Upload
buicong
View
240
Download
7
Embed Size (px)
Citation preview
Formação de qualidade na
Enfermagem para o
cuidado e a cidadania
Rosa Maria Godoy Serpa da Fonseca
Curitiba, 29 de agosto de 2016
Ruth Rocha1994
Ilustrações de Walter Ono
Naquele tempo eu até que
achava natural que as coisas
fossem daquele jeito. Eu
nem desconfiava que
existissem lugares muito
diferentes...
Eu ia para a escola todos os
dias de manhã e, quando
chegava, logo, logo eu tinha
que me meter no vidro.
É, no vidro!
Cada menino ou menina
tinha um vidro e o vidro não
dependia do tamanho de
cada um, não!
O vidro dependia da classe em que a gente
estudava. Se você estava no primeiro ano ganhava
um vidro de um tamanho. Se você fosse do
segundo ano seu vidro era um pouquinho maior. E
assim, os vidros iam crescendo à medida em que
você ia passando de ano.
Se não passasse de
ano era um horror. Você
tinha que usar o mesmo
vidro do ano passado.
Coubesse ou não
coubesse. Aliás nunca
ninguém se preocupou
em saber se a gente
cabia nos vidros. (...)
As meninas ganhavam vidros menores que os meninos. Ninguém queria
saber se elas estavam crescendo depressa, se não cabiam nos vidros,
se respiravam direito...
A gente só podia respirar direito na hora do recreio ou na aula de
educação física. Mas aí a gente já estava desesperado, de tanto ficar
preso e começava a correr, a gritar, a bater uns nos outros.
As meninas, coitadas, nem tiravam os vidros no recreio. E na aula de
educação física elas ficavam atrapalhadas, não estavam acostumadas a
ficarem livres, não tinham jeito nenhum para educação física. (...)
Uma vez um colega
meu disse para a
professora que
existem lugares
onde as escolas não
usam vidro nenhum,
e as crianças podem
crescer à vontade.
Então a professora
respondeu que era
mentira, que isso era
conversa de
comunista.
Uma vez, veio para a minha escola um menino que parece
que era favelado, carente, essas coisas que as pessoas
dizem pra não dizer que é pobre.
Aí não tinha vidro pra botar esse menino.
Então os
professores
acharam que não
fazia mal não, já
que ele não
pagava a escola
mesmo...
Então o Firuli, ele se chamava
Firuli, começou a assistir as
aulas sem estar dentro do
vidro.
O engraçado é que o Firuli
desenhava melhor que
qualquer um, o Firuli respondia
perguntas mais depressa que
os outros, o Firuli era muito
mais engraçado... E os
professores não gostavam
nada disso... Afinal, o Firuli
podia ser um mau exemplo pra
nós...
E nós morríamos de inveja dele, que ficava no bem-bom, de
perna esticada, quando queria ele espreguiçava e até mesmo
gozava com a cara da gente que vivia preso.
Então um dia um menino da
minha classe falou que
também não ia entrar no
vidro.
Dona Demência, a
professora, ficou furiosa,
deu um coque nele e ele
acabou tendo que se meter
no vidro, como qualquer um.
Mas no dia seguinte duas
meninas resolveram que
não iam entrar no vidro
também:
- Se o Firuli pode, por que é
que nós não podemos?
Mas Dona
Demência não era
sopa. Deu um
coque em cada
uma e lá se foram
elas, cada uma pro
seu vidro...
No outro dia a
coisa tinha
engrossado.
Já tinha oito
meninos que não
queriam saber de
entrar nos vidros. Dona Demência perdeu a paciência e mandou chamar seu
Hermenegildo que era o diretor lá da escola.
Seu Hermenegildo
chegou muito
desconfiado:
- Aposto que essa
rebelião foi fomentada
pelo Firuli. É um perigo
esse tipo de gente aqui
na escola. Um perigo!
A gente não sabia o que
queria dizer fomentada,
mas entendeu muito bem
que ele estava falando
mal do Firuli.
E seu Hermenegildo não
conversou mais. Começou
a pegar as meninos um por
um e enfiar à força nos
vidros.
Mas nós estávamos loucos
para sair também, e pra
cada um que ele conseguia
enfiar dentro do vidro, já
tinha dois fora.
E todo mundo começou a correr do seu Hermenegildo, que
era pra ele não pegar a gente. E na correria começamos a
derrubar os vidros. E quebramos um vidro, depois
quebramos outro e outro mais.
Dona Demência já estava
na janela gritando:
-SOCORRO! VÂNDALOS!
BÁRBAROS! (pra ela
bárbaro era xingação).
- Chamem os Bombeiros,
o exército da Salvação, a
Polícia Feminina...
Os professores das outras classes mandaram cada um, um
aluno para ver o que estava acontecendo. E quando os
alunos voltaram e contaram a farra que estava na 6° série
todo mundo ficou assanhado e começou a sair dos vidros.
Na pressa de sair
começaram a esbarrar
uns nos outros e os
vidros começaram a cair
e a quebrar.
Foi um custo botar
ordem na escola e o
diretor achou melhor
mandar todo mundo pra
casa, que era pra pensar
num castigo bem
grande, pro dia seguinte.
Então eles descobriram
que a maior parte dos
vidros estava quebrada e
que ia ficar muito caro
comprar aquela vidraria
tudo de novo.
Diante disso, seu
Hermenegildo pensou um
pocadinho e começou a
contar pra todo mundo que
em outros lugares tinha
umas escolas que não
usavam vidro nem nada e
que dava bem certo, as
crianças gostavam muito
mais.
E que de agora em
diante ia ser assim:
nada de vidro, cada
um podia se esticar um
bocadinho, não
precisava ficar duro
nem nada e que a
escola agora ia ser
diferente (…)
Depois aconteceram
muitas coisas, que um
dia eu ainda vou
contar...
FIM!!!
E o que tem isto a ver com
enfermagem, cuidado, cidadania,
formação???
O que é cuidado?
Os significados do cuidado• “Primeiro: atitude de relação amorosa, suave, amigável,
harmoniosa e protetora da realidade, pessoal, social e
ambiental (...) mão aberta que se estende para a carícia
essencial, para o aperto de mãos, dedos que se entrelaçam
com outros dedos para formar uma aliança de cooperação e
união de forças. É o contrário da mão fechada e do punho
fechado para submeter e dominar o outro.
• Segundo: todo tipo de preocupação, inquietude,
desassossego, mal estar e até medo por pessoas e
realidades com as quais estamos afetivamente implicados e
que por isto nos são preciosas. Este tipo de cuidado nos
acompanha em cada momento e em cada fase da nossa
vida. É implicar-se com as situações e com as pessoas. Elas
nos trazem cuidados e nos fazem viver o cuidado essencial.
• Terceiro: o cuidado é a vivência da relação entre
a necessidade de ser cuidado e a vontade e
predisposição para cuidar, criando um conjunto de
apoios e proteções que fazem possível esta
relação indissociável no nível pessoal, social e
com todos os seres vivos.
• Quarto: cuidado-precaução e cuidado-prevenção
se referem àquelas atitudes e comportamentos
que devem ser evitados por suas conseqüências
daninhas previsíveis (prevenção) e imprevisíveis,
que são devidas às vezes à insegurança dos
dados científicos e ao imprevisível dos efeitos
prejudiciais ao sistema vida e ao sistema Terra
(precaução). (Boff, 2002)
Ainda o cuidado...
“Um constructo filosófico, uma
categoria com a qual se quer
designar simultaneamente, uma
compreensão filosófica e uma
atitude prática frente ao sentido
que as ações de saúde adquirem
nas diversas situações em que se
reclama uma ação terapêutica,
isto é, uma interação entre dois ou
mais sujeitos visando o alívio de
um sofrimento ou o alcance de um
bem-estar, sempre mediada por
saberes especificamente voltados
para essa finalidade” (Ayres, 2004)
Cuidado de enfermagem
“O ato de cuidar desvela o existencial, de
onde derivam sentimentos, atitudes e
ações, como vontades, desejos,
inclinações e impulsos, ou seja, o homem
perante o mundo, os outros, e a si
mesmo. Compreender o valor do
cuidado de enfermagem requer uma
concepção ética que contemple a vida
como um bem valioso em si, começando
pela valorização da própria vida para
respeitar a do outro, em sua
complexidade, suas escolhas, inclusive a
escolha da enfermagem como profissão.”(Souza et al, 2005)
Cuidado prevenção
O que é
cidadania
• Origem etimológica no latim
civitas, que significa
“cidade”
• Estabelece um estatuto de
pertencimento de um
indivíduo a uma
comunidade politicamente
articulada – um país – e que
lhe atribui um conjunto de
direitos e obrigações, sob
vigência de uma
constituição
• Cidadania formal
(pertencimento)
• Cidadania substantiva
(posse de direitos civis,
políticos e sociais)
“Cidadão não é apenas aquele que vota, mas aquela
pessoa que tem meios para exercer o voto de forma
consciente e participativa. Portanto, cidadania é a
condição de acesso aos direitos sociais (educação,
saúde, segurança, previdência) e econômicos (salário
justo, emprego) que permite
que o cidadão possa
desenvolver as
suas potencialidades,
incluindo a de participar
de forma ativa, organizada
e consciente, da construção
da vida coletiva no Estado
democrático”. (Bonavides et al, 2009)
Direitos humanos e cidadania
Se considerarmos que cidadania é o direito de participação
na sociedade e que para seu efetivo exercício o cidadão
deve ser resguardado de direitos básicos, tais como a vida,
a moradia, a educação, a informação, dentre outros e
considerando que estes direitos são direitos básicos de
qualquer ser humano,
podemos concluir
que a violação de
direitos humanos
redunda em prejuízo
ao exercício
da cidadania”. Costa Melo
[acesso ago 2016]
“Cidadania implica em vivência em sociedade, na
construção de relações, na consciência e reivindicação
dos direitos, e também no cumprimento dos deveres. Isto
não se aprende com teorias, mas na luta diária e
principalmente com a educação de qualidade, grande
propulsora para que o indivíduo possa desenvolver suas
potencialidades e conscientizar-se de seu papel social que
pode e deve fazer diferença na construção de uma
sociedade mais justa, livre e solidária”. Costa Melo [acesso
ago,2016]
Finalidade da educação
“Paulo Freire entendia que a contribuição a ser trazida
pelo educador à sociedade haveria de ser uma educação
crítica e criticizadora; uma educação que tentasse a
passagem da transitividade ingênua à transitividade
crítica.(...) uma educação para a
decisão, para a responsabilidade
social e política.
Educação que colocasse educador
e educando em diálogo constante
com o outro, que o predispusesse a
constantes revisões, pois democracia
implica mudança.” (Silva, 2000)
Um sopro de
realidade na
filosofia
Quem cuida? Como cuida?
Por que cuida? Quem cuida,
se cuida?Para que
cuida?
Formação em enfermagem:
cenário atual
• De 2001 a 2011- crescimento exponencial de cursos,
vagas, ingressantes, inscritos e concluintes nos cursos de
graduação em enfermagem no Brasil. (Censo Educação
Superior. Teixeira et al, 2013)
• Prova do ENADE 2010 - notas 1 e 2 (43%); nota 3 (36%);
notas 4 e 5 (21%)
• Privatização; expansão de cursos noturnos;
implementação de cursos a distância (Teixeira et al, 2013)
• Mudança paradigmática com crise tecnoassistencial (Silva;
Sena, 2008)
• Desarticulação teórico-prática (dificuldade de integração
com os campos de prática)
• dificuldade em integrar teoria e prática na
formação. A realidade permanece distante e
estranha às condições de vida e saúde em que
se apresenta a clientela objeto da assistência.
• há um grande gap entre a compreensão da
realidade e as possibilidades de prestação da
assistência aos que compõem esta realidade –
os cidadãos – dificultando sobremaneira a
compreensão e a prestação do cuidado como
essência, missão e vocação da enfermagem.
(Fonseca et al, 2016)
• Tudo isto faz com que a formação de
enfermagem dificulte a conquista da cidadania
• O propósito da formação para o cuidado deve ser tornar a sociedade a mais democrática possível, porém muitas relações de cuidado não são relações de igualdade.
• Há algumas realidades que desafiam as instituições sociais e políticas vinculadas ao cuidado.
• Uma delas é a iniqüidade de gênero existente na concepção de cuidado como responsabilidade e tarefas das mulheres.
• A equipe de enfermagem é predominantemente feminina, sendo composta por 84,6% de mulheres. No nível superior, esta percentagem sobe para 96%
• Como as demais mulheres, as enfermeiras sofrem preconceitos e são alvos das estereotipias de gênero que se transformam em desigualdades. Nos campos de prática são subalternizadas em relação a gênero, classe e saber, principalmente à medicina.
• A formação não contempla o recorte de gênero nas relações sociais e na determinação do processo de produção do cuidado
Desigualdades de gênero
vinculadas ao ato de cuidar
• quando não é considerada a diferença política entre o
cuidado necessário (quando a pessoa não pode fazer por
si e precisa de ajuda, como crianças, doentes e idosos) e
o de serviços (aquele que a pessoa pode fazer, mas
escolhe não fazê-lo, como as tarefas domésticas, higiene,
limpeza);
• quando o cuidado é visto como uma mercadoria, na qual
mulheres, em geral, das classes subalternas, prestam
serviços em condições de sub-cidadania
• quando existem dualismos entre quem oferta e quem
recebe cuidados, encobrindo as vulnerabilidades tanto de
quem cuida como de que é cuidado.
A politicidade do cuidado na
perspectiva de gênero
• O cuidado generificado pode ser emancipador quando ele
visar à interação entre dois sujeitos revestidos de poder,
independente da situação de autonomia de cada um diante
das suas necessidades e carecimentos. Trata-se de
substituir relações de dominação por relações de poder
com equidade.
• Considerar a autonomia das mulheres como condição
inerente à equidade de gênero pode resgatar a politicidade
do cuidado pois cuidar transforma tanto quem cuida como
quem é cuidado, inclusive no que tange às construções da
masculinidade como da feminilidade.
• Ao rever e superar sua situação de subalternidade as
enfermeiras e a enfermagem podem efetivamente constituir
elementos de transformação social
O que pode quebrar
os vidros na escola?
• É preciso repensar a educação dos nossos jovens para o
trabalho de enfermagem, na perspectiva da integralidade
entre as dimensões das competências (saber-saber, saber-
fazer e saber-ser).
• É preciso investir mais na dimensão do saber-ser- ético-
profissional das competências, estimulando a formação e a
reprodução de atitudes e valores inerentes ao cuidado e à
cidadania
• É urgente repensar a educação em enfermagem com base
na captação, interpretação e intervenção na realidade na
perspectiva das categorias sociais (classe social, gênero,
geração, raça-etnia), para o reconhecimento e valorização
das diferenças, assim como para o reconhecimento e
enfrentamento das desigualdades e iniqüidades.
• Ultrapassar a finalidade do educar meramente técnico em
enfermagem para o educar para o cuidado emancipador
com finalidade de transformar a enfermagem, a
sociedade, as pessoas e a vida.
• Estimular a formação de enfermagem para além do
horizonte das escolas, ajudando os jovens a buscar
outros espaços de aquisição, produção e reprodução do
conhecimento para inseri-los cada vez mais na realidade.
• Estimular a participação em espaços associativos para
estimular e exercitar a condição de cidadãos da pólis,
para homens e mulheres, independente de classe, raça-
etnia e geração.
• Compreender as relações sociais no contexto da
epistemologia de gênero que busca a igualdade de poder
entre mulheres e homens, homens e homens e mulheres
e mulheres, no contexto da equidade de gênero.
• Compreender as relações sociais entre educadores e
educandos nas perspectivas intra e intergeracionais
compreendendo a juventude como categoria sociológica
que tem potencialidade para a transformação social
• Adotar a premissa básica de que cuidado e cidadania
mantêm uma relação dialética intermediada por relações
de poder estabelecidas entre pessoas concretas, numa
sociedade concreta - histórica e socialmente determinada
- que se encontra em constante transformação
• Compreender que na enfermagem (como em outras
áreas profissionais) cada ação encontra-se imbuída de
politicidade e tem potência para transformar o mundo e a
sociedade.
Referências
• Silva KL, Sena RR Integralidade do cuidado na saúde: indicações a
partir da formação do enfermeiro. Rev Esc Enferm USP, 2008;
42(1):48-56
• Brasil Escola. O que é cidadania. Disponível em
http://brasilescola.uol.com.br/sociologia/cidadania-ou-estadania.htm
• Bonavides, Paulo; Miranda, Jorge; Agra, Walber de Moura.
Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Editora
Forense, 2009. p.7
• Freire, Paulo. Política e Educação, Cortez, 1993.
• Freire, P. Educação como prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1967
• Costa Melo, Getúlio. Evolução histórica do conceito de cidadania e a
Declaração Universal dos Direitos do Homem. Âmbito Jurídico [cited
ago 2016]
• Silva, Edvaneide Barbosa da. Educação como prática da liberdade.
Rev. Bras. Educ. [online]. 2000, (14):180-186 [cited ago 2016]
• Boff, Leonardo. O cuidado essencial. Disponível em
http://www.leonardoboff.com/site/vista/2001-2002/cuidado-ess.htm
• Ayres, JRCM. Care and reconstruction in healthcare practices, Interface -
Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.73-92, set.2003-fev.2004.
• Pires, MRM; Fonseca, RMGS, Padilla, B. A politicidade do cuidado na crítica
aos estereótipos de gênero. Rev Bras Enf 2016. 69(6).
• Boff, Leonardo. Que significa propiamente “cuidado”?
• Gonçalvez AS. A ecopedagogia do cuidado em Leonardo Boff.
Protestantismo em Revista, 2015, 39:49
• Tronto JC. Assistência democrática e democracias assistenciais. Soc.
Estado. 2007 [cited 2016 Aug 9]; 22(2) 285-308.
• Mota FF. Joan C. Tronto. Caring democracy: Markets, equality, and justice.
Revista Brasileira de Ciência Política. 2015. [cited 2016 aug 9]; s/v(18):317-
22.
• Souza ML, Sartor VVB, Padilha MICS, Prado ML – O cuidado em
enfermagem – uma aproximação teórica Texto Contexto Enferm 2005;
14(2):266-70
• Teixeira E, Fernandes JD, Andrade AC, Silva KL, Rocha MEMO, Lima RJO.
Panorama dos cursos de Graduação em Enfermagem no Brasil na década
das Diretrizes Curriculares Nacionais. Rev Bras Enferm. 2013;66(esp):102-
10.