou ali alguns companheiros parapovoadores, os quais depois que se estenderampela terra, edifiçaram estes lugares.Um cavaleiro, e sobrinho de Ulisses por amor desua mulher, que se chamava Coimbra, edificouuma cidade a que pôs este nome. Outro edificouum castelo, a que pôs nome Dessa por causa deuma cidade de Grécia donde ele era natural.Porém este nome é já agora corrompido nestaterra, e chamam-lhe Beja. Outro cavaleiro, quehavia nome Cabelicastro, fundou um castelo àborda do Tejo, mui forte, a que deu o seu nome.Outro em memória da formosura de sua mulherfez um castelo; a que pôs o seu nome, chaman-do-lhe Palmela, que em língua cítia quer, dizer:Sobre todas mais alta e formosa; e porque sua mulhertinha estas duas cousas em extremo, buscou nomeconforme a ela. E como estes Gregos liados comos naturais, esta parte de Lusitânia tinham ocupado,depois que viram os Troianos fortalecidos e ricos,considerando que esta geração sempre lhes foradanosa, começaram de mover guerra contra eles,de maneira que por muitos tempos se continuoueste ódio entre el-Rei de Ulíssipo, e de Tróia, atéque cansados da continuação das guerras fizeramtrégua por dez anos.Neste meio tempo morreu el-Rei de Ulíssipo, esucedeu no reino um filho seu, o qual era tãoperdido de amores por uma filha del-ReiFirpendo de Tróia, que lha deu seu pai porfavoráveis partidos, que ele no contrato prometeu.Feito este casamento, em memória de sua esposa,que se chamava Boa, e ele havia nome Lis, chamouà sua cidade Ulíssipo, Lisboa. E morta sua esposa,que era o penhor da paz, sem lhe ficar filho, nemfilha, por certas cousas que não quis cumprir, queno casamento dela tinha prometido, tornaram osTroianos a mover guerra, a qual durou grandestempos e anos.

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CAPÍTULO XIV

Quem era o sábio Daliarte do vale escuro.

Pera se saber quem fosse este Daliarte do Valeescuro, diz se que ao tempo que o príncipe DomDuardos Vinha do reino de Lacedemônia pera aGrécia, deixando já desencantado el-rei Tarnais, epacífico senhor em suas terras, uma donzela entrouem sua nau, que sem dizer nenhuma cousa se foiao governo dela, e a fez virar contra sua ilha ondelivrou um cavaleiro que por traição queriam matar,e daí o levou onde estava a mãe d’Argonida, dequem houve Pompides polo maneira que no livrode Primaleão se conta.Escreve-se nas crónicas antigas inglesas, queArgonida houve dois filhos de Dom Duardosdesta vez, e doutra que polo mesmo engano teveparte co’ele: o primeiro foi Pompides, o segundose chamou Daliarte, a quem sua avó criou consigo,apartado da conversação da outra gente, ensinan-do-o na arte mágica, porque lhe sentiu o enge-nho sutil pera isso; e por isto no livro de Primaleãose não diz nada dele. E como ela fosse uma dasmaiores sabedorias do mundo, nesta ciência, eDoliarte por muita conversação de dias e anos,

Crónicade Palmeirimde Inglaterra *

ocupasse o juízo no estudo dela, saíu tão exce-lente, que não somente passou por a avó, mas portodalas pessoas, que foram antes e depois dele,mais de quinhentos anos, alcançando as cousassecretas e por vir, tão altamente, que nenhuma lheparecia trabalhosa.E depois que se viu tal, que se julgava polo maiordo mundo, tinha tal ânimo, que não se quiscontentar disto só, antes despendendo algumtempo no exercício das armas, saiu tão destronelas que bastou pera o haver de julgar por filhode seu pai. Chegando a idade pera ser cavaleiro,morreu sua avó, e ele se foi ao gigante Gatáru,que o fez, sem saber quem era, por ver nele sinaldas obras que depois mostrou.Vendo-se Daliarte metido na obrigação das armas,lembrando-lhe o muito que nelas devia fazer,pera se nomear filho de Dom Duardos, revolviano pensamento muitos acontecimentos grandes,trazendo à memória aquela prisão perpétua emque o via, e assim a Primaleão e outros príncipes,que Dramusiando tinha no seu castelo. Porqueneste tempo toda a flor do mundo, e das armasestava ali encerrada, polo saber de Eutropa tia dogigante, e pala fortaleza dele, e de seus compa-nheiros. E também já nestes dias era descobertoque todos se perdiam naquele reino de Grã--Bretanha, ainda que ninguém podia saber comoisto fosse, se não Daliarte, a quem nada era oculto.E por esta causa muitos cavaleiros famosos acudiamàquela parte. E como alí entravam, e iam ter ondea fortaleza de Dramusiando estava, não sabiammais deles.Esta nova tão notória polo mundo, fazia então oreino d’Inglaterra ser tão cheio de cavaleirosnotáveis, tão nobrecido d’armas e de donzelas,quanto o nunca fora em outros tempos. Masnenhum que o fosse mui especial entrou nela quepudesse mais sair.Ali estava Recindos, por quem a Espanha eratoda despovoada, buscando-o. Arnedos rei deFrança, que havia poucos dias que saíra dela por

FRANCISCO DE MORAIS

* Crónica de Palmeirim de Inglaterra [...]”. In Obras Completasde Francisco de Morais. São Paulo: Editora Anchieta, 1946.

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ajudar a seus amigos, naquele trabalho em quetodos andavam. Maiortes o grã-cam, e Pridos, porquem el-rei d’Inglaterra fez grandes extremos,quando o achou menos em suas necessidades, eBelcar, Vernau, Ditreu, o duque de Drapos deNormândia, e o soldão Belagriz, com quem aamizade de Dom Duardos pôde tanto, que o fezdeixar seu senhorio, e tornar a seguir o trabalhodas armas de que já estava descansado. E o esforçadoPolendos, dos quais ou d’alguns deles se dirá oque passaram em suas prisões. Assim que nãohavia então reino no mundo, tão livre que nelese pudessem fazer, nem ouvir festas senão detristeza e descontentamento.Pois tornando a Daliarte, vendo a grande afronta,em que o mundo estava por um só homem, nãosabia determinar que maneira tivesse pera remédiode tamanhos danos: e inda que seu desejo erapassar polo estilo dos outros, não o quis fazer: nãopolo temor do perigo; mas porque sabia que nãoera ele o que aquela aventura havia d’acabar: etambém porque nenhuma cousa é pior que seguiro desejo onde a esperança é incerta.Então por escusar alguma parte de tantos desastres,quis fazer seu assento junto do Vale da Perdição,que este nome lhe puseram pola perda que senele recebia, buscando outro conforme a suacondição necessário a seu estudo, o qual ia pormeio de duas tão altas serras, que a altura delasimpelia a entrada do sol o mais do tempo, e porisso lhe chamaram o Vale escuro, e alguns o nomea-vam polo sombrio Vale, e não lhe custou tãobarato a entrada dele, que não lhe fosse forçadoalcançá-la por força, matando primeiro em igualbatalha o gigante Trabulando, e um seu filho,senhores de uns castelos que ali havia.Então fez no mais solitário do vale uma moradatão singular, quanto no engenho de um homemtão sutil se podia pintar, onde ninguém ia senãopor seu consentimento. E assim passou o tempona continuação de seu estudo, trazendo pera sitodolos livros que de sua avó lhe ficaram, e outros

muitos, que ele por sua indústria soube haver. Àsvezes ia ao monte; porque sua natural inclinaçãoo obrigava, e a terra era povoada de veados, eoutras caças. Alguns dias saía armado, e fazia batalhasassinadas, de que sempre ficou com a vitória. Equando sabia que cavaleiros de muito preço ashaviam de fazer na fortaleza de Dramusiando, iaestar presente a elas, pera ver mágoas a que nãopodia dar remédio, e que tanto sentia como seusdonos: de que se espantava o gigante e sua tia,vendo que tão soltamento entrava na juridição desua defesa, e saía sem o tolher o poder dele, nema sabedoria dela.Neste tempo sabendo das festas que o imperadorfazia, como de muitos dias tivesse feito aqueleescudo pera companheiro das afrontas dePalmeirim, o mandou à corte, onde sobre eleaconteceu o que já ouviste.Desta maneira gastava Daliarte o tempo, esperandopolo liberdade daqueles príncipes, os quais passavamvida descontente cada um igual na pena de todoscom aquela amizade antigo que se sempre tiveram:e ainda que esta dor não fosse pequena, a muitacontinuação a fazia sentir menos; porque onde elaé grande, possuí-la muito tempo a fez parecermenor.

CAPÍTULO XVIII

Como Palmeirim d’Inglaterra se foi dacorte, chamando-se o cavaleiro da Fortuna,e o que passou.

Tanto que Palmeirim se partiu, andou o que danoite ficava, e outro dia, sem tomar repouso, nemlhe lembrar que ele nem seu cavalo tinham dissonecessidade.Ao segundo dia quase o sol posto, já alongado deConstantinopla se achou num vale cheio d’ar-voredos espessos, antre os quais estavam uns edi-fícios antigos caídos por muitas partes, porém

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inda no pouco, que deles parecia davam sinal dequão nobre cousa foram; e a lugares por dentro,havia çoteas e casas dignas de se povoarem, e asparedes de parte de fora cobertas d’hera, quetrepava por elas tão verde e tecida nas mesmaspedras, que além de darem graça à antiguidadedo edifício, o sustinha que de todo não caísse.Desviado dele quanto um tiro de pedra, estavauma fonte de água clara e em lugar tão aprazível,que o obrigou descer-se.Selvião lhe tomou o cavalo, e a ele quisera daralguma cousa que comesse, e Palmeirim o nãoquis fazer, porque aqueles dias cuidados deses-perados eram seu mantimento: antes mandando-oapartar de si, encostado sobre u’a mão, com osolhos n’água da fonte sobre que estava lançado,trouxe à memória as palavras de sua senhora, abraveza com que lhas dissera, e começou a falarconsigo mesmo mil piedades namorados, oferecidasa quem não sabia se lhe ficara alguma dele: depois,culpando seu atrevimento, dizia: – Ó Palmeirim,filho dum pobre salvage, criado nas matasd’Inglaterra, que pensamento foi o teu qu’emtamanho perigo te pôs? Senhora Polinarda, seminha ousadia me faz merecedor de culpa, hajaem vós aquela piedade, que nos corações tão altosse sói achar, pera que um desejo tão certo de vosservir não sinta tão desesperado fim como vossacrueza lhe ordena. E se a vontade, com que mefiz vosso, isto não merece, acabai de me matar eserá honesto galardão de meu atrevimento; postoque, se vos lembrardes das mostras de vossa fer-mosura e parecer, a elas dareis a culpa de qualquererro, que contra vossa condição se cometa. Jáqu’esta dor me havia de durar, muito fora delacontente por ser nascida de vós; mas não quis sertal, que me deixe esperança de sustê-la muitosdias; antes me matará cedo, e então ficarei sem elae sem mim, e com saudade ou desejo de ver quemma deu.Nisto repousou um pouco, que a fraqueza lh’im-pedia o alento e a força pera poder despender

quantas palavras lhe então a dor e o amor ofere-ciam: e não tardou muito que dentro daquelesedifícios ouviu tocar um instrumento de cordas,que por estar algum tanto longe não soube co-nhecer o que era: porém o som dele, que porbaixo dos arvoredos vinha rompendo, lhe avivouos espíritos pera ter mais que sentir, e mais de quese aqueixar; porque nos corações namorados estassão umas faíscas, com que mais se acende o fogoem que ardem: e indo contra aquela parte, nãoentrou muito pelos edifícios, quando em uma dasçoteas, que neles havia, qu’era d’abóboda, viu estarum homem vestido de negro, a barba grande ecrescida, a pessoa grave, e no semblante do rostorepresentava tristeza e vida descontente: tocava umcravo de vozes grandes, que soava tanto ao longe,que podia ouvir-se fora no campo. A harmoniado qual detendo-se na concavidade de aquelaabóbada, fazia o som tão singular que por forçaquem o ouvisse se enlevava de maneira, que perdidoo sentido, causava esquecimento de todas as outrascousas; e ele de quando em quando acodia comalguns vilancetes tristes conformes a sua tenção.O da Fortuna transportado de o ouvir se encostouà porta, e não quis entrar dentro polo não estorvar,que via que o outro de namorado ou descontentese enlevava tanto no gosto do que fazia, ou nalembrança de seu cuidado que às vezes se caíasobre o cravo, e acodia com palavras conformesa sua vida, e em louvor de quem lha assim faziapassar. O cavaleiro da Fortuna havendo menencoriade ver que o outro louvava tanto sua dama, quea punha acima de todalas do mundo, e crendoque ao merecimento de Polinarda nenhuma sepodia igualar, entrou dentro, dizendo: “Cavaleiro,bem seria que louvásseis vossa dama, sem desprêzodas outras, pois pode haver alguma qu’em tudolhe não deva nada.”O da cova mui novo de ver ali homem, a taltempo e a tais horas, agastado do que dissera,falando co’a turvação que a ira dá, quando ela ésúpita e de cousa que muito dói, disse: “Como

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mulher aí no mundo tão acabada, que por todalasvias deixe de viver com quem me esta vida dá?Aguarda, amar-me-ei, e se me ousares esperar, eute mostrarei a verdade do que digo, e a mentirado que crês.”“Já quisera que estiveras armado, disse o daFortuna, porque um êrro tão manifesto menortardança havia mister pera se castigar.”O cavaleiro entrou pera outra casa e o da Fortunase saiu pera fora e esteve esperando ao da cova,que não tardou muito, armado d’armas negras epola noite ser escura não se via a devisa doescudo, qu’era em campo negro uma sepultura damesma cor, e em cima dela a morte que aguardava;e sem nada se dizerem, remeteram um o outro: ocavaleiro da cova veio a terra fazendo a lança empedaços no escudo do seu contrário, o qual sedesceu o ele e achando-o co’a espada na mão sereceberam com tão aceso desejo da vitória, comolhe nascia do causa porque faziam batalha.E posto que o cavaleiro nas armas fosse extremado,o da Fortuna além de combater pela verdade, oera tanto mais, qu’em pequeno espaço lhe desfezo escudo e armas, e pôs em tal estado com muitasferidas, que o fez vir a terra tão perto de morto,que não teve acordo pera sentir o perigo emqu’estava: então, tirando-lhe o elmo, tornou em siO cavaleiro da Fortuna lhe disse, que se desdissesse:da mentira que dissera, senão que o mataria.“Mal pode ser vencido de vós, disse o outro, quemo já é d’outrem: a mentira, que dizeis que disse, nãodesdirei, que maior seria ess’outra, se eu a dissesse:matei-me se quiserdes, qu’em vossa mão está: esteé o maior bem que meu mal me pode fazer, e sesentir alguma cousa, será tirar-me outrem a vida enão as lembranças de quem as de mim não tem.”O cavaleiro da Fortuna, que o viu tão desesperadoda vida, o deixou, dizendo: “Não matarei eu quemdisso se contenta, abasta pera prova de vossaverdade, quão mal a soubestes defender.” E subindoa cavalo começou caminhar algum tanto contentede si polo que lhe acontecera. O outro se tornou

à cova, onde o curou seu escudeiro, tão desejosode sua fim, que ele a tomava por si, se não lheparecera que nisso errava ao cuidado, donde asempre esperara.

CAPÍTULO XXXVI

Como o cavaleiro da Fortuna entrou emLondres, e o que passou antre ele e ocavaleiro do Salvage

Um domingo pala manhaã era quando o cavaleiroda Fortuna chegou à cidade de Londres, ondenaqueles dias estava toda ou a maior parte dacavalaria do mundo. E porque lhe pareceu queantes de jantar não podia haver batalha, foi-se auma ermida que aí perto estava: onde, depois deouvir missa, andou olhando as antigualhas da casa,que conquanto estavam gastadas do tempo, eramtão notáveis, que nelas se parecia que já ali estiveraalgum tempo populoso e grande.E antre algumas cousas que achou de notar foiuma sepultura de pedra, lavrado de obra tão sutil,que lhe pareceu merecedora e digna de se fazermemória dela em toda a parte; mas os lavores deque era feita de gastados do tempo se não podiamenxergar. Tinha umas letras gregas em roda tãomortos, que não pode ler delas mais que umapequena parte, em que dizia: – Arbão rei doNorgales: – então lhe lembrou que a sepulturaficara do tempo do famoso rei Lisuarte senhor daGrã-Bretanha: e perguntando ao ermitão se aquelacasa fora maior, lhe disse:“Quando eu pera ela vim, que há trinta e quatroanos, era como agora; e porém sempre ouviafirmar que no tempo que os infiéis entraram estereino, a derrubaram de todo: e ali contra a parteda mão direita está outra sepultura, em que jazDom Grumedão alferes d’el-rei Lisuarte, pegadacom a de Dom Guilão o Cuidador.”

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“Essa quero ver eu, disse o da Fortuna, porque emhomem tão namorado se não pode ver cousa má.”Então se chegou pera onde as sepulturas estavam,que era junto da porta, e estêve-as vendo grandeespaço, em especial a de Dom Guilão, a quesempre fora afeiçoado polo que dele ouvira.Aquelas cousas lhe trouxeram à memória lembran-ças da senhora Polinarda, de quem havia muitosdias que não sabia novas nenhumas, e não podendosuster em si o cuidado, que lhe naquela horaderam, posto que nunca dele andava desocupado,deitou-se sobre a pedra do moimento da ossadadaquele namorado Guilão o Cuidador com asmãos e rosto postas sobre ele, e ali por algumespaço esteve passando consigo mil palavras namo-radas, oferecidas a quem as não ouvia, tão metidona desacordo das outros cousas, que o ermitão ea dona cuidaram que alguma enfermidade lhesobreviera; mas Selvião lhes disse, que se nãoespantassem, que aquela era uma dor que o ator-mentava, e muitas vezes lhe vinha, a que ninguémsabia dar remédio.O cavaleiro da Fortuna depois de passar poraquele acidente, conheceu a fraqueza em que caía,e limpando os olhos, se levantou em pé, e quiscom alegre semblante dissimular a tristeza manifesta,que nele parecia. Selvião lhe deu o cavalo, dizendo:“Senhor, lembre-vos o muito que tendes perafazer, e com quem haveis de haver hoje batalha,não gasteis o dia em al, pois o mais dele é pas-sado.”“Vamos onde quiseres, disse o da Fortuna, quemor é a em que eu me agora vi que essoutra, comque tu me ameaças.”Então, despedindo-se do ermitão, se foi contra agrande cidade de Londres, levando consigo adona, e antes que entrasse nela, chamou a Selvião,e dizendo-lhe o que havia de fazer, o despediu desi, esperando que tornasse com resposta do quelhe mandara. Selvião chegou ao paço a tempoque el-rei acabava de comer acompanhado demuitos senhores, e entre eles mais chegado a ele

o volentíssimo Deserto cavaleiro do Solvage, queestava já são das feridas que recebera nas batalhasque com Graciano, Francião e Polinardo houvera.Rompendo por antre a gente, chegou al-rei, aque com os joelhos no chão começou dizer:“Muito poderoso senhor, o cavaleiro da Fortuna,cujo eu sou, beija vossas reais mãos. Diz que seupropósito foi sempre não vir à vossa corte senãopera vos servir, e que agora por desfazer umagravo a um dona que com ele vem, lhe é forçadodesafiar um cavaleiro que nela está, a que chamamo do Salvage; pede-vos que lhe deis licença perao poder fazer, e vir seguro à sua batalha, segundode tão excelente príncipe, como vós, se espera.”El-rei, que ouviu nomear ao cavaleiro da Fortuna,e estava informado de suas cousas, pesou-lhe vircom tal demanda à sua casa, e quisera impedir alicença. Porém o do Salvage, que sentiu sua tenção,se levantou, dizendo: “Não é aquele o homem, aque se nada deve negar; porque pareceria quetemor de suas obras o faz. E pois isto me toca amim, Vossa Alteza o mande entrar, e segurar, ocampo; senão eu irei em busca dele, e cumprireiseu desejo e o meu.”El-rei, vendo que se não podia escusar, disse aSelvião: “Amigo, dizei a vossa senhor que me pesamuito vir à minha corte, com cousa que nelapossa dar desgosto; porém pois assim quer, queeu o seguro de todos, senão desse a quem busca,de que não sei que tão seguro pudera estar.”Selvião se despediu, e tornando a cavalgar, se foicom recado a seu senhor, que logo entrou armadode todas armas. Muitos o saíam a ver, que a novade sua vinda se espalhou por toda a gente, eentrando no terreiro, fez seu acatamento al rei,que estava a uma janela do apousentemento deFlerida; porque quis que ela visse aquela batalha,pois era dos dois mais notáveis e melhores cava-leiros, que no mundo havia. Todo o campo, janelase casas em torno do terreiro estavam tão cheiosde gente, que o mais da cidade se despovoou poracudirem àquela parte. Nisto entrou o cavaleiro

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do Salvage, armado de suas próprias armas edevisa, tão novas que ainda o dia dantes lhasacabaram. Vinha acompanhado com muitos cava-leiros. Argolante lhe trazia a lança, Dom Rosirãode la Brunda o escudo; chegando onde o daFortuna estava, disse: “Senhor cavaleiro, não seiporque me desafiastes: porém sei que pera meugosto esta é a mor mercê que me podíeis fazer.”“Quem tão sem piedade, disse o da Fortuna, mataquem o não merece, não se deve espantar acharquem o castigue. Esta dona se queixa de vós,cumpre que a contenteis no que quiser, senãoaqui estou eu, que lhe darei a emenda, que ela hámister, e vós mereceis.”“A essa dona, disse o do Salvage, nem a outraalguma que haja no mundo, não fiz nunca cousade mim se possa queixar, mas pois o batalha háde ser convosco, não quero dar nenhuma razão,com que me escuse de fazer.”Ambos se arredaram o espaço necessário, e aosom de uma trombeta remeteram com toda aforça, que os cavalos puderam trazer: as lançasforam feitas em pedaços, os escudos falsados, e elespassaram um polo outro como pessoas, o que osencontros não tocaram. Logo tomaram outras,porque o cavaleiro da Fortuna lhe pediu quequisesse tornar a justar; e assim passaram à segundae terceira carreiras sem se derrubarem, sendosempre os encontros dados com tanta força, queparecia impossível poderem-se suster a eles. Earrancando das espadas começaram a ferir-se tãosem piedade como se neles houvera alguma razãoPera o fazerem, usando de maiores forças e manhacada um do que té ali nunca fizeram; por ver queali mais que em outras partes em que se acharam,eram necessárias.[...]El-rei, a quem aquela dor atormentava, não opodendo sofrer, desceu ao terreiro acompanhadode muitos senhores ancianos, com prepósito de osapartar, vendo tamanho erro, seria deixar assimmorrer os melhores dois cavaleiros que nunca

vira. Mas a cobiça da honra pode tanto, e arazão andava tão cega antre eles, que a nãoquiseram seguir no que lhe ele mandava; antesperdendo a obediência, juntaram-se tanto quecom os punhos das espadas começaram torcer eabolar os elmos por tantas partes, que o ferro semetia polas cabeças. O sol era posto, e neles nãose conhecia ventage, mais que quanto as armasdo da Fortuna estavam algum pouco mais soãsque as do outro.El-rei, que nenhum descanso nem repouso recebiaem seu coração, fosse onde estava Flerida, dizendo:“Senhora filha, se Dom Duardos é vivo e pormão d’alguém há de ser livre, não há no mundode quem homem o espere senão de um destes,que estão perto de perder as vidas. Peço-vos demercê que os vades apartar, que por mim já o nãoquiseram fazer, e senão, se eles morrer, eu hei pormorta a esperança, que té aqui tive dalgum bem.”Flerida, que té então nunca duma casa, nem nin-guém a vira, houve por mui grave o que lhe el-reipedia: porém quis-lhe fazer a vontade, e tambémporque o dó que daquele seu sangue havia, amoveu a isso.Assim saiu ao terreiro, levando-a el-rei pola mãoacomponhada de quatro donas vestidas de negro,e ela com um hábito da mesma cor de panogrosso, conforme a seu cuidado, na cabeça umabeatilha de vasso, que lhe cobria os olhos; porémtão fermosa como no tempo de sua alegria. Noterreiro do paço foi tamanho alvoroço, vendo-avir, e o espanto e reboliço da gente tão grande,que os cavaleiros se tornaram a apartar, por verque era.Flerida chegou a eles, e tomando o da Fortunapola manga da loriga, disse: “Peço-vos, cavaleiro, seem algum tempo por alguma dona, tão maltratadada fortuna como eu, haveis de fazer alguma cousa,que seja deixardes esta batalha, pois nela não seganha senão o risco, em que vossa vida é adessoutro cavaleiro está posta.”O da Fortuna pôs os olhos nela, e pareceu-lhe

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tão natural com sua senhora Polinarda, que nãosoube se cuidasse que era aquela: e pondo osgiolhos em terra, disse: “Senhora, esta foi a batalhaque mais desejei acabar que todalos do mundo;agora a deixo, pois nisso vos sirvo, e a honra delaseja desse cavaleiro, que também a merece.”“Essa não quero eu, disse o do Salvage, senãoquando por mim a ganhar: e se vós desejastesacabá-la, confesso-vos que também desejei omesmo; mas pois fazeis a que a senhora Fleridamanda, mal poderei eu fazer o contrário, que souseu, e lho devo de obrigação.” Flerida lh’ agra-deceu suas palavras, tornando-se pera cima, semsaber que não era aquela a primeira vez que desua mão receberam a vida.El-rei os quisera mandar levar a seu apousenta-mento: mas o da Fortuna, que viu junto consigoo hóspede que tivera a noite passada, que vieraver a batalha, rogou-lhe que o levasse pera suacosa, não querendo aceitar d’elrei aquela mercê,que estava corrido de lhe perder a vergonha noque lhe pedia. O hóspede o levou à casa de umseu amigo; e apertando-lhe as feridas, metido emumas andas, se foram pera sua casa, onde foicurado por mão de uma sua filha, que sabiamuito na arte de cirurgia; e da dona que ali otrouxe não souberam mais onde se escondera,antes afirmaram alguns que no meio da batalhadesaparecera.O cavaleiro do Salvage foi levado a seu apousen-tamento, e curado com mais resguardo que nunca;porque então, mais que nunca, também eranecessário. El-rei e todolos de sua casa ficaramtristes polo da Fortuna não querer ficar nela.Aqui deixa a história de falar neles, e torna aosoutros da corte do imperador, que naquelademanda andavam, cada um experimentando suafortuna, confiando em suas mostras, que té liforam a seu gosto: mas isto não devia ser assim,porque quando ela é maior, então se deve ter emmenos, ou haver-lhe maior medo.

CAPÍTULO LXXXVI

Do que aconteceu a Floriano do Desertoestando na corte do grã Turco

Estêve muitos dias Floriano do Deserto na cortedo grã Turco, servindo Tragiana em coisas do seugôsto, mostrando o preço de sua pessoa em todasas emprêsas, que naquele tempo aconteceram, saindotanto a sua honra e com tanta glória e fama, queantre os mouros por coisa divina era estimado. Ecomo os espaços que lhe vogavam do exercíciodas armas gastasse em seus amores, teve tantopoder a conversação de cada dia que o obrigoua perder-se por ela, coisa contra a sua condição,que pera com elas a soía ter livre: e na verdadepera com mulheres não se há de perder tamanhacoisa como é a liberdade, pois está claro que nadaagradecem senão o que com sua condição ouapetite conforma, e que o seu sempre nasce dapior porfia que nelas há.Porém Tragiana estava tão afeiçoada a suas obras,e namorada de seu parecer que no amor não lheficava devendo nenhum quilate.Assim que estas vontades conformes praticadasmuitas vezes tiveram tanto poder que vieram aoefeito delas, onde Floriano chegou ao fim do queesperava e entrou no começo do aborrecer ouenfastiar, coisa que alguns homens têm por natural,e Tragiana perdeu o que se deve muito estimare se depois não cobra: e não é de espantar queisto assim acontecesse, que impossível coisa parece,quem dos vícios se deixa combater ao fim não servencidos deles.Assim que, nestes dias em que Floriano ia perdendoo cuidado da Tragiana, e ela achava mais em quecuidar, vieram novas à corte do grã turco dasmuitas e mui grandes vitórias d’Albaizar e domuito que na corte do Imperadar fizera. As quaisem tão grande veneração eram tidas, que de todofaziam escurecer e pôr em esquecimento as deFloriano, de que ele ainda que o dissimulava,

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recebia grã pesar. E estando uma noite praticandocom Tragiana em coisas, que daqueles tempossoíam passar as horas de sua conversação, veio elatrazer à memória quanto devia a Albaizar por osperigos, em que por seu serviço, se pusera e quãomal cumprira com ele no prometimento, que lhefizera antes de sua partida; pois o que ao tempodela lhe prometera por satisfação de seus trabalhos,o acharia já roubado e perdido e entregue aquem ao fim se havia de ir, onde a fortuna olevasse, e ela ficaria com sua mágoa, que lheduraria todo o tempo em que a lembraça daquelaperda a acompanhasse.Floriano que já nesse tempo era livre, de seuscuidados, quis com razões fingidas mostrar queentão mais que nunca estava metido neles: eporque neste caso, e que se não aventura maisque palavras, os homens não hão de ser avarentosou escasso delas, ele a satisfaz tanto quantocumpria, dizendo antre algumas, que, lhe entãoo tempo e a isenção ensinava. “Senhora, se ante,vós as obras d’Albaizar hão de ter tanto mere-cimento, que vos façam esquecer as minhas, quemercês me podeis vós já fazer, que a mimfaçam contente!Combater-se ele, com muitos, vencê-los todos,não se deve ter em muito, pois o faz, sobre vossafermosura, que pera mores coisas basta.Com quem me poderia eu combater, quem entrariacomigo em campo que não desbaratasse se abatalha fosse feita em vosso nome?Os vencimentos, que ele faz, vós os fazeis, suasvitórias vós as alcançais, o vosso nome peleja, elefaz tudo e a fama fica com Albaizar.Consenti que me vá ver com ele, e como vossome combata, então vereis, a quem deveis mais, ouquem vos merece melhor servir.”“Estou tão determinada em fazer uma coisa, disseTragiana, que cuido que por força a hei decumprir; e ainda que muitas vêzes o determinasse,de não o fazer, essas palavras, que vos agora ouço,me fazem assentar no cumprir, e é, que acom-

panhada de duas donzelas, e quatro escudeiros, evós comigo, quero ir desconhecida, como don-zela andante, à corte do Imperador Palmeirim,pera ver o fim do que desejo. E pera isso havereilicença de meu pai, pera ir ver a rainha, de Síria,minha tia, que me ele não negará, porque muitasvezes me tem dada: e então farei viagem a essaoutra parte, e pera mais brevidade, tenho já man-dado um correio à Albaizar, que se não vá docorte té ver outro recado meu.”Floriano, que sempre desejara sair dali, e não viacaminho pera isso, vendo o desejo de Tragiana,louvou-lho muito, dizendo, que logo se havia defazer, temendo que o natural dos mulheres, éarrepender-se tão prestes quão prestes lhe vêm osacidentes. Porém como também a sua condiçãodelas seja ser constantes no danoso e mudáveis nobom, ainda a manhaã não era de todo clara,quando já estava na câmara de seu pai, mostrandocom lágrimas fingidas, que sabia por nova certaa rainha da Síria sua tia estar doente, de umadoença perigosa, pedindo-lhe que em todo ocaso lha deixasse ir visitar.O turco como não tivesse outro filho, e a estacomo a si próprio amasse, quis satisfazer-lhe avontade.E posto que a quisera mandar acompanhada comoa sua filha, nunca pode acabar com ela, dandopor escusa, que pera menos detença de seu caminhoqueria, ir aforrada com só duas donzelas, e quatroescudeiros, e o seu cavaleiro cristão, que este nometeve sempre Floriano, enquanto naquela corteesteve.Despedida do grã turco, levando atavios pera suapessoa, louçãos e de muito preço, tomaram avia,que ela mais desejava, e em poucos dias arribaramnaquele famoso Império de Constantinopla, algumtanto desviados donde a corte estava.E caminhando pera ela um dia de grã calma, ostomou a sesta em um vale gracioso, cheio dearvoredos, à sombra dos quais determinaramrepousar; té que a calma fosse passada pera tornar

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a seu caminho. Não passou muito espaço depoisque chegaram, que polo mesmo vale vieram quatrocavaleiros armados de armas ricas e louçãos esobretudo fortes ao perecer: chegando onde estavaTragiana, detiveram as rédeas aos cavalos olhan-do-se uns ao outros, como que se espantavam dea ver. Isto era que esses cavaleiros vinham deConstantinopla vencidos, da mão de Albaizar eviram o escudo do vulto de Tragiana, por quemse ele combatia, e vendo ali e ela tive-ram-nopor coisa maravilhosa, porque trazia o rostodescoberto e era tão bem tirado no escudo deAlbaizar, que de fraca memória seria quem vendoa ele e a ela não conhecesse um por outro.Um deles se chegou mais dizendo: “Senhora, a quemvossas mostras muito dano fizeram, bem será quecom alguma satisfação o emendeis, isto há de serquerendo ir conosco, e parecer ante nossas damas,porque já quando souberem nosso vencimento, vejama razão, que houve pera isto assim ser, pola diferençaque de vós e elas há. E que isso seja contra regrade bons namorados, não se pode negar a um parecercomo êsse seu merecimento.”Floriano, algum tanto indinado de ver sua tenção,levantou-se em pé dizendo. “Senhores segui vossocaminho, ou repousai dele, se vindes cansado, nãoqueirais pagar a vossas damas o pouco que fizestescom tornar a elas a culpa de vossa fraqueza.Contudo, se isso vos não parece bem, trazei-as vósaqui e verão o que desejais, que pera esta senhora,ir lá, nem ela terá vontade, nem eu tão poucaforça, que não vo-la defenda.”“Falais tão sôlto, disse um dos outros, que, só porver vossa doudice, há de ir em nossa companhia:e se vós vos atreveis a defende-la cavalgai e fazer--vos-ei tornar a descer, ficando com menos soberbada que agora o tendes.”Floriano sem mais responder se pôs a cavalo eenlazando o elmo, disse. “Agora, senhores, querover se vossas obras são como as palavras. Podeisvir a mim, um a um; e senão vindes todos, quea vileza com qualquer virtude se desbarato.”

“Não vos estimam aqui tanto, disse o outro, quese presuma que pera vós é necessário mais deum, e eu quero ser esta, que meus companheirossão para tanto, que não sei se algum deles secontentará disso.”E arredando-se o necessário, Floriano estava tãomanencório que a ira lhe impedia a fala, coisasque muitas vezes acontece a homens coléricos, eremetendo pera ele o encontrou tão fortemente,por meio do escudo, que falsando a ele e as armaso fez vir ao chão, rendido o espírito e a soberba.Os três, que ficavam, vendo que com homem, quetal encontro dera, não era necessário provar-se aiguala, todos juntamente o comenteram, e nãofizeram mais danos, de quebrar as lanças sem omover da sela: e porque a sua quebrara no primeiroarrancou da espada e ao passar deu um revés porum braço a um deles com tanto força, quecortando as armas com parte, da carne e o ossoo aleijou de todo.[...]

CAPÍTULO CVII

Do que aconteceu ao cavaleiro do Salvagemantes que se apartasse do donzela.

O cavaleiro do Salvagem todo o dia gastou naconversação da donzela ao longo do ribeiro, ondepassaram a sesta debaixo dos arvoredos que ocupa-vam.Chegada a noite, porque não sentiram nenhumpovoado onde seguramente a pudessem ter, tiverampor conselho mais seguro passarem-na naquelemesmo lugar. O escudeiro ajuntou da erva sobreque se encostaram, e o cavaleiro adormeceu comtão pesado sono, como quem naquela hora nãotivesse cuidado nenhum que lho fizesse quebrar.A donzela, a que ficara mais que sentir, e menosde que se contentar, esta maginação, e ver oesquecimento do cavaleiro, a fez estar toda a noite

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acordada, descontente de si mesma, e arrependidade seu erro; coisa que pouco lembra antes decaírem nele.Estando assim consigo revolvendo na fantesia seacharia algum remédio em coisa que o já nãotinha, teve por seu conselho encomendá-lo aoesquecimento; mas quando as coisas muito doem,mal se pode isto fazer.– Quem me dissesse por que este arrependimentonão chega quando se pode curar, ou de que servequando já não tem remédio?A razão é que como esta ceguidade nasce deamarem mais o erro que a pessoa, este amor temtanto poder, que estorva as coisas, com que sepode atalhar.[...]

CAPÍTULO CXIII

De uma aventura que veio à corte doImperador, e do que nela sucedeu.

Ao outro dia, depois do embaixador partido,acabando o Imperador de comer na sala, acom-panhado de alguns grandes, entrou pola porta umhomem velho, tão arrugado e fraco de muitaidade, que parecia que quase se não podia susternos pés.Como tivesse a pessoa grande e autorizada,juntamente co’a alvura da cabeça e barba, fazianele crédito pera se não duvidar coisa que dissesse.Todos puseram os olhos nele por ouvir suademanda.O velho chegando-se junto do Imperador lhequis beijar as mãos, a quem ele as não deu, anteso ajudou a erguer, perguntando-lhe o que queria.“Senhor, disse ele, com voz tão fraca e cansadoque quase se não ouvia; pois em vossa casa estevesempre certo o socorro pera aqueles que o hãomister, não creio que a mim, que disso tenhomaior necessidade, me faleça.”

Trás essas palavras lançou tantas lágrimas quantaslhe pareceram necessárias pera dar cor ao quedizia, dizendo mais.“Peço a Vossa Alteza que com o ânimo real, comque sempre favoreceu os tristes, me socorra namaior sem razão e agravo, que se nunca fez ahomem.E porque o caso é de qualidade, que ao presentese não pode dizer senão com muito maior riscomeu, queria me mostrasse o cavaleiro em quemaior confiança tem, e o mandasse comigo àparte onde o levarei, e onde a sua fama além dedescansar a mim, crescerá em mais honra do queporventura té aqui teve.”“Homem de bem, disse o Imperador, inda quenestes casos se não deve confiar de qualquerpessoa, o dó que recebo dessas lágrimas, e idadecansada, me faz sair um pouco fora do ordinário,porque não creio que em tantos anos, e tão alvascaãs possa haver engano.Este cavaleiro, que está junto comigo, se chamaFloriano do Deserto; outros lhe chamam o doSalvagem: é meu neto, e o homem em que agoramais confiaria qualquer feito; quero que vosacompanhe nessa afronta, que quanto maior for,mais o havereis mister.”O velho se lançou no chão, querendo-lhe beijar ospés por tamanha mercê, dizendo: “Por certo a famade vossa benevolência e realidade não é errada;antes agora, acabo de crer que tudo, o que de vossavirtude se diz, é menos do que se deve dizer.”O do Salvagem lhe beijou as mãos polo encarregardaquele caso; e porque o velho dava pressa napartida se foi logo armar e se foram seu caminhosem ter lugar a se despedir da Imperatriz nem deseus amigos.O Imperador ficou perguntando aos seus se haviaali quem o conhecesse, e não se achou pessoa quedisso pudesse dar novas.Primaleão lhe estranhou a licença que lhe derasem saber particularmente que necessidade ouafronta era a sua.

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No mesmo dia se despediu Beroldo príncipe daEspanha, Platir; Blandidon, Pompides, Graciano,Polinardo, Roramonte, Albanis, Dom Rosuel; etodolos outros sinalados, que naquela hora estavampresentes, pera seguir o do Salvagem; temendo-seque, pois o velho encobria que o levava, não fossealgum engano.Com isto ficou a corte só e o Imperador descon-tente do mau recado, que tivera na partida de seuneto, temendo-se dali lhe nascer algum dano, queo coração lho revelava.O do Salvagem e o velho caminharam todo oque daquele dia estava por passar, e a noite, semter nenhum repouso; e em amanhecendo deramde comer aos cavalos e eles repousaram um pouco;porém o velho, que todo repouso havia portrabalho, o fez logo tornar a cavalgar.Já que o mais do dia era gastado, se acharam àvista, dum castelo, que sobre uma rocha estavaassentado, ao parecer dos olhos fermoso e forte;e polo pé dele corria um rio de tanta água, queem nenhuma parte fazia vau, e passava-se comuma barca tão pequena, que não podia alojar emsi mais que té dois passageiros.O velho saltou fora de seu cavalo, e disse ao doSalvagem. “Bem vêdes, senhor cavaleiro, que abarca é tão estreita, que, se quisermos entrartodos nela, poremos as pessoas em risco desne-cessário; porque a mim não me convém meter avossa nele, se não salvá-la de todos pera aventurarnaquele pera que a trago, peço-vos que desca-valgueis e passareis só; e o vosso escudeiro e eupasseremos com os cavalos cada um por sua vez,que d’outra maneira estaria o perigo certo e apassagem duvidosa.”“E’ tão honesto, disse o do Salvagem, errar antespolo conselho de quem pola idade tem expe-riências de muitas coisas, que acertar polo dequem não passou nenhuma, que, ainda que outrarazão não tivesse pera seguir vosso parcer, esta sóbastaria; quanto mais a qualidade do caso não nosmostra outro remédio melhor, inda que pola

pressa, com que estes dias me fazeis caminhar,me pesa achar passagem tão vagarosa.”Acabando estas palavras, saltando fora do cavalo semeteu no batel e mandou remar contra a outra parte.Ainda não seria no meio d’água, quando os cobriuuma nuvem tão escura, que com ela, perdeu devista os de terra e eles a ele.Como o seu escudeiro quisesse lançar-se ao riopera segui-lo representou-se-lhe ante os olhosuma serra muito grande coberta de névoa, e aoseu parecer julgava que aquela se metia antr’ele eseu senhor.E virando-se contra o velho não o viu, nemsoube pera onde fora.Então teve por certo que suas lágrimas eramnascidas de engano, e não de coisa que lhe doesse;e não sabendo determinar-se, depois, de cuidarmil vaidades, pós em sua vontade correr todaaquela terra, e se não achasse novas, tornar-se acasa do Imperador com aquelas da perda de seusenhor, pera que com elas seus amigos quisessembuscá-lo, querendo que da diligência de muitos,algum fruto se tiraria.O do Salvagem depois que passou o rio, a nuvemque dantes o cobria ficou sobre o batel, que demuito preta lho fez perder de vista; e porque aseu ânimo nenhuma coisa fazia medo nem receio,posto que sentisse que havia de que o ter, começouandar assim a pé contra o castelo, que, daquelaparte tudo estava claro.Como a altura da rocha fosse grande, e o pesodas armas o afrontasse, conveio-lhe descansar duasou três vezes.Neste espaço de detença se passou o dia, de sorteque, quando chegou ao alto, era já noite.A este tempo se abriram as portas do castelo esaíram dele quatro donzelas com tochas acesas,que, tomando-o antre si, o levaram consigo.E como elas fossem gentis mulheres e o recebessemcom gasalhado, e ele fosse inclinado a folgar comaquelas companhias, ia tão ledo, que, nenhum perigolhe lembrava e nem lhe parecia que o podia haver.

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Assim punha os olhos em umas como em outras,porque a todas lho guiava a vontade, que isto énatural de homens de condições isentas.E assim praticando com elas entraram no pátio docastelo, que estava lageado de umas pedras negras;e daí subiram a uma sala grande e mal-obrada, feitaao modo antigo, onde o veio receber uma donzelaacompanhado doutras donas e donzelas.Ela era tão grande de corpo, que quase pareciagiganta, não tão-somente no estatura, mas inda nograndeza dos membros; porque tudo era à pro-porção do corpo.Seria da idade de dezasseis anos, feia e porémairosa.No conserto e atavios de sua pessoa parecia demuita maneira e gravidade.Em chegando ao cavaleiro do Salvagem o tomoupola mão, recebendo-o com tamanho gasalhadoe honra ao seu parecer, como o pudera fazer apessoa, em cuja mão estivera todo o remédio desua vida; e assim o meteu em uma câmara domesmo jaez da sala, armada de tapeçaria rica.Como o do Salvagem a este tempo tirasse o elmoe viesse afrontado de andar a pé, ficou tão gentilhomem, além do seu natural que a senhora nãopôde negar ao desejo uma inclinação amorosa, deque lhe muito pesou, por ver em si tanta fraquezaem favor de homem, que lhe tanto mal fizera.Com esta indignação de si própria, usando de seurobusto coração, tornou a aplacar aquele primeiromovimento, e afeiçoando palavras pera o contentare dissimular o ódio, lhe disse:“Senhor cavaleiro, té aqui sempre tive o coraçãocansado, porque pera uma ofensa, que me é feita,me faleceu a esperança e o socorro de ser vingada.Agora que vos tenho a vós, cuido que tenhotudo, por isso peço-vos que esta noite repouseis,pois o trabalho do caminho vos põe em necessidadedisso, amanhaã vos darei conta do pera que voshei mister.”“Senhora, respondeu o do Salvagem, postos osolhos nela, se algum tempo cuidei que devia a

alguém alguma coisa, agora cuido que devo maisao cavaleiro que me trouxe a este lugar, porquepoder-vos servir tenho por tamanho preço, queme pesa ser minha vida tão pouca pera se aventurarem algum perigo por vós; inda que o maior, quelhe já pode acontecer, ante si o tem, e todolosoutros estimo em pouco senão este.”A senhora, que se não pagava destas razões, lhedisse; “Ora, senhor, isto é tarde, ceai e repousareisque amanhaã praticaremos no que se deve fazer.”E despedindo-se dele com toda a cortesia, que oódio ou engano podia fingir ou dissimular, odeixou e se foi aos seus apousentos.O do Salvagem ficou algum tanto contente, vendoquão moderadamente sofreram suas palavras,crendo que sofrendo assim outras e outras, poderiaseu desejo ter efeito; porque inda, que a donzelanão fosse gentil mulher, a disposição de sua pessoa,a composição dos membros, a grandeza do corpo,a singular graça e ar, lha fazia desejar, crendo quese dela pudesse haver fruto, seria digno de grandesobras.Com este desejo se sentou à mesa, onde foi servidodas próprias donzelas, que antes o receberam;antre os quais uma, que o servia de copa, eratanto mais gentil mulher que as outras, que lhefez esquecer de tudo, olhando-a com afeiçãoenamorada, sem lembrança do cuidado que danteso ocupava; porque sua arte era naqueles casosperder-se sempre polo que achava mais perto.

CAPÍTULO CXIV

Em que dá conta de quem era esta donzela,e do que passaram em sua viagem.

Diz a história que Colambor, mãe de Bracolão eBaleato gigantes, que o do Salvagem matou emIrlanda, segundo atrás se conta, como não tivesseoutros filhos, e a estes amasse de perfeito amor demãe, sendo certificada de sua morte, não mostrou

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CAPÍTULO I

Como teve princípio a Ordem da Cavala-ria.

Querendo contar as famosas façanhas do militarexercício (cujo é o preço das humanas graças) nãoalheio da história, antes devido princípio pareceuma breve relação da antiguidade e origem danobre Ordem da Cavalaria, que além da talmemória a curiosos ser aprazível, é necessáriofundamento (aos que esta maiormente lerem) epor ventura estímulo de imitação, saber-se comofoi instituída por tão poderosos Príncipes, notáveisConquistadores. [...]Depois, florescendo nossa católica Fé, Artur, Reide Inglaterra e França, ordenou a Ordem dosTávola Redonda, em que igualmente comiamcom ele. Estes foram os vinte [e] quatro cavaleirosque, nas cortes de Londres, juraram em mãos daRainha Genebra, cada um por si e todos em geraloferecerem quando cumprisse a vida, até perdê-laem socorro de toda [a] Donzela, ou de qualquerpessoa outra que à corte viesse requerer direito,

JORGE FERREIRA DE VASCONCELOS

Memorialdas Proezasda SegundaTávola Redonda*

* Ed. João Palma Ferreira. Porto: Lello Editores, 1998.

sentimento, segundo as mulheres costumam, mascom coração varonil pôde encobrir em si tamanhador, determinando sempre buscar todolos modosde vingança, que lhe a fortuna e o tempo ofere-cessem.Com esta determinação revolvia no juízo milcoisas pera a execução dela.E como em nenhuma achasse perfeito caminhopera o que desejava, socorreu-se a um cavaleirovelho, criado que fora do gigante seu marido, quedaí perto em outra ilha vivia, que neste esperavaachar verdadeiro conselho; porque além dele sercheio de muita experiência pola idade, de seunatural era sabido, astucioso e algum tanto mágico:Pois como Alfernau, que assim chamavam o cava-leiro, visse Colambar em sua casa, movido à piedadede suas lágrimas se lhe ofereceu a tudo o necessário.E porque por sua arte alcançou que o cavaleirodo Salvagem estava em Constantinopla, lhe disse:“Senhora, se nesse negócio quiserdes seguir meuconselho, eu me atrevo a vos fazer contente.”

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e nunca faltarem uns aos outros em todo [o]perigo. Dos que os principais e de maior nomeforam Dom Galvão, Lançarote do Lago, Tristão deLeonis, Dom Galeazo, Heitor dos Mares, Troiano,Palomades, o pagão, e outros que sustentaram acavalaria abalizadamente. Donde, com sua ajuda,el-Rei Artur ganhou largo império e imortalnome, deixando de si tal exemplo que, em suaimitação, depois, Carlos Magno, CristianíssimoImperador, ordenou os Paladinos, de França tãonomeados, que dormiam dentro em seu real paço,como os cavaleiros da guarda dos Católicos, Be-licosos Reis de Portugal. E também foram dozePares, aos quais, sobre as já ditas preminênciasCarlos isentou, que só el-Rei pudesse julgá-los.E de tal favor real que é o toque, antes espertadordos exercícios naqueles tempos gloriosos por di-versos Reinos, veio em tanto uso a ordem dacavalaria, renovando-se segundo em seu princípiotão altamente, que Príncipes e grandes senhores,quais os antigos da Grécia, com o gosto destanovidade (cêvo dos juízos humanos), esquecidosos deleites e vida descansada, inimiga da imortalfama, escolhiam os virtuosos trabalhos, por que sealcança o famoso nome, buscando por estranhasterras perigosas aventuras, donde lhes chamaramCavaleiros de aventuras, em que uns ganharamimortal glória com muita honra, outros mortearrebatada; e muitos eterna infâmia com própriodano segundo for soe em os casos humanos, quede muitos em um propósito e para um mesmofim sai sempre diversos e não cuidados sucedi-mentos. E como o tempo e juntamente as incli-nações dos Reis, de quem as vontades súbditas seregem, atirando ao próprio interesse trazem ascousas, foi caso de extremo no em que Arturreinou, como a ordem dos andantes (que assimtambém se chamaram por andarem de umas emoutras províncias) se estendeu por todas as regiões,favorecida de seus sequazes, tal é sempre a diligên-cia humana em admitir novidades, por cuja me-mória foi necessário ocuparem-se muitos escrito-

res em escreverem seus maravilhosos feitos e pro-ezas, cada um segundo melhor pôde alcançar. Edaqui também procederam diferentes opiniões, fi-cando a verdade suspeita, ou tão escura e confusacomo as histórias que os Gregos encobrem emsuas fábulas. E de muitos volumes que modernosautores trasladaram das Crónicas Inglesas em suamaterna linguagem, nasceu esta confusão, porqueo vulgo tudo nega o crédito que se deve a estatão antiga Ordem, que testificam SigisbertoGálico e Guillielmo de Nangis, escritores latinos;aos quais imitando e seguindo Foroneus, filósofoe Cronista Inglês, desejoso de trazer à luz ascousas que lhe pareceram de mais tomo, compilouum sumário das que passaram em tempos del-ReiSagramor. E começa com tais palavras à letra.Aquele Magno Alexandre, raio que discorreu poro universo, como açoute dos fados, conquistandoa mor parte dele em tão breve tempo que se podedizer antecipar-se o efeito ao desejo e a obra àesperança. Chegando à sepultura do soberboAquiles, disse suspirando: – Bem-aventuradomancebo, que em vida tiveste amigo qual Patrocloe, em morte, pregoeiro qual Homero, desejando,parece, o animoso conquistador outro tal cantorde seus famosos feitos, sabendo que do trabalhodo escritor se colhe a fama do capitão, que poro conseguinte dá lustre à escritura com suas obras,quando são tais. E assim dizia dos próprios, quevia por sua morte fazer-se um grande Epitáfio,entendendo por a sua história que escreveram,dizem, trinta historiadores, aos quais se deve amemória de Alexandre que perecera se lhe faltaraescritor.Querendo eu por tanto com a minha diligência,na sorte de meu génio, inserir o obscuro nome,como liga de metal entre as façanhas dos cavalei-ros andantes que se abalizaram na animosa virtu-de da antiga ordem de cavalaria, dispus-me aotrabalho por que tudo se alcança. Fundado namais alta matéria, que confiado do próprio en-genho, copilando um memorial das notáveis pro-

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ezas dos cavaleiros da segunda távola redonda doimpério del-Rei Sagramor, que teve princípio nofim do del-Rei Artur, primeiro fundador destaOrdem, para o que é necessário a seguinte reso-lução.

CAPÍTULO II

Como el-Rei Artur foi traído porMorderet, seu filho.

Digno é de grande estima o varão que entre osdo seu tempo se abaliza em alguma singular vir-tude e muito mais aqueles que subindo-se emestado, deixam de si gloriosa memória e são au-tores de heróicas obras e aprovados exemplos paraimitação dos sucessores. Destes não é dos somenos,antes um dos mais notados, Artur, filho deVterpadragão, Rei da Grã-Bretanha, que oradizemos Inglaterra, e da Rainha Igerda, sua mu-lher. E por não se certificar ser seu filho, como naverdade o era, o mandava matar, mas por ordemdo sábio Merlin foi criado secretamente. Suce-dendo, pois, falecer Vterpadragão sem deixaroutro filho, salvo uma filha, por nome Morgaina,grande mágica, o povo de Bretanha, por escusardissensões na eleição do Rei, ajuntou-se em umaigreja, pedindo juntamente todos a Deus, commuita devoção, que lhes mostrasse quem fariamrei. Estando assim, de súbito caiu do ar entre elesuma pedra e, dentro dela, metida uma espada, comumas letras de ouro que diziam: “Quem me ar-rancar, será rei”. Lidas as letras e visto o milagre,deram graças a Deus. E desde aí, vindo à expe-riência, começaram os nobres provar sua ventura,mas nenhum pôde tirar a espada. Depois os dopovo, até que chegou Artur, que não conheciam,o qual tirou facilmente a espada da pedra, por oque, sem alguma contradição, foi eleito rei. Ecomo era mui animoso, lançou logo por armas osSaxónios de Inglaterra, que a tinham quase toda

ocupada. Depois conquistou Hibérnia, Flandres,Normandia, Dácia, Turónia, Hictávia, Gasconha egrande parte de França. E sendo por si muiesforçado, procurou que o fossem os seus, por oque de qualquer nação que podia haver algumcavaleiro animoso, o recolhia com largo partido efavor, comendo todos com ele em uma mesaredonda, porque fossem iguais. E quando nãotinha guerra em que os ocupasse, na paz poratalhar à ociosidade, que até no ferro cria ferru-gem, os fazia exercitar-se em diversos exercíciosguerreiros, ordenando justas e torneios, seguindoem tudo (segundo se afirma) o conselho do sábioMerlin. E com ele ordenou e instituiu a Ordemda Távola Redonda, cujos principais preceitoseram trazer contínuo as armas vestidas, por secostumar a sofrer o trabalho delas, cá o costumetudo faz leve; acometer as estranhas aventuras epôr todas suas forças em defender o direito dosfracos contra os poderosos; a ninguém fazer forçanem injúria, pelejar por a própria honra e de seusamigos; não se afrontar uns a outros e por suapátria oferecer as vidas sem temor da morte, es-timando a honra sobre os bens temporais; pornenhum interesse nem afeição faltar de sua pro-messa e verdade, o qual traziam por guias de suasobras, porque as que dela carecem não podem serlustre, nem-se sofrem em espíritos nobres ecavaleirosos falta de palavra. Por o que sempre foientre estes cavaleiros o principal ponto de suacavalaria, serem muito verdadeiros e certos emsuas promessas, com estas Leis que observada-mente guardavam em sua Ordem, foi o nome ReiArtur exalçado pelo universo e tão aumentado oestado que a fortuna, de inveja (parece) nãopodendo já sofrê-lo, ordenou que se ensoberbe-cesse de maneira que não somente negou-o atributo que era obrigado de longos tempos atrásao Império Romano, que lho mandou pedir. Masapresentou batalha ao Cônsul Lúcio e o venceu.E levado desta vitória, determinou conquistarRoma, para o que, passando em Itália com gran-

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de exército, deixou governando Inglaterra Mor-deret, seu filho bastardo, o qual, vendo-se emdignidade real, que adquirida mal, sempre cega,como era homem sagaz, astucioso e atrevido, detal maneira granjeou os Ingleses naturalmente le-vantados que lhes ganhou os corações para secomprometerem e condescenderem em sua ten-ção, que era levantar-se com o Reino. Ao fim doque mandou fortalecê-lo muito, dando asAlcaiderias e Capitanias àqueles de que mais sefiava, mostrando-se a todos afável e companheirona conversação, cêvo grande para penhorar von-tades, fazendo largas mercês que são os grilhõesda liberdade; dando muitas promessas que é oengodo das opiniões humanas, e como lhe pare-ceu que tinha tramada a cousa para vir ao efeitode seu propósito, mandou cartas pelo Reino, emque publicava ser el-Rei Artur, seu pai, morto emuma batalha que tivera com os Romanos. E comoela provera as forças do Reino dos que tinhapenhorados e obrigados, facilmente se apossoudele e foi levantado por rei, com geral consenti-mento. Tanto pode o interesse particular, que nãosomente abate a lealdade devida em lei Divina, eem primor humano mas barata vida, honra etudo, e fia-se da fortuna por negar sua obrigação.

CAPÍTULO III

Da batalha que el-Rei Artur teve comMorderet, seu filho.

Errado fundamento é o dos Reis que, desampa-rando o próprio estado por ir conquistar o alheio,ocasião muitas vezes de perderem ambos ou ga-nhar perpétua infâmia e muito pior fim. Vêem-seno que sucedeu a el-Rei Artur, por pretendersenhorear-se de Itália, onde sabendo logo destelevantamento de seu estado tão injusto e desleal,culpado nos vassalos e condenado no filho, foi-lheforçado deixar sua empresa, perder o desenho de

sua cobiça por acudir à conservação do adquirido,cá não é menos louvado o conservar, que o ad-quirir. Por o que, desapressando Itália, levou seuexército a Inglaterra, onde, entrando, foi recebidodos leais vassalos e informado da determinação dostraidores, os quais como culpados, que entendiamque na sua lança tinham seu remédio, de novo seesforçaram a sustentar Morderet, o qual, como eraanimoso, determinou-se com todo seu bando amorrer ou vencer, para o que lhes fez grandespromessas e mercês e ajuntando o maior exércitoque pôde de gente cavaleirosa e determinada, porlhes tirar o velhacouto de alguma desculpa e des-baratar a esperança do outro remédio, salvo o dasarmas, determinou-se em sair logo ao pai eentregar-se à fortuna de uma batalha, antes que otempo, o arrependimento e outras causas lhe dimi-nuíssem as forças e dessem novo conselho aos seus.Apercebido, pois, do necessário para tão árduaempresa, ordenado seu exército com a devidaordem e repartidas as capitanias por destros capi-tães, antes que movesse o campo, juntos todos,subiu-se em alto e fez-lhe tal fala:– Se eu não tivera (animosos capitães e esforçadoscavaleiros, companheiros meus) vossa cavalariaexperimentada, e por mui segura vossa verdade,não creais que, por opinião própria, concebera aesperança de reinar, dado que, por natureza, se medevia morto meu pai. Nem também se o tiverapor vivo, sou tão cobiçoso de estado que inten-tara levantar-me com ele. Ordenou porém a for-tuna distribuidora dos impérios segundo seu in-tento, que viesse a Inglaterra a falsa fama de suamorte. Era eu seu devido sucessor, acometi apos-sar-me desta sucessão, mais por me sanear defraqueza, que por satisfazer à cobiça. Aprovastesminha justificada tenção. Foi o sucesso contrário,donde éramos inocentes e louvados, ficamos emculpa obrigada à pena, se querermos estar por aque nossos inimigos arbitrarem. Por certo temos,que não hão-de ser piedosos, porque os reis nãocostumam usar misericórdia com aqueles que

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concebem ódio particular. Donde, se determina-mos segurar nossas vidas, não há outro meio, salvoo de nossas forças e espadas. E quando eu con-sidero as cruezas e castigos com que já em seuscorações nos ameaçam, todo perigo por que ospodemos forrar, hei por fácil de vencer.Cá sem comparação é melhor morrer pelejandoque poupar vida para escárnio e vingança devencedores e, doutra parte, se o formos, seguramosnosso descanso e prosperidade e ficamos em possede podermos usar com eles da piedade que lhenão esperamos. Vista, portanto, a má sorte quetemos, se nos vencem, e a boa, se vencermos, queânimo pode haver tão pusilânime que antes nãoescolha morte honrada que vida abatida, a vitóriaoferece grandes prémios, a fraqueza obriga-se agrandes misérias. Se quereis mandar e não servir,a tempo estais para, por vossas mãos, fazer aescolha. De mim, usai de cavaleiro ou capitão, queeste corpo juntamente com a alma se vos oferecepara passar convosco a má ou boa fortuna a queestamos oferecidos.Acabando Morderet esta prática, gritaram todosque desse batalha e nela saberia como vinhamdeterminados a passar antes pela morte que estarà obediência de quem lha pudesse dar. Ouvidapois por Morderet sua determinada oferta, man-dou logo abalar o campo com toda ordem evigilância de bom capitão e, havendo três dias quemarchavam, teve novas como seu pai vinha eestava já duas jornadas dele, para o que ordenousuas batalhas e tudo o que era necessário para daruma tão perigosa, pois el-Rei não estava certodescuidado do que lhe podia suceder. E avisadopor seus corredores e espias de como o filhovinha a ponto, entendeu muito bem o perigodessa contenda. Cá inimigos culpados e determi-nados são dificultosos de vencer, porque antesquerem aventurar perder a vida que padecer acerta pena e dado que el-Rei Artur trazia consigoos cavaleiros da Távola Redonda, estremados nomundo e muitos capitães experimentados nas

guerras de Itália e soldados calejados e habituadosnos trabalhos, como velho sabedor temeu todaviao desleal filho, de que sabia vir muito poderosoe ser animoso cavaleiro e destro capitão; por oque, antes de lhe apresentar a cruel civil batalha,como quem também tinha em pouco a morte equeria passar por ela, antes que sofrer afronta,ordenou suas cousas como católico e prudentepríncipe, mandando e pedindo a todos seus altoshomens e capitães que jurassem por príncipe su-cessor de seus reinos e senhorios Sagramor Cons-tantino, um dos mais estremados cavaleiros dos daTávola, filho de el-Rei Cador, de Cornualha, ecasado com a infanta Seleucia, que el-Rei Arturhouve em Liscanor, filha do conde Sevauo, suaprimeira mulher. Como, pois, Sagramor era detodos amado e conhecido por de real condiçãoe magnânimo espírito, liberal e verdadeiro, comvoluntário e aprazível consentimento o juraram,com o que Artur, satisfeito e descansado por aconfiança que tinha em Sagramor, que não menosacabaria, antes acrescentaria seu estado com vin-gança dos traidores, quando caso fosse que ele anão tomasse por si, logo ali assentou em darbatalha, por o que lhes falou nesta maneira:– Muitas vezes tereis ouvido (amigos, companhei-ros de meus trabalhos) um largo e notável con-selho de que dizem ser primeiro autor o antigoHesíodo, de quem Aristóteles o usurpou e depoisusou Marco Rufo Minúncio, segundo conta TitoLívio, o qual, vendo-se socorrido de Fábio Má-ximo, que a ele e juntamente seu exército salvoude Aníbal, o destruir de todo, conhecida suaobrigação disse aos seus: Aquele é o varão prin-cipal entre todos, que sabe aconselhar e pôr noque cumpre, segundo a necessidade requer e teráo segundo lugar o que tomar e efectuar o bomconselho dos que lho dão e souber conhecê-lo eextremar o homem, porém que nem sabe acon-selhar nem obedecer, tenha-se por de baixo einútil juízo. E por tal também me condenaria euse assim como presumo fazer o ofício de bom

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capitão, que é entender aquilo em que seus ini-migos podem ofendê-lo e sabê-las contraminar,não estivesse pronto a tomar todo bom parecerque se me oferecesse, em dano de nossos contrá-rios. Com este suposto, determino dar batalha aostraidores. Se vos o contrário parece, diga cada umsouto o que entende, cá bem entendo que, paratratar de causas árduas, é necessário carecer deódio, amor, ira e misericórdia. E qualquer destesefeitos abate o juízo. Muito vale a razão, muitopode a vontade e raramente se conformam ondese encontram. De mim vos confesso que quantomenos mereci aos traidores e ao capitão delessê-lo, tanto mais desejo dar-lhe o castigo que taisatrevimentos merecem. De vós bem creio e souseguro que não sofrereis minha afronta, comoaqueles que antes a padecereis, donde eu, confi-ado e certo de tão leais vassalos, hei por mui certaa vitória de meus inimigos e a vingança dostraidores, por o que não tenho mais que vos lem-brar, salvo entregar-vos minha honra e meu esta-do para que mo sustenteis e o logremos de com-panhia e quietação, tomada a satisfação dos quepretendem desinquietar-nos, cá doutra maneiranem a própria vida quero.Estas palavras disse já el-Rei Artur com tal mo-vimento da sua alma que lhe saltaram as lágrimas.Contendiam, parece, em seu peito, o Amor dofilho com a mágoa da traição, porque é mui clarosentir-se muito mais a ingratidão dos que vosdevem amor, que as más obras dos que não vosdevem as boas. Como, pois, os Capitães que oouviram, entendessem esta razão, e todos desejas-sem satisfazer um tal rei, com as melhores palavrasque puderam se lhe comprometeram, que nãohaveria cousa que lhes tolhesse a vitória, sem pri-meiro lhe sacrificarem as vidas, portanto que nãoreceasse, nem dilatasse a batalha, tendo por si ajustiça e juntamente a vontade dos seus para commuito gosto e ânimo morrerem por ele. El-ReiArtur, satisfeito e descansado nesta parte, consul-tou logo em particular a ordem que se havia de

ter em dá-la, por maneira que sendo os camposà vista um doutro, como se tinham as vontadesassim fizeram as obras, e dizem que esta foi umadas porfiadas batalhas que se viram no mundo,em que de ambas partes se pelejou igualmente emorreu a flor da cavalaria de França e Inglaterra.Cá os levantados, sabendo que na própria espadatinham remissão de suas culpas, pelejaram comodesesperados. E os leais, que não sofriam presumirninguém resistir-lhe, tendo eles por si a justiça eopinião, faziam tais maravilhas por onde tudo foisangue e morte entre os nobres, morrendo osprincipais cavaleiros da Távola Redonda e muitoscapitães de ambos os Exércitos, principalmente dode Morderet. O confuso povo, levado da cobiçado despojo que dos vencidos esperava brutamente,baratavam as vidas a troco da leve esperança,embaidor do juízo e toque das condições huma-nas. Sucedendo, pois, na porfiada batalha, estandoem peso e incerta a vitória, toparam-se el-ReiArtur com o traidor Morderet, a tempo que obom Rei via e sentia as mortes da maior e prin-cipal parte de seus leais e destemidos cavaleiros,desestimando a vida. Com esta mágoa e com verMorderet esforçar sua gente tão animosa e des-tramente, que parecia só ele com sua pessoa ocu-par a vitória e suster a batalha, tomou uma grossalança, esquecido o amor do pai com aquela fúriavingativa, cousa raramente vista, e arremeteu aencontrá-lo, pondo as pernas ao cavalo rijamente.O mesmo fez o filho, se o era. Cá muitas vezessão estas culpas da malícia humana mais que danatureza ou da cobiça, que nega a própria e todarazão. Do qual desumano encontro, Morderet fi-cou logo morto no campo, atravessado pelospeitos de uma a outra parte, justa pena de suadesaforada desobediência. E Artur caiu tambémferido muito mal na cabeça, porque Morderet oalcançou com a espada de um golpe alto, que lhecortou o elmo e lhe entrou até ao cérebro. Aca-bado o encontro, de improviso desceu do ar umacarreta grande e de resplendor qual o dos raios

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do sol, que quatro grifos traziam. E em meiodeles, por carreteiro, uma ninfa de extremada for-mosura, cujo vestido parecia arder em fogo e,descendo junto donde Artur jazia desacordado,saíram de dentro dois estranhos selvagens ardendoque o tomaram assim como estava em figura demorto e o meteram na carreta. Após isto, commuita diligência foram discorrendo pelo campoda batalha e onde achavam cavaleiros dos daTávola que ali morreram, como leais vassalos,traziam seu corpo à carreta. Neste entretanto queos selvagens isto faziam sem haver que lhe resistissenem contradissesse, todos os que os viam atónitos,a ninfa com uma voz muito alta e suave, ao somde uma viola de arco, cantava o seguinte romanceque o Cronista aqui quis pôr para que se saibaque neste estilo e por este modo, usaram os pas-sados celebrar seus heróicos feitos, porque a glo-riosa memória deles assim viesse a nossos tempose se conservasse, o que também em Espanha seusou muito e usar-se agora para estímulo de imi-tação não fora mau. E diz a letra:

ROMANCE

Grã-Bretanha deslealao melhor Rei que tiveste,D’agora, té o fim do mundo,chora quanto bem perdeste.

Jaz no campo, entregue à morte,que falsa, ingrata lhe deste,a flor da cavalariacom que te ensoberveceste.

[...]

Em não morreres aqui,ditosa sorte tiveste,Tu, Lançarote do Lago,que as glórias de amor houveste.

De damas servido, amadoda dona a quem mais quiseste,com dano dos traidores,à morte a que te rendeste.

[...]

Enquanto a ninfa cantou este Romance, os sel-vagens recolhiam os mortos notados, estando oscombatentes como pasmados, o que foi feito pelosaber do sábio Merlim, que inda que fosse mortoo deixou assim ordenado. Desta maneira foi leva-do el-Rei Artur à ilha de Avalon, transportadomas vivo, onde deu sepultura aos seus cavaleiros,havendo Bretanha por indigna de lha dar, poispor sua má natureza fora autor de sua morte. Ade Artur ora não se sabe, os Ingleses o têm porvivo e esperam, porque morte não vista é malcrida.

CAPÍTULO VIII

De um mouro espanhol que veio à cortedesafiar os cavaleiros da Távola Redonda

Como ver prósperos os maus em suas malícias, éocasião grande para muitos os seguirem, assim aosbons é espertador de virtudes o ver os que nelaflorescem. Donde os Reis e os príncipes são obri-gados castigar a uns por temor e favorecer aosoutros para imitação. Desta maneira o fazia el-ReiSagramor, castigando traidores, segundo atrásouvistes e, favorecido Fidonflor de Mares na boaempresa que tomou de ir com Guinnénides, doque não deixou pequena inveja mas virtuosa aoscavaleiros da Távola Redonda, cujo desenho con-tínuo era exercitar-se nos tais trabalhos. Poucosdias, porém, passaram que não se vissem neles. Foipois assim, indo el-Rei Sagramor um dia à caça,duas léguas de Londres, com a rainha, damas emuitos nobres, desque caçaram e se recolheram a

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uma fonte que estava junto da estrada, para pas-sarem a festa em sua aprazível estância, ondeEpirantes, Delfim de França, lhe deu um magní-fico banquete, acabado o qual, ficando el-Reisomente com a rainha, damas, senhores e cavalei-ros da Távola, enquanto a outra mais gente sepastava, moveu-se prática em que vieram a dar naantiga Tróia. [...]– Assim é muita verdade – disse el-Rei. – Deonde os Romanos tiveram muita razão em orde-nar prémios para os bons cavaleiros e pena paraos maus, porque nisto consiste o decoro real,premiar cada um segundo seus merecimentos.– Nesta parte – replicou Epirantes –, acho nosRomanos rara e notável observância, porque aHorácio Cocles, que defendeu a ponte, e a MúcioCévola, que queimou a própria mão por errar ogolpe, deram terras da República e a ManlioCapitolino, que salvou o Capitólio dos Francesesque o entravam, deram de seu próprio manti-mento, por consentimento de todos, prémio gran-de segundo a fortuna em que Roma estava. Masdepois, porque inventou traição, do mesmoCapitólio em que ganhara a honra, foi derrubadoe morto, sem terem respeito a seus merecimentos,no que parece que lhe foram ingratos.– Aqui – respondeu el-Rei – antes muito justi-ficados, porque tão devido é o castigo à culpa,quanro (a)o galardão ao merecimento, cá doutramaneira, como nossa natureza seja inconstante, osvantajados por prémios da virtude tendo-se porisentos, podiam cair depois em grandes excessos eserem insofríveis, pois está claro quão facilmentese corrompem os homens impostos em seus de-senhos, como se viu no grande Alexandre feitomonarca e em seus vassalos sucedendo em seusestados, cá se gosto particular ou interesse se atra-vessa à virtude, poucas vezes fica de vitória, parao que a pena é grande freio e pode aguar-se coma moderação, segundo o bom juízo e obrigação.– Mas segundo – disse Epirantes – a boa fortunade cada um, que está nas cousas humanas, vemos

por a mor parte levar a bóia à razão. Já por elae por sua Pátria se ofereceu Pompeu e, tendo acausa tão justificada, foi vencido de César, quetiraniza a República, donde parece que dos efeitoscelestes e força dos planetas procedem nossas obras.– Não é boa opinião essa – respondeu el-Rei–, porque a natureza sempre se encaminha comordem e a bom fim e o juízo humano não écapaz de entendê-la e, assim, as mais das vezes erraem sentenciá-la, donde quando em um particulardesafio sobre alguma cousa for vencido o queparece ter a justiça, cuidai que pode intervir amuita fraqueza a respeito da fortaleza do vence-dor, a que seu esforço dá a razão ou pecadosecreto que lhe tolhe o favor divino. Para suajustificação, David dizia publicar sua culpa. Mas sehouver dois Reis que contendam por sua honra,ambos animosos, e que justifiquem com Deus suacausa, que defendem forçados de sua obrigação,por sem dúvida tenho que sairá vencedor o quepor si tiver a razão; por o que dado que Pompeuvencido a tenha, daremos a culpa aos pecados esoberba da República Romana, antes que notardefeito na justiça divina, a qual tem a cargo nãofaltar onde importa vida, honra e alma e é de crer,portanto, que nunca falta sem justa causa. E queseja verdade sermos movidos das influências celes-tes, que nos imprimem compreensão e inclinação,não creiais que Martes, posto na causa de Escor-pião, domina, e assim dos outros, para que possaforçar-nos e tolher nosso natural distinto do male do bem para o evitar ou seguir, cá o homemnasceu livre, dotado de tal entendimento quecompreende ao mesmo homem, o qual compre-ende tudo e foi-lhe dado para reparo e arma dedefensiva e ofensiva, o livre alvedrio que pacifica,concorda e vence tudo, quando se dispõe paraseguir a bandeira da razão. Donde se diz: Osabedor domina as estrelas e de si mesmo proce-dem também seus defeitos.Nesta prática estava el-Rei Sagramor com os seusquando ouviram uma voz alta e suave de quem

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vinha pela estrada já perto, cantando o seguinteRomance, ao modo Espanhol, com gentil arte edisposição:

Naquela montanha Ideaque a Frodisia frequentava,Páris, aquele pastora quem Enone amava,

Com ela de companhia,as feras bravas caçava.As aves de mil maneiras,armando laços tomava.

[...]

Este romance ouviu el-Rei Sagramor com todasua companhia, porque a voz era alta e retumbavapor entre o espesso arvoredo de um grandesoveral que atravessava a estrada e parecia muitobem aos que ouviam; melhor pareceu, porém, avista do que cantava, que era um aposto cavaleiroque vinha com a viseira levantada, armado deumas ricas armas verdes, em um poderoso cavalomelado, a lança atravessada no arção e, no escudoque dele lhe pendia, em campo verde, uma torrede cujas ameias caía uma fonte com uma letra quedizia:

A fonte de formosura,que nesta torre se encerra,contra amor sustenta guerra.

O cavaleiro, vindo desta maneira e descuidado dedar em tal companhia, enlevado no seu pensa-mento, acabado o romance, deu um grande ge-mido como quem parece tinha de que sentir-se;nisto, sentiu a gente em que veio topar por o que,deixando cair a viseira e informado do primeiroque se lhe ofereceu, mandou dizer a el-Rei queera um aventureiro espanhol que vinha à suacorte com uma determinação forçada, por man-

dado de quem o tinha forçado voluntário, se lhedava licença e seguro real para ir ante ele. O quelhe el-Rei Sagramor logo concedeu. O cavaleiro,com esta resposta, concertou-se na sela e recolheua rédea ao cavalo que à hora se pôs, mostrandoambos uma valorosa ufania e prometendo de situdo o que se lhes esperava; chegando, pois, anteel-Rei, pôs o cavalo os joelhos ambos em terra eo cavaleiro debruçou-se todo sobre a cemelha,desde aí endireitando-se. E o cavalo mui esperto,escarvando a terra a tempos com uma mão, disseassim:– Muito alto e muito poderoso Rei, nascemostodos nesta vida destinados a trabalhos, uns porfortuna, outros por amor, alternando o doce eamargo com diversos efeitos e sucessos, têm-se,parece, ambos conjurados contra o género huma-no. E aquela Deusa Citereia que rege o terceirocéu, tem dele tomado posse que raramente seacha espírito claro, isento de sua jurisdição. E nãosei se está amor sobre o juízo natural, se debaixo,e se o homem se guia ou é guiado, se é destino,se eleição, uns o têm por bom, outros por mau.Eu por mim digo que é um mal doce e um gostotriste que forçado, ou voluntário vos leva sempreao próprio dano, segundo por experiência decada dia vemos, e em mim se prova, cá sendoespanhol, senhor de Pamplona e grã parte doreino de Navarra, irmão de Salinter, rei dela,Amor me traz a Inglaterra oferecido a quantasafrontas passa quem se mete entre seus inimigos,quais somos os mouros dos Cristãos, tudo entendie tudo temi primeiro, o juízo e os temores venceuamor, que quer ser obedecido forçadamente e serecreia em ser servido a maior risco. Eu, porém,tenho por muito leve tudo o que o escravo corpoaventura ou faz por satisfazer a alma, e comodesta o amor se apossou e a ela se deve a vidade ter em pouco o perdê-la, tive que nada faziaem empreender esta jornada por serviço e man-dado da formosa Arindélia, cujo sou, e o comoo vim a ser vos direi, para dizer ao que venho.

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Clearso, senhor de Fonte Rábia, fortaleza no fimde Guipúscoa, ao pé dos montes Pirenéus, é umgigante mui temido por aquelas partes e que temfeito por mar muito dano em terras de Cristãos,indo em um navio apercebido para seus roubos,foi dar na ilha Lípara, uma das Eólidas, em quefez cruel estrago e presa. E neste desbarato cativoua formosa Arindélia, herdeira da ilha, moça dedoze anos, a qual trouxe a Fonte Rábia, onde atem fechada em uma torre que tem somente umajanela alta contra a banda da terra, guardada detoda conversação haverá três anos, não se sabe aque fim, dado que se suspeita criá-la para avender a grande preço ou para seu gosto.Nestes termos do seu conto estava o mouroquando viram vir pela estrada uma estranha aven-tura que fez tal abalo em todos que lhe cortouo fio, com muita razão, a qual vos daremos.

CAPÍTULO XLVIII

Do remate destas festas

[...]Querendo perturbar o gosto desta festa, testificousua grandeza no desastre e grande desaventura comque o aguou, porque no fim do torneio se soube,como vindo dois aventureiros dentro de uma gran-de Águia, traziam consigo dois gigantes por elesvencidos na serra de Sintra com um breve que dizia:– Muito alto e muito poderoso rei, eu sou a famasempre ocupada em vossas imortais obras e nãosatisfeita de as pregoar pelo mundo, muitas vezesme subo ao céu com elas e aconteceu que dandolá novas deste torneio, nas casas do Zodíaco, causoutanta inveja que Pólux e Castor, antigamente dosprimeiros cavaleiros andantes, colocados entre asestrelas por sua alta cavalaria, foram movidos a vosvirem dar mostra dela, com desejos de servirem aoPríncipe, a que se deve servidão e amor, não so-mente dos homens mas das deidades celestes e

descendo na serra de Sintra, acharam estes doisgigantes que se queriam embarcar para Tinácria,com grossa presa, os quais vos oferecem vencidos.Esta era a tenção dos dois aventureiros, os quaisvinham de armas quarteadas de preto e amarelo,com estrelas por elas e no peito um escudo pe-queno em meio do qual traziam pintado o signoGeminis e por cercadura nove estrelas com umaletra que dizia:

Corpo mortal e em tormento,imortal o pensamento.

Por declaração da qual está sabido serem estes doisirmãos filhos de Júpiter, um mortal e outro imortale amando-se ambos em grande extremo, partiramde por meio a imortalidade e se o que sucedeufora entre gentios, parecera prognóstico. Pois sendosua tenção mostrarem a suas damas como nocorpo mortal que tinham para padecerem, por elasas amavam com imortal e puro pensamento, osfados que têm seus limites, tomaram daqui azo quevindo assim os dois aventureiros, dentro da Águia,a qual era armada sobre um batel, deu-lhe o ventoàs que trazia abertas e soçobrou; por maneira queenchendo-se d’água, foi-se ao fundo com todos osque dentro vinham. E dos aventureiros, Cristóvãode Moura foi salvo por um seu criado e Luís daCunha afogou-se. Tinham, parece, aqui as estrelasa soltura da antiga fábula alguns mistérios divinosentendidos só da sua causa que obra tudo e cho-rados de nós, que os padecemos, sem saber nempoder evitá-los, salvo por seu meio, triste descontode gostos humanos contra os quais parecearmar-se o céu de propósito, por que não ponha-mos neles esperanças e foi este um manifesto roubodas Nereidas.[...]

Sabido por Suas Altezas o triste caso, mostraramdele o devido sentimento. El-Rei, naturalmentepiedoso e que de costume e natureza tinha sanear

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com mercês e favor os desgostos e perdas de seusvassalos, por satisfazer em parte o nojo dos paisdo defunto, fez-lhe mercê de duzentos e cinquen-ta mil reais de tença e em dinheiro, quinhentoscruzados, para refazer os gastos feitos e tomou-lheoutro filho para se criar no lugar do irmão, como Príncipe, o qual não foi alheio desta real obra,antes o requerente, mostrando-se muito pesarosode tal desastre, por o que com muita causa são tãoamados os Reis Portugueses de seus leais súbditos,porque sempre recebem deles galardão de seuserviço, vantajado da obrigação. Por modo queeste remate deram os fados ao torneio.[...]Mas, ah, desventura grande!, dor sem remédio,perda tarde ou nunca recompensada, quem po-derá ouvir sem lágrimas o cruel roubo e temerosaconjuração das estrelas contra Portugal, o qualpassava estas perdas com sofrimento, esperandorefazê-las com dobrada vingança na vida do seumagnânimo Príncipe, cuja gentileza, capaz discri-ção, reais condições, divina inclinação, virtuosozelo, humana afabilidade, amoroso tratamentopara com os súbditos e animoso espírito, davamde si confiança e prometiam esperanças de grandesfundamentos! Estes espiou a falsa fortuna contra-minando a prosperidade do povo lusitano, capretendendo o prudentíssimo rei, seu padre,segurá-lo, como no príncipe tinha o particulargosto da conversação de tal filho, que muitoamava e o cuidado público da fortaleza de seusreinos, desejoso de ver fruto de tal planta, forradodos perigos da viciosa mocidade e apurá-lo emvaronis ocupações, mandou-lhe vir sua esposacom que era desposado por palavras de futuro, aesclarecida princesa D. Joana, filha do grandeImperador Carlos quinto. A qual entrada, por sermui notável, as fadas também ali fizeram vente ael-Rei Sagramor, dando-lhe a breve resoluçãoque atrás ouvistes e ali se viu logo o alvoroço comque toda a corte Portuguesa começou aperce-ber-se para festejar este desejado recebimento.

Viu-se a cidade cheia de boninas amarelas dalustrosa libré dos lacaios do duque de Aveiro, adiscreta tenção da cobra surda, o aprazível, galantee custoso aparato com que foi tomar a entregada sereníssima Princesa, para cujo conto haviamister uma mui ociosa e corrente pena, porquena invenção dos reposteiros, no vestido dosmenestréis, na soma da gente custosa, na riquezae primor do fato e na abastança do al, não haviamais que desejar, mas muito que invejar na sober-ba mostra que de si deu a Castela, assim de estadocomo de galantaria e discrição. Após isto, viu-setambém a estranha entrada da Princesa na popu-losa Lisboa, a nova e formosa armada de ricosbarcos com seus toldos, diversas e gentis invençõescom que o cristianíssimo Rei foi passá-la doBarreiro para a cidade em uma caravela toldadatoda de brocado que beijava a água, rica e arti-ficiosamente concertada, tudo em tanta maneira,custoso e galante, que o mesmo Neptuno, rei domar, se quisera mostrar-se com os deuses mari-nhos e todas as Nereidas, não dera sombra a estafamosa entrada. Pois a temerosa bateria de grossostiros, por toda a praia, com que a cidade a rece-beu, foi tão espantosa que competia com a fúriados raios de Vulcano, quando o tronante Júpiterdestruiu com ele os Titãs e não sei qual das deusasinvejosa de tanta majestade, incitou Éolo, rei dosventos, que pretendeu estorvar a passem, movendoos mares como contra Eneias!, com que foi algumtrabalho. Mas Neptuno, conhecendo-se vassalo dorei que senhoreia suas águas, trouxe todas as velassem perigo ao porto, onde a esclarecida Princesase viu em um extremado grau de felicidade,logrando-se com o seu Príncipe, unida em con-versação do que o mesmo Amor teve com a suaamada Psique. Mal cuidava ela então a conjuraçãoe maçada das fadas, as quais, chegando a estepasso, tomaram a cantar lamentosamente, o se-guinte Romance:

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Soberbo está Portugalem sua glória enlevado,Vê-se de um rei sabedormimoso e bem governado.O mundo, tudo anda em guerrasinjustas, mui baralhado:Ele só estava em remansoseguro e mui descansado,Plantando entre os infiéispendões do crucificado,Por capitães animososque os levam por seu mandado.E como Deus de tais obrasfolga ver-se penhorado,Com os olhos em Portugalestá sempre ocupado.E como filho mimosode quem não perde o cuidado,Porque não se ensoberbeçaem se ver tão prosperado:Na força das suas glóriasno tempo mais festejado,Dentre os olhos lhe tiravao seu Príncipe extremado.Vendo no pai paciênciapara ser mais apurado,Dá graças ao criadorinda que desconsolado.A menina que seu amorem flor assim viu cortadoVencida com sofrimentoa dor do Amor encurtado.No peito se abrasa em mágoao rosto mostra esforçado.O coração lhe diziao mal de que era assombrado,Entende, sofre e gemiapadece e maldiz seu fado:A si mesma se esforçava,e fazê-lo era forçado.Por dar esforço e consoloa um pai desconsolado,

E para poupar o frutodo seu amor desejado,Oh animosa Princesaquanto vos fica obrigadoUm Reino que destruídopor vós ficou restaurado.Esforça-te, Portugalpois te vês já melhorado,De um Rei que entre os Reisextremo será chamado.

Este canto entoaram as fadas tão lamentavelmentee doridamente que enterneceu os corações dequantos o ouviram com um lastimoso sentimento,entendendo a morte do desejado Príncipe quesobre todos a linda menina Princesa padeceu como mais alto siso e ânimo que pode ver-se, cá sendoela um raro extremo de virtude e formosura,perdeu em breve e chorou longamente o seuformoso Príncipe, tenro na idade e no Amor, aque se lhe ele sacrificou. Vidas e tudo se devia àgentil Princesa, tudo ela quisera para o amadoPríncipe, a ela e a todos era necessário vivo, elao sentiu, todos o padecemos e como o Amor deambos era igualmente, determinaram as fadas queo pranto que as Ninfas costumavam fazer, cadaano, em memória da morte de Adónis, por a dorde Vénus, esse mesmo se fizesse ante el-ReiSagramor, em figura do que se deve fazer por odesejado Príncipe.[...]

Elegia das Charites

Choremos morto Adónis, ah morreuAdónis o formoso,Amores, ah choraime, pereceuo meu gosto amoroso,doce bem deleitoso,o meu, ah, tenro Amorminha glória e descanso; ah, inda em flor.

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[...]

Tão dorida era a soada que as Charites davam aesta Elegia, que tinha toda a corte imbuída emsentimento. Vénus, banhada em lágrimas da suamágoa, o mostrava tal que enterneceu os Cupidospequenos que consigo trazia, de maneira quetudo era pranto e dor e assim se desvaneceu tudoe desapareceu, deixando uma dorida memória detanta desaventura. Aqui emudece a língua, aquinão se manda pena com outra maior. Os espíritosabafam, a pobre barca do fraco engenho metidoentre vulcões de altas ondas espantosas, em meioda cruel consulta dos fados que transtornaram asesperanças em mágoas, os gostos em tristezas, rotaa vela da linguagem, quebrado o mastro do estiloe perdido o leme da ordem, entrega-se ao pro-fundo silêncio. E por quanto a devida dor e aobrigação do amor causou o divertir-nos algumtanto a história, não é sem propósito, porque tudoa sábia Merlíndia fez vente a el-Rei Sagramor, àmaneira que atrás o ouvistes, a fim de o persuadirque se velasse da sua fortuna, segundo se verá nosegundo Livro que se segue, na perigosa guerraque lhe tramou. Por modo que nisto se resolveuo encantamento que ouvistes.

Acabou-se aos XII dias do mês de Novembro.Ano MDLXVII.

LAUS DEO.

[Aprovação]Vi esta terceira e quarta parte da Chronica dePalmeirim, Autor Diogo Fernandez. E soposto(como é verdade) que os encantamentos & obrasque aquí estão atribuidos a arte magica são fin-gidas, o livro todo não tem cousa alguma contraa nossa santa fe Católica, bons costumes & guardadeles, onde sou de parecer que se pode imprimir& ainda que é cheo de feições imaginadas servede entretenimento do tempo & conforme aoparecer de S. Hieronimo & de Plinio o menornão ha livro tão mao do qual se não possa tiraralgum fruito se as pessoas quiserem aproveitar.Este tem boa lingoagem, boas sentenças, & ensinaserem os homens esforçados, honestos &verdadeiros.

Frei Manoel Coelho.

Terceirae quarta partesda Crónica dePalmeirim deInglaterra *

DIOGO FERNANDES

* Lisboa: Afonso Fernandes, 1587.

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TERCEIRA PARTE

CAPÍTULO PRIMEIRO

Como os principes, que na Ilha Deleitosaestavam o com o Sabio Daliarte, separtiram para seus Reinos

Arrasados estavam os muros de Constantinopla, &os povoadores dela tão justamente sentidos pelaperda & ausencia de seus Principes que nem otempo que tudo consume era poderoso perademinuir a menor parte da tristeza em queviviam; mas em tanto que o Sabio Daliarte lheordenava a maneira da restauração que esperavam,tinha o governo do Imperio Aliando cavaleiroancião, que pela muita confiança que todos deletinham, de comum consentimento foi eleito peraisto, & saio ele tal que ainda que suas obras pro-meteram sempre muito, as que então fazia cadavez eram melhores, & cheas de tanto amor perao povo, de tanto resgardo na justiça & de tantozelo do proveito publico, que não havia a quemdescontentasse. Com tudo isto faltava a todos ocontentamento que a nobreza daquela cortenoutro tempo causava, & os olhos da gente cos-tumados a vista de seus naturais senhores, não sesatisfaziam com nada de quanto viam. A estesdesejos soube acudir Daliarte, & fazendo uma falaa Primalião & Dom Duardos, & aos outrosSenhores, que ja de todo estavam sãos de suasferidas, sobre o que convinha ao remedio de seusestados, com muitas lagrimas de todos os fezdespedir daquelas senhoras que na Ilha estavam &num dia que pera isto acho mais acomodado separtiram do porto dela Primalião & Florendoscom Gridonia & Miraguarda pera Constan-tinopla, Dom Duardos & Flerida com Palmeirim& Polinarda pera Inglaterra, Floriano & Leonardapera o seu Reino de Thracia, & assi todos os maiscom suas molheres pera os seus Reinos. E aindaque lhe era algum tanto grave apartarem-se de

seus filhos que na Ilha ficavam, interessavam tantoem serem nela criados por Daliarte que houverampor bem fazer-lhe a vontade. Dai como o ventoera prospero, & o mar desembaraçado das tor-mentas que pelo inverno correm, em poucotempo chegaram a parte onde por ser as viagensdiferentes lhe foi necesario apartarem-se: assídespedindo-se com a cortesía que antre elles eraordinaria, Dom Duardos com Palmeirim & a suacompanhia tomaram a rota de Inglaterra, Flo-riano a de Thracia, & os outros a das terras deque eram senhores onde brevemente aportaram.Dramusiando pela antigua afeição que a donDuardos tinha quisera acompanha-lo até Ingla-terra, mas ele agardecendo-lhe a vontade quesempre achara certa nas cousas de seu gosto lhonão consintio, porque tambem Daliarte por cujoparecer todas aquelas cousas se meneavam o haviapor escusado, então oferecendo-se com algumaspalavras nascidas da verdade que sempre usara,mandou endereitar pera a Ilha que fora do paide Arlança, onde chegou em poucos dias; &sabida sua vinda os naturais o receberam como aseu senhor verdadeiro, tomando em conta degrande dita serem senhoreados dele, pero que deseu esforço tinham sabido. Primalião que com alembrança do que deixava na Ilha Sepulcro dePrincipes recebia grande pena, acompanhado delae das saudades que a antiga ventura de Grecia lhefazia, navegando com a mór presteza que ser podechegou a vista de Constatinopla em parte quepodendo livremente estender os olhos pola ruinados muros, & o pouco contentamento queaqueles edificios demostravam, não pode tão a seusalvo negar-se a magoa que o coração lheapresentava que pelos olhos lhe não saisse a maiscerta prova dela em grossas & copiosas lagrimasque o justo sentimento daquelas mostras a eles lhetraziam, porem por acodir a Gridonia que coma propria consideração, se desmaiara nos braçosde Florendos, alimpando-as o milhor que pode sefoi a ella & com palavras cheas de esforço a fez

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tornar em si, lembrando-lhe que a fortuna quepela natural mudança com que governa suascousas, decèra a Constantinopla do alto de suasgrandezas a tão abatido estado, da outra volta quecedo daria a tornaria a engrandecer de maneiraque melhorada ainda de mais do que antes tinhaencheria o mundo de sua fama, & o descubertoda terra de seu senhorio & victoria. Com istoalgum tanto animada tornou a alçar os olhos peraa cidade, & arrasando-se-lhes d’agoa cuidavaconsigo se poderia ainda aquela corte, tornar anobreza em que tantos dias estivera: & estendendoas esperanças ao largo punha a confiança emDeos, que como era de crer, ordenaria que pelosfeitos dos donzeis que na Ilha ficavam se restau-rasse a passada gloria de Grecia, pois de tantosperigos os livrara. Aquí porque ja estavam juntodo porto, saio em terra o Sabio Daliarte, &fazendo saber a Aliandro a vinda de seus Prin-cipes, ele a mór pressa fez ajuntar logo oscavaleiros anciãos da cidade, e aconpanhadodeles se foi à praia onde ja Primalião com os maisdesembarcavam. Mas tanto que o viram debru-çados por terra lhe beijaram a mão não semmuita cantidade de lagrimas, que a memoria dosmales porque passaram, & o gosto de o verem sãolhes fazia derramar. Ele com aquela brandura &humanidade que de Palmeirim seu pai herdara, oslevantou com as mãos, dando lugar que chegas-sem a Gridonia & Florendos que com muitogasalhado os receberam. A este tempo chegandocavalos pera eles, & um palafrem murzelo peraGridonia, as fizeram sobir neles, & levando-as deredea Aliandro e Florendos entraram pela parteonde os edificios da cidade desacompanhados dafortaleza dos seus muros começavam, & como emtoda a gente houvesse geral alvoroço, cada um osrecebia, conforme ao que o coração lhe dizia,porque uns lembrando-lhe a morte do Empe-rador, & o cruel destroço que a fortuna naquelescampos mostrara à custa do sangue de tantoscavalleiros & cidadones, com sospiros & lagrimas

punham os olhos neles, como em quem tãogrande quinhão tevera naqueles males, outrosconsiderando a merce que a ventura lhe fizera emguardar aqueles ramos do real tronco de Grecia,a cuja sombra seus passados trabalhos feneceriam,recebiam-os com uma alegria desacostumada,como a verdadeiro fundamento de suas espe-ranças. [...] (1, 1 v, 2)

CAPÍTULO SEGUNDO

Da restauração dos mouros de Constan-tinopla.

Alguns dias tomou Primalião pera entender nosnegocios de seus vassalos até que à rogo deles umdomingo pela manhã depois de ouvir missa, sole-nemente o trouxeram para os paços onde haviade ser jurado por Emperador, que pera esse efeitoestavam ricamente ataviados. E sobido ao thronoImperial acompanhado de todos os grandes deseus senhorios, & do sabio Daliarte que diante lhelevava o estoque, logo aí lhe fizeram as costumadasceremonias, com tanto alvoroço de todos, queninguem havia que como a cousa nacida pera seuremedio com o instrinsico d’alma o não venerasse.O jantar foi como naqueles dias se costuma, & atarde festejada com algumas invenções, com queo povo queria mostrar-lhe o muito que estimavaficar-lhe na vassalagem que aquela manhã lhejurara. Ao outro dia que estava dedicado pera areedificação dos muros fora da cidade, no lugaronde havia de ser a principal porta deles, searmou uma grande tenda tão rica & custosa, quebem parecia haver sido de Albaizar, que era amilhor que no seu exercito veo, & como tal aguardou Pacencio, no dia que a gente popularsaqueou o resto do campo, depois da redadeirabatalha em que todos os Turcos acabaram. Arma-da ela, & dentro um altar com riquísimos orna-mentos saio da igreja maior o Arcebispo em

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pontifical com algumas das reliquias que nelahavia, & em procissão as levou até o altar datenda, acompanhando-o detrás o Emperador, oPrincipe Florendos & Daliarte, com todos osprincipais do povo, que para aquele dia vinhamem trajos d’alegria, mais contentes nas mostras, doque no coração estavam, o Arcebispo com todaa solenidade que ser podia dixe a missa, a queaquelles Principes com os mais estiveram. Acabadaela por não quebrarem o antiquísimo costume deGrecia & das outras respublicas do mundo,Daliarte por sua mão ajuntou a um jugo umavaca & um boi da mesma qualidade que para esseefeito mandara ali trazer, & atando-lhe um aradode bronso, começaram a andar com ele do lugarda tenda para diante, da maneira que com aponta dele ficasse sinalado o circulo, com que osnovos muros em toda haviam de cercar a cidade,& assi foram andando até chegarem a propriaparte donde partiram, mas com resgardo, queonde as portas haviam de ficar, levantavam oarado, passando em claro todo o espaço delas. Enão carecia de razão este custume que a antigui-dade usava, porque como a principal coluna emque o peso da republica se sustenta, é a concordiado povo, & parte dela consista na domestica quie-tação de cada familia, para significação de cadafamilia, para significação dela ajuntavam a umjugo aqueles animais, de cuja parcialidade &mancidão aprendesse cada uma que havia de terem sua casa. Alem disso é o boi de seu naturalconstante amigo da companhia dos de seu reba-nho, & pela salvação dele põem muitas vezes avida em campo: & pelo conseguinte não somentesignifica a firmeza & paciencia que nos comuns& particulares trabalhos deve ter o povo, & aunião & conformidade que dos povoadores deuma mesma cidade se espera, mas ainda mostra aobrigação dos Principes a quem compete, pelaguarda & defensão dos seus arriscarem as vidasquando é necesario. E por isso aqueles primeirosReis que governaram a terra, a divisa de que mais

se prezavam era a de um touro, que como pai deseu rebanho derrama o sangue por ele. Mas tor-nando ao fio de nossa historia, tanto que aquelaceremonia se acabou, o Emperador lançou aprimeira pedra no fundo de um pedaço d’alicerceque junto da tenda estava aberto, & não havendomais que fazer, se tornou com as reliquias aolugar donde as trouxeram, & dai cavalgando serecolheo nos paços. Este foi o princípio dafundação dos muros, que como a traça deles foidada por Daliarte, que daí a poucos dias se tor-nou para a sua ilha, & a brevidade de sua edi-ficação encomendada a Aliandro de quem oEmperador fazia muita conta, em breve temposairam tais, que na maneira & fortaleza quetinham, faziam ventagem a todos os do mundo.Porque além de serem de cantaria, & de tamanhaspedras que parecia impossivel acharem-se outras,as barbacãs & baluartes deles eram fortes. Nãotinham mais de quatro portas formadas ao mododos arcos triunphais Romanos de obra Doricaexcelente com colunas de finos marmores. Noalto de cada porta sobre seus pedestais de jaspeficava uma imagem de alabastro, & de uma banda& doutra em guarda da entrada seu baluartemuito forte. Neles conforme a significação dasimagens estavam as principais partes da cidade, demaneira que na porta que pera o mar ia, ficavaa imagem da fortaleza armada ricamente, & sobreas armas uma sobre vista carmesim, na mão umalança, e aos pés seu nome escrito em ouro. Nosbaluartes desta casa ficava a casa do conselho deguerra, a escola da milicia, & um armazém detodo o genero de armas, com tudo o mais quepertence a elas. Na porta seguinte estava a imagemda prudencia vestida ao modo de Athenas comuma pequena coruja aos pés, e todas as outrasinsignias de Pallas, e nos baluartes a casa do con-selho da paz, e uns ricos paços para os gover-nadores da cidade. A outra porta tinha umaimagem da temperança com umas asas igualmentelevantadas, como Platão pintava a Nemesis, e um

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freio dourado na mão esquerda; nos baluartesdelas havia um rico aposento onde daí em diantese costumaram criar os Principes em quanto eramdonzeis, & junto deste outro pouco menos cus-toso, que era deputado para quatro cavaleirosanciãos, a cujo oficio pertencia olharem pelosbons costumes da cidade, & principalmente pelosmancebos, que pelo fervor da idade tem menosresgardo nos seus. A [redadeira] porta tinha aimagem da justiça vestida ao uso das donzelasGregas, & com uma extraordinaria viveza nosolhos, da maneira que a pintava Chrysippo, numamão uma balança, na outra uma espada, comovulgarmente se pinta. Nos baluartes havia as casasdo juizo, com seus aposentos para os juizes, &oficiais da justiça, tudo tão bem repartido, que emnada havia falta. Diante de cada uma das portasse levantava um alto padrão de marmore Laco-nico com uma grande Cruz encima, & no meiodele dentro de uma tarja, as armas Imperiais deConstantinopla. Enquanto estas obras se faziamentendia o Emperador no concerto & ordem quenas cousas se requeria, & porque na desastradabatalha morrera toda a nobreza daquela corte, ealguns estados, ou a mor parte deles por mortede seus possuidores eram tornados à coroa:daqueles cidadãos escolheu alguns, que por suaspartes lhe pareceram merecedores de seremsenhores deles, fazendo a uns Condes, & Mar-quezes, & a outros Duques, o que foi parte sebrevemente restaurarem os edificios que o geralincendio no dia da redadeira batalha consumira,como mais largamente na segunda parte destacronica se conta. Mas entre todos eles o que maislustro tinha era o castelo da cidade, que situadono alto de um monte, enchia de espanto a quemo olhava, & com isto creciam os espritos à gente,e muito mais com a vista do Emperador, que paramais anima-los saía muitas vezes fora, porquenatural é ao povo com nenhuma cousa tomarmais esforço, e contentamento que com apresença de seu Principe. (2, 2 v, 3)

CAPÍTULO QUARTO

Em que se da conta da razão que houvepara Carmelia ser roubada, & quem era oque a roubou

Refere-se nas cronicas de Grecia que no marAgeo, que pela banda do meio dia bate na costade Thracia, ha muitas e diversas ilhas, entre asoutras que a fama fez mais celebradas, & em umadelas a mais fresca & de milhores povoações,houve naquele tempo um grande Principe tãocruel & desordenado em seus costumes, que alémdo geral aborrecimento que lhe o povo tinha, eleassim mesmo era castigo de suas obras no con-tinuo receio em que vivia. Porem crescendo nelecom uso de seus vicios a natural brutalidade deles,veo enfim a ter alguma parte da paga que comtanta razão lhe era devida, & foi que depois dealguns anos que recebeu por molher a fermosaArgiliana filha de um Rei seu vezinho, lhe trouxeum seu vassalo em presente os filhos de um tigreque achando-os ao atravessar de uma montanhapor serem no extremo fermosos os guardou peraaquele efeito. E como tais os estimava a Rainhatanto que sempre os tinha consigo.Mas como as cousas a que por qualquer via ocoração se afeiçoa, andem sempre no pensamentode quem as ama, andava o de Argiliana tãoocupado nos seus tigres, que oferecendo-lhe naimaginação ao tempo que del Rei concebia, veiodepois a parir um filho monstruoso, que aindaque da cintura pera cima tinha forma humana,dela pera baixo saiu ao tigre em que sua mãeimaginava. Depois de seu parto por muito res-guardo que se pos em encobrir o que nascera,não pode ser tanto que o povo o não sentisse,julgado aquilo mais por um castigo vivo em queas cruezas del Rei andassem no mundo retratadas,que por outra alguma obra da natureza. E naverdade de crer era que tomar a Deos aquelaobra natural da imaginação pera meo de castigar

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publicamente quem com publicas desordensescandalizava seus subditos. Pera remedio disto foimandado Tigririno (que assim poseram nome aomonstro) a um castelo perto da cidade, ficandoArgiliana tão enojada por aquele sucesso, que depuro descontentamento morreu daí a poucos dias.Falecida ela, que por ser geralmente bem quistacom sua presença sossegava tudo, como os seusnão tiveram diante do quem tivessem pejo, logose pos por ordem a morte del Rei: e não tar-dando muito em efeituar-se, um dia que a ocasiãolhe abriu pera isso milhor caminho, saltaram comele de subito em uma camara dos paços, & nãocontentes com lhe tirarem a vida até no corpomorto usaram novos generos de cruezas. E porquedele não ficara por quem a ilha quisesse sergovernada, Eudemio Principe daquela conjuraçãoque então era cavaleiro de muito nome, tomoua posse do Ceptro, & se fez senhor de tudo.Tigririno entre tanto que por quem tinha cui-dado dele, fora informado da morte de seu pai,criava-se com o desejo de vinga-la. E como foide sete anos começou a exercitar-se em todogenero de montaria, em tanta maneira que nãohavia alimaria em todo o bosque que das suasmãos escapasse. E porque os amigos del Rei seupai o visitavam muitas vezes, & o sentiam afei-çoado as armas, trouxeram-lhe muitas com queprovasse suas forças. Assim como foi de idade quepodia ja aventurar-se em qualquer empresa demerecimento via-se favorecido de tantos que cadadia concorriam a servi-lo, que se detreminou dedesapossar Eudemio dos [estados] que seu paiganhara. E com esta tenção fazendo um corpo degente a mais que pode ajuntar-se-lhe, uma noiteque fora da cidade se celebravam umas festas, porcuja causa as portas haviam de estar abertas, deusobre ela a tão bom tempo, que antes de sersentido, se fez senhor dos paços, onde mortas asguardas deles que na mor força do sono estavam,entrou na camara de Eudemio, e sem acharresistencia lhe tirou a vida. E antes que a menhã

viesse, porque o povo vinda ela soubesse o estadoem que estava, tomou o corpo morto & vestindo--o nos proprios trajos que naqueles dias usava, opos atado seguramente sobre um grande cavalo, &aberto de muitas lançadas com as proprias lançasnas feridas o mandou levar a praça com umrotulo nas costas que dizia:

Cruelmente morre, quem cruelmente mata.Como isto veio de subito, & as mostras que de sidava eram cheas de temor, cada um procurava porremediar-se, & parecendo-lhe mais acertadoconselho guardar-se em sua casa, que saira a parteonde pera com gente tão concertada haveria fracaresistencia, não se atreviam a sair às janelas. Peramais segurança o capitão que no castelo estava, eratão afeiçoado em secreto a el Rei Egeraldo, queainda bem não teve [ocasião] quando entregou aschaves dele a Tigririno, prometendo-lhe que muitobrevemente lhe meteria nas mãos todos os quenalguma cousa lhe eram contrarios, pera que nãosomente à sua vontade se se satisfizesse neles, maisainda lhe ficasse mais segura a posse de seu Ceptro.Assim tanto que o castelo & os paços estiveram porTigririno, todos desconfiaram de seu remedio, &querendo com rogos resgatar as vidas que tãoaventuradas tinham, mandavam suas molheres, quecom lagrimas as pedissem, parecendo-lhes que aelas se teria mais respeito, & não acertaram pouco,que a tenção de Tigririno que era por a ferro todaa cousa viva que na cidade achasse, se abrandoucom isto de maneira, que dando publica segurançaa todos, os fez sair de suas casas, & algum tantomenos atemorizados, lançaram-se-lhe aos pés compalavras cheias de magoa, que ainda que no peitodo monstruoso Principe faziam pouco abalomoveram tanto aos seus privados, que alcançaramdele geral misericordia pera todos reservando osque na morte de seu pai alguma culpa tivessem,pera os quais havia tantas espias, que impossivelseria escaparem-se-lhe. Entao fazendo-se jurar porsenhor, começou daí a poucos dias a tiranizar opovo com tantos generos de insultos, que se algum

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bem dantes lhe queriam, logo foi em odioconvertido: & não contente com o dano que davanas vidas & fazendas, assim tratava as honras de seusvassalos, que não havia donzela que parecendo-lhebem a não tomasse a pesar de quem dela cuidadotinha. E continuou tanto nesta desatinada soltura,que ou porque ja não lhe ficava em toda a terraquem com gosto conversasse, ou porque sempre oalheio faz mais cobiça a quem não possui, ordenouuma fusta que daquelas ilhas vezinhas lhe roubasseas mais fermosas, & muitas vezes ia ele a escolhe-las, porque nem dos que milhor o serviam queriaconfiar-se. Porem como entre outras que umroubo que fez, achasse uma que lhe pareceu a maisbela que nunca vira, de maneira se lhe afeiçoou,que entregue todo ao que ela ordenar quisesse, nãoousava em nada ofende-la, todavia crecendo-lhe odesejo com o que nela achava de aspereza, veio aencender-se tanto, que antes que chegasse à suailha, na fusta onde ia quis por força chegar a ella,& como fosse muito delicada, & do mau trato docaminho viesse mal disposta, tanto foi o nojo quecom esta força tomou, que entre os braços delerendeu o spirito. Esta morte de Orisile (que assimse chamava a donzela) causou tamanho desgostono namorado Tigririno, que sendo a maior quenunca recebeu, convertida a dor em indignaçãoblasfemava dos seus falsos deuses, & como se ostevera presentes, com palavras arrogantes osdesafiava. Depois virado para ela, que nos braços atinha, com outras cheias de lagrimas manifestava oque sentia, ate que passado aquele primeiroimpeto em que os nojos fazem pausa, infor-mando-se de quem era, & sabendo ser filha deOnisardo Rei da Ilha dos Ulmeiros donde a eleroubara, dobrou-se-lhe a paixão de todo, & coma força dela fez juramento a alma da desditosaOrisile, que em perpetua lembrança de sua mortelhe sacrificara cada ano uma Princesa, começandopelas mais fermosas do mundo & deixando omesmo encargo aos sucessores de seu estado. [...](4 v, 5, 5 v)

CAPÍTULO OITAVO

Do que aconteceu aos donzeis que pelomar iam, & como foram armados cavalei-ros por uma estranha aventura.

[guiados por Daliarte, os donzeis viajam pelo marEgeu. Ao chegar a terra assistem a uma sequênciafantasmagórica, que involve uma série de deusese personagens mitológicas gregas, após o queDaliarte faz a exegese da visão e lhes dá conse-lhos][...]Os noveis que de tamanho espetaculo espantadosestavam, pondo os olhos em Daliarte não sabiamque lhe dissessem. mas ele que para outro efeitoo fizera, como os sintiu socegados lhes disse destamaneira. Um dos mais seguros meus esforçadosprincipes, que o aviso tem para melhorar-se é aexperiencia que dos perigos alheos lhe fica comque depois saiba governar-se nos proprios. Eainda esta que vos eu agora mostrei tem umaventagem as outras que vos não deveis de ter porpiquena, & é que elas por muito que façam deproveito vem sempre acompanhadas da magoaque os males humanos criam em quem os olha,& esta como é efeituada em pessoas fingidas quenão fazem mais que representa-la, não tem forçapara magoar, & tem a muito grande para avisar--vos. Vistes nela cavaleiros, vistes o esforço comque se combateram, a destreza com que se guar-daram, o animo & acordo com que acabaram, &a voz enfim da fama com que se levantaram. Cadacousa destas pois hoje tomastes a ordem que aosperigos vos obriga é bem que vos seja espelhopara as que ao diante fizerdes. E se assim for nemperdereis a vitoria por covardia, nem por medoda morte deixareis as empresas com que a imor-talidade se ganha. Porque quando por derradeirosocedessem que nas que o tempo chegar a ofere-cer vos perdesseis a vida, tal é a fama que dosanimos generosos fica na terra, que como se os

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resuscitara os traz vivos antre as gentes, perpe-tuando no mundo a lembrança de suas obras, &o preço de seus merecimentos. E ainda que comvosco seja pouco necessaria esta lembrança, não seperde nada nela, porque muitas vezes as cousasvistas aos olhos fazem mor abalo, que as que oentendimento secreatamente ensina. [...] (10, 10v)

CAPÍTULO DÉCIMO QUINTO

Como Palmeirim & Dramusiano aporta-ram a ilha de Tigririno, & do que maissucedeo.[preparativos para o sacrifício de Carmelia]

[...] E aqui os deixa a historia por contar deCarmelia que em poder do gigante ia, que comoo vento fosse por poupa & o navio bom de vela,em menos de muitas horas chegaram à ilha, &desembarcando em terra, logo se foi com eladireito aos paços, & apresentando-a a Tigririno,tanto foi o contentamento que com cobra-larecebeo, que ao gigante que lha trouxe fez mercesmuito grandes, à propria princesa gasalhadosextraordinarios. Ao outro dia porque o sepulchrode Orisile estava ja acabado fazendo tudo prestescom grandissimo aparato em uma rica tumba foitrazido o seu corpo, que até então dentro nacamara real estivera em balsamado. E como omuito que Tigririno quisera, o obrigasse tambema fazer muito, foi tanto o concerto com que todasestas coisas se solenizaram, que em nenhuma partedo mundo poderam milhor fazer-se. O sepulchroera de um marmore branco molhado em partesde umas veas negras que lhe davam muita graça,& cercado à roda de oito piramides da mesma laiaque o acompanhavam. Na frontaria antre umascolunas de uma pedra roxa, de que na ilha haviagrande quantidade, estava em uma traria um vultode Cupido banhado todo em lagrimas com umasletras d’ouro que diziam. Quem no sepulchro jaz

mais lhe merece. Assi depois que nele se encerrouo corpo de Orisile, Tigririno mandou vir logo oque para o sacrificio estava aparelhado. E porqueaquela noite antre sonhos se via num grandeperigo, crendo na vaidade deles fez dous grandesesquadrões, cada um de quinhentos homens, &saindo em suas fieiras, junto de uma ara de mar-more negro se poseram em ordem, & apos elesem companhia dos Principais da ilha veoCarmelia, que para aquele auto vinha vestida deumas roupas de brocado de peso, & com um colarao pescoço de tão ricos diamantes, que quelquerdeles não tinha preço. As mãos trazia atraz presascom um tecido de ouro & seda, & sobre oscabelos que grandes perolas cobriam, uma coroareal de pedraria, que mostrasse à gente quem elaera. E como aidna de pois de tantos trances, nãotivesse perdidas aquelas grandes mostras de suagentileza, não havia quem nela posesse os olhos,que com muito dor os não tirasse, vendo que daía tão pouco sobre uma pedra fria seria degolada,& com enchentes de seu real sangue, fartaria avontade de quem tão cruelmente detreminavasacrifica-la. Detras de tudo vinha Tigririno emumas roupas reais da cor que a sua tristeza con-vinha, & a par dele de uma banda & doutra dousfermosos donzeis vestidos de veludo preto, um dosquais lhe trazia o cutelo, tomado com um panodo mesmo veludo, & o outro em um brazeiro deprata algumas brazas ardendo. Seguiam--se logodous poderosos gigantes armados de ouro &negro, & quatro escudeiros que a Tigririnotraziam as armas. Em ele chegando os esquadrõeslevando a um tempo das espadas bateram comelas nos escudos, & ficando-lhe assi nuas aprincesa foi posta sobre a ara, & em quantoTigririno com uma longa pratica apresentavaaquele serviço a sua Orisile, posto de giolhosdiante da sua sepultura, um daqueles senhores aquem este cargo fora dado, se chegou a Carmeliapara com uma banda de ceda lhe tapar os olhos;& já começavam a faze-lo, subitamente de uma

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parte & doutra ao mór correr de seus cavalosviram vir uns cavaleiros, & não eram tão poucosque não fossem mais de oitenta [....] (44, 44 v)

QUARTA PARTE

CAPÍTULO XLV

De como as Princesas que em Constan-tinopla estavam, foram roubadas por umaaventura.

Ja que aqueles Principes queriam recolher-se,viram outra novidade, que mais os espantou, & foique subitamense se cerrou o àr de maneira, quese não viam uns aos outros, & crecendo cada vezmais a escoridão, & começaram por entr’ele a soarmedonhas invenções de fogo, que com umespantoso roido, parecia abrasar o mundo, & nãofoi tão pequeno o espaço que duro, que nãopasasse uma hora, sendo tanto o medo que emtodos pós, que nem nas Princesas conselho paravaler-se, porque ainda que os seus espiritos naci-dos para maiores cousas, não costumassem des-maiar em nenhum perigo, em que estranhasaventuras os tinham posto muitas vezes, era estatal, & a diferença dela tão fora de todas as outras,que não sómente nos animos das molheres punhareceo, mas até aos mais esforçados se extendia,desfeita a escuridão, por uma larga abertura, queno meo da horta subitamente se fez, saio umgrande carro, cercado em roda de vivas labaredas,tão negras & espantosas que intrinsecamenteentristiciam a quem as olhava, traziam-no doze[ursos] negros & feos, que pela boca & nariceslançavam um fumo espesso, que todo o ár cobria,mesturado com um cheiro d’enxofre tudo tantopara temer, que nenhum dos que o viam ousoulevantarse no alto dele, sobre um throno abrasado

vinha uma moler defunta, que não se sostinha emmais que na sua propria osada, trazia por umatrela de sedas negras uma figura de serpe, com asalas tendidas em alto, & o pescoço levantado comdous corpos de donzelas atravessados na garganta,como quem doutra cousa se não mantinha,abaixo, de uma grossa machina de bronze, demaneira que se agora forma a artelharia, & portodo o espaço do carro, semeadas muitas cobras& víboras, que senão enxergava outra cousa, domDuardos, Vasperaldo, Laudimante, & Primalião,que entre os outros tinham então mais acordo,bem entenderam, que por algum grande dano, eraali vinda aquela aventura, & muito mais quandona testa da senhora do carro, viram umas letrasgrossas, que diziam: Drusia Velona, então para sequer socorrerem às Princesas, foram para levardas espadas, mas aproveitou-lhes pouco, porquenão chegaram bem aos punhos delas, quando damachina de bronze, saio tamanho estrondo, quefora de seu sentido os fez vir todos a terra,obrando o proprio efeito em toda a gente dacidade, que com um subito medo ficoudescordada. Neste comenos a dona do carro,porque ja não havia quem lho impedisse, meteonele a Emperatriz Gridonia com todas as Rainhas& Princesas, que sem sentido estavam, levandocom elas o Infante dom Floridaneo, que noregaço de Carmelia então se achara, como as teveseguras, tomando uma trombeta que a ilhargatrazia, fez com ela um som tão espantoso & triste,que acordando todos os Principes, os acabou deencher da tristeza, que sua vinda causara, &dobrando-se as labaredas & fumo, de que vinhaacompanhada, com grandes bramido dos [ursos],que a traziam, se tornou a meter pela aberturadonde saira, & subitamente com outra novaescuridão como do Principio fora, se foi ajun-tando a terra. Por certo quem então vira oEmperador Primalião, bem duvidara haver neleaquele esforço com que tantas vezes desbaratoutantas afrontas, porque não podendo com a dor,

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que aquele roubo lhe fazia, não era poderoso paramais, que para se ocupar nas lagrimas, com queo coração lhe acodia, pois el Rei Dom Duardos,Palmeirim, Floriano, & Florendos, que em tantosperigos tinham ja provado o esforço, que lhe anatureza dera, aquí o perderam de todo, & maiscom vozes fracas, que com esperitos animososbuscavam o remedio daqueles males, & quandoeles assí estavam, que se pode cuidar dos outrosPrincipes mancebos, se não que ainda quemostrassem alguma mais viveza, era tal o estremodo que sentiam, que os seus corações desacom-panhados de todo do natural vigor com quenasceram, cairam em huma fraqueza tão diferentedo animo, que sempre teveram, que nem sabiam,nem com palavras mostrar o que sentiam, nemcom obras remedear o que tinham visto, & naverdade era tal a força daquele encantamento &tão justa a magoa que do feito dele lhes ficara,que havia pouco que espantar-se os deixou destamaneira. Mas a este tempo entrou pela porta dahorta uma fermosa donzela, vestida de veludopreto guarnecido d’ouro, & acompanhada dedous escudeiros, se veio contra o Emperador, acujos pés posta de giolhos disse em voz alta quetodos ouviam: “Muito alto Emperador, a sabiaMedea minha senhora, beja vossas reais mãos; &vos pede que não tenhais a mal ser a sua partidadesta vossa corte tão apressada, que lhe não deulugar para despedirse de vós & dos Principes &senhores, a quem ela tanto deve, porque como osmales em que agora estais, fosse de qualidade, quepor sua mão não podiam ser remediados, & sealgum tinha, era o que a secreta partida sua lhepodia dar, quis antes fazer o mais necesario, aobem vosso e das Princesas, que roubaram, o quedeter-se com vosco no que importava menos, masagora que ve o aperto, em que estais, vos pede desua parte, que não percais a esperança do remediodas Princesas, ainda que estão em poder, de quemtão pouco bem lhes deseja, como é a sabia Velona,porque ela vos faz saber, que consigo levavam o

mais certo meio de su liberdade, tambem vos avisa,que se algum dos Principes quiser ir busca-las,que vossa alteza & el Rei dom Duardos o nãofaçam, por nenhuma maneira, porque a venturaque trouxe agora este trabalho, trara outro emque vossas presenças sejam assaz necesarias, mas aesse inda depois de muitas dificuldades, da mesmaparte donde agora começa o dano, terá guardadoo sucesso tão prospero, como ela sempre vo loqueria”. Acabadas estas palavras, sem esperar res-posta delas, desapareceo dos olhos de todos, & foisua vinda de tal virtude, que aquela extraordinariatristeza, que por força de encantamento lhe aca-nhava os espiritos, se consumio de maneira, quetornados a seu ser, começaram a tomar conselhosobre o que naquele caso convinha, & porque adetença por ventura poderia fazer muito dano,tomaram assento, que logo ao outro dia se par-tissem todos de dous em dous, tomando cada umdiverso caminho, porque desta maneira, se aquelesucesso tinha algum remedio, como a sabia lhesprometia, por ali melhor, que por outra parte,poderia vir a efeito, & nasceo-lhes isto de enten-derem mal as palavras, que a donzela disseraporque conforme a elas, & ao que depois sucedeo,não servio de nada a partida destes Principes,porque o encantamento de Velona, não podia serdesfeito por eles, antes segundo aponta o chro-nista, de que esta historia se tirou, depois de elescorrerem muitas aventuras tão perigosas comotodas as passadas, em que se viram, chegaram aocastelo das Furias, que assí se chamava o lugaronde Velona escondeo o seu furto, por estarsituado nas entranhas da terra, & ser guardadopor elas, mas por derradeiro sendo vencidas, pelosoutros guardadores deles, seus proprios filhos; queforam os que as Princesas là partiram, alcançaramgeral vitoria de tudo, o que para defenção sua asabia ali posera, & juntos todos vieram finalmenteacudir ao grande perigo em que Constantinoplaestava, depois dos Turcos que sobre ela vieramserem desembarcados em terra, como na outra

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parte desta historia se dirà, que muitas vezesacontece, assí como os males vem sempre emcompanhia doutros succederem os bens demaneira, que apos um venham muitos mayores.[82 v, 83, 83 v]

Os dois últimos textos foram ligeiramentemodernizados para facilitar a leitura, segundo osseguintes critérios: resolução de abreviaturas,separação de palavras segundo o uso moderno,regularização do uso de /v/ (valor consonântico),de /u/i/ (valor vogal), uso de /h/, e os ditongosnasais. Simplificaram-se as consoantes duplas.Respeitou-se quase sempre a ortografia emanteve-se a pontuação do original.

QUINTA PARTE

CAPÍTULO SEGUNDO

Como os Princepes, & cavaleiros que deConstantinopla partiram na demanda dasPrincesas se apartaram por diversos cami-nhos.

Sairam de Constantinopla todos os Principes, &Cavaleiros famosos que no derradeiro capitulo daquarta parte se disse, tão tristes, & magoados peloroubo das Princesas que de nenhuma couza ouinfilice sucesso que lhes viera o puderam ser mais.

Quinta e sextapartes da Crónicade Palmeirimde Inglaterra

BALTAZAR GONÇALVES LOBATO

Crónica dofamoso príncipeDom Clarisol deBretanha [...]

* Lisboa: Jorge Rodrigues, 1602.

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las couza que por muitas rezões é dignissima delouvor, pois sendo assi, não é pequeno o que sevos deve pois em perda & adversidade tão notavelmostrais o animoso de vosos corações.E quantomenos noticia tendes do lugar onde a cruelVellona encerraria a roubada presa [a Emperatrize Princesas arrebatadas] tanto maior louvor sedeve ao sufrimento voso, de sorte que pois emcouza tão incerta de necessidade nos havemos deentregar ao sucesso da ventura o qeu a mi meparece mais acertado é que ois aqui há tantoscaminhos de dous em dous comesemos a seguiro que de nos tem ordenado, porque asi maisfacilmente possamos descobrir o encantamentodas Pricesas por cuja liberdade com tão justarazão devemos de offerecer as vidas (1 v, 2)

CAPÍTULO TERCEIRO

Do que sucedeo ao Princepe Palmeirim, &a el Rei Floriano partidos dos outrosPrincepes.

Andaram tanto os dous animosos irmãos pelocaminho que seguiam, que a horas de vespora seacharam em um deleitoso vale cheo de tantadevirsidade de cheirosas boninas, & arvores gra-ciosas que parecia que nele enthesourara a natu-reza todos seus brincos, & galantarias, & com serdesta sorte se viam nele algumas fontes de cris-talinas agoas que estendendo-se em largos arroiospor todo o vale o faziam em extremo aprazivel:não faltavam aqui grande cantidade de melrospintasirgos, & outras aves de todas as sortes queoccupando-se nos frescos ramos das arvores dequando em quando baixavam a lograr-se dasagoas daquelas fontes banhando-se nelas tão se-guramente que a quem os vira causara não pe-queno contentamento. Com tudo não sucedia assiao Principe Palmeirim antes acrescentando-se-lhecom a suave armonia dos pasarinhos as saudades

Com tudo em quem esta dor fazia maior forçaera nos novos desposados, porque como no diaque esperavam receber o galardão de seus traba-lhos se imaginasem tão longe da satisfação delespois quem lha podia dar que eram as Princesassuas senhoras, estavam em parte para eles en-cuberta a consideração destas cousas era bastan-temente poderosa para tal efeito. Pois se neles istoacontecia não pasava muito ao contrario noPrincipe Palmeirim de Inglaterra, Florendos elRei Floriano, & nos mais Reis, & Princepescazados porque como todos cazasem por amorestinham ainda tão verdes, as raizes da verdadeiraafeição que as suas senhoras tinham como nosprimeiros dias de seus amores de sorte que comotodos na dor, & tristeza iam conformes assitambem nas devizas com que saiam deConstantinopla se conformaram com o tempoque lhes viera, porque armados todos de armasnegras mostravam nos escudos as tristes devisassignificadoras do mal que os atromentava dasquais em seu lugar se fara menção. E dado casoque todos geralmente mostrasem o devido senti-mento de tão grande perda so no Principe DomDuardos se enxergava uma desacostumada tristezatão diferente de todos os outros quanto tambemsua afeição era maior que todas as do mundo.Desta sorte partiram de Constantinopla, & comotodos fossem armados daquela triste cor, & comtão tristes devisas é certo que moveram a grandecompaixão a quem os vira. Não teriam andadoespaço de uma legeoa quando chegaram a umaparte onde o caminho que levavam se devedia emmuitos. Aqui o gram Palmeirim de Inglaterra aquem entre todos os outros se tinha mais respeitotomando as redeas ao cavalo comesou assi. Se ascousas vallerozos Principes secedessem sempreprosperas, & favoraveis aos homens, não faria omundo expiriencia da grandeza e generosidadede animos que a muitos comunicou a natureza.Digo isto porque nas adversidades se conhece aconstancia com que o varão esforçado sabe sofre-

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da sua Polinarda vieram em fim a fundir tantoque metido na imaginação delas nem ele sabiapor onde caminhava nem lhe ficava acordo peraguiar o cavalo. Por certo quem vira este extremode afeição tivera bem de que espantar-se porqueia depois de tantos anos haver logrado a fer-mosura da princesa Polinarda parecia cousa justaque o tempo consumidor de todas as cousas tiveseapagado parte do amor com que nos dias de seustrabalhos a servia, cousa que nele acontecia muitoao contrario antes era tamanha ainda sua afeiçãocomo sempre fora, & na verdade onde o amor égrande ordinariamente tem estes efeitos, que sãoa mais verdadeira mostra de sua perfeição, pois elRei Floriano ainda que de principio fosse tãocontrario de se someter a cuidados desta sortedepois que casou com a Rainha Leonarda pareceque o proprio amor por tomar verdadeira vin-gança de sua isensão obrou nele com tanta forçaseus efeitos que pudera neste particular fazerventagem aos mais namorados de seu tempo &como assi fosse com pouco mais sentido que oprincipe Palmeirim de quando em quando guiavao cavalo que apartado algumas vezes do caminhose metia pelo mais fundo daquele espaçoso vale.Desta sorte caminharão tanto que lhes sobre veoanoite, & como quem queria apartar-se de todoo povoado determinados estavam a pasa-la nocampo se a esta hora que ja de todo cerrava nãoouviram grande tropel de cavaleiros que nãomuito longe por outra parte faziam seu caminho[...] (2 v, 3)

CAPÍTULO QUARTO

Do que succedeo ao Principe DomDuardos, & Primalião despois que dosoutros se apartaram.

Com Tão crecida magoa, & sentimento, como lhesfazia ter o roubo das Princesas suas espozas, se

apartaram de todos os mais Principes aquellesdous estremos de humano esforço Dom Duardos,& Primalião: cujas armas, & divizas bem davam aentender a extraordinaria tristeza que os acom-panhava [...][... os cavaleiros encontram um carro a arder, compinturas e motes]

Apos o fogo vou ardendo em fogoPor alcançar, o fim de minha magoaMas não alcanço fogo, alcanço agoa. [3, 3 v]

CAPÍTULO DÉCIMO

Como estando o principe Florendos, & elRei Floramão em notavel perigo da vidaforam socorridos por dous cavaleiros.

[...]

No fim destas infructuosas jornadas, um dia ahoras de vespora ouviram soar o mar & comoaqueles que não desejavam cousa mais que acharalguma embarcação em que saissem do imperio,tendo por mal empregado todo o tempo quenele gastassem, se foram contra a praia. Aí chega-dos viram que de uma grande fusta que noproprio tempo encorara em terra, saiam atecorenta cavaleiros armados de ricas & lustrosasarmas, entre os quaes apareciam quatro Gigantesde demasiada grandeza. Estes vendo que na pri-meira desembarcação achavam logo emquem co-meçassem à executar o rigor de suas tenções,houveram aquele principio por venturoso agourodo que pretendiam fazer naquele imperio. Estive-ram devagar vendo a segurança com que eles osolhavam, & notando as armas que eram de umlizo aço negro, os escudos tinham da propriasorte. Eram as devisas bem conformes à cor dasarmas, porque o principe Florendos tinha no seu

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debuxadas umas ondas azuis brandas & saudosasfeitas à imitação das do Tejo & dezia a letra

São do mar, mas de amar vemque nestas ondas queixosasvem as lembranças saudosasdo desterro do meu bem. [14][...]

SEXTA PARTE.[Lamento de Vasperaldo pela perda de Gridónia,a quem crê morta]

CAPÍTULO VIGÉSIMO

Do que sucedeo ao Principe Vasperaldopartido de Constantinopla

Armado das negras armas que a sabia Medea lhemandara, saío de Constantinopla o valeroso Prin-cipe Vasperaldo tam desacompanhado de humanacompanhia, como acompanhado de grande tris-teza, & tormento que a lembrança de sua Gri-donia lhe causava. Caminhou tudo o que da noiteestava por passar por alongar-se da corte, & ja atempo que o fermoso planeta com a claridade deseus resplandecentes rayos começava alegrar aque-les campos por onde caminhava, se achou em umapraya, onde vio ancorado um pequeno vergantimsem pessoa alguma que o guardasse, pareceo-lhebom aparelho para o que determinava que eraentregar-se ao successo que a ventura lhe quisesseordenar, pois de nenhuma cousa humana tinha jaque esperar morta sua senhora Gridonia. Julgavaque para mostrar o muito que na vida lhe quisera,tinha obrigação de apartar-se de todo o comer-cio, & conversação das gentes, & fazer aspera, &solitaria vida, até que Deos fosse servido de lhetirar a sua. Com este preposito, apeando-se docavalo saltou no vergantim, não foi necessario

aparta-lo ele de terra que ao momento se engol-fou com tamanha velocidade como aquele queera guiado pelo saber de Medea. Aqui o PrincipeVasperaldo lançado de bruços no vergantim acre-centando-lhe o rogido das ondas que quebravamnele a dôr que o acompanhava, com os olhoscheos de lagrimas, & profundissimos soluços queafogavam de todo as palavras, assi começou adizer. Ay de ti Principe Vasperaldo mais sem ven-tura que todos os nacidos, que sorte foi a tua tãoinfelice, & desditosa que assi te apartou eterna-mente da companhia da tua amada Gridonia. Aytriste como não se me acaba a vida com a lem-brança deste nome: Gridonia se lá neste supremo,& alto assento a onde subistes, se permitte alembrança do verdadeiro amor com que do vossoVasperaldo fostes sempre tratada considerai oscrueis tormentos a que me tem oferecido aausencia de vossa vista. Lembrei-vos senhora quenenhuma cousa mais sinto que não poder acom-panhar-vos na morte com a alma, como com estemiseravel corpo o fiz na vida. Com estas palavrase outras muitas com que podera magoar a quemo ouvira, passou alguns dias [...] [31]

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B I B L I O G R A F I AS U M Á R I A

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Edições utilizadas:

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1.ª edição: Morais, Francisco de. Cronica do famoso y

muito esforçado cavalleiro Palmeirim Dinglaterra, filho del

Rey dõ Duardos: no qual se cõtam suas proezas y de Floriano

do deserto seu hirmão: y algu~as do principe Florendos filho

de Primaliam. Évora: André de Burgos, 1567.

Vasconcelos, Jorge Ferreira de. Memorial das Proe-zas da Segunda Távola Redonda. Jorge Ferreira deVasconcelos. Ed. conforme a de 1567. Prefácio,actualização, transcrição e notas de João Palma-Ferreira. Porto: Lello Editores, 1998.

1.ª edição: Vasconcelos, Jorge Ferreira de. Memorial das

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