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XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências 13 a 17 de julho de 2008 USP São Paulo, Brasil ROMANTISMO: O MITO DO AMOR IMPOSSÍVEL Profa. Doutoranda Maria de Lourdes da Conceição Cunha (UPM) Resumo: Diversos mitos dão o amor como impedido e irrealizado, transformando-se em histórias de amores suicidas ou destinados a um desfecho trágico. Orfeu e Eurídice, Cêix e Alcione, Píramo e Tisbe são símbolos do amor incompreendido e levado ao extremo da existência. Na literatura romântica, muitos autores escolheram o amor e seus conflitos como assunto primordial de seus romances, como é o caso de Isabel e Álvaro, em O guarani de José de Alencar, que são impossibilitados de viverem o amor descoberto tardiamente, sendo a morte a única forma de união dos dois apaixonados. Em Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco, o afeto de Simão por Teresa, e vice-versa, é genuíno, mas impedido pelos interesses familiares e sociais. O duelo pela conquista da felicidade plena, exige força sobre humana frente às provações que são impostas aos pares amorosos e, muitas vezes, a união de duas almas gêmeas só é possível por meio da morte, início de uma nova vida sem conflitos terrenos. Palavras-chave: Romantismo, O guarani, Amor de perdição, Mito, Amor. Introdução Muitos amores impossíveis e destinados ao assassinato, ao suicídio, ou a outras formas de catástrofes, foram amplamente explorados na literatura romântica, em que os autores escolhiam o amor e seus conflitos como assunto primordial de seus romances. Em O banquete de Platão, o Amor, segundo a sábia Diotima, é um daimon, um gênio que serve de mediador entre os homens e os deuses. Por sua vez, em A república, Eros, deus do Amor, vem associado à tirania dos sentidos, marcando-se por interferir na parcela sensual da alma e, em Fedro, há dois discursos sobre o Amor: o Amor é um jogo deplorável, um mal e/ou uma possessão divina, um jogo sagrado. No entanto, é por esse Amor tão complexo e difícil que a alma humana atinge a soberana beleza e encontra seu caminho, pois ele é, segundo Platão, uma força estimuladora para o homem e o faz caminhar em busca de si próprio e de sua verdadeira natureza. 1 Amor e Mito Enquanto Eros, tirano, nos escraviza às paixões, o Amor platônico não é repressor, mas faz o homem procurar saber o que é esse amor que, posteriormente, o Romantismo irá exaltar, por exemplo, através dos folhetins. No século XII, o amor romântico, caracterizava-se como amar o amor mesmo que para isso fosse preciso sofrer até a morte. O sentimento amoroso torna-se uma crença, que se mantém viva na busca da felicidade plena, a exaltação do bem estar que possibilita a vida e perpetua o mito do amor. Metáforas do potencial do ser humano, os mitos propiciam a criação de símbolos pela psique e, a partir deles, podem ser explicadas as imagens desenvolvidas por meio dos símbolos fixados, desde a infância, na mente do indivíduo. Portanto, ao viver o mito, o indivíduo deixa-se impregnar pela atmosfera e pelo poder sagrado, por meio dos entes sobrenaturais, dos deuses e dos heróis, passando, muitas vezes, da experiência cotidiana para uma experiência religiosa. Ao evocar a presença dessas personagens míticas, o indivíduo torna-se parte delas e deixa de viver em um tempo cronológico, para existir

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XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências

13 a 17 de julho de 2008 USP – São Paulo, Brasil

ROMANTISMO: O MITO DO AMOR IMPOSSÍVEL

Profa. Doutoranda Maria de Lourdes da Conceição Cunha (UPM)

Resumo: Diversos mitos dão o amor como impedido e irrealizado, transformando-se em histórias de amores suicidas ou destinados a um desfecho trágico. Orfeu e Eurídice, Cêix e Alcione, Píramo e Tisbe são símbolos do amor incompreendido e levado ao extremo da existência. Na literatura romântica, muitos autores escolheram o amor e seus conflitos como assunto primordial de seus romances, como é o caso de Isabel e Álvaro, em O guarani de José de Alencar, que são impossibilitados de viverem o amor descoberto tardiamente, sendo a morte a única forma de união dos dois apaixonados. Em Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco, o afeto de Simão por Teresa, e vice-versa, é genuíno, mas impedido pelos interesses familiares e sociais. O duelo pela conquista da felicidade plena, exige força sobre humana frente às provações que são impostas aos pares amorosos e, muitas vezes, a união de duas almas gêmeas só é possível por meio da morte, início de uma nova vida sem conflitos terrenos.

Palavras-chave: Romantismo, O guarani, Amor de perdição, Mito, Amor.

Introdução Muitos amores impossíveis e destinados ao assassinato, ao suicídio, ou a outras formas de

catástrofes, foram amplamente explorados na literatura romântica, em que os autores escolhiam o amor e seus conflitos como assunto primordial de seus romances.

Em O banquete de Platão, o Amor, segundo a sábia Diotima, é um daimon, um gênio que serve de mediador entre os homens e os deuses. Por sua vez, em A república, Eros, deus do Amor, vem associado à tirania dos sentidos, marcando-se por interferir na parcela sensual da alma e, em Fedro, há dois discursos sobre o Amor: o Amor é um jogo deplorável, um mal e/ou uma possessão divina, um jogo sagrado.

No entanto, é por esse Amor tão complexo e difícil que a alma humana atinge a soberana beleza e encontra seu caminho, pois ele é, segundo Platão, uma força estimuladora para o homem e o faz caminhar em busca de si próprio e de sua verdadeira natureza.

1 Amor e Mito

Enquanto Eros, tirano, nos escraviza às paixões, o Amor platônico não é repressor, mas faz o homem procurar saber o que é esse amor que, posteriormente, o Romantismo irá exaltar, por exemplo, através dos folhetins.

No século XII, o amor romântico, caracterizava-se como amar o amor mesmo que para isso fosse preciso sofrer até a morte. O sentimento amoroso torna-se uma crença, que se mantém viva na busca da felicidade plena, a exaltação do bem estar que possibilita a vida e perpetua o mito do amor.

Metáforas do potencial do ser humano, os mitos propiciam a criação de símbolos pela psique e, a partir deles, podem ser explicadas as imagens desenvolvidas por meio dos símbolos fixados, desde a infância, na mente do indivíduo.

Portanto, ao viver o mito, o indivíduo deixa-se impregnar pela atmosfera e pelo poder sagrado, por meio dos entes sobrenaturais, dos deuses e dos heróis, passando, muitas vezes, da experiência cotidiana para uma experiência religiosa. Ao evocar a presença dessas personagens míticas, o indivíduo torna-se parte delas e deixa de viver em um tempo cronológico, para existir

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13 a 17 de julho de 2008 USP – São Paulo, Brasil

num tempo primordial, pois ao reviver esse momento, passa a reintegrá-lo e a reaprender as suas lições.

Essa fuga do tempo cronológico está ligada à angústia do homem moderno, que tem plena consciência da sua trajetória para a morte e o nada. O mundo físico, tal como a experiência humana, está constituído pela temporalidade e, por isso, não é absoluto, depende do tempo, que cria e destrói o mundo e suas experiências sendo, portanto, ilusório e passageiro.

A importância do mito está na possibilidade que este oferece ao homem de ultrapassar os seus próprios limites e condicionamentos, e incitando-o a elevar-se e juntar-se aos seus ancestrais.

A partir desse princípio, podemos entender a função dos rituais, que permitem ao indivíduo a rememorização, a reatualização e a possibilidade de repetir o que os deuses, os heróis e os ances-trais fizeram e, assim, conhecer os mitos significa descobrir a origem do mundo e de si mesmo.

Nas sociedades modernas, certos romances apresentam suas personagens e temas relacionados aos heróis mitológicos, e, a partir deles, o leitor envolve-se e, ao ler o romance, vive um tempo transcendente ao seu próprio tempo histórico e pessoal, mergulhando no imaginário ou recuperando um passado longínquo, a sua origem. Assim, o mito nunca desaparece por completo, pois ele se insinua através dos sonhos, fantasias e nostalgias do homem e da mulher modernos.

Os mitos revivem os sentimentos, a imaginação coletiva da humanidade, e, acima de tudo, as imagens suscitadas pelo emprego do mito, serão o caminho perfeito para a captação do público lei-tor sedento de novidades e de sentido para as agruras do cotidiano. Neste momento, o mito deixa de ser apenas história acerca dos deuses, para se tornar uma forma de pensar e de conscientizar.

Numa época, ou num autor específico, apresentam-se temas que se eternizam e atribuem aos mitos uma certa evolução sociocultural, surgindo temas novos (novos mitos) que são acrescidos aos já envelhecidos pelo uso (e abuso) dos séculos.

Tomar os mitos como imagens ou representações, os quais têm a força de resistir, graças à moldura que os formou e aos valores que instituíram, é acentuar o traço de permanência ou de uma sacralidade que desafia o tempo.

Desse modo, diversos mitos dão o amor como impedido e irrealizado, transformando-se em histórias de amores suicidas, como é o caso de Orfeu e Eurídice.

Logo após o casamento de Orfeu e Eurídice, ela, durante uma caminhada pelo campo, foi picada por uma serpente venenosa. Sua morte causou em Orfeu um desespero imenso que o fez, desorientado pela dor, descer ao reino da Morte decidido a trazer Eurídice de volta ao seu convívio.

Chegado ao mundo subterrâneo, Orfeu começou a tocar lindamente sua lira, encantando com seu som todos que lá se encontravam. Assim, não havia como recusar algo a Orfeu e, então, decidiram devolver-lhe a amada, mediante uma condição: no retorno à superfície terrestre, ela o seguiria de perto, no entanto, ele só poderia vê-la depois que saísse do mundo dos mortos.

Orfeu resistiu sem olhar para trás durante todo o percurso, mas ao perceber que estavam chegando ao fim do caminho, ele virou-se para trás, para constatar que ela o seguia de perto, porém, como Erídice ainda estava dentro da caverna, descumpriu-se a obrigação. Ele estendeu-lhe os braços numa tentativa desesperada de retê-la, mas ela deslizou de volta para o mundo das trevas, dizendo um triste "Adeus".

Orfeu renunciou ao convívio dos homens e caminhando pelos ermos selvagens da Trácia, buscava conforto em sua lira, até ser atacado por um bando de Mênades enfurecidas que o trucidaram. Sua cabeça desfigurada foi lançada ao rio Hebro, terminando a trajetória na praia de Lesbos, onde as Musas a encontraram e enterraram no santuário da ilha.

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Outro caso de amor impossível é a história de Cêix e Alcíone que, segundo Ovídio, amavam-

se imensamente e não gostavam de verem-se separados. Um dia ele decidiu deixá-la para fazer uma longa viagem através dos mares para consultar o oráculo. Alcíone encheu-se de dor e de medo e Cêix, como não admitia a idéia de que a mulher compartilhasse com ele os perigos da viagem, partiu sem ela.

Em meio à viagem, uma terrível tempestade desabou sobre o mar, provocando o naufrágio da embarcação de Cêix, que desapareceu completamente. Enquanto isso, Alcione contava os dias e, como sequer imaginava a morte de seu amado, ela tecia-lhe uma roupa para que ele usasse em seu retorno, sempre orando aos deuses pela segurança dele. Juno comoveu-se com tamanho amor e convocou a mensageira Íris para que fosse até a casa de Somnus, solicitando-lhe que enviasse à esposa de Cêix um sonho por meio do qual ela ficaria consciente do que ocorrera ao marido.

O Deus do Sono, despertando seu filho Morfeu, transmitiu-lhe as ordens de Juno e ele voou até encontrar-se junto à cama de Alcíone. Assumindo o rosto e a forma de Cêix, Morfeu revelou a ela o que tinha ocorrido a Cêix. Ao acordar, Alcíone, convencida de que o marido falecera, desejou morrer também e, ao raiar o dia, ela foi à praia e viu que algo se aproximava: era o cadáver de Cêix. Correndo, ela lançou-se às águas e, ganhando asas e um corpo coberto de penas, transformou-se em um pássaro de grito triste. Os deuses fizeram o mesmo a Cêix, que veio juntar-se a ela.

2 Amores Impossíveis Na literatura romântica brasileira, um dos principais assuntos dos romances era o amor e os

conflitos que resultavam de situações que dificultavam a plena felicidade dos pares amorosos. Percorrendo caminhos tortuosos para encontrar a felicidade plena, heróis e heroínas românticos enfrentavam os mais diversos obstáculos impostos pela moral burguesa. Porém, esse duelo exige força sobre-humana e, muitas vezes, a união de duas almas gêmeas só é possível por meio da morte.

Caso exemplar encontra-se em O guarani, de José de Alencar, quando Álvaro é atingido mortalmente em combate: Isabel alimenta-se da morte, torna-se uma noiva do túmulo que se prepara para o casamento com a morte, envolve-se em uma nuvem de incensos e, alucinada, beija seu amado. A purificação se dá na morte que assegura a união dos dois noivos do sepulcro, o que nos remete à lembrança a poesia o Noivado do Sepulcro de Soares Passos:

Vai alta a lua! na mansão da morte Já meia-noite com vagar soou; Que paz tranqüila; dos vaivéns da sorte Só tem descanso quem ali baixou. Que paz tranqüila!... mas eis longe, ao longe Funérea campa com fragor rangeu; Branco fantasma semelhante a um monge, D'entre os sepulcros a cabeça ergueu. (...) Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto Olhou em roda... não achou ninguém... Por entre as campas, arrastando o manto, Com lentos passos caminhou além. Chegando perto duma cruz alçada, Que entre ciprestes alvejava ao fim, Parou, sentou-se e com a voz magoada Os ecos tristes acordou assim: "Mulher formosa, que adorei na vida, "E que na tumba não cessei d'amar,

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"Por que atraiçoas, desleal, mentida, "O amor eterno que te ouvi jurar? (...) Porém mais tarde, quando foi volvido Das sepulturas o gelado pó, Dois esqueletos, um ao outro unido, Foram achados num sepulcro só. (Moisés, 1985, p. 250, 251)

Em O guarani, como uma Julieta, na mansão da morte em que o forte de D. Antônio de Mariz se transformou, Isabel, isolada, vê-se sem seu amor eterno jurado em suas lacrimosas palavras. Suspiros de uma paixão cruel ecoavam no peito que batia por Álvaro e o desaparecimento dele faz Isabel desistir de viver num mundo em que a luz do amor se extinguiu.

Percebe-se claramente que as duas personagens de O guarani, Isabel e Álvaro, como as de Soares Passos ou Shakespeare, conseguem unir-se em um mesmo destino fatal: princípio de uma nova jornada sem enfrentamentos terrenos.

Outro caso de amor impossível célebre está na obra de Camilo Castelo Branco, Amor de perdição, a qual nos apresenta Teresa de Albuquerque como uma mulher inteligente, calma e firme em seus propósitos e, embora se mantenha presa ao compromisso de obediência à autoridade paterna, é movida por princípios de fidelidade ao grande amor descoberto muito cedo, mas verdadeiro e eterno.

O amor de Simão por Teresa, e vice-versa, é genuíno, natural, na busca esperançosa pela liberdade do sentimento amoroso. Optando pela fidelidade amorosa, Teresa acaba substituindo os interesses familiares e sociais e, desse modo, inicia o processo de despedaçamento de seu mundo. É sua força que surpreende ao longo da narrativa, pois de personagem convencional, moça angelical e indefesa num mundo de maldades e rivalidades, transforma-se numa personalidade de caráter determinado, mesmo sendo sua única saída a morte.

Espelha-se, neste romance, o mito de Píramo e Tisbe, jovens imensamente apaixonados, que viviam na Babilônia. Vivendo lado a lado, uma vez que moravam em casas geminadas, havendo em suas paredes uma fenda através da qual os dois se comunicavam, declarando o amor que alimentavam a cada dia e, antes de dormirem, beijavam a parede como se osculassem os lábios um do outro.

Porém, a situação tornava-se insuportável em proporção ao amor que sentiam. O sentimento não permitia mais a separação e Píramo e Tisbe resolveram fugir, atravessando a cidade em direção ao campo, único lugar em que poderiam viver livres da repressão familiar e unidos no amor infindável.

Para tal façanha se realizar, acertaram de se encontrarem no Túmulo do Nilo, ao pé de imensa amoreira de frutos brancos que ali havia. Tisbe, aproveitando-se da escuridão, saiu sorrateiramente de casa e caminhou em direção ao local marcado.

Como Píramo ainda não havia chegado, ela aguardava ansiosa pelo momento em que poderiam finalmente ficar juntos quando surgiu uma leoa com a mandíbula ensangüentada e sedenta. O animal aproximou-se da fonte para saciar a sede e Tisbe, desesperada de medo, correu procurando um lugar seguro, no entanto, no percurso, deixou cair a capa que trazia aos ombros. A leoa pegou a capa e brincando fez dela um monte de trapos.

Tranqüilamente, Píramo aproximou-se do ponto de encontro e, ao chegar lá, vendo a capa de Tisbe toda ensangüentada, concluiu que ela estava morta. Píramo ergueu os restos da capa e, depois de beijá-la várias vezes, dirigiu-se até a amoreira, pegou sua espada, cravou-a no coração, atingindo os jatos de sangue os frutos da árvore, que ganharam a cor vermelho-escuro imediatamente.

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Algum tempo depois, Tisbe voltou até a amoreira, mas não conseguia encontrá-la, pois não

havia nenhuma árvore de frutos brancos. Olhando ao redor, ela notou algo se mexendo no chão ao pé da amoreira de frutos vermelhos e reconheceu seu amado Píramo, agonizando em meio a uma imensidão de sangue.

Píramo entreabriu os olhos e Tisbe o tomou nos braços, beijando-lhe os lábios pela última vez. Nesse instante, a jovem viu espada usada por ele e, deduzindo tudo o que ocorrera, cravou a mesma espada no coração. Assim, os jovens apaixonados eternizaram o amor que não se concretizou em vida, ficando unidos eternamente, ma vez que suas cinzas foram guardadas numa única urna.

Há forte indício de que a história de Shakespeare, Romeu e Julieta (1595), em que Capuletos e Montéquios impedem a realização amorosa dos dois jovens, tenha raízes no mito de Píramo e Tisbe, embora, segundo alguns, Shakespeare tenha buscado elementos para seu texto no poema de Arthur Brooke, 1562; outros, no entanto, afirmam que a tragédia de Luigi Groto, La Hadriana, teria sido a fonte de inspiração do bardo. Porém, não se pode negar que o mito de Píramo e Tisbe esteja fortemente presente na obra de Shakespeare sendo os desfechos extremamente similares, embora Píramo não tenha visto Tisbe morta, mas tenha aparentemente encontrado evidências de sua morte.

Nesse mesmo percurso, Camilo Castelo Branco, fazendo em Amor de perdição, uma releitura de Shakespeare, apoiou-se também na história de Píramo e Tisbe. A frágil Tereza de Amor de perdição, típica heroína romântica, vê-se obrigada a cumprir as ordens do pai, mas obstinada e apaixonada, luta para não se casar com o primo Baltazar Coutinho, troca cartas com Simão, e enclausura-se num convento, na esperança de justiça divina, refletindo sobre as injustiças que lhe são impostas em função dos preconceitos da época.

Dor e prazer confundem-se nas mentes das personagens nos autores românticos citados, em Shakespeare, ou nos mitos. O amar satisfaz a alma, mas faz sofrer a razão. Assim, as personagens femininas se entregam a amores arruinados desde o princípio, mas, movidas pelo sentimentalismo, característica que norteia a visão do romântico, seja na poesia, seja na prosa de ficção, desejam que o amor se concretize, mesmo que para isso seja necessário morrer e transferir para a eternidade da vida a perenidade do amor.

Suspiros de uma paixão cruel ecoavam no peito dos amantes e em suas vidas fadadas de negações. A uma vida dessas só caberia um fim para que pudesse haver um recomeço: a morte, início de uma nova vida sem conflitos terrenos.

Conclusão Essas paixões desmedidas e ilimitadas e os sentimentos conflituosos que as envolvem,

apresentam-se como impedimentos ao triunfo do amor em vida. Logo, busca-se a eternidade do sentimento na morte. Esse é o amor ideal, verdadeiro, ilimitado, louvado pelos românticos.

Nesta visão trágica do mundo, encontram-se fundidas vida e morte, ascensão e decadência da pretensa realização de desejos. Aceitar um sentimento com tantas forças contrárias é, também, acatar a infelicidade e a admissão trágica da morte decorre como transcendência deste sentimento.

O amor grande motivo humano, mesmo para aqueles que estão alheios a esta consideração, tem seu aspecto de loucura, que escapa a qualquer consideração teórica. Esse mesmo amor vive na morte e vencê-la já não interessa mais às mulheres apaixonadas, nossas heroínas, uma vez que a morte eterniza esse verdadeiro amor que jamais será substituído.

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