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Rosalvo - Religião e Capitalismo

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Filosofia, Ludwig Feuerbach, Karl Marx

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RELIGIÃO E CAPITALISMO uma reflexão a partir de Feuerbach e Marx

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PQNTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATQLICA DO RIO GRANDE DO SUL

CHANCELER - Dom Dadeus Grings REITOR - Ir. Norberto Francisco Rauch CONSELHO EDITORIAL

Antoninho Muza Naime Antonio Mario Pascual Bianchi Délcia Enricone Jayme Paviani Luiz Antônio de Assis Brasil e Silva Regina Zilberman Telmo Berthold Urbano Zilles (Presidente) Vera Lúcia Strube de Lima

Diretor da EDIPUCRS - Antoninho Muza Naime

EDIPUCRS Av. Ipiranga, 6681 - Prédio 33

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www. pucrs.br/edipucrs/

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Rosalvo Schutz

RELIGIAO E CAPITALISMO uma reflexão a partir de Feuerbach e Marx

Coleção: FILOSOFIA - 126

'i EUIPUCRS

PORTO ALEGRE 2001

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O Copyright de EDIPUCRS

S396r Schutz, Rosalvo

Religião e capitalismo : uma reflexão a partir de Feuerbach e Marx / Rosalvo Schutz. - Porto Alegre : EDIPUCRS, 200 1.

184p. - (Coleção Filosofia ; 126)

ISBN: 85-7430-207-4

1. Filosofia Política 2. Capitalismo - Aspectos Re- ligiosos 3. Capitalismo - Filosofia 4. Feuerbach, Lu- dwig - Crítica e Interpretação 5. Marx, Karl - Crítica e Interpretação I. Título 11. Série

CDD 330.15 320.01 190

Ficha catalográfica elaborada pelo Setor de Processamento Técnico da BC-PUCRS Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a autorização ex- pressa desta Editora

Capa: Carolina W . Campos Diagramação: Isabel Cristina Pereira Lemos Revisão: O Autor Impressão: Gráfica EPECÊ, com filmes fornecidos Coordenador da Coleção: Dr. Urbano Zilles

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Para Cristiane.

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Agradecimentos

ao professor Hans Georg Flickinger por sua generosidade intelectual;

a sociedade brasileira, que por meio da CAPES, financiou este período de estudos e pesquisas;

"A primeira vista, a mercadoria parece ser coisa trivial, evidente.

Analisando-a, vê-se que ela e uma coisa muito mais complicada,

cheia de sutilezas metafísicas e manhas teo- lógicas ."

Karl Marx, O Capital.

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I - IMPORTÂNCIA DA CRÍTICA DA RELIGIÃO DE FEUER- BACHPARAMARX 1 17

1 - Indícios de uma analogia / 17 2 - A estrutura da crítica à religião em Feuerbach / 19

I1 - UM EXPERIMENTO DE MARX: A UTILIZAÇÃO DO INS- TRUMENTAL FEUERBACHIANO NA ANÁLISE DA REALI- DADE SOCIAL BURGUESA / 3 1

1 - Emancipação política e emancipação humana / 32 2 - A crítica da religião como fundamento de toda a crítica / 51 3 - Crítica à filosofia hegeliana, como critica à sociedade bur- guesa liberal I 68

111 - RADICALIZAÇÃO DA CRÍTICA NA REALIDADE ECO- NÔMICA / 83

1 - O aparecer da realidade econômica: as descobertas da Eco- nomia Política / 85 2 - Lucro do capital 1 101 3 - A descoberta do trabalho alienado: resultado da crítica à economia política / 114

IV - PERDA E REDESCOBERTA DO HOMEM NO INTERIOR DA ESTRUTURA DE ALIENAÇÃO CAPITALISTA 1 133

1 - Perda do homem no interior da propriedade privada capita- lista / 133

1.1 - A propriedade privada capitalista / 133 1.2 - Uma manifestação específica da propriedade privada capitalista: o dinheiro / 143

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2 - Redescoberta do homem no interior da propriedade privada capitalista / 148

2.1 - Propriedade privada e comunismo / 152 2.2 - Necessidade, produção e divisão do trabalho / 165

BIBLIOGRAFIA / 183

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O capitalismo é atualmente o modo de produção hegemô- nico no mundo. Sua lógica e suas exigências aparecem como se fossem expressão de uma naturalidade necessária e inevitável. Este trabalho é uma tentativa de compreensão desta suposta fatalidade necessária e de algumas possibilidades de sua superação. Feuer- bach e Marx são os autores nos quais buscaremos nos fundamentar.

Feuerbach, ao criticar a alienação religiosa, delineou uma estrutura crítica muito convincente. Segundo ele, somente o ser humano, por suas características peculiares, enquanto ser genérico, pode ter religião. Sendo que a religião é possibilitada pelo não re- conhecimento desta essência genérica como sendo sua. Por isto, quando o ser humano reconhecer os atributos religiosos como sen- do seus estará se libertando de um estranhamento produzido por ele mesmo.

Marx apropriou-se desta estrutura crítica e, a partir dela, desmistificou outras estruturas de alienação. Isto lhe permitiu com- preender com muita profundidade a estrutura social burguesa, o di- nheiro e a própria filosofia hegeliana. A medida que Marx foi apro- fundando esta crítica, a dimensão econômica foi se mostrando cada vez mais essencial para compreender a realidade social, baseada na propriedade privada. Marx identificou na alienação do trabalho o início do estranhamento do ser humano de suas potencialidades genéricas e da sua submissão a um poder estranho.

Porém, assim como Feuerbach não se limitou a criticar a religião, mas buscou nela a revelação de potencialidades essenciais ao ser humano, Marx também não se limitou a identificar as causas da alienação econômica. A descoberta do caráter social, histórico e natural da humanidade, são resultados desta dupla possibilidade de leitura da estrutura de alienação econômica. A realidade econôn~ica revelou-se portadora de uma intensa processualidade social. Tornar

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consciente esta processualidade permitiu uma desmistificação da suposta fatalidade necessária da estrutura social e produtiva capita- lista e também a visualização de potencialidades humanas inerentes a sua estrutura.

Este trabalho é fundamentalmente resultado de nossa pes- quisa de mestrado realizada no Programa de Pós-Graduação em Filosofia, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da Ponti- fícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, sob orientação do prof. Dr. Hans-Georg Flickinger.

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Atualmente nos confrontamos constantemente com fasci- nantes avanços tecnológicos e científicos com maravilhosas possi- bilidades. Ao mesmo tempo, percebemos o avanço constante da desigualdade social. Opulência e miséria convivem lado a lado, tanto em níveis regionais como em níveis globais.

Dentro desse contexto contraditório, também o meio ambi- ente se encontra cada vez mais ameaçado pela ação do próprio ho- mem. A agressão e exploração da natureza, além de ser uma ame- aça para a sobrevivência da humanidade, não vem gerando um maior bem-estar para o conjunto da população, ao contrário, as de- sigualdades sociais e econômicas vêm aumentando paulatinamente nos últimos anos. Estas constatações, que normalmente aparecem de forma isolada como sendo simples e naturalmente constituídas e, portanto, necessárias, revelam, para um olhar mais atento, uma questão crucial: a serviço de quem estão o homem e a sociedade, uma vez que não estão a serviço de si mesmos? Existirá acaso uma entidade superior, pela qual a miséria e a destruição ambienta1 já estejam desde sempre determinadas? Serão as idéias de liberdade e história pura ilusão? Ou ainda, não estaria, talvez, o próprio ho- mem vivendo determinado por algo fantasmagórico, por causa de um delírio seu?

Essa é, sem dúvida, uma situação que nos convida à refle- xão, senão à perplexidade e ao espanto. No entanto, até mesmo as questões acima levantadas, bem como a possibilidade de reflexão sobre esta realidade, exigem uma posição crítica capaz de não ad- mitir esta realidade como a única possível. Uma posição funda- mentada e impulsionada por esta realidade mas capaz também de refletir sobre ela. Uma posição capaz de não se conformar com a aparente necessidade das coisas. Uma posição que busque os fun- damentos do aparecer. Uma posição filosófica. Uma posição capaz

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de vislumbrar outras possibilidades, outras formas de ser e de se relacionar.

Nossa suspeita é de que a atual situação humana e natural possui fundamentos mais profundos do que aquilo que podemos perceber pelos dados empíricos e quantificáveis. E, também, de que estas raízes precisam ser buscadas no próprio homem e na so- ciedade, na sua forma de ser, pensar e conceber o mundo. Busca- remos, neste trabalho, fazer uma investigação que, a nosso ver, é capaz de apontar alguns pontos como sendo os que fundamentam e justificam o atual status quo e que, por isto, também revelam di- mensões essenciais da humanidade. Acreditamos, assim, poder es- tar contribuindo para a formação de uma nova ordem social e um novo ser humano.

O Ocidente, com sua cultura, parece estar dominando cada vez mais espaço, em todo o mundo. Tanto que poderíamos afirmar, hoje, que a cultura ocidental se encontra enraizada, de forma espe- cial, por meio de um dos seus instrumentos preferidos, a economia de mercado, em todo o mundo. É, pois, na constituição da cultura ocidental que devemos buscar as origens mais profundas de nossa realidade. Ela, no entanto, é uma fusão de pelo menos duas culturas humanas, quais sejam, aquela que teve sua expressão mais explí- cita na Grécia clássica e aquela que surgiu com a religião cristã e de suas raízes judaicas. O resultado mais atualizado desta fusão é um modo de organização social, explicitado há alguns séculos atrás, e que, genericamente, denominamos capitalismo. Os funda- mentos possibilitadores, legitimadores do capitalismo são, pois, fruto destas duas concepções de mundo sem, no entanto, identifi- car-se diretamente com nenhuma delas.

Compreender a nossa realidade é, pois, compreender o Ocidente na sua forma atual, ou seja, o capitalismo. Em filosofia, muito tem-se investigado os fundamentos gregos da cultura oci- dental, valorizando aquela dimensão chainada racional de nossa re- alidade. Sem desconsiderar esta dimensão da realidade, gostaría- mos de priorizar, no presente trabalho, as raízes cristãs, e, portanto, religiosas de nossa realidade. Vamos também buscar entender até que ponto a própria realidade, dita racional, bem como a prática

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Religião e capitalismo: uma reflexão a pattit de reuerbach e Matx

econômica, estão submetidas a princípios ou, até mesmo, ilusões de caráter religioso.

A teoria de Karl Marx, na medida em que é a tentativa de expressar de forma explícita os fundamentos legitimadores do ca- pitalismo, vem ao encontro de nossa expectativa e representa uma das formas mais acabadas de fazer esta análise. No entanto, os avanços de Marx, neste campo, foram possibilitados ou ao menos facilitados, pela teoria de Ludwig Feuerbach, um filósofo contem- porâneo seu. Feuerbach dedicou-se intensamente ao estudo e à compreensão do fenômeno religioso, de modo especial, da religião cristã, hegemônica à época. Poderíamos afirmar que Feuerbach foi, pelo menos na primeira fase de seus escritos, um autor profunda- mente comprometido com a libertação do homem de todas as amarras, de tudo que impedia o homem de perceber-se, enquanto ser autônomo e senhor de si. O esclarecimento da situação do ho- mem, a revelação do potencial humano defrontava-se, porém, com um entrave: a religião cristã.

A Revolução Francesa havia provado que o homem era capaz de organizar-se por conta própria, que não precisava mais da suposta ordem divina, como se supunha, durante todo o período feudal, para viver e ser feliz. Feuerbach punha a superação da consciência religiosa como condição da emancipação humana. Por isto, dedicou-se, apaixonadamente, a entender e desvendar este fe- nômeno, que, segundo ele, só o ser humano era capaz de realizar. Ao mostrar que o ser humano não podia pensar, sentir ou conceber algo para além de suas possibilidades inatas, ou seja, que ser e consciência coincidiam, buscou mostrar que a própria idéia de Deus só era possível porque no homem existiam as qualidades atri- buídas a Deus. Procurou mostrar também que todos os atributos divinos eram atributos humanos e que, portanto, Deus era uma ilu- são. Que a religião era um engano, por atribuir a um ser exterior o que era apenas atribuível ao homem. Que no lugar de Deus seria preciso colocar a espécie humana. Que todas as características que alguém poderia atribuir a Deus seriam, na verdade, características da própria humanidade.

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Rosalvo Schutz

Todavia, Feuerbach, não via na religião aspectos apenas negativos, mas também positivos. Se, por um lado, ela era uma ilu- são, por outro, ela revelava uma capacidade humana, revelava uma potencialidade inerente à própria humanidade. Segundo ele, o fato de o homem ter consciência de sua própria espécie, do seu ser ge- nérico, faz dele um ser especial e distinto dos animais. Mas, ao de- frontar-se com as características pertencentes ao seu gênero, nem sempre é consciente disto. O seu próprio gênero lhe aparece como sendo um outro ser, um ser objetivo, como sendo Deus. E isto che- ga a tal ponto que o homem se submete a esta sua própria criatura, aliena-se nela. Submete-se aos resultados que o ser genérico pro- duz, eis que estes resultados, inevitavelmente, são produzidos, mesmo que o homem não esteja consciente disto.

Embora convencido do potencial da filosofia de Feuer- bach, Marx percebeu, no entanto, que ela abarcava apenas uma di- mensão da vida humana, aquela da religião. Buscou, então, identi- ficar os traços da estrutura religiosa em outros momentos sociais. Um deles foi o Estado. Outro foi o da realidade econômica, ou seja, aquela dimensão que afeta o homem no seu dia-a-dia. Marx pensava encontrar, assim, o fundamento de toda alienação, até mesmo, da religiosa. No entanto, buscou apontar também os limi- tes da concepção de Feuerbach, especialmente, quanto ao caráter estanque, a-histórico e abstrato, uma vez que Feuerbach havia con- cebido a alienação como uma manifestação apenas da consciência. A teoria de Hegel foi fundamental para Marx superar Feuerbach. Como, também, a teoria de Feuerbach foi fundamental para superar a teoria de Hegel. Podemos dizer que as teorias econômicas da época foram o ingrediente essencial para que Marx iniciasse sua desmistificação filosófica da realidade capitalista, fazendo refle- xões inéditas.

Durante todo o percurso das obras de Marx, por nós anali- sadas neste trabalho, permanece este traço feuerbachiano que busca desmistificar as realidades de alienação e, ao mesmo tempo, apon- tar as potencialidades humanas ali contidas. Ao mesmo tempo em que Marx procura mostrar que a economia política tem pressupos- tos que não conhece, procura desvendá-los e evidenciar o seu po-

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tencial social e antropológico inerentes. Tira, assim, a pretensão de neutralidade e de inquestionabilidade na qual os economistas da época julgavam se encontrar. Esta é, sem dúvida, uma questão do mais alto interesse para nós hoje, ante os desafios que a realidade nos apresente frente as exigências de sacrifícios, feitos pelas de- terminações econômicas. Além disto, acompanhar a trajetória atra- vés da qual Marx foi desenvolvendo suas reflexões, fazendo filoso- fia por meio da economia, da antropologia, da história e da reli- gião, dentre outras dimensões do ser humano, há de ser uma aven- tura cultural fascinante e rica.

O trabalho que segue é resultado do nosso esforço de com- preensão dos textos dos autores citados. Neste sentido, procura ser o máximo possível fiel aos textos. Todavia, estamos conscientes, também, de nossa postura diante deles, no sentido de que procura- mos valorizar os aspectos capazes de trazer uma coerência interior ao nosso trabalho que também pudessem ser relevantes para a situ- ação histórica atual. Na medida do possível, usamos também ou- tros autores para reforçar nossa argumentação e mesmo para apontar lacunas dos próprios textos estudados.

O trabalho está dividido em quatro Capítulos. No primeiro, procuramos expor os motivos pelos quais fizemos a aproximação entre Marx e Feuerbach e exporemos as principais idéias de Feuer- bach referentes à estrutura da alienação religiosa. No segundo, pro- curaremos mostrar como Marx aplicou o instrumental feuerbachia- no ao Estado liberal e à própria filosofia de Hegel. No terceiro, buscaremos acompanhar as reflexões de Marx, na perspectiva de ir percebendo a estrutura de alienação, própria da realidade religiosa, na realidade econômica, desvendando, assim, alguns pressupostos da economia política e mostrando os seus fundamentos humanos. Por fim, no quarto Capítulo, buscaremos identificar os elementos, segundo os quais Marx busca mostrar como o humano está a per- der-se no interior do sistema de propriedade privada, no interior do capitalismo. E, também, na trilha de Feuerbach, quais as potencia- lidades humanas, potencialidades emancipatórias que a estrutura da alienação capitalista possui e revela para um olhar mais atento.

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IMPORTÂNCIA DA CRÍTICA DA RELIGIÃO DE FEUERBACH PARA MARX

1 - Indícios de uma analogia

É comum encontrarmos em textos, com referência ao pen- samento de Marx, afirmações e especulações que giram em torno de questões econômicas, sociais, políticas e mesmo antropológicas, bem como quanto à influência que ele teria recebido de Hegel. No entanto, poucas se referem, explicitamente, ao papel que a crítica da religião desempenhou em seu pensamento. Ao passarmos os olhos sobre as obras de Marx, veremos, ao longo do seu desenvol- vimento, constantes referências à crítica da religião, realizada por Feuerbach. Além disto, diversos são os momentos em que apare- cem em sua obra conceitos de origem explicitamente religiosa, re- ferindo-se a questões não religiosas. Diante disto, propomo-nos a buscar o potencial explicativo a que estes conceitos remetem, bus- cando estabelecer uma analogia com a crítica da religião feuerba- chiana em algumas obras de Marx. Além disto, se a estrutura críti- co-argumentativa é, de certa forma, aceita como tal, de Feuerbach, então, também a estrutura do objeto a ser criticado, quer dizer, a sociedade capitalista produtora de mercadorias, tem uma funda- mentação e um desenvolvimento análogo à religião. De forma que este nosso trabalho fornecerá elementos para que possamos melhor compreender a própria sociedade capitalista. Buscaremos perceber, também, que passos Marx deu além de Feuerbach, na utilização desta estrutura crítica.

Iniciaremos, assim, buscando compreender a crítica à reli- gião, tal como foi realizada por Feuerbach, em sua obra A essência do Cristiaizisrno. Posteriormente, procuraremos justificar, em al-

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gumas obras de Marx, sua própria afirmação, segundo a qual a "imediata tarefa da filosofia que está a serviço da história é des- mascarar a auto-alienação nas suas formas não sagradas, agora que ela foi desmascarada na sua forma sagradau.'

No presente trabalho, ater-nos-emos à Essência do Cristia- nismo, de Feuerbach, publicada em 1841, por entendermos que nela foram traçadas as linhas fundamentais da crítica a religião, re- alizada pelo autor. Embora em obras posteriores, como em Princí- pios da Filosofia do Futuro e as Teses provisórias para a reforma da filosofia, ambas de 1843, outros aspectos tenham sido destaca- dos, como, por exemplo, a maior ênfase para a questão da sensibi- lidade, vamos ater-nos h obra citada anteriormente, por conside- rarmos que nela encontramos, suficientemente, expostos os aspec- tos que buscamos. Consideraremos, para isto, os aspectos do con- teúdo desta redução e, também, os da forma como ela se tornou possível.

Em seguida, passaremos a investigar em Marx como ele se utilizou do potencial, desvendado por Feuerbach, na análise de es- truturas não explicitamente religiosas. No entanto, como Marx teve uma produção literária muito ampla, delimitar-nos-emos a três obras, quais sejam: A Questão Judaica (1843), a Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel - Introdução (1844) e os Manuscritos Ecorzômico-Filosóficos (1844). Estas obras que, no nosso entender, são fundamentais dentro da totalidade do pensa- mento de Marx, por serem uma investigação filosófica de estrutu- ras sociais constituidoras da realidade capitalista e a busca dos seus pressupostos. Outro critério para escolha das referidas obras de Marx está baseado na convicção de que este período foi um tempo de fundamentais descobertas pela utilização da filosofia de Feuer- bach, principalmente, em relação aos limites e potenciais da filoso- fia hegeliana, portanto, capaz de nos auxiliar na melhor compreen- são de obras posteriores de Marx, como O Capital. Neste sentido, este estudo poderá ajudar, pela desmistificação filosófica do capi- talismo, a entender nossa própria realidade e, assim, abrir pistas de

I MARX, Karl. Mnrtuscritos Económico-Filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1964, p. 78.

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reflexão e ação, tendo em conta problemas e questões da atualida- de. Embora a busca de uma delimitação do tema nos faça restringir a análise a estas três obras, da juventude de Marx, também o fize- mos convictos de que estas nos dão uma visão bastante completa da questão.

2 - A estrutura da crítica à religião em Feuerbach

Ludwig Andreas Feuerbach (1804-1872) foi um autor, pro- fundamente, marcado pelo seu tempo. O fato de ter vivido no perí- odo do auge do idealismo alemão, tendo, até mesmo, sido aluno de autores colossais como Hegel e Schleiermacher, talvez, tenha-no mantido um pouco à sombra deles, e suas idéias não tenham sido, devidamente, valorizadas.

Além disso, a posição adotada, posteriormente, contra as teorias desses autores, principalmente em relação à filosofia da re- ligião e ao idealismo, fez com que se diferenciasse profundamente deles, sustentando posições contrárias ao pensamento em voga, o que, talvez, tenha-o tomado vítima de preconceitos posteriores. Isto não significa que o idealismo não lhe tenha sido importante. Parece que a situação de 'amadurecimento' do idealismo, vivida em sua época, foi a condição básica para elaboração de sua teoria.

Feuerbach soube trazer para o mundo sensível do dia-a-dia o fundamento humano de fatos e idéias que, antes, eram apenas explicados pela religião ou pelo idealismo abstrato. Propôs-se a mostrar que a história é o processo de humanização do homem e não teodicéia. Busca o fundamento antropológico da religião. O conhecimento de Deus passa, assim, a ser conhecimento do próprio homem. Por isto, Feuerbach é tido como um intermediário entre o idealismo e o materialismo, realizando, neste campo, reflexões inéditas até então.

Interessa-nos esta redução, ou seja, como Feuerbach bus- cou mostrar ser a religião apenas antropologia, como reencontrou o homem na estrutura de alienação religiosa, porque este foi um pas- so fundamental, dado por Feuerbach, para tornar o ser humano su- jeito ativo de sua história e não mais um simples ser a cumprir os

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supostos desígnios divinos. Esta desmistificação da estrutura reli- giosa serviu de base para a desmistificação de outras estruturas que, também apresentavam-se como inquestionáveis, onipotentes e determinadoras da sorte da humanidade, pa-ra Marx. Por isto, antes de entrar, diretamente, na crítica de Feuerbach, talvez, seja interes- sante abordar, um pouco, o contexto da crítica da religião na época, ou seja, por que se punha como tão importante a crítica à religião naquele tempo? Sem dúvida, o fator principal residia na necessida- de de criticar a estrutura feudal que ainda persistia na Alemanha da época, e cuja fundamentação ideológica se encontrava na religião, no caso na religião cristã.' Ora, em 1789, a Revolução Francesa buscava esta libertação da dominação religiosa em todos os espa- ços sociais e públicos. Na Alemanha da época de Feuerbach, anos 40 do Século XIX, ainda persistia a estrutura feudal, juntamente, com um Estado tipicamente cristão.

Essa situação anacrônica da Alemanha colocava-se como uma situação a ser superada o mais depressa possível. Como isto seria possível se toda estrutura social era justificada teologicamen- te? Como lutar contra uma estrutura social considerada injusta, mas que se dizia portadora da vontade e onipotência divinas e, portanto, como sendo a única possível? Não restava outro desafio para a fi- losofia comprometida com a transformação desta realidade do que a crítica à própria religião, eis que esta era tida como sendo uma

Embora a teoria de Feuerbach tenha este significado histórico específico, não foi um pensador isolado em sua época. Segundo Artur J. Giannotti, a tarefa que Feuerbach se propôs a realizar estaria comprometida com o pensamento prece- dente, que se propunha a humanização de Deus, ou seja, a transformação da te- ologia em antropologia. Vejamos: "Da perspectiva prático-religiosa, o movi- mento da renovação começou com o protestantismo que, de tanto centrar seu interesse na figura do Cristo, tornou-se mera cristologia. No entanto, de uma perspectiva teórica, teve seu início na filosofia especulativa. Essa tem seu apo- geu no hegelianismo, cuja preocupação básica é trazer definitivamente a trans- cendência divina para a imanência terrestre. De ambos os lados o movimento tem, pois, como resultado a concretização das abstrações católicas, a humaniza- ção cada vez mais patente dos atributos idealizados de Deus, enfim, a transfor- mação do Deus abscôndito no homem concreto sobre a terra." GIANNOTTI, José Artur. Origens da Dialética do Trabalho. Estudo sobre a lógica do jovem Marx. Porto Alegre: L&PM. 1985, p. 32.

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forma ideológica de justificação e manutenção da estrutura social considerada injusta. Feuerbach colocou-se, assim, o desafio de mostrar que o que constituía a fundamentação da religião, a essên- cia daquela religião e de seus dogmas, apresentados como desíg- nios divinos, portanto, inquestionáveis, era a manifestação de um conteúdo humano, o qual remetia fundamentalmente ao homem e suas potencialidades e não a uma entidade divina exterior.

A crítica da religião, na época de Feuerbach, impunha-se, todavia, como uma condição em vista da libertação do jugo teoló- gico legitimador de uma estrutura social tida como atrasada e in- justa. Uma vez livre das supostas determinações divinas, o homem poderia assumir sua plena liberdade e construir a si e a sociedade a partir dele mesmo. Resta ressaltar ainda que, pelo fato de Feuer- bach não ter citado, explicitamente, a função recém exposta, na Es- sência do Cristianismo, no que se refere à função de sua crítica à religião, ela acabou sendo a principal função histórica que desem- penhou, embora, talvez, Feuerbach não estivesse totalmente cons- ciente disto ao elaborá-la.

Essa posição de Feuerbach, na luta contra a estrutura social feudal, situa-o ao lado da classe burguesa da época, seduzida pelos ideais da Revolução Francesa. Sua crença no homem como ser su- premo, também lembra, diretamente, os ideais iluministas, no que se refere ao apelo ao esclarecimento do homem e nas suas capaci- dades ilimitadas.

Passemos, agora, à argumentação de Feuerbach. Para isto, tomaremos, fundamentalmente, a sua obra A Essência do Cristia- ~zismo, pelos motivos anteriormente expostos.

Feuerbach parte do fato concreto de que os seres humanos, ao contrário dos animais, têm religião. Pergunta-se, então, como isto é possível. Objetiva, assim, buscar os fundamentos humanos que possibilitam a religião. Uma de suas primeiras constatações é de que o ser humano tem consciência no sentido rigoroso. O que significa que os seres humanos podem, além de ter consciência de sua individualidade, ter consciência, também, do seu gênero, ou seja, de sua espécie como um todo. Por isto, o ser humano é um ser

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genérico (~attun~swesen)". Além da vida exterior, que também o animal tem, o ser humano tem uma vida interior, relacionada com o seu gênero. O homem é capaz de pensar, de ser para si mesmo EU e também TU. Assim, o seu gênero pode ser-lhe objeto. O animal não pode exercer funções de gênero sem ter um outro fora dele. Na religião o homem tem por objeto esta sua própria essência genérica, sendo que "a consciência fundante da religião fornece ao mesmo tempo a esta o seu objeto: a essência h ~ m a n a . " ~ Aquilo que na religião aparece como sendo atributo divino, por exemplo: a onipotência, a infinitude, entre outros, nada mais é que a expressão das próprias capacidades da espécie humana, da própria consciên- cia humana. Isto possibilita a Feuerbach fazer a afirmação de que "a essência do homem, em contraste com a do animal, não é apenas o fundamento, mas também o objeto da religião".5 Na religião, portanto, o homem está a relacionar-se consigo mesmo.

Nesse ponto, Feuerbach se pergunta: como é possível ter por objeto a natureza infinita do ser humano? E diz que um "ser realmente finito não possui a mínima idéia, e muito menos consci- ência, do que seja um ser finito, porque a limitação do ser é tam- bém a limitação da con~ciência".~ Ora, dizer que a limitação do ser é a limitação da consciência tem consequências profundas. Uma delas, que apesar de sua profundidade é bastante simples e óbvia, é a de que não se pode pensar algo não pensável. Esta argumentação Feuerbach estende a todo o ser humano e não, apenas, à dimensão racional. Desta forma, a religião é a consciência não finita da pró- pria infinitude do homem.

Esta seria também a característica humana que possibilitaria a ciência, por ser a possibilidade de tratar dos universais. Vejamos: "Onde existe consciência existe também a faculdade para a ciência. A ciência é a consciência dos gêneros. Na vida lidamos com indivíduos, na ciência com gêneros. Mas somente um ser para o qual o seu próprio gênero, a sua quididade torna-se objeto, pode ter por objeto outras coisas ou seres de acordo com a natureza essencial deles." Cf. FEUER- BACW, Ludwig. A Essência do Cristianislno. Tradução e notas de José da Silva Brandão. Campinas, São Paulo: Papirus, 1988. p. 43. SOUZA, Draiton Gonzaga. O ateísmo antropológico de Ludwig Feuerbach. Coleção filosofia 3.2.ed. Porto Alegre: EDIPUCRS. 1994. p. 45. FEUERBACH, op. cit. p. 44. Id. p. 44.

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Religião e capitalismo: uma reflexão a partir de Feuerbach e Marx

Mas o que de humano se teria como objeto da consciência quando se pensa ter consciência de Deus? A razão, a vontade e o coração. Estas dimensões, para Feuerbach, são a própria essência humana que "o homem não possui - porque ele nada é sem eles, ele só é o que é através deles - são pois como os elementos que fun- damentam a sua essência e que ele nem possui nem produz, pode- res que o animam, determinam e dominam - poderes divinos, ab- solutos, aos quais ele não pode oferecer resi~tência"~. E é exata- mente por estas dimensões que o indivíduo humano transcende a si mesmo, estabelece sua relação com o gênero, e se sente, enquanto ser particular, finito perante esta essência humana,

Assim, pode-se dizer que o gênero, contido na razão, na vontade e no coração, enquanto possibilidade da unidade do ho- mem com o homem, é a própria essência humana. Portanto, a es- sência humana está fora do indivíduo restrito. Como estas caracte- rísticas são, geralmente, atribuídas a Deus, Ele acaba sendo a li- bertação do homem dos limites condicionantes da existência indi- vidual, na medida em que é uma primeira forma de os seres huma- nos, enquanto indivíduos particulares, darem-se conta de sua natu- reza universal.

Embora, segundo Feuerbach, a essência do homem esteja nele mesmo, enquanto potencialidade, ele a vai reconhecendo con- forme toma consciência de objetos, pois, uma vez que não pode perceber nada além da sua capacidade de perceber, na medida em que percebe algo e a forma com que percebe, revela capacidades do próprio homem. O homem, pois, ao tomar conhecimento dos objetos, vai tomando conhecimento de si mesmo e de suas capaci- dades. Pode-se dizer, assim, que o homem precisa do objeto para alcançar a sua autoconsciência, embora o objeto da consciência do homem não possa ir além da própria essência humana. O homem não pode perceber, pensar ou sentir algo que esteja para além da sua capacidade de perceber, pensar ou sentir. Assim, quando pen- sar o infinito, confirma a infinitude de sua própria faculdade de pensar. Como poderia perceber sua finitude, suas limitações, se a infinitude do gênero não fosse objeto para ele? Da mesma forma,

FEUERBACH, op. cit. p. 45.

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não poderia sentir a divindade pelo sentimento se este já não fosse por si mesmo divino. "O sentimento é pois sacralizado meramente por ser sentimento; o motivo da sua religiosidade é a sua natureza, é inerente a ele próprio."8

Assim como o sentimento faz parte da essência subjetiva da religião, assim outras forças, atividades e potências também o fazem. Deus é estas qualidades em sua pureza. A existência delas, em nosso ser individual, surpreende tanto que chegamos a pensar que são uma natureza fora de nós. Atribuímo-las a um Deus objeti- vo e exterior. Esta é, pois, a alienação religiosa: atribuir os atribu- tos próprios da essência humana a uma existência imaginária e es- tranha.9 u m engano! Porque é a nossa própria essência humana que temos por objeto nestes momentos. É a partir deste engano que se constitui a religião. Pois o homem pode

"conceber através de sua fantasia indivíduos de tipos mais eleva- dos, mas do seu gênero, da sua essência ele nunca poderá se abs- trair; as qualidades que ele atribui a estes outros seres são sempre qualidades retiradas da sua própria essência - qualidades nas quais ele em verdade só se reflete e se objetiva a si rnesrn~."'~

Dessa forma, Feuerbach busca provar que tudo que apare- ce como sendo característica divina nada mais é do que uma capa- cidade humana exteriorizada. Assim, reduz a religião e a teologia à antropologia. Afinal, é do homem que se trata. Importa buscar a es- sência subjetiva da religião, uma vez que a religião tem como úni- co fundamento as características da humanidade. O que confirma a afirmação feita por nós, anteriormente, de que na religião o homem tem consciência de si próprio. Deve-se acrescentar, agora, que, como na religião, o homem atribui estas potencialidades a um ser objetivo exterior, ele aliena neste outro ser suas próprias potencia- lidades. Aquilo que a religião toma como algo objetivo é a própria

FEUERBACH, op. cit. p. 51. Para nós os termos alienação e/ou exteriorização (Entausserung) e estranha- mento (Enfremdung) serão usados como sinônimos e, prioritariamente, expres- sos pelo termo alienação, por ser o termo mais usual para este fim.

L0 FEUERBACH, op. cit. p. 52.

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essência humana, o que revela uma grande potencialidade da reli- gião: na medida em que é analisada pelo seu avesso, revela a uni- versalidade da espécie humana, revela a sua essência.

A diferença do objeto religioso e do objeto sensível é de que aquele está dentro do homem, enquanto este está fora. O objeto religioso nada mais é do que a essência do homem objetivada, por- que o homem tem esta capacidade de ter por objeto a sua própria espécie, como vimos. Por isto o homem pode ser conhecido pelo Deus que tem e o Deus pelo homem que o produz. O homem se objetiva na religião, mas não se reconhece mais, permanece estra- nho a si mesmo.

A religião é, pois, como que uma forma indireta e primeira de o homem se conhecer, enquanto gênero. Por isto, embora o ho- mem não se seconheça na religião, Feuerbach afirma que "a reli- gião é uma revelação solene das preciosidades ocultas do homem, a confissão dos seus mais íntimos pensamentos, a manifestação pública dos seus segredos de amor."" A diferença que existe na religião, entre o homem e Deus, acontece quando esta essência humana é objetivamente contemplada, chegando ao ponto de o homem não mais se reconhecer na sua própria essência, e até mes- mo submeter-se a ela. O criador submete-se à criatura.

A oposição entre indivíduo e divindade, na verdade, é uma ilusão, que não passa da oposição que existe entre o indivíduo hu- mano e a essência humana. Essência esta que está abstraída das li- mitações do homem individual,'' embora cada indivíduo seja, tam-

" FEUERBACH, op. cit. p. 56. Ainda em 1843, no prefácio à segunda edição, Feuerbach continuará destacando esta dimensão da sua crítica: "Por isso nada mais faço à religião - também à teologia ou filosofia especulativa - do que abrir os seus olhos, ou melhor, voltar para fora os seus olhos que estão voltados para dentro, i.é., apenas transformo o objeto da fantasia no objeto da realidade." Id. p. 31.

l 2 Cf . também consta no trabalho de Draiton de Souza: "O objetivo principal de A essência do cristianismo é demonstrar que a essência da religião (do cristianis- mo), a sua essência divina, é a essência do homem, que a teologia é, na verdade, antropologia, que a suposta unidade entre a essência divina e a humana é a uni- dade da essência humana consigo mesma, ou que a suposta diferença entre es- sência divina e a humana é apenas a diferença entre indivíduo e gênero." SOU- ZA, Draiton Gonzaga. op. cit. p. 34

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bém, uma expressão particular da essência humana, como veremos adiante.

Para esclarecer ainda mais a temática, Feuerbach cita a questão dos predicados de Deus. Assim, busca mostrar que todos os predicados de Deus são predicados humanos e que um suposto Deus sem predicados não existe, assim como nenhum sujeito sem predicados existe, não passa de um vazio, uma não existência. Por isto, embora no sentido vulgar um ateu seja aquele para o qual os predicados de Deus nada significam, ser ateu no sentido feuerba- chiano significa, apenas, não aceitar o sujeito como sendo algo di- ferente da essência humana, ou seja, atribuir os predicados a quem eles realmente pertencem: ao homem. Ser ateu torna-se, assim, condição essencial, para que as características, que aparecem na religião como atributos divinos, possam ser humanamente vividas. Para ele, uma "qualidade não é divina porque Deus a possui, mas Deus a possui porque ela é divina"I3. Predicados sem sujeito po- dem subsistir, mas sujeito sem predicado, não. Como todos os pre- dicados divinos são humanos, não há como deduzir daí a existência de um sujeito não humano. Restaria então ao crente dizer que Deus possui predicados que nós não conhecemos e que, portanto, não se- riam humanos. Porém, o que seria do sujeito Deus sem predicados, o que seria ele além de um não-ser? Não há, pois, outra solução se- não admitir que tudo que é, supostamente, atribuído a Deus é do próprio homem.

Como as qualidades humanas são infinitas,14 ao objetivar- mos Deus (ilusão!), percebemos que não podemos conhecer todas as suas qualidades. Imaginamos, então, poder conhecê-las num outro mundo. Ora, tudo que delegamos a Deus, ou a um outro

'"EUERBACH, op. cit. p. 64. l 4 Id. p. 65. "A essência humana é, pois, uma riqueza infinita de predicados diver-

sos, mas exatamente por isso uma riqueza infinita de diversos indivíduos. Todo homein novo é ao mesmo tempo um novo predicado, um novo talento da huma- nidade. Quantos homens existem, tantas forças, tantas qualidades tem a huma- nidade. A mesma força que existe em todos existe de certo em cada indivíduo, mas determinada de modo a parecer uma força própria, nova. O mistério da quantidade inesgotável dos atributos divinos não é por isso nada mais que o mistério da essência humana."

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mundo, subtraímos de nosso mundo. Por isto, quanto mais se atri- bui a Deus, menos se atribui ao ser humano. O homem deixa-se objetivar por algo que ele próprio objetivou: Deus. Desta forma, a aparência de um Deus objetificado e abstraído de toda realidade concreta e real é o ponto culminante da religião.

Feuerbach quer buscar o fundamento humano da religião, e, na obra em causa, de modo especial, da religião cristã. Por isto, volta à origem, ao conteúdo autenticamente religioso, a fim de contrapô-lo ao conteúdo meramente teológico e especulativo, com a intenção de perceber os verdadeiros fundamentos antropológicos que o geraram, ainda não mesclados com as especulações teológi- cas. A exposição desta intenção nos revela que para Feuerbach, portanto, a religião não deve ser vista como sendo apenas negação do homem, mas também, enquanto portadora de potencialidades humanas. A religião é negativa para Feuerbach apenas no sentido teológico, ou seja, quando a essência humana se torna objetiva e independente na forma de um Deus. Mas não, enquanto é uma primeira forma, embora indireta, de o homem se dar conta de sua essência. O potencial da manifestação religiosa é desvendado quando a diferença entre teologia e antropologia é eliminada,I5 pois, em verdade, Deus pode apenas ser identificado com o ho- mem.

A tarefa da filosofia, segundo Feuerbach, seria, então, mostrar ao homem que o Deus objetivo não passa do ser do próprio homem enquanto espécie, enquanto gênero. Por isto, a filosofia vi- ria, geralmente, após a religião. A religião, enquanto negação do homem, realidade invertida, em que a criatura do ser humano se sobrepõe ao próprio ser humano. A filosofia, enquanto re-inversão da realidade religiosa, devolvendo ao homem as suas capacidades,

15 Seria interessante, a partir desta análise, de que o homem realiza primeiro indi- retamente a sua essencialidade, e mesmo suas necessidades essenciais apenas enquanto não as pode realizar na realidade, analisar a religiosidade do mundo contemporâneo, para percebermos que necessidades se busca satisfazer aí de forma invertida, e posteriormente analisar porque estas não se realizam na reali- dade. Além disto, poder-se-ia fazer uma investigação, buscando averiguar até que ponto as manifestações religiosas contribuem para manutenção do status qiio da atualidade e, assim, também o potencial crítico contido nelas.

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enriquecidas, no entanto, com o potencial humano desvendado na consciência religiosa. A filosofia seria, contudo, a negação da ne- gação humana. Sua tarefa principal seria pôr a humanidade, como gênero, no lugar que lhe é devido, ou seja, no lugar de Deus. Inte- ressante notar que a alienação religiosa acontece e se resolve no interior da consciência. É o próprio homem que produz o objeto religioso na sua consciência, mas logo não se reconhece mais nele. Em seguida o objeto passa a dominar o próprio homem, tornando-o seu predicado. l6

A partir disso, Feuerbach, em sua obra A Essência do Cristianismo, analisa diversos mistérios religiosos e vai mostrando neles seu sentido humano originário. Assim, Cristo, por exemplo, enquanto consciência do amor, foi a imagem da consciência do gê- nero em que o homem ama o homem pelo homem. No entanto, a figura de Cristo tenderá a desaparecer, na medida em que vai sur- gindo a idéia do gênero enquanto gênero. Pois, já que a consciência religiosa é apenas uma primeira forma, uma forma indireta, de o homem se dar conta de sua essência, quando este se dá conta dire- tamente desta essência, a forma indireta, ou seja, a religiosa, perde o seu sentido de ser, por maior que tenha sido sua importância em um certo momento do desenvolvimento da humanidade. Outro exemplo, citado por Feuerbach, é a idéia do deus criador do uni- verso, que, quando analisada, revela-se como sendo uma necessi- dade de a própria autoconsciência se reconhecer, à medida que só se torna possível quando confrontada com um outro, com um tu. O homem isolado é limitado, mas a humanidade é infinita. Tanto que, por exemplo, a razão só surge no ato comunitário da fala."

Resumindo o objetivo da teoria de Feuerbach, poderíamos citar o seguinte parágrafo:

16 Por isto, segundo Vázquez: "A alienação religiosa se produz na consciência, e nela há de cancelar-se quando o sujeito - o homem real - for consciente de sua verdadeira natureza, de sua condição de sujeito, e reconhecer em si mesmo os atributos que transferiu ao objeto por ele criado." VAZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da Prúxis. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1986. p. 93.

" FEUERBACH, op. cit. p. 126 ss.

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"A mudança necessária na história é, portanto, esta confissão aberta, de que a consciência de Deus nada mais é que a consci- ência do gênero, que o homem pode e deve se elevar acima das limitações da sua individualidade ou personalidade, mas não acima das leis, das qualidades essenciais do seu gênero, que o homem não pode pensar, pressentir, imaginar, sentir, crer, que- rer, amar e adorar como essência absoluta, divina, a não ser a es- sência humana."'*

Assim, seria possível pensar, também, as relações morais como divinas por si próprias e não baseadas numa determinação externa.I9 u m a vez que também elas fazem parte da essencialidade, das capacidades humanas.

l 8 Feuerbach, op. cit. p. 308. 19 Feuerbach considera que mesmo a natureza tem de ser incluída na fundamenta-

ção da relação humana, pois segundo ele o homem pertence à essência da natu- reza e esta pertence à natureza do homem. E a união com a natureza possibilita- ria a superação do egoísmo supra-naturalístico, gerado pelo cristianismo.

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UM EXPERIMENTO DE MARX: A UTILIZAÇÃO DO INSTRUMENTAL

FEUERBACHIANO NA ANÁLISE DA REALIDADE SOCIAL BURGUESA

Expostos os traços fundamentais da crítica feuerbachiana J a religião, buscaremos, agora, identificar estes traços em algumas obras de Marx. Almejamos, assim, confirmar a nossa hipótese de que a estrutura da crítica da religião de Feuerbach é análoga àque- la, utilizada por Marx, para criticar a sociedade capitalista. Antes, porém, de nos determos diretamente nesta crítica, vamos buscar identificar alguns momentos anteriores da trajetória intelectual de Marx, procurando destacar momentos relevantes para o nosso inte- resse. Neste contexto a crítica ao Estado burguês e à filosofia he- geliana tornam-se relevantes. Acreditamos que estas duas experi- ências de Marx foram fundamentais para que pudesse perceber na economia uma estrutura análoga àquela da religião, servindo tam- bém para superar algumas ingenuidades da crítica da religião de Feuerbach.

Iniciaremos com a análise da obra A questão Judaica, en- saio escrito, em 1843, na França e publicado nos Anais Franco- ~lenzães ' , em 1844. Nesta obra, Marx chega a conclusões que, em- bora nela também sejam perceptíveis as influências recebidas de Hegel, principalmente, quanto à descrição do Estado Moderno, di- ficilmente, poderiam ter sido alcançadas sem a crítica de Feuerbach à religião.

Qeutsch-~raizzosische Jalzrbucher, editado por Marx e A. Ruge, Paris, 1844. Apenas se publicou um número duplo da revista, em fevereiro de 1844.

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1 - Emancipação política e emancipação humana

Na obra intitulada A Questão Judaica, Marx enfrenta a questão da fundamentação da emancipação política e humana. O conceito de emancipação é assumido por Marx sem que o seu conteúdo seja prévia e explicitamente definido. Em todo o caso, a idéia de autonomia e liberdade parecem pertencer-lhe. A nosso ver, a emancipação política é identificada por Marx como sendo ainda uma idéia abstrata de autonomia. Neste sentido, podemos afirmar com Flickinger que "a idéia de emancipação moderna entende-se unicamente à base do questionamento da concepção idealista da autonomia e liberdade, concepção esta que foi tematizada pela filo- sofia do idealismo alemão". "0 entanto, Marx vai apontar um outro tipo de emancipação, a dizer, a emancipação humana. Nesta, o indivíduo, superando a idéia de autonomia e liberdade abstrata, busca viver no dia a dia a sua essencialidade genérica. A emanci- pação humana, no entanto, permanecerá ainda como possibilidade futura. A sua forma de efetivação ainda não se visualizará concre- tamente, o que levará Marx a seguir sua investigação em outros es- paços, como poderemos perceber na própria argumentação de Marx.

O contexto é a Alemanha, ainda sob o domínio de um Es- tado cristão, portanto, não democrático. Muitos judeus pedem a sua liberdade política neste Estado, ou seja, a igualdade de direitos ao Estado. Marx buscará mostrar erros e possibilidades desta realida- de política a partir do referencial feuerbachiano, fazendo, contudo, reflexões inéditas que ultrapassam a questão da emancipação polí- tica dos judeus, chegando a criticar, além do anacronismo e atraso político da Alemanha da época, a própria estrutura social capita- lista.

Marx analisa a opinião de Bruno Bauer, a respeito da situ- ação dos judeus dentro daquele contexto político, chegando a con- clusões bem diversas dele. Apesar de, tanto Marx como Bauer, se-

' Cf. FLICKINGER, Hans Georg. Trabalho e emancipação - Observações a partir da teoria marxiana. 111: Revista Viritas. Porto Alegre, dezembro de 1992. p. 499.

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rem jovens hegelianos e membros do ~ o k t o r c l u b , ~ Marx parece manter uma postura diferenciada em relação à teoria de Hegel, ao lhe atribuir um maior potencial crítico, por perceber nela a descri- ção de uma realidade, ou seja, o Estado Moderno. Esse parece ser um dos primeiros avanços que Marx realiza pela teoria de Feuer- bach: ver na filosofia de Hegel, embora abstrata e mística, a pri- meira expressão do Estado Moderno. A estrutura da crítica da reli- gião de Feuerbach forneceu esta possibilidade, a Marx, de perceber na própria filosofia hegeliana uma espécie de religião, como tal carregada de potencialidades humanas, possíveis de serem desven- dadas por meio de uma leitura ao avesso, desta teoria. Neste senti- do, percebe-se uma constante presença da crítica da religião de Feuerbach, aplicada à própria estrutura do Estado e também à pró- pria filosofia do direito hegeliana, enquanto descrição deste Estado. Desta forma, Marx consegue distinguir entre emancipação humana e política e superar Bauer.

Bauer defende a posição de que só haverá emancipação política no momento em que houver emancipação pessoal da reli- gião. Todavia, tanto cristãos quanto judeus teriam de, em primeiro lugar, libertar-se da religião para, então, tornar o Estado um Estado não religioso e, assim, emancipar-se politicamente. Quer dizer, para que houvesse a emancipação política, o que significa todos te- rem os mesmos direitos perante o Estado, Bauer pensava ser neces- sária a emancipação individual de todos da religiosidade, uma vez que a religião era considerada empecilho para o exercício da liber- dade e da autonomia que pareciam-lhe necessárias para o exercício da cidadania ante o Estado demo~rático.~ Bauer chega a acusar os judeus de egoístas por quererem a emancipação política e mesmo assim manter sua condição de judeus dentro de um Estado cristão. Admitir esta possibilidade seria manter um Estado de privilégios. Ser judeu e cidadão seria impossível, pois sempre prevaleceria o

Doktorclub (clube dos doutores): Grupo de estudos em torno das obras de Hegel, composto de hegelianos de esquerda, entre eles: Marx, Bruno Bauer, Arnold Ruge, Max Stirner, Moses Hess, o próprio Feuerbach e, mais tarde, também Fri- edrich Engels. Cf. SOUZA, op. cit. p. 25. Estado democrático e Estado burguês são por nós tomados como sinônimos.

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judeu sobre o cidadão e a vida no Estado seria aparência. O judeu precisaria emancipar-se, como judeu, e o homem, como religioso, para poderem alcançar a emancipação política, pensava Bauer, eis que um Estado que pressupõe a religião ainda não é um Estado democrático.

Marx contrapõe-se a esta argumentação, dizendo que Bauer pensa que a abolição política da religião significaria a aboli- ção de toda a religião. Assim, Bauer quer alcançar condições que não se baseiam na natureza da emancipação política. Aliás, Bauer nem se pergunta a respeito do tipo de emancipação que ele almeja. Quer a emancipação política, mas põe condições para a emancipa- ção humana, esta muito mais ampla que aquela.

"Bauer pergunta aos judeus: Tereis vós, do vosso ponto de vista, o direito de pedir a Emancipação Política? Nós fazemos a pergunta oposta: do ponto de vista da emancipação política, existi- rá o direito de exigir ao judeu o abandono do judaísmo, ao homem a abolição da religião?"5 Esta questão põe-se como sumamente im- portante porque, logo em seguida, Marx vai identificar a situação do judeu alemão como sendo uma questão teológica de cristãos contra judeus. Ao mesmo tempo, identifica Estados aonde as rela- ções entre judeus e Estado não são religiosas, mas puramente polí- ticas, como modelos de emancipação política. Diz que, aonde o Estado deixa de ter uma atitude teológica, pode surgir a relação de qualquer homem religioso, até mesmo do judeu, com o Estado sem problema algum, uma vez que a "emancipação política do judeu, do cristão - do homem religioso em geral - é a emancipação do Estado em relação ao judaísmo, ao cristianismo e à religião em ge- r a ~ , " ~ e não do indivíduo particular em relação à religião. Marx cita os Estados Unidos como sendo um país com plena emancipação política, em que, no entanto, as religiões continuam existindo e de maneira até mais intensa e viçosa. Demonstra-se assim

"ARX, Karl. A Questão Judaica. In: Malzuscritos Econômico Filosóficos. Lis- boa: Edições 70, 1964. p. 40. Id. p. 42.

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"que a existência da religião não se opõe à perfeição do Estado. Mas, uma vez que a existência da religião constitui a existência de um defeito, a fonte de semelhante imperfeição deve procurar- se na natureza do próprio Estado. A religião já não surge como base, mas como manifestação da insuficiência secular."'

Dessa forma, Marx propõe transformar as questões teoló- gicas em seculares e não o contrário. Faz isto ao dizer que a con- tradição do Estado com a religião é a mesma que ocorre na contra- dição entre o Estado e elementos seculares particulares, entre o Estado e os seus pressupostos. O Estado pode, pois, ser emancipa- do da religião sem que os indivíduos alcancem-na em nível pesso- al. O Estado, neste caso, assume um status semelhante ao da reli- gião em Feuerbach. Logo adiante aparece o argumento da crítica feuerbachiana da religião, aplicado ao Estado:

"Daí se segue que o homem se liberta de um constrangimento através do Estado, politicamente, ao transcender as suas limita- ções, em contradição consigo mesmo, e de maneira abstrata, es- treita e parcial. Além disso, ao emancipar-se politicamente, o homem emancipa-se de modo desviado, por meio de um inter- mediário, por mais necessário que seja tal intermediário. Por fim, mesmo quando se declara ateu através da mediação do Esta- do, isto é, ao proclamar que o Estado é ateu, encontra-se ainda envolvido na religião, porque só se reconhece a si mesmo por via indireta, através de um intermediário. O Estado é o intermediário entre o homem e a liberdade humana. Assim como Cristo é o mediador a quem o homem atribui toda a sua divindade e todo o seu constrangimento religioso, assim o Estado constitui o inter- mediário ao qual o homem confia toda a sua não divindade, toda a sua liberdade h ~ m a n a . " ~

Assim como em Feuerbach a religião era fruto da aliena- ção do ser genérico do homem em contraposição à vida individual de cada um, aqui aparece o Estado em contraposição à realidade pessoal e individual como, também, em relação às realidades parti-

' MARX, op. cit. p. 42 Id. p. 43. Em todas a citações de Marx, os grifos serão sempre do próprio Marx.

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culares, como a propriedade privada, a posição social dos indiví- duos, a educação e a profissão. Todavia, é somente, pressupondo estas realidades que o Estado pode existir. "Unicamente assim, por cima dos elementos particulares, é que o Estado se constitui como ~niversalidade."~ ~ s s i m como em Feuerbach a religião não passava da objetivação da vida genérica humana, em contraposição à reali- dade individual, aqui o Estado não passa disto. Assim como a reli- gião acontece em oposição à vida individual e concreta, assim o Estado se dá em oposição à esfera civil em que o homem continua sendo egoísta. Tanto na realidade da religião quanto na realidade do Estado, o indivíduo tem uma dupla existência, uma celeste e uma terrestre. "O Estado político, em relação à sociedade civil, é precisamente tão espiritual como o céu em relação à terra."" As- sim, enquanto o ser humano em sua realidade íntima da sociedade civil é um ser profano, no Estado é olhado como ser genérico: membro imaginário de uma soberania imaginária. Segundo Marx, está despojado de sua real individualidade e dotado de universali- dade irreal. Note-se, no entanto, que à medida que o homem vai projetando nesta realidade abstrata, que é o Estado, a sua sobera- nia, sua universalidade, não assume esta condição na sua realidade cotidiana, ou seja, existindo o Estado, a sociedade está liberta de qualquer condição genérica do homem. O individualismo e a luta de todos contra todos está, assim, legitimada e permitida. A conso- lidação do Estado Moderno torna-se, assim, condição para a radi- calização do individualismo, da legitimação da exploração e da in- diferença diante das desigualdades sociais reais. A exteriorização indireta da essencialidade genérica humana no Estado possibilita a inversão destas potencialidades.

A partir dessas observações, pôde Marx indicar com mais precisão o erro de B. Bauer, pois o Estado Político, enquanto vida genérica alienada e contraposta à vida particular da sociedade ci- vil, não pode pedir a abolição desta, dos seus pressupostos. A reli- gião em geral, bem como todas as religiões particulares, encontra- se agora neste espaço, a dizer, o da sociedade civil. Elas não po-

MARX, op. cit. p. 44. 'O Id. p. 45.

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dem ser abolidas por exigência política. Ao contrário, são seu pres- suposto, na medida em que o homem, levando a vida que leva na sociedade civil, não pode realizar aí suas potencialidades genéricas, e precisa exteriorizá-las de uma forma indireta no Estado. Marx compara esta oposição entre o homem particular e o cidadão como sendo a mesma que existe entre o homem religioso e o cidadão, o indivíduo e o cidadão, o interesse geral e o privado. Portanto, a emancipação política é o deslocamento da religião, do Estado para a sociedade civil, não abolindo, porém a religiosidade real do ho- mem, porque a sociedade civil é o espaço para as particularidades, até mesmo das religiosas. Ao invés de "abolir estas diferenças efe- tivas, ele só existe na medida em que as pressupõe; apreende-se como Estado político e revela a sua universalidade apenas em opo- sição a tais elementos."" Este formalismo abstrato e genérico, que não inclui a realidade da sociedade civil, é inerente à própria cons- tituição da sociedade moderna.12 Estes nexos entre a alienação do Estado e a alienação da religião e, portanto, também dos nexos possíveis quanto à crítica, uma vez que o Estado assume o papel da alienação generalizada, jogando a própria religião para a esfera da sociedade civil, Marx pôde encontrar, também, na própria teoria de Hegel. Para mostrar como isto se deu, Marx cita um parágrafo dos Princbios da Filosofia do Direito de Hegel:

"Para que o Estado surja como a realidade ética autoconscielzte d o espírito, é essencial que se distinga das formas de autoridade e

" MARX, op. cit. p. 44 '"egundo Antônio Carlos Mazzeo, a idéia de democracia na sociedade burguesa

também se inclui nesta abstratividade. Vejamos: "A concepção democrática da sociedade burguesa, materializada no contratualismo liberal, tem como centro a universalização da democracia, o que, dentro do pensamento marxiano, equivale dizer, uma democracia em abstrato - do mesmo modo que a própria noção de sociedade civil - e que, portanto, manifesta-se ambiguamente, porque essa uni- versalidade aparece gelzeralizada no terreno do formalismo abstrato-genérico. A democracia generalizada contém em seu ser-precisamente-assim uma particula- ridade que lhe confere a substância formal, dada pelas relações sócio econômi- cas burguesas, no plano material e pela cosmologia burguesa, no plano ideal." MAZZEO, Antôiiio Carlos. Sociologia Política Marxista. São Paulo: Cortez, 1995. (Coleção questões da nossa época; v. 49).

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de fé. Mas tal distinção só emerge na medida em que há divisões no interior da própria esfera eclesiástica. Só assim é que o Esta- do, por cima das igrejas particulares, alcançou a universalidade do pensamento - o princípio da sua forma - e a traz à existên- cia."I3

É, neste espaço, e não mais na religião em geral do ho- mem, como fazia Feuerbach, que Marx situa agora a vida genérica. Vejamos:

"O Estado político aperfeiçoado é, por natureza, a vida genérica do homem, em oposição à sua vida material. Todos os pressu- postos da vida egoísta continuam a existir na sociedade civil, fora da esfera política, como propriedade da sociedade ~ iv i l . " '~

Por isto, no pleno desenvolvimento do Estado político, a alienação não é mais percebida e expressa apenas em nível de consciência e de pensamento, como no caso da alienação religiosa, criticada por Feuerbach, mas em uma outra realidade, em que o homem continua tendo uma vida dupla (uma celeste e outra ter- restre!). Assim, temos, por um lado, o Estado político que assume, de forma desviada, o seu ser comunitário e, portanto, sua essência genérica. E, por outro lado, a sociedade civil, na qual o homem continua indivíduo egoísta e privado, "tratando os outros homens como meios, degradando-se a si mesmo em puro meio e tornando- se joguete de poderes estranho^."'^

l3 MARX, op. cit. p. 44. 14 Id. p. 45. '' Id. Ibid. p. 45. Esta constatação de Marx é confirmada, de uma forma muito

convincente e clara, através da análise da Filosofíci do Direito, realizada por Hans-Georg Flickinger, buscando a justificação da moralidade na sociedade li- beral moderna, onde esta dupla estrutura social aparece como sendo inerente à própria racionalidade burguesa. Segundo Flickinger, a sociedade liberal da qual a teoria hegeliana do direito seria a autoconsciência mais aproximada pressupõe em seu fundamento a divisão acima referida. Vejamos: "a liberdade dos indiví- duos particulares revela-se como sendo condicionada pela limitação do campo de influências das figuras jurídicas a sua função de organizar o mútuo relacio- namento entre as pessoas. Em outras palavras, as figuras jurídicas da posse, da propriedade privada e do contrato civil deveriam assegurar o livre exercício das

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Religião e capitalismo: uma reflexáo a partir de peuerbach e Marx

Para que haja emancipação política, portanto, nem o judeu nem o cristão precisam deixar sua religião; ao contrário, o Estado deve garantir a liberdade de culto. Chegar a estas formulações só foi possível para Marx na medida em que ele percebeu no Estado (com Hegel!) o espaço privilegiado da manifestação da essência genérica do homem, em que a própria religião passa para os espa- ços não genéricos, no caso, para a sociedade civil.16 Desta forma, podemos afirmar que, embora Marx conserve a estrutura da crítica da religião, ele não mais a aplica à religião, uma vez que os fun- damentos da religião e de modo especial, da religião cristã, pare- cem estar se manifestando de forma mais privilegiada em uma forma secularizada, ou seja, no Estado Moderno. No entanto, o ser humano continua, ainda, tendo uma dupla realidade, assim como antes. Porém, agora a manifestação do seu ser genérico como que migrou, secularizou-se, e, de certa forma, está mais próximo da re- alidade concreta do homem ao se manifestar no Estado. Porém, "no Estado, onde é olhado como ser genérico, o homem é o membro

vontades individuais sem, no entanto, poder interferir nas condições materiais deste relacionamento. (...) quero apenas sublinhar que sua reconstrução nos mostra uma surpreendente qualidade do direito liberal, a saber, seu caráter abs- traidor quanto ao lado qualitativo-material do mundo da racionalidade das coi- sas, posteriormente identificado como campo da economia." FLICKINGER, Hans-Georg. A legalidade da moral: considerações em torno da dupla moralida- de da sociedade liberal. Veritas. Porto Alegre, v. 40. n. 157, p. 15-26. março, 1995. ~ . 1 7 .

l 6 Segundo Ruy Fausto, este é o resultado do desenvolvimento de uma determina- ção contraditória fundamentalmente hegeliana. Vejamos: "Assim, a tese central de A Propósito da Questão Judaica que o Estado religioso é o Estado que não tem religião só existe como universal concreto. E o universa1 concreto elimina aqui radicalmente toda forma de particularização. Só há Estado religioso se toda religião (particular) desaparecer da representação do Estado." Cf. FAUSTO, Ruy. Marx: Lógica & Política. Tomo I . 2 ed.São Paulo: Brasiliense. 1987. p. 240. Embora esta nos pareça uma analogia possível de ser estabelecida com He- gel, ela não nos parece ser a tese central do escrito, mas sim a de que para o Es- tado existir, enquanto tal, precisa ainda de uma dupla realidade, a do Estado po- lítico e a da sociedade civil. Além do que, mesmo sendo o Estado este universal concreto, houve aí a necessidade de uma antropologizaçáo, desta categoria, o que, a nosso ver, só se tornou possível através do instrumental da teoria feuer- bachiana.

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imaginário de uma soberania imaginária, despojado de sua vida real individual, e dotado de universalidade irreal."'7 Contudo, a emancipação política que se dá neste nível é ainda uma emancipa- ção humana não completa, ainda se dá por meio de um intermediá- rio, e o homem ainda não consegue reconhecer, nesta estrutura, a manifestação de suas próprias potencialidades genéricas. No dizer de Marx: "A emancipação política representa, sem dúvida, um grande progresso. Não constitui, porém, a forma final de emanci- pação humana, mas é a forma final da emancipação dentro da or- dem mundana até agora existente."ls

É assim que acontece, pois, a emancipação política da reli- gião, transferida do direito público para o direito privado. No Esta- do, o cidadão passa a ser visto como um sujeito livre e autônomo.

"A religião já não é o espírito do Estado, em que o homem se comporta, se bem que de maneira limitada e numa forma e esfera particular, como ser genérico, em comunidade com os outros homens. Tornou-se o espírito da sociedade civil, da esfera do egoísmo e do bellum omnium contra omnes. Já não constitui a essência da comunidade, mas a essência da diferenciaçzo. Tor- nou-se no que era originalmente, expressão da separação do homem da sua comunidade, de si mesmo e dos outros homens. É agora apenas a confissão abstrata da loucura individual, da fanta- sia privada, do capricho."'9

Podemos dizer, até mesmo, que o Estado democrático é a realização profana da base humana da religião cristã. O que não si- gnifica que o Estado deva ser religioso. Vejamos: "o Estado que ainda é Teológico, que ainda professa oficialmente o credo cristão e que ainda não ousa declarar-se como Estado, não conseguiu ex- pressar em forma secular, lzumarza, na sua realidade como Estado, a base humana de que o cristianismo constitui a expressão estáti- ca."*' Portanto, no Estado que ainda é religioso não há uma reali-

17 MARX, op. cit. p. 46. 18 Id. p. 47. l 9 Id. Ibid. p 47. 'O Id. Ibid. p. 48.

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zação genuína da base humana da religião, ou seja, ela ainda se dá de maneira estritamente religiosa. Precisa, explicitamente, da reli- gião, a fim de se realizar como Estado, enquanto o estádio demo- crático não necessita da religião para a sua existência, embora con- tinue sendo um dos seus pressupostos, enquanto constituinte da so- ciedade civil que, por sua vez é possibilitada e possibilita a realiza- ção plena do Estado democrático, porém ele não necessita, indis- pensavelmente, dela para se justificar.

"O espírito religioso só pode realizar-se se o estádio evolutivo do espírito humano, de que ele é a expressão religiosa, se manifesta e constitui na sua forma secular. É o que acontece no Estado de- mocrático. A base deste Estado não é o cristianismo, mas a base humana do cristianismo. A religião permanece como a consci- ência dela, não secular, dos seus membros, porque é a forma ide- al do estcídio evolutivo humano, que nela se atingiu. "" No entanto, na medida em que no Estado persiste o dua-

lismo entre vida individual e vida genérica na forma do dualismo sociedade civil e sociedade política, e enquanto ele trata da vida política como verdadeira vida, separada da vida individual, ele ain- da é religioso. Se, por um lado, o Estado é a realização secular da base humana do cristianismo, por outro, não é ainda a emancipação humana porque conserva características que não permitem ao ho- mem concreto reconhecer-se na sua realidade, enquanto ser genéri- co. Vejamos a afirmação de Marx:

"A democracia política é cristã no sentido de que o homem, não só um homem, mas todo o homem, é nela considerado como ser soberano e ser supremo; mas é o homem ignorante, insaciável, o homem tal como é na sua existência fortuita, o homem como foi corrompido, perdido para si mesmo, alienado, sujeito ao domínio das condições e elementos humanos, por toda a organização da nossa sociedade - numa palavra, o homem que ainda não surge como real ser genérico. A criação da fantasia, o sonho, o postu- lado do cristianismo, a soberania do homem - mas do homem

'' MARX, op. cit. p.52.

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como ser alienado distinto do homem real - é, na democracia, re- alidade tangível e presente, máxima secular."22

Portanto, esta soberania ante o Estado pode e deve ser con- cedida a qualquer membro da sociedade civil. Pelo fato de ser reli- giosamente, ou seja, ser a expressão alienada do ser genérico do homem, ela possibilita a radicalização do isolamento e do egoísmo no dia-a-dia da sociedade civil. Portanto, a emancipação política deixa que a religião exista, enquanto assunto da vida individual. Por isto, a "contradição em que o adepto de uma religião particular se encontra quanto à sua cidadania é apenas uma parte da universal contradição secular entre o Estado político e a sociedade o que garante os direitos civis a qualquer indivíduo membro do Estado, e também ao judeu de ser judeu. O fato de poder haver emancipação política completa sem que, necessariamente, precise haver uma renúncia ao judaísmo ou a qualquer outra religião parti- cular, significa apenas que a emancipação política ainda não é a emancipação humana. Portanto, os direitos civis, enquanto expres- são da emancipação apenas política, devem ser garantidos a todos independentemente de sua situação particular, inclusive aos judeus.

Se os direitos civis podem ser garantidos aos judeus, Marx, agora, pergunta-se quanto aos direitos do homem, pois, segundo Bauer, também a estes direitos o judeu não pode ter acesso, en- quanto não abdicar de sua condição de judeu. Sem abdicar desta situação estaria se sobrepondo à humanidade. Tanto o cristão como o judeu precisariam sacrificar os privilégios de sua fé para alcançar os direitos do homem.

É interessante perceber que os direitos, na sociedade mo- derna, são divididos em dois tipos, a dizer, direitos do homem e do cidadão, ou seja, por um lado, os direitos políticos e, por outro, os direitos do homem.24 Enquanto direitos políticos, fazem parte da

'' MARX, op. cit. p. 52. '' Id. p. 53. 24 Veja-se que por esta divisão já se manifesta claramente que na sociedade mo-

derna o homem leva uma dupla realidade, uma ein nível dos direitos políticos e outra em nível dos direitos civis. Por que haveria necessidade desta divisão, se-

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Religião e capitalismo: uma reflexão a partir de Feuerbach e Marx

"categoria de liberdade política, de direitos civis, que, como vi- mos, não pressupõe de nenhum modo a abolição consciente e posi- tiva da religião; nem, por conseguinte, do judaísmo."25 Bauer, por- tanto, no que se refere a esta questão, estava errado. Vejamos, ago- ra, como Marx aborda a questão dos direitos do homem.

Nesse nível, Marx não encontra dificuldade para provar que também a estes o judeu tem direito, conforme os direitos do homem e do cidadão. Marx cita exemplos de Constituições e De- clarações que enfatizam exatamente isto: o privilégio da fé como um direito do homem ou como conseqüência do direito à liberdade individual. Se, enquanto ser genérico, como integrante do Estado democrático, não pode haver comportamento religioso, no nível da sociedade civil, na qual o homem não passa de um membro isolado e egoísta, este é um direito até mesmo constituidor da sociedade civil. Para definir, com mais clareza, a questão, Marx cita um por um os direitos fundamentais do homem e mostra que a todos eles o judeu pode ter direito, pelo fato de eles se realizarem ao nível de sociedade civil, e não considerarem o ser humano como ser genéri- co, pois esta dimensão se encontra alienada no Estado. Os direitos do homem são assim direitos de proteção do espaço individual contra a interferência das qualidades genéricas, portanto, o espaço individual no qual o Estado não pode interferir.

Mostra, assim, que o direito à liberdade nada mais é que o direito de ser indivíduo circunscrito e separado. O direito à propri- edade privada nada mais é que o direito a dispor como quiser dos seus bens e rendimentos, em que, até mesmo os outros seres huma- nos representam uma limitação da própria liberdade. A igualdade nada mais significa que a lei será a mesma para todos, embora nem todos sejam iguais. A segurança nada mais que a garantia dada pela própria sociedade do egoísmo, aonde cada pessoa pode preservar os seus direitos e propriedades, enquanto mônada isolada.

Nenhum direito do homem, portanto, vai além do indiví- duo egoísta que é membro da sociedade civil. Na própria estrutura

não para legitimar a luta de todos contra todos e o individualismo do dia-a-dia pela projeção das potencialidades genéricas em um além, no caso no Estado?

" MARX, op. cit. p. 54.

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de organização do Estado liberal, o cidadão acaba sendo servo do homem egoísta, no sentido de que a expressão genérica da qual, embora de forma alienada, o Estado é expressão, serve como meio para os interesses particulares.26 De forma que o apelo de Bauer no sentido de que o judeu teria que abandonar sua situação de judeu, caso quisesse ter acesso aos direitos do homem, é uma contradição. Eis que a dualidade entre sociedade política e sociedade civil é ine- rente à própria sociedade burguesa, aonde ocorre uma abstração do homem político em contraposição ao homem da sociedade civil, ao homem do dia a dia concreto.

Se, na sociedade feudal, as condições vitais da sociedade civil permaneceram políticas, no sentido de que o Estado era, de certa forma, também um assunto privado do governante e seus ser- vidores, a sociedade burguesa aboliu este caráter político da socie- dade civil. Ela passa agora a ser o espaço de manifestação do ser natural do homem.27 Porque somente a sociedade política é a auto- consciência do homem, aonde o homem é tido como pessoa alegó- rica e moral, em contraposição ao homem como ele é na sua reali- dade sensível, individual, imediata e egoísta. Implica dizer que o judeu ou o homem religioso em geral, podem atingir a emancipa- ção política, uma vez que ela não é nada mais que "a redução do homem, por um lado, a membro da sociedade civil, indivíduo iiz-

26 MARX, op. cit. p. 58. "O assunto torna-se ainda mais incompreensível ao ob- servarmos que os libertadores políticos reduzem a cidadania, a comunidade po- lítica, a simples meio para preservar os chamados direitos do homem; e que por conseqüência, o citoyen é declarado como servo do "homem" egoísta, a esfera em que o homem age como ser genérico vem degradada para a esfera onde ele atua como ser parcial; e que, por fim, é o homem como bourgeois e não o ho- mem como citoyen que é considerado como o homem verdadeiro e autêntico. " Como ressalta Celso Frederico : "Os Direitos do Homem, virando as costas para o ser genérico, tratam de fixar os direitos civis do homem egoísta entregue-aos seus interesses particulares na sociedade civil e indiferente ii vida comunitária." FREDERICO, Celso. O jovem Marx. (1843-44):As origens da antologia do ser social. São Paulo: Cortez, 1995. p. 98.

27 Por isso a economia, enquanto expressão deste espaço, tido como natural, apa- rece também como tendo uma constituição natural e, portanto, inquestionável, escondendo toda uma trama social inerente, justificando o totalitarismo econô- mico.

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dependente e egoísta e, por outro, a cidadüo, a pessoa Quer dizer, a emancipação política é, ao mesmo tempo, afirmação da igualdade, embora de forma alegórica e abstrata, perante o Esta- do, e a garantia de poder ser um indivíduo isolado, egoísta, propri- etário etc. em nível de sociedade civil. Como os direitos do homem não passam de garantias para o egoísmo, o isolamento e a proprie- dade, como vimos anteriormente, todos devem ter direito aos mesmos, e até os judeus, provando-se, assim, que também nesta questão Bauer estava equivocado.

Certamente Bauer supunha que a emancipação política se- ria a emancipação humana e que a vida genérica do Estado já seria a abolição total da religião. Não percebia que o Estado ainda é uma forma religiosa, embora secular, de o homem realizar o seu ser ge- n é r i ~ o . ~ ~ O homem ainda não vive em seu dia a dia a sua essência. Ainda objetiva-a num ser fora de si, no Estado. E continua vivendo numa luta de todos contra todos na realidade diária e concreta.

A emancipação humana há de ultrapassar a emancipação meramente política:

"A emancipação humana só será plena quando o homem real e individual tiver em si o cidadão abstrato; quando como homem individual, na sua vida empírica, no trabalho e nas suas relações individuais, se tiver tomado um ser genérico; e quando tiver re- conhecido e organizado as suas próprias forças (forces propres) como forças sociais, de maneira a nunca mais separar de si esta força social como força política."30

'*MARX, op. cit. p. 63. 29 FREDERICO, op. cit. p. 97: "A interpretação feuerbachiana da religião é man-

tida integralmente por Marx: na figura do Cristo o indivíduo objetiva a sua Iiu- manidade e, graças a essa intermediação, pode reconliecer o seu ser genérico alienado. O mesmo vale para o Estado, o intermediário através do qual os indi- víduos vislumbram a sua própria liberdade, as possibilidades infinitas do seu ser genérico. Este Estado, assim concebido, pode sobrepor-se aos particularismos religiosos e conceber direitos iguais a todos. Como Cristo, o Estado passa a simbolizar o homem universal."

'O MARX, op. cit. p. 63.

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Assim, pois, o que se realiza no Estado de modo estranho, em analogia à religião, é a própria essência humana estranhada, que, quando recuperada conscientemente pelo homem individual, possibilita a sua própria emancipação, ou seja, não mais apenas a emancipação política, mas também a humana.31

Como Bauer não conseguiu vislumbrar uma possibilidade concreta de emancipação do judeu, Marx assume agora a tarefa de, esclarecer as condições necessárias à emancipação do judeu e as implicâncias desta emancipação. Como veremos, a condição para tal será a superação da própria sociedade burguesa.

Marx inicia sua reflexão, enfrentando a afirmação de B. Bauer, segundo a qual os cristãos estariam a um degrau da liberta- ção da religião em geral, para se tornarem livres, enquanto os ju- deus estariam numa distância maior desta libertação, uma vez que teriam ainda que abraçar o cristianismo. Segundo Bauer, o judeu "deve romper não só com a sua natureza judaica, mas ainda com o processo para o cumprimento da sua religião, que lhe ficou estra- n h ~ " . ~ ~ Segundo Marx, no momento em que Bauer faz isto, ele transforma a questão da emancipação do judeu numa questão teo- lógica. De modo que o judaísmo não passa de uma rude crítica do

3 1 Interessante notar, portanto, que a emancipação humana dar-se-á no momento em que o indivíduo particular assumir no seu dia a dia a generalidade hisposta- siada, alienada no Estado. O que significa dizer que a emancipação humana exi- ge a supressão do Estado. Neste sentido, esta emancipação, provavelmente, dar- se-ia a partir dos próprios espaços da sociedade civil, à medida que ali se consi- gam gestar espaços públicos e comunitários que não sejam estatais, os quais, na medida em que vão se fortificando, substituem o próprio Estado. Uma questão, sem dúvida, da mais profunda importância para a discussão política e social da atualidade. Por outro lado, pode-se aprender com esta reflexão os limites das or- ganizações, movimentos populares, ONGs e mesmo partidos cujos objetivos estão estritamente ligados ?I emancipação política. No dizer de Celso Frederico: "A emancipação política, portanto, implica uma conservação de interesses parti- cularistas à margem do interesse coletivo, mantendo a cisão entre o homem e o cidadão. O mesmo vale, diríamos nós, para os movimentos sociais de defesa das "minorias" surgidos na segunda metade do século XX. São movimentos pro- gressistas, sem dúvida, mas não resolvem a reivindicação maior da emancipação humana, reclamada pelo jovem Marx, ou da sociedade sem classes, proposta ém suas obras de maturidade." FREDERICO, op. cit. p. 100.

3' MARX, op. cit. p. 65.

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cristianismo e, portanto, o interesse do cristão pela emancipação do judeu não é um interesse secular e real, mas apenas religioso, na medida em que o judaísmo ofende o olhar religioso do cristão.

Marx propõe analisar a questão da libertação do judeu de um outro ângulo, segundo o qual o que importa para abolir o ju- daísmo é buscar vencer o elemento social específico que possibilita a existência do judaísmo. Propõe, assim, buscar o segredo do judeu no judeu real e não na sua religião, seguindo a proposta de inversão materialista feuerbachiana de buscar a essência verdadeira, antro- pológica da religião. Marx, portanto, como Feuerbach, propõe-se buscar no próprio homem, nos seus próprios interesses a origem e explicação do judaísmo e da religião em geral. Se como dizia Feuerbach: "Pelo Deus conheces o homem e vice-versa pelo ho- mem conheces o seu ~eus , "~%m~or tava , então, buscar a origem antropológica, os desejos mais íntimos do ser judeu desde o qual ele criava o seu Deus. Como seria possível conhecer mais o judeu a partir de seu Deus, também seria possível conhecer o Deus do ju- deu a partir de sua vida concreta, possibilitando encontrar os ele- mentos para a emancipação do judeu na sua própria realidade diá- ria. Esta tarefa Bauer, segundo Ma?x, não conseguiu realizar. Marx propõe-se considerar o "judeu mundano real; não o judeu do sába- do, objeto das considerações de Bauer, mas o judeu de todos os di- as. "34

Dessa forma, Marx busca a explicação do judaísmo a partir de sua base profana, buscando aí o seu Deus e seu culto mundanos. Identifica a base profana com o dinheiro e a traficância. Emanci- pando-se das condições da existência destas duas realidades, a sa- ber, o dinheiro e a traficância, estaria impossibilitado o judaísmo, ou melhor, o judaísmo perderia o sentido de ser. Possibilitando a libertação de toda a sociedade do judaísmo, conquistaríamos a nossa própria emancipação porque, "no seu significado último, a emancipação do judeu é a emancipação da humanidade a respeito do judaísmo."35 Isto implica dizer que toda sociedade é, de certa

'3 FEUERBACH, op. cit. p. 55. 34 MARX, op. cit. p. 67. " Id. p 68.

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forma, alienada de maneira judaica? Parece-nos que é isto que Marx quer afirmar, o que se torna evidente na afirmação: "O judeu, que figura como um membro distinto na sociedade civil, apenas manifesta de modo distintivo o judaísmo da sociedade civil."36 E, ainda, quando diz que o

"judeu emancipou-se à maneira judaica, não só pela aquisição do poder do dinheiro, mas também porque o dinheiro, através dele e independentemente dele, se tornou um poder mundial, enquanto o espírito judaico prático se tornou o espírito prático das nações cristãs. Os judeus emanciparam-se na medida que os cristãos se tornaram judeus." 37

Na medida em que a sociedade civil separou-se da socie- dade política, através da emancipação política, possibilitada pela secularização dos princípios do cristianismo, o judeu cujo funda- mento último é o egoísmo, pôde emancipar-se também à maneira judaica no interior da sociedade civil. Mas o que significa dizer que a separação da sociedade civil em relação à sociedade política pos- sibilitou a emancipação do judeu à maneira judaica por meio do dinheiro?

Se a forma cristã de emancipação é a emancipação política por meio do Estado, a forma judaica de emancipação é o dinheiro, pelo qual se manifesta todo o seu desprezo pela natureza e todo o seu egoísmo. Isto, segundo Marx, apenas teria sido possível "quan- do o cristianismo, enquanto religião aperfeiçoada, tivesse realiza- do, de maneira teórica, a auto-alienação do homem relativamente a si mesmo e à natureza."38

"O judaísmo atinge o apogeu com a consumação da sociedade civil; mas a sociedade civil só alcança a sua perfeição no mundo cristão. Só sob a dominação do cristianismo, que exterioriza para o homem todas as relações nacionais, naturais, morais e teóricas, podia a sociedade civil separar-se completamente da vida do Es-

MARX, op. cit. p. 70. " Id. p. 68. 38 Id. Ibid. p. 72.

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Religião e capitalismo: uma reflexão a partir de Feuetbach e Marx

tado, romper todos os laços genéricos do homem, estabelecer em seu lugar o egoísmo e a necessidade interesseira, dissolvendo o mundo humano num mundo de indivíduos atomizados e antagô- n i c o ~ . " ~ ~

O judaísmo, enquanto expressão privilegiada do egoísmo e do individualismo generalizados da sociedade civil, tornou-se uni- versal, podendo "transformar o homem alienado e a natureza alie- nada em objetos alienáveis, próprios para venda, na subserviência à necessidade egoísta e à t rafi~ância"~~.

Feuerbach identificou na religião em geral a essência gené- rica humana, a manifestação dos seus desejos mais profundos. Marx parece ter encontrado a secularização da religião cristã atra- vés do Estado liberal e agora também do Deus judeu, ao lado do qual nenhuma outra divindade é permitida, no dinheiro. Contudo, mesmo que a emancipação política e a emancipação à maneira ju- daica sejam uma forma de secularização de suas religiões, estas emancipações ainda se dão por um intermediário, a dizer, o Estado e o dinheiro, e, por isto, ainda não são a emancipação humana. Além disto, estas formas parciais de emancipação são, na verdade, os dois lados da mesma moeda e, apesar de uma ser condição da outra, por si só expressam a insuficiência das suas formas de emancipação, por atingirem apenas uma dimensão da vida humana, revelando, assim, a necessidade de o ser humano manter uma vida dupla. Nelas o homem ainda não se dá conta do seu ser genérico, embora o manifeste. Por isto, deixa-se dominar por seus produtos. Como conseqüência do rompimento de todos os laços genéricos do homem na sociedade civil, cuja manifestação mais significativa revela-se na forma dinheiro, e sua transferência para o espaço abs- trato do Estado, gerou-se um mundo de indivíduos atomizados e antagônicos.

Segundo Marx, pelo dinheiro o ciumento Deus de Israel tornou-se um poder mundial. Feuerbach já havia identificado o Deus judeu com esta tentativa de abstração e anulação das coisas

39 MARX, op.cit. p. 72. 40 Id. p. 7 2

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reais, de anulação da natureza, em vista dos interesses egoístas e utilitaristas, principalmente, através do mito da criação.4' Marx agora identifica a realização secular desta busca, através do deus secular, no dinheiro, e localiza a sua função dentro da estrutura da sociedade burguesa. O dinheiro passa a ser um valor universal e auto-suficiente que se constitui e legitima no interior da sociedade civil, ao qual todo o mundo humano e a natureza são submetidos.

Assim, a sociedade civil é o espaço por excelência do ju- daísmo, e o ser judeu, como figura distinta da sociedade civil é, apenas, uma forma diferenciada de manifestação do judaísmo ge- neralizado da própria sociedade civil. O Deus judeu tornou-se, por meio do dinheiro, o Deus secularizado de todo o mundo. O império da propriedade privada e do dinheiro, como expressão do desprezo imaginário da religião judaica pela natureza e pelo mundo humano, submetendo-os aos interesses egoístas e não os vendo como fins em si mesmos (como, segundo Feuerbach, os gregos faziam), tor- nou este desprezo prático, atingindo todos os níveis de relação do homem. Chega, até mesmo, a transformar a relação genérica de homem e mulher em uma relação de comércio.

"O dinheiro é o ciumento deus de Israel, a cujo lado mais ne- nhuma divindade pode existir. O dinheiro rebaixa todos os deu- ses do homem e transforma-os em mercadoria. O dinheiro é o valor universal e auto-suficiente de todas as coisas. Por conse- guinte, destituiu todo o mundo, tanto o mundo humano como a natureza, do seu próprio valor. O dinheiro é a essência alienada do trabalho e da existência do homem; esta essência domina-o e ele presta-lhes culto e adoração."42

41 FEUERBACH, op. cit. p. 153. "A doutrina da criação do judaísmo; ela é mes- mo a doutrina característica, fundamental da religião judaica. Mas o princípio que fundamenta aqui não é tanto princípio da subjetividade, mas antes o do egoísmo. A doutrina da criação em seu significado característico só aparece no estágio em que o homem, na prática, submete a natureza somente ii sua vontade e necessidade, rebaixando-a por isso também em sua concepção a uma mera matéria-prima, a um produto da vontade."

42 MARX, op. cit. p. 70.

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Religião e capitalismo: uma reflexão a partir de Feuerbach e Marx

Marx completa o seu raciocínio, fazendo mais uma analo- gia com a religião:

"Assim como o homem, enquanto permanece absorto na religião, só pode objetivar a sua essência através de um ser estranho e fantástico, assim sob a dominação da necessidade egoísta só pode afirmar-se a si mesmo e produzir objetos na prática, subor- dinando os produtos e a própria atividade ao domínio de uma entidade alheia, atribuindo-lhes o significado de uma entidade estranha, a saber, o dinheir~."~"

De forma que a essência do judeu se encontra empirica- mente realizada na sociedade contemporânea. Não apenas no ser religioso do judeu particular, mas na própria mesquinhez do ser ju- daico da sociedade. Bauer não havia percebido o fundamento em- pírico do judaísmo e, portanto, a perspectiva apontada não ultra- passava os limites da religião. Por isto, também não percebeu que a superação do conflito entre a existência individual e sensível do homem e sua existência genérica só seria possível quando a base subjetiva do judaísmo, enquanto necessidade prática, se tornasse humana, pela abolição da sua essência empírica: a traficância e seus pressupostos. Por isto, a emancipação social do judeu só se torna possível com a emancipação da sociedade do seu judaísmo.

2 - A crítica da religião como fundamento de toda a crí- tica

Na obra Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (Introdução), Marx faz a famosa afirmação de que no "caso da Alemanha, a crítica da religião foi em grande parte completada; e a crítica da religião é o pressuposto de toda a crítica".44 Quando Marx diz que a crítica da religião na Alemanha estaria completada, está se referindo à crítica da religião realizada por Feuerbach. A proposta de Marx se direciona agora para o meio em que o homem

4 h ~ ~ ~ , op. cit. p 72. Id. p. 77.

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concreto se situa quando produz a religião, ou seja, para o espaço do "judaísmo generalizado da sociedade civil", antes identificado, do qual a religião judaica é apenas uma expressão.

Antes, porém, de iniciarmos a análise deste texto, gostarí- amos de destacar que nosso interesse está centrado na busca do instrumental feuerbachiano e na forma como ele é utilizado por Marx. A teoria de Hegel será, portanto, considerada apenas en- quanto for alvo deste instrumentário, o que não significa que não buscaremos os seus potenciais e mesmo os elementos fornecidos, que fizeram Marx, em parte, repensar a própria teoria de Feuer- bach.

Mediante a crítica da religião, percebeu-se que aquilo que o homem procurava na fantasia celeste, no ser sobre-humano, era apenas o reflexo de suas próprias capacidades como ser genérico e de suas potencialidades, enquanto autoconsciência e sentimento do homem perdido de si mesmo45, de que, ao contrário do que se pen- sava até então, o homem faz sua própria religião. Para realizar esta crítica, Feuerbach pressupôs uma natureza humana, de certa forma, imune às variações da história e da política. Marx, porém, acres- centa que "o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a ~oc iedade . "~~ Segundo Vázquez, a problemática da relação entre filosofia e ação aqui levantada vai ao encontro da questão central dos jovens hege-

45 Esta dupla fundamentação da alienação religiosa caracteriza-se pelo fato de o homem, por um lado ser um ser genérico e, por outro, ter a capacidade de ter consciência no sentido rigoroso, ou seja, ter consciência deste ser genérico que se contrapõe à sua existência individual. No momento em que o indivíduo não reconhece estas qualidades do gênero, ele as hipostasia em um indivíduo que então denomina de Deus. Segundo Draiton Gonzaga de Souza: "Fundamenta-se, pois, a alienação religiosa, por um lado, na própria estrutura da consciência e, por outro, na tensão entre indivíduo e espécie daí decorrente. Em primeiro lugar, o homem tem consciência de si, isto é, ele é capaz de tomar sua própria essência como objeto de sua consciência. A consciência objetiva, enquanto consciência do objeto, pressupõe, constitucionalmente, a diferença entre o eu e o objeto. Ora, no caso, o eu se experimenta como finito, marcado por muitos limites, isto é, o eu finito, enquanto indivíduo, experimenta-se, em sua facticidade existenci- al, infinitamente distinto do que ele pode ser." SOUZA, op. cit. p. 54.

46 MARX, op. cit. p. 77.

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lianos, no sentido de que todos eles buscavam a transformação da realidade, e da sua crença de que a filosofia seria o instrumento adequado para este fim. No entanto, como a simples crítica da rea- lidade não conseguia transformar a realidade, Marx propõe, então, uma outra relação a ser estabelecida entre filosofia e realidade, não apenas enquanto crítica, mas que a filosofia para mudar a realidade teria que se rea~izar.~' Segundo Flickinger, o objetivo de Marx, neste período, centrou-se na busca de uma "perspectiva emancipa- tório-prática", uma vez que as principais fontes intelectuais da épo- ca, a saber: a crítica da religião, realizada por Feuerbach, a econo- mia do primeiro capitalismo e a filosofia hegeliana, não "consegui- ram mais do que contribuir com seus raciocínios à reflexão políti- co-sistemática do capitalismo, não sendo capazes de mostrar uma saída prático-social às conseqüências desastrosas de uma forma de produção de~trutiva."~'

Aquilo que na crítica da religião só podia se dar numa di- mensão abstrata e desvinculada da realidade política e histórica do ser humano, precisava tornar-se um instrumental para trazer à tona as formas de dominação não sagradas que se apoiavam na mesma forma de legitimação que a religião. Era preciso, pois, utilizando esta estrutura crítica, combater a realidade concreta e fundamenta- dora da alienação, demonstrando o seu caráter enganador. Para po- der fazer esta analogia, confirmar o potencial desta crítica, Marx precisou encontrar uma figura que pudesse dar sustentação a esta possibilidade. Era preciso demonstrar que, no próprio processo de desenvolvimento humano social, esta era apenas uma etapa, de- monstrando, assim, a sua transitoriedade e insuficiência, bem como a possibilidade de sua superação sem desconsiderar sua importân- cia neste processo. Esta figura, Marx parece ter encontrado na Fe- izomenologia do Espírito, de Hegel. Conforme Flickinger:

"Esta tese, extremamente forte diante de suas outras críticas da teoria feuerbachiana, não se deixa entender de modo satisfatório na base do argumento histórico, pois aponta um momento da

47 VÁZQUEZ, op. cit. p. 127. 48 FLICKINGER, op. cit. 1985. p. 16.

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constituição da teoria crítica pretendida, que é aquele relativo à importância do aparecer enquanto categoria lógica da investiga- ção. O resultado da crítica feuerbachiana da religião cristã basea- ra-se no esclarecimento de uma ideologia em vigor, do aparecer enganador produzido pelo homem e expresso na tese do "mundo invertido" da religião, reatualizando assim um conceito funda- mental da Fenomenologia do Espírito hegeliana que, como se verá, levou a consciência ingênua a dar-se conta do aparecer en- ganador vigente nas suas experiências." 49

Assim, Marx pode afirmar algo além da alienação da reli- gião, embora o esclarecimento da alienação religiosa tenha sido fundamental para a descoberta da inversão do mundo e da possibi- lidade de crítica inerente a este. Marx pode identificar o momento da figura do mundo invertido em diversas outras estruturas, tal como lhe havia mostrado a experiência de análise do Estado mo- derno e mesmo da questão judaica, acima analisadas. Ambas são estruturas de mundo invertido. Por isto, Marx pôde fazer a seguinte afirmação a respeito daquele Estado e sociedade que são o próprio mundo do homem:

"Este Estado e esta sociedade produzem a religião, uma consci- ência invertida do mundo, porque eles são O mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédi- co, a sua lógica em forma popular ... Por conseguinte, a luta contra a religião é indiretamente a luta contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião."50

Em Hegel, o mundo invertido, embora seja um aparecer enganador, carrega em si momentos que são constituidores da pos- sibilidade de autoconsciência. É resultado do desenvolvimento, faz parte da processualidade da consciência em direção da autocons- ciência, sendo uma primeira forma, embora ainda externa ao su- jeito, enquanto algo auto-reflexivo. Ora, na medida em que Marx

49 FLICKINGER, Hans-Georg. Marx e Hegel: o porão de urna filosofia social. Porto Alegre, L&PM e CNPq, 1986. p.35.

" MARX, op. cit. p. 77.

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vê na filosofia de Hegel a mistificação da realidade,51 ele pode en- contrar na sua filosofia elementos que, quando traduzidos para a realidade, tornam-se explicadores e, até mesmo, críticos desta rea- lidade. Um destes momentos, que Marx parece estar usando, é a teoria do mundo invertido, traduzida para a realidade concreta e social, incluindo, assim, a própria teoria de mundo invertido, tal como ela se dá na processualidade da consciência em direção à autoconsciência em Hegel, neste mundo invertido, ou seja, a pró- pria teoria do mundo invertido, enquanto faz parte de uma recons- trução meramente teórica e abstrata da realidade humana, também é um mundo invertido, assim como todo o restante da teoria de Hegel.

Assim, a religião, enquanto mundo invertido, criticado por Feuerbach, é o que Hegel, de uma forma invertida, atribui ao mun- do invertido, no papel que ele assume na explicitação da Fenome- nologia do Espírito. Por isto, pode-se dizer que Marx supera am- bos, usando ambos. Supera Hegel, através de Feuerbach, ao dizer que a estrutura do mundo invertido acontece na realidade da reli- gião, que, por sua vez, tem por fundamento a própria realidade humana: a sociedade, o Estado. Mas supera também Feuerbach, através de Hegel, no momento em que compara a religião ao mun- do invertido, que acontece na fenomenologia do espírito, exposta por Hegel. Porque o mundo invertido ali aparece carregado de uma processualidade, contendo já em si mesmo o próprio princípio da mudança, da vida, da contradição, e não como simples projeção de uma essência humana estável e a-histórica, como era o caso da ali- enação religiosa, criticada por Feuerbach. Hegel incluía na figura

5 1 Misticismo este que faz parte da própria realidade da sociedade burguesa, que encontra na Filosofia do Direito, de Hegel, enquanto sendo, segundo o próprio Marx, a expressão equivalente desta realidade, a melhor expressão. Portanto, criticar a filosofia hegeliana significa criticar a própria realidade que ela repre- senta. No dizer de Avelino de Oliveira: "O "misticismo lógico" de Hegel é de- nunciado como uma inversão das relações reais, uma subjetivação da idéia. A relação real dos indivíduos com o Estado é especulativamente identificada por Hegel como atuação deste sobre aqueles. O real é apresentado como fenômeno, manifestação da "idéia real"". OLIVEIRA, Avelino da Rosa. Marx e a liberda- de. Coleção filosofia. Porto Alegre: EDIPUCRS. 1997. p. 57.

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do mundo invertido a mudança e a vida5', mas via-a como um pas- so apenas dentro do desenvolvimento da consciência individual em direção à autoconsciência. Com Feuerbach, através da crítica da religião, Marx aprendeu que esta figura também precisa ser reduzi- da à sua realidade humana, ao seu fundamento antropológico e so- cial. No entanto, a crítica da religião de Feuerbach, que consiste fundamentalmente na idéia de que o homem, enquanto ser genéri- co, pode produzir produtos a partir desta essência genérica e pode não se dar conta do caráter genérico deles, o que o leva à projeção no além dos seus desejos de vida feliz e à auto-submissão a estas suas próprias criaturas, foi essencial para que Marx não permane- cesse preso ao idealismo místico de Hegel. Feuerbach possibilitou a Marx esta leitura ao avesso de Hegel, mediante a qual encontrou, no próprio Hegel, elementos que nem mesmo o próprio Hegel ha- via percebido, e aos quais Feuerbach não soubera chegar. Desta forma, não deixou de buscar no próprio idealismo hegeliano, no caso, na figura do mundo invertido, a revelação da própria estrutu- ra da constituição social, o mesmo que Feuerbach fez com a reli-

OU seja, reinverte o mundo invertido, com a crítica a ele.

52 O significado da figura do mundo invertido na Fenome?rologia rlo Espírito po- deria talvez ser resumido no seguinte parágrafo: "Esta infinitude simples - ou o conceito absoluto - deve-se chamar a essência simples da vida, a alma do mun- do, o sangue universal, que onipresente não é perturbado nem interrompido por nenhuma diferença, mas que antes é todas as diferenças como também seu Ser; suprassumido; assim, pulsa em si sem mover-se, treme em si sem inquietar-se. E igual-a-si-mesmo, pois as diferenças são tautológicas; são diferenças que não são diferenças nenhumas. Portanto, essa essência igual-a-si-mesma só a si mes- ma se refere. A si mesma; eis aí o Outro ao qual a relação se dirige, e o relacio- nar-se consigo mesma é, antes, o fracionar-se ou, justamente, aquela igualdade- consigo-mesma é a diferença interior." HEGEL, Geor Wilhelm Friederich. Fe- nomerzologia cio Espírito. Petrópolis: Vozes. 1988. p. 115.

53 Neste sentido, torna-se bastante compreensível que mais tarde Marx se preocu- pe em expor a própria lógica do capital, a fim de, ao expor sua lógica, mostrar também sua potencialidade crítica. No entanto, Marx teria de passar por diver- sos momentos até convencer-se de fazer a exposição que fez em O Capital. Ao invés de fazer uma crítica vinda de fora, Marx passará a buscar a crítica ima- nente ao próprio sistema. É na perspetiva desta mudança metodológica futura que se pode entender a afirmação de Ruy Fausto de que neste período "Marx critica Hegel porque este supõe a existência de um sujeito autôrzomo de que os

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Desta forma, Marx supera ambos, pois ao mesmo tempo em que submete a filosofia hegeliana à crítica desmistificadora, possibili- tada por Feuerbach, encontra elementos na filosofia hegeliana que introduzem a processualidade histórica à essencialidade humana, o que Feuerbach não soubera fazer. Marx, no entanto, vai buscar os elementos da alienação na realidade humana concreta, o que aprendeu de Feuerbach, mas esta realidade humana concreta não é uma essência a-histórica, o que aprendeu de Hegel.

Assim, segundo Flickinger, a argumentação de Marx, neste momento, encontra-se marcada por um duplo interesse que tem, por um lado, "a exigência de tornar a filosofia uma prática positiva - herança de Feuerbach - e, por outro, pela capacidade construtiva da teoria hegeliana, através da qual desembocaria na confrontação entre a realidade social e o domínio do conceito autônomo pressu- posto."54

Dessa forma, torna-se claro que o que precisa ser combati- do, em primeiro plano, para que a felicidade ilusória da religião, enquanto ela é apenas uma teoria comum deste mundo, deixe de ser necessária, não é a religião, propriamente, mas a situação na qual o homem se encontra e que precisa de ilusão, quer dizer, a fi- losofia precisa realizar-se. É preciso que se transforme a situação que não permite que se faça a re-inversão do mundo invertido, combatendo a auto-alienação humana nas suas formas não sagra- das.

Ora, dizer que a auto-alienação religiosa existe sob formas não sagradas tem, como conseqüência, dizer que ela existe na constituição da própria sociedade; e, se a religião é um artifício humano que joga as aspirações de felicidade do ser genérico hu- mano para o além, fazendo com que o aquém permaneça tal e qual está, então a função das estruturas de alienação não sagradas têm,

indivíduos são portadores. O que, guardadas outras diferenças, ele mesmo supo- ria mais tarde, ao escrever O Capital." Cf. FAUSTO, op. cit. p. 243. Segundo Fausto, neste momento, tanto quanto nos Manuscritos, Marx teria como alvo de suas críticas, pensamentos que, através de abstrações, tornam-se autônomos. O dinheiro seria uma destas abstrações e, portanto, o capital não era ainda con- siderado enquanto sujeito.

" FLICKINGER, cp. cit. 1986 p. 35.

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no mínimo, caráter similar, ou seja, manter a estrutura da sociedade tal e qual está. Quanto a isto, afirma Flickinger: "A religião não só transfere a utopia de uma vida feliz à esfera exterior da vida con- creta, pior ainda, sua função enganadora pertence, como ilusão ne- cessária, à própria sociedade moderna, que não poderia sobreviver sem esta esperança." 55 De forma que toda a crueza e infelicidade da sociedade moderna é suportada e mesmo possibilitada pela projeção dos desejos de felicidade no além, em um mundo imagi- nário que, conforme Marx procurou demonstrar nos seus escritos anteriores, podem ser o próprio Estado, o dinheiro e outros. Desta forma, torna-se bastante elucidativa a afirmação que, ao mesmo tempo é uma definição da perspectiva, da metodologia a ser adota- da daqui para frente, de que a "crítica do céu transforma-se deste modo em crítica da terra, e a crítica da religião em crítica do di- reito, a crítica da teologia em crítica da política."56

Definida a perspectiva do seu empreendimento, Marx lan- ça-se ao trabalho, buscando estabelecer as possibilidades de reali- zação da filosofia. Não, porém, sem antes fazer uma advertência de que não se ocupará de algo original, mas de uma cópia, ou seja, da filosofia alemã do Estado e do Direito, cuja expressão mais com- pleta se encontra na filosofia hegeliana, em vez de se ocupar do próprio Estado de Direito, o que demonstra a sua confiança nesta filosofia como tradução da sociedade moderna. Esta opção de tra- balhar a filosofia alemã do Estado e do Direito é feita porque, se- gundo o próprio Marx, esta é a única forma pela qual a Alemanha tornou-se contemporânea e equiparada à época moderna, embora sua realidade histórica e concreta ainda estivesse muito atrasada.

55 FLICKINGER, op. cit. 1985 p. 18. É a promessa de uma sociedade melhor (céu) sempre presente, e que é uma das formas pelas quais o capitalismo conse- gue manter-se reconhecido e legitimado como forma de organização social. O reconhecimento desta lógica social, portanto, tem como base este sonho fantas- magórico, mas que é também, embora de forma alienada, resultado da essencia- lidade genérica do ser humano. Ou seja, este artifício só é possível por causa desta dimensão genérica do ser humano. Se não houvesse este lugar comum, não haveria possibilidade de reconhecimento, fosse ele de que tipo fosse.

56 MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (Introdu- ção). In: Mai~uscritos Econórnico-Filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1964. p. 78

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"Assim como as nações do mundo antigo viveram a sua pré- história na imaginação, na mitologia, assim nós, alemães, vive- mos nossa pré-história no pensamento, na Filosofia. Somos os contemporâneos filosóficos da época atual, sem sermos os seus contemporâneos ~zistóricos."~~

Dizer que a mais alta expressão da filosofia alemã do Di- reito e do Estado estaria em Hegel, embora este pensamento fosse um pensamento extravagante, abstrato e sem levar em conta a rea- lidade material do homem, apenas significa, segundo Marx, que o próprio Estado Moderno é abstrato e não leva em conta o homem real, de forma que esta filosofia expressa também a imperfeição do próprio Estado Moderno. Assim, pois, Marx utiliza-se da filosofia hegeliana do Direito por ela ser a caracterização mais profunda do Estado Moderno, por expressar com mais clareza a separação entre sociedade civil e sociedade política, embora isto não seja visto como algo negativo pelo próprio Hegel.

Dessa forma, a própria filosofia alemã já induziria também as tarefas que só poderiam ser resolvidas pela atividade prática, em contraposição à teoria hegeliun; e, como tal, da própria realidade do Estado Moderno que exige a abstração da realidade concreta. Percebe-se, de novo, a importância da perspectiva materialista her- dada de Feuerbach, o que se traduz, como veremos adiante, na pri- orização da problemática da emancipação humana, na medida em que todo o escrito põe-se a serviço da superação da auto-alienação, embora agora com um caráter mais social e prático do que indivi- d ~ a l . ~ ~ São atividades que significariam a própria superação do Estado Moderno. Foi exatamente a perspectiva aberta por Feuer- bach que possibilitou a compreensão e mesmo o caminho sistemá- tico que pôde mostrar os limites e o mero aparecer enganador que

" MARX, op. cit. p 84. Conforme Celso Frederico: "A emancipação, vale dizer, a ultrapassagem da

auto-alienação, não surge mais como resultado da ação desmistificadora da consciência. O processo emancipatório é entendido diretamente como revoluç6o social, como derrocada de uma "violência material" pela ação de outra "violên- cia material"". FREDERICO, op. cit. p. 105.

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se escondia na filosofia político-liberal de Hegel, enquanto ela projetava a liberdade do homem apenas na teoria do direito.59

Para esclarecer ainda mais a sua perspectiva metodológica, Marx posiciona-se ante as duas facções políticas da Alemanha de sua época, as quais chama de facção política prática (praktisclze politische Partei) e facção política ípolitische ~ a r t e i ) ~ ' : a primeira, "virando as costas para a filosofia", exigia a negação da filosofia, dando assim tudo à prática e nada à filosofia e a segunda acreditava que a filosofia poderia realizar-se dentro de seus limites, dando, pois, tudo à teoria e nada à prática. Segundo Marx, a primeira não percebeu que "é impossível abolir afilosofia sem a realizar" e a segunda enganou-se porque "pensou que poderia realizar a filoso- fia sem a abolir. "'' A perspectiva metodológica torna-se, assim, clara: sem dar as costas à filosofia, superá-la. Mas superá-la para além dos seus limites, ou seja, na realidade prática.62

59 Conforme Flickinger: "A crítica de Feuerbach fez Marx perceber na filosofia política de Hegel a exata expressão filosófica do estado real da sociedade que, como a religião cristã, apresentou-se enquanto face integral da sociedade bur- guesa, isto é, como projeção da liberdade do homem na teoria do direito. Sua função revelou-se a de transfesir a idéia da liberdade do homem à área mera- mente teórica, único lugar objetivo do falar da liberdade. A "Filosofia do Direi- to" conservava a pretensa liberdade universal enquanto princípio da modernida- de, sem que pudesse reencontrá-la nas estruturas e circunstâncias da vida do homem." FLICKINGER, op. cit. 1985. p. 20.

" Segundo Vázquez: "Trata-se de duas expressões teóricas do liberalismo alemão da época; o primeiro cosresponde ao movimento romântico-liberal que procede da "Jovem Alemanha" e o segundo precisamente à esquerda hegeliana." VÁZQUEZ, op. cit. p. 126.

61 MARX, op. cit. p. 85. 62 Interessante notar neste momento que a expressão "é impossível abolir a filoso-

fia sem a realizar" (Ihr konnt die Pkilosopliie nicht auflleben, ohne sie zil

venuirklichen) também pode ser traduzida por "não se pode suspender a filoso- fia sem realizá-la", como o faz Flickinger, que comenta a expressão da seguinte forma: "A realização da filosofia, portanto, implicaria, tanto sua negação en- quanto lugar esotérico da liberdade, quanto a da realidade repressiva que se apoiava exatamente nesta função ideológica. Ora bem, não se tratou, para Marx, de uma renúncia à filosofia, contentando-se com uma perspectiva empirista do mundo material; ao contrário, Marx insistiu na "suspensão" da filosofia no sen- tido hegeliano da palavra, isto é, enquanto destruição de sua velha forma e fun- ção de mera ideologia, mas guardando-a, ao mesmo tempo, na sua capacidade

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O potencial da filosofia alemã, portanto, não podia ser dei- xado de lado. "Surge então a questão: pode a Alemanha atingir uma práxis à la Izauteur des principes, quer dizer, uma revolução que a elevará não só ao nível oficial das nações modernas, mas ao nível humano, que será o futuro imediato das sobreditas Quer dizer, seria possível, apesar da situação política retrógrada da Alemanha, realizar nela os avanços da filosofia, na expressão da filosofia hegeliana, e da crítica da filosofia de Feuerbach? Seria possível efetivar a emancipação humana sem ter vivenciado na re- alidade, mas, apenas, em nível de filosofia, a emancipação políti- ca?" Ou mais, seria possível, vivendo na situação da contradição entre a realidade alemã e a idéia da liberdade universal, que era apenas vivida de forma alienada, como mera projeção pela filosofia alemã, superar esta situação?

Ora, a situação social e política da Alemanha de então era considerada atrasada, anacrônica e até mesmo vergonhosa em rela- ção aos outros países europeus e mesmo ante os Estados Unidos, como vimos na análise da Questüo Judaica. Isto pelo fato de não ter ainda buscado a emancipação política, ou seja, não ter feito ain- da a revolução burguesa iniciada pela revolução francesa, vivendo ainda a herança do despotismo feudal. Mas, por outro lado, a nível de filosofia, ela se encontrava à altura das demais nações. Marx

de reconstruir o processo genérico da própria sociedade moderna, já que nela se mostra o caráter de momento constitutivo" FLICKINGER. Hans-Georg. mar.^: ?ias pistas da clesnzistij~cnçáo filosófica do capitalismo. Porto Alegre: L&PM. 1985. p. 22. MARX, op. cit. p. 86.

64 Marx parece sempre estar pressupondo que a sociedade tem um desenvolvi- mento ternário. no sentido de que há um estágio originário anterior à separação entre sociedade civil e Estado, cuja realização é alcançada através da emancipa- ção política, mas que haverá um terceiro momento, a da superação da emanci- pação política em vista da emancipação humana. Nesta perspectiva, Giannotti afirma que a esta altura de sua carreira "Marx a priori enquadra a totalidade da história num movimento ternário e a considera como um processo evolutivo que tem por princípio a comunidade primitiva, a sociedade civil como etapa inter- mediária da radicalização da alienação e o comunismo como terceiro momento a recuperar o universal originário num nível superior de concreção." GIAN- NOTTI, op. cit. 84.

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procura esclarecer, então, que tipo de teoria seria necessária para que se tornasse possível a superação desta situação em que a reali- dade alemã se encontrava. Seria preciso, a exemplo das outras na- ções, instituir primeiro a emancipação política, ou seja, constituir o Estado democrático em detrimento do Estado teológico, feudal? Ou o fato de a Alemanha se encontrar a nível de filosofia à altura das demais nações possibilitar-lhe-ia atingir, diretamente, na práti- ca, a emancipação humana sem concretamente precisar passar pela emancipação política? O primeiro passo, seguindo a metodologia descoberta, seria tornar a teoria uma força material, uma vez que, por si só, ela não transforma a realidade. Isto aconteceria no mo- mento em que esta apoder-se-ia das massas, buscando dar, assim, uma perspectiva prática para as suas reflexões, tirando-lhe a exclu- siva característica de ser apenas uma projeção e, como tal, uma forma de manutenção da infeliz realidade. Mas como a teoria apo- derar-se-ia das massas? No momento em que se tornasse humana, radical, agarrando as coisas pela raiz, quando, portanto, a crítica correspondesse a uma necessidade radical. Como a raiz do homem é o próprio homem, é por ali que ela deve começar. O que, segundo Marx, teria acontecido pela crítica à religião65: "A crítica da reli- gião conclui com a doutrina de que o Izomenz é para o homem o ser supremo. Conclui, por conseguinte, com o imperativo categórico de derrubar todas as corzdições em que o homem surge como um ser humilhado, escravizado, abandonado, desprezível ... ."" Por- tanto, na Alemanha a filosofia era radical e por isto poderia se apo- derar das massas.

Como prova de que a emancipação, que se dá primeiro apenas em um nível teórico, pode ter uma importância prática, Marx cita o caso da Reforma, originada a partir da cabeça de Lute- ro, no momento em que ele libertou o homem de sua religiosidade

" VAZQUEZ, op. cit. p. 128. "A crítica radical começou com Feuerbach; graças a ela, o homem tomou uma verdadeira consciência de si mesmo. Mas a crítica da religião - "premissa de toda a crítica", como reconhece Marx - é crítica radical no plano teórico. A passagem da crítica radical do plano teórico ao prático é precisamente a revolução."

" MARX, op. cit. p. 86.

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exterior e interiorizou-a no próprio homem. Conclui que, assim "como então a revolução se originou no cérebro de um monge, hoje é no cérebro do filósofo. " 67 O filósofo tem, pois, a possibili- dade de realizar esta "metamorfose filosófica dos alemães ecle- siásticos em homens"68, emancipando a realidade política de toda esta realidade enganadora, cuja auréola é a religião. Assim, esta- vam dadas as condições para, por causa da própria situação ana- crônica da Alemanha, não apenas secularizar a religião cristã no Estado realizando a emancipação política, mas alcançar a própria emancipação humana, uma vez que com Feuerbach teriam sido da- dos os elementos de superação desta filosofia em direção à sua re- alização prática. Para isto era preciso conseguir fazer o que Marx havia postulado no final da primeira parte da Questão Judaica: "quando o homem real e individual tiver em si o cidadão abstrato; quando como homem individual, na sua vida empírica, no trabalho e nas suas relações individuais, se tiver tornado um ser ge~7érico."69

A filosofia possibilitava, assim, um salto à frente em rela- ção à outras nações. Para tanto, a liberdade imaginária, que se anunciava no cenário da filosofia, precisava ser transformada em realidade material e concreta. A estrutura crítica de Feuerbach permitia vislumbrar a possibilidade desta virada. Era preciso reali- zar a filosofia alemã e com ela todos os seus avanços, o que signi- ficaria a sua superação. Faltava, agora, saber de que massas ela po- deria se apoderar.

Como, para que a teoria possa se realizar em um determi- nado povo, precisa estar de acordo com as necessidades deste povo, Marx se pergunta se na realidade alemã as necessidades teó- ricas realmente corresponderiam às necessidades práticas, uma vez que ela acompanhou a evolução das outras sociedades apenas pela atividade abstrata. Observa então que, mesmo que não se tenha participado das lutas reais deste desenvolvimento, mesmo que não se tenha passado pela emancipação política e pelos seus conse- qüentes benefícios, experimentaram-se as dores deste movimento.

67 MARX, op. cit. p. 87. Id. p. 87.

69 Id. Ibid. 63.

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"A atividade abstrata, por um lado, tem a sua contrapartida no so- frimento abstrato, por outro. E um belo dia, o alemão encontrar-se- à ao nível da decadência européia, antes de alguma vez ter atingido o nível da emancipação européia."70 Portanto, poderia ser possível atingir o estágio em que as outras nações se encontravam e, até mesmo, superar esta situação, fazendo uso da filosofia desenvolvi- da.

O sonho utópico7' da Alemanha, segundo Marx, é atingir a emancipação política que, por não ser ainda emancipação humana, é apenas uma emancipação parcial, porque não passa da emancipa- ção de uma seção da sociedade civil que alcança domínio univer- sal7! Quais seriam as condições desta emancipação parcial? Que uma classe particular da sociedade civil empreendesse uma eman- cipação geral, pois do contrário, se não tivesse aspirações de inte- resse geral, não teria condições de mexer com as massas, pois só "em nome dos interesses gerais da sociedade é que uma classe par- ticular pode reivindicar a supremacia O que, no parecer de Marx, não existia na Alemanha de então.

Para Marx, na Alemanha, "nenhuma classe da sociedade civil sente a necessidade ou tem a capacidade de conseguir uma emancipação geral, até que a isso é forçada pela situação imediata, pela necessidade nzaterial e pelos próprios grilhões."74 Inicia-se aqui uma argumentação muito mais lógica que histórica, no sentido de Marx dizer que, para que a possibilidade de uma classe particu- lar representar o todo da sociedade seja possível, é preciso que uma outra classe particular concentre sobre si todos os males daquela sociedade. Esta classe particular, capaz de ser a representante geral da sociedade, não existe na Alemanha, uma vez que nela "todas as classes carecem da lógica, do rigor, da coragem e da inconsidera- ção que delas fariam o representante negativo da ~oc iedade . "~~

70 MARX, op. cit. p. 88. 71 Utópico aqui parece ter o sentido de não realizivel, ilusório. 72 Conforme a argumentação que Marx desenvolveu, anteriormente, contra B.

Bauer na polêmica da possibilidade da emancipação política dos judeus. 7' MARX, op. cit. p. 90. 74 Id. p. 92. 7 9 d . Ibid. p. 90.

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Diante destas considerações, Marx busca, agora, estabele- cer, resumidamente, os critérios para uma possibilidade positiva de emancipação, ou seja, como seria possível alcançar o que possi- velmente outras naçoes alcançariam após a emancipação mera- mente política, ou seja, a emancipação humana, já que a emancipa- ção política, enquanto emancipação parcial, não pareceria possível na Alemanha. Marx responde:

"Na formação de uma classe que tenha cadeias radicais, de uma classe na sociedade civil que não seja uma classe da sociedade civil, de uma classe que seja a dissolução de todas as classes, de uma esfera que possua caráter universal porque os seus sofri- mentos são universais e que não exige uma reparação particular porque o mal que lhe é feito não é um rnal particular, mas o mal enz geral, que já não possa exigir um título histórico, mas apenas o título Izumarzo, de uma esfera que não oponha conseqüências particulares, mas que se oponha totalmente aos pressupostos do sistema político alemão; por fim, de uma esfera que não pode emancipar-se a si mesma nem emancipar-se de todas as outras esferas da sociedade sem as emancipar a todas - o que é, em suma, a perda total da humanidade, portanto, só pode redimir- se a si mesma por uma rederzçiío total do homem. A dissolução da sociedade, como classe particular, é o proletariado."7"

O proletariado surge, assim, de uma dedução lógica, no sentido de que é produzido pela própria sociedade burguesa, mas, ao mesmo tempo, é reprimido por ela e, como tal, é a negação desta sociedade no seu todo.77 O proletariado assume, deste modo,

76 MARX, op. cit. p. 92. Interessante notar esta argumentação lógica de Marx. Pa- rece-nos que ela pode ser pertinente a outras exigências sacrificiais que esta so- ciedade faz. Assim, por exemplo, em vez de incluir, enquanto excluído e, como tal, com potencialidade de pôr em xeque toda a sociedade, apenas o proletaria- do, poderíamos colocar, hoje, o grande número de desempregados. Ou mesino, a agressão ao ambiente resultante desta forma de organização social. Abrem-se possibilidades e a necessidade de pensar princípios, teorias e práticas diferentes das vigentes. Para que não haja mais excluídos e a natureza deixe de ser agredi- da, é preciso que toda a humanidade se liberte da submissão à lógica do capital.

77 Neste sentido, afirma Flickinger: "A perspectiva de Marx em direção ao surgi- mento do proletariado fundamenta-se unicamente em esperança baseada em ar-

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as dores de toda a sociedade e, como tal, é a possibilidade da su- pressão de toda ela. E como a superação da alienação, alcançada pela filosofia alemã, significa a emancipação política, mesmo que de forma alienada na filosofia, é o proletariado que se torna res- ponsável pela busca da realização concreta desta liberdade, ou seja, pela emancipação humana, enquanto produto negador, momento abandonado e excluído dos benefícios sociais e materiais. O que revela que esta sociedade é constituída por uma "estrutura de do- mínio excludente de uma classe pela outra, embora a classe excluí- da fosse um momento produzido, isto é, constitutivo desta socieda- de."78 Assim, Marx pode afirmar que esta é uma classe que, embo- ra esteja na sociedade civil, não é da sociedade civil. Como, tam- bém, que possui um caráter universal porque seus sofrimentos são universais e porque, mesmo sendo uma classe da sociedade civil, teria a capacidade de suspender toda a sociedade de classes no momento em que se oporia a sua sorte, ao seu destino. Portanto, só poderia se redimir por meio da redenção de toda a humanidade, uma vez que sua emancipação coincide com a emancipação de to- dos, com a emancipação humana. Portanto, para que filosofia e proletariado possam superar suas condições, precisam um do outro. Ou, como dirá Marx, logo adiante: "A filosofia é a cabeça desta emancipação e o proletariado o seu coração."79

Marx resume as suas conclusões no seguinte parágrafo:

gumentação filosófica." FLICKINGER, op. cit. 1985, p. 24. E também Vázquez: "Para Marx, nesse período, a missão histórico-universal do proletaria- do não deriva tanto de sua posição econômica e social no seio da sociedade bur- guesa, mas muito mais de uma concepção filosófica (proletário = negação do universalment$ humano) e da situação específica - anacrônica - da Alemanha de sua época." VAZQUEZ, op. cit. p. 130.

78 FLICKINGER, op. cit. 1986. p. 40. 79 MARX, op. cit. p. 93. Segundo Celso Frederico com "essa frase Marx resume o

sentido do processo revolucionário na Alemanha. A emancipação tornou-se viá- vel por contar com a presença recente de um coração, o proletariado, passando agora a existir ao lado da cabeça, a filosofia revolucionária (que mostrou, com Hegel, a separação entre Estado e sociedade civil; com Feuerbach, a supremacia do homem e a conseqüente necessidade de superar a auto-alienação; e, final- mente, com o próprio Marx, a viabilidade de uma revolução radical). FREDE- RICO, op. cit. p. 106.

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"A emancipação dos alemães só é possível na prática se adotar o ponto de vista da teoria, segundo a qual o homem é para o ho- mem o ser supremo. A Alemanha não conseguirá emancipar-se da Idade Média a não ser que a emancipe ao mesmo tempo das vitórias parciais sobre a Idade Média. Na Alemanha, nenhum tipo de servidão será abolido, se toda a servidão não for destruí- da. A Alemanha, que é profunda, não pode fazer uma revolução sem revolucionar a partir do fundamento. A emancipação do alemão é a emancipação do homem. AJilosofia é a cabeça desta emancipação e o proletariado o seu coração. A filosofia não pode realizar-se sem a ab-rogação do proletariado, o proletariado não pode ab-rogar-se sem a realização da f i lo~of ia . "~~

Veja-se que, em relação à crítica da religião de Feuerbach, que considerava a questão da emancipação uma questão a ser reali- zada pela consciência que se percebe como auto-alienada, Marx introduz um elemento prático. Faz isto ao atribuir importância à força material da filosofia encarnada no proletariado. Cabeça e co- ração8' andam juntos, não apenas no indivíduo abstrato, mas no in- divíduo concreto da sociedade. Neste texto aparece, pela primeira vez, a idéia da práxis, embora seja ainda uma concepção de que uma parte ativa (filosofia) vai ao encontro de uma parte passiva (proletariado, as massas) para, então, se realizar, e não como re- sultado de uma atividade produtiva como em escritos posteriores. No entanto, nota-se claramente a insatisfação com a emancipação apenas teórica, tanto no que se refere à filosofia do Estado de Di-

MARX, op. cit. p. 93. O verbo alemão aujkeben é aqui traduzido por ab-rogar- se. Como esta não é uma tradução costumeira, descrevemos aqui a frase no ori- ginal alemão: "Die Philosophie kann sich nicht verwirklichen ohne die Auflle- bung des Proletariats, das Proletariat kann sich nicht aufieben ohne die Verwi- rklichung der Philosophie. " MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. (MardEngel : Werke) Berlin: Dietz Verl. Band 1. 1988. p. 391.

'' Segundo Frederico, estas figuras são usadas por Feuerbach em sua obra Teses provisórias para a reforma da filosofia, em que "a filosofia surge como cabeça, princípio masculino, viril, ativo, sede do voluntarismo da consciência, que "põe as coisas em posição", ilumina, esclarece, desmistifica, convence a todos da ne- cessidade da emancipação. Mas a filosofia para realizar-se precisa ir ao encontro de uma base material." FREDERICO, op. cit. p. 107.

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reito, como com o alcance da própria filosofia feuerbachiana, ou seja, com a filosofia que não se realiza. É também uma primeira busca de superação da emancipação meramente política, aquela na qual o homem atribui as características de sua essência ao Estado, em direção à emancipação humana, com uma base concreta, eco- nômica, em que esta possa ser vivida na realidade do dia a dia, não apenas na religião, no dinheiro ou no Estado, e que tornou urgente uma investigação em torno da relação entre o que era expresso pela filosofia e os fatos econômicos da época.

Porém, embora Marx tenha alertado, no início, de que o homem não é um ser exterior à sociedade, parece-nos que ainda busca, na medida em que a emancipação deve ser buscada de modo radical no próprio homem, uma certa essência humana a partir da qual seria possível a emancipação humana.82 Porém, ao buscar uma perspectiva prática e ao tomar como objeto de crítica a filosofia hegeliana com toda sua processualidade no lugar da religião, o que a nosso ver torna-se possível para Marx por encontrar, na figura do mundo invertido da Fenonzerzologia do Espírito, de Hegel, o termo comum, o passo expressivo para as estruturas de alienação, Marx se liberta, parcialmente, desta visão estática e a-histórica da essên- cia humana, pressuposta por Feuerbach.

3 - Crítica à filosofia hegeliana, como crítica à socieda- de burguesa liberal

Como, no presente Capítulo, as referências a Hegel torna- ram-se constantes, resolvemos apresentar, também, uma análise do último parágrafo do terceiro Marzuscrito, intitulado Crítica da dia- [ética e da filosofia de Hegel, por entendermos que, apesar de ter sido escrito em torno de um ano depois da Introdução, pode ser tomado como sendo uma sua complementação. Além disto, parece-

82 Conforme Frederico: "Se a raiz é o próprio homem, se o homem deve girar em torno de si mesmo, isso significa que o homem continua sendo um dado a prio- ri, um ser natural ... A revolução, entendida como um reencontro da origem (raiz), lembra a saga feuerbachiana do indivíduo que busca a sua essência eitra- viada, o gênero que dele se separou." FREDERICO, Op. cit. p. 109.

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nos que aí delinear-se-ão alguns pressupostos que poderão ser muito proveitosos para melhor compreensão da análise do trabalho alienado, dentro do processo de produção capitalista e do papel de Feuerbach, nesta análise.

Nessa parte do texto, Marx realiza algumas reflexões a res- peito da dialética hegeliana e da sua relação com o que chama de "movimento crítico moderno". Segundo Marx, diversos partici- pantes deste movimento, dentre eles Strauss e Bruno Bauer, apesar de se pretenderem críticos do mundo antigo, não conseguem esta- belecer uma posição clara no que se refere à dialética hegeliana, permanecem presos a ela, aos seus princípios. Não conseguem, portanto, ter uma atitude crítica diante desta fonte. Marx defende que é preciso discutir, também, a própria fonte, ou seja, a dialética hegeliana. Além de ser preciso estabelecer uma indicação crítica ante a dialética de Feuerbach, caso esta crítica não queira ficar to- talmente acrítica ante si mesma.

O fato de Marx exigir uma posição crítica também ante a teoria de Feuerbach, é um sinal de que, para ele, Feuerbach não está na 'vala comum' da crítica que lhes é contemporânea. Marx até afirma, a respeito de Feuerbach, que ele teria sido o único que teve uma relação séria e crítica com a filosofia de Hegel, chegando mesmo a superá-la. O que confirma, explicitamente, a nossa hipó- tese de que Marx se serviu conscientemente da teoria de Feuerbach para analisar a filosofia hegeliana e a própria realidade social ca- pitalista. Segundo Marx, o empreendimento de Feuerbach em rela- ção à filosofia Hegeliana poderia ser vislumbrado nas seguintes observações:

1) "A prova de que a filosofia constitui apenas a religião convertida em pensamento e desenvolvida pelo pensa- mento; portanto, deve condenar-se como outra forma e outro modo de existência da alienação do ser huma-

83 MARX, op. cit. p. 239.

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2) Ter fundamentado o verdadeiro materialismo ao fazer da relação homem X homem o princípio básico da teo- ria.

3) Ter oposto à negação da negação hegeliana, que se su- põe absoluta, um princípio fundado em si mesmo.

Feuerbach, partindo da própria dialética hegeliana, procura justificar o fenômeno positivo, pois, segundo Feuerbach, Hegel ao iniciar com a alienação da substância, o infinito, o universal abs- trato, inicia com o que poderia ser chamado também de religião ou teologia. O segundo passo de Hegel consiste na eliminação deste infinito, pondo, assim, o finito e o particular, que seria a reposição da filosofia, em oposição à religião e à teologia. Mas, por terceiro (negação da negação), elimina de novo o finito e particular em vista do abstrato e do infinito, o que significaria o restabelecimento da religião. A filosofia, em oposição a si mesma, passa a afirmar a teologia, a transcendência, e isto depois de a ter abolido. Com isto, segundo a interpretação que Marx está a fazer, de Hegel, munido da teoria de Feuerbach, com a negação da negação,

"como o único verdadeiro ato e como autoconfirmativo de todo o ser, Hegel descobriu apenas a expressão abstrata, lógica, espe- culativa do processo histórico, que não é ainda a história real do homem enquanto sujeito pressuposto, mas só a história do ato de criação da gênese do Izomem.

Marx propõe-se tirar a teoria hegeliana de seu pedestal abstrato e trazê-la, por meio de Feuerbach, para o seu fundamento real.@ Marx propõe-se a realizar a leitura ao avesso, acima referida, da teoria de Hegel. Para fazer esta redução, Marx inicia retomando os principais pontos da filosofia de Hegel, tal como ele os expõe na Fenomenologia do Espírito e na Enciclopédia das Ciências Filo-

84 MARX, op. cit. p. 240. 85 Id. p. 241 : "Explicaremos a forma abstrata deste processo e a diferença entre o

processo tal como é concebido por Hegel e pela crítica moderna, por Feuerbach em A Essência do Cristinizismo; ou antes a forma crítica deste processo que, em Hegel, ainda é tão acrítica."

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sóficas ein Epítome. Por esta exposição, Marx quer nos convencer de que o saber absoluto, o espírito filosófico, resultado do empre- endimento filosófico de Hegel, aparece como o espírito do mundo alienado, que compreende a si mesmo dentro dos limites da abstra- ção, de sua auto-alienação. E na qual a lógica aparece como deter- ininadora de todo o movimento do espírito. Por isto, Marx pode afirmar que a

"lógica é o dinheiro do espírito, o valor-pensamento especulati- vo do homem e da natureza, a sua essência totalmente indiferente e portanto, irreal, em relação a todo o caráter real determinado; o pensamento alienado, que, por conseguinte, prescinde da nature- za e do homem real; o pensamento ab~trnto."'~

Como consequência, a própria natureza fica fora, é exterior ao homem. É a perda do homem de si próprio, e é concebida como sendo pensamento abstrato alienado. Só quando o espírito volta à sua origem recebe sua existência consciente e apropriada.

A partir desta exposição crítica que Marx faz de alguns pontos da filosofia hegeliana, a partir de Feuerbach, aponta, agora, dois erros fundamentais desta filosofia. O primeiro se refere ao fato de que, quando "Hegel concebe a riqueza, o poder do Estado, etc., como entidades alienadas do ser humano, concebe-os apenas na sua forma de pensamento - por consequência, uma alienação do pensamento filosófico puro, isto é, ab~trato."'~ Tudo se resolve dentro do pensamento abstrato do qual os objetos estão alienados. O próprio filósofo acaba sendo a medida deste mundo alienado. A busca de superação da alienação aparece, assim, também como oposição (do em si e do para si, da consciência e da autoconsciên- cia, do objeto e do sujeito, pensamento abstrato e realidade sensí- vel) a ser resolvida no interior do próprio pensamento puro, na abstração, pois não se considera que o ser humano se objetive en- quanto homem real. O segundo erro, que mais constitui uma insu- ficiência do que um erro, reside no fato de Hegel não ter percebido

86 MARX, op. cit. p. 242. 87 Id. p. 243.

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que a dita consciência sensível abstrata e todas as realidades que engloba, como a religião, a riqueza entre outras, "são unicamente a realidade alienada da objetivação hunzana, das faculdades humanas postas em ação e que, portanto, constituem o caminho para a ver- dadeira realidade hur7zarza. Segundo Marx, o espírito é real- mente a forma mais autêntica da essência do homem. A Fenorne- nologia do Espírito, como descrição destes processos, embora te- nha captado esta dinâmica que se encontra na realidade, por meio desta manifestação especificamente humana que é o espírito huma- no, não soube traduzi-la para a "verdadeira realidade humana".

" A lzurna~zidade da natureza e da natureza produzida pela histó- ria, dos produtos do homem, manifesta-se no fato de serem pro- dutos do espírito abstrato e nessa medida, portanto, fases do espí- rito, entidades do pensamento. A Fenomenologia é deste modo a crítica oculta, ainda pouco clara e mistificadora; mas, na medida em que apreende a alienação do homem - embora o homem apa- reça apenas na forma de espírito - nela se contém veladamente todos os elementos da crítica e se encontram amiúde já prepara- dos e elaborados de uma maneira que vai muito além do ponto de vista de ~ e g e l . " ~ ~

Para Hegel, as diferentes formas de alienação surgem como simples formas de consciência e de autoconsciência, e como resultado deste movimento. Chega à identidade da consciência com a autoconsciência, ou seja, o pensamento puro, o saber absoluto, de forma que o resultado final constitui a dialética do pensamento puro, o que imobilizou a filosofia hegeliana, apesar de ela se cons- tituir, segundo Marx, em termos abstratos e alienados, num grande potencial crítico. Isto confirma a hipótese antes lançada de que Marx teria, após ter submetido a teoria hegeliana a uma antropolo- gização ou, em outros termos, a uma leitura ao avesso, buscado en- contrar na realidade concreta, na realidade social, a configuração do processo que, em Hegel, punha-se de forma mistificada na Fe- ~zornerzologia. Veremos adiante como este instrumental ajudou

MARX. op. cit. p. 244. 89 Id. p.244.

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Marx a estabelecer um parâmetro para dizer que a sociedade capi- talista aliena e desumaniza o homem. Por outro lado, podemos di- zer também, já agora, que esta pressuposição e confiança na teoria hegeliana enquanto expressão abstrata da realidade humana e soci- al poderão causar sérias limitações a Marx. Não seria esta também um certo "dinheiro do espírito", que se impõe de fora como algo autônomo? Mas, por ora, detenhamo-nos na análise da teoria de Hegel que Marx está a fazer por meio de um viés feuerbachiano.

É neste contexto que o próprio Marx faz questão de desta- car alguns méritos de ~ e ~ e l : ~ '

"O grande mérito da Fenonzenologia de Hegel e do seu resultado final - a dialética da negatividade enquanto princípio motor e cri- ador - reside, em primeiro lugar, no fato de Hegel conceber a autocriação do homem como processo, a objetivação como perda do objeto, como alienação e como abolição da alienação; e no fato de ainda apreender a natureza do trabalho e conceber o ho- mem objetivo (verdadeiro, porque real), como resultado do seu próprio trabalho. J 1 9 1

Nessa descoberta de Hegel parece estar a realidade do ser humano como ser genérico, como ser que só se efetiva enquanto ser humano ao realizar todos os poderes específicos da humanida- de. Isto só seria possível pela ação coletiva de todos os seres hu- manos, como resultado de um processo histórico. Hegel, no entan- to, não atribuiu isto à humanidade como tal, mas ao espírito, como se ele fosse algo superior à própria humanidade. Por isto, embora

-

" Marx no Posfácio da 2. edição de O Capital, de 1873, ainda referir-se-à a esta questão: "Critiquei a dialética hegeliana, no que ela tem de mistificação, há qua- se 30 anos, quando estava em plena moda. (...) A mistificação por que passa a dialética nas mãos de Hegel não o impediu de ser o primeiro a apresentar suas formas gerais de movimento, de maneira ampla e consciente. Em Hegel, a dia- lética está de cabeça para baixo. E necessário pô-la de cabeça para cima, a fim de descobrir a substância racional dentro do invólucro místico." MARX, Karl. O Capital: Critica da economia política. V.I. Rio de Janeiro: Bertrant Brasil S.A.,1988. p. 16.

91 MARX, Karl. Manuscritos Econômico-FilosÓ,ficos. Lisboa: Edições 70, 1964. p. 245.

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Hegel tenha também o ponto de partida da economia política de que o trabalho é a essência confirmativa do homem, que só por meio do trabalho o homem se realiza como humano, ele não che- gou a perceber o aspecto negativo do trabalho. Não chegou a per- ceber a alienação do trabalho enquanto negativa, algo que mesmo os economistas haviam percebido, embora não o soubessem expli- car. Isto acontece, segundo Marx, porque Hegel reconhece como trabalho apenas o trabalho intelectual abstrato, uma vez que o ob- jeto é unicamente autoconsciência objetivada, um ato de o homem se pôr. E apenas esta exteriorização, para Hegel, não corresponde- ria à essência humana e precisaria ser superada. Portanto, a aboli- ção da alienação é também a abolição da objetividade. O homem aparece, deste modo, como um ser totalmente espiritualista. Se- gundo Marx, este é um engano, porque um "ser, que não tenha a sua natureza fora de si, não é nenhum ser natural, não participa do ser da natureza. Um ser, que não tenha objeto fora de si, não é ne- nhum ser objetivo"", portanto, é um não ser. Mas o homem é um ser sensível, isto quer dizer que ele sofre, é impulsivo, é um ser natural, e que, portanto, não pode ser reduzido à autoconsciência. Nesta perspectiva, torna-se equivocado afirmar, por exemplo, que "a autoconsciência tem olhos, ouvidos, faculdades. A autocons- ciência constitui antes uma qualidade da natureza humana, do olho humano, etc.; a natureza humana não é uma qualidade da auto- consciência. "9" alienação também não pode ser reduzida à auto- consciência. Reduzir o homem à autoconsciência significa reduzi- 10 a um ser solitário e egoísta." Para Marx, a alienação da auto- consciência, tematizada por Hegel, é a expressão da alienação real do homem, refletida na consciência. Portanto, precisa ser superada na realidade, e não na sua forma puramente abstrata. Vejamos a afirmação de Marx: "A alienação efetiva, que se revela como real, é antes, segundo sua nzais intii~za natureza oculta - e só deslindada

9 ' ~ ~ ~ ~ , op. cit. p. 250. '"d. p. 247. 94 Id. Ibid. p. 247: "O si mesmo, abstraído e determinado para si, é o homem en-

quanto egoísta abstrato, o egoísrno na sua pura abstração elevado ao nível do pensamento."

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pela filosofia - simples ser fe~zonzerzal da alienação da vida humana real, da autoconsciêizcia. "" O retorno do objeto ao Si mesmo que, na Fenomenologia, significa o passo de reapropriação do objeto e, portanto, de superação da alienação, precisa dar-se também fora da autoconsciência, ou seja, no mundo objetivo e real.

Mediante esta reflexão Marx encontrará posteriormente os critérios para qualificar o trabalho capitalista como sendo uma es- trutura alienadora, pelo fato de nele o produto não voltar ao sujeito, mas apresentar-se como um objeto estranho, pelo fato de o ciclo que, em nível abstrato, em Hegel, completa-se, e que, na realidade do trabalho sob a determinação da propriedade privada, não se completa. Não se torna possível justamente porque o homem não reconhece seus produtos como produtos sociais, uma vez que eles lhe aparecem como sendo simples meios. Os produtos não apare- cem com finalidades próprias e, além disto, são produzidos por in- divíduos que não se percebem enquanto sociais, genéricos, mas apenas isolados com interesses egoístas. O confronto com estes produtos que, mesmo sem a consciência do homem, continuam produtos sociais, a exemplo dos produtos religiosos, parecem, en- tão, adquirir uma vida própria capaz de dominar os seus próprios produtores. É este caráter oculto das mercadorias, agora apenas identificadas como propriedade privada, que as torna tão místicas e adoráveis. O que impressiona é o seu caráter genérico oculto. Contudo, o fato de o produto não retornar ao seu produtor e que, conforme a estrutura comparativa de Hegel recém exposta, poderá ser considerada deficiente, só acontece porque o homem não se re- conhece como ser social. Há aqui uma certa complementaridade entre a teoria de Hegel e a de Feuerbach que possibilitará uma aná- lise crítica da sociedade capitalista, por parte de Marx.

Para Marx, o que se põe de forma abstrata em Hegel preci- sa realizar-se na realidade, pois o homem necessita de um ser exte-

" MARX, op. cit. p. 247. Veja-se que se encontra aqui também uma analogia com a caracterização da alienação religiosa em Feiierbach, quando este caracteriza a religião como sendo a "revelação das preciosidades ocultas do homem, a confis- são dos seus mais íntimos pensamentos, a manifestação pública dos seus segre- dos de amor." FEUERBACH, op. cit. p. 56.

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rior à sua própria existência, portanto, objetos reais exteriores, para se reconhecer. Quando se encontra com outras pessoas, a partir do instante em que não está só, percebe-se como sendo diferente de quem ou daquilo que está exterior, o que significa ainda que é tam- bém objeto para o objeto que está fora, ou seja, só nos reconhece- mos enquanto existentes concretos à medida que nos relacionamos. Um "ser não-objetivo é ser irreal, não sensível."96

Ser sensível não quer dizer que o homem seja apenas um ser natural. Marx afirma, de novo, na esteira de Feuerbach, que, além de ser um ser natural, o homem é também um ser genérico, que tem de se autenticar tanto no ser como no pensamento. Por isto, também, que, nem a natureza objetiva, nem a subjetiva se põem de forma imediatamente adequada para o homem, embora nenhuma delas possa ser desconsiderada no processo de humaniza- ção. Contrapondo-se a uma visão estática de ser humano que trans- parece na teoria de Feuerbach, Marx pode agora afirmar, após ter incorporado elementos da teoria de Hegel à sua, que o homem vai se construindo através da história.

"E assim como tudo que é natural deve ter sua origem, também o homem tem seu processo de gênese, a história, que no entanto para ele constitui um processo consciente e que, assim, enquanto ato de origem com consciência se transcende a si próprio. A his- tória é a verdadeira história natural do

Dessa forma, é em contato com os objetos naturais que o homem vai se gestando, vai se tornando humano. É, portanto, nesta realidade que precisa superar a alienação. Para Hegel, no entanto, a apropriação do ser objetivo significa apenas a volta da própria consciência exteriorizada, uma vez que o objeto também não passa de exteriorização da consciência. Por isto, a abolição da objetivi- dade, como alienação significa, em Hegel, "a eliminação da objeti- vidade, porque não é o caráter determinado do objeto, mas o seu caráter objetivo, que constitui, para a autoconsciência, o escândalo

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96 MARX, op. cit. p. 250. 97 Id. p. 251.

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da alienação."" Assim a autoconsciência sabe que esta negativida- de existe apenas por causa de sua auto-alienação. Como a auto- consciência conhece apenas o objeto como uma não relação, pois é apenas auto-alienação da consciência, o objeto também só existe na medida em que é conhecido por ela, pois ela mesma põe o objeto ao conhecer-se a si mesma. O objeto é algo que, para a autocons- ciência, fora do conhecer, não tem qualquer objetividade. Ainda, para Hegel, a forma como se dá esta superação da exteriorização, da alienação, é um momento em que também se encontra presente na própria consciência, "estando portanto em si no seu ser-outro enquanto tal. "" Ou seja, tudo se realiza no interior da própria consciência. Ela é também o ser outro, ou seja, a realidade sensí- vel, a vida etc.

Outra conseqüência direta dessa concepção é que, na me- dida em que o homem supera sua alienação, ele apenas retorna ao seu mundo espiritual para reconfirmá-10. Este o motivo pelo qual Hegel, "depois que reconheceu a religião como produto da auto- alienação, vê-se confirmado na religião enquanto religião."'00 Por isto, embora Hegel reconhecesse que o homem pode levar uma vida alienada no direito e na política, diz que se o homem reconhe- cer que leva ali uma vida alienada, ele leva ali a verdadeira vida humana, mesmo que alienada. Assim, Hegel legitima as estruturas de alienação como sendo formas de autêntica vida humana. Segun- do Marx, esta afirmação de Hegel revela o compromisso que ele ti- nha com a religião e o Estado. Também o homem religioso pode encontrar em Hegel sua última confirmação, uma vez que Hegel admite que nas formas alienadas pode-se levar a verdadeira vida humana. Hegel não superou a sua própria alienação do mundo real. Para Marx, estas formas de alienação da autoconsciência são o re- conhecimento da autoconsciência alienada e não a autoconsciência

101 mesma. A negação da negação em Hegel, portanto, não é a afir-

" MARX, op. cit. p. 252. 99 Id. p. 252. 'O0 Id. Ibid. 253. 'O1 Id. Ibid. p 254. "A minha própria identidade, a autoconsciência, não a vejo

confirmada na religilio. mas na abolição e na si4peração da religião."

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mação do verdadeiro ser, mas a confirmação do ser ilusório. A abolição da propriedade privada, por exemplo, enquanto uma enti- dade pensada, é superada no pensamento da moral. "E uma vez que o pensamento imagina ser, sem mediação, o outro aspecto de si mesmo, a realidade sensível, assim o ato de abolir no pensamento, que deixa o seu objeto persistir no mundo real, julga tê-lo real- mente suplantado."'02 Portanto, esta abstração serve como um ins- trumento de conservação explícita de todas as formas de alienação, e ainda fornece uma falsa impressão de que a alienação estaria su- perada, por meio deste e dentro deste processo de alienação.

A teoria hegeliana, quando não desmistificada, apresenta- se, assim, como fundamental na manutenção de estruturas sociais de alienação. A redução da realidade objetiva a um momento do pensamento é, também, a confirmação da sua realidade abstrata e irreal. No entanto, para Marx, a realidade objetiva não é apenas um momento do pensamento.

Assim como Marx, na Questão Judaica e na Introdução, não se havia limitado a fazer apenas uma crítica à filosofia hegeli- ana, assim como Feuerbach também não se limitou a criticar a reli- gião, mas buscou também encontrar no interior destes processos ou destas expressões de alienação os seus verdadeiros fundamentos antropológicos e sociais, também aqui Marx buscará encontrar os momentos positivos da dialética de Hegel, mesmo que "no interior da condição da alienação."10' O que, aliás, já foi feito, de certa forma, com a história e o trabalho.

A primeira delas é a da demonstração da possibilidade de se reabsorver e superar (arq7zeben) a alienação, embora, em Hegel, isto aconteça de forma apenas abstrata. Significa a apropriação do ser objetivo pela superação da alienação, ou seja, a possibilidade da superação real do caráter alienado do mundo.

"É a compreensão alienada da objetivação real do homem, da apropriação real do seu ser objetivo pela aniquilação do caráter alienado do mundo objetivo, pela anulação do seu modo de

'O2 MARX, op. cit. p. 255. 'O' Id. p. 256.

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existência alienado, assim como o ateísmo enquanto eliminação de Deus constitui a emergência do humanismo teórico e o comu- nismo enquanto abolição da propriedade privada é a vindicação da vida humana e real como propriedade do homem. O último surge ainda como a emergência do humanismo prático, porque o ateísmo é o humanismo mediatizado consigo por meio da elimi- nação da religião, ao passo que o comunismo constitui o huma- nismo obtido através da abolição da propriedade privada. Só por intermédio da aniquilação de semelhante mediação - que é, no entanto, uma condição prévia necessária - surgirá o humanismo positivo, que tem em si sua própria origem."'04

De forma que o ateísmo e o comunismo se apresentam, aqui, como concepções importantes que levam a uma real concep- ção de mundo. O fato, no entanto, de Marx utilizar repentinamente a idéia de comunismo, sem fazer uma explicitação de seu conteú- do, revela o quanto sua perspectiva de superação real desta realida- de estava ainda limitada. O aparecimento repentino da idéia de comunismo remete à busca de uma perspectiva prática de supera- ção da alienação.

A dimensão positiva da auto-alienação da autoconsciência como conquista de si mesma, em Hegel, para Marx, significa que

"Hegel concebe o trabalho - embora em termos abstratos - como o ato de aautocriaç60 do homem; apreende a relação do homem a si mesmo como ser estranho e a emergência da consciência ge- nérica e da vida genérica como a demonstração de si enquanto ser estranho.""'"

Em Hegel, no entanto, por causa da inversão que realiza, este acontecimento aparece como puramente formal e abstrato. Sua concepção formal e abstrata da realidade e da emancipação faz com que a suposta abolição da alienação se torne a confirmação dela. De forma que a vida humana vai se constituindo como sendo um processo divino que, independente do homem concreto, se rea-

'O4 MARX, op. cit. p. 256. ' O 5 Id. p. 257.

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liza. Este processo passa a ser portado por um sujeito absoluto, di- vino. O homem real e a natureza tornam-se apenas predicados deste sujeito absoluto. "O sujeito e o predicado possuem, por con- seguinte, entre si uma relação de inversão absoluta."'06 Seria preci- so incorporar a este processo a dimensão sensível e real do ser hu- mano, referida por Feuerbach. Aliás, também isto já está expresso, embora de forma alienada, na teoria hegeliana, à medida que se passa da idéia abstrata para a intuição da natureza (mesmo que esta ainda seja considerada como parte da própria consciência, pelo pensador alienado, o homem alienado). O que significa, falando em linguagem humana, que

"o pensador abstrato, na sua intuição da natureza, descobre que as entidades que, na dialética divina, julgou criar do nada, a par- tir da pura abstração, como puros produtos do trabalho do pen- samento, que se emaranha em si próprio e nunca olha para a rea- lidade externa, são simples abstrações de características natu-

~ 1 0 7 ruis.

Essa possibilidade da descoberta da teoria de Hegel como crítica ou mesmo, enquanto parâmetro para a análise da realidade social, só se tornou possível por causa do instrumental crítico feuerbachiano a que esta teoria foi submetida. No entanto, como antes afirmamos, Marx superou ambas utilizando ambas. Esta nova concepção a que Marx chegou por este processo foi fundatnental para análise mais profunda da sociedade capitalista, como veremos adiante.

Ressaltamos, por fim, essa sempre dupla possibilidade de leitura inerente a todas as formas de alienação, possibilitando, ao mesmo tempo, o estranhamento e, pelo lado avesso, quando des- mistificada, a revelação dos potenciais humanos inerentes. Foi nesta perspetiva que, por exemplo, a filosofia de Hegel se tornou tão importante para Marx. Nesta perspectiva, passaremos a acom-

'O6 MARX, op. cit. p. 257 'O7 Id. p. 261.

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panhar, agora, as reflexões de Marx a respeito da economia política da sua época.

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Após ter estendido a estrutura crítica da teoria de Feuer- bach para além da religião em direção à própria organização social, em que a religião passou a ser considerada apenas a auréola de uma realidade mais complexa, Marx procurou desmistificar a própria estrutura do Estado burguês, demonstrando a dimensão alienante do Estado e da sociedade civil e buscando a verdadeira essência desta estrutura. Mostrou como o Estado e o dinheiro são as duas estruturas místicas, por excelência, na sociedade moderna. Mos- trou, também, que a Filosofia do Direito hegeliana, enquanto des- crição fiel da sociedade moderna, não passa de uma forma abstrata e desvencilhada do homem real de conceber a realidade. E que, portanto, esta forma de conceber a realidade também precisa ser ultrapassada, o que só aconteceria quando a filosofia se tornasse vivificadora da prática das massas em vista de uma emancipação que ultrapassasse a emancipação política, mesmo que esta não ti- vesse acontecido ainda na Alemanha. Esta tarefa estaria destinada ao proletariado enquanto classe na própria sociedade civil, en- quanto parte reprimida desta e, como tal, com um alto potencial de negação dos princípios desta sociedade. Enquanto classe, ao se li- bertar de sua situação, libertaria toda a sociedade desta organização social.

Se Marx encontrou um certo êxito na aplicação da estrutu- ra crítica feuerbachiana da religião no meio social, vislumbrando, até mesmo, uma compreensão mais crítica e real em vista da trans- formação, nos Manuscritos Econômico-Filosóílflcos ele vai fazer a tentativa de buscar aplicar esta estrutura à realidade mais profunda da sociedade moderna, qual seja, a fundamentação material e eco- nômica. Busca desvendar o fundamento da sociedade moderna e

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também do próprio homem, na medida em que a essencialidade humana passa a se manifestar na relação que o homem estabelece com a natureza por meio do trabalho. Nisto Marx busca mostrar que mesmo na estruturação material e ecofiômica da sociedade ca- pitalista, manifesta-se a estrutura de alienação. Também ali se en- contra a estrutura ideológica, o aparecer enganador identificável com a estrutura do mundo invertido. E, no entanto, é ali que se deve buscar a fundamentação mais radical da emancipação huma- na, porque ali se encontra a fundamentação mais radical da aliena- ção humana, uma vez que é ali também que se constitui, de forma mais radical, a humanização, ou seja, no trabalho prático. Enfim, a realidade toda, não apenas a religiosa, precisa ser desmistificada. No prefácio dos Manuscritos Ecorzômico Filosóficos, Marx expli- cita o porquê desta sua intenção:

"Já anunciei nos Anais Franco-alemães a crítica da jurisprudên- cia e da ciência política sob a forma de crítica da filosofia hege- liana do direito. Contudo, ao preparar a obra para publicação, tomou-se manifesto que a combinação da crítica dirigida apenas contra a especulação com a crítica das várias matérias seria intei- ramente inadequada."'

Parte, deste modo, em direção à realidade econômica, como estrutura não apenas especulativa, mas concreta e, como tal, fazendo parte fundamental na constituição da realidade, uma vez que, conforme vimos anteriormente, a compreensão da dimensão concreta e prática passou a ser fundamental para Marx, tendo em vista a compreensão crítica e a transformação efetiva da realidade. A realidade econômica é encarada como sendo uma forma não sa- grada fundamental da alienação e, portanto, precisa ser desmistifi- cada.

O primeiro passo que Marx vai dar, nesse sentido, é buscar apropriar-se dos elementos básicos da teoria da economia política de sua época, pois a expressão mais completa da realidade de alie- nação capitalista parecia ter sido elaborada por ela. O passo poste-

MARX, op. cit. p. 97

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rior seria o de buscar os fundamentos humanos e subjetivos desta realidade, camuflados, mas postos, nos pressupostos da própria economia política.

A metodologia, mais uma vez, é muito parecida com a de Feuerbach que, também, a partir da constatação dos fatos religio- sos, buscava os seus fundamentos subjetivos, antropológicos2. Neste sentido, podemos dizer que nesta obra Marx procura traduzir os fatos econômicos para uma linguagem humana, ou seja, procura desvelar a antropologia e as relações sociais pressupostas pela eco- nomia, embora isto só seja possível de ser feito de forma negativa, neste primeiro momento. É a partir da situação de alienação, do não ser do homem, que Marx estará tematizando o próprio ho- mem.30 homem, apenas se conhece indiretamente através de seus produtos, assim como na religião, embora agora sejam produtos concretos e não apenas fantasias da consciência, como era na críti- ca da religião feuerbachiana.

1 - O aparecer da realidade econômica: as descobertas da Economia Política

Os três primeiros parágrafos do primeiro Ma~~uscrito (Sa- lário do Trabalho, Lucro do Capital e Renda da Terra) são a ten- tativa de se apropriar da reflexão em termos de economia política, baseando-se nos principais representantes teóricos dela na época, entre eles poderíamos citar James Mill, David Ricardo, Adam Smith, e Pierre-Joseph Proudhon. A nosso ver, aí Marx dá ênfase

' Segundo Celso Frederico, Marx teria percebido essa possibilidade de compara- ção entre a religião e a economia a partir de um artigo publicado por Engels, nos Anais Franco AlemEes intitulado Esboço para i4ma crítica da Econonlia política, em que Engels "acusa os economistas de virarem a realidade de cabeça para baixo pelo recurso da abstração, usando, assim, o mesmo argumento que Feuerbach empregara contra a lógica de Hegel, e Marx, em 43, contra a teoria do Estado deste autor." FREDERICO, op. cit. p. 129.

' Segundo Ruy Fausto, "o fundamento antropológico nos Manuscritos é menos o homem do que o hoitiein nlienaclo. (...) o homem negado está nos Mcrni4scritos com o que isto significa: nos Ma~iuscritos temos sem dúvida o homem: antro- pologia, mas "negado", antropologia negativa." Cf. FAUSTO. op. cit. p. 236.

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aos pontos que, de uma forma mais evidente, parecem encobrir re- alidades humanas mais profundas, embora ainda não se preocupe em revelar o conteúdo humano destes fatos. Nestes estudos Marx privilegia a abordagem que aparece de uma forma religiosa sem ainda se preocupar em buscar os seus fundamentos. Passará a fazer isto apenas a partir da quarta parte do primeiro manuscrito, que trata do trabalho alienado. No entanto, mesmo aqui, Marx já parece ter um objetivo claro, qual seja, buscar os fatos que, quando sub- metidos à crítica, possam ser reveladores da essência verdadeira da própria propriedade privada, já que a propriedade privada aparece como pressuposto quase natural e inquestionável nos economistas, assim como todas as conseqüências negativas do trabalho.

Ao mesmo tempo, Marx incorporará à sua análise os avan- ços conquistados em suas reflexões anteriores. Ter descoberto a processualidade inerente aos fatos sociais a partir da descoberta da relação entre a estrutura de alienação e a estrutura e função do mundo invertido em Hegel, parece um ponto central. Possibilita, por exemplo, situar a formação da sociedade civil e mesmo da pro- priedade privada no interior da história e, portanto, desmistificar a sua pretensão natural e a-histórica, já que as situações de mundo invertido aparecem apenas como um momento no interior do des- envolvimento da história. Porém, assim como Feuerbach não via apenas a negação do ser humano na religião e, portanto, buscava nela os secretos e mais íntimos segredos e desejos humanos, Marx também encontrará na estrutura da organização econômica ele- mentos e sinais da essencialidade genérica e social do ser humano. Passemos, portanto, às abordagens de Marx.

Uma das primeiras constatações da economia política, en- fatizada por Marx, é que o salário é determinado na luta que se es- tabelece entre o capitalista e o trabalhador. Nesta luta, antecipada- mente, o trabalhador está em situação de desvantagem, uma vez que as condições de vida do capitalista são melhores que as do tra- balhador e, portanto, aquele sobrevive mais tempo que este. Além disso, os trabalhadores têm mais dificuldade de se unir que os ca- pitalistas, o que torna a concorrência entre os próprios trabalhado- res altamente intensa, de forma que eles próprios ficam submetidos

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à lei do mercado, sendo que a oferta excessiva implica também a exclusão da massa sobrante.

Os gastos com o salário do trabalhador são vistos como um gasto com uma máquina qualquer, sendo que o salário se desti- na, exclusivamente, para satisfazer as necessidades de subsistência física do trabalhador e para a sua reprodução. Quando a oferta de trabalhadores excede a procura, uma parte cai necessariamente na penúria e na fome, uma vez que são reduzidos às leis de oferta e procura, como qualquer outra mercadoria. Ora, mesmo que não o expresse, Marx está mostrando que se pode concluir, a partir da própria economia política, que um poder inumano impera sobre a vida dos trabalhadores. Há algo que se sobrepõe à vida dos traba- lhadores.

A divisão do trabalho faz com que o trabalhador desem- pregado tenha ainda mais dificuldade de reorientar o seu trabalho para outra atividade. Por isto, o trabalhador é o primeiro a sofrer com a submissão do trabalho ao capital. O "trabalhador não ganha necessariamente quando o capital ganha, mas perde forçosamente quando este perde"4, além de os preços do trabalho serem mais es- táveis que os meios de subsistência, sendo que com facilidade os meios de subsistência aumentam os custos, enquanto os salários não sobem. Além disto, a reprodução do capital parece estar acima das vicissitudes das atividades individuais e reais, pois no "trabalho todas as diferenças naturais, culturais e sociais da atividade indivi- dual aparecem e são remuneradas de modo diverso, enquanto o ca- pital inerte mantém um rendimento invariável e é indiferente à ati- vidade individual Quando o sofrimento é mútuo (do capita- lista e do trabalhador), traduz-se em sofrimento do lucro do capita- lista e em sofrimento na existência do trabalhador. No entanto, além da subsistência física, o trabalhador tem também que se preo- cupar em achar trabalho. Mesmo que a sociedade esteja bem ou em crise, esta é uma dificuldade constante. Ninguém sofre tanto como a classe operária quando a riqueza da sociedade diminui. Quando a riqueza cresce, e a procura de trabalhadores também, eles acabam

MARX. Op. Cit. p. 102. Id. p. 103.

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por sacrificar a sua vida no serviço à avareza. Além disto, a riqueza só cresce quanto há acumulação do trabalho, e para que haja muita acumulação do trabalho, torna-se necessária a divisão do trabalho, que especializa o trabalhador, aumenta a sua dependência e o torna mais unilateral.

Nesse processo, o trabalho se torna uma atividade abstrata, na qual as características reais, específicas e individuais, ou seja, qualitativas, não importam.6 Por isto, o homem se vê transformado em máquina e, até mesmo, pode ser substituído por ela, aumentan- do a competição entre trabalhadores e baixando os salários. Nesta situação, o trabalhador, provavelmente, enfrentará o desemprego, por um lado, porque pode ser substituído por máquinas e, por ou- tro, porque pode ocorrer uma superprodução, aumentando a com- petição entre os trabalhadores, baixando, ainda mais, os seus salá- rios e excluindo a massa de trabalhadores restante (condenada a morrer!). Conclui-se, então, que:

Desta forma explicita-se uma dinâmica inerente e coerente com a própria socie- dade liberal, onde, como vimos na Ir~trodilçOo, ocorre urn certa divisão, entre sociedade civil e Estado. Aqui a abstração significa uma certa sublimação das necessidades materiais, qualitativas. O princípio liberal da liberdade para todos só se realiza A base desta condição. Assim, para Hegel, que busca expor este princípio da sociedade liberal, a abstração é algo positivo, pois ela possibilita esta 'libertação' das realidades materiais e assim a possibilidade de liberdade, mesmo que abstrata, para todos. Vejamos o parágrafo 198 da Filosofia do Di- reito, onde Hegel se refere diretamente A questão: "O universal e objetivo do trabalho reside sem dúvida na absrração que ocasiona a especificação dos meios e das necessidades, que portanto também especifica a produção e produz a divi- sOo do trabalho. O trabalho do indivíduo se torna assim rnais simples e maior em habilidade no seu trabalho abstrato, assim como é maior a quantidade de sua produção. Ao mesmo tempo, esta abstração da habilidade e dos meios completa e faz totalmente necessária a depei~dêricia e relação recr'procu dos homens para a satisfação das suas necessidades restantes. A abstração do produzir faz, além do mais, que o trabalho seja cada vez mais mecânico, e permite que finalmente o Iiomein seja eliminado e ocupe o seu lugar uma múquina." HEGEL. G.W. Friedricli. Priricipios de /a Filosofh de1 Derecho: o Derecho Natldrul y Ciericia Políticcz. Buenos Aires: Sudamerica, 1975. p. 237. (Tradução nossa)

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"numa situação decrescente da sociedade, miséria progressiva do trabalhador; numa situação em expansão, miséria complicada; e na situação final, miséria estacionária. Contudo, visto que, segundo Smith, uma sociedade em que a maioria sofre não é feliz, e já que a mais próspera situação da so- ciedade origina o sofrimento da maioria, enquanto o sistema econômico (em geral, uma sociedade de interesses privados) conduz a esta situação muito próspera, segue-se que a miséria social constitui o objetivo da economian7

A estrutura econômica, portanto, segundo os próprios eco- nomistas, leva a uma sociedade não feliz. O que garantiria, então, a sua manutenção? Que interesses, justificação ideológica fariam com que a sociedade, e principalmente os trabalhadores, enquanto sendo a classe que mais sofre com esta estrutura, a aceitem? Com o objetivo de desvendar esta estrutura de dominação, que parece ter função similar àquela desempenhada pela religião, enquanto mun- do invertido na sociedade feudal, Marx segue sua investigação.

Após ter verificado, através dos economistas, a situação desfavorável em que os trabalhadores se encontram em relação aos capitalistas, vai agora identificar também as reivindicações dos tra- balhadores. Várias são as constatações. São os próprios economis- tas que constatam que todo o produto do trabalho pertence, em ú1- tima análise, ao trabalhador, apesar de ele receber apenas o mínimo para sua subsistência. Que todo o capital não é nada mais que tra- balho acumulado, de forma que o trabalhador deve apenas vender- se (a si e a sua humanidade). Que apenas o trabalho é propriedade ativa, por ser apenas o trabalho que pode aumentar o valor dos produtos naturais, que ele é o "único preço imutável das coisas; no entanto, nada é mais fortuito nem está sujeito a maiores flutuações do que o preço do trabalho."' E mais, o proprietário de terras e o capitalista criam-se acima dos trabalhadores e lhes impõem leis, como se fossem "deuses ociosos".

' M A R X , Karl. Ma~iuscritos Ecorz8mico Filosóficos. Lisboa, Edições 70, 1964. p. 107. Id. p. 108.

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A divisão do trabalho aumenta o poder produtivo do tra- balho, mas empobrece o trabalhador e o transforma em máquina. Além de que as acumulações possibilitadas pela divisão do traba- lho geram dependências maiores dos trabalhadores em relação aos capitalistas, aumentando a concorrência e possibilitando a super- produção. Isto permite concluir que mesmo havendo uma situação progressiva quanto ao desenvolvimento econômico da sociedade, o declínio e o gradual empobrecimento do trabalhador são constan- tes. Sendo que "o declínio e o empobrecimento do trabalhador é o produto do seu próprio trabalho e da riqueza por ele produzida. Por conseguinte, a miséria emerge espontaneamente da essêricia do trabalho h~dierno."~ ~ i a n t e destas constatações da economia polí- tica, Marx faz a seguinte reflexão:

"É de todo evidente que a economia política considera o prole- tário, isto é, aquele que vive, sem capital ou renda, apenas do trabalho e de um trabalho unilateral, abstrato, como simples tra- balhador. Consequentemente, pode propor a tese de que ele, tal como um cavalo, deve receber tanto quanto precisa para ser ca- paz de trabalhar. A economia política não se ocupa dele no seu tempo livre como homem, mas deixa este aspecto para o direito penal, os médicos, a religião, as tabelas estatísticas, a política e o funcionário de hospício"'0

Diante disso, Marx propõe duas questões: O que significa para a humanidade reduzir a maioria dos homens ao trabalho abs- trato? E qual o erro dos reformadores (como Proudhon) quando consideram que o aumento e a igualdade de salários são os objeti- vo da revolução social?

MARX, Op. Cit. p. 109. 1 o Id. p. 109. Fica assim evidente que a Economia Política, na medida em que não

se preocupa com o ser humano, mas apenas com o indivíduo trabalhador, cons- titui-se enquanto uma ciência da sociedade civil. Teria ela podido se constituir, enquanto tal, apenas a partir da divisão da sociedade moderna em sociedade ci- vil e sociedade política? Perceber-se-ão também aqui traços da essencialidade genérica, mesmo que esta já esteja posta, alienada no Estado? Poderia o trabalho abstrato ser uma resposta neste sentido? Nos parece que sim.

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Em primeiro lugar, Marx cita um argumento do próprio A. Smith, para mostrar que o aumento absoluto não resolve a questão da satisfação das carências, uma vez que as nossas carências são produzidas socialmente e, portanto, são medidas em relação à soci- edade na qual se inserem. Aumentar salários, continuando com a desigualdade e com a submissão a uma lógica não humana não traz solução alguma, porque são de natureza social e, portanto, relativa. Vejamos:

"Mesmo se fosse tão verdade como na realidade é falso que os rendimentos médios de todas as classes da sociedade tivessem aumentado, a disparidade de rendimento teria ainda crescido e, portanto, o contraste entre a riqueza e a pobreza surgiria com maior evidência. Porque a produção total aumenta é que de igual modo as necessidades, os desejos e as carências aumentam, tomando-se assim possível que a pobreza relativa se desenvolva enquanto a pobreza absoluta diminui. O samoiedo não é pobre com o seu óleo de baleia e o seu peixe rançoso, porque na sua sociedade isolada todos têm idênticas necessidades. Mas numa sociedade em desenvolvimerzto, que no espaço de dez anos inten- sifica em um terço a produção total em relação à população, o trabalhador que ganha a mesma quantia ao fim de dez anos não permaneceu na situação financeira razoável em que estava, mas fica um terço mais indigente.""

Com isto, torna-se evidente que a questão do aumento ab- soluto de todos os salários não traz uma sociedade mais justa. A questão da igualdade dos salários é abordada também nesta pers- pectiva, ou seja, forçar uma igualdade de salários não mexeria em nada com os pressupostos a partir dos quais se gerou esta situação de desigualdade, qual seja, a submissão à lógica do trabalho abs- trato, gerado pela alienação causada pela luta de todos contra to- dos. Mais uma vez, Marx deter-se-á na análise deste fenômeno, desta mistificação que, segundo ele, estaria na raiz da desigualda- de, na raiz da possibilidade de reconhecimento de uma situação de exploração de uns sobre os outros. Ao mostrar o que é e o que

MARX, Op. Cit. p. 11 1.

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significa a submissão do homem à lógica do trabalho abstrato, Marx pretende contrapor-se aos reformadores, mostrando que suas propostas não passam de paliativos, condenados ao fracasso sem, portanto, mexer com a estrutura injusta. Proudhon e outros refor- mistas não se teriam dado conta desta dimensão abstrata, desuma- na, do trabalho dentro do capitalismo. A problemática tratada não consegue ser resolvida satisfatoriamente aqui. Qual seria esta lógi- ca imanente à produção capitalista que levaria para a desigualdade? O certo é que ela é de alguma forma vislumbrada e percebida pelo fato de o trabalho humano não se realizar em função da vida hu- mana feliz, mas de alguma outra coisa. Desta "alguma outra coisa", os reformistas não se deram conta. Marx a percebeu, e a perseguirá a fim de entender o fundamento que a torna possível.

Reduzir grande parte dos homens ao trabalho abstrato si- gnifica que o trabalhador pode agora ser comparado a um animal ou a uma máquina sem que haja preocupação com o seu desenvol- vimento espiritual. Trabalho é considerado apenas atividade aqui- sitiva. O que teria possibilitado a submissão ou mesmo extinção de todas as qualidades do trabalho humano? Que lógica é esta que exige que o trabalho humano se equipare ao de um cavalo ou ao de uma máquina? O trabalho abstrato, a perda das qualidades do tra- balho humano e a propriedade privada parecem estar submetidas à mesma lógica. Embora ainda seja difícil de ser comprovado, sur- gem indícios de que a desigualdade social e econômica são ine- rentes a esta lógica. A simples distribai;ão da propriedade privada surge como uma atitude pouco conseqüente, na medida em que esta lógica persistir, uma vez que a própria propriedade privada é antes fruto do que conseqüência desta lógica. E, mantida esta di- nâmica do trabalho abstrato, a sociedade estará submetida à sua 1ó- gica e às suas conseqüências inevitáveis, como a propriedade pri- vada e a desigualdade social.

Aliás, o trabalho continuado e uniforme, possibilitado pela divisão do trabalho, prejudicaria não só o corpo, mas também o es- pírito, de forma que se torna difícil estabelecer uma diferença entre trabalhar com uma máquina e trabalhar como uma máquina. Como o trabalho das crianças e das mulheres é mais barato, cresce tam-

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bém aí a exploração, com um conseqüente aumento da prostitui- ção, da pobreza etc., afinal, o que importa é obter trabalho o quanto mais barato possível, para aumentar o acúmulo do capital por meio da exploração do trabalho abstrato. Portanto, parece existir uma estrutura que se impõe por si só, exige sacrifícios e leva grande parte da sociedade à miséria e à degradação. Haverá por detrás deste aparecer uma estrutura enganadora? Uma justificação religio- sa do status quo? A resposta parece tornar-se evidente em uma ci- tação de Marx do próprio A. Smith:

"Se a quantidade de tempo e de esforço humano que em época anterior se necessitava para satisfazer determinada soma de ne- cessidades materiais foi reduzida em metade, então o tempo dis- ponível para a criação e fruição cultural, sem qualquer diminui- ção no bem-estar material, aumentou em igual medida ... Mas a divisão das vantagens que conquistamos ao velho Cronos no seu próprio campo é ainda determinada pelo jogo dos dados do acaso cego e injusto.'"'

Embora Marx cite o desejo de A. Smith de que estas for- ças, contidas nas máquinas, tornem-se nossos escravos e servos, revela-se ainda uma força, inerente à ação das máquinas que não dominamos, mesmo que as tenhamos construído. O criador é do- minado pela criatura. Que forças serão estas que nos dominam como se fossem forças naturais ou divinas? Que estranho potencial existe em nós que nos torna capazes de criar criaturas que nos do- minam? Seria esta uma etapa necessária para o nosso autoconhe- cimento? A teoria de Feuerbach parece conter um grande potencial para clarear esta questão. Mas atenhamo-nos ao texto de Marx e ao roteiro de sua investigação que, pela sua própria exposição, parece estar vislumbrando um projeto de desmistificação filosófica do ca- pitalismo.

Como, para a economia política, o trabalho é reduzido a trabalho abstrato e é, por isto, considerado uma coisa, uma merca- doria, ele também está sujeito à lei da oferta e da procura. Por isto,

'' MARX, op. cit. p. 112.

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a "economia política pode conceber o trabalhador como um sim- ples animal, besta de carga cujas necessidades se limitam estrita- mente a necessidades corporais."'3 No entanto, o trabalho, ao con- trário da mercadoria, não pode ser acumulado ou poupado, pois o trabalhador precisará sempre de alimentos, senão morre. Além de que, ao se admitir que o trabalho é mercadoria, e o trabalhador é reduzido ao trabalho, ele pode ser comprado como uma mercadoria qualquer, e seres humanos que podem ser comprados e vendidos são escravos. Este sistema aperfeiçoa o trabalhador (para melhor poder explorá-lo!) e degrada o homem, reduzindo-o ao trabalho abstrato, reduzindo-o a mercadoria, a escravo.

Quando os interesses econômicos, enquanto expressão do homem da sociedade civil e, portanto, do homem individualista e egoísta, indiferente aos interesses do cidadão e abandonado a si, entram em conflito, ocorre o que se chama concorrência, embora se acredite que esta luta de todos contra todos acabe por gerar uma sociedade melhor para todos. Como se disséssemos: "Se Deus é por nós quem será contra nós?'Ou seja, abandonados ao nosso egoísmo surgirá automaticamente, mesmo que não nos demos conta disto, uma sociedade melhor para todos. Esta era uma pro- posta muito inovadora por parte dos economistas da época, que in- clusive se opunha a qualquer pressuposto histórico religioso no sentido feudal, porém, utilizava-se também de certos conceitos apresentados como dogmas inquestionáveis, sem os quais não en- contraria sustentabilidade. Esta profissão de fé poderia ser assim expressa: estimulando ao máximo o individualismo em cada um estar-se-ia propiciando as condições para melhoria de vida de to- dos, da humanidade. É como se fosse uma guerra perpétua que promete a paz e que em vista desta suposta paz justifica as suas exigências.

"A guerra industrial, a fim de produzir resultados, exige grandes exércitos que podem concentrar-se num ponto e ser sacrificados sem restrições. Os soldados deste exército suportam as cargas que sobre eles são postas, não por devoção ou por dever, mas

" MARX, op. cit. p. 112.

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apenas para escapar ao duro destino da fome. (...) não como ho- mens, mas como instrumentos de produção, que devem produzir o mais possível e custar o menos possível .... A indústria que os convocou apenas Ihes permite viver quando deles precisa; logo que os possa dispensar abandona-os sem a menor preocupação. Assim os trabalhadores que foram despedidos vêem-se obrigados a oferecer o seu corpo e o seu trabalho por qualquer preço acei- tável."I4

Marx levanta uma questão crucial ao detectar que a vida humana está em poder de uma força estranha. Que incrível força teria o poder de fazer tamanha exigência? Esta parece ser uma es- trutura natural ou divina, que se impõe sobre a sociedade, e que precisa ser desvendada.

Uma abordagem desta questão dos sacrifícios exigidos pelo capital, bem como da própria estrutura religiosa subjacente à sociedade moderna, é realizada por Franz J. Hinkelammert. Em sua obra15, além de apontar a estrutura fundamental inerente à socieda- de capitalista, procura mostrar o processo pelo qual a forma de pensar e agir do cristianismo medieval passou e se secularizou no mundo moderno. A título de esclarecimento e mesmo de aprofun- damento do tema, faremos, a seguir, uma pequena exposição do que julgamos ser a tese central de Hinkelammert.

Segundo Hinkelammert, o sacrifício pré-cristão, enquanto decorrente da exigência de cumprimento de uma lei, é superado pelo sacrifício absoluto de Cristo. Isto porque Cristo morre por vontade do próprio Pai, para satisfazer as violações da lei de Deus, que tem seu critério último no amor ao próximo e não na lei. A lei enquanto sacrifício precisava ser superada, e o sacrifício de Cristo quer ter este valor infinito. É a satisfação suficientemente grande para aplacar a ira do Pai, decorrente da violação de sua lei. Ou seja: de agora em diante nenhum sacrifício será mais necessário, uma vez que a morte de Cristo tem valor infinito. Assim, o amor ao próximo relativiza a lei. Será ele o critério que dirá até que ponto

l4 MARX, op. cit. p. 117 '"INKELAMMERT. Franz J. Sacr[fícios humanos e sociedade ocidental: LU-

CIFER E A BESTA. São Paulo: Paulus. 1995

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uma lei pode ou não ser cumprida. Tudo que não determine ação contrária ao amor ao próximo é justo. Portanto, segundo Hinke- lammert, num primeiro momento a mensagem cristã exige relações humanas que ultrapassem os sacrifícios humanos, que declare como não válida toda exigência que não vise, em primeiro lugar, a vida e o amor ao próximo.'6

A idéia de que agora nenhum sacrifício precisa mais ser feito, no entanto, aos poucos, foi-se tornando o contrário de si mesma, pois, aqueles que continuam a fazer sacrifícios despreza- vam o sacrifício de Cristo, e voltam a sacrificá-lo. Ora, quem con- tinua a fazer sacrifícios passa, então, a ser encarado como sendo inimigo de Deus, pois nega o valor absoluto do sacrifício de Cristo. Como não se pode admitir que isto aconteça, é preciso eliminar os culpados, ou seja, crucificar os crucificadores. Assim, a absolutiza- ção da lei de Deus, que não permitia mais sacrifícios, torna-se a própria legitimação do sacrificialismo. Sacrificialismo que, segun- do Hinkelammert, passa a estar presente em toda a teologia medie- val. Aliás, embora o cristianismo tenha surgido como contestação de todo o sacrifício, a necessidade de sacrificar todos os sacrifica- dores, pôde com facilidade se tornar uma idéia a ser assumida pelo império, uma vez que este passou a lutar contra todos os que lhe resistissem, classificando-os como crucificadores de Cristo. Pro- duz-se, assim, a legitimação da ideologia imperial. O poder imperi- al e o cristianismo passaram a andar juntos.

Essa parece ter sido a forma histórica de manifestação da religião, com a qual Feuerbach identificou toda a religião, e que criticou com tanta veemência. Por isto, podemos também dizer que, quando Feuerbach critica a religião está criticando o próprio império e as estruturas e ídolos que exigem sacrifícios. Figuras es- tas que, agora, Marx vai encontrar na própria sociedade-capitalista, enquanto império secular, convivendo com a mesma estrutura reli- giosa medieval. Mas, voltemos à argumentação de Hinkelammert.

l 6 O que, entre outras coisas, revela um outro potencial inerente às religiões, que não apenas aquele da alienação e da desumanização, trabalhados por Feuerbach e Marx na religião de sua época.

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Além de se tornar a justificação do poder imperial, esta idéia teve como conseqüência a legitimação do sacrifício sem ser percebido, enquanto tal, uma vez que se havia tornado quase uma obrigação moral daqueles que não mais queriam o sacrifício, ou seja, dos que acreditavam no valor infinito do sacrifício de Cristo. As fogueiras em que os hereges e as bruxas eram sacrificados são vistas como sendo um sacrifício necessário para que um dia não haja mais sacrifícios. Era preciso provar ao mundo todo que o sa- crifício de Cristo teve sentido. A crucificação dos crucificadores, pelo império cristão, e nas famosas cruzadas, inquisições e a quei- ma das bruxas, foram algumas das conseqüências desta crença, desta submissão humana a uma lei considerada divina e inquestio- nável.

Não entraremos na interessante argumentação de Hinke- lammert de que aqueles que são aqui sacrificados são, justamente, aqueles em nome dos quais Jesus agiu, e de que o cristianismo, portanto, tornou-se o contrário do que foi inicialmente. A fé de Abraão, como expressão originária da crença em um mundo sem sacrifícios, é contrária à concepção adotada neste período. O que revelaria toda uma outra potencialidade da religião, diferente da- quela que tanto Feuerbach como Marx puderam perceber nela, isto é, que ela seja tomada, conscientemente, como sendo uma mani- festação histórica das necessidades da humanidade, de forma a não permanecer apenas como manifestação abstrata e justificadora do status quo existente, mas ser também questionadora e revolucioná- ria.

Interessa-nos destacar que, segundo Hinkelammert, esta lógica carregada de exigências sacrificiais, a partir do século XVI, passa a ser também a lógica da sociedade burguesa, corroborando, assim, com a nossa hipótese de que Marx pode tomar a estrutura da crítica da religião e utilizá-la na realidade social, uma vez que am- bas têm uma estrutura legitimadora comum. Vejamos:

"A partir do século XVI em diante essa lógica é substituída cada vez mais pela lógica da sociedade burguesa, que a burguesia dos séculos XVI e XVII vive e interpreta como a lei de Deus no sen- tido do "porei minhas leis em seus corações e em suas mentes a

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gravarei, e de seus pecados e iniqüidades não me recordarei." Trata-se da lei do mercado, que, pelo menos a partir de John Lo- cke, é assumida, ao mesmo tempo, como lei de Deus neste senti- do e como lei natural. O império é agora burguês e chega a ser o representante dessa lei natural. Já não é imprescindível o manto cristão e pode-se secularizar a partir dessa lei na t~ ra l . " '~

Segundo Hinkelammert, os autores desta época defendiam que o próprio Deus havia inscrito as leis do mercado no coração do homem. O mundo mítico medieval, pela secularização, toma uma forma que já não é mais explicitamente religiosa, mas aparece como se fosse resultado da própria razão. Por isto pôde também estender-se para além das fronteiras religiosas, já que a realidade a ser submetida não precisava mais ser explicitamente religiosa. Uma vez dado "ao mundo mítico uma forma secular, e vinculando- o com a lei natural burguesa, a forma religiosa sobra, embora seja usada e possa ser usada complementarmente.""

Nesse processo de secularização, a lei de Deus pode ser identificada, agora, com a suposta lei natural. O que antes repre- sentava a ameaça a esta lei, e denominado de Lúcifer elou Satanás, passa a ser agora o caos. A harmonia da lei natural, inscrita no pró- prio homem, é ameaçada pelo caos. A ameaça do caos é identifica- da com o despotismo. Por isto, tudo que aparece como sendo uma ameaça às leis do mercado, como uma tentativa de intervir nelas é visto como despotismo. Todos os que não vivem sob a lei do mer- cado podem então ser considerados também inimigos da humani- dade. Se na Idade Média os que resistiam ao poder dominante eram sacrificados por serem sacrificadores, agora vale o seguinte: "des- potismo para aqueles que querem despotismo, escravidão para aqueles que nos querem fazer escravos, morte para aqueles que nos querem matar.'"' sendo que os que representam tais ameaças e que

l 7 HINKELAMMERT, op. cit. p. 28. Id. p. 29.

j9 Id. Ibid. p. 30. "John Locke foi o primeiro a formular essa inversão, e continua sendo o clássico desta secularização; depois o diz São Justo: nenhuma liberdade para os inimigos da liberdade. Também Popper o diz: nenhuma tolerância para os intolerantes."

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merecem tais castigos são, em primeiro lugar, os que não se sub- metem às leis de mercado. É o que leva pensadores, como Adam Smith, a declarar que o despotismo de países livres é legítimo, en- tendendo-se por livre o estar submetido às leis do mercado.

Mas por que a "sociedade livre" pode considerar-se melhor do que as outras e, portanto, exercer o poder despótico sobre as outras a fim de terminar com o despotismo? Porque ela gera pro- gresso, é a justificativa. Pois, segundo o autor, há uma crença de que a harmonia do mercado em confronto com a do caos leva ao progresso. Assim, a idéia da harmonia e do progresso, que substitui o céu medieval, é a justificação dos sacrifícios necessários, para que o mercado se imponha sobre o caos e o progresso nos leve, automaticamente, para um novo e melhor mundo. O progresso pa- rece ser o sinalizador de que logo chegar-se-á a um momento em que não sejam mais necessários sacrifícios. Em nome deste lugar imaginário, que substitui o céu mítico da Idade Média, qualquer sacrifício é justificado. Estes sacrifícios impõem-se ao mesmo tempo como sendo anti-sacrifícios e também como sacrifícios ne- cessários.

A sociedade burguesa assume, assim, uma feição muito semelhante àquela medieval, uma vez que ambas se apresentam como sendo sociedades potencialmente sem sacrifícios, embora apenas os próprios sacrifícios são apontados como caminho para a realização deste ideal. Um exemplo interessante deste círculo sacri- ficial relaciona-se aos direitos humanos. Em nome dos direitos humanos violam-se os mesmos. Ou seja, a violação dos direitos humanos é considerada necessária na luta contra a violação dos di- reitos humanos.20 Outro exemplo é o caso das dívidas externas dos países do Terceiro Mundo. O sacrifício do pagamento da dívida é visto como um sacrifício "saudável", o cumprimento de uma obri-

?O Segundo o autor, esse esquema também poderia ter sido aplicado ao socialismo stalinista, na medida em que este apenas substituía a propriedade privada e a lei natural do mercado pela propriedade estatal e a planificação, justificando os sa- crifícios em nome da futura sociedade comunista aonde isto não mais seria ne- cessário.

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gação moral. É a submissão à regras, a uma crença mítica que justi- fica o sacrifício humano de milhões de pessoas.

Assim, segundo o autor, o Ocidente é a sociedade que exi- ge mais sacrifícios que qualquer sociedade anterior. Aqueles que recusam os sacrifícios são a voz do diabo, da utopia. A necessida- de de reafirmar constantemente que os sacrifícios feitos foram vá- lidos, que não foram crimes, exige sempre de novo sacrifícios, es- tabelecendo assim um círculo sacrificial inquebrantável. Como o prometido lugar ou momento sem necessidade de sacrifícios ainda não foi alcançado, precisa-se continuar praticando-os. Parar signi- fica invalidar todos os anteriores. Uma das conseqüências da sub- missão e da fé na lógica do mercado, enquanto forma potencial- mente sem sacrifícios, é a busca da expansão ilimitada do mercado como esfera da humanidade.

Segundo o autor, todo este esquema desmorona quando se tiver de deter a expansão do mercado, pelo fato de levar à destrui- ção do homem e da natureza. Quando os sacrifícios passarem a ser vistos como sacrifícios sem sentido, ou seja, como crimes, quando se perceber que são apenas exigências de uma imaginação mítica e fantasmagórica, perderão o sentido. A crença em um automatismo que seja humanizante por si faz com que se tenha de assassinar para não ser considerado assassino. Dar-se conta de que seguir as regras do automatismo do mercado leva à destruição do homem e da natureza significa o início da crise de justificação dos sacrifícios e, portanto, da busca de um novo princípio de organização da soci- edade, de uma nova forma de ser Ocidente.

A nosso ver, esta argumentação de Hinkelammert poderia ser também usada atualmente. Em vez de indicar apenas a super- exploração e a exploração da natureza como limites últimos por onde seria possível deslegitimar a sociedade capitalista, poder-se-ia pôr, também, o cada vez mais crescente número de pessoas desem- pregadas que, a nosso ver, estão quase totalmente excluídas. A me- dida que não haja mais esperança de inclusão, perceber-se-á que a sociedade moderna não leva ao céu que tanto promete. Assim, to- dos os sacrifícios deste sistema são crimes. Estão dadas as bases reais para uma nova forma de organização social, com raízes nos

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próprios excluídos. Marx teria que ter incluído no conceito de pro- letariado também os que se tornam desnecessários para o sistema. Mas a situação histórica de Marx não era ainda propícia para tais conclusões, embora a estrutura lógica da argumentação, trabalhada na Zrztrodução, poderia ter sido também aplicada neste caso.

Percebemos, que a estrutura sacrificial que Marx está bus- cando entender, pode realmente ser diretamente relacionada com estruturas que, anteriormente, apareciam apenas na forma de ex- pressões religiosas. Marx parece, portanto, estar na pista certa.

2 - Lucro do Capital

No item do segundo Manuscrito, denominado Lucro do Capital, Marx parece estar perseguindo os sinais a partir dos quais se possa compreender a constituição e a fundamentação do capital. Embora não apareça a categoria da mais-valia, o capital já é conce- bido como sendo trabalho acumulado. Ainda que pareça surgir como resultado da circulação, ele já tem este caráter mistificado, portador de uma exterioridade ao qual o homem se submete. Antes de querer compreender como o capital se torna possível, Marx está interessado em investigar porque o capital tem este poder de sub- meter a si tudo que toca. Vejamos.

O capital, enquanto propriedade privada dos produtos do trabalho alheio, é garantido e santificado pelo direito positivo. Com a aquisição de capital (numa herança, por exemplo), não se adquire imediatamente poderes políticos, mas poderes de compra. "O ca- pital é assim o poder de domínio sobre o trabalho e sobre os seu produtos. O capitalismo possui este poder, não em virtude das suas qualidades pessoais ou humanas, mas como proprietário do capi- tal. O seu poder é o poder de compra do seu capital, a que nada se pode opor."21 Desta forma quem tem capital tem o poder de domí-

'' MARX, op. cit. p.120. Conforme Giannotti: "... capital nada mais é além de tra- balho social acumulado. Como reserva de energia humana cristalizada, em vez de prestar serviços a toda sociedade, pertence a um só grupo que o manipula a seu bel-prazer. E posto que não é riqueza do tesouro dos contos infantis, fonte inesgotável a auxiliar heróis, príncipes e ladrões, o trabalho morto amealhado é

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nio sobre o trabalho, embora o próprio capital seja apenas trabalho acumulado, propriedades humanas acumuladas. Marx, neste mo- mento, faz também a afirmação a ser ainda provada, de que este capital, por meio do qual o capitalista adquire poder sobre o traba- lho, logo dominará também o próprio capitalista.

Como o capital pode trazer rendimento ou lucro? Quando é investido. Mas o investimento corre riscos, podem ocorrer mudan- ças constantes nas taxas de lucro. A taxa de juros pode ser um indi- cador para determinar os lucros, pois se "for possível obter muito lucro com dinheiro, dar-se-á muito pela capacidade de dele se ser- vir, e pouco se também pouco for; lucri obtido por sua media- ção"22 Daí resulta uma estrutura em que tudo se faz para que se possa obter os mais altos lucros. A implementação de novas tec- nologias, os segredos de produção, o monopólio, dentre outras, são algumas atitudes que vão nesta direção. Não é difícil concluir que no interior deste sistema quem faz investimento pensa sempre pri- meiro no lucro e não na quantidade de trabalho produtivo que o seu investimento possa desencadear. Portanto, também o trabalho é planejado e dirigido por aqueles que aplicam capitais com o objeti- vo de obter lucro. Segundo os próprios economistas, o "maior mo- tivo," "a forma mais útil de aplicação do capital", "o objetivo que eles pressupõem em todos estes planos e projetos" é sempre: "o ponto de vista do próprio lucro", "o maior lucro".23 Estes interes- ses, ainda segundo os próprios economistas, são diferentes dos in- teresses públicos, por visar, sempre, à apropriação, ao ganho pes- soal, pelo lucro. O que deixa claro, embora Marx não o diga expli- citamente, que há por parte dos economistas um ato de fé de que uma estrutura automática, ou seja, a busca da satisfação individual de cada um teria que levar a uma situação social de melhor quali- dade, e, a satisfação do egoísmo de cada um traria uma vida melhor

concomitantemente princípio de novo amontoamento. Capital é riqueza a gerar riqueza, trabalho roubado a roubar trabalho e que não seca como os poços do deserto. É poder de governar trabalho allieio, de dirigi-lo para esta ou aquela di- reção, não porque o capitalista nasceu com capacidade de liderança mas sim- plesmente por possuir título de propriedade." GIANNOTTI, op. cit. p.107.

'* MARX, op. cit. p. 121. " Id. p. 124.

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para todos. Como se dissessem: façamos a vontade de Deus (capi- tal) e nos entreguemos a ele, que ele proverá nossa felicidade. Inte- ressante notar ainda que Marx, aqui, não se preocupa em indicar aonde o capital aumenta, mas apenas que ele é investido tendo como finalidade algo para além da vida humana, algo estranho. A exploração do trabalho tornar-se-á apenas um resultado desta es- trutura.

Resulta desta estrutura a livre concorrência entre os capi- talistas, o que, segundo a economia política, parece ser o meio de o interesse público se defender do interesse privado dos capitalistas, uma vez que eles estariam forçados a baixar os preços em favor dos con~umidores .~~ Marx, no entanto, demonstra que o que resulta da livre concorrência, é a acumulação e a concentração de capitais, porque quem tem mais capitais acumula mais. Com a diminuição dos lucros, por causa da concorrência, os primeiros a sofrer são os pequenos, resultando assim no monopólio, no aperfeiçoamento técnico, na redução dos salários e numa possível superprodução.

As coisas estabelecem um poder fantástico, toda organiza- ção perde sua finalidade intrínseca. Ou, conforme o comentário que Marx faz da teoria de Ricardo: "As nações são apenas oficinas de produção, o homem é uma máquina para consumir e produzir; a vida humana, um capital; as leis econômicas regem cegamente o mundo. Para Ricardo, os homens são nada, o produto é Tanto que o próprio capitalista que paga salários miseráveis e exige excessivas horas de trabalho dos seus trabalhadores, não pode ser responsabilizado por estas atitudes, já que também ele se encontra submisso às leis que se impõem com força própria. Embora, neste momento, não se faça referência à luta de classes, esta será uma das conseqüências inevitáveis desta reflexão, pois, embora as duas classes estejam submetidas à mesma lógica, uma (a capitalista)

24 Veja-se que este é também o motivo aparente pelo qual são defendidas a todo custo as privatizações em nosso País. Como se se pudesse estabelecer uma situ- ação de eterna disputa entre os capitalistas, ern que, então, os consumidores sai- riam invariavelmente ganhando. A semelhança entre cumprir exigências divi- nas, concretas e atuais em vista de um suposto céu futuro não nos parece mera coincidência.

25 MARX, op. cit. p. 133.

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vê-se privilegiada e não quer a mudança. Por isto, ainda agora, as- sim como fez na Introdução, Marx poderia afirmar que o proletari- ado assume este papel de libertação de toda a humanidade, uma vez que a luta contra a exploração pode ser ao mesmo tempo a luta contra toda esta lógica.

O fato de também o capitalista se encontrar submisso a uma lógica inumana deixa claro que toda sociedade se encontra submetida a ela. Ora, mesmo que o capitalista se encontre em uma situação mais cômoda, em relação ao trabalhador, também ele não é sujeito deste processo, também ele é determinado. Esta questão merece um destaque especial pelo fato de que nisto se revela que o capitalismo não é apenas uma forma organizada de dominação de uma classe sobre a outra, mas a submissão de toda a sociedade a um automatismo exterior aos seus interesses. Portanto, a divisão de bens ou mesmo a estatização dos meios de produção não poderão aparecer como soluções capazes de exterminar o domínio do capi- tal sobre a vida humana. Há algo mais profundo que domina toda a realidade social, como se fosse um princípio metafísico e místico ao qual a sociedade inteira se submete.

Essa constatação parece sumamente importante para com- preensão de nossa realidade ocidental e das contradições inerentes à própria maneira de pensar e ser do Ocidente. Como entender que, mesmo com o fantástico desenvolvimento tecnológico da atualida- de, ainda tenhamos que conviver com a morte, por fome, de uma grande parte da população, com a destruição progressiva do meio ambiente, com a miséria e com a guerra? Se não é a vida humana e a natureza que se tomam como prioridades do desenvolvimento, o que seria então?

As questões levantadas levam-nos para além de Marx. Neste sentido, a leitura de autores como Hinkelammert, que fize- mos anteriormente, ajuda a entender o próprio Marx. As questões levantadas levam a suspeitar e questionar o próprio modo de ser e pensar ocidental e não apenas a sua forma atual, que é a forma ca- pitalista. Encontramos a confirmação dessa nossa suspeita num texto de Christoph Turcke, intitulado O Nascimento Mítico do Lo- g o ~ . Gostaríamos, com a apresentação da argumentação básica

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deste texto, demonstrar por um outro viés o que estamos tentando mostrar na argumentação de Marx. Esta exposição ajudará a escla- recer também a própria argumentação marxiana e, melhor entender a realidade atual, motivo sem o qual este estudo não teria sentido. Aliás, Turcke faz uma reflexão muito parecida com a de Feuer- bach, na medida em que busca a origem e o fundamento humano daquilo que aparece como sendo uma certeza inquestionável.

Segundo Christoph Turcke, a forma de pensar abstrata e sistematicamente, fundamenta o próprio surgimento do Ocidente. Como o Ocidente caracteriza-se também por uma organização so- cial que parece ser incapaz de existir sem se expandir, sem sujeitar às leis econômicas tudo o que toca, este pensamento abstrato e sis- temático seria o próprio fundamento também desta estrutura con- quistadora, de forma que o imperialismo moderno seria apenas a expressão prática da violência inerente a esta forma de pensar. Turcke propõe, então, uma investigação em torno da origem deste Logos ocidental, buscando identificar, no seu surgimento, a cons- tituição desta estrutura conquistadora e violenta.

É conhecimento generalizado de que o Logos ocidental tem a sua manifestação primeira na Grécia clássica, tendo como pre- cursor o mito. É, portanto, no próprio mito que Turcke vai iniciar sua investigação. Uma das primeiras afirmações é a de que o mito precisa ser entendido como sendo uma resposta que os seres huma- nos deram a uma certa realidade, em uma determinada época, em que muitas das distinções que nós fazemos, hoje, não eram possí- veis. Dentre elas, as distinções entre sacro e profano, brincadeira e trabalho. Estas distinções exigem um razoável distanciamento do homem em relação à natureza e, portanto, do domínio das ameaças naturais e do seu poder assustador.

Imersos, inteiramente, na própria natureza, os homens não conseguiam vislumbrar minimamente os desdobramentos de suas atitudes no ambiente, não sabiam diferenciar entre cultivar e invo- car a natureza. Até hoje, segundo o autor, carregamos esta origem comum na linguagem. Embora o cultivo esteja relacionado com trabalho, enquanto o culto se configura mais como uma categoria religiosa, em sua origem representavam duas formas de fazer a

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mesma coisa, ou seja, o "esforço humano a fim de dominar a natu- reza."2% culto tinha o caráter mais de cultivo das forças superio- res e o cultivo o caráter de culto, de tratamento cuidadoso dos ob- jetos disponíveis, o que revela que a distinção entre realidade inte- rior e exterior não era possível de ser feita. Mas, diante da fragili- dade própria do ser humano, a necessidade de tomar distância em relação às ameaças da natureza impôs-se como sendo uma condi- ção de vida ou morte. Ora, a linguagem surgiu como um instru- mento muito eficaz neste sentido. No entanto, ela precisou, primei- ro, estabelecer uma esfera própria, em que o homem pudesse per- ceber algo distinto da natureza, espaço este, que, segundo o autor, ela conquistou no mito, na medida em que se tornou linguagem narrativa. A narrativa mítica surge, assim, como algo que "faz parte da prática social, evidenciando-se, ao mesmo tempo, corno algo diferente desta."27 Tornou-se, assim, um eficaz instrumento para dominar os obstáculos da natureza, exigindo, no entanto, tam- bém um certo esforço teórico, mesmo que fantástico, enquanto condição para possibilitar a narrativa dos esforços práticos. Como conseqüência deste processo, aos poucos, tornou-se possível a dife- renciação entre ficção e realidade, subjetivo e objetivo e outros. Segundo o autor, desta forma, o mito foi uma espécie de esfera pré- lógica, em que se encaminhou esta diferenciação.

O autor defende, então, a tese de que no próprio mito existe, de certa forma, um impulso racional, no sentido de que os mitos procuram estabelecer a causa objetiva dos fenômenos, mes- mo que estas causas sejam atribuídas a deuses. Ora, desta forma, os próprios deuses surgem deste impulso explicador. Além disto, esta é, também, uma forma de subjetivar os fenômenos, na medida em que fenômenos objetivos têm sua causa última atribuída aos deuses e, como os deuses permitem a comunicação, há, pois, a possibili- dade de negociação, de influência. É o que permite a seguinte afirmação: "Originalmente, com efeito, a negociação, o negócio, o

' ~ U R C K E , Christoph. O nascimento mítico do Logos. hi: De Boni, Luís Al- berto. (org.) Fi~zitutle e Trai~scendência. Petrópolis: Edipucrs/Vozes. p. 82.

" Id. p. 82.

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comércio foram aprendidos no tráfego com os deuses, como jeito humano para evitar a ira divina."28

Dessa forma, o mito surge na forma de um paradoxo, por ser, ao mesmo tempo, expressão de um impulso explicador- científico, mas, também, de uma subjetivação, manifestada pela imaginação fantástica, pela ficção. Como conseqüência deste para- doxo, o mito, ao se desenvolver, inibe a si mesmo, uma vez que, avançando quanto à sua dimensão científica, ou seja, objetiva, pre- cisa ir superando a ficção subjetiva. Portanto, no mito, o logos é, ao mesmo tempo, prefigurado e negado.

Esse paradoxo tem conseqüências interessantes para o pro- cesso da história real. Ainda nos gregos, o autor busca um exem- plo. Escolhe a Ilíada, de Homero, por considerar que este, de certa forma, radicalizou o antropomorfismo dos deuses, atribuindo-lhes qualidades propriamente humanas. Descreve, então, a situação em que o exército grego se encontra acuado por uma terrível peste. Em consulta a um adivinho, este informa que a peste é resultado de uma vingança do deus Apolo, pelo fato de uma filha de um sacer- dote seu ter sido roubada pelos gregos, e que estava agora apodera- da pelo líder superior dos gregos: Agamémnon. A condição que se impõe para que a peste pare é de que a filha do sacerdote seja de- volvida. Revela-se, assim, que o relacionamento entre deuses e homens se encontra marcado pela troca, de forma que a ordem do mundo depende da justeza da troca. Busca-se, pois, a causa do acontecimento. Neste sentido, o mito tem algo de científico, expli- cador. No entanto, a causalidade é fantástica e ficticiamente identi- ficada com uma possível desarmonia quanto à vontade divina.

Na continuação do mito, Agamémnon, não vendo outra saída senão cumprir os preceitos divinos, mesmo que contra sua vontade, percebe-se em situação de desvantagem em relação a ou- tro líder grego, Aquiles, que não perdera recompensa alguma. Por isto, exige uma recompensa a fim de não ser injustiçado, transfe- rindo aquela exigência quanto à necessidade da equivalência na troca, da esfera divina para a humana. Para Türcke:

" TÜRCKE, Op. Cit. p. 84.

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"Neste pequeno trecho, a Ilíada consegue a abreviação imaginá- ria de um processo longo na história real, lembrando, de modo narrativo, que a troca, originalmente, pertenceu ao culto en- quanto meio humano para aplacar deuses. Neste contexto, Aga- mémnon personifica uma virada histórica: a transferência do princípio da troca da esfera divina à esfera humana. Revelam-se, deste modo, as regras comerciais entre homens, enquanto oriun- das de regras sacras."29

Ora, isso revela, a respeito do paradoxo acima citado, que a ficção, a mistificação, em torno da troca perfeita, foi trazida para o mundo dos homens, mesmo sendo apenas uma forma fantasmagó- rica de atribuir objetividade a realidades ameaçadoras. De uma fic- ção explicativa passou a ser uma regra de convivência social, im- possível de ser desrespeitada sem que se incorresse em injustiça. É o mito presente nas atuais relações econômicas e sociais. O comér- cio tem, pois, origem no próprio culto, ou seja, no cultivo de uma força superior, incalculável e não disponível, o princípio da equi- valência na troca. Uma vez estabelecida esta suposta equivalência, tem de ser cumprida, mesmo que seja a custo dos mais altos sacri- fícios humanos.

Interessante notar que foi contra este tipo de exigências que, segundo Hinkelammert, surgiu o cristianismo. Poderíamos agora afirmar que, quando isto passou a significar sacrifício dos sacrificiadores, como vimos antes, este princípio tornou-se seme- lhante ao presente desde os gregos, e aqui identificado. Esta união tornou-se condição de fecundidade para a geração de uma forma de organização social chamada capitalismo, em que tudo está organi- zado em vista de algo exterior à vida do próprio homem. Mas vol- temos à reflexão de Turcke.

Na continuação da exposição do mito, fica bem claro o fato de que este princípio passa também a dominar as relações sociais. Aquiles, fazendo pouco caso das exigências de Agamémnon, diz não se irritar com sua ira e, portanto, não buscará uma restituição, chegando mesmo a pensar em matar Agamémnon. Logo, no en-

'9 TÜRCKE, op. cit. p. 87.

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tanto, é surpreendido pela deusa Palas Atenas que, invisível para os outros, pega-o pelos cabelos e acalma-lhe os ânimos, dizendo-lhe que não puxe a espada contra Agamémnon. Aquiles espanta-se di- ante de Palas Atenas, mas promete obedecer, dizendo que "quem obedece aos deuses também por eles é escutado." 30

O autor faz então uma análise dessa atitude, em que, ao contrário do normal, a deusa passa a aplacar o homem. O espanto de Aquiles, diante da deusa e de sua atitude, poderia assim ser in- terpretado como sendo aquele primeiro impulso para a filosofia. Na medida em que, mesmo impulsionado pelos sentimentos de ira e horror, o seu espanto ante a deusa Palas leva-o a superar seus pró- prios sentimentos e transformá-los em energia intelectual. Assim, a postura teórica evidencia-se num esforço psicofísico, pois, a cons- ciência teórica é movida por impulsos, desejos e afetos que lhe ser- vem como base, mas contra os quais, neste mesmo instante, ela se destina.

"Só ao voltar aos seus próprios impulsos, a sua própria energia contra si mesma, ela se realiza. Tal volta, tal inversão, compõe a estrutura básica da reflexão, revelada autenticamente, pelo Aquiles homérico e escondida, sucessivamente, pela transforma- ção do mito em logos. Na Filosofia, enfim, sobretudo na Filoso- fia idealista do século XVIII e XIX, encontra-se volatilizada na reflexão, auto-referência de um espírito puro e autkquico, suge- rindo a independência e autonomia da razão pura. Ao ser esta- belecida como um hábito fixo, a consciência teórica deixa esque- cido o processo de sua própria gênese.''3'

A desconsideração desse impulso inicial residente nos fe- nômenos psicofísicos, ao ser esquecido, faz com que a reflexão se realize sem uma base pulsional efe t i~a .~ ' O logos autêntico, apre-

'O TURCKE, Op. Cit. p. 88. Não parece mera coincidência o fato de que atual- mente são constantes os discursos que afirmam num tom quase profético, ou mesmo apocalíptico, que a única possibilidade de salvação dos povos reside na lógica do mercado.

" Id. p. 89. 32 Aliás, para nós parece interessante notar que talvez aqui esteja o motivo pelo

qual Feuerbach e Marx tomem as abstrações de uma forma tão crítica.

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sentado pelo Aquiles homérico é, no entanto, constantemente substituído pelo mito. Ao não reconhecerem sua verdadeira base impulsional, o que aconteceu, por exemplo, com os primeiros filó- sofos ao substituírem os deuses míticos por princípios (arché), não se criam as condições de superação do mito. Estes princípios con- tinuaram possuindo também os aspectos de troca arcaica, como sendo necessários, como suposição de uma correspondência per- feita entre causa e efeito. Desvincularam-se dos impulsos psícofísi- cos originais. Por isto, esta hipótese mítica, segundo o autor, clan- destinamente, continua através dos princípios abstratos, que apare- cem como sendo fundados em si mesmos e com a capacidade de compor o mundo. Como resultado temos o seguinte:

"Tal supervalorização de si mesmo é o defeito principal do idea- lismo filosófico: desde Tales até Hegel. A dinâmica expansio- nista, no entanto, dentro das modernas leis econômicas, não faz senão repetir e afirmar a referida supervalorização. O capitalismo é idealismo aplicado. Ao fazer da troca o princípio abstrato e autárquico do mundo, a lei do movimento econômico da socie- dade moderna perpetua o domínio mítico na era da ciência e da d e m ~ c r a c i a . " ~ ~

Existe, portanto, uma certa cadeia mítica vigente na ordem social, impedindo que a humanidade desfrute adequadamente dos meios racionais desenvolvidos. O mito que envolve o logos oci- dental e o mito que envolve a sociedade moderna são uma só coisa ou no dizer do autor, "formam dois lados da mesma miséria".

Após termos feito este excurso com vista à melhor com- preensão da constituição do próprio Logos ocidental, localizando algo de místico, inumano, vamos agora voltar a acompanhar a aná- lise, desenvolvida por Marx, no que se refere à constituição da so- ciedade moderno-burguesa pela análise do pensamento da econo- mia política da época. Interessa-nos enfatizar, que nesta análise, Marx vai, progressivamente, demonstrando o quanto no capitalis- mo uma estrutura supostamente externa ao próprio homem vai do-

'3 T ~ c K E , op. cit. p. 90.

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minando-o. Ou seja, Marx vai descobrindo como na forma especí- fica da organização social capitalista o Logos é limitado pelo mito, ou então, pelo culto à lei econômica.

Esse princípio se manteve velado, de certa forma, na filo- sofia e na religião, de maneira que apenas com o modo de produ- ção capitalista ele se efetiva em nível econômico e material. Marx está buscando identificar esta forma autônoma e mítica na realida- de capitalista. Percebe-a, mas não consegue entendê-la satisfatori- amente ainda. A diferença entre a propriedade anterior ao capita- lismo e a propriedade propriamente capitalista evidencia ainda mais a existência de algo superior ao próprio homem na realidade capitalista. A intenção de Marx é demonstrar que há uma tendência de o capital tornar-se o poder, o princípio dominante em todos os setores da sociedade, até mesmo na agricultura que, na época, pa- recia orientar-se ainda por outros princípios e inclusive opor-se ii indústria. Ou seja, o capital começa a aparecer como sendo a sínte- se deste sistema de alienações, tudo submetendo à sua lógica. A totalidade deste sistema Marx chamará, constantemente, de sistema de propriedade privada e, mais tarde, sociedade capitalista.

Marx, portanto, parte da análise da situação descrita pelos próprios economistas. Constata, assim, que quando o proprietário fundiário exige rendimento da terra sem que nela trabalhe e mes- mo, às vezes, sem ter nela investido, uma vez que faz estes inves- timentos com o próprio resultado da renda, ele recolhe aonde não semeia e exige renda pelo empréstimo da própria natureza. Con- forme a alta dos preços dos produtos produzidos, o arrendatário aumenta o preço da renda. Embora pareça que o proprietário fundi- ário tenha os mesmos interesses que os interesses públicos da soci- edade, isto não é verdade. Neste ponto, Marx já pôde identificar o proprietário fundiário com o capitalista industrial, uma vez que ele, o proprietário fundiário, tem, também, como fim último apenas o lucro, capaz de ser obtido pela maior exploração do arrendatário, incluindo, assim, também o proprietário fundiário no sistema eco- nômico mais amplo, que está sob o domínio da propriedade priva- da, sendo que os interesses dos proprietários são, em geral, propor- cionalmente inversos aos que a sociedade tem. Como se viu ateri-

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ormente, há uma relação entre aumento da renda e aumento da mi- séria. Os interesses do rendeiro e do proprietário são opostos e, como os rendeiros são grande parte da sociedade, conclui-se que os interesses dos proprietários são contrários à grande parte da socie- dade, além disto, o proprietário fundiário, tal como o industrial, re- duz os salários (renda) o quanto pode, em detrimento do trabalha- dor. Significa, então, que tanto na indústria como na agricultura, há apenas duas classes: a classe trabalhadora e a classe capitalista. O regime de propriedade privada, também teve sua origem na propri- edade privada da terra, pois, mesmo no feudalismo, a propriedade privada da terra surgia como um poder estranho, no qual o senhor aparecia como rei por meio desta propriedade, embora a proprieda- de fundiária não apareça como sendo domínio direto do capital, antes como relação mais pessoal entre senhor e servos, aparecendo os servos mais numa posição de respeito, subordinação e obrigação ante o senhor, que é envolvido por uma certa auréola romântica. Porém, no período moderno, a relação proprietário e trabalhador se reduziu à relação puramente econômica. Aquilo que parecia ser uma relação pessoal entre propriedade e proprietário passa a ser uma relação, exclusivamente, de riqueza material, de submissão ao princípio econômico, ao capital.

Esclarece-se, assim, a diferença entre a propriedade priva- da anterior ao capitalismo e a do capitalismo. Se antes havia uma relação que se poderia chamar diretamente política, agora, ao se jogar a relação política para o além, no Estado, esta relação, este movimento entre proprietário e trabalhador se transformou numa relação específica de mercadoria, evidenciando-se, assim, o domí- nio de um poder estranho sobre a vida humana. Isto se esclarece, ainda mais, pelo fato de

"que o domínio do proprietário surja como regime nu e cru da propriedade privada, do capital, dissociado de toda a coloração política; que a relação entre o proprietário e o trabalhador se re- duza h relação econômica de explorador e explorado; que toda a

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relação pessoal entre o proprietário e a sua propriedade se extin- ga, transformando-se em simples riqueza material. "34

O específico, pois, da propriedade privada capitalista, ge- rada a partir da dinâmica do trabalho abstrato, é que ela aparece como um ser próprio, que exige caprichos aos quais até mesmo o seu próprio proprietário se submete. Talvez, porque o homem, como ser genérico, ao imaginar que suas atividades são isoladas do seu gênero, gera criaturas que são a expressão de sua essência ge- nérica, mas que acabam por dominá-lo pelo fato de ele não se dar conta deste seu potencial. Por mais que a atividade seja alienada e individualista, a essência genérica aflora, expõe-se, mesmo que seja em estruturas que acabam por dominar o próprio homem. É como se existisse uma segunda natureza, gerada pelo próprio ho- mem, mas que o domina. Desta maneira, o fenômeno econômico, enquanto sendo uma destas criaturas, poderá ter, ao menos, o mé- rito de ser, embora por vias indiretas, uma forma de expressão das potencialidades da essência genérica do homem. A estrutura eco- nômica aparece como sendo o mundo invertido que precisa ser cri- ticado, que precisa ser traduzido para a linguagem da realidade concreta da vida do homem.

Fazer a simples divisão da terra ou de qualquer outro meio de produção pode até negar o monopólio por um tempo, porém, como a base deste monopólio, que é a propriedade privada e seus fundamentos, não é negada, logo a concorrência estabelecerá, tor- nará o monopólio de novo possível. Portanto, para terminar com a possibilidade do monopólio da terra (e de outros monopólios mais!), é preciso abolir a propriedade privada e seus fundamentos. Neste momento da argumentação, Marx faz uma veemente defesa da atitude associativa, como sendo o início de um processo em vista da extinção da propriedade privada, sendo esta atitude enten- dida como atividade cooperativa e não apenas como propriedade comum ou igualitária de bens. Vejamos:

34 MARX, op. cit. p. 151.

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"A anulação do monopólio, que obteve a sua mais ampla e en- globante existência, é a sua completa aniquilação. A associação, aplicada à terra e ao solo, possui a vantagem, do ponto de vista econômico, da grande propriedade fundiária e realiza ao mesmo tempo a tendência original da divisão da terra, isto é, a igualdade. A associação restaura a íntima relação entre o homem e a terra de maneira racional e não através da servidão, do domínio senhorial e de uma absuvda mística da propriedade. A terra deixa de ser um objeto de sórdida especulação e através do livre trabalho e da livre fruição transforma-se em propriedade verdadeira e pessoal do homem."35

Mas, para que isto se tornasse possível, seria preciso pri- meiro entender melhor as próprias possibilidades da propriedade privada, até agora não esclarecidas pela economia política. Seria preciso perceber quais as dimensões humanas que se alienam no sistema de propriedade privada, como elas se alienam e, por fim, vislumbrar possibilidades de recuperar estas propriedades humanas alienadas.

3 - A descoberta do trabalho alienado: resultado da crí- tica à economia política

Todas as questões da sociedade referentes à economia, le- vantadas por Marx até o presente momento, são apenas constata- ções feitas pelos próprios economistas, embora a forma como fo- ram expostas aponte, também, para os seus pressupostos. Marx vai buscar, agora, entender estes pressupostos para, a partir deles tor- nar possível uma crítica capaz de ultrapassar a visão dos econo- mistas, para os quais a realidade se apresentava como sendo natural e inquestionável. A propriedade privada foi aceita, por estes, como um pressuposto, e suas conseqüências quase que necessariamente deduzidas.

No entanto, no momento em que Marx apontava a atitude associativa como uma forma de superação da propriedade privada da terra e do conseqüente monopólio, referiu-se à possibilidade de

3 % ~ ~ ~ , op. cit. p. 153.

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superação de "uma absurda mística da propriedade". Ora, ao dizer que a propriedade se afirma por meio de uma absurda mística, se pode levantar a suspeita de que ela precisa passar por um crivo crí- tico parecido com o que a própria religião passou a fim de que pos- sa ser esclarecida. Esta é a tarefa que Marx, agora, vai se propor, uma vez que os economistas não a realizaram. Em outras palavras, Marx quer buscar entender o motivo pelo qual o ser humano reco- nhece e se submete, passivamente, a lógicas sacrificiais como se elas fossem naturais. Ou mais, porque a humanidade não consegue se libertar da origem mítica do seu Logos, e como isto se realiza na realidade capitalista. Vejamos:

"A economia política parte do fato da propriedade privada. Não o explica. Concebe o processo material da propriedade privada, como ele ocorre na realidade, em fórmulas gerais e abstratas, que em seguida Ihes servem de leis. Não compreende tais leis, isto é, não demonstra como elas derivam da essência da propriedade privada. A economia política não fornece qualquer explicação sobre o fundamento da divisão do trabalho e do capital e da terra. (...) Os únicos motivos que põem em movimento a economia po- lítica são a avareza e a guerra entre os avaros, a c ~ n z ~ e t i ~ ~ o . " ~ ~

A economia política, portanto, não explica, mas apenas pressupõe o que deveria deduzir. Há uma espécie de arché, de princípio metafísico a partir do qual tudo parece concebível e justi- ficável. A causalidade da realidade é atribuída a esta espécie de fantasma, denominado propriedade privada, que só se torna possí- vel pela competição entre indivíduos. Sim, fantasma, porque sensi- velmente a propriedade privada não existe, é, apenas, um expressão social. No entanto, aparece para a economia política como sendo algo que tem uma existência objetiva. Marx aponta, assim, a insu- ficiência de simplesmente pressupor um fato sem explicar as rela- ções que o geram, visa, assim, trazer à tona os processos sociais inerentes a estes e não tomá-los como um pressuposto natural e dogmático. Da mesma forma como na Questão Judaica, propunha

3 % ~ ~ ~ , op. cit. p. 157.

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analisar o judeu a partir do seu dia-a-dia e não apenas o judeu do sábado. Por isto, é necessário buscar o que está escondido por de- trás do aparecer da propriedade privada.

Nesse sentido, Marx equipara a economia política à teolo- gia, quando ela explica o mal pela queda do homem, pressupondo como fato o que deveria explicar. Por isto, a economia política não percebe a relação que existe entre a propriedade privada, a divisão do trabalho, a concorrência, o monopólio e outros. Ou seja, ela não consegue perceber a interconexão destas realidades, não percebe que elas se encontram em uma rede que as interliga e fundamenta, que são partes da mesma realidade. Enfim, não percebe que há um espírito inumano que perpassa toda organização social e, pior, os economistas não percebem que este espírito é fruto da própria or- ganização social humana, que eles consideram natural. O que a le- vou a posições absurdas como, por exemplo, opor a concorrência ao monopólio. Marx propõe-se "aprender a conexão essencial entre todo este sistema de alienação (...) e o sistema do dinlzeit-o."37 Para tanto, parte do percebível no fato econômico, assumido pelos eco- nomistas, de que o "trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz"38, para daí buscar as relações que possibili- tam este fato. Para perceber, então, que tipo de conexão existe en- tre os fatos, explicados pelos economistas em termos de condições externas, como a propriedade privada, o interesse capitalista e a concorrência, com o sistema dinheiro.

Dizer que o trabalhador quanto mais produz mais empo- brece, pois pelo seu trabalho aumenta algo que o domina, relativa e progressivamente, conforme sua produção, implica dizer que a va- lorização do mundo dos homens diminui de forma equivalente à que se valoriza o mundo das coisas. Tanto que na própria esfera da economia política o trabalho aparece como sendo uma desrealiza-

37 MARX, op. cit. p. 158. Nesta fase dos escritos de Marx parece-nos não haver distinção entre os conceitos de propriedade privada, capital, dinheiro, sendo que todos eles correspondem à forma capitalista de propriedade, ou seja, a esta for- ma específica com que o ser humano, no capitalismo, se submete a um poder estranho. Id. 159.

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ção do trabalhador. A explicação, segundo os economistas, é a se- guinte: ao trabalhar, o trabalhador se relaciona com o mundo físi- co, ele se objetiva num objeto. Trabalhar significa objetivar-se. O homem perde-se a si mesmo e se submete ao objeto. Este objeto torna-se um poder independente em relação ao trabalhador, de forma progressiva, em paralelo com a sua própria capacidade de produção. Por isto a "realização do trabalho aparece na esfera da economia política como desrea l i zação do trabalhador, a objetiva- ção como perda e servidão do objeto, a apropriação como alierza- ção."39 A economia política toma este aparecer como sendo o mais verdadeiro sem buscar as suas implicações mais profundas, de forma que a apropriação dos objetos aparece sempre como aliena- ção, como submissão ao seu produto. O pensamento da economia política não diferencia entre objetivação e alienação. Não percebe que a alienação é resultado de um processo mais profundo que tor- na o objeto estranho ao produtor.

Algo de muito estranho acontece neste processo. Senão, como explicar que o trabalhador quanto mais trabalha mais empo- brece? Em razão de quem e do que estaria, então, trabalhando? Algo mais profundo precisa estar na origem deste aparecer. Marx continua, estabelecendo uma analogia com a religião:

"...o trabalhador se relaciona ao produto do seu trabalho como a um objeto estranho. Com base neste pressuposto, é claro que quanto mais o trabalhador se esgota a si mesmo, tanto mais pode- roso se torna o mundo dos objetos, que ele cria perante si, tanto

39 MARX, op. cit. p.159. Marx aqui não parece fazer muita diferenciação entre os termos estranhamento (Entfvemdung) e alienação (Eiitausserung), tanto que chega a usar as duas simultaneamente, e, a tradução ora opta por uma ora por outra. Para exemplificar este fato citamos em original a frase acima: "Diese Verwirklichuizg der Arbeit erscheint in dein natioiznlokoizonzischen Zustand 01s Entwirklichung des Arbeiters, clie Vergegenstandlichung als Verlust und Knechtschaft des Gegenstandes, die Aneignung nls Entfremdung, als Entausse- rung." MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. (MardEngel: Werke) Berlin: Dietz Verl. Band 40, 1990. p. 512. Para nós estes dois termos continuarão sendo to- mados como sinônimos. A objetivação quer significar esta interferência do ho- mem na realidade, gerando uma objetividade diferente, mas que não necessari- amente se apresenta como um objeto estranho.

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mais pobre ele fica na sua vida interior, tanto menos pertence a si próprio. O mesmo se passa na religião. Quanto mais o homem atribui a Deus, tanto menos guarda para si rne~mo."~'

É preciso, portanto, entender a especificidade da relação que o homem estabelece com o objeto nesta relação, a fim de iden- tificar a origem deste estranhamento. Antes de tudo, Marx faz al- gumas observações gerais. Inicia dizendo que no processo de obje- tivação percebe-se que o trabalhador é, duplamente, dependente do objeto. Em primeiro lugar, porque o homem não consegue produ- zir, sem objetivar, sem o objeto. O homem não pode criar sem o mundo externo e sensível. Além disto, a natureza oferece os meios de subsistência física do próprio trabalhador, afinal ele precisa co- mer, respirar etc. O ser humano, assim, só é sujeito físico enquanto trabalhador e só é trabalhador enquanto sujeito físico.41 A humani- dade concreta do homem se revela na sua relação com o objeto. Estaria, então, condenado a viver se alienando? Se permanecêsse- mos neste nível da análise, identificando objetivação e alienação, o da economia política da época, parece que sim.

Marx, porém, vai mais longe e acusa a economia política de não ultrapassar esse nível da análise e de esconder a alienação na própria natureza do trabalho. Ficam presos à alienação, consta- tada entre o trabalhador e o produto do seu trabalho, como se o processo produtivo nada importasse. É preciso considerar, segundo Marx, que "se o produto do trabalho é a alienação, a produção em si tem de ser a alienação ativa. Na alienação do objeto do trabalho, resume-se apenas a alienação na própria atividade do trabalho."42 É, pois, nesta perspectiva, que Marx busca entender em que con- siste a alienação do trabalho, e não apenas do produto do trabalho, mas de que forma a produção é alienação ativa, é processo social.

40 MARX, op. cit. p. 159. 4 1 Interessante notar aqui que Marx, ao valorizar dessa forma o trabalho, faz dele

uma forma concreta de manifestação e de existência do ser genérico. Não é mais o ser genérico que aparece apenas em nível de consciência, como acontecia em Feuerbach.

4' Id. p. 162.

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Mas de que forma se dá esta alienação no processo produ- tivo? Como ela acontece? A primeira constatação de Marx é de que o trabalho aparece como sendo algo exterior ao trabalhador, em que ele em vez de se realizar se sente infeliz e oprimido, tanto que "o trabalhador só se sente em si fora do trabalho, enquanto no tra- balho se sente fora de si. Assim, o seu trabalho não é voluntário, mas imposto, é trabalho Este trabalho não pertence à natureza do trabalhador. Por isto, o trabalho esgota fisicamente o trabalhador e o arruina espiritualmente. O trabalho é apenas um meio para satisfação de outros fins, não uma satisfação, um fim em si mesmo. Por isto, o trabalhador foge do trabalho quando pode. Afinal, trabalhar significa mortificação. Por que isto acontece?

Essa exterioridade do trabalho se justifica porque o traba- lhador percebe que o trabalho que realiza não é seu, mas de outro. O trabalho aparece apenas como um sacrifício necessário para a sobrevivência e o interesse individual. Não é ele que decide sobre a sua atividade, e nem mesmo sobre a sua finalidade.

"Finalmente, a exterioridade do trabalho para o trabalhador transparece no fato de que ele não é o seu trabalho, mas o de ou- tro, no fato de que não lhe pertence, de que no trabalho ele não pertence a si mesmo, mas a outro. Assim como na religião a ati- vidade espontânea da fantasia humana, do cérebro e do coração humanos, reage independentemente, como uma atividade estra- nha, divina ou demoníaca, sobre o indivíduo, da mesma maneira a atividade do trabalhador não é a sua atividade espontânea. Pertence a outro e é a perda de si mesmo."44

Se antes o trabalhador se alienava, pelo fato de o produto do trabalho ser-lhe exterior, agora ele se aliena a si mesmo ao tra- balhar, é a auto-alienação. A vida pessoal, como sendo sua ativida- de, energia física e mental, não lhe pertence mais, ao contrário, opõe-se a ele. Já se descortina aqui um nível mais profundo e hu- mano da alienação em relação àquele anterior, em que não mais apenas o produto do trabalho, mas, também, a própria atividade

" MARX, op. cit. p. 62. 44 Id. p. 162.

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produtiva aparece como alienada, estranhada. E como a vida do trabalhador não é nada mais que atividade, é a sua própria vida que se aliena, que se opõe a si mesmo. A sua atividade vital consciente transformou-se apenas num meio que é dominado por outro.45

A alienação, porém, tem determinações ainda mais pro- fundas, pois o ser humano, como um ser genérico, também se alie- na. Antes de esclarecer este nível, Marx explicita o que entende por ser genérico: o ser que pode ter por objeto, prática e teoricamente a sua própria espécie, que se percebe enquanto ser universal e, como conseqüência desta capacidade, é livre. Esta universalidade livre encontra sua base física na esfera inorgânica da natureza. "A cons- trução prática de um mundo objetivo, a ma~zipulação da natureza inorgânica, é a confirmação do homem como ser genérico consci- ente, isto é, ser que considera a espécie como seu próprio ser ou se tem a si como ser genérico."46 É pela atividade consciente e, por isto, genérica, sobre o objeto que o ser humano manifesta a sua vida genérica, a sua essência.

Desta forma, Marx transfere para a esfera prática aquilo que Feuerbach considerava apenas em nível teórico. Embora Feuerbach identificasse com a natureza humana tudo o que a cons- ciência poderia perceber nos objetos, tanto que os mais distantes objetos como o sol e a lua eram ainda formas de o homem conhe- cer a si mesmo, de o homem descobrir potencialidades suas, estas potencialidades não se manifestavam concretamente. Marx transfe- re agora esta capacidade para a dimensão prática, no sentido de que o homem faz da natureza o seu corpo inorgânico, pelo fato de fazer dela o seu imediato meio de vida, mas também por fazer dela, en- quanto objeto material, o instrumento para a realização de sua ati- vidade vital, ou seja, manifestar a sua liberdade como ser genéri-

4s Cf. OLIVEIRA. Manfredo Araújo. Os rnaiiuscritos de Paris e a artic~ilação cio korizo~zte de emancipaçiio. 111. Tópicos sobre dialética. Porto Alegre: EDI- PUCRS. 1998. p. 120. "O que está em jogo para Marx, em priineiro lugar, é o próprio sentido da ação humana enquanto tal: ela se aliena na medida em que se encontra subordinada, como um meio, a um fim que lhe é exterior. Portanto, a ação é alienação toda vez que ela 1150 é fim em si mesma." E a ação, para que seja genuinamente hurnana, é aquela atribuída ao gênero.

36 MARX, op. cit. p. 165.

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co,4'moldando a natureza conforme sua natureza humana. De for- ma que o trabalho passa a ser a forma de manifestação da essência humana.

O trabalho alienado aliena o homem dos objetos, ou seja, da sua natureza inorgânica, uma vez que os produtos do trabalho são os locais aonde se manifestam concreta e sensivelmente as ca- racterísticas do ser genérico. Assim, o homem aliena-se, também, de sua espécie, de sua essência. E, uma vez que os produtos se ma- nifestam apenas como meios para a satisfação individual, torna-se assim, a própria vida genérica, um meio. Ocorre, assim, a inversão que põe a vida individual como objetivo da vida genérica. A ativi- dade genérica, aquilo que torna o homem humano, pertencente à espécie, torna-se apenas um meio para a satisfação dos seus dese- jos individuais e egoístas. Com isto, o homem passa também a não mais se perceber como ser genérico, como ser social. A luta de to- dos contra todos aparece como sendo a única realidade possível, e a natureza, vista como algo externo pode tomar-se objeto de satis- fação dos egoísmos particulares e depois descartada. Os produtos, embora sociais, passam a pertencer a indivíduos isolados, a ser objetos de desejos individuais. Assim como na religião, o contato do homem com as dimensões genéricas levava-o a hipostasiar uma subjetividade exterior, também aqui, o produto, agora já mercado- ria, passa a fasciná-lo como se fosse uma realidade autônoma e mesmo divina. O desejo de ter o objeto venerado faz com que se submeta com docilidade a um processo no qual não se percebe mais como ser humano social. No processo de constituição da pro- priedade privada, constitui-se também o mundo invertido, consti- tui-se o mundo da competição indi~idualista.~'

47 MARX, op. cit.p. 164. "A natureza é o corpo inorghnico do homem, isto é, a natureza na medida em que não é o próprio corpo humano. O homem vive da natureza quer dizer: a natureza é o seu corpo, com o qual tem de manter-se em permanente intercâmbio para não morrer. Afirmar que a vida física e espiritual do homem e a natureza são interdependentes significa apenas que a natureza se inter-relaciona consigo mesma já que o homem é uma parte da natureza."

48 Cf. OLIVEIRA, op. cit. p. 122. "O capitalismo emerge, para Marx, precisa- mente como uma sociedade invertida, porque nela a vida genérica se torna meio

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"De fato, o trabalho, a atividade vital, a vida produtiva, aparece agora ao homem como o único meio da satisfação de uma neces- sidade, a de manter a existência física. A vida produtiva, porém, é a vida genérica. É a vida criando vida. No tipo de atividade vi- tal reside todo o caráter de uma espécie, o seu caráter genérico; e a atividade livre, consciente, constitui o caráter genérico do ho- mem. A vida revela-se simplesmente como meio de vida. "49

A humanidade do homem se caracteriza em ser algo mais que o ser individual. Com a inversão aqui realizada, o humano do homem passa a ser secundário, meio para o ser individual e egoís- ta, assim como o cidadão, no Estado Moderno, serve apenas como meio para satisfazer os interesses egoístas do homem da sociedade civil. O homem animaliza a si próprio. Vejamos:

"O animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital. Não se distingue dela. É a sua própria atividade. Mas o homem faz da atividade vital o objeto de vontade e da consciência. Pos- sui uma atividade vital consciente. Ela não é uma determinação com a qual ele imediatamente coincide. A atividade vital consci- ente distingue o homem da atividade vital dos animais. Só por esta razão é que ele é um ser genérico. Ou melhor, só é um ser consciente, quer dizer, a sua vida constitui para ele um objeto, porque é um ser genérico. Unicamente por isso é que a sua ativi- dade surge como atividade livre. O trabalho alienado inverte a relação, uma vez que o homem, enquanto ser consciente, trans- forma a sua atividade vital, o seu ser, em simples meio da sua existência. '"O

da vida individual. No capitalismo, o homem transforma sua atividade vital, sua essência em meio de sua existência."

49 MARX, op. cit. p. 164. 50 Id. p. 164. Vejamos como Feuerbach havia exposto algo parecido: "Por isto tem

o animal apenas uma vida simples, mas o homem uma dupla: no animal é a vida interior idêntica 2 exterior - o homem possui uma vida interior e uma exterior. A vida interior do homem é a vida relacionada com o seu gênero, com a sua essên- cia. O homem pensa, i.é., ele conversa, fala consigo mesmo. O animal não pode exercer nenhuma função de gênero sem um outro indivíduo fora dele; mas o homem pode exercer a função de gênero do pensar, do falar (porque pensar e

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Veja-se que, neste parágrafo, Marx usa argumentos nitida- mente feuerbachianos para provar que a realidade na qual vive o trabalhador, na forma de produção capitalista, é uma realidade ali- enada. Mesmo que o que demonstre, em última instância, a aliena- ção, aquilo que é a medida diante da qual se pode afirmar a aliena- ção, seja a consciência e a liberdade, isto não seria possível, em ní- vel prático sem a noção de ser genérico. Pois a liberdade só é pos- sibilitada porque o ser humano é um ser genérico porque, ao con- trário do animal, ele tem a capacidade de ver a universalidade das coisas e, também, de se perceber ele mesmo como gênero, e só como tal, agir conscientemente. A idéia da liberdade aparece aqui sem ter aparecido em Feuerbach, desta forma. Ela parece ser um conceito antropologizado da teoria de Hegel, assumida por Marx. Embora ela venha a enriquecer a idéia do ser genérico, Marx não parece conseguir fundamentá-la suficientemente neste contexto, embora se manifeste concretamente, ela ainda é uma idéia introdu- zida como um pressuposto autônomo. Marx não deixa claro porque do caráter universal do ser humano se possa deduzir a sua liberda- de. Importa, no entanto, dizer que a perda da liberdade é apenas uma conseqüência do fato de o homem ter se alienado de sua es- sência, ou seja, de seu ser genérico. Não percebe em sua atividade a atividade do gênero humano, o que o leva a alienar-se dos outros homens, pois eles são também constituidores do gênero humano. Está, pois, preparado o chão para o individualismo, a concorrência e a exploração do homem sobre o próprio homem.

Como o objeto do trabalho é a

"objetivação da vida genérica do homem: ao não reproduzir-se apenas intelectualmente, como na consciência, mas ativamente, ele duplica-se de modo real e intui o seu próprio reflexo num mundo por ele criado. Pelo que, na medida em que o trabalho alienado subtrai ao homem o objeto da sua produção, furta-lhe

falar são legítimas funções de gênero) sem necessidade de um outro. O homem é para si ao mesmo tempo EU e TU; ele pode se colocar no lugar do outro exa- tamente porque o seu gênero, a sua essência, não somente a sua individualidade, é para ele objeto." FEUERBACH, op. cit. p. 44.

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igualmente a sua vida genérica, a sua objetividade real como ser genérico, e transforma em desvantagem a sua vantagem sobre o animal, porquanto lhe é arrebatada a natureza, o seu corpo inor- gânico."51

Desta forma, pode-se dizer que o trabalho alienado, uma vez que o trabalho é a realização objetiva da sua vida genérica, tor- na a vida genérica do homem, enquanto atividade livre e consci- ente, um meio para sua existência individual, o que significa uma verdadeira inversão de relações. Isto só pode acontecer porque o trabalho do homem, enquanto atividade consciente, enquanto obje- tivação do próprio ser genérico, não lhe pertence. E ela não lhe pertence porque ele vive, juntamente com os seus pares, alienado de sua vida genérica, em um mundo invertido. Esta alienação do trabalho e do produto do trabalho, enquanto sendo a expressão do ser genérico do homem, tem conseqüências profundas em nível de relação humana e social. Na medida em que o homem usa sua es- sência genérica e aquilo que o caracteriza como ser humano apenas como meio para fins individuais, põe a sua espécie em segundo plano. E assim:

"O que se verifica com a relação do homem ao seu trabalho, ao produto do seu trabalho e a si mesmo, verifica-se também com a relação do homem aos outros homens, bem como ao trabalho e ao objeto do trabalho dos outros homens. De modo geral, a afir- mação de que o homem se encontra alienado da sua vida genéri- ca significa que um homem está alienado dos outros, e que cada um dos outros se encontra igualmente alienado da vida huma- na."52

Dessa forma, a alienação do homem em relação ao seu produto, ao processo de produção e a si mesmo, experimenta-se, primeiramente, na relação do homem com os outros homens, o que nos faz perceber uma inter-relação nas formas de alienação. Sendo que a que surgiu por último, a saber, a alienação do homem em re-

"MARX, op. cit. p. 165. 52 Id. p. 166.

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lação aos outros homens é, também, condição das anteriores. Ou seja, somente quando o homem como ser genérico, que é a sua própria possibilidade de consciência, e por isto de liberdade, se perde, se aliena dos outros homens é que ele pode se alienar em relação ao produto do seu trabalho e em relação a si mesmo, pois, se o produto do trabalho se apresenta ao trabalhador como um ser estranho, isto só pode acontecer porque o produto pertence a outro homem. Sua alienação só é possível porque a sua atividade se dá sob o jugo, o domínio e a coerção de outro homem, o que possibi- lita a afirmação de que toda "auto-alienação do homem, de si mesmo e da natureza, transparece na relação que ele postula entre OS homens, si mesmo e a natureza."53 Isto demonstra que a aliena- ção é resultado de relações bem mais compIexas do que apenas a relação com o objeto, mas com toda a sociedade, si mesmo, e com a natureza. O ser alienado não se reconhece em seus produtos, por- que também não se reconhece em seus semelhantes e na natureza e porque pensa ser um ser totalmente autônomo e isolado.

Para esclarecer a questão, Marx faz uma comparação com o mundo religioso. Diz que, assim como no mundo religioso a auto-alienação só é possível por meio de um mediador (leigo X sa- cerdote), também no mundo prático a auto-alienação funciona as- sim, embora de forma prática. Pois, "o homem, através do trabalho alienado, não só produz a sua relação ao objeto e ao ato de produ- ção como a homens estranhos e hostis, mas produz ainda a relação dos outros homens à sua produção e ao seu produto e a relação en- tre ele mesmo e os outros homens."54 O trabalhador cria, ao mesmo tempo em que produz produtos alienados de si, também, o domínio de outro homem sobre si. Somente alienado dos outros homens e dos seus produtos e trabalhos o homem pode deixar-se dominar por outro ou mesmo dominar o outro, delegando poderes estranhos aos seus semelhantes. O capitalista, embora também esteja alienado nesta estrutura, defende-a por sentir-se privilegiado dentro. da es- trutura. Sente-se vitorioso perante o valor social que julga o máxi- mo, o mais justo: a competição, e torna-se, assim, o maior defensor

53 MARX, op. cit. p. 168. " Id. p. 168.

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deste sistema desumano. Aliás, na medida em que o não capitalista reconhece a competição como fundamento do desenvolvimento so- cial, tem de admitir, também, a desigualdade. As diferenças apare- cem apenas como resultado de méritos pessoais e não de uma es- trutura injusta e alienadora.

O conceito de trabalho alienado se revela, assim, enquanto sendo uma forma de os trabalhadores estarem submetidos a algo produzido por eles, mas que aparece como um ser estranho. Ou seja, os trabalhadores não têm possibilidade de reconhecer a sua essência humana nestes produtos.55 Marx se pergunta, então, a quem pertenceria este poder? Nem aos deuses, nem à natureza, afirma, mas ao próprio homem, a um outro homem alienado do produtor. É desta forma que o trabalhador gera, pelo trabalho alie- nado, a relação de alguém que não trabalha (capitalista) com o tra- balho, de forma que ali se revela uma das funções desta estrutura de trabalho alienado, ou seja, manter os trabalhadores a serviço, sob o domínio e o jugo de outro homem, embora este outro homem também se encontre no interior deste sistema de alienação.

A medida que a atividade e o produto do seu trabalho não lhe pertencem, eles pertencem a outro homem e, na medida em que a atividade produtiva e o produto deste trabalho são a expressão prática da própria vida humana do homem, é a sua própria vida que pertence a outro homem. Um outro homem que priva o produtor de suas propriedades verdadeiramente humanas, contidas na atividade

55 Pode-se aqui perceber uma analogia com a estrutura hegeliana de descoberta da autoconsciência (veja 2.3 acima), enquanto sendo um instrumento de medida correto em relação ao trabalho capitalista, considerado alienado. Desta forma, Marx introduz uma medida externa na realidade. As conseqüências negativas desta realidade são assim afirmadas por não se adequarem ao conceito autôno- mo pressuposto, o que o levará, em obras posteriores, a mudar sua perspectiva metodológica, buscando entender, cada vez mais, a estrutura inerente 2 própria realidade capitalista. Por fim, mesmo que a alienação pareça aparecer aqui como um momento necessário, Marx vai buscar na realidade concreta formas de en- tender sua preocupação inicial; qual seja, "explicar porque o trabalhador se tor- na tanto mais pobre quanto mais riqueza produz". Esta perspectiva prática e so- cial levá-lo-á a fazer grandes avanços mesmo dentro da limitação antes exposta. Nesta questão, Feuerbach foi essencial para que Marx fizesse grandes avanços.

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consciente e nos produtos desta atividade, torna-se dono destas que lhe são retiradas por meio do e no trabalho alienado.

A "propriedade privada constitui, portanto, o produto, o resultado, a conseqüência necessária do trabalho alienado, da rela- ção externa do trabalhador à natureza e a si mesmo."56 A proprie- dade privada surge como sendo o produto do próprio trabalho alie- nado, além de ser também o meio pelo qual o trabalho se aliena, pois é destas propriedades que são privadas, retiradas, roubadas de alguém que o ser estranho se apropria. E, o ser estranho, que tam- bém é o próprio homem, fascina-se em explorar o seu semelhante, porque o produto do trabalho carrega em si as potencialidades do próprio ser genérico. Tendo-as em seu poder, o dominador tem, mesmo que também de forma alienada, porque isolada e egoísta, o poder da essência genérica do ser humano. Os produtos da essenci- alidade genérica, como na religião, passam a dominar todo o pro- cesso, atingindo tanto explorado como explorador, com a diferença de que o explorador se encontra em uma situação mais cômoda e, por isto, não quer que se extinga esta situação alienadora. Há, por- tanto, um conjunto de tramas sociais subjacente à propriedade pri- vada. Na medida em que a propriedade privada é tomada apenas como um fato, como fazem os economistas, não se descobrem es- tas tramas. Aliás, esta nos parece ser a maior descoberta de Marx nesta época, ou seja, perceber que algo estranho passou a dominar a vida dos seres humanos, e de que este ser estranho tem sua ori- gem nas próprias especificidades humanas e nas relações sociais.

Enquanto a propriedade privada é apresentada como sendo exterior ao homem e às suas relações sociais, ela é apresentada como o mundo invertido de Hegel. No momento em que é desmis- tificado, no momento em que se buscam as relações sociais ine- rentes, a processualidade que a gera, inverte-se de novo este mundo invertido e se estabelecem as condições de construção consciente e livre da história, enquanto consciência, história e liberdade de um ser genérico, de um ser que se constitui histórica e coletivamente e não individualmente, mas concretamente. O que significa dizer também que a própria atividade genérica, a essência genérica do

" MARX, op. cit. p. 168.

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homem constitui-se enquanto parâmetro para a crítica da realidade, pois o homem só se emancipará quando no dia-a-dia conseguir apropriar-se e pautar sua vida pelas características atribuídas às mercadorias. Mesmo que Marx tenha feito uso, também aqui, de uma figura da Fenomenologia do Espírito, no sentido de que, como vimos antes, antropologiza o processo de constituição da autoconsciência por meio do trabalho, mostra também o lado ne- gativo do trabalho. Hegel não foi capaz de fazer esta constatação pelo fato de conceber o trabalho apenas enquanto abstrato, interior à consciência, enquanto Marx o concebe concretamente. Ao con- cebê-lo concretamente, busca entendê-lo neste nível. Por isto, mesmo que, de certa forma, preso ao esquema hegeliano, conse- guiu vislumbrar diversos elementos interessantes para compreen- são dos fundamentos humanos e sociais desta realidade. Conseguiu demonstrar o seu caráter enganador e mistificado, além de avançar também em relação ao próprio Feuerbach, uma vez que o ser gené- rico não é mais concebido como uma entidade externa e estática, mas como sendo o resultado histórico de constituição da humani- dade através de suas atividades concretas. A própria idéia de ser genérico de Feuerbach está sendo, aos poucos, desmistificada.

A alienação do homem no trabalho é, portanto, resultado da não apropriação da realidade genérica do seu trabalho, o que si- gnifica a perda de sua natureza inorgânica. Mesmo que para tal Marx tenha pressuposto a estrutura de tomada de consciência da autoconsciência, ou seja, da liberdade, aqui refere-se a elementos muito mais amplos e significativos do que a liberdade abstrata.57

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57 Cf. também OLIVEIRA, op. cit. p. 123 : "Então, a atividade genérica do ho- mem constitui, para Marx, a instância crítica a partir de onde ele pode fazer a leitura dos fatos econômicos e das teorias a seu respeito, a economia política e as teses do "comunismo grosseiro" e, nesta perspetiva, a alienação emerge, em primeiro lugar, para Marx, como negação da atividade genérica, que deixa de ser auto-télica, isto é, ela não é mais a vida que produz vida, não é mais expres- são da liberdade humana através da qual o homem dá a si mesmo sua própria realidade, mas se faz instrumento da aquisição de fins exteriores a si mesma, o que vai permitir uma leitura da relação capital-trabalho como alienação. Como na religião, o homem produz algo, mas ao produzir se empobrece, se esvazia de sua própria humanidade: o produto de seu trabalho se torna um poder estranho."

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Por isto, "embora a propriedade privada surja como o fun- damento, a causa do trabalho alienado, constitui antes a conse- qüência deste último, da mesma maneira que os deuses são funda- nzentalmerzte, não a causa, mas o produto das aberrações da inteli- gência humana."58 A propriedade privada torna-se, assim, a verda- deira realização da alienação, podendo, então, haver também uma influência recíproca entre ambas. Mas, originalmente, é o trabalho alienado, que se origina na alienação do homem em relação a outro homem, que possibilita a propriedade privada.

A contradição, portanto, entre propriedade privada e tra- balho só pode existir no interior do próprio trabalho alienado, aon- de existem as condições de tornar o trabalho um poder estranho na mão de outro, de tornar o trabalho propriedade privada. Por isto, mesmo que estejamos de acordo que o trabalho e não a propriedade privada seja a alma real da produção, mas se não percebermos que o próprio trabalho aparece neste sistema, como servo do próprio salário, nada poderemos mudar. Os produtos reais do trabalho real adquirem características que extrapolam sua realidade concreta. Características fantasmagóricas são atribuídas aos produtos. A pro- priedade privada, enquanto algo diferente do produto real é algo construído e mediado socialmente, ela é um fantasma construído pelas próprias capacidades humanas. Deste modo, a simples distri- buição da propriedade privada, enquanto produtos reais de nada adiantaria para emancipação do ser humano.59 1sto não tiraria o seu caráter fantasmagórico, o seu efeito de mercadoria, pois ainda não perceberíamos os seus fundamentos sociais inerentes. Um "au- mento de salários forçado (...) não passaria de uma melhor remu- neração de escravos e não restituiria o significado e o valor huma- nos nem ao trabalhador, nem ao trabalh~",~' isto porque, o homem continuaria tomando o seu ser genérico, por meio do trabalho e de seus produtos, apenas um meio para fins individuais, o que conti- nuaria possibilitando a alienação do homem pelo outro homem e a apropriação da propriedade humana por parte de alguns, possibili-

MARX, op. cit. p. 169. 59 Como era a proposta de Proudhon. 60 MARX, op. cit. p. 170.

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tando a existência da propriedade privada, do capital e do capita- lista.

Daí se pode concluir que a emancipação dos trabalhadores significaria, de certa forma, a emancipação da sociedade em rela- ção à propriedade privada, e principalmente, do seu fundamento último, ou seja, a alienação do homem da humanidade. De certa forma "toda a servidão humana se encontra envolvida na relação do trabalhador à produção e todos os tipos de servidão se manifes- tam exclusivamente como modificações ou conseqüências da so- bredita relação,"61 pois não é a desigualdade de renda que gera a alienação e a escravidão do homem. Ela é muito mais consequên- cia desta estrutura de mundo invertido, em que o indivíduo é alie- nado de sua espécie e vê, no outro, apenas uma ameaça aos seus desejos egoístas e, por isto, aliena a si mesmo por meio da produ- ção de produtos estranhos a si, porque não é capaz de concebê-los como produtos sociais, eis que lhe servem apenas para satisfazer seus desejos egoístas. O indivíduo não se sente mais co-autor da sociedade e, por isto, submete-se com facilidade a poderes estra- nhos. Somente à medida que o homem se der conta de sua capaci- dade como ser genérico, das relações sociais encobertas na propri- edade privada e torná-las suas sem o intermédio do ser estranho, ele poderá tornar-se verdadeiramente humano. Aí, a luta de todos contra todos, instaurada na sociedade civil, terá sido deslegitimada.

Veja-se que, embora o homem não se dê conta, sua essên- cia genérica ainda assim se manifesta, embora de forma indireta, por meio da propriedade privada. Os produtos e as suas atividades vitais conscientes, embora não lhe pertençam, continuam sendo manifestações genéricas, carregando os traços de sua essência. Por isto, a própria propriedade privada contém um enorme potencial humano velado que na medida em que deixar de ser apresentado de forma invertida, poderá emancipar não só o trabalhador, mas toda a sociedade. A propriedade privada surge como sendo um momento no processo de desenvolvimento da humanidade, aonde pelo fato de ela ainda não ser capaz de se deparar, diretamente, com sua rea- lidade genérica, social, realiza-a indiretamente, por meio de ro-

61 MARX, op. cit. p. 170.

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deios. Rodeios que, no entanto, podem ser passo fundamental para que o homem, enfim, dê-se conta de suas potencialidades como ser genérico, ser social. Para os católicos, a essência divina estava ob- jetivamente fora do homem. Para Lutero, ela estava dentro de cada homem, mas continuava como uma coisa independente do homem. Feuerbach mostrou que isto tudo era o próprio homem. Para os fi- siocratas, a essência da riqueza estava objetivamente fora do ho- mem. Para a economia política e, de modo especial, para Adam Smith, a riqueza era produzida pelo trabalho, portanto, manifesta- va-se pelo homem, mas ainda como uma coisa independente. Marx quer mostrar que também a riqueza, assim como a religião, é a ex- pressão do próprio homem, é o próprio homem. O homem precisa dar-se conta disto, a fim de se emancipar de sua criatura. Religião e economia assumem aqui papéis análogos. Ambas, enquanto estru- turas de mundo invertido, estão prenhes de possibilidades de emancipação humana. Uma vez desvendadas, tornam-se desneces- sárias, juntamente com as suas implicações e causas como, por exemplo, a competição.

Segundo Marx, o fato de a análise da propriedade privada, a partir do trabalho alienado, ter possibilitado sua compreensão, revelaria que também outras categorias da economia política, como comércio, concorrência, capital e dinheiro, que também são toma- dos como um fato sem que se explique sua origem, poderiam ser desmistificados, revelando a sua constituição social. Também elas, enquanto aparecer enganador, escondem uma processualidade mais complexa e profunda. Esta processualidade, para Marx, não é um simples desenrolar da consciência, da fenomenologia do espírito, como pensava Hegel, mas, e esta compreensão foi possibilitada por Feuerbach, resultado de uma trama de relações sociais concretas. Se Marx, por um lado, ainda se manteve preso a uma certa estrutu- ra autônoma pressuposta, por outro lado, ela o instigou a buscar, entendendo a própria realidade, possibilidades de sua superação. A estrutura da crítica da religião, no que se refere à busca das caracte- rísticas humanas, inscritas nos produtos alienados, tornou esta tare- fa muito mais rica.

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PERDA E REDESCOBERTA DO HOMEM NO INTERIOR DA ESTRUTURA DE ALIENAÇÃO CAPITALISTA

Neste Capítulo, buscaremos explicitar a estrutura contra- ditória, própria de todas as estruturas de alienação religiosa. Elas são, ao mesmo tempo, alienação e, por isto, perda do homem de si mesmo, mas, por outro lado, contêm em si as características huma- nas. Entender a estrutura de alienação capitalista enquanto análoga àquela da religião, possibilitará sua antropologização, possibilitará a revelação dos segredos humanos nela contidos. Perda e redesco- berta são possibilitadas pelas mesmas estruturas. A abordagem destas duas possibilidades não pode ser feita de forma totalmente isolada, mas buscaremos enfatizar mais a perda no primeiro item e a redescoberta no segundo.

1 - Perda do homem no interior da propriedade priva- da capitalista

1.1 - A propriedade privada capitalista

Uma das manifestações mais evidentes, como vimos nos Capítulos anteriores, de que o homem está perdido de si mesmo, é a propriedade privada. Marx buscará abordar a sua lógica interna desta afirmação, tentando entender como ela se impõe ao homem. Buscará compreender de uma forma ainda mais profunda e dife- renciada as relações ocultas na propriedade privada. Marx não se satisfez em apenas constatar que, na propriedade privada, estão ali- enadas propriedades humanas. Buscou também encontrar as con- tradições inerentes a ela. Assim, por exemplo, a propriedade priva- da, na medida em que não é percebida como sendo um conjunto de relações, não possibilita a visualização das possibilidades de super-

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ação e, portanto, o homem permanece perdido no seu interior, por isto, torna-se sumamente importante compreender a estrutura que domina e determina o homem como se estivesse independente dele.

Como vimos, anteriormente, o ser humano, no processo de produção capitalista, é reduzido unicamente a trabalhador e, como tal, a uma mercadoria qualquer e, por isto, também está sujeito às leis de mercado. Para que isto se tornasse possível, foi preciso abs- trair todas as qualidades humanas que não estivessem diretamente envolvidas com o trabalhador e que não pudessem ser reduzidas a mercadorias. Elas precisavam ser excluídas, a fim de que o capital pudesse tornar-se mais poderoso. Tanto que, para Marx, o "traba- lhador é a manifestação subjetiva do fato de que o capital é o ho- mem inteiramente perdido para si mesmo, assim como o capital é a manifestação objetiva do fato de que o trabalho é o homem perdido para si próprio."1 Ou seja, enquanto o homem é reduzido a traba- lhador e, como tal, pode ser equiparado a qualquer mercadoria, ele é a própria manifestação de que a sua humanidade está perdida. As suas características enquanto ser humano, que não digam respeito ao ser trabalhador, devem ser excluídas, não são preocupação da economia política. E o capital, enquanto tem uma existência obje- tiva, ou seja, ele não é algo que surge do nada, mas é resultado da expropriação do trabalho, é trabalho alienado. Como existência de uma entidade autônoma, esconde as verdadeiras relações sociais que o geraram. É, pois, a manifestação objetiva da alienação do trabalhador. A sociedade, enquanto não tem consciência de suas capacidades sociais e genéricas, e não se apropria diretamente de- las, manifesta-as indiretamente, num ser estranho, no caso, no ca- pital. O capital é, pois, o mundo invertido. Aqui o capital aparece como sendo o resumo, a expressão mais genérica daquela lógica inumana que tudo perpassa e domina, e que apareceu nas formas de propriedade privada, dinheiro, mercadoria e trabalho abstrato.

Neste segundo Manuscrito, intitulado A relação da propri- edade privada, Marx busca, justamente, esclarecer os pressupostos e as condições que fizeram do capital, enquanto propriedade priva- da, esta forma autônoma de ser, ou seja, como o capital atingiu esta

MARX, op. cit. p. 173.

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pretensão de ser a síntese geral da sociedade, de ser o novo Deus em torno do qual toda a sociedade se organiza. Esclarece-se, assim, a particularidade do capital como sendo uma forma específica e, a mais geral de propriedade privada, gerada pela sociedade moderna. Mas, ao mesmo tempo, Marx quer chamar atenção para o fato de que o próprio capital tem uma vinculação, uma relação essencial com o trabalho. O homem, ao não perceber esta relação, concebe o capital como algo independente da realidade concreta do trabalho, não a percebe como sendo oriunda das relações sociais. O título deste segundo Marzuscrito já indica para a questão.

Assim, a propriedade privada, gerada pelo trabalho aliena- do, na forma de produção capitalista, assume um caráter específico. Ao mesmo tempo, assume o caráter mais desenvolvido das conse- qüências do trabalho alienado, possibilitando o surgimento desta nova divindade chamada capital, que tem a pretensão de atingir to- das as dimensões da sociedade. Quer ser a síntese social mais am- pla. Nesta perspectiva, o capital é, também, a manifestação mais completa, embora de forma alienada, da potencialidade humana. No entanto, sendo uma forma indireta de o ser humano realizar su- as potencialidades sociais, é ainda uma forma invertida de realizá- la e, como tal, é uma realização abstrata, que exige a abstração da realidade concreta do homem. Por isto, enquanto o homem consi- dera-o como sendo a totalidade de sua realidade humana, não se preocupa com a sua realidade concreta, tudo parece se realizar no mundo do capital. Este estabelece, então, o seu domínio sobre o próprio homem, o seu criador. Por isto, embora o homem seja em sua realidade um ser social e genérico, na sociedade moderna ele apenas realiza esta sua essência, indiretamente, no mundo do capi- tal, e não a vivencia na realidade prática do cotidiano. Aliás, esta submissão do homem a mecanismos por ele mesmo criados pode- ria ser percebida e analisada pelas diversas formas de mundo in- vertido que se efetivaram historicamente. Foi o que tentamos mos- trar por meio da exposição de algumas idéias de F. Hinkelammert e de C. Türcke.

Outra forma de evidenciar esta inversão poderia ser ex- pressa pelo acompanhamento da forma invertida de manifestação

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histórica de alguma característica humana. Neste sentido, gostarí- amos de fazer aqui um exercício com o conceito de criação, uma vez que ele logo será atribuído, por Marx, ao capital, como sendo sua característica fundamental.

O conceito de criação, que perpassa grande parte da histó- ria humana, aparece de muitas formas e poderia ser tomado como um protótipo revelador desta estrutura invertida. Na religião judai- ca2, por exemplo, segundo Feuerbach, a criação é resultado do in- dividualismo egoísta que se choca com a natureza concreta. Como forma de se sobrepor a esta barreira, o judeu diz que a natureza surgiu do nada, que foi criada por Deus. Como Deus está sempre do lado dos judeus, ela pode ser desprezada, pode ser mudada pelo milagre. O homem, ao não se perceber como ser social e natural, não percebe as potencialidades de sua espécie, vê na natureza um empecilho aos seus desejos egoístas e práticos e, portanto, não teó- ricos e genéricos. Entrega-se, então, ao que julga ser o poder divi- no, já que ele tudo pode, até mesmo realizar seus desejos egoístas. A capacidade de criação, transformação e outras, são atribuídas unicamente a Deus e não à espécie humana. No cristianismo que, embora seja herdeiro do judaísmo, do qual herda, principalmente, o egoísmo e o solipsismo, mas com uma ênfase maior para o senti- mento3, precisa estabelecer uma alteridade, a fim de revelar o sen- timento do amor. Não há como amar sem ter um outro. Assim, também Deus, que não passa de subjetividade humana, segundo

' Cf. FEUERBACH, op. cit. p. 153 ss. Cf. Id. p. 162 ss. "Deus é o amor que satisfaz os nossos desejos, as nossas neces- sidades efetivas. Ele é o desejo realizado do coração, o desejo elevado à certeza da sua realização, à sua validade, à indubitável certeza diante da qual não se mantém nenhuma contradição com a razão, nenhuma objeção da experiência, do mundo exterior. Certeza é para o homem o mais elevado poder; o que é certo para ele é para ele também o existente, o divino. Deus é o amor - este pronunci- amento, o mais elevado do cristianismo - é apenas a expressão da certeza que a afetividade humana tem em si mesma, da certeza de si como o único poder justi- ficado, i.é., divino - a expressão da certeza de que os desejos íntimos do coração humano tem validade e verdade incondicional, que não existe limitação, oposi- ção para a afetividade humana, que o mundo inteiro com toda a sua majestade imponência não é nada em relação à afetividade humana. Deus é amor - i.é. a afetividade é o Deus do homem."

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Feuerbach, precisa estabelecer uma alteridade. Como se poderia falar de Deus sem que Ele tivesse alguma referência, como poderia existir Deus se nada além dele existisse? Assim, a criação coloca- se como uma necessidade no cristianismo. A criação é atribuída apenas a Deus e representa esta necessidade de alteridade. O que, segundo Feuerbach, acontece porque o homem não vive sua socia- bilidade no dia a dia, precisa encontrá-la em algum lugar, em Deus, no caso. A criação, como uma forma de a própria espécie humana se afirmar, aparece apenas como um poder de Deus. Em Hegel, a capacidade de criação como ato de liberdade, autonomia e auto- consciência vai aparecer como sendo a capacidade do próprio espí- rito (que aliás aparece a primeira vez na figura do mundo invertido, no Capítulo intitulado Força e Entendimento na Fenomenologia do Espírito) de se autodeterminar, de ser livre. A criação é, assim, uma forma de revelação do próprio espírito4 que, no entanto, apa- rece independente e abstraído dos seres humanos concretos, como uma entidade autônoma e subsistente, com uma forma mística, di- ria Feuerbach. Na economia política, que é o resultado mais con- creto de todas as formas de mundo invertido, a criação aparece como sendo resultado do próprio trabalho humano, porém, não do trabalho qualitativo, determinado e concreto, mas do trabalho abs- trato que está a serviço de algo exterior ao próprio trabalhador, a serviço do capital. Mais uma vez o ser humano, ao não se dar conta da capacidade real de criação inerente à sua espécie, gera uma cri- atura que passa agora a ser o criador de tudo. A possibilidade de criação do trabalhador e mesmo de sua própria vida passa a ser o capital. O capital passa a assumir as características do Deus cria- dor, não há nada sem capital. Todas as possibilidades de vida, or- ganização social, desenvolvimento e felicidade são inconcebíveis sem o capital. O capital é o ídolo a ser adorado e ~ e n e r a d o . ~

E que, conforme a nossa tese defendida acima, Marx toma como uma forma pos- sível de ser aplicada à realidade social, após ser desmistificada, antropologizada. Quanto às conseqüências desta idolatria do capital, uma reflexão interessante é feita por Jung Mo Sung, especialmente nos capítulos intitulados Capital: o cria- dor do nada, e Capital: o dador de vida. Cf. SUNG, Mo Sung., A idolatria do Capital e a morte dos pobres. Uma reflexão teológica a partir da dívida exter- na. São Paulo: Ed. Paulinas. 1989. p. 125 ss. E também Cf. ASSMANN. Hugo,

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Além do conceito de criação, poderíamos tomar outros conceitos como, por exemplo, a infinitude, a onipotência entre ou- tros. Perceberíamos que todas estas características intrinsecamente humanas são atribuídas a algo exterior ao próprio homem, e que todas elas também poderiam ser percebidas como manifestações do capital. Os esforços de Marx, neste momento, parecem estar justa- mente concentrados em buscar visualizar o quanto as qualidades propriamente humanas aparecem no sistema de propriedade priva- da, alienadas no capital. Busca encontrar elementos que possibili- tem a superação desta forma específica de alienação, pela busca das contradições e potencialidades internas ao próprio sistema so- cial, organizado na lógica do capital.

Segundo Marx, neste sistema, o trabalhador tem a infelici- dade de ser um capital vivo", enquanto tal, tem necessidades que, quando não satisfeitas, significam o fim da existência do trabalha- dor. Há, pois, algo no ser do trabalhador que ultrapassa o ser do capital, mas que, ao mesmo tempo, fragiliza-o ante ao capital, ou seja, por mais que o capital exija do homem que ele seja apenas trabalhador, produtor de trabalho abstrato como uma máquina, ele ainda continua sendo um ser humano vivo, com uma existência fí- sica. Ele não pode ser reduzido a um ser abstrato. No entanto, a economia política, enquanto expressão da sociedade moderna, tor-

HINKELAMMERT, Franz J. A idolatria do rnercado. Ensaio sobre economia e teologia. Coleção teologia e libertação. São Paulo: Vozes. 1989. Aqui Marx ainda não faz uma diferenciação precisa entre capital e mercadoria, o que lhe permite dizer que o trabalhador é um capital vivo. Conforme as refle- xões anteriores, de que na realidade da produção capitalista o trabalhador é tam- bém reduzido a uma mercadoria, poder-se-ia afirmar apenas que o trabalhador é uma mercadoria viva. No entanto, como é a forma capital que torna o produto do trabalho uma mercadoria, ou seja, uma finalidade indiferente às necessidades dos homens e própria para a reprodução do capital, a expressão torna-se com- preensível. Neste momento, não há uma preocupação maior com a diferenciação destes conceitos, mas o que preocupa Marx aqui é a demonstração de que algo inumano e místico está a determinar a vida humana e social. Embora o capital já comece a despontar como sendo a forma mística por excelência, o resumo de todas estas formas de alienação humana.

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na-o apenas ser abstrato, ao reduzir o homem a trabalhad~r.~ Esta é a exigência que o capital faz para que se imponha como síntese so- cial. Embora seja o próprio trabalhador que produz o capital, pelo seu trabalho, este capital passa agora a produzir o próprio trabalha- dor, uma vez que o trabalhador, como ser humano, continua tendo necessidades físicas a satisfazer. As suas propriedades, enquanto qualidades humanas, estão todas alienadas no capital, o trabalhador depende do próprio capital para sobreviver.' É por intermédio do capital que o trabalhador tem de satisfazer as suas necessidades fí- sicas. Se não houver capital ele não sobrevive, porque não tem tra- balho e sem trabalho não tem salário, e sem salário não come. As- sim, sua humanidade, sua essência genérica, alienada no capital, passa a ser um meio para sua sobrevivência física individual. No interior deste sistema, resultante do trabalho alienado, da proprie- dade privada, o trabalhador e o capital se opõem frontalmente. Esta contradição só poderá ser resolvida com a superação desta forma de organização social, porque a contradição é inerente a esta es- trutura. Não há possibilidade de emancipação humana sem esta su- peração.

' MARX, op. cit. p. 174: "A existência do capital é a sua existência, a sua vida, já que este, independentemente dele, determina o conteúdo de sua vida. Deste modo, a economia política não conhece o trabalhador desocupado, o homem que trabalha, na medida em que ele se encontra fora da relação de trabalho. O burlão, o ladrão, o pedinte, o desempregado, o faminto, o miserável e o crimino- so são figuras de homem que não existem para a economia política, mas só para outros olhos, para os do médico, do juiz, do coveiro, do burocrata, etc. São fan- tasmas que se situam fora do seu domínio. As necessidades do trabalhador redu- zem-se assim à necessidade de o manter durante o trabalho e de maneira a que a raça dos trabalhadores não se extinga. Por conseguinte, o salário possui exa- tamente o mesmo significado que a manutenção de qualquer outro instrumento produtivo e que o consumo de capital em geral, de modo a poder reproduzir-se com juros. Assemelha-se ao óleo que se aplica a uma roda para a manter em movimento." Id. p. 173. "O trabalhador produz o capital, o capital produz o trabalhador. As- sim, ele produz-se a si mesmo, e o homem enquanto trabalhador, enquanto mercadoria, constitui o produto de todo o processo. O homem não passa de simples trabalhador e, enquanto trabalhador, as suas qualidades humanas exis- tem apenas para o capital, que lhe é estranho."

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Para a economia política o trabalhador, enquanto tal, só existe enquanto há um capital para ele. É ele mesmo que produz o capital, portanto, o trabalhador produz a si mesmo, porém, como o trabalho e o capital aparecem como mutua~znte estranhos e, como a verdadeira humanidade do trabalhador está alienada no capital, o trabalhador só existe enquanto e quando há um capital para ele. O trabalhador, enquanto é reduzido a uma mercadoria qualquer, só pode existir enquanto há um capital para ele, eis que o capital tem este estranho poder de dar vida às coisas, de vivificar os produtos e os tornar mercadorias e, por outro lado, de igualar o homem aos objetos. Por isto, para o trabalhador a "existência do capital é a sua existência, a sua vida, já que este, independentemente dele, deter- mina o conteúdo da sua vida,"' pois as suas qualidades existem apenas para o capital que lhe é estranho, as suas próprias qualida- des se lhe opõem enquanto trabalhador. E o trabalhador só pode existir com o que lhe é estranho, o capital, já que a existência do capital é a própria existência do trabalhador de forma alienada.

Esse processo de produção, além de produzir o homem como mercadoria, também torna-o um ser espiritual e fisicamente desumanizado. Isto se percebe, com mais clareza, quando se põe em questão o porquê da produção. Logo se percebe que o objetivo principal da produção é a obtenção do número mais alto possível de acúmulos econômicos, pouco importando o número de traba- lhadores que um determinado capital poderia manter, aliás, a exis- tência do homem é tida como indiferente e até prej~dicial . '~ A sua existência é reduzida a simples existência abstrata do homem que trabalha, e nada mais. O próprio trabalho é tido independentemente do seu conteúdo. Assim como, aparentemente, a religião se mani- festa como sendo independente da realidade social que a gera, o

MARX. op. cit. p. 174. 'O Id. p. 174. "Grande progresso de Ricardo, Mill, etc., em relação a Smith e Say,

declarar a existência do homem - a maior ou menor produtividade humana da mercadoria - como indiferente e até mesmo como prejuclicial. O verdadeiro objetivo da produção não é número de trabalhadores que determinado capital mantém, mas o total de juros, a soma das economias anuais."

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capital adquire uma autonomia tal que o seu criador original, o tra- balhador, parece ter se tornado dispensável.

No entanto, parece-nos importante destacar também que, desta forma, Marx levanta uma contradição imanente ao próprio modo de produção. Por um lado, o capital e o trabalhador estão in- timamente interligados, por mais que o capital apareça como inde- pendente do trabalho, um não sobrevive sem o outro, por outro, ambos se opõem. Descobre-se, assim, que ambos fazem parte de uma mesma totalidade, a dizer, o modo de produção capitalista, que Marx chama aqui de sistema de propriedade privada, mas den- tro desta interioridade eles se opõem. Só por causa da alienação do trabalho que se dá esta luta. É por ela e nela que se constitui a pro- priedade privada, ou, ainda, a propriedade privada só pode existir por causa desta contradição que tem como condição de possibili- dade o trabalho alienado.

Ora, as contradições na dialética hegeliana tendem a en- contrar uma nova síntese. Na Fenornenologia do ~ s ~ í r i t o " , Hegel demonstra que a contradição mesma, existente no mundo invertido, e que aqui poderia ser identificada com a existente no modo de produção capitalista, na forma de capital versus trabalho, é um pas- so importante em direção a um novo nível de consciência, ou seja, a autoconsciência. Marx parece estar antropologizando estas cate- gorias, ou seja, seguindo o esquema argumentativo da crítica da religião feuerbachiana de buscar os fundamentos reais das abstra- ções místicas, no caso na filosofia hegeliana sem, no entanto, per- der de vista o potencial desta filosofia, a sua dimensão dinâmica, dialética, na qual as contradições tendem sempre a uma nova sínte- se. Daí, pode-se prever que Marx verá na própria realidade, en- quanto portadora de uma contradição, o impulso para uma nova fase, para uma solução. A perda do homem no interior da proprie- dade privada gerou esta possibilidade de superação. Ao contrário de Feuerbach, que pensava que as situações de alienação se resol-

" Embora na Feitonzerzologia do Espírito esta contradição interna possa ser per- cebida em Hepel, ela ainda não é trabalhada de uma forma tão explícita como na Ci2ncia da Lógica. No entanto, para os nossos fins, a indicação da Fenoineno- logia do Espírito parece-nos suficiente.

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viam no interior da consciência, Marx sugere esclarecer as próprias contradições inerentes às formas de alienação concretas a fim de visualizar esta superação. O que demonstra a presença da influên- cia da processualidade histórica herdada de Hegel, pois, uma vez que uma essência sempre completamente posta, mesmo nas estru- turas de alienação, como parece ter sido o pressuposto de Feuer- bach, já não aparece mais. Mas o fato de Marx continuar buscando esclarecer a alienação a fim de buscar no seu interior as possibili- dades concretas de emancipação humana, demonstra que também Feuerbach continua tendo grande importância para Marx.

Segundo Marx, o fato de os próprios economistas admiti- rem que, de modo geral, o capital só podia aumentar o seu lucro por meio da descida dos salários, revela que a "relação da proprie- dade privada contém em si, de modo latente, a relação da proprie- dade privada como trabalho, a relação da propriedade privada como capital e a recíproca influência das duas e ~ ~ r e s s õ e s . " ' ~ E Marx mostra como isto acontece:

"Por um lado, há a produção da atividade humana como trabalho isto é, como atividade que é estranha a si, ao homem e à nature- za, portanto, alheia à consciência e à realização da vida humana; a existência abstrata do homem como simples homem que tra- balha, que por conseguinte todos os dias mergulha a partir do seu nada realizado no nada absoluto, na sua não-existência social e, portanto, real. Por outro, há a produção do objeto da atividade humana como capital, no qual se dissolve toda a característica natural e social do objeto, no qual a propriedade privada perdeu a sua qualidade natural e social (e, por conseqüência, perdeu todos os disfarces políticos e sociais e deixou de surgir mesclada com relações humanas) - no qual também o mesmo capital permane- ce idêntico nas mais variadas condições naturais e sociais, que já não tem qualquer relevância a respeito do conteúdo real. Seme- lhante contradição, no seu clímax, constitui necessariamente o apogeu e o declínio de toda a relação."'"

'' MARX, op. cit. p. 175. I3 Id. p. 175.

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O capital opõe-se ao trabalhador porque o trabalhador sig- nifica custo, e o trabalhador opõe-se ao capital porque este é o apropriador do produto do seu trabalho. No interior desta luta constitui-se a propriedade privada. E as relações de propriedade privada são, na verdade, a própria relação do trabalho com o capi- tal e as interconexões entre eles. Desta forma, o homem se encon- tra totalmente perdido e submetido ao capital. Embora esta situação tenha gerado também uma contradição que para ser resolvida pre- cisa superar a própria forma de produzir capitalisticamente.

1.2 - Uma forma espec$ca de propriedade privada capi- talista: o dinheiro

Embora esse parágrafo sobre o dinheiro esteja quase no fi- nal do terceiro Manuscrito, sua exposição parece-nos mais cabível aqui, uma vez que estamos tratando das formas como o homem se perde no interior do sistema de propriedade privada. O dinheiro, pois, assume um papel específico, enquanto propriedade privada capitalista, ou seja, mesmo que a forma dinheiro já tenha existido antes, no capitalismo ele encontrou a sua libertação plena, como já vimos no final da Questão Judaica. E a sua análise, enquanto re- sultado do sistema de propriedade privada, revelar-nos-á uma outra dimensão alienante, que resulta da lógica coritraditória da socieda- de capitalista, descrita no item anterior. O dinheiro tornou-se a fi- gura por excelência, por meio da qual o trabalho encontra a sua vida no capital. Além disto, ao mistificá-lo e adorá-lo somos por ele convencidos a legitimar a estrutura injusta própria do capital. O que revela, dentre outras coisas, que para que aquela contradição anterior possa ser superada na prática, há que se buscar, também, e, talvez, até antes, superar este poder místico/religioso, adquirido pelo dinheiro nesta realidade.

Marx afirma, ao início deste parágrafo, que os sentimentos, paixões, etc., do homem são afirmações ontológicas do próprio ser da natureza e que se afirmam somente quando o seu objeto existe como um objeto sensível, ou seja, estão no homem enquanto ex-

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pressões do lado humano da natureza, porém não são algo auto- suficiente, precisam da relação para se efetivarem. Só são na rela- ção e constituíram-se ao longo da história. Do que pode-se tirar di- versas conclusões: que o modo de afirmação dos sentidos não é um só e imutável, uma vez que o sentido se afirma conforme o modo distinto que o objeto lhe aparece; se o homem e os seus sentimen- tos são humanos genéricos, a satisfação própria pode ser alcançada também pela afirmação do objeto por parte de qualquer ser huma- no; a indústria, desenvolvida por intermédio da propriedade priva- da e a própria ciência, é o emergir da essência ontológica e da auto- realização do homem pela atividade prática; e, numa analogia di- reta com o significado da alienação religiosa descrita por Feuer- bach, que "o significado da propriedade privada - liberta de sua ali- enação - é a existência de objetos essenciais para o homem, tanto como objetos de prazer como de atividade."14

Ora, os objetos produzidos no interior da propriedade pri- vada por meio da indústria, que se fortifica pela divisão do traba- lho, são, embora de forma alienada, resultados da própria essencia- lidade humana, mesmo que os seus produtores individualmente não o percebam. E, como ali se produzem objetos sensíveis, então eles, enquanto objetos para a sensibilidade humana, podem revelar todo o seu potencial humano. Ora, o que aparece como sendo o objeto por excelência, com a virtude de tudo comprar, que alcançou a sua emancipação com o modo de produção capitalista, é o dinheiro.15 Portanto, nele poderemos encontrar os maiores segredos humanos, mas também, como sendo ainda uma forma indireta e alienada de o

l4 MARX, op. cit. p. 229. 15 Segundo Celso Frederico, aqui Marx não faria ainda distinção entre dinheiro e

capital, e por causa de uma identificação entre abstração e alienação, e mediação e alienação, vê no dinheiro apenas esta forma "desgarrada do criador, perambu- lando pelo mundo para inverter e perverter as relações entre os homens." Veja- mos: "Em 1844, desconhecendo ainda a mais-valia, Marx confundiu dinheiro com capital. O dinheiro, assim concebido, é o próprio Deus Feuerbachiano, um ente abstrato que se apropria das propriedades humanas alienadas. No Marx maduro, é o capital que surge como uma entidade fantástica anteposta aos ho- mens: mas ele, que parece o sujeito a comandar toda a vida social, nada mais é do que trabalho acumulado." FREDERICO, op. cit. p. 145.

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ser humano se reconhecer, enquanto mundo invertido, as maiores aberrações humanas. Na medida em que o homem atribui apenas à propriedade privada todo este potencial, próprio do seu ser huma- no, ele permanece alienado, e a sua essência continua atribuída a um ser estranho. Embora com um caráter mais de constatação fáti- ca do que dedutiva e argumentativa, Marx descobre aqui o dinheiro como sendo o objeto por excelência, por meio do qual conseguem- se todos os outros e, portanto, como o objeto de alienação por ex- celência. Um objeto que na sociedade moderna em que há uma submissão do homem aos seus produtos sociais, como se fossem seres estranhos, atingiu a sua independência plena, e aparece como sendo o mediador de todas as relações.

É o dinheiro que mediatiza a vida do homem com os seus meios de subsistência, além de mediatizar também a existência do homem com o outro homem. O dinheiro torna-se a própria outra pessoa. Além de que, já que com ele pode-se tudo comprar, não mais importa ter e desenvolver as capacidades próprias do ser hu- mano, uma vez que tendo dinheiro todas elas podem ser compra- das. O ser humano, no interior deste sistema, pode ser quase nada, mas tendo dinheiro ele é quase tudo. Além de que sem dinheiro não será quase nada, mesmo que tenha em si capacidades humanas desenvolvidas.

Marx cita Goethe e Shakespeare para dizer com palavras deles, que o dinheiro torna-se a própria pessoa e tudo que existe para ela. Sendo que o que se é e se pode ser não é determinado pe- las qualidades, contidas na individualidade da pessoa, mas sim, pelo seu dinheiro. Ele torna-se, assim, uma espécie de divindade capaz de criar, atribuir e inverter qualidades e valores independen- temente do indivíduo ou do objeto ter ou não ter estas qualidades e valores. Ele é a prostituta universal. Como o dinheiro pode adquirir tamanho poder diante do ser humano?

"O poder de perversão e de inversão de todas as qualidades hu- manas e naturais, a capacidade de entre coisas incompatíveis es- tabelecer a fraternidade, a força divina do dinheiro, reside no seu

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carúter como ser genérico alienado e auto-alienante do homem. Ele é o poder alienado da Izmmunirlade '"'"

Veja-se que, mesmo quando o dinheiro era considerado como sendo a expressão da emancipação do judeu à maneira judai- ca, de certa forma, já podia ser concluído isto, uma vez que, mes- mo lá, Marx concluía que a emancipação do judeu implicaria a emancipação da humanidade do judaísmo generalizado da socieda- de. Ou seja, o dinheiro era a figura na qual toda a humanidade, en- quanto afetada pelos princípios fundamentadores do judaísmo, o egoísmo e a traficância, precisava emancipar-se. E, por isto, en- quanto sendo este "poder alienado da humanidade", contendo em si as verdadeiras qualidades humanas que não podem ser vivenciadas no dia a dia da sociedade civil, que o dinheiro tem o poder de transformar os desejos, as vontades imaginárias em realidades sen- síveis. Por isto, ele é reconhecido como valor supremo, a partir do qual toda a sociedade passa a ser organizada. Se podemos dizer que o dinheiro é um poder, verdadeiramente, criador, isto nada mais significa de que a humanidade possui poderes realmente criadores. O que revela o potencial humano inerente ao próprio dinheiro, en- quanto forma de alienação.

No entanto, os desejos existem, também, para quem não tem dinheiro, mas este não consegue realizá-los sensivelmente. Por isto, Marx chega a dizer que a diferença entre alguém que procura algo com dinheiro e outro que procura sem dinheiro é a diferença que existe entre ser e pensamento. O que demonstra que os poderes humanos não pertencem mais aos próprios homens, mas estão alie- nados em outras entidades, no caso, no dinheiro. Sendo que, por exemplo, se alguém tem vocação para estudar, mas não tem dinhei- ro para tal, esta vocação não existe na realidade e vice-versa: mes- mo que alguém não tenha vocação para estudar, mas tem dinheiro, ele também acaba tendo vocação para tal. É possível afirmar que o dinheiro torna a representação realidade e a realidade representa- ção. E, no fato de ser também este potencial de anular as capacida- des humanas, manifesta-se o seu caráter ainda alienado, a forma

l 6 MARX, op. cit. p. 233.

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como ele, enquanto mundo invertidoI7, domina os seres humanos. Se, por um lado, o dinheiro aparece como um criador, por outro, ele aparece como um poder disruptivo entre a sociedade (laços so- ciais) e o indivíduo. Sim, porque transforma

"igualmente as faculdades humanas e naturais em simples repre- sentações abstratas, isto é, em inlperfeições, em quimeras ator- mentadas; e por outro lado, transforma as imperfeições e fantasi- as reais, as faculdades realmente impotentes, que só existem na imaginação do indivíduo, em faculdades e poderes reais. Já sob este aspecto, o dinheiro é portanto a inversão geral das indivi- dz~alidades, transformando-as nos seus opostos e associando qualidades contraditórias com as suas qualidades."'s

Essa inversão, confusão ou mesmo contraposição de todas as qualidades naturais resulta num processo não humano. Pois, se as relações estabelecidas entre os homens e destes com a natureza fossem, verdadeiramente, humanas, estas inversões não poderiam acontecer. Por exemplo, "o amor só poderá permutar-se com o amor, a confiança com a confiança,"'% não por dinheiro. O di- nheiro é, aqui, o sinal de q11e 0 homem perdeu-se totalmente no interior do sistema da propriedade privada.

Há, pois, uma necessidade de emancipação ante ao dinhei- ro. O ser humano, para ser verdadeiramente humano, precisa redu- zir as qualidades e poderes que atribui ao dinheiro ao seu verdadei- ro fundamento, ou seja, ao próprio homem. Isto, no entanto, só po- derá ser possível quando a própria humanidade superar a forma de organização social bem como a forma de produção próprias da so- ciedade capitalista, uma vez que o poder que o dinheiro adquiriu está intimamente vinculado à separação entre sociedade civil e Es- tado e, também, ao trabalho alienado, próprios desta sociedade.

MARX, op. cit. p. 234: "Uma vez que o dinheiro, enquanto conceito de valor existente e ativo, confunde e permuta todas as coisas, é a confiisão e a transpo- sição universal de todas as coisas, portanto, o mundo invertido, a confusão e a transposição de todas as qualidades naturais e humanas."

'' Id. p. 234. l 9 Id. Ibid. p. 234.

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2 - Redescoberta do homem no interior da propriedade privada capitalista

Nos dois itens seguintes, deste Capítulo, que querem ser uma exposição da própria argumentação de Marx, gostaríamos de chamar atenção para mais uma analogia com a teoria de Feuerbach. Na Essência do Cristiaizismo, Feuerbach não via na religião apenas a negação do ser humano, mas também a manifestação dos seus desejos mais íntimos, a primeira manifestação da própria essencia- lidade humana. Marx descobriu que, pelo trabalho, o homem mani- festa de forma genuína e concreta a sua essência genérica, por meio dos produtos do trabalho. É, pois, ali mesmo, no resultado do tra- balho alienado, que é a propriedade privada, que vai buscar a pos- sibilidade de sua própria superação. Embora de forma alienada, os produtos humanos são a primeira e mais genuína manifestação das potencialidades humanas. É, pois, neles mesmos que se deve bus- car os sinais da existência genérica humana. Vejamos a argumenta- ção de Marx.

Após ter descoberto, pela própria economia política (de modo especial por Adam Smith), que a propriedade privada capi- talista não é um ser objetivo para o homem, que ela não é um ser objetivo fora do homem, mas que se constitui pelo trabalho huma- no, assim como Feuerbach demonstrou que Deus também não é um ser objetivo e exterior ao homem, Murx pôde, então, procurar defi- nir a essência subjetiva da propriedade privada (Das subjektive Wesen des ~ r i v a t e i ~ e n t u m s ) . ~ ~ Afinal, se ela está baseada no pró-

Aqui seria talvez interessante trazer presente uma observação feita por Celso Frederico no que ser refere ao conceito de propriedade: "Quando se fala em propriedade, convém atinar sempre para os dois sentidos da palavra, distintos e correlacionados, subjacentes ao texto de Marx. Inicialmente, propriedade desi- gna uma coisa material, um bem, uma posse reconhecida juridicamente. Mas a palavra também tem o sentido usual de qualidade, atributo, caráter, determina- ção. Os dois sentidos estão presentes no jovem Marx: a propriedade como uma matéria exterior e, além disso, entendida como as qualidades humanas extravia- das. A propriedade tem portanto duas dimensões interligadas: a objetiva e a subjetiva. Nos Manuscritos econônzico-filosóficos, Marx privilegia a dimensão

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prio sujeito é preciso descobrir no próprio sujeito o que a torna possível. Aliás, ela mesma deve revelar estas propriedades. Como vimos, em última instância o que possibilita a propriedade privada é o trabalho. Com o acréscimo de Marx, de que o tipo de trabalho que possibiIita a propriedade privada é realizado por meio de e no interior de um processo de trabalho alienado e baseado num indiví- duo alienado de sua espécie, de forma que se torna possível a alie- nação do produto do trabalho e a apropriação privada dele por parte de outro homem, estranho ao trabalhador. Quer dizer, desco- brir a essência subjetiva da propriedade privada no trabalho, ainda não é o suficiente, mas o primeiro passo para emancipar-se da pro- priedade privada. E a abolição da propriedade privada significa o retorno ao homem de todas as propriedades, verdadeiramente hu- manas, antes privadas e estranhadas do homem. Além de que a contradição entre capital e trabaIho existente no interior deste sis- tema de propriedade privada, sugere, também, uma nova síntese, uma superação desta situação. Convencido, assim, do potencial inerente à estrutura da propriedade privada, Marx buscará explici- tar melhor este potencial, com a intenção de evidenciar as possibi- lidades de superação e suas implicações.

Segundo Manfredo Araújo de Oliveira, a crítica de Marx nos Manuscritos mostra-se enquanto "crítica antropológica- econômica", pois busca na economia, como expressão da realidade prática humana, o processo de perda do homem, mas também o processo de autogestação humana.*'

subjetiva, valendo-se do trabalho como "essência subjetiva" da propriedade pri- vada." FREDERICO, op. cit. p. 146.

" OLIVEIRA, op. cit. p. 113. Esta seria também uma forma de superar a teoria de Feuerbach. Vejamos: "Uma antropologia, que levanta a pretensão de ser a me- diação teórica da práxis histórica, só pode articular-se enquanto teoria econômi- ca e neste sentido a antropologia de Feuerbach emerge como ainda abstrata ape- sar de toda sua crítica a Hegel." Id. p. 112. Segundo Ruy Fausto, Marx ao habi- litar a economia política, enquanto espaço de expressão humana, estaria reali- zando uma crítica ao antropologismo feuerbachiano a partir de Hegel, que se faria "pela introdução da idéia de que a história do homem não é uma verdadeira história, mas um história natural do homem, uma história da gênese do ho- mem." FAUSTO, op. cit. p. 237. O que no entanto, não significa que não se possa afirmar o homem mesmo, que e16 não esteja lá, uma vez que toma-se o

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Para esclarecer a questão, a partir da própria economia po- lítica, Marx lança mão de mais uma comparação com a religião. E diz que aqueles que ainda consideram a propriedade privada como sendo um ser externo e objetivo ao homem comportam-se como cristãos. E que Adam Smith seria o Lutero da economia. Pois, as- sim

"como Lutero divisou na religião e na fé a essência do mundo real, tendo-se contraposto ao paganismo católico; assim como ele aboliu a religiosidade externa enquanto fazia da religiosidade a essência iiztema do homem, da mesma maneira que negava a distinção entre o sacerdote e o leigo, porque transferiu o sacer- dote para o coração do leigo; assim também fica abolida a rique- za externa ao homem e independente dele (podendo portanto ad- quirir-se e conservar-se a partir de fora). Quer dizer, a sua objeti- vidade externa e mecânica é abolida, pelo fato de a propriedade privada ser incorporada no próprio homem e de este se reconhe- cer como a sua essência."22

Portanto, a própria economia política incorporou a proprie- dade privada no próprio homem, assim como em Lutero o homem não supera a religião, mas se incorpora pessoalmente nela. Com isto, a economia política descobriu que é apenas o trabalho que pode possibilitar a riqueza e a propriedade privada, tanto em nível de indústria como em nível de agricultura.2%arx constata que esta

homem, enquanto homem negado. A nosso ver, esta argumentação de Fausto te- ria se tornado mais clara se associada à figura do mundo invertido, aonde, tam- bém, embora de forma negada, podem-se afirmar características essenciais do homem.

27 MARX, op. cit. p. 184. 23 Feuerbach ao falar do progresso das religiões se refere a um processo seme-

lhante: " O homem transporta primeiramente a sua essência para fora de si antes de encontrá-la dentro de si. A sua própria essência é para ele objeto primeira- mente como uma outra essência. (...) O progresso histórico das religiões é ape- nas que o que era considerado pelas religiões mais antigas como algo objetivo, é tido agora como algo subjetivo, i.é. , o que foi considerado e adorado como Deus é agora reconhecido como algo humano. A religião anterior é para a poste- rior uina idolatria: o homem adorou a sua própria essência" FEUERBACH, op. cit. p. 56.

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descoberta foi uma condição fundamental para a propriedade pri- vada ampliar-se e consolidar o seu domínio sobre o homem. Isto porque, agora, ao contrário do que acontecia na fisiocracia feudal, em que todo trabalho se realizava ligado a um elemento natural (terras, metais ...) e, reconhecendo-se, de certa forma, determinado pela própria natureza, o trabalho é tomado na sua forma geral. "Deu-se o passo necessário para reconhecer a natureza universal da riqueza e para elevar o traballzo na sua forma absoluta, isto é, na

,124 abstração, a principio. Portanto, não há mais trabalho determi- nado, particular, com uma manifestação peculiar, tudo é diluído no trabalho em geral, em trabalho abstrato.25 Toda riqueza torna-se riqueza industrial, e a indústria é apenas este trabalho alienado ob- jetivado. É o trabalho, enquanto liberto de suas particularidades qualitativas, que possibilita a existência do capital industrial, en- quanto objetivação da propriedade privada. Percebemos, assim, o surgimento de uma nova 'divindade': o trabalho abstrato. Trabalho este que, ao exigir a redução do homem a simples trabalhador, ali- ena-o de suas qualidades humanas, possibilitando a vida do capital. A propriedade privada capitalista é, pois, fruto do trabalho abstrato e por isto mesmo do trabalho alienado, uma vez que o trabalho abstrato só é possível porque o homem se aliena das qualidades humanas do seu trabalho. Alienando-se de suas qualidades, elas acabam se localizando em um outro lugar, no caso, na propriedade privada.26 Propriedade privada porque são privados por alguém de alguém. O homem se vê dominado e não percebe mais a humani-

2 4 ~ ~ ~ ~ , op. cit. p. 186. " A este respeito veja-se o livro: KAMMER, Marcos. A dinâmica do trabalho

abstrato ria sociedade moderna. Unia leitura a pcirtir das barbas de Marx. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.

26 Segundo Celso Frederico, esta mistificação dá-se especialmente pelo fato de a Economia Política esconder o fato de que o homem é o criador da propriedade privada: "Mas a economia, reconhecendo o homem como criador da proprieda- de privada, esforça-se para ocultar esse fato e mistificar a realidade. Para isso, "o próprio homem passa a ser determinado pela propriedade privada, como em Lutero pela religião". Lutero, portanto, não aboliu a alienação religiosa, apenas a transportou, sem intermediários, para o interior do próprio homem. Da mesma forma, a economia política repôs a alienação, fazendo do homem a essência da propriedade privada, essência a ela submetida." FREDERICO, op. cit. p. 134.

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dade imbutida nela. A propriedade privada e o capital, assumem um mesmo papel, o de serem depositários das qualidades humanas alienadas através do trabalho alienado. Importa deixar claro que "só neste estádio é que a propriedade privada pode consolidar o seu domínio sobre o homem e tornar-se, na forma mais geral, o poder histórico mundial."27 Significa, também, que ela está com as suas contradições 'amadurecidas' e, enquanto tal, pode fornecer os ele- mentos de sua própria superação, pois, se a propriedade privada é mesmo depositária de propriedades essencialmente humanas, o seu potencial pode e precisa ser tomado como base para a sua supera- çã0.28

2.1 - Propriedade privada e comunismo

Na busca da compreensão dos fundamentos da antítese en- tre falta de propriedade e propriedade, Marx abre a perspectiva re- flexiva de que ela precisa ser compreendida enquanto antítese entre trabalho e capital, uma vez que julga que o específico da sociedade moderna é ter explicitado esta contradição desta forma. Porque, de fato, a diferença entre proprietários e não proprietários já existia antes da sociedade liberal, na Roma antiga, por exemplo. No en- tanto, a questão não se colocava em termos de propriedade privada, enquanto portadora desta contradição, enquanto resultado do tra- balho alienado. Apenas quando o trabalho se tornou a essência subjetiva da propriedade privada, "enquanto exclusão da proprie- dade, e o capital, o trabalho objetivo enquanto exclusão do traba- lho"29 é que pôde surgir a propriedade privada como fruto do des- envolvimento desta contradição e, enquanto portadora desta con-

'' MARX, op. cit. p. 187 28 Historicamente, este parece ser o próximo passo a ser dado. Se percebermos a

possibilidade de traçar um paralelo inerente à argumentação de Marx: Católicos equivalem aos fisiocratas, Lutero à economia política, principalmente, Adam Smith e, por fim, Feuerbach a Marx. Assim como para Feuerbach foi essencial esta transformação da relação homem X Deus, realizada por Lutero, para Marx foi essencial a transformação, realizada por Adam Smith na relação homem X propriedade privada, a fim de delinearem suas críticas.

29 MARX, op. cit. p. 189.

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tradição, surge também uma "relação dinâmica que impele para a solução"30.

Para encontrar essa solução, ou seja, para abolir a auto- alienação subjacente à propriedade privada e, como tal, de todo o modo de produção capitalista, Marx sugere que o caminho da abo- lição desta siga o mesmo caminho que a sua realização, embora de forma inversa. Ou seja, passe primeiro por um momento em que não se percebe a essência subjetivada da propriedade privada, mas apenas o seu aparecer, considerando-a apenas no seu aspecto obje- tivo para, então, num processo progressivo, atingi-la cada vez mais profundamente em diversos níveis.

A superação total desta alienação própria do sistema da propriedade privada Marx chamará de comunismo. Este, no en- tanto, não é concebido, aqui, como sendo algo a ser conquistado em um determinado momento, mas como processo histórico, pas- sando por diversos níveis. Ou seja, o comunismo aparece como sendo um horizonte em vista do qual a realidade histórica poderá ser constituída sem que, no entanto, apareça como necessário.

A partir destas observações, Marx estabelece vários níveis em que se poderia conceber a superação da propriedade privada, ou seja, da possibilidade do comunismo. Estes níveis são um esforço de visualização de possibilidades concretas de superação da aliena- ção própria da sociedade capitalista. Para tanto, utiliza-se das des- cobertas feitas no interior da própria propriedade privada. Veja- mos.

A tendência é que se inicie por querer abolir o aparecer objetivo, ou seja, a própria propriedade privada, enquanto se mani- festa nos objetos. Isto, quando historicamente concretizado, signi- fica a busca da eliminação, do que aparece, no caso, o capital, a propriedade privada. Esta alternativa, segundo Marx, seria a pro- posta na qual enquadrar-se-ia Proudhon quando este propõe a abo- lição do capital. Ou quando se considera uma forma específica de trabalho como sendo a origem da propriedade privada e da aliena- ção, casos em que se enquadram Fourier, ao considerar o trabalho agrícola como exemplar, e Saint-Simon, que afirma que o trabalho

30 MARX, op. cit. p. 189.

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industrial é a essência do trabalho e que, portanto, o domínio das indústrias coincidiria com a melhoria das condições dos trabalha- dores.31 Todas estas propostas, enquanto expressões de um nível de comunismo ingênuo, e apesar de serem também tentativas de abo- lição da propriedade privada, buscam, na verdade, apenas a sua universalização, em que a "posse física, imediata, aparece-lhe como a única finalidade da vida e da existência. O papel do traba- lhador não é abolido, mas estende-se a todos os homens; a relação da propriedade privada permanece a relação da comunidade ao mundo das coisas."32

Essa constatação permite a Marx fazer uma dura crítica àqueles que pensam abolir esta auto-alienação apenas mediante a destruição e oposição física à propriedade privada particular. De fato, ao não tocarem na questão da despersonalização do ser huma- no na relação do trabalho e atribuírem à alienação apenas à propri- edade privada objetivamente concebida, buscam a generalização da propriedade privada. Tanto que, por considerarem a mulher como uma propriedade privada, e exclusiva, propõem que ela se torne uma propriedade comum. Para Marx, esta é a expressão de um comunismo grosseiro e i r r e f l e t i d ~ ~ ~ , em que, assim como a mulher passa à prostituição universal, também todo o mundo da riqueza vai da relação exclusiva com o proprietário privado à rela- ção da prostituição universal.34

"Que a abolição da propriedade privada só em escassa medida representa uma genuína apropriação prova-se pela negação abs- trata de todo o mundo da cultura e da civilização, pelo retorno à antinatural simplicidade do indivíduo pobre e necessitado, que

3' MARX, op. cit. p.190 32 Id. p. 190 33 Id. Ibid. p. 190 "Pode-se afirmar que a idéia da comunidade de mulheres é o

mistério aberto deste comunismo ainda inteiramente grosseiro e irrefletido." 34 Robert Kurz, em seu livro O colapso da modernização, afirma que o socialismo

real da União Soviética não teria passado deste estágio, uma vez que não conse- guiu se dar conta da dinâmica do trabalho abstrato em que estava envolvido. O que parecia socialismo era a universalização da propriedade privada, do capita- lismo. KURZ, Robert. O colapso da Modernização: Da derrocada do socialis- mo à crise da economia mundial. 3 ed. , Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

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Religião e capitalismo: uma reflexão a partir de Feuerbach e Marx

não só não ultrapassou, mas nem sequer atingiu ainda a proprie- dade privada. A comunidade é apenas uma comunidade de trabalho e da igual- dade de salário, que o capital comunal, a comunidade enquanto capitalista universal, paga. Ambos os aspectos da relação se ele- vam a uma suposta universalidade; o trabalho como a condição em que cada um se encontra situado e o capital como a univer- salidade e o poder reconhecidos da ~ o m u n i d a d e . " ~ ~

Segundo Marx, a relação entre o homem e a mulher pode ser tomada como sendo um lugar de medida da relação do ser hu- mano consigo mesmo e com a natureza, através do qual se poderia perceber até que ponto "a essência humana se tornou para o ho- mem natureza, e em que medida a natureza se transformou em es- sência humana do homem."36 Ou seja, até que ponto o ser humano se tornou um ser genérico, humano, que na sua existência individu- al se vê como ser social. "A primeira abolição positiva da proprie- dade privada, o comunismo grosseiro, surge, portanto, como sim- ples forma fenomenal da infância da propriedade privada, que pre- tende propor-se como comunidade positiva. "37

O segundo nível de concepção do comunismo, Marx iden- tifica com um comunismo de natureza ainda política, democrático ou despótico, no qual já possa haver a abolição do Estado (este céu secularizado, como vimos na análise da Questão Judaica e na In- trodução), mas na qual a realidade ainda seja afetada pela proprie- dade privada, ou seja, pela alienação do homem que, por ainda não compreender a natureza positiva da propriedade privada e a nature- za humana das necessidades, não consegue libertar-se da proprie- dade privada e, portanto, da alienação humana, embora já apreen- da-se enquanto busca da superação da auto-alienação.

No terceiro nível, o comunismo passa a ser "a abolição (Aufhebung) positiva da propriedade enquanto auto-alienação hu- mana e, deste modo, a real apropriação da essência humana pelo e

35 MARX, op. cit. p. 191. 36 Id. p. 191 37 Id. Ibid. p.192.

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para o h~mern,"~'sendo o retorno do ser humano à sua natureza so- cial, humana, e isto de forma consciente, de forma a assumir, assi- milar todos os desenvolvimentos anteriores. Todas as qualidades alienadas nos produtos, enquanto propriedade privada, poderão ser tomados como verdadeiras expressões do ser humano, e este pode- rá ser considerado o lado humano da natureza.

"O comunismo enquanto naturalismo integralmente evoluído = humanismo, enquanto humanismo plenamente desenvolvido = naturismo, constitui a resolução autêntica do antagonismo entre o homem e a natureza, entre o homem e o homem. É a verdadei- ra solução do conflito entre a existência e a essência, entre a ob- jetivação e a auto-afirmação, entre a liberdade e a necessidade, entre o indivíduo e a espécie. É a decifração do enigma da Histó- ria e está consciente de ele próprio ser essa solução."39

Logo adiante Marx faz menção à propriedade privada como sendo um referencial que, segundo ele, pode orientar todo o movimento revolucionário que queira alcançar este nível de comu- nismo. Sem mais, Marx afirma: "É fácil compreender a necessida- de que impele todo o movimento revolucionário a encontrar a sua base empírica e teórica no desenvolvimento da propriedade priva- da e, mais precisamente, do sistema e c o n ~ m i c o . " ~ ~ Assim, não ha- veria mais a necessidade de buscar fora do sistema de propriedade privada como, por exemplo, numa comunidade primitiva não ca- pitalista, elementos para sua superação.

Nesse momento da argumentação marxiana, parece inte- ressante ressaltar de novo que, assim como para Feuerbach a reli- gião significava a auto-alienação da verdadeira essência humana que precisava ser atribuída ao homem, e que pela análise da própria religião poder-se-iam descobrir os desejos mais íntimos, secretos e nobres do ser humano, Marx propõe que o comunismo deva ser a apropriação positiva para e pelo homem da propriedade privada, enquanto auto-alienação humana. A propriedade privada passou a

" MARX, op. cit. p 192. '9 Id. p. 192. 40 Id. Ibid. p.193.

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Religião e capitalismo: uma reflexão a bartir de Feuerbach e Marx

ocupar, aqui, o papel que na teoria de Feuerbach ocupava a reli- gião. Com a ressalva de que a alienação que fundamenta a proprie- dade privada constitui-se como fundamento de todas as outras alie- nações, por ser a mais concreta, a mais real e sensível, e que, por- tanto, sua superação exige uma superação também prática e não apenas teórica. Marx expressa estas questões de forma clara no se- guinte parágrafo:

"A propriedade privada material, imediatamente perceptível, é a expressão material e sensível da vida humana alienada. O seu movimento - a produção e o consumo - é a manifestação sensí- vel do movimento de toda a produção anterior, quer dizer, a rea- lização ou realidade do homem. A religião, a família, o Estado, o Direito, a moral, a ciência, a arte, etc, constituem apenas modos particulares de produção e submetem-se à sua lei geral. A aboli- ção positiva da propriedade privada, tal como a apropriação po- sitiva de toda a alienação, o regresso do homem a partir da reli- gião, da família, do Estado, etc., à sua existência humana, isto é, social. A alienação religiosa enquanto tal ocorre apenas na cons- ciência, da interioridade humana, mas a alienação econômica é a da vida real - a sua abolição inclui por conseguinte os dois as- p e ~ t ~ ~ . 1 ' 4 1

Por isso, Marx pode afirmar que o "comunismo começa logo (Owen) com o ateísmo, mas o ateísmo está ainda longe de ser o comunismo, porque em grande parte constitui uma abstração."42 Percebe-se, pois, a estrutura da crítica à religião, usada por Feuer- bach, porém ampliada para a dimensão sensível material da vida humana alienada: a propriedade privada. Um movimento revoluci- onário pode, portanto, encontrar sua base teórica e empírica na propriedade privada, na forma que ela assume, enquanto sistema econômico, portador das essencialidades humanas alienadas e da contradição capital e trabalho.

Ao pressupor a abolição positiva, ou seja, superação sem que se percam as qualidades humanas inerentes à propriedade pri-

41 MARX, op. cit. p. 193. 42 Id. p. 194.

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vada, o homem percebe que produz a si mesmo, bem como a rela- ção com os outros homens, o que o impulsiona diretamente para a ação, enquanto o ateísmo permanecia em nível de consciência.

"De igual maneira, o material do trabalho e o homem enquanto sujeito são o resultado e o ponto de partida deste desenvolvi- mento (e porque este ponto de partida tem de existir, a proprie- dade privada é uma necessidade histórica). Por conseguinte, o caráter social é o caráter universal de todo o movimento; assim como a sociedade produz o homem enquanto homem, assim ela é por ele produzida. A atividade e o espírito são sociais tanto no conteúdo como na origem; são atividade social e espírito soci- ,I "43

Quando, pois, estiver liberto das necessidades impostas pelo capital, da propriedade privada enquanto forma de auto- alienação humana, o homem vai perceber que mesmo quando está sozinho sua atividade é social. O material, a linguagem, enfim, com o que trabalha e o que produz, tem sua origem na sociedade e são produzidos pela sociedade, por maior que seja a contribuição particular da individualidade.

A consciência universal, nesse sentido, é a forma teórica de uma comunidade real viva, a existência teórica como ser social, embora na modernidade esta consciência universal seja uma abs- tração da vida real e que se lhe oponha com hostilidade. Isto não significa que a sociedade é uma simples abstração ante o indivíduo. O homem é indivíduo particular e, de igual modo, totalidade. Por isto, pode-se dizer que cada indivíduo é a existência subjetiva da sociedade, enquanto pensada e sentida, particularmente em cada ser humano que, enquanto ser genérico determinado está sujeito à morte, enquanto a humanidade permanece. No entanto, Marx des- taca ainda que é preciso tomar cuidado e evitar que a 'sociedade' se considere, novamente, uma abstração em confronto com o indi- v í d ~ o . ~ ~

4 % ~ ~ ~ , op. cit. p. 194. 44 Id. p. 195. Esta parece ser uma tentativa de criticar o que Feuerbach pressupu-

nha como sendo a natureza humana, pelo fato de Feuerbach conceber a essência

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Reiigiiio e capitalismo: uma reflexáo a partir de Feuerbach e Marx

"O indivíduo é o ser social. A manifestação da sua vida - mesmo quando não surge diretamente na forma de uma manifestação comunitária, realizada conjuntamente com outros homens - constitui, pois, uma expressão e uma confirmação da vida social. A vida individual e a vida genérica do homem não são diferentes, por muito que - e isto é necessário - o modo de existência da vida individual seja um modo mais especij%'co ou mais geral da vida genérica, ou por mais que a vida genérica constitua uma vida in- dividual mais especljlica ou mais geral. "45

Assim, as relações humanas com o mundo se dão dentro e a partir da essência desta vida genérica, propriamente humana. A propriedade privada é a expressão sensível de que esta vida genéri- ca é para o próprio homem algo objetivo que, no entanto, por ser uma forma indireta, por ser um mundo invertido, torna-se para o homem algo estranho (como a religião), e aquilo que deveria ser a sua realização humana passa a ser sua desrealização. Assim, a pro- priedade privada é, ao mesmo tempo, a forma de desumanização e a possibilidade da superação desta alienação.

No quarto nível de concepção de comunismo, Marx afir- mará que, "a apropriação sensível da essência e da vida humana, do homem objetivo, das criações humanas para e através do ho- mem, não deve considerar-se apenas no sentido do ter"46, já que o homem se apropria através de todos os sentidos, individuais e co- munais. Como já havia dito Feuerbach, mesmo no objeto mais distante o homem está sempre reconhecendo a si mesmo. Na medi- da em que no capitalismo todos os sentidos foram sendo substituí- dos pelo sentido do ter, ele nos tornou mais estúpidos, nos empo- breceu. Mas, na medida em que o homem de novo se compreende como um ser social, com sentidos sociais, poderá então utilizá-los todos para tornar-se mais humano e, agora, num sentido prático e

genérica do homem como algo totalmente acima e oposto aos indivíduos parti- culares. A medida que se pressupõe uma natureza independente dos sujeitos in- dividuais e concretos, concebe-se de novo um ser estranho, uma divindade.

45 MARX, op. cit. p. 196. 4?d. p. 196.

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não apenas teórico, como pensava Feuerbach. O que, no entanto, não acontece no regime de propriedade privada.

Ao tornar a propriedade privada o fim último de todo o objeto e mesmo de toda a atitude e trabalho, o ser humano reduz todos os sentidos humanos ao sentido do ter. A apropriação privada lhe parece a fcrrma de ter todas as qualidades sensíveis da essência e da vida humana, realizadas objetivamente para e por meio do homem. Assim, as relações humanas que o homem estabelece com o mundo pelos seus mais diversos sentidos individuais e comunais, e que são a apropriação da própria realidade humana pela apropria- ção do objeto, deixam de ser qualidades por si mesmas, mas são ti- das apenas como meios para a vida da propriedade privada.

"A propriedade privada tornou-nos tão estúpidos e parciais que um objeto só é nosso quando o temos, quando existe para nós como capital ou quando por nós é diretamente possuído, comido, bebido, transportado no corpo, habitado, etc, numa palavra, quando é utilizado. Embora a propriedade privada conceba todas estas formas diretas de propriedade como simples meios de vida, a vida à qual servem de meios é a vida da propriedade privada - o trabalho e a criação de capital."47

Por isso, pode ser afirmado que a eliminação da proprieda- de privada com os seus pressupostos e conseqüências constitui a possibilidade de emancipação de todos os sentidos e qualidades humanas. Os sentidos se tornam humanos quando os seus objetos se tornam humanos e sociais, criados para o homem e pelo homem no sentido genérico. Neste sentido, a própria utilização se torna humana, porque os próprios objetos por si só são humanos, no sen- tido de que são resultados de um processo de constituição humana. Os sentidos e os espíritos dos outros homens passam a ser a própria vida de cada indivíduo, na medida em que se presentificam nos produtos e na constituição histórica dos sentidos. A forma como os outros indivíduos se apropriam da realidade é a minha própria for- ma de apropriação, pois, mesmo que os sentidos sejam individuais,

47 MARX, op. cit. p. 197.

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Religião e capitalismo: uma reflexão a partir de reuerbach e Marx

eles são também sociais. É, assim, que um objeto se torna humano, que o homem se objetiva e que a própria sociedade pode se con- cretizar no objeto. As diversas faculdades dos sentidos são as di- versas formas humanas que o homem tem de perceber-se nos ob- jetos. "Não é, por conseguinte, só no pensamento, mas através de todos os sentidos, que o homem se afirma no mundo objetivo."48

Porém, o significado humano objetivo só pode ser percebi- do quando há um sentido correspondente. Ou seja, o significado do objeto só pode ser percebido até aonde o sentido subjetivo pode ir. Nesta perspectiva, Marx diz que os sentidos do ser social são dife- rentes do não social.

"De fato, não são apenas os cinco sentidos, mas também os cha- mados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor, etc.), numa palavra, a sensibilidade humana e o caráter humano dos sentidos, que vêm à existência mediante a existência do seu objeto, através da natureza humanizada. A formação dos cinco sentidos é a obra de toda a história mundial anterior. O sentido aprisionado sob a grosseira necessidade prática possui unica- mente um significado restrito."49

Quando, pois, seria objetivado o caráter humano dos senti- dos, poder-se-ia perceber e criar a sensibilidade humana de todo o tipo de riqueza, desenvolvendo os sentidos enquanto resultado de "toda a história humana anterior" e não apenas do sentido unilate- ral do ter. Isto tornar-se-ia possível, porque o homem, mesmo apri- sionado a esta unilateralidade do ter e alienando suas propriedades humanas em um ser estranho, sempre se manifesta de forma com- pleta. Ora, o trabalho, a produção, é a forma mais sensível de mani- festação da essência genérica do homem. No entanto, o produto lhe é estranho, torna-se propriedade privada.

Por mais que esta produção esteja a serviço da propriedade privada, ela se concretiza no processo de produção industrial. Por isto, Marx pôde afirmar que a própria indústria é como que uma história das próprias faculdades humanas, exposta de forma objeti-

48 MARX, op. cit. p. 199. 49 Id. p. 199.

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va e sensível. É a natureza humana, objetivada em objetos sensí- veis que manifestam, embora de forma alienada, as faculdades es- senciais do ser humano. Por isto, pode-se dizer que é na forma prá- tica que antinomias como o subjetivismo e o objetivismo, o espiri- tualismo e o materialismo se resolvem, e não na forma apenas teó- rica. Ou seja, na história da indústria e mesmo dos seus produtos, subjetivismo e objetivismo não estão separados. Só são possíveis, enquanto abstrações que, na realidade sensível e concreta, não existem. A natureza desenvolvida pelo ato de constituição da histó- ria humana, da constituição da sociedade "é a natureza real do ho- mem; por conseguinte, a natureza, tal como se desenvolve na in- dústria, embora também em forma alienada, constitui a verdadeira natureza arztropológica. "50 Por isto, a história humana é uma parte da história natural, como se a natureza se desenvolvesse em dire- ção do homem. E o homem só pode encontrar o auto-conhecimento de suas faculdades na própria ciência natural. Quando o homem se libertar desta separação teórica, a ciência natural e a ciência do homem passarão a ser uma mesma coisa, pois a "realidade social da natureza e a ciência natural hzinzaaa, ou a ciência natural do homenz, são expressões idêntica^."^' Também esta reflexão é bas- tante semelhante daquela que Feuerbach fazia a respeito da relação do sujeito com os objetos:

50 MARX, op. cit. p. 202. 5 1 Id. p. 202. Uma reflexão na mesma perspectiva, porém, a partir do Capital rea-

liza Flickinger, no artigo intitulado Trabalho e ei~zar~cipaçiio - observações a partir da teoria rnarxiarza. Vejamos uma de suas conclusões: "Poderia-se dizer que, na verdade, as características qualitativas da produção humana, não mais disponíveis pelo homem dirigido pelo regime do capital, inscrevem-se, no capi- talismo moderno, nos aparelhos técnicos e na maquinaria, produtores não só de uma crescente e infernal destruição como também de surpreendentes formas estéticas. A questão da emancipação do homem deveria ser descrita como o sur- gimento de uma consciência que, efetivamente, tomasse nas mãos a organização da prática social segundo os modelos de uma complexidade orgânica que se ins- crevem e transparecem nas atuais formas de produção da teciiologia industrial." FLICKINGER, Hans-Georg. Trabalho e en~ancipação. Veritas, Porto Alegre: EDIPUCRS, v.37, ti. 148, dez. 1992. p. 508.

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Religiáo e capitalismo: uma reflexgo a partir de Feuerbach e Marx

"Através do objeto conheces o homem; nele a sua essência te aparece; o objeto é a sua essência revelada, o seu Eu verdadeiro, objetivo. E isto não é válido somente para os objetos espirituais, mas também para os sensoriais. Também os objetos mais distan- tes do homem são revelações da essência humana, e isto porque e enquanto eles são objetos para ele. Também a lua, o sol e as estrelas giram o gnôti sautón, o conheça-te (sic) a ti mesmo. Pelo fato dele os ver e os ver da forma que ele os vê, tudo isso já é um testemunho da sua própria essência."52

Marx, no entanto, mostrou ser possível ao homem tomar como objeto os próprios objetos produzidos pelo homem, mesmo que tenham sido produzidos de maneira alienada. Isto só se tornou possível porque Marx buscou a possibilidade de alienação e de su- peração desta alienação no nível concreto do dia a dia, da produ- ção, da economia, e no próprio processo industrial.

Quando o ter não é mais o sentido supremo, a riqueza e a pobreza adquirem um significado humano e social, em que a rique- za exige uma manifestação humana em totalidade. A pobreza é a falta da maior riqueza, que são os outros seres humanos, desapare- cendo, assim, o sentido d2 riqxeza e da pobreza enfatizados na economia política, em que eram relacionadas às necessidades indi- viduais que resultavam da lógica da propriedade privada.

Outra constatação que Marx faz a partir destas reflexões é que, assim, o ser humano adquire a consciência de sua própria au- togeração histórica, libertando-se da idéia de criação, podendo, então, sentir-se independente, por dever a si próprio a sua existên- cia. Chega, assim, ao quinto nível de concepção de comunismo. Aqui a pergunta por um ser superior e estranho torna-se desneces- sária, pois, "para o homem socialista, a totalidade do que se clzama lzistória mundial é apenas a criação do homem através do trabalho humano, a emergência da natureza para o homem, ele possui já a prova evidente e irrefutável da sua autocriação, das suas próprias origens"53. Assim, Marx utilizando a estrutura crítica de Feuer- bach, ultrapassa o próprio Feuerbach, e afirma que

'2 FEUERBACH, op. cit. p. 46. " MARX, op. cit. p. 204.

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"o ateísmo enquanto negação de semelhante realidade, deixa de ter sentido, visto que o ateísmo é uma negação de Deus e procu- ra, através desta negação, afirmar a existência do Izomem; mas o socialismo enquanto socialismo, já não precisa de semelhante mediação; parte da corzsciência sensível, teórica e prática do homem e da natureza como seres essenciais. É autoconsciência do homem, positiva, já não mediatizada pela abolição da religião, da mesma maneira que a vida real do homem é positiva e já não se alcança através da eliminação da propriedade privada, através do comunismo." 54

Para Marx, o comunismo, na forma como foi aqui conce- bido, aparece como "forma necessária e o princípio dinâmico do futuro imediato, mas o comunismo não constitui em si mesmo o objetivo da evolução humana - a forma da sociedade humana."55 Parece-nos que, para Marx, aqui, o comunismo se apresenta como sendo um horizonte, um princípio dinâmico que impulsiona para a ação, liberto da alienação da consciência no sentido religioso, e também da propriedade privada,56e possível de ser realizado, con-

" MARX, op. cit. p. 205. j 3 d . p. 205. 56 Segundo Manfredo A. de Oliveira, os Manuscritos seriam uma espécie de hori-

zonte de emancipação capaz de orientar o processo histórico real. Embora Man- fredo destaque também, que "a diferença entre o Marx dos Manuscritos e o Marx maduro, ou seja, aqui, o reino da liberdade é considerado como realidade que será atingida em sua plenitude, como meta a ser conquistada na história, en- quanto, na obra da maturidade, o reino da liberdade será transformado num con- ceito transcendental": a antecipação de uma plenitude, que se opõe ao poder cego do reino da necessidade. O reino da liberdade, que, aqui, nos Manuscritos, é a meta da ação histórica do homem em sua busca de apropriação de sua essên- cia se vai transformar depois num "horizonte último", um fim que será, estará além de todas as ações possíveis e factíveis na história humana de que a socie- dade socialista será uma aproximação e não a sua realização." OLIVEIRA, op. cit. p.127. Cf. também HINKELAMMERT, op. cit. As armas ideológicas .... p.78. "O conceito de comunismo como um reino de liberdade experimentou (...) uma mudança radical em relação a todas as descrições anteriores de Marx. (...) Apresenta o reino da liberdade como uma meta além de todas as relações huma- nas futuras possíveis e factíveis. Converte expressamente aquele reino da liber-

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Religião e capitalismo: uma reflexão a partir de Feuerbach e Marx

cretamente, embora em níveis diversos, na história. Além disto, ele não é concebido como algo totalmente abstrato e desvinculado da realidade histórica e concreta, por ser fundamentado a partir das próprias possibilidades inerentes à propriedade privada. Assim como no interior da religião, segundo Feuerbach, poder-se-iam buscar elementos humanos, também Marx buscou na propriedade privada elementos humanos capazes de sugerir a superação desta forma de alienação. Preferiu, no entanto, fazer desta superação um processo histórico de retomada gradual e concreta das propriedade humanas alienadas. Os diversos níveis de comunismo são as diver- sas formas e níveis a que o ser humano vai se dando conta e se apropriando da sua essência genérica. O comunismo só pôde ser concebido tendo em vista as potencialidades humanas manifestadas de forma negativa e alienada no interior da propriedade privada e de seus produtos. Esta possibilidade de leitura ao avesso das es- truturas de alienação, que vimos enfatizando, só foi possível por causa da teoria de Feuerbach. Talvez, Marx tenha se utilizado mais desta estrutura de crítica do que ele mesmo tenha se dado conta.

2.2 - Necessidade, Produção e Divisão de Trabalho

Numa perspectiva socialista, a riqueza das necessidades humanas tem grande importância, como também um novo modo de produção e um novo objeto de produção, uma vez que é, por exce- lência, nos objetos e no modo de produção que se manifestam as riqueza das potencialidades humanas. Torna-se, portanto, suma- mente, importante desmistificar as formas e os motivos das neces- sidade inerentes ao sistema de propriedade privada, a fim de torná- las efetivamente humanas.

No sistema de produção, baseado na propriedade privada, o indivíduo não se dá conta de sua essencialidade genérica, não se reconhece enquanto ser social e, por isto, cada um

dade (..) em um conceito transcendental, a sociedade socialista é agora concebi- da como aproximação e não como sua simples realização."

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"procura estabelecer sobre os outros um poder estranho, de ma- neira a encontrar assim a satisfação da própria necessidade ego- ísta. Com a multidão de objetos, cresce igualmente o reino das entidades estranhas a que o homem se encontra sujeito. Todo o produto novo constitui uma nova potencialidade de mútuo enga- no e roubo. O homem torna-se cada vez mais pobre enquanto homem, necessita cada vez mais de dinheiro, para se apoderar do ser

Não se dando conta do caráter social de sua atividade, e de que a sociedade é o meio pelo qual ele próprio se constrói enquanto ser humano, instaura-se no interior desta forma de organização so- cial, baseada na propriedade privada, uma luta constante de indiví- duos isolados e que, aparentemente, só se relacionam com os ou- tros seres humanos a fim de tirar vantagem para sua individualida- de egoísta. A vida social é a sua perdição. Todas as formas que cri- em a dependência do outro, a fim de que ele possa ser melhor ex- plorado nas suas fraquezas, em benefício do interesse egoísta parti- cular, são bem vindas. E, como toda riqueza dos sentidos se reduz ao sentido do ter, é este sentido que interessa alcançar nas relações que se estabelecem. O dinheiro, enquanto uma forma de conseguir aumentar o poder do sentido do ter, acaba por ser o fim último. As- sim, por causa do dinheiro, criam-se necessidades e, para suprir estas necessidades, luta-se por dinheiro. Fecha-se, assim, um ciclo do qual enquanto o homem não se conseguir libertar do sistema de propriedade privada, nem dos seus pressupostos como, por exem- plo, a idéia de que a única possibilidade de colocar em ação o pro- cesso produtivo e a troca são os interesses egoístas dos indivíduos isolados, não há possibilidade de emancipação. A possibilidade de superação da alienação econômica parece, assim, exigir a necessi- dade de tornar a história da espécie consciente, a fim de que ne- nhuma lógica clandestina, mística, invertida e inconsciente a de- termine.

A medida que o dinheiro, pelos motivos expostos, torna-se o fim de todas as ações, exigindo uma abstração de todas as outras

57 MARX, op. cit. p. 207.

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finalidades e qualidades, ele se torna a única entidadelpropriedade a ser alcançada. Também as qualidades se perdem neste processo, uma vez que o que importa é a quantidade de dinheiro a ser alcan- çada. Contudo, no interior do sistema de propriedade privada, ge- rada pelo trabalho alienado, que encontra a sua fundamentação ú1- tima na alienação do homem de si próprio e dos demais homens, não há possibilidade de transformar a necessidade bruta em uma necessidade humana, porque o seu próprio desenvolvimento é re- duzido a esta entidade quantitativa que é o dinheiro, em detrimento das outras propriedades humanas. Marx compara a sedução ofere- cida pelo dinheiro com a sedução que o sacerdote exerce ante a fraqueza do coração do fiel. "Assim como toda a imperfeição do homem é um laço com o céu, um lado por onde o seu coração é acessível ao sacerdote, assim também toda a necessidade constitui uma oportunidade para se aproximar do vizinho"58, e assim, pres- tar-lhe o "serviço amoroso" e, a partir de suas fraquezas ou mesmo a partir de patologias criadas, exigir remuneração por este serviço.

Segundo Marx, um sinal de que neste sistema há uma submissão a um poder estranho, é o fato constatável de que "o refi- namento das necessidades e dos meios para as satisfazer produz, como contrapartida, uma ferocidade bestial, uma total, primitiva e abstrata simplicidade das necessidades; ou melhor, no fato de ape- nas se reproduzir a si mesma em sentido oposto."59 Desta forma, ao mesmo tempo em que se vão "refinando" as necessidades humanas para alguns, uma grande maioria (os trabalhadores) vai sendo pri- vada da satisfação das necessidades mais vitais, como comer, dor- mir e outras. A busca das necessidades criadas será tal, que não só os sentidos humanos, mas também os sentidos animais desapare- cem, sacrificados em vista de um ser estranho. Tudo é organizado em vista deste fim, todas as propriedades humanas são reduzidas, eliminadas, abstraídas em vista da propriedade dinheiro, tanto que até mesmo as crianças não escapam das exigências sac r i f i~ ia i s .~~

" MARX, op. cit. p. 208. " Id. p. 208 60 Id. Ibid. p. 209. "A simplificação da maquinaria e do trabalho utiliza-se para

transformar em trabalhador o homem que ainda está a crescer, totalmente imatu-

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Segundo Marx, os próprios economistas demonstram essa contradição, ou seja, "como o crescimento das necessidades e dos meios para as satisfazer gera a carência de necessidade e dos res- pectivos meios de ~a t i s fa~ão , "~ ' e destaca dois fatos. O primeiro é o fato de o economista reduzir as necessidades do trabalhador "à ma- nutenção indispensável e miserável da vida física", além de reduzir a atividade do trabalhador a um movimento abstrato e mecânico, o que sugere que o trabalhador não tenha outras necessidades ou pra- zeres. E, um segundo, decorrente dos pressupostos do primeiro, ao pressupor este padrão de vida pobre para o trabalhador, tudo que exceda as necessidades de "manutenção indispensável e miserável da vida física" é considerado como luxo. Desta forma, Marx des- cobre implícita na própria economia política também uma moral, que prega a renúncia e a ascese. Assim, apesar de a economia polí- tica ter uma "aparência mundana e voluptuosa, constitui uma ciên- cia verdadeiramente moral, a mais moral de todas as ciências. A sua tese principal é a auto-renúncia, a renúncia da vida e de todas as necessidades humanas."" Tudo que se apresenta como algo que

ro - a criança - da mesma maneira que o trabalhador se tornou uma criança des- provida de todos os cuidados. A máquina adapta-se i fraqueza do homem para do ser humano fraco fazer uma máquina."

" MARX, op. cit. p. 210. 62 Id. p. 210. Desta forma, Marx está enfrentando também a suposta neutralidade

moral ou política da economia, que passa a ser carregada de exigências morais misticamente justificadas. Aliás, esta suposta neutralidade da economia só pode existir por ela já ter assumido certos pressupostos e valores, fazendo com que a 'defesa da fé econômica' assumisse um caráter de ciência. Nesta perspectiva, afirma H. Assmann: "...a própria pretensão de neutralidade valorativa Cumpre um papel decisivo no modo como as categorias econômicas absorvem categori- as ético políticas." ASSMANN, Hugo, HINCKELAMMERT, J. Franz. A idola- tria do mercado. Ensaio sobre ecorioiliia e teologia. Coleção teologia e liberta- ção. São Paulo: Vozes, 1989. p. 223. Hinkelaminert, em outro livro, aponta a tendência i poupança como sendo um serviço para o além, e que quando viola- do tem caráter semelhante ao pecado original. O consumo é permitido apenas enquanto possibilitador de mais acúmulo. Vejamos: "Enquanto personificação do capital. o mandamento que prescreve não roubar exige agora minimizar o consumo e maximizar a acumulação, pois a acumulação é o serviço ao além, personificado no capital." HINKELAMMERT, J. Franz. As arrnas ideológicas da morte. São Paulo: Paulinas, 1983 p. 68.

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possa prejudicar o acúmulo de capital: comer, comprar livros, ir ao baile, amar, poetar etc., apresenta-se como algo a ser renunciado. A lógica da coisa se sobrepõe à lógica humana. O homem renuncia a si para atribuir suas propriedades a algo exterior, renuncia a si para acumular, na forma de capital, tudo o que sacrifica de si. Pois "quanto menos cada um for, quanto menos cada um expressar a sua vida, tanto mais terá, tanto maior será a sua vida alienada e maior será a poupança de sua vida alienada."63 Poupança esta que deve se estender também aos interesses gerais como a confiança, a simpatia etc.

Segundo as regras da economia política, tudo que se possui deve se tornar útil, justificando-se inclusive a prostituição ou a venda do trabalho escravo, abstraindo, aparentemente, de qualquer juízo moral. No entanto, a economia política prega que em certos casos a "prima moral e a prima religião" devem ser ouvidas antes das regras da economia. Marx pergunta como isto seria possível? Qual delas e em que circunstâncias deveria ser seguida? Por isso Marx diz que a economia política apenas afirma, à sua maneira, as leis morais, mas que as pressupõe, e que seus valores máximos são o ganho, o trabalho, a poupança etc. Apenas que a própria natureza da alienação separa as esferas e lhes atribui normas diferentes e contraditórias. Como se a moral fosse uma coisa e a economia po- lítica outra, "porque cada uma delas constitui uma determinada ali- enação do homem: cada uma encontra-se num círculo específico de atividade alienada e encontra-se alienada em relação à outra alie- nação."64 Ou seja, elaborar leis para a economia, pressupondo sua total independência da moral, ou vice-versa, significa, para Marx, assumir a natureza alienada desta concepção, uma vez que uma precisa abstrair da outra a fim de se constituir enquanto entidade

63 MARX, op. cit. p. 210. Desta forma, resolve Marx também a questão de uma controvérsia que havia entre os economistas da época, em que alguns defendiam o luxo e condenavam a poupança, enquanto outros defendiam a poupança e re- provavam o luxo, como formas de impulsionar o crescimento da riqueza e mesmo do trabalho, ao demonstrar que ambas eram equivalentes, e que se in- cluíam no próprio modo de produção, de que uma era condição de possibilidade de existência da outra.

64 Id. p. 212.

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autônoma e, portanto, alienada das outras dimensões da vida hu- mana. Para Marx, isto só se tornou possível quando se concebeu o trabalho como a essência da propriedade privada. Só daí se tornou possível perceber e analisar as reais características do movimento econômico. Só a partir de semelhante visão que a economia políti- ca pôde reduzir toda a sociedade à sociedade civil, como se cada indivíduo constituísse uma unidade totalmente separada dos de- mais indivíduos, e como se a realidade humana fosse composta de realidades isoladas. Assim, para o economista tudo é reduzido ao trabalho, ao indivíduo. E o indivíduo é privado de todas as caracte- rísticas e qualidades sociais e pode apenas ser classificado como capitalista ou como trabalhador.

Ora, a tendência de todas as formas de produção de se submeterem ao sistema da propriedade privada, em que o dinheiro se tornou um fim, pode também significar uma possibilidade de sua superação porque, para Marx, "a eliminação da alienação deri- va sempre da forma de alienação que é o poder donzinante" de forma que o comunismo "não é a posição verdadeira, surgindo de si mesma, mas antes a posição que brota da propriedade privada."65 Portanto, Marx sugere que a superação da alienação tornar-se-á possível a partir das próprias potencialidades inscritas na proprie- dade privada. No entanto, Marx faz também o alerta de que, para tanto, não bastam teorias, é preciso que a superação se dê na práti- ca. Para "suplantar a idéia da propriedade privada, basta o comu- nismo enquanto plenamente pensado. Para eliminar a propriedade privada real, é necessário uma ação comunista genuína"66. Quais seriam então as condições de superação da propriedade privada? Em primeiro lugar, que ela exista e tenha se desenvolvido, e que a partir das próprias potencialidades da essencialidade humana, ali presentificadas, realizadas de forma alienada", possam ir sendo

65 MARX, op. cit. p. 215. 1d. p.215.

67 Id. Ibid. p. 217 "A alienação não se revela apenas no fato de que os meus meios de vida pertencem a outro, de que os meus desejos são a posse inatingível de outro, mas de que tudo é algo diferente de si mesmo, de que a minha atividade é qualquer outra coisa e que, por fim - e é também o caso do capitalista - um po- der inurnano opera sobre tudo."

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desmistificadas e se possa desvendar o seu verdadeiro fundamento antropológico e social.

Uma forma de organização que se tornou possível, a partir do desenvolvimento da propriedade privada, é a divisão do traba- lho. Embora os economistas divirjam quanto à fonna da origem da divisão do trabalho, todos estão de acordo "quanto ao fato de que a divisão do trabalho e a abundância da produção, a divisão do tra- balho e a acumulação do capital, se determinam mutuamente; e de que só a propriedade privada mobilizada e autônoma consegue produzir a mais eficaz e ampla divisão do t r a b a l h ~ . " ~ ~ Por isto, Marx pode afirmar:

"A divisão do trabalho é a expressão econômica do caráter soci- al do trabalho no interior da alienação. Ou então, uma vez que o trabalho constitui apenas uma expressão da atividade humana no seio da alienação, da manifestação da vida enquanto alienação da vida, a divisão do trabalho não passa do estabelecimento aliena- do da atividade humana como uma atividade genérica real ou como a atividade do homem enquanto ser genérico."69

Os economistas, no entanto, não conseguem ver o funda- mento humano do trabalho. Percebem o indivíduo apenas de forma isolada, como uma manada da sociedade civil. Precisam justificar o interesse pela divisão do trabalho no egoísmo e no interesse pri- vado, embora logo adiante caiam em contradição ao afirmar que a divisão do trabalho e a troca constituem o caráter social de sua ci- ência. Não percebem que a divisão do trabalho e a permuta são uma expressão sensível, embora alienada, das próprias capacidades humanas, da espécie humana. Desta forma, a propriedade privada foi necessária para a realização humana, e significa também que ela agora deve ser abolida." O economista tem um comportamento

68 MARX, op. cit. p. 224. " Id. D. 220. 70 Neste momento parece estar se confirmando mais uma analogia com a teoria de

Feuerbach em relação à religião, vejamos: "O homem transporta primeiramente a sua essência para fora de si antes de encontrá-la dentro de si. A própria essên- cia é para ele objeto primeiramente como uma outra essência." FEUERBACH,

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semelhante ao religioso, que não percebe toda a fundamentação antropológica da religião e dos seus ritos, que a religião foi neces- sária, de certa forma, para realização humana, enquanto expressão da essência humana social, assim como a propriedade privada71, mas que agora precisam ser abolidas pelo próprio homem, à medi- da que ele vai percebendo a sua própria essência como fundamento delas. Por isto, considerar a questão da permuta e da divisão do trabalho "é do maior interesse, porque elas constituem a expressão sensível, alienada da atividade e das capacidades humanas como atividade e capacidades próprias de uma espécie."72

Percebe-se, assim, que Marx superou a economia política da época ao buscar os verdadeiros fundamentos humanos, sociais e históricos daqueles conceitos que pareciam naturalmente constituí- dos. Além disto, Marx conseguiu, apontando a indústria, a permuta e a divisão do trabalho, visualizar sinais evidentes da natureza so- cial do ser humano. Seria, pois, preciso apropriar-se destas caracte- rísticas e pô-las a serviço das necessidades humanas, o que só seria possível por meio de uma ação comunista genuína.

Algumas obras posteriores de Marx e, de modo especial, a questão do fetichismo ou mesmo o exemplo de uma vida engajada com a luta dos trabalhadores por melhores condições de vida, dado pelo próprio Marx, demonstrarão o quanto estas teses, de origem feuerbachiana, o instigavam e desafiavam, assim como continuam

op. cit. p. 56. E só depois de realizada esta primeira forma de tomar consciência de suas próprias possibilidades o homem pode superá-la e tomá-la consciente. Neste sentido, pode-se dizer que a alienação constitui um momento necessário pelo qual passa a humanidade em direção à realização de sua verdadeira huma- nização. Assim como na Fenomenologia do Espírito, de Hegel, a figura do Mundo Invertido constitui-se um momento, um rodeio necessário no caminho da consciência ingênua em direção à consciência filosófica, à autoconsciência. Porém, o fato de Marx buscar esta superação a partir da realidade social huma- na, o levou a superar em muito um possível conceito autônomo pressuposto.

7 1 ~ ~ ~ ~ , op. cit. p. 226 : "E precisamente no fato de a divisão do trabalho e a permuta serem manifestações da propriedade privada que reside a prova, em primeiro lugar, de que a vida Izumana necessitou da propriedade privada para a sua realização e, em segundo, de que ela precisa agora da abolição da proprie- dade privada."

72 Id. op. cit. p. 226.

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sendo um desafio constante para todos nós, interessados na liberta- ção humana em relação a poderes estranhos, criados pela própria humanidade, que na atualidade demonstram sua face mais cruel na degradação ambienta1 e na miséria humana. Quantas conquistas admiráveis da humanidade ficam paralisadas por este poder estra- nho e mítico. Tornar consciente este processo e pôr os potenciais humanos alienados à serviço da humanidade, nos parece ser uma atividade na qual a filosofia, juntamente com ações inovadoras, tem papel imprescindível.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A guisa de conclusão, deste trabalho, gostaríamos de fazer algumas observações, no sentido de identificar os principais mo- mentos do processo reflexivo pelo qual nos conduzimos através das obras de Feuerbach e Marx analisadas. Além disto, vamos fa- zer algumas considerações em torno da atualidade destas reflexões e, também, das lacunas encontradas. Por fim, gostaríamos de apontar algumas perspectivas a serem dadas para esta pesquisa.

A Essência do Cristianismo, de Ludwig A. Feuerbach, foi fundamental para a desmistificação da fundamentação religiosa da sociedade, bem como das visões de mundo, de ser humano e, mesmo, de natureza existentes na época. Demonstrar que o ente di- vino não é nada mais do que uma construção humana e que, por isto, precisa ser visto apenas como sendo expressão das potenciali- dades genéricas do ser humano, teve um potencial inimaginável, até mesmo para o próprio Feuerbach, na época. Embora Feurbach tenha se dedicado, de modo específico, à desmistificação da religi- ão cristã, sua teoria parece possível de ser aplicada a todo tipo de religião, o que não significa que as religiões não possam assumir, historicamente, outras funções do que aquelas, apontadas por Feuerbach desde que não sejam tomadas como manifestações in- dependentes do próprio homem e de sua realidade. O mérito maior de Feuerbach parece ser o de ter chamado atenção para o fato de que podemos criar estruturas que passam a nos dominar quando não mais as percebemos, enquanto criaturas nossas. Neste sentido, por exemplo, a intenção inicial do cristianismo, trabalhada por Hinkelammert, contribui exatamente para o propósito de Feuer- bach, na medida em que procurava se contrapor a todo tipo de lei que não considerasse em primeiro lugar o ser humano. Para nosso estudo e para melhor compreensão dos textos de Marx, alguns as- pectos da teoria de Feuerbach merecem destaque. O primeiro é o

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Roçaivo Schütz

da capacidade do ser humano poder ter consciência de sua espécie no sentido rigoroso. Esta consciência, que é a essência do ser hu- mano, ou seja, a sua essência genérica e que, também, situa-se como sendo a condição fundamental de possibilidade da religião. A idéia de que o ser humano pode perceber-se enquanto espécie, ser ao mesmo tempo eu e tu, colocando-se acima de suas determina- ções restritas, enquanto indivíduo, foi fundamental para compreen- são de muitos aspectos da posterior teoria de Marx.

Embora o próprio Feuerbach expressasse esse aspecto do ser humano ainda de uma forma muito estanque, pois acreditava que essas características estavam no homem de uma forma natu- ralmente determinada e que, portanto, estavam independentes da própria historicidade concreta do homem, esta idéia também possui um potencial muito mais amplo do que o próprio Feuerbach pode- ria imaginar. Aliás, neste sentido, talvez podessemos dizer que a própria teoria de Feuerbach poderia ser aplicada a ele mesmo, uma vez que a idéia do ser genérico aparece como sendo algo indepen- dente do próprio homem concreto, o que lhe dá um caráter místico e religioso. A idéia do ser genérico é como que uma intuição reli- giosa que precisa ser antropologizada, que precisa ser reconduzida aos seus fundamentos concretos e sensíveis, o que não significa que ela não expresse um alto potencial humano, como pudemos ver pelo que Marx fez com esta idéia.

Outro ponto da reflexão de Feuerbach a ser destacado refe- re-se ao caráter dual da religião. A religião é sempre e, ao mesmo tempo, expressão dos desejos e potencialidades humanas, mas também alienação do ser humano. É expressão das potencialidades humanas porque só é possível no ser humano. O fato de os próprios atributos divinos serem apenas atributos humanos revela, em parte, esta potencialidade fantástica contida na religião. A religião apare- ce, pois, como sendo um momento essencial para que o homem dê- se conta de suas potencialidades. Mas é também expressão de alie- nação e estranhamento (Entfremdung) humano, pelo fato de o ser humano não ser ainda consciente de que, ao se relacionar com Deus, está apenas relacionando-se consigo mesmo. Desta forma, o próprio ser humano se ilude e constrói um ser objetivo que parece

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estar independentemente constituído. E, uma vez independente, passa a determinar o próprio homem, ou seja, uma vez considera- dos como independentes e atribuídos a um ser objetivo, os atribu- tos humanos tomam formas sobre as quais a humanidade não pare- ce mais ter poder. Por isto, os homens submetem-se a estas estrutu- ras e deixam de perceber-se como protagonistas, passando a agir por mera submissão e passividade.

O fato de Feuerbach ter permanecido ainda em um nível meramente abstrato e, por isto, de certa forma religioso, fez com que ele mesmo não percebesse a religião com potenciais ainda mais amplos. Assim, se, por um lado, ao analisar a religião cristã, desvendou os fundamentos e as possibilidades de toda a religião, por outro, por não perceber o ser humano como sendo um ser his- tórico, que enfrenta sempre novas situações, não pôde perceber o fenômeno religioso como sendo uma possibilidade a surgir sempre de novo do interior da vida, como expressão das novas possibilida- des, desejos e necessidades do ser humano. Aliás, parece-nos que mesmo Marx não conseguiu fazer este tipo de reflexão em relação à religião. Embora percebesse o ser humano como um ser histórico, não chegou a levantar a hipótese de que a religião poderia ser a ex- pressão primeira das novas demandas históricas da humanidade. O que fica, como uma contribuição de Feuerbach, neste sentido, é que em todas as situações o fenômeno religioso só pode ser expres- são do próprio ser humano. Nada se põe acima dele e de suas rela- ções. É o que permite aquilo que, ao longo deste trabalho, chama- mos de leitura ao avesso das estruturas de alienação. Foi esta últi- ma idéia que se mostrou mais conveniente para análise das estrutu- ras sociais concretas do capitalismo, e foi esta a perspectiva adota- da por Marx.

Embora A Questão Judaica e a Ir~trodução tenham tido um caráter mais sistemático do que os Manuscritos, poderíamos identificar o seu conjunto como sendo uma tentativa de ir vislum- brando uma crítica em relação à sociedade liberal burguesa, nos moldes da crítica da religião, realizada por Feuerbach. Para Marx, a teoria de Hegel exerceu uma espécie de meio termo mediante o qual tornou-se possível articular a crítica em outros níveis. Nossa

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convicção é a de que Marx via na filosofia hegeliana, de modo es- pecial na Ferzornenologia do Espírito, a expressão abstrata e religi- osa da própria evolução da humanidade. Os momentos de aliena- ção aparecem como sendo um momento passageiro na história e que, no entanto, já possuem em si a própria dinâmica e processua- lidade anteriores, e que aparecem de forma autônoma, embora ain- da independente do ser humano, pela primeira vez, na figura do mundo invertido na Ferzornerzologia. Desta forma, o mundo inver- tido poderia ser percebido em todas as dimensões do ser humano e da sociedade, e não apenas em nível do espírito como pensava He- gel, nem só em nível de consciência e de religião, como pensava Feuerbach, mas em todos os momentos da vida concreta do homem e da sociedade.

A polêmica de Marx com Ruge foi uma oportunidade inte- ressante para Marx perceber, pela diferenciação entre emancipação política e emancipação humana, que a realidade da sociedade libe- ral burguesa, tão bem expressa na Filosofia do Direito, de Hegel, constituía-se de uma estrutura semelhante àquela do céu e da terra, na forma de Estado e de sociedade civil. Esta talvez tenha sido uma experiência fundamental para que Marx percebesse a crítica da re- ligião de Feuerbach como sendo "o pressuposto de toda a crítica", no sentido de que, a partir desta crítica, estava desvendada uma 1ó- gica que se fazia presente também em outras estruturas.

Por isso, Marx começou a se preocupar, cada vez mais, com a economia política, que se apresentava, na época, como sen- do a teoria em torno dos fundamentos de uma nova sociedade, não mais baseada na determinação divina. A economia política apre- sentava-se como sendo a expressão racional de uma ordem natural e inquestionável. Por outro lado, a miséria e a exploração do ho- mem sobre o homem revelavam uma face perversa deste tipo de organização social. Marx procurou, então, entender as teorias da economia política de sua época. Neste sentido, é preciso destacar a descoberta de que só o trabalho é que produz riquezas, e de que a redução do trabalho qualitativo em trabalho apenas abstrato possi- bilitou uma generalização do trabalho na forma industrial. No en- tanto, conforme tentamos provar, ao longo de nosso trabalho, Marx

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buscou identificar os limites internos desta forma de organização social. Uma desses limites encontrados foi o de que este processo não levava a maior felicidade da totalidade da população. Portanto, havia algo superior aos interesses humanos a serviço do qual tudo se realizava.

Aquilo que aparecia nos economistas como algo dado tinha pressupostos mais profundos e Marx se dispôs a buscá-los. O Ma- ~zuscrito sobre o trabalho alienado é uma primeira tentativa de fazer este desvelamento. Ao identificar a fundamentação última da alie- nação do trabalhador no fato de não se perceber como ser genérico, os traços feuerbachianos tornam-se evidentes. Tanto pelo fato de assumir ainda a idéia de ser genérico como algo dado, como pela potencialidade aí inscrita.

Pouco a pouco Marx foi dando um conteúdo cada vez mais concreto ao ser genérico. Pôde, por exemplo, identificar sua mani- festação mais genuína no trabalho humano e no produto deste tra- balho. Assim, o homem passa a ser a dimensão humana da própria natureza e não pode existir sem ela, sem expressar a sua humani- dade em objetos concretos. Ora, uma vez identificada no trabalho a forma por excelência de manifestação da essência humana, o pro- cesso de produção econômica, o processo industrial, passa a ser o fundamento de todas as demais dimensões humanas. O homem, trabalhando isoladamente, colocando os seus interesses individuais e egoístas como fins e a humanidade como meio para alcançar es- tes fins, perde a noção de sua atividade mais ampla, ou seja, por não se perceber enquanto ser social, também não consegue ver os seus objetos como sendo produtos sociais. Os produtos e o próprio processo industrial passam a ser vistos como algo externo e deter- minador do homem. Eles, no entanto, por serem expressão da pró- pria humanidade, assim como a religião, exercem um fascínio so- bre o homem. Este fascínio pode ser percebido mais concretamente no dinheiro, que é uma das expressões mais completas de produto humano alienado. O fascínio do dinheiro deve-se ao conteúdo an- tropológico alienado nele, é a forma privilegiada de satisfazer os desejos dos indivíduos egoístas e isolados.

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Embora o dinheiro e o capital sejam, muitas vezes, toma- dos como sinônimos nos textos de Marx aqui analisados, a utiliza- ção do conceito capital aparece, geralmente, em contextos mais ge- rais quando faz referência às diversas formas de organização social que estariam orientadas para um fim exterior ao ser humano. As- sim, o capital é aquele resumo religioso em vista e pelo qual toda sociedade se organiza, e do qual a forma de trabalho abstrato, o di- nheiro e mesmo a constituição social burguesa (Estado X Socieda- de civil) são apenas algumas expressões. É o princípio hegemônico a partir do qual tudo se organiza. Mas, tal como Deus, que ao mesmo tempo está em tudo, mas não está em nada, é um princípio metafísico que orienta a organização social, a partir do qual os in- divíduos e suas atividades podem ser reconhecidos. Tudo que não pode ser enquadrado neste princípio precisa ser sacrificado. Marx, no entanto, buscou mostrar que esta era apenas uma forma históri- ca de organização social e tinha pressupostos antropológicos que poderiam ser tornados públicos e reavaliados. Em outras palavras, ao tentar desmistificar os pressupostos da sociedade capitalista, Marx estava à procura de estruturas que evidenciassem esta aliena- ção humana possibilitada pela falta de consciência social do ser humano. Fez isto por meio da análise de diversas estruturas. Não chegou a apontar diretamente o princípio do capital como sendo o resumo enciclopédico de todas estas formas, embora tenha usado constantemente expressões como o sistema de propriedade privada e o sistema do dinheiro.

No entanto, o seu trabalho desse período foi fundamental para a descoberta posterior do capital como princípio orientador da sociedade capitalista. Os trabalhos posteriores, de modo especial, O Capital, apontam para esta perspectiva, ou seja, explicitar a for- ma como o princípio do capital impõe-se e determina a sociedade, apontando até mesmo os sacrifícios necessários para tal.

O pressuposto feuerbachiano de que só o ser humano pode ter religião, pode ser reencontrado, em uma outra versão, nos Ma- nuscritos. Só o ser humano, como um ser social, pode gerar pro- dutos e submeter-se a eles por não percebê-los como tal. Se, por um lado, os produtos, enquanto propriedade privada, são expressão

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Religião e capitalismo: uma reflexão a partir de reuerbach e Marx

da alienação humana, são também sinais evidentes da essencialida- de genérica e social do ser humano. Marx vai buscar na própria propriedade privada, no processo industrial e na divisão do traba- lho manifestações de essência humana. Os produtos, enquanto pro- dutos sociais, são sempre prenhes de humanidade, assim como a indústria é o livro aberto do processo de desenvolvimento do pró- prio homem, e a divisão do trabalho é a manifestação mais visível e concreta da essencialidade genérica e social do homem. Todos os produtos têm a contribuição de um grande número de agentes soci- ais, de saberes humanos historicamente constituídos. Quando isto for tornado consciente, o homem não mais submeter-se-á a uma lógica que não seja aquela que ponha o ser humano, enquanto ser social e natural, em primeiro lugar.

Importa destacar que a propriedade privada, a indústria e mesmo a divisão do trabalho, enquanto estruturas de alienação hu- mana, não são as causas do isolamento do homem, mas, sim, as conseqüências da luta do homem contra o homem, da falta de consciência social do homem. Elas próprias também só são possí- veis como expressões da natureza social do homem. Segundo Marx, a tomada de consciência deste caráter social passaria por di- versas formas, em que a proposta de divisão da propriedade priva- da aparece como sendo uma primeira forma de indignação, em re- lação a esta ordem. A verdadeira transformação apenas ocorreria quando o homem, no seu dia a dia de ser natural, sentir-se-ia dono de sua própria história e senhor dos processos desencadeados, pos- sibilitando a manifestação consciente e específica de cada ser hu- mano numa perspectiva humana sem precisar de intermediação al- guma. Até mesmo a crítica à religião ter-se-ia tornado desnecessá- ria, pois todas as manifestações humanas seriam percebidas apenas enquanto tal.

Por fim, gostaríamos de apontar a importância que as re- flexões de Hinkelammert e de Turcke parecem ter adquirido, neste contexto. As duas linhas adotadas pelos autores mostram um ponto comum. O fato de Turcke ter mostrado que o mito ainda se faz pre- sente na atual racionalidade ocidental, e Hinkelammert de que o cristianismo se tornou uma lógica sacrificial que se justificava e fa-

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zia-se reconhecer na promessa da eliminação do sacrifício e, que esta lógica foi secularizada no modo de produção capitalista, pare- cem ambas apontar para a submissão do homem a um fim não hu- mano. Estas duas lógicas sacrificiais quando unidas, ou seja, quan- do o cristianismo mancomunou-se com o Império, união que se aperfeiçoou durante toda Idade Média, surgiu esta abstrata e domi- nadora forma de organização social: o capitalismo. Seria, sem dú- vida, um tema interessantíssimo de pesquisa buscar entender como ocorreu esta fusão, como estes princípios abstratos, místicos e reli- giosos passaram a dominar toda uma forma de ser e de produzir. Ou, então, entender como o princípio do capital se tornou um prin- cípio independente e místico em vista do qual fazem-se inúmeros sacrifícios. O desprezo da natureza e a insensibilidade perante o so- frimento e a miséria humana parecem ser algumas conseqüências disto. Aparecem apenas como sacrifícios necessários. A Filosofia do Direito de Hegel e O capital de Marx se apresentam como obras que, de forma privilegiada, apresentam a forma de efetivação e le- gitimação de princípios autônomos, bem como os sacrifícios ne- cessários para sua efetivação e sua legitimação na sociedade mo- derna.

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Religião e capitalismo: uma reflexão a partir de Feuerbach e Marx

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