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Rostos, Olhares e Identidade

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Rostos, Olhares e Identidade é uma viagem ao interior da identidade da Comunidade Portuguesa de Montreal

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Título:

Rostos, Olhares e Identidade

Autores:

Manuel Carvalho

Joaquina Pires

Ilustração:

Philippe Béha

Editor:

Edição patrocinada por: Caixa Portuguesa Desjardins UTL- Universidade dos Tempos Livres Missão Portuguesa Santa Cruz

ISBN 978-2-9813189-5-4

Dépôt légal:

Bibliothèque nationale du Canada – 2013

Bibliothèque nationale du Québec – 2013

Reservados todos os direitos de edição e tradução

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Montreal - 2013

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ÍNDICE

7 Prefácio

9 A busca da identidade

11 Carta à minha filha

17 Álvaro Godinho

27 Annabell Pereira

35 Tiago Gonçalves

43 Frederico Fonseca

53 Victor Faria

61 Manuela Grilo

69 Rosa Abreu

77 Ludmila Aguiar

85 Paula de Vasconcelos

95 Nisa Remígio

105 Ricardo Poupada

115 Maria de Andrade

125 Emanuel Linhares

137 Daniel André

145 Glenn Castanheira

153 Carta aos meus filhos

157 Os filhos do sonho

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AOS VINDOUROS

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Chamam-lhe a geração-ponte. Cresceram repartidos entre dois

mundos aparentemente tão díspares. Ferve-lhes no sangue tumultuoso legado de valores, crenças, rituais, tradições, costumes e, sobretudo, trazem cunhada na alma a marca indelével da língua portuguesa. Brilha-lhes no olhar o fascínio de novos horizontes, perspectivas e aspirações, densa trama com que o novo mundo cedo os enredou e aliciou. Como foi possível navegarem, sem grandes sobressaltos, neste

mar encrespado por correntes e ventos tão contraditórios e alcançarem

o porto de abrigo duma integração harmoniosa?

Neste ramalhete de histórias de vida, que pretendeu abranger

um universo o mais amplo e diversificado possível, foi nosso principal

objectivo rasgar uma janela que nos permita avivar contornos,

compreender a forma como se processou a sua inserção na sociedade

de acolhimento e, sobretudo, na medida do possível, acompanhar a sua

trajectória identitária.

Alguns dos entrevistados, situados na charneira entre a 2ª e a 3ª

geração, com um olhar diferente do rumo a seguir, dão um contributo

importante para nos ajudar a caracterizar a evolução identitária dos seus

progenitores e, simultâneamente, a vislumbrar a emergência de novas

dinâmicas transformadoras da Comunidade.

O texto final, intitulado “Os filhos do sonho”, é um tributo a todos

os luso-descendentes que, pela cidade fora, sem alaridos, vão tecendo

as malhas dos amanhãs imprevisíveis mas sempre fascinantes.

As duas cartas que também juntamos, dirigidas aos filhos dos

autores deste trabalho, são, de certa forma, o reflexo das nossas

preocupações mais profundas quanto ao futuro sociocultural que espera

as gerações vindouras e revelam incontida torrente de emoções e

afectos que transborda muito para além do estreito leito das palavras.

Entrevistas realizadas segundo uma ideia original de Joaquina Pires e Manuel Carvalho

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Prefácio

Joaquim Eusébio

Em Maio de 1953 chegava ao Canadá o primeiro grupo de emigrantes portugueses. Visando comemorar esse acontecimento histórico, o presente livro dá-nos um retrato do que vai na alma das gerações que se seguiram a essa primeira leva. A palavra identidade é, sem dúvida, a que mais se repete ao longo desta obra. Uma comunidade que procura as raízes da sua essência, o que a une ainda, passados que foram 60 anos da chegada desse primeiro contingente de emigrantes. Eles deixa-vam um país mergulhado na penúria económica, na ditadura política, numa sociedade profundamente injusta. Na ''mala de cartão'' pouco traziam, mas na sua memória vinha uma cultura muito diferente daquela que vieram aqui encontrar. Com o tempo, tudo se foi transformando. A sociedade do Quebeque foi sofrendo inegáveis transformações e a pouco e pouco foram-se construindo os dias de hoje. Mas do outro lado do Atlântico, o Portugal de hoje é, ele próprio, muitíssimo diferente daquele que teimosamente foi permanecendo na mente dos nossos emigrantes. Com maior ou menor dificuldade, a adaptação aos novos valores do Quebeque foi-se fazendo. Os filhos foram por aqui nascendo, criados num meio que procurava, naturalmente, integrá-los na nova sociedade de acolhimento. O conflito inter-geracional, existente em todas as sociedades, assume uma particular fisionomia no seio duma comunidade emigrante, como sobressai frequentemente das palavras dos entrevistados. Os valores que são postos em questão pelas novas gerações não correspondem aos que os seus pais defenderam e o diálogo nem

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sempre é fácil. Se juntarmos a tudo isso a barreira das línguas, compreenderemos que o quadro apresentado levanta sérias dúvidas sobre o futuro da Comunidade. E no entanto a esperança relativamente a esse futuro existe em todos os depoimentos. Todos os entrevistados ultrapassaram a fase da ''vergonha de ser português'' para se afirmarem ''orgulhosos das suas raízes''. Um orgulho que se evidencia no facto de dominarem uma das línguas mais faladas no mundo, de estarem ligados a uma cultura e a uma história multiseculares. A maioria dos interlocutores sente que não basta sentir orgulho na vitória da selecção das quinas ou no gosto especial do nosso frango assado. Que é necessário ir bem mais longe, no renovar das nossas associações, no criar de estruturas de assistência e de cultura que valorizem uma comunidade que apresenta em si muitas divergências e fracturas, numa parti-cipação social, económica, cultural e política mais activa na sociedade em que estão integrados. Que urge que as novas gerações de lusodescendentes prossigam o sonho dos seus progenitores, adaptando as estruturas existentes aos novos desafios, sob pena que dentro de algumas décadas elas sosso-brem com o desaparecimento dos seus fundadores. A trans-formação parece ser a palavra de ordem aqui deixada. Outras comunidades atravessaram o mesmo problema e souberam adaptar-se. Haverá então que colher a sua experiência e evitar os erros que tenham cometido. Haverá pois que unir boas vontades, aglutinar a juventude a esse esforço colectivo e, sobretudo, procurar o que nos une e afastar tudo o que nos possa separar. Para que, dentro de 60 anos, seja possível comemorar com o mesmo orgulho o evento que ora se comemora.

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A busca da identidade

Para alguns, com uma percepção objectiva, a identidade

cultural de um indivíduo ou grupo define-se a partir de um conjunto de critérios determinantes: a origem comum, a língua, a cultura, a religião, a psicologia colectiva, a ligação a um território, e sem estes critérios não se pode reivindicar uma identidade cultural autêntica. Para outros, com uma percepção subjectiva, a identidade

etnocultural não é mais do que um sentimento de pertença ou

uma identificação com uma colectividade mais ou menos ima-

ginária.

Para muitos ainda, com uma percepção mais ampla, a

identidade de cada indivíduo não se restringe ou circunscreve à

identificação com um grupo determinado mas é também o

somatório de todas as pertenças adquiridas ao longo da

existência e está em constante construção e transformação.

Há os que vão mais longe, convictos de que resultante

deste somatório emergirá, finalmente, o reconhecimento da per-

tença à comunidade humana até ao ponto de esta se tornar, num

futuro próximo, a matriz unificadora de todos nós, cidadãos da

mesma pátria, a Terra, sem, contudo, excluir ou marginalizar as

nossas múltiplas e preciosas pertenças particulares.

Recorrentemente, será inevitável que a abordagem desta

temática tão controversa traga a terreiro o eterno confronto entre

os velhos deuses e demónios do melting pot, da assimilação, do

multiculturalismo, do interculturalismo, do gueto e da tribo.

Por que caminhos da vida enveredou a 2ª geração de ori-

gem portuguesa de Montreal? Que padrões de comportamento a

caracterizam e definem? Existirá um fio condutor comum que nos

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possa guiar e dar coesão a este trabalho ou estaremos na

presença de uma dispersão de percursos incompatível com

qualquer sistematização?

É a resposta a estas interrogações que tentaremos

cristalizar no cadinho dos depoimentos que aqui apresentamos

sem grandes pretensões metodológicas.

Múltiplas pistas e indicadores que, se outros atributos não

tiverem, ficarão, como marcos ao longo da estrada, para refe-

rência de futuras pesquisas que, inevitavelmente, acabarão por

surgir, mais abrangentes e de mais apurado rigor académico.

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Carta à minha filha

As raízes da identidade

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Carta escrita a 13 de Maio de 2013, em Montreal

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Paula, minha filha

Ainda hoje, passadas mais de três décadas, me debato com algumas dúvidas sobre a justeza da decisão de te ter arrancado à beleza da cidade de Lisboa e de te ter transplantado, abruptamente, para um mundo tão distante e diferente daquele onde nasceste. O meu receio mais intenso e angustiante, confesso-te agora, sempre foi que as tuas raízes mais autênticas e vitais definhassem, corroídas por maleitas identitárias, ao alastrarem por novos húmus para os quais talvez não estivessem preparadas. Sabes bem que Portugal nunca deixou de estar incrustado no meu espírito, no decorrer da minha errância por este mundo além. Adivinho, sinto a sua presença constante no pulsar da carne, no sussurro da memória, nos sobressaltos dos sentidos, no latejar das emoções, na voz da alma. Basta um sinal para que Portugal, como um deus omnipresente, como um génio da lâmpada, desperte e invada as mais recônditas fibras do meu corpo sempre pronto para ser lavrado e semeado pelas forças telúricas que tutelam a minha existência. Também a língua portuguesa faz parte da minha idossin- crasia, é, estou certo, o elemento mais importante da minha estrutura cultural e portanto da minha identidade global. Não obstante, pragmático como sou, tenho a consciência de que a grande parte dos luso-descendentes, espalhados pelo mundo, e Montreal não é uma excepção, atraídos pelo canto de outras sereias, não partilham esta caterva de emoções. Para a grande maioria, Portugal circunscreve-se a um espaço afectivo, parcela, entre muitas outras, da sua identidade já miscigenada e acrescida por novos componentes. Resume-se, frequentemente, às praias nas férias, às malassadas nas festas da Comunidade, ao arroz doce da mãe, nas reuniões de família, às proezas futebolistas da selecção. E pouco mais, é forçoso reconhecer.

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. Muito longe do que significa para mim, a língua portuguesa é, sobretudo, para eles, a escada, sempre ali à mão, tão útil para transpor os muros da comunicação com os pais, com a geração mais velha da Comunidade, com os familiares que ficaram em Portugal e, em alguns casos, uma ferramenta vantajosa de promoção profissional. Nunca me resignei a que esta inevitabilidade te submergisse irremediavelmente. As artimanhas que eu não utilizei para atingir os meus objectivos! Desde a chegar a pagar-te um soldo para continuares a frequentar a escola portuguesa dos sábados, quando te sentia desfalecer e prestes a desistir. As viagens periódicas a Portugal visavam, essencialmente, o mesmo objectivo. O encorajamento para que te integrasses num grupo folclórico da Comunidade, para além de te proporcionar uma actividade lúdica, também estava imbuído pelo desejo de te manter imersa numa atmosfera de portugalidade. Enfim, múltiplos engodos e ardis que congeminava, dia após dia, para que Portugal e a língua portuguesa se te incrustassem na alma e te continuassem a pulsar no sangue. Mas mesmo que te exprimisses num português desenxovalhado e que regozijasses quando partíamos de férias para Portugal, eu estava sempre inseguro do sucesso dos meus propósitos. Os receios acumulavam-se à medida que o tempo passava e que a sociedade de acolhimento te ia, insidiosamente, envolvendo com os seus poderosos tentáculos assimiladores. Assim correram os anos, ao sabor dos caprichos deste mar de incertezas. A tranquilidade de espírito só surgiu, inesperadamente, quando te nasceram os filhos e que tu, com uma determinação férrea, que te brotou do fundo alma, insististe em falar português com eles lá em casa. Que orgulho o meu! Então quando, tal como eu fizera trinta anos atrás, decidiste e conseguiste convencê-los a frequentarem a escola portuguesa, todas as minhas dúvidas se dissiparam para sempre. O meu esforço não fora em vão, via, preto no branco, justificadas e premiadas todas as minhas canseiras de tantos anos. Como se isso não bastasse, a prova real do pleno sucesso do meu estratagema tive-a ao ler a entrevista que recentemente deste a um jornal da Comunidade. Quando te perguntaram qual era a tua melhor recordação da infância, prontamente respondeste que era “andar pelas muralhas de Miranda do Douro, a terra dos meus pais.” E ao definires o que é viver imigrada,

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também não hesitaste: ”Pela minha parte não escolhi mas é um privilégio ter dois países com os quais me posso identificar.” Confesso-te que fiquei regalado com estas revelações que iam tão ao encontro das minhas convicções mais profundas e que, afinal, não obstante as minhas apreensões, soubera transmitir-te. Mesmo que por vezes aturdido neste oceano de materialismo desmedido, nunca deixei de acreditar que para se alcançar a serenidade e a felicidade, mais importante do que a ânsia de acumular bens materiais, tantas vezes supérfluos e fonte de insatisfação, é primordial ter sabedoria para usufruir do imenso património imaterial que herdámos à nascença. Nunca perdendo de vista que, para além de inestimável dádiva que nos é concedido usufruir, também é um tesouro pertença de toda a humanidade, pelo que temos a obrigação moral de o salvaguardar e transmitir, intacto e melhorado se possível, aos vindouros. Prestes a rematar esta carta, invade-me, subitamente, uma enorme esperança de que a Comunidade Portuguesa de Montreal, não obstante os escolhos com que irá deparar e os cantos das sereias assimiladoras a que está exposta, terá artes para tornear obstáculos e rasgar, corajosamente, os caminhos do futuro. Com espírito largo, sem receio de contaminar e ser contaminada, aberta à diversidade e à transformação, cultivando, com desvelos de jardineiro, a tolerância, a coexistência e a integração dos valores alheios. Afinal, atributos que sempre caracterizaram o povo português, na sua peregrinação por outras terras e que fizeram de nós um exemplo de miscigenação e de difusão dos valores humanistas. Não te maço mais com estas filosofadas, que tantas vezes tiveste de suportar, mas que, verifico agora, não caíram em saco roto e conseguiram levar a água ao meu moinho. Concluindo, reconhece, a teimosia, quando bem intencionada, nem sempre é um defeito e também pode frutificar em generosas colheitas. Beijos do teu pai, Manuel

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Álvaro Godinho

A busca do paraíso da portugalidade

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Entrevista realizada a 1 de Dezembro de 2012, em Montreal

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Enrosca o cachecol negro à volta do pescoço e enterra o

boné na cabeça onde os cabelos já raream. Passa a mão pela barba que está a deixar crescer e onde já despontam alguns fios brancos. «Estou a ficar velho.» Ri, divertido. Tem um olhar perspicaz, intenso, uma voz cheia, modulada, um português fluente, com ligeiras hesitações na escolha das palavras por vezes emperradas pela falta de uso. Talvez uma certa teatralidade nos gestos. «Vamos lá a isto.» Pelos preâmbulos, desconfiamos que esta conversa vai ser longa, por isso será melhor avançar: «O meu nome é Álvaro Godinho, mas na terra todos me conhecem por Caneta. Tenho 44 anos. Nasci em Portugal, na Ilha Terceira, nos Açores. Emigrei para o Canadá em Novembro de 1972, com os meus pais e com o meu irmão mais moço que tinha na altura 9 meses.» A criança de 4 anos de idade aterrou em Montreal atónita, repartida entre a pungência da partida e o assombro da chegada. «Lembro-me da chegada mas ainda mais da partida. Lembro-me daquele drama de deixar a casa, da minha avó paterna, dos familiares, dos vizinhos a dizerem adeus, tudo a chorar. Tínhamos um cão chamado Ligeiro que tivemos de abandonar, que ficou com a minha avó. Naquele tempo era uma emigração para nunca mais voltar. O açoriano emigra e nunca mais regressa. O continental tem sempre o plano de regressar ao fim de cinco, dez anos, mas o açoriano vai-se embora a sério, é para sempre. Quando cheguei aqui tinha a minha avó e a minha família materna à espera. E havia neve. Nós nunca tínhamos visto neve. Saí de Portugal vestido com umas calças, uma camisa, já não me lembro bem, e aqui foi logo o casaco e as botas da neve.» Depois de alguns anos tranquilos a morar no apartamento da avó, a família instalou-se no Bairro Português. «Evidentemente, fui frequentar a escola inglesa. Os meus pais, como então todos os emigrantes açorianos, emigravam para o Canadá, para a América. Montreal, Québec, não lhes diziam

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nada, portanto, para eles o Canadá era todo inglês e, naturalmente, fui para uma escola inglesa, para a St. Patrick. Com o apoio da minha família materna que já cá estava instalada há mais tempo, a adaptação dos meus pais foi relativamente fácil. O meu pai trabalhou nos primeiros tempos num hotel e, de seguida, foi fazer um curso de francês integrado num programa para emigrantes. Depois foi trabalhar na restauração e mais tarde acabou por comprar uns restaurantes de fast-food onde fez toda a sua carreira profissional até se reformar. A minha mãe trabalhou algum tempo e quando a minha avó adoeceu, como era filha única, ficou em casa a tratar dela. Claro que no princípio, em casa, só se falava português e quando cheguei à escola St. Patrick, como havia muitos alunos portugueses, não me foi difícil a adaptação. Além disso, sabem como é, os putos não precisam de falar a mesma língua para brincarem juntos. Eu lembro-me de um dia chegar a casa e dizer: eu já sei falar inglês, a minha professora disse-me go put the banana peel in the garbage can. Nunca mais me esqueci que a primeira palavra inglesa que aprendi foi peel. Enquanto vivemos no Bairro Português, tudo era fácil, brincava-se em português, ria-se em português e chorava-se em português mas o que me ficou gravado para sempre foram os cheiros. Aos domingos, aquele cheiro das sardinhas assadas e do frango no churrasco invadia tudo, ficou-me para sempre na memória. Aquele ambiente de aldeia também era reconfortante, faltava o açúcar ia-se à casa da Rosa, falta a farinha ia-se a casa da Maria, as pessoas ajudavam-se umas às outras. Quando o meu pai instalou o cabo, juntavam-se duas ou três famílias na nossa casa para ver a telenovela. Ainda me lembro que era a “Escrava Isaura”. Eu acho que agora o Bairro já perdeu esse encanto.» No ensino secundário a atmosfera protectora não se alterou, o mesmo bairro, as mesmas crianças de origem portuguesa. «Só quando fui para a escola William-Hingston é que tudo foi diferente, já havia uma maior concentração de outras etnias, havia gregos, italianos, espanhóis, franceses, ingleses, judeus. Então aí é que eu me apercebi que o resto de Montreal não vivia como nós os portugueses, que havia grandes diferenças. Não falavam todos a mesma língua, não comiam todos a mesma coisa, não eram todos católicos. Compreendi, então, que havia outro mundo, muito diferente do meu, fora da Comunidade

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Portuguesa.» A crise identitária, a “vergonha de ser português”, tão comum aos jovens de origem portuguesa da época, vergastou-o por volta dos quinze, dezasseis anos. «Para os nossos colegas de outras etnias, os portugueses falavam um brasileiro mal falado, comiam sardinhas e bacalhau, ouviam o malhão-malhão e pouco mais do que isso. Portugal era um país pobre e atrasado, cheguei a sentir-me tudo menos português, essa vergonha durou uns bons anos.» Foi por esses tempos confusos que começou a apresentar-se como o Al Godin. Mas, certo dia, fustigou-o a chicotada duma professora judia, numa aula de artes plásticas do 9º ano: O valor duma pessoa ou duma nação não se mede pela riqueza, nem pelo poder, mas sim pela cultura e pela arte. Nunca mais se libertou da rede dessas palavras que começaram, tranquilamente, a germinar-lhe no peito. «Quando fui para o Collège Dawson, mais velho e com outra visão, comecei a fazer-me perguntas: Quem sou eu? De onde venho? Para onde vou? Com o tempo descobri que a cultura portuguesa era muito mais do que o dia de Camões, o 10 de Junho, os Santos Populares, o malhão-malhão, as sardinhas, as procissões e as missas ao domingo. Comecei a pesquisar, a passar mais tempo na biblioteca, a falar com pessoas.» A descoberta inesperada dos tesouros da cultura portuguesa deslumbrou-o e o orgulho de se reconhecer português lavrou terrenos virgens, transfigurou a visão do mundo e da vida. Quando ingressou na Universidade Concórdia, onde fez um mestrado em biologia, já era um jovem muito mais maduro e com horizontes mais abrangentes. Reaproximou-se da Comunidade Portuguesa, envolveu-se nas actividades das colectividades que começavam a proliferar. Na Associação do Espírito Santo de Hochelaga participou em quase tudo, em peças de teatro, marchas, danças de carnaval, foi um dos fundadores do Rancho Folclórico da Ilha Terceira; pertenceu também à direcção da Filarmónica Portuguesa de Montreal e a outros organismos sociais e culturais. Quase sem se aperceber da transformação, um belo dia deixou tombar, para sempre, o aculturado Al Godin e reconciliou-se, sem alardes nem trombetas, com o, durante anos, desprezado Álvaro Godinho «Foi uma fase interessante, aos 17 anos, como a família foi viver para a Rive-Sud, os amigos da escola e os vizinhos com

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quem saía eram quase todos canadianos, francófonos e anglófonos. Na Associação e na Filarmónica tinha também o grupo de portugueses com quem convivia. Foi na Associação que conheci a minha mulher, a Helena, também natural da Terceira.» Quando concluiu o curso, a vida seguiu a sua marcha normal, casou, ocupou diferentes cargos profissionais em algumas empresas e presentemente é director de um laboratório de alimentos exóticos provenientes de diferentes países. Naturalmente, a Comunidade Portuguesa deixou de ser uma prioridade no seu horizonte. Olha-nos direito nos olhos para derrubar restos de dúvidas que teimem em persistir e para reforçar a convicção do que iria afirmar: «Tenho dois filhos, o Cedrick, de doze anos e o Devan, de nove. Como vivemos em Saint Hubert, não vão à escola portuguesa e falam mal o português. Mas são muito curiosos, gostam de ler, de ver filmes, interessam-se por tudo o que se relacione com Portugal. Gostam de touradas, de futebol, de sardinhas, de chouriços, na escola identificam-se como “des portugais”. Ainda há duas semanas estive na escola deles e o professor perguntou-me se estávamos aqui há pouco tempo tal era o amor com que eles falavam de Portugal. O ano passado passámos um mês nos Açores e o mais pequeno não queria regressar a Montreal, queria comprar uma casa, queria comprar terras, animais, nunca vi um entusiasmo assim. Cada um deles tem orgulhosamente a bandeira portuguesa no quarto, é uma coisa impressionante.» Sorri, embevecido. Talvez esteja a pensar que qualquer dia, inevitavelmente, ouvirá da boca dos filhos o pedido que ele próprio fez, aos doze anos: «Fui de férias à Terceira e tive muitas dificuldades em comunicar com a família, senti-me mal. No regresso, pedi aos meus pais para me inscreverem na escola portuguesa, que frequentei durante quatro anos.» Perguntamos-lhe que língua se fala em casa. Sorri, morde os lábios, encalacrado. A confissão incómoda sai retardada, a custo: «Francês e inglês.» Mas logo se justifica:«Porquê? Porque é mais fácil. Quantas vezes decidimos: a partir de hoje só se vai falar português cá em casa. Quantas vezes! Mas eu próprio é que acabo sempre por quebrar o compromisso: Stop, Cedrick! Devan, come here! No trabalho nunca falo português. Com a minha

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esposa habituámo-nos, desde namorados, a falar inglês ou francês um com o outro. Mas quando estou estou zangado, gosto de meter uma palavrinha ou outra em português, daquelas mais pesadas, tem mais impacto.» É uma constatação que o diverte. Solta uma gargalhada, como faz amiúde, nos meandros da conversa. «Não há nada a fazer para remediar o caso», confessa, com um brilho bem humorado nos olhos. Mas, subitamente, uma onda de gravidade alastra-lhe pelo rosto. As palavras soltam-se medidas e reflectidas. «Isto é assim, a meu ver, ser português não é só falar a língua, há mais do que isso. Quando estivemos em Portugal, na Terceira, insisti com os meus filhos para que descobrissem a alma portuguesa. Fomos a touradas à corda, fomos à igreja onde os avós se casaram, onde a mãe foi baptizada, fomos a cemitérios, fomos a museus, para eles verem de onde é que vêm. Expliquei-lhes que têm um passado no sangue e se não compreendem de onde é que vêm, não podem saber para onde é que vão. Queria que os meus filhos realizassem que a nossa religião não é só andar com uma velinha na mão nas procissões. Os terceirences são muito devotos ao Espírito Santo. Mas o que é isso significa, é só andar com uma coroa na cabeça, nos dias de festa, e acabou? Há muito mais por detrás, há um sentido oculto que eu queria que eles descobrissem.» Fazemos um compasso de espera para discorrer sobre as festas da Comunidade, sublinhar as dificuldades que a 1ª geração, nos primeiros tempo absorvida com a árdua luta da sobrevivência quotidiana, e também por impreparação, encontrou para transmitir aos filhos os valores da cultura portuguesa que fossem além do trivial. «Hoje tudo está mudado, há muitos casamentos mistos. E por as crianças não falarem português, não deixam de ser também portuguesas. É preciso encontrar novos caminhos. Foi isto, este desejo de ajudar nesta transformação, que me reaproximou da Comunidade, que me decidiu a ser catequista na Missão Santa Cruz. Falo com as crianças em português mas também em francês e em inglês, esta é a nova realidade da Comunidade Portuguesa. Por sua vez, estas crianças irão casar com muçulmanos, com judeus, com jovens de outras religiões, de outras raças. Há muita gente que não compreende isto. O que é que vai ser da Comunidade Portuguesa? Irá acabar?» As perguntas ficam a pairar no ar, eloquentes,

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ameaçadoras, emudecem-nos, sem respostas imediatas à vista. «Os mais velhos, que trabalharam tão arduamente, que fizeram a Comunidade, não querem abrir mão do que construíram, não aceitam mudanças, têm dificuldade em passar o testemunho, têm medo de verem a sua obra destruida. E os mais novos desculpam-se com isso para se afastarem e não participarem. Só há uma solução para modificar esta situação: mudar, adaptarmo-nos à nova realidade, ao novo mundo. Aqui há uns tempos estive na Califórnia, em Artisa. Fiquei maravilhado com o clube que os portugueses lá têm. É incrível! Sala de recepções dum lado, igreja do outro, praça de touradas, eu sei lá. Têm cerca de 1500 sócios, numa Comunidade de pouco mais de 5000 pessoas. O presidente do clube tem vinte e tal anos e já não fala uma palavra em português. A maioria dos sócios também não fala português e as tradições já não têm nada a ver com o que eram antigamente. Os festejos do Espírito Santo são completamente diferentes dos que temos nos Açores ou aqui mesmo em Montreal. Mas o entusiasmo e o orgulho de serem portugueses continua o mesmo, intacto, apesar das transformações. O que eu quero dizer é que a portugalidade poderá continuar mas não passa necessariamente só pela língua e pelos rituais mais visíveis das cerimónias religiosas. É esse o grande desafio, há outros valores culturais, tanto ou mais importantes, que nos definem e que merecem e devem ser acarinhados e divulgados se queremos que a Comunidade não desapareça.» Há quem diga que ser português é um “estado de alma impregnado profundamente no imaginário colectivo”. Será desta memória genética e do seu significado mais profundo que o nosso entrevistado estará a falar? Fica absorto, em reflexão, a digerir o miolo da conversação. «O que eu estou sempre a relembrar aos meus filhos é que tudo tem um significado, por vezes oculto, e que é preciso compreendê-lo. Dou um exemplo: No Raminho, na Terceira, fazem uma procissão votiva que se chama a Procissão dos Abalos. As pessoas saem de casa, com a roupa de trabalho as seis horas da manhã e vão em procissão pelo freguesia. Isto porque em 1867, houve uns enormes tremores de terra e as pessoas, de geração em geração, nunca mais se esqueceram desse terrível acontecimento. Apavoradas, foram à igreja, pegaram na imagem do Senhor dos Passos e nas insígnias do Espírito Santo e fugiram para as ruas da freguesia, a pedir misericórdia. Hoje faz parte da

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minha cultura, da cultura da minha aldeia e da Terceira. É esta cultura que não podemos deixar morrer e teremos de ser capazes de transmitir aos nossos filhos aquilo que está por detrás da cortina. Mais um exemplo simples: no folclore, aquelas danças, aquelas músicas, aqueles trajes, são muito interessantes mas é preciso ir mais longe. É preciso explicar às gerações mais novas qual é a razão daquilo tudo. E no dia em que eles compreenderem terão, por sua vez, a vontade de transmitir esse conhecimento às futuras gerações. Porque aquilo é uma parte deles mesmos, é o que eles são. Temos uma Comunidade muito rica, muito variada, mas é a cola da memória colectiva que nos faz falta para juntar as peças soltas. Vou acabar com esta imagem mais expressiva: temos a farinha, temos a água que está a correr na ribeira mas é preciso ir buscá-la e amassar tudo, bem amassado, para fabricar o pão. Seremos capazes?» Os olhos luzem, mais abertos, visionários, e, enquanto observo o fogo que lhe lavra o rosto, acode-me ao espírito que este homem expedito e loquaz, condensa em si todos os paradigmas que caracterizam a 2ª geração portuguesa em Montreal. Os ingredientes estão lá todos: a angústia da partida e da chegada, o amor e o desamor, os conflitos intergeracionais, os desencontros e as reaproximações, as dúvidas e as certezas, a vergonha e o orgulho, os traumas identitários, e, fulcral, numa densa trama de afectos e emoções, uma enternecedora e incessante busca do paraíso da portugalidade. O escritor Álamo Oliveira, na dedicatória de um livro que lhe ofereceu, definiu esta busca de forma magistral: o Álvaro é alguém que anda com a sua ilha ao colo como se ela fosse uma filha. «Eu acho que isto representa o meu ser português.» reconhece, comovido, o nosso interlocutor.

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Annabell Pereira

Um sorriso de esperança à janela da vida

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Entrevista realizada a 5 de Dezembro de 2012, em Montreal

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Busca-se por aí, freneticamente, a serenidade na consulta

de intrincados cartapácios filosóficos ou em emaranhados exercícios transcendentais quando, geralmente, ela está muito mais acessível, à mão de semear, na simplicidade da entrega espiritual. Mal começamos a conversar com Annabell Pereira, ao contemplar o limpidez do seu olhar, é este o primeiro pensamento que, como uma onda que vem calmamente beijar a fímbria da areia da praia, nos aflora o espírito. «Chamo-me Annabell Pereira, mas na Comunidade todos me conhecem por Anabela.» diz-nos, numa voz melodiosa.«Nasci em 1967, em Montreal, mas sempre me considerei portuguesa, mesmo tendo nascido aqui.» Feitas as apresentações, encolhe os ombros, como que a pedir desculpa de não ter grandes feitos para contar. Também há, por ali à solta, um sorriso simples e apaziguante que nunca se dilui completamente. «Os meus pais emigraram para o Canadá, a minha mãe em 1958 e o meu pai em 1961. Tinham casado civilmente em Portugal mas casaram pela igreja aqui em Montreal, no dia em que o meu pai chegou, no 1o de Fevereiro, na Catedral Nôtre-Dame. A minha mãe é de uma terra pequena, Telhados Grandes, Serra de Santo António, e o meu pai é da Louriçeira, Alcanena. Tenho uma irmã, cinco anos mais velha do que eu e um irmão nove anos mais novo. Fui à escola inglesa mas de portas da casa para dentro sempre fomos criados em português, a língua, os costumes, as tradições, os valores, tudo era português. Para a minha mãe, que veio com os irmãos, a adaptação foi um pouco difícil mas depois, quando o meu pai chegou, as coisas mudaram. Alugaram uma casa aqui no Bairro Português e, pronto, a vida seguiu em frente. O meu pai era pintor da construção civil em Portugal mas quando cá chegou fez outras coisas, , como muitos portugueses na altura, trabalhou na empresa Five Roses, na distribuição da

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farinha para as padarias e pastelarias, até que, finalmente, encontrou trabalho na sua profissão. A minha mãe era costureira e continua a sê-lo, agora para os filhos e para os netos, quando precisamos. Trabalhou em fábricas de roupa, o seu primeiro trabalho foi fazer gravatas e ganhava 25 cêntimos à hora, mais tarde foi para a confecção de roupa de senhora, ganhava à peça, era empreiteira, como diziam. Os meus pais vinham de famílias muito pobres, muito modestas e lá em casa guardaram-se sempre as tradições e os costumes antigos. De semana era trabalho, escola, casa. Aos sábados era a escola portuguesa e a catequese, nos domingos de manhã íamos sempre à missa, como se fazia lá na terra. Os domingos à tarde eram para passear, pela montanha, pelos outros bairros, o meu pai gostava muito de ver casas, ainda hoje me recordo disso. Enquanto fui pequena, ficava durante o dia em casa duma senhora portuguesa que, como acontecia muito então, guardava crianças. Nunca mais a esqueci porque tinha um cão preto, muito grande, de que eu gostava muito. Quando o meu irmão nasceu, a minha mãe ficou em casa e passou, por sua vez, a tomar conta de crianças, chegou a ter sete ou oito à sua guarda.» Recorda, com uma ponta de nostalgia, o porto de abrigo que era o Bairro Português da época, de certa forma a transplantação da vida tranquila das aldeias deixadas para trás. «No Bairro era quase tudo gente portuguesa, entretanto a minha mãe fez cartas de chamada para as minhas tias e vivíamos todos perto uns dos outros. Havia uma mercearia logo ali na esquina, não andávamos em transportes públicos, era tudo pertinho, até para a escola íamos a pé. Frequentei a Our Lady of Montreal School, onde é agora o Centro da Missão Portuguesa. Mais tarde, no secundário, a D’Arcy McGee, ali na Pine, e também não era longe. Não tenho a lembrança que a transição de uma escola para a outra fosse muito chocante. Na D’Arcy McGee também éramos quase todos filhos de imigrantes, tínhamos vários pontos em comum. Mesmo que fossem gregos, italianos, também havia muitos portugueses, e o facto da família ser um valor comum a todos, isso facilitou o convívio.» Continua a falar com a tranquilidade dum rio a correr nas lezírias, sem tumultos, ao encontro, inevitável, da foz e da comunhão com a imensidão do mar.

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«O meu pai trabalhava muito, de dia estava no emprego, à noite fazia biscates, era raro estar em casa, hoje admite que tem pena de não ter passado mais serões com a família. A minha mãe também tinha uma vida muito pesada, nesse tempo as mulheres faziam tudo em casa, não foi fácil para ela. Apesar de tudo, o meu pai tinha muita vontade de aprender e recordo-me que uma das primeiras coisas que ele comprou foi uma televisão para aprender inglês. Já a minha mãe, como trabalhava todo o dia numa fábrica onde só se falava português e à noite nem tinha tempo para ver televisão, teve mais dificuldades nesse aspecto.» O Québec atravessava na época a famosa révolution tranquille que pôs em causa toda a estrutura da sociedade, o que era mais uma fonte de inquietação para os imigrantes portugueses que receavam pela estabilidade da malha familiar que se apoiava em valores conservadores trazidos de Portugal. «Os meus pais nem queriam ouvir falar em nós sairmos à noite, principalmente se no grupo havia algum rapaz. Foi muito difícil, principalmente para a minha irmã. Eu preferia nem pedir, já sabendo de antemão que os meus pais iriam recusar. Hoje compreendo-os porque para eles era tudo novo, tudo diferente, tinham medo do que nos pudesse acontecer. Mas como ia à escola portuguesa e comecei muito nova a participar na catequese, foram actividades que me ajudaram muito, sentia-me muito valorizada. Foi também quando chegou o padre José Manuel, havia um grande movimento não só da catequese mas também do grupo de jovens. Dizia que ia para a igreja e os meus pais ficavam tranquilos, foi a melhor coisa que me podia ter acontecido, porque permitiu-me sair, conviver e evitar conflitos.» Mas nem tudo eram interdições, recorda, com saudades, os animados bailes dos domingos à tarde, no Clube Portugal de Montreal, que não fugiam ao figurino tradicional trazido de Portugal: as mães a vigiar, as raparigas sentadas à espera que os rapazes as fossem convidar para dançar. «Era muito giro, aí começaram muitos namoros e fizeram-se muitos casamentos», sublinha, com um sorriso. A família fazia férias frequentes em Portugal e as recordações desse tempo ainda estão muito vivas. O bucolismo da aldeia e aquele viver rente à natureza encantaram-na. «Quando falo nisso as lágrimas vêem-me sempre aos olhos. Sentia-me muito feliz. Ainda hoje o meu jardim, aqui em

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Montreal, simboliza o jardim da minha avó, inconscientemente escolho sardinheiras vermelhas e brincos de princesa que era o que ela lá tinha sempre. Fui a Portugal este ano e ainda me recordava daqueles caminhos de pedra, acho que foi o melhor tempo da minha infância. Penso que o que me encantava era aquela liberdade, andava pela aldeia, ia a casa das vizinhas, falava com toda a gente, aqui no Canadá a vida era mais fechada, talvez por causa da neve, do clima. Mas do que eu mais gostava era de me aproximar dos meus avós, conhecê-los melhor, fazia muitas perguntas, recordo sempre os serões à noite, à lareira, a debulhar feijão com a minha avó, enquanto conversávamos.» Correram os anos, terminou um curso de “gestão de comércio” no Collège Dawson, e encontrou emprego na reputada cadeia de joalharia Henry Birks, onde descobriu a sua verdadeira vocação na área dos recursos humanos. Por lá permaneceu vários anos até que a grave situação financeira da empresa a obrigou a procurar novo rumo. «O meu pai sempre sonhou estabelecer-se com um comércio no Bairro Português. Finalmente, acabou por montar a pastelaria Les Anges Gourmets e praticamente toda a família foi trabalhar para lá. Foi uma experiência muito interessante.» Através de família amiga, conheceu o actual marido, que chegou a Montreal em 1983, e que cedo procurou envolver nas actividades do grupo de jovens da Missão. «Quando o Mário chegou, a época já era outra e já era obrigatório os novos imigrantes irem para a escola francesa. Só mais tarde é que aprendeu o inglês. Porque sempre pensámos que era importante falar mais do que uma língua, os nossos filhos frequentaram uma escola bilingue e falam correctamente o inglês e o francês.» Depois do nascimento dos filhos, foram viver três anos para Dallas, no Texas onde o marido obteve um contrato como software developer. Guarda excelentes recordações desse tempo, principalmente do clima ameno. No regresso a Montreal, não esqueceu a Missão onde procurou injectar as ideias frescas que trazia. «Falei com o senhor padre José Maria e resolvemos criar o grupo dos Pirilampos que, enquanto os pais assistem à missa, recebe os mais pequeninos a quem pretendemos transmitir a mensagem litúrgica de forma cativante e assim dar-lhes a

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conhecer Jesus Cristo, fazendo com que eles se sintam bem acolhidos e que venham a missa com gosto». Com os filhos a frequentarem a escola portuguesa dos sábados, rapidamente se envolveu nas tarefas da comissão de pais. «O nosso objectivo foi criar actividades paralelas às aulas de forma a criar nas crianças o gosto de virem à escola e de aprenderem a língua portuguesa. Escolhemos, para os cativar, realizar actividades de que elas gostam como o Halloween, a festa do Natal e outras parecidas. Mais tarde, passei também a ocupar-me dos mais pequenos, o grupo infantil, por assim dizer, de que sou a educadora há quase cinco anos.» Foi interessante verificar que ao longo da conversa, embora nascida em Montreal, estava sempre a realçar a sua condição de portuguesa e o seu apego aos valores que os pais lhe transmitiram. «Sinto orgulho de pertencer a um povo trabalhador e com uma História tão rica. Os meus pais fizeram a sua vida toda aqui mas nunca se esqueceram das suas raízes. É este orgulho que eu pretendo transmitir aos meus filhos. A Katherine agora tem catorze anos e o Marc-Anthony doze, evidentemente que estão expostos ao mundo exterior, às línguas francesa e inglesa, a outros valores, é um grande desafio que temos pela frente. Mas chegámos a um compromisso de todos os dias, à hora do jantar, só falarmos português lá em casa e, até agora, temos conseguido manter o acordo.» Como resposta à pergunta sacramental de como vê o futuro da Comunidade, hesita, sem grandes certezas. «Cingindo-me à Missão, que eu conheço melhor, não vejo muitos jovens implicados. Já no meu tempo era diferente, havia muitas mais iniciativas. Ainda hoje estive a falar sobre as actividades da Conferência S. Vicente de Paulo e verifiquei que são só pessoas idosas envolvidas. Elas precisam de ajuda, por que não convidar os jovens a participar? Por exemplo, quando se vai a casa das pessoas necessitadas levar os cabazes de Natal, deviam ser também os jovens a colaborar, desta forma viam como é que a Comunidade vive, quais são os problemas que enfrenta. Seria uma maneira de os envolver mais na Missão e também de dar continuidade a esta grande obra.

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Eu tive a oportunidade de me implicar e de assim vencer as rebeldias da juventude, gostaria que hoje também assim fosse possível com os mais novos.» Pousa, demoradamente, o olhar nas mãos e quando nos volta a encarar, o sorriso continua lá, a enfeitar-lhe o rosto. Um sorriso de esperança, tranquilamente debruçado à janela da vida.

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Tiago Gonçalves

A tranquila dança da vida

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Entrevista realizada a 14 de Dezembro de 2012, em Montreal

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Combinámos encontrar-nos no Clube Portugal de

Montreal pela simples razão de ser lá que o nosso entrevistado se sente como peixe na água. As paredes, repletas de vozes e memórias, deste vetusto Clube viram-no crescer, fazer-se homem, transformar-se, gradualmente, num modelo para as dezenas de jovens do Grupo Folclórico Praias de Portugal que todas as sextas-feiras, ao serão, por ali espalham, a rodos, a sua esfuziante alegria de viver e dão alento ao aforismo de que a esperança é a última a morrer. Quem já assistiu aos ensaios do Grupo e observou a desenvoltura com que o Tiago põe aquela gente toda a mexer ao toque da sua varinha mágica, sai de lá muito mais optimista quanto ao futuro que espera a Comunidade. Não obstante a aparente timidez, quando arregaça as mangas, o Tiago é um rapaz determinado, tenaz, habituado a trabalhar em equipa, com um dom inestimável para se pôr na pele dos outros, que diz ser o segredo duma boa liderança. Nasceu na aldeia das Lapas, Torres Novas, em 1982, e chegou a Montreal aos sete anos de idade. Ainda agora traz nos olhos farrapos da infância impregnada dos encantos campestres e de braçados de afectos. «Lembro-me da natureza, do tempo em que jogava à bola com os meus amigos, na rua, por vezes falo aos meus pais de coisas que eles pensavam que eu já tinha esquecido mas que continuam presentes no meu coração. Guardo muitas recordações dos meus avós, principalmente os do lado do meu pai, ensinaram-me muitas coisas, brincava muito com o meu avô, tinha sempre um boné na cabeça, nunca mais me esqueci disso.» A emigração da família para Montreal aconteceu pelas razões de sempre, quando o sonho de uma vida melhor inquieta os homens e os arranca ao chão onde nasceram. «Depois de alguns meses na casa de familiares, fomos viver para o bairro de Villeray e fui frequentar a classe d’accueil da escola St. Jean de la Croix. A minha adaptação foi muito difícil, tinha poucos amigos, ainda hoje me custa falar nisso, não

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sabia falar francês e reprovei logo no primeiro ano. Mais tarde, na escola primária Hélène Boulet, tudo foi diferente, foi a melhor escola que eu tive, adorei, os professores eram fantásticos, os alunos davam-se todos bem. Comecei também a ir à escola portuguesa dos sábados, primeiro na Santa Cruz e depois na Portuguesa do Atlântico, onde acabei por concluir o nono ano. Não gostava muito mas os meus pais não me deixaram desistir. Hoje estou-lhes muito agradecido porque senão o meu português seria muito pior do que é agora. Quando somos pequenos não sabemos dar o valor mas hoje reconheço quanto foi importante para mim. Quando tiver filhos também irei puxá-los para irem à escola portuguesa como eu fui.» Quando terminou o curso secundário e chegou o tempo de frequentar o cégep, a transição perturbou-o imenso, sentiu-se à deriva, indeciso sobre qual o melhor caminho a seguir. «Por volta dos dezoito anos comecei a trabalhar numa farmácia Jean Coutu e deixei os cursos de lado. Trabalhava muito, também saía à noite, foi complicado.» Após dois anos escolares pouco proveitosos, valeram-lhe os ponderados conselhos dum orientador pedagógico que, verificando a sua tendência para as actividades manuais, o aconselhou a tirar um curso técnico. A escolha acertada recaiu num curso de mecânica de automóveis que lhe abriu novas portas e lhe reforçou a auto-estima. «Tirei o meu curso na École Daniel Johnson e hoje sou mecânico de automóveis num concessionário da BMW, em Dorval, onde me sinto muito bem.» Logo desde a primeira troca de palavras compreendemos que esta conversa não irá seguir uma ordem cronológica muito rigorosa. Os avanços e recuos irão ser constantes, ao sabor dum vaivém intemporal e geográfico entre os vários mundos em que se reparte. Iremos, pois, para reatar o fio à meada, voltar atrás na conversa para acompanhar os seus primeiros passos na integração no Rancho Praias de Portugal, o que aconteceu logo no primeiro ano da chegada a Montreal. Foi o que se chama um amor à primeira vista. «Um rapaz que ia à escola comigo, o Bruno Mateus, convidou-me para vir para o Rancho. A princípio não estava muito interessado mas ele convenceu-me e logo desde a primeira dança adorei. E até hoje, j’ai eu la piqûre.» Solta a raridade duma risada, mais descontraído, mais afoito. «Até falto a dias de

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trabalho para vir para o rancho. Gosto muito, muito. Pouco tempo depois vieram o meu pai, a minha mãe, também o meu irmão, que era pequenino, juntou-se a família toda aqui. O antigo ensaiador convenceu o meu pai a tocar bombo e a minha mãe desfila com um dos estandartes. Desde há alguns anos sou eu o ensaiador, embora goste mais de dizer que sou uma pessoa que ajuda os outros.» O seu envolvimento no Rancho, rodeado de belas raparigas de origem portuguesa, seria naturalmente propício ao namoro com alguma delas mas não foi esse o destino que lhe estava traçado. «Quando fui para o Cégep, no curso de francês, conheci lá a Fanny, uma moça de origem quebequense. Fazíamos trabalhos escolares juntos e fomo-nos conhecendo assim, devagarinho.» A ternura que lhe embacia o olhar dispensa palavras, é eloquente quanto ao desfecho inevitável. «E até hoje, casámos há dois anos. Ela trabalha na biblioteca de Lasalle e está a terminar o curso de bibliotecária. Trouxe-a aqui para o Rancho e já dança, participa nas nossas actividades, já compreende e fala o português, também gosta muito da nossa comida, tem receitas portuguesas que faz muitas vezes lá em casa.» Os receios da incomunicabilidade familiar diluíram-se logo na primeira aproximação, todos descobriram rapidamente que era mais o que os unia do que aquilo que os dividia. «Quando levei a Fanny pela primeira vez a casa, foi num sábado, lembro-me muito bem, os meus pais tiveram uma boa reacção, receberam-na muito bem, mesmo que, anteriormente, quando falávamos no assunto, preferissem que eu namorasse com uma rapariga portuguesa. Também me dou muito bem com os pais dela. Afinal, os portugueses e os quebequenses não são muito diferentes. Somos todos católicos, festejamos as mesmas datas importantes, o Natal, a Páscoa.» Menciona, mais uma vez, para salientar a importância e a firmeza da decisão, que quando os filhos aparecerem gostaria de os matricular na escola portuguesa e de os integrar nas actividades do Rancho. «A Fanny está completamente de acordo comigo, ela própria me está sempre a pedir para falarmos mais frequentemente português em casa, para poder praticar mais.» Nestas reviravoltas da vida, Portugal nunca ficou

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esquecido, as periódicas férias na terra natal são sempre motivo de alvoroço e um reacender de afectos. «Quando lá chego, sinto-me em casa. À saída do avião só me apetece dar um grito, até o ar é diferente. Saí de Portugal com sete anos mas, quando me perguntam o que sou, sinto-me um português residente no Canadá. Adoro Montreal, adoro o Québec mas aqui, (bate com o punho cerrado no coração) aqui, sinto-me português. Sinto-me muito orgulhoso de tudo o que é português, da cultura, da língua, da história.» A conversa volta a incidir sobre as actividades dos jovens no Rancho e no Clube. Numa reflexão, inserida numa brochura comemorativa do 10º aniversário do Rancho, o saudoso Fernando André, um dos seus fundadores em 1982, dizia: “O Rancho não é só dança e música. É igualmente uma actividade social salutar, uma escola e um ponto de encontro. Quer para os componentes, quer para os pais. Dentro dele se criam vários laços de amizade e há como que um espírito de família.” Pelo que transparece das suas palavras, é evidente que o Tiago compreendeu a importância da mensagem veiculada e, perseverante, desenvolve todos os esforços para transformar as palavras em actos. «O ano passado, para manter os jovens no Rancho, depois de ouvir a opinião de todos, decidimos criar uma equipa de futebol. Estamos inscritos na Ligue Concórdia e jogamos com outras equipas de várias etnias, mexicanos, franceses, polacos, é mais para nos divertirmos do que para outra coisa. No próximo ano, iremos participar numa Liga mais fácil para podermos criar uma equipa mista que integre também as raparigas que queiram jogar. Desenvolvemos também outras actividades interessantes em grupo, fazemos sessões de karaoke, vamos ao bowling, praticamos karting e outras coisas assim, para nos mantermos unidos e evitar que os mais novos se dispersem.» Evidentemente, iniciativas deste género exigem a compreensão e o apoio dos dirigentes do Clube mas, acima de tudo, uma liderança forte. «Sinto que tenho a capacidade de me meter na pele dos mais jovens e desta forma tenho conquistado a confiança deles. Acredito que de outra forma muitos já se teriam ido embora e abandonado tudo. Uma das coisas de que me falam muito é da falta de actividades interessantes para eles que a Comunidade Portuguesa possa oferecer para os cativar. Os jovens, se se

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sentirem bem, chamam os amigos, estes chamam outros, acho isso muito importante. Penso que um dos grandes problemas da Comunidade Portuguesa é a falta de líderes jovens, com trinta, trinta e poucos anos, que possam escutar, compreender e guiar os mais novos.» Mesmo que este vazio seja um dos problemas que afectam a Comunidade, salta aos olhos que no Clube essa situação é encarada com seriedade e os resultados já são visíveis. Presentemente, já funciona um frutuoso sistema de vasos comunicantes entre o Clube o o Rancho que começa a ser um viveiro de sangue novo para os corpos dirigentes. «A minha esperança é que continue a existir aqui, no Clube, uma administração aberta de espírito e compreensiva. Eu pertenço também ao conselho de administração que este ano integra mais três elementos jovens do Rancho, duas raparigas e um rapaz, todos na casa dos vinte anos, o que traz maior abertura e me deixa muito optimista. Um dos meus grandes sonhos dentro do Clube seria construir um terraço exterior onde a juventude se pudesse reunir e confraternizar no verão, sem precisar de ir para outros lados. Quanto à Comunidade Portuguesa, gostaria de a ver mais unida, sem divisões regionais, e que o nosso Bairro fosse mais visível, como o italiano ou o chinês.» Mais uma reviravolta, a última, na conversa, para falar da digressão do Rancho a Portugal, em 2010, e das emoções que despertou. «Foi uma experiência muito boa. Fomos bem recebidos por todo o lado. Foi um sucesso com muitas actuações, principalmente no Minho e com uma filmagem para a televisão, para o programa Portugal no Coração. A actuação que mais me tocou foi a que fizemos nas Lapas, na minha aldeia. Tirámos imensas fotografias com os meus avós, os meus tios e os meus primos, mas a imagem que eu guardo no coração foi ver a minha madrinha a chorar, só me apeteceu parar de dançar, porque já tinha uma bola no coração e lágrimas nos olhos.» A terminar, passou a mão pelo cabelo, algo embaraçado, as palavras a soltarem-se cautelosas, para reforçarem, sem equívocos, o que lhe vai no fundo do coração: «Quero que fique claro que tudo o que eu disse não foi para criticar ninguém, mas sim com espírito construtivo, sou uma pessoa muito positiva que só quer o melhor para todos.» Podes ficar descansado, Tiago. Quem poderia duvidar da

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franqueza, da lealdade e da generosidade dum olhar tão afável como o teu?

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Frederico Fonseca

O arauto da cidadania participativa

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Entrevista realizada a 2 de Janeiro de 2013, em Montreal

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Numa rápida consulta do curriculum vitae deste

conselheiro estratégico da Administração Pública do Québec, o que sobressai é a fulgurância da sua carreira profissional iniciada logo após a conclusão, na Université de Montréal, de um mestrado em Ciências Políticas, com especialização em Relações Internacionais. Em 1998, integrou o quadro de funcionários da Commission des droits de la personne et des droits de la

jeunesse du Québec; de seguida, sob a égide do Ministère de l'Emploi et de la Solidarité Sociale, assumiu a gestão de importantes dossiês e foi autor de vários documentos, relatórios e artigos relacionados com a problemática da juventude; atinge o ponto culminante, agora, com a nomeação para o prestigioso cargo de coordenador no Bureau du contenu stratégique du Sommet de l'enseignement supérieur (MESRST). Mas quem é realmente este homem duma simplicidade desarmante que, sentado à nossa frente, nos observa com um ar afável e descontraído por detrás duns óculos de sólidos aros que emolduram o rosto alongado e desportivo? Uma olhadela à sua página no Facebook revela-nos que gosta de ski de fundo, de praticar budokon, um exercício entre as artes marciais e o yoga, de campismo selvagem, de boas companhias, de muitas outras coisas e, não menos importante, da selecção portuguesa de futebol. Para melhor compreensão da génese da sua personalidade e do seu percurso, será ele próprio a contar-nos a história do menino que cedo aprendeu a sonhar com um mundo colorido pela magia da diversidade. «Nasci em Luanda, em 1973 e cheguei aqui, a Montreal, em 1976, com os meus pais. O meu pai nasceu numa pequena aldeia, Paradela, Carrazeda de Ansiães, onde dizem que se faz o melhor vinho do Porto do mundo e a minha mãe é de Amiais, perto de Santarém. Conheceram-se e casaram em Luanda onde viveram mais de dez anos. Adoravam viver em Angola e nunca pensaram de lá sair. Mas com a descolonização tiveram de

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regressar a Portugal onde residiram algum tempo antes de emigrarem para Montreal. Eu, como era muito pequeno, não tenho recordações de Angola, apenas tenho “falsas memórias” que são as histórias que os meus pais me contavam.» Uma dessas histórias narra a aventura fantástica do carro do pai que, nas bolandas da guerra, supostamente teria ido parar a Cuba. «Eu e o meu irmão, às vezes falamos em ir a Cuba fazer um documentário intitulado “O carro do meu pai” que contasse o lado pouco conhecido da participação dos cubanos na guerra civil angolana.» No regresso a Portugal, no turbilhão duma fuga desordenada e tantas vezes dramática para a maioria dos “retornados”, esperava-os o abrigo providencial da casa da família em Amiais. «No fundo, tivemos sorte porque tínhamos uma casa em Portugal, ao contrário de tanta gente que chegou sem nada e que passava os dias pela baixa de Lisboa, no Rossio, numa situação muito complicada.» Pouco tempo depois, surgiu a oportunidade de refazer a vida no Canadá. O projecto inicial, principalmente o do pai, contemplava uma curta estadia mas as tramas da vida são mais enleantes do que geralmente se espera e encruzilhadas inesperadas estão sempre à espreita. «Uma das coisas de que eu me lembro, quando chegámos cá, no ano dos jogos olímpicos, foi da neve e das luzes, muitas luzes. Fomos viver para a rua Coloniale, num velho apartamento onde havia baratas, a tal ponto que ficou para mim, para sempre, “a casa das baratas”. A minha avó materna emigrou connosco e desempenhou um papel super-importante nessa época da minha vida porque os meus pais estavam sempre a trabalhar ou a estudar. Depois, a minha mãe começou a trabalhar no Banque Nacional e o meu pai empregou-se como electricista no Hotel Hilton, em Dorval, onde havia outros portugueses.» Aqui faz um interlúdio na narração, para discorrer, tanto ao seu gosto eclético, sobre os reflexos da emigração na emancipação das mulheres portuguesas. «Para a minha mãe, como para muitas mulheres, o desafio da emigração e da integração foi uma grande oportunidade. Penso que a emigração é geralmente mais difícil para os homens do que para a mulheres no que dia respeito à adaptação.

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O meu pai como trabalhava com portugueses sempre falou um francês quebrado, nunca se integrou completamente, sempre foi um português no Québec. Já a minha mãe foi estudar contabilidade na universidade, fez uma bonita carreira na Ville de Montréal, no Festival de Jazz, gosta de estar cá, sente-se uma quebequense.» Com as vidas e as mentalidades a divergirem rapidamente e a seguirem caminhos diferentes, os pais acabaram por se divorciar quando ele tinha dezassete anos. «O meu pai trabalhou mais de vinte anos no hotel e regressou a Portugal há já vários anos. A minha mãe agora também vai todos os anos passar dois ou três meses a Portugal, para tratar da casa da família em Amiais mas regressa sempre com alegria porque gosta de estar cá, tanto se sente portuguesa como canadiana, soube encontrar o seu espaço de conforto e o justo equilíbrio.» A conversa retorna aos primeiros tempos da chegada a Montreal e ao novo mundo tão diferente do anterior, que a criança de três anos sentiu dificuldades em enfrentar. «Lembro-me de que nos primeiros anos sentia uma grande frustração porque não percebia o que as outras crianças diziam. Falavam uma língua que não fazia nenhum sentido para mim e sentia uma certa raiva por não os conseguir perceber. Mesmo depois de termos mudado para Brossard, onde os meus pais compraram uma casa, na escola primária continuei a sentir a mesma raiva. Aqueles nomes que aprendia não faziam sentido para mim, não me diziam nada, foi um sentimento que levou muito tempo a passar. Em Brossard morávamos numa rua muita tranquila, com muitos imigrantes de várias origens, onde havia muitos putos que falavam inglês, durante as férias de verão ficávamos na rua a brincar, desde a manhã até à noite, não havia limites para a nossa imaginação e brincadeiras. Tenho muitas boas recordações desse tempo.» A mudança para o banlieue, para Brossad, não significou uma ruptura com o santuário do Bairro Português pois os pais continuaram a abastecer-se nas lojas portuguesas e todos os sábados frequentava a escola portuguesa da Missão Santa Cruz, até ao dia em que a Comunidade Portuguesa de Brossard se organizou e abriu a sua própria escola, onde chegou a ter a mãe como professora.

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«Quando chegou o tempo de frequentar o ensino secundário, a minha mãe inscreveu-me no Collège Français, aqui em Montreal. Recordo-me que não gostava nada daquelas longas viagens diárias entre Brossard e Montreal. Aquando do debate da lei 101, ao nível identitário continuava um rapaz muito revoltado e ainda não sabia bem onde me situar. Era português, era quebequense? Há dias mudei de casa e encontrei uma caixa com os meus deveres escolares desse tempo onde eu assinava o meu nome como Fréderic, queria integrar-me, falava francês, não queria ser um imigrante, não queria ser diferente, queria ser como toda a gente. Apercebia-me que os meus colegas da escola eram todos de diversas origens, mas comecei a compreender que se nos exprimíssemos todos numa língua comum, o francês, seria uma boa maneira de nos aproximar mais uns dos outros e de eliminar as diferenças.» Pela intensidade do olhar e pela convicção com que pronunciava as palavras não era difícil apercebermo-nos que tínhamos chegado a um ponto culminante da entrevista, talvez à descoberta da bússola orientadora da sua rota futura. «Estava cada vez mais convicto de que ser um imigrante português aqui no Québec, era diferente de ser um quebequense de origem portuguesa. Se é aqui que eu vivo, que pago os meus impostos, se sentir que esta é a minha casa, que pertenço a esta sociedade e me identificar como cidadão de pleno direito vou ter muito mais possibilidades, vou ter o direito e o dever de me apropriar desta casa comum, de dar a minha opinião e de sonhar em pé de igualdade com toda a gente. Mais tarde, escrevi um texto, um pouco provocatório, numa revista, onde afirmava que a minha geração era a primeira geração de quebequenses.» Sorri, divertido com a evocação de tão contundente afirmação que, certamente, agitou muitas águas. Este posicionamento identitário que lhe trouxe maior estabilidade emocional, não implicou um repúdio radical das suas raízes. Pelo contrário, aguçou a necessidade de mergulhar no mais profundo do seu ser para depois voltar a emergir mais robusto e esclarecido. «As coisas precisavam de ficar claras no meu espírito. Comecei a fazer muitas perguntas aos meus pais, sobre o passado, sobre Angola, sobre Portugal. Precisava de saber quem eu era e donde vinha.»

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Antes de ingressar na universidade ainda passou uma temporada no exército, «fazer explodir carris, pontes e estradas ajudou-me muito a canalizar as minhas energias e raivas, foi muito terapêutico», explica, com uma risada. «Fiquei mais maturo e mais calmo para continuar os meus estudos.» Assumida definitivamente a sua identidade de quebequense de origem portuguesa, e alcançada a paz de espírito tão procurada, durante os anos em que frequentou a universidade, acalentou ambiciosos sonhos de, de certa forma, poder vir a ser uma ponte do estabelecimento de relações mais aprofundadas entre o Québec e os países lusófonos. «Todos os meus trabalhos na universidade eram sobre Portugal, inclusivé a minha tese de mestrado. Foi no tempo em que se criou a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e eu estava muito motivado por esse potencial todo» E, com uma risada, numa reviravolta que nos surpreendeu: «Foi então que eu comecei também a ser um fã da selecção portuguesa de futebol. Era uma maneira de poder também continuar a gostar de Portugal, ainda hoje continuo a ir ver os jogos aí nos cafés portugueses. São momentos agradáveis em que eu posso saborear uma “viagem a Portugal”.» Entretanto, a vida a reivindicar os seus direitos, mal saído dos bancos da escola e a dar os primeiros passos profissionais, foi atingido pelas setas do cupido e casou com uma jovem de origem francesa de quem se separou recentemente. Desta união nasceram dois filhos, o Tiago e o Loik, «dois genuínos quebequenses», afirma, com uma ponta de orgulho. «Os dois percebem relativamente bem o português mas não o falam. Nos primeiros anos falava em português com eles mas desde a minha separação é muito mais difícil. Gostaria que proximamente fossem passar um verão completo a Portugal para poderem estar com a família e para aperfeiçoarem a língua. O que hoje explico aos meus filhos é que não podemos esquecer a história da família. Para eles compreenderem porque é que nasceram em Montreal têm de saber porque é que eu vim para cá. Tudo está ligado ao fim da ditadura em Portugal, à revolução de 74, à presença portuguesa em África, é importante que eles percebam isso e se um dia estiverem interessados em ir ao encontro das suas raízes, saibam onde ir procurar.» Chegava a ocasião de falar da Comunidade Portuguesa e dos desafios que esperam as gerações mais novas. Inevitavelmente, para abrir o tema, a escolha recaiu sobre o

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Carrefour des Jeunes Lusophones du Québec, organismo de que o nosso entrevistado, com toda a sua experiência de gestão de projectos, foi um dos principais mentores. Fundado em 2001, definia-se como “uma associação formada por jovens com idade superior a 15 anos que tem como prioridade o diálogo entre as diferentes comunidades lusófonas e encorajar a participação dos jovens nos diferentes desafios que se lhes põem, estimulando a sua participação social.” Após alguns anos de múltiplas e diversificadas iniciativas de grande interesse, entre as quais se destaca o projecto “Explora o teu potencial” e, no quadro das comemorações dos 50 anos da Comunidade, o projecto “Encontros”, o organismo, que nascera tão auspiciosamente, acabou por defraudar muitas das expectivas alimentadas e por se extinguir silenciosamente, sem deixar grande rasto. «Fizemos coisas muito interessantes e houve jovens que tiveram no Carrefour uma experiência fundamental que os ajudou profissionalmente a irem mais longe do que pensavam. Mas tudo tem o seu tempo, as coisas só existem enquanto nos fazem falta», resume, com evidente nostalgia no olhar, a arredar congeminações e polémicas estéreis. Quando deita um olhar mais demorado sobre a Comunidade Portuguesa, reconhece a falta de estruturas mais modernas e adequadas aos novos tempos, para além de uma certa fixação num passadismo desajustado das novas realidades. «A Comunidade tem de se transformar, abandonar um certo “folclorismo” em que caiu e isso implica o aparecimento de novos projectos, talvez desenvolver um empreendedorismo socio-comunitário, que vá além do presente voluntarismo, capaz de criar empregos comunitários e novas dinâmicas. A Comunidade poderia ter aqui em Montreal um impacto linguístico e cultural mais importante. Deveríamos investir num espaço comum, num Centro Cultural que respondesse a certas necessidades e estabelecesse laços e um intercâmbio mais estreitos com Portugal e abraçasse uma maior abertura cultural à realidade quebequense. Decerto que há muitas dificuldades, já vamos na terceira geração e ainda enfrentamos grandes problemas, por exemplo ao nível da escolaridade e na participação cívica e política. Mas não podemos aceitar este facto como inevitável, devemos encontrar soluções e batermo-nos para acabar com esse estado de coisas.

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Acredito que ainda tudo é possível. Reconheço na Comunidade uma originalidade sociológica que marcou este e outros bairros aqui em Montreal e essa originalidade merece continuar a colorir esta cidade e este território que é também nosso.» Com entrevistado tão inspirado, poderíamos estar para ali toda a tarde a discorrer sobre temas cada qual o mais aliciante. Possivelmente alguns recantos de sombra ficaram por aclarar, certas facetas do seu pensamento ficaram por explorar, mas outras oportunidades de trocar impressões não deverão faltar. Jovem, visionário e talhado para altos voos como é, ainda ouviremos falar muito dele, estamos certos. Como rescaldo, diremos que, ao longo da conversa sempre foi notório o calor com que se pronunciava sobre a importância que atribui à Charte des Droits et Libertés que, desde o o início da sua carreira profissional, é uma autêntica “bíblia” de que se socorre para traçar a sua rota de conduta. Nessa perspectiva, uma leitura mais atenta do seu curriculum revela-nos a atenção que sempre lhe mereceram as minorias (jovens, imigrantes recentes, minorias visíveis) nos projectos em que tem sido chamado a colaborar e o esforço que tem desenvolvido para a sua integração na sociedade e para ajudar a debelar as discriminações existentes. Coerente com a sua linha de conduta, estamos certos de que, mais uma vez, na organização do Sommet de l'Enseignement Supérieur irá estar atento às dificuldades que enfrentam os grupos minoritários no acesso ao Ensino Superior, situação gravosa que as estatísticas, de que é um minucioso analista, não podem ignorar. Afinal, o rapaz inconformado dos outros tempos ainda por aqui anda, de mangas arregaçadas, deslumbrado com a riqueza da diversidade, entregue à sua cruzada em prol da construção duma cidadania participativa e de pleno direito que a todos englobe, dinamizadora e transformadora da sociedade.

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Victor Faria

O crente da liderança inovadora

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Entrevista realizada a 27 de Janeiro de 2013, em Montreal

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Quando chegámos à Casa dos Açores, o bulício era

grande. A Filarmónica do Divino Espírito Santo de Laval estava prestes a terminar o seu habitual ensaio dos domingos e foi agradável admirar aquela vivificante mescla etária dos seus componentes, que pincelava a atmosfera reinante com tonalidades alegres e festivas. Era evidente que estávamos a presenciar a reunião de uma grande família que aproveitava aquelas horas de ensaio para dar largas aos ventos da confraternização e estreitar laços de uma amizade já antiga que atravessa e reúne várias gerações. Agarrado ao seu trombone, o nosso entrevistado veio receber-nos com um sorriso rasgado: «Esperem uns minutos enquanto trato duns assuntos.» Pouco depois, enquanto o grupo dispersava numa onda de efusivas despedidas, conduziu-nos para o conforto da biblioteca, localizada num piso superior do edifício. Confortavelmente instalados à volta da ampla e sólida mesa que ocupa o centro da sala, estávamos prontos para encetar a conversa que se adivinhava demorada. Ao redor, as lombadas dos livros, perfeitamente alinhados nas amplas estantes, realçavam o aconchego do lugar, ampliavam a sonoridade das palavras. «Chamo-me Victor Faria, nasci em Montreal no dia 6 de Abril de 1978, filho de pais emigrantes, a minha mãe, Teresa dos Santos, veio de Lisboa e o meu pai, Durval Faria, é natural de Rabo de Peixe, S. Miguel» O jovem postado à nossa frente irradia uma vitalidade e uma alegria de viver que transparece no calor da voz e na linguagem gestual que lustra a fluência do discurso de quem está acostumado às artes das relações públicas. «Os meus pais vieram muito novos para cá, encontraram-se no grupo de jovens da Missão Santa Cruz e casaram em 1972. Três anos depois do meu nascimento mudámo-nos para Laval.

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Naquele tempo ainda não havia a igreja portuguesa mas já existia a Associação e os meus pais que sempre estiveram ligados à Comunidade, ajudaram a organizar o Grupo Folclórico Estrelas do Atlântico. Eu e o meu irmão Nelson, que é dois anos mais velho, começámos a dançar no Grupo logo desde a sua fundação, mas aos 14 anos compreendi que não era grande dançador e disse para o meu pai: já estou farto do folclore e vou tocar música para filarmónica. Mais tarde, vim a saber que tenho uma grande história de músicos na família, lá em S. Miguel.» Laval já era então uma cidade multiétnica, facto que se reflectia no mosaico diversificado dos alunos que frequentavam a escola primária onde ingressou. «Os meus amigos eram de diferentes comunidades e falava geralmente inglês com eles. Em casa falava português e na escola aprendia o francês. Uma criança aprende com facilidade as línguas. Depois, já no ensino secundário, continuei a dar-me com todos os grupos. Mesmo indo à escola portuguesa, aos sábados, onde fiz a 6ª classe, a minha identidade portuguesa só se desenvolveu muito mais tarde, naquele tempo não sentia necessidade da afirmá-la, não via grande utilidade nisso. Agora é que eu vejo que valeu a pena ter ido à escola portuguesa, quando tenho de escrever uma carta para as entidades oficiais, até mesmo profissionalmente, tem acontecido que é preciso telefonar para o Brasil e vêem-me chamar para resolver o problema. Mas voltando atrás, quando cheguei ao Collège Ahuntsic fiquei um pouco perdido quanto à minha orientação escolar. Ingressei em sciences de la nature, acabei por fazer um curso profissional de técnico de laboratório mas ao fim de pouco tempo compreendi que realmente o que eu queria era continuar os meus estudos e fazer um curso de engenharia química, o que aconteceu na École Polytecnique de Montréal.» Uma onda de satisfação alastra-lhe pelo rosto, acende-lhe uma luzinha nos olhos, a revelar o homem realizado que atingiu as metas sonhadas. «Sacrifiquei-me muito mas valeu a pena. Eu acho que que quanto mais trabalhamos maior é a recompensa. Como sempre tive gosto pelas vendas, já em estudante trabalhara numa sapataria, logo desde o princípio compreendi que a minha vocação era o sector das vendas ligadas aos produtos químicos, de acordo com a minha formação. Fiz um estágio numa fábrica de cimentos em Halifax e quando regressei fui trabalhar no departamento de vendas da companhia Lafarge, ao mesmo

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tempo que tirava um mestrado em dévellopement d’affaires na Université Concórdia. Presentemente, sou director de vendas na Suncor que é a antiga refinaria Petro-Canada.» Entretanto, casara com uma jovem de origem açoriana que conhecera no Rancho, comprara casa em St. Eustache, nasceu-lhe uma filha, e com tanta azáfama compreendeu que a música e a Filarmónica teriam de ser postas temporariamente de lado, à espera de tempos mais folgados. Mesmo assim, homem incapaz de estar parado, nos poucos tempos livres que lhe restavam, envolveu-se nas actividades dos Toastmasters, um organismo internacional sem fins lucrativos onde aperfeiçoou algumas aptidões que lhe foram muito úteis na vida profissional tais como falar em público e desenvolver as capacidades de liderança (leadership). O regresso à música e às lides comunitárias foi imprevisto, aconteceu mais depressa do que esperava, assim são as surpresas que a vida tece. «Há cerca de dois anos, houve certas mudanças na direcção da Filarmónica, algumas pessoas já estavam cansadas e convidaram-me para regressar. Hesitei bastante mas insistiram muito comigo e, com o apoio da minha mulher que me encorajou também, decidi aceitar. Ela fez-me ver que a Filarmónica tinha-me dado muito no passado e que agora que estavam a bater à nossa porta, não poderíamos negar o nosso apoio. E cá estou, presentemente sou o Presidente da Direcção. É muito trabalhoso, principalmente para a minha mulher, agora que nos nasceu mais um filho, com os ensaios e as deslocações, são muitos os fins-de-semana que passa sozinha.» Mas quando faz o balanço, sente que foi uma decisão proveitosa. «Uma pessoa quando se envolve num organismo recebe mais do que dá, o que nos encoraja a continuar. É como na nossa vida pessoal ou no trabalho, se chegamos à conclusão que damos mais do que recebemos, acabamos por compreender que não estamos bem e por ir embora, tem de existir um equilíbrio. Aqui, na Filarmónica, há gente dos oito aos oitenta anos, dou-me bem com todos, há um ambiente de amizade, sinto a confiança que têm em mim e isso valoriza-me bastante.» Esta reaproximação abriu também portas inesperadas voltadas para um mundo inexplorado, agora que a maturidade lhe rasgava novos horizontes. «Ultimamente, estou a sentir mais o orgulho de ser

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português e, estando mais envolvido na Filarmónica, sinto o dever de promover a cultura portuguesa. Esforço-me por falar com os músicos em português, porque se não falarmos a língua pouco mais há que nos una. Eu próprio senti o desejo de visitar Portugal, de ir ao continente, onde a minha avó ainda tem uma casa, e aos Açores também, ao encontro das minhas raízes. Depois destas visitas, estou a descobrir muitas coisas, estou a ver tudo de uma maneira diferente. Com a minha mulher, a Julie, oitenta por cento do tempo falamos em francês entre nós mas com o nascimento da nossa filha, a Heidi, passámos a falar português com ela, o mesmo acontece com o menino que agora nasceu, o Tiago, é uma coisa natural, não sei bem explicar, deve ser por o português ser a nossa língua de conforto, que aprendemos em crianças.» Chegava a ocasião de nos debruçarmos sobre a situação da Comunidade e sobre os desafios do futuro. O nosso entrevistado reconhece a cada vez menor afluência de público às festas tradicionais, do Santo Cristo, do Espírito Santo, em parte devido aos cansaço e ao envelhecimento dos seus organizadores mas também devido ao «afastamento das gerações mais novas que já não se reconhecem nessas tradições, principalmente se já não falam português em casa e se não sabem o que aquelas manifestações representam». «É triste ver que os organismos e as associações da Comunidade estão a ficar cada vez mais enfraquecidos. Estamos a viver a situação por que outras comunidades culturais já passaram, é um processo natural da imigração. Mas por outro lado, esta situação também é sinal da nossa “réussite”, quem imigra quer ter sucesso no país para onde vai, quer ter trabalho, quer formar uma família, quer comprar casa, quer integrar-se. O nosso sucesso individual pode ser a morte da nossa cultura de origem, é triste mas é assim. Eu próprio não teria grandes dificuldades em continuar a viver afastado da Comunidade Portuguesa. Gosto de cinema québécois, gosto de hóquei no gelo, cresci aqui, fui à escola francesa, identifico-me com muitos dos valores quebequenses.» Encolhe os ombros, entrelaça os dedos das mãos, fica por instantes em reflexão. Quando nos volta a encarar, lê-se-lhe a determinação no lampejar do olhar, no timbre metálico da voz. «A Comunidade Portuguesa precisa de encontrar maneiras de se renovar, de se reinventar, é isso que eu estou a fazer aqui na Filarmónica. O meu objectivo é que a Filarmónica

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não actue somente nas festas portuguesas, devemos encontrar maneira de participarmos mais frequentemente noutras actividades culturais da sociedade quebequense. Devemos abrir-nos mais, acolher membros de outras etnias, embora salvaguardando o nome de Filármónica Portuguesa do Espírito Santo de Laval e os nossos estatutos, de forma que daqui a cinquenta, sessenta anos, quando tudo já for diferente, não se esqueça a sua história e que foi fundada por portugueses. Acredito que o futuro da Filarmónica possa ser este, caso contrário poderá acabar por morrer por falta de membros, principalmente agora que a emigração portuguesa para o Canadá praticamente não existe. Já começámos a dar os primeiros passos nesse sentido, já temos uma menina de ascendência espanhola, outra québécoise, pode ser este o caminho para sobreviver, será a herança que deixaremos, quem sabe. Isto é no que respeita à música e à Filarmónica porque no que respeita à nossa cultura acredito que a grande herança que deveremos deixar aos nossos filhos é a língua portuguesa. Não precisa de ser um português perfeito, o importante é continuarmos a falá-lo, será isso que nos poderá continuar a unir no futuro e que ajudará a manter os laços com Portugal porque atrás da língua vem tudo o resto, a cultura, as tradições, como o culto do Espírito Santo que é tão antigo e que, dou o meu exemplo, só agora estou a descobrir realmente. Sei que já sou diferente dos portugueses que ficaram em Portugal, tenho a consciência disso, mas num certo sentido até é bom, há uma mistura dentro de mim que é um must que devo aproveitar em meu benefício e da Comunidade.» Estávamos para ali a ouvi-lo discorrer sobre temas tão candentes e na nossa cabeça ressoavam as palavras do escritor luso-canadiano Paulo da Costa: Nós, seres da diáspora, somos os Centauros do mundo. Impuros. Mesclados. Parcialmente reconhecidos e identificados com o cardume de origem mas simultaneamente apresentando características que nos demarcam e separam desse cardume, somos frequentemente acolhidos com reservas em ambas as orlas. Vistos como seres em limbo, sem tribo nem pátria.. Nós as pontes. Poderá passar-se desta forma com alguns segmentos da Comunidade mas o nosso entrevistado escapa, decididamente, a esta definição. Ao escutá-lo, compreende-se logo que estamos na presença de alguém que sabe gerir, pacificamente, todas as suas

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pertenças, «as suas camadas», como diz, e é capaz de contornar situações de conflito identitário que o possam desviar do seu rumo onde não há lugar para ambiguidades e reticências. «Para haver união é preciso haver uma necessidade, um objectivo comum e uma ideia directora. E depois passar à acção», identifica como a divisa que lhe guia a vida. E, a terminar, o cutelo da mão aberta rasgando os sulcos do futuro, peremptório: «O que os jovens da Comunidade Portuguesa neste momento precisam é de modelos de que se possam sentir orgulhosos e cujo exemplo possam seguir, ao nível político, desportivo, profissional ou outro qualquer. No desporto estou a pensar, por exemplo, na Meaghan Benfeito ou no Mike Ribeiro que são ídolos reconhecidos por todos. No que respeita a projectos imediatos e possíveis, já pensei em criar uma secção portuguesa dos Toastmasters e no prolongamento dessa ideia fundar um organismo que agrupasse os jovens profissionais de origem portuguesa, cuja divisa fosse “Orgulho de ser Luso-Quebequense”, tal como já existe em Toronto o grupo Proud to be Portuguese-Canadien. À volta desse núcleo seria possível desenvolver actividades de formação de líderes que se implicassem depois nas actividades da Comunidade e lhe trouxessem sangue novo.» Ficámos com a convicção de que, agora que regressou às lides da Comunidade, o Victor Faria, jovem pragmático e de acção como aparenta ser, não descansará enquanto não levar essas e outras ideias inovadoras por diante. Como é uso dizer-se, a Comunidade precisa e agradece.

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Manuela Grilo

Ainda há histórias de Amor

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Entrevista realizada a 9 de Fevereiro de 2013, em Montreal

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No rosto sereno da nossa entrevistada, que tão

amavelmente nos recebeu em sua casa, localizada no Bairro Português, transparece um halo de fragilidade que mais faz ressaltar a ternura do olhar. Mas logo o timbre determinado da voz desmente a primeira impressão. Afinal, a mulher que está à nossa frente ainda alberga no peito os germes da reconhecida tenacidade das gentes serranas, ou não tivesse ela nascido lá para as faldas da Serra da Estrela, na idílica aldeia de Casegas, no concelho da Covilhã. «Chamo-me Maria Manuela Soares Grilo», apresenta-se. «Tenho 52 anos, cheguei ao Canadá em 1967, no mês de Abril. Tenho dois rapazes, o Julien que vai fazer 20 anos e o James com 17.» Passados tantos anos, ainda guarda, pelos sótãos da memória, indeléveis recordações da viagem e das primeiras impressões da chegada. «Vim com os meus pais e os meus dois irmãos, foram os meus padrinhos que nos fizeram a carta de chamada. Lembro-me de ter medo de entrar no avião, de ver a minha mãe a chorar, do frio, das saudades da minha aldeia que amo tanto. As casas eram muito diferentes das de lá, com as escadas por fora, foi um choque. Depois, estar sozinha em casa com os meus irmãos, porque os meus pais tinham de ir trabalhar, isso também nunca mais esqueci. O pai arranjou emprego como mecânico de automóveis numa oficina de portugueses, aqui no Bairro, e a minha mãe sempre trabalhou nas fábricas, não podiam ficar em casa a fazer-nos companhia.» Como era regra geral naqueles tempos, o Bairro Português era o regaço generoso que a todos acolhia e protegia. «Fomos viver para a Hôtel de Ville, entre a Prince Arthur e a Pine, era uma rua onde só havia portugueses, são pessoas que ainda hoje vejo e com quem me dou. Ficámos lá dois anos, depois fomos para a rua Coloniale, onde estivemos até que o meu pai comprou esta casa, aqui na Avenue de l’Esplanade.» O seu percurso escolar não diferiu muito do da maioria

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das crianças portuguesa de época. Para principiar, frequentou a escola primária inglesa, a Our Lady of Mont-Royal. «Gostei porque as crianças eram quase todas portuguesas. Estava na mesma classe que o meu irmão mais velho porque só temos uma diferença de dez meses e muitos dos pais das outras crianças eram amigos dos meus, alguns eram da nossa região, confesso que adorei.» Complementarmente, a escola portuguesa dos sábados e a catequese preencheram boa parte das suas actividades da infância. Fez ainda parte dum rancho folclórico ribatejano, extinto há muitos anos, dirigido por Manuel Ferreira, um taxista apaixonado pelo folclore. «Ensaiávamos na casa dele, ainda chegámos a ir à Expo e à televisão. Acompanhava também a minha mãe e a minha avó que sempre estiveram muito ligadas às actividades da igreja. Ainda agora, muitos dos meus amigos são desse tempo.» Nos anos da adolescente, a tradicional vigilância dos pais portugueses era asa tutelar contra as tentações do mundo exterior, geralmente visto como uma ameaça à coesão dos valores tradicionais. «O meu pai era muito protector, eu nem tinha direito de ir, aos domingos, aos bailes do Clube Portugal, ao contrário dos meus irmãos que tinham muita mais liberdade.» Terminado o ensino secundário na D’Arcy McGee, ingressou no Collège Dawson onde tirou um curso de assistente social. Depois dos estágios de fim de curso, rapidamente se apercebeu não ser aquela a carreira que lhe interessava. A sua sensibilidade não lhe permitia um distanciamento adequado às circunstâncias e via-se envolvida com demasiada facilidade nos problemas dos utentes. «O hospital Royal Victoria ofereceu-me um contrato de três anos para fazer um estudo, ligado à McGill University, sobre os primeiros medicamentos que apareceram para o tratamento da sida. Ia a casa dos doentes, vários deles de origem portuguesa, e sabia que a maior parte não iria viver muito tempo. Felizmente que com os novos medicamentos que se descobriram, alguns ainda estão vivos. Eu conhecia as famílias deles, muitas vezes tinha de guardar segredo sobre o estado dos filhos, era uma situação muito difícil de suportar e fez-me compreender que não era aquela a minha vocação. Enquanto estudante, trabalhei numa farmácia, a Singer

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Pharmacy, ali na Mont-Royal, onde aprendi muito e tirei vários cursos, o que me permitiu mais tarde encontrar emprego, como técnica de farmácia, na Pharmaprix, onde me mantenho até hoje.» Esta nova orientação da sua carreira permitiu-lhe viajar, participar em congressos, inclusive acompanhou uma equipa de propaganda médica a Portugal para divulgação dos novos medicamentos para o tratamento da sida. O casamento, aos 26 anos com um rapaz de origem portuguesa, que conhecia desde a infância, foi de pouca duração. Ainda agora a aflige a ansiedade que sentiu, com receio de desapontar a família. Os tempos ainda não estavam maduras para a transgressão dos valores tradicionais trazidos na bagagem de Portugal, o casamento era para a vida, dogma inquestionável, estava inscrito no código genético. «Os meus pais eram muito conservadores, não estavam preparados, quando me separei, arrendei um apartamento sem lhes dizer nada, tinha medo de magoá-los e de os desapontar.» Serenada a situação, mais tarde voltou a casar com um québécois, pai dos seus filhos, de quem se divorciou há alguns anos mas com quem mantém uma sadia relação de amizade. A família já encarou com melhores olhos a nova separação, lentamente, sub-repticiamente, a vida vai desbravando novos caminhos renovadores das mentalidades. «Há anos que estamos separados mas ele ainda vem aqui a casa, vem cá jantar quando quer, ainda passa o Natal com a minha mãe e os meus tios, todos gostam muito dele e ele também não quer quebrar os laços, por causa dos filhos mas igualmente porque sempre quis ter uma família que não teve em criança. Os meus filhos também foram à escola portuguesa mas normalmente comigo falam em inglês. Com o pai falam inglês e francês. Com os avós e com a restante família é que se esforçam por falar português. Quando vão a Portugal, e precisam de comunicar com os primos, reconhecem que afinal valeu a pena o esforço para aprender a língua, sentem-se muito orgulhosos. Uma das razões porque eu nunca me afastei do Bairro foi por querer que os meus filhos não esquecessem as raízes portuguesas. Quis que ficassem perto dos meus pais, da família. Foi a minha avó materna, que veio para o Canadá mais tarde, que os ajudou a criar. Falava-lhes em português, contava-lhes histórias na nossa aldeia, foi muito importante na vida deles.

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Quando há festas, trazem cá os amigos québécois que adoram ver as procissões, a Nossa Senhora do Monte, o Espírito Santo, o Santo Cristo, gostam de comer todas aquelas coisas, as espetadas, as malassadas, as bifanas, são doidos por aquilo.» Os filhos já criados, a entrar na idade de deitar contas à vida e de fazer balanços, confessa que ainda muitas dúvidas lhe bailam na cabeça, sem grandes respostas conclusivas para a sua definição identitária. «Aqui há alguns dias estava a conversar com algumas amigas e uma delas disse-me que, antigamente, quando visitava outro país dizia, com muito orgulho, que era do Québec mas na última viagem deu consigo a dizer: I’m canadian. Dizia ela que uma das razões porque, anteriormente, gostava de viver no Québec era por ser a única província onde podia dar uma educação trilingue aos filhos mas, com tanta mudança, esse orgulho começava a desaparecer. Acho que comigo está a acontecer o mesmo, o meu orgulho era os meus filhos falarem francês, inglês e português, quando iam a Portugal. Mas já estou a ficar cansada com tantas lutas políticas à volta das línguas, aqui no Québec. Penso que da próxima vez que for passar férias a qualquer lado também direi que sou canadian.» Chegava a oportunidade de aflorar os problemas que afectam a Comunidade Portuguesa em geral. Ninguém como ela está tão bem posicionada para identificar certas mazelas e carências existentes, geralmente negligenciadas, ou até mesmo escamoteadas, nos debates que por vezes se organizam aí pela Comunidade e que geralmente se detêm na enunciação de lugares-comuns, sem coragem para explorar e aprofundar temas mais delicados. Na farmácia onde trabalha presentemente existe um banco de distribuição de metadona para toxicodependentes. A princípio, nota-se também na nossa entrevistada uma certa relutância em aflorar o assunto. Fixa os olhos no tecto, passa a mão pelos cabelos, a medir o peso das palavras. Talvez por obrigação de sigilo profissional, talvez por receio de ferir susceptibilidades. Por fim, morde os lábios, decide-se a levantar a ponta do véu. «Temos vários toxicodependentes de origem portuguesa. Nalguns casos, os pais não sabem a gravidade do problema dos filhos ou, então fingem que não sabem, tentam esconder as coisas. É uma situação que afecta muitas famílias portuguesas, aqui em Montreal. Há pessoas de setenta, oitenta anos, que

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ainda têm os filhos de quarenta e tal anos lá em casa e são vítimas duma situação que não sabem como resolver por falta de informação e, sobretudo, por vergonha.» Cala-se, outra vez, torna a morder os lábios. «É muito complicado.» Há outra preocupação que também a atormenta, principalmente agora que a geração pioneira está a envelhecer e a requerer maiores cuidados e apoios. «Há dias, eu e o meu filho mais velho estivemos a falar das pessoas idosas, veio à baila a situação da minha mãe e de muitas das suas amigas que começam a envelhecer. É uma preocupação para os filhos. Elas não querem ir para um Foyer qualquer, com uma comida de que não gostam, ao cuidado de pessoas com uma mentalidade diferente da deles, não se sentem lá bem. Como é possível que a Comunidade Portuguesa ainda não tenha um Centro para pessoas idosas? É triste! O meu filho mais velho admira-se que com tantos portugueses cá, com tanta gente com a formação profissional necessária, ainda não se tenha criado um estabelecimento do género aqui no Bairro, perto da igreja. Os amigos falam-lhe dos lares para idosos dos italianos, dos polacos, de muitas outras etnias, onde os avós se sentem bem tratados e acarinhados pelo pessoal que fala a sua língua e compreendem as suas necessidades. É tal a sua preocupação, talvez por causa da avó, que até me sugeriu que comprássemos um prédio e que abríssemos um lar, pensa que isso poderia fazer uma diferença e servir de exemplo.» A comoção embarga-lhe a voz. Emudece, uma névoa a vogar na placidez do olhar. Inesperadamente, com uma sacudidela dos cabelos, arredou tristezas, desabrochou num sorriso ternurento: «Isto fez-me pensar na minha velhinha.» Nós a calcular que a conversa se esgotara por ali, quando, para grande surpresa nossa, ainda nos estava reservado o privilégio de escutar uma bela história de Amor que foi a chave de ouro para fechar o nosso encontro. Como preâmbulo, poderemos principiar assim: quis, em já lonquínquo dia, o destino entrecruzar a vida de uma mulher de belos olhos azuis, que arrastava a sua indigência pelo Bairro Português, com a vida em flor de uma jovem de origem portuguesa que se condoeu, até à raiz da compaixão, da sua triste condição. Mas será melhor tudo ouvir pela boca da nossa entrevistada: «Chama-se Gertrude, é de origem sueca, tem agora 92 anos mas ainda é uma senhora muito engraçada, com uns olhos

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azuis lindos, lindos, e uma pele muito branca. Era uma senhora que andava, por aí, na rua, eu era, então, muito nova, tinha 20 anos, e um dia entrou na farmácia do mister Singer, onde eu trabalhava, a chorar porque alguém lhe tinha roubado qualquer coisa. Não tinha domicílio, não tinha nada e, para a acalmar, disse-lhe para me ir ver, todas as manhã, que nós dávamos-lhe um café e uma sandes. Ela assim fez, durante muito tempo, até ao dia em que caiu e teve de ser hospitalizada no hospital Royal Victoria. A partir daí, procurei, por muitos lados, um lar que a recebesse até que, quando teve alta, consegui interná-la no Foyer Manoir L’Âge d’Or, onde agora se encontra. Sou ainda a responsável por ela, às vezes vou lá vê-la e, uma ou duas vezes por mês, o senhor que é o distribuidor da Pharmaprix vai buscá-la ao Foyer. Passa o dia inteiro por ali, ao pé de mim, dou-lhe algum dinheiro, faz as compras dela, passeia e à noite o senhor leva-a de volta ao Foyer. Ainda agora se lembra das cantigas que eu lhe cantava, recorda-se dos nomes dos meus amigos, é muito gira.» O sorriso, contagiante, continuava a enfeitar-lhe os lábios. Até a tarde soalheira de inverno, que nos espreitava, sorrateira, pela janela, sorria deliciada, de ouvido à escuta, sem pressa de partir. É que histórias destas não se ouvem todos os dias.

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Rosa Abreu

Uma mulher agradecida à vida

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Entrevista realizada a 23 de Fevereiro de 2013, em Montreal

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Certos dias, há entrevistas que acontecem assim. Fluem,

tranquilamente, a banharem margens aprazíveis da memória, a espraiarem-se por um tempo alimentado por seivas oníricas que, não obstante as dificuldades e os obstáculos defrontados, estava impregnado dum encanto que o correr dos anos e da vida teve o condão de apurar e transformar em bálsamo retemperador. Rosa Abreu pousa em nós os olhos rasgados, de tonalidade a ondular entre o azul e o verde, por vezes a tingirem-se de violeta, mas sempre repassados da placidez das paisagens minhotas que a geraram. «Nasci em 1966, em Braga», enceta a conversa, as mãos tranquilamente pousadas no regaço. «Os meus pais são naturais de Sabariz, Vila Verde. Cheguei cá, a Montreal, tinha treze meses, em Junho de 1967 e os meus pais foram viver para a zona portuguesa, na Clark, com a Pine. Tenho uma irmão gémea, a Lurdes, éramos muito conhecidas no Bairro pelas “gémeas”. Naquela zona havia muitos portugueses, logo ali perto existia a padaria Levine, de que os meus pais eram fregueses, havia o restaurante Lisboa Antiga, que o meu pai frequentava muito, também me recordo da sala de bilhar por cima dos Quatre Frères. Depois, começaram a abrir várias lojas portuguesas, a Flor do Lar, o supermercado Universal e outros. Vivemos 12 anos muito tranquilos nessa zona. O meu pai trabalhava na construção e a minha mãe fazia limpezas em casas particulares. Naquele tempo, frequentavam muito a Associação Portuguesa do Canadá. Eu e a minha irmã íamos à escola francesa Jean Jacques Olier, ali na Pine, e frequentávamos também, no mesmo local, aos sábados, a escola portuguesa do Banco Português do Atlântico. Quando nos nasceu mais um irmão, o Dominique, temos doze anos de diferença, mudámos para a Côte Saint-Luc onde eu a minha irmã passámos a ir à École Secundaire St-Luc. Era uma zona mais inglesa, com muitas etnias, mas tanto eu como a minha irmã somos pessoas que nos adaptamos com facilidade,

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além disso os meus pais fizeram tudo o que podiam para que nos sentíssemos bem. Íamos muito ao Clube Oriental que ficava ali perto. Naquele tempo havia actividades quase todos os sábados. Muitos dos jovens que lá iam frequentavam a mesma escola que nós e conhecíamo-nos quase todos. Nem pensávamos em sair para outro lado qualquer, estávamos ansiosos para que chegasse o sábado à noite para nos juntarmos todos no Oriental. Foram tempos felizes. Mesmo quando fomos para a Côte Saint-Luc, os meus pais faziam as compras na zona portuguesa. Vínhamos todos os domingos à missa. O meu pai era muito implicado na Comunidade, fez parte do conselho de administração da igreja e também da comissão de pais da escola portuguesa. Mais crescida, eu estudava, trabalhava part-time no supermercado Steinberg e ocupava-me, algumas horas por semana, de uma menina deficiente. Como frequentei a escola francesa, tive de seguir cursos de inglês à noite, porque naquilo que eu queria trabalhar era preciso saber bem a língua.» Sorri, um pouco enleada, sobem à tona das palavras vestígios de velhas apreensões e do antigo receio de desapontar os sonhos por desbravar dos progenitores. «Os pais gostam que os filhos tirem um curso universitário, querem sempre o melhor para nós, que sejamos médicos, advogados, mas eu não gostava muito da escola, fiz um curso de techniques de bureautique no Cégep André Laurendeau, em Lasalle». Ultrapassado o tempo das indecisões, sente-se uma mulher realizada profissionalmente, a tranquilidade da estabilidade alcançada transparece no calor da confissão: «Sou franca, sou uma pessoa que teve sempre muita sorte na vida, o trabalho que eu faço hoje, que é de escrivã (grefière) num Tribunal Administrativo do meio financeiro, aconteceu porque estava no bom sítio, no bom momento. Está bem que trabalhei muito, comecei como secretária, depois tive uma oportunidade, estou nesta posição há 22 anos, somos cinco neste departamento e sou a única que não é advogada, hoje não teria sido possível. O meu trabalho faz com que viaje muito por todo o Québec quando há audiências fora de Montréal, custa-me ter de deixar a família, mas isso também tem um lado positivo, por exemplo, o meu marido que não sabia estrelar um ovo, hoje

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cozinha tão bem como eu.» Solta mais uma das suas frequentes gargalhadas divertidas e aproveitamos a ocasião para recuar até ao ano do casamento com um rapaz português. «Só namorei três meses com o meu marido, toda a gente pensava que seria um desastre, que o casamento não iria durar um ano mas faço 25 anos de casada em Junho. Ele chegara recentemente ao Québec e as pessoas supunham que queria casar comigo para se legalizar, mas eu estava apaixonada, o meu pai, a princípio, era contra o meu casamento, toda a gente sabe disso, mas hoje são muito amigos. Arrisquei muito, é certo, mas acertei, temos duas filhas maravilhosas, a Katy que tem 20 anos e a Liane com 15.» O pai sempre dissera que aos 55 anos partiria, regressaria a Portugal mas, quando chegou o momento, a separação foi dolorosa. Passados tantos anos, a evocação do acontecimento ainda lhe faz saltar irreprimíveis lágrimas aos olhos. «Era o sonho dele. O meu irmão tinha 14 anos e teve de ir com os meus pais, no princípio foi muito difícil para ele, telefonava para o irmos buscar, mas depois adaptou-se, tirou um curso de informática, abriu uma companhia de multimédia, toca e canta num conjunto. Casou e tem uma menina e continua a morar em Sabariz, por cima dos meus pais, nunca mais pensou em regressar ao Canadá. Foi mais difícil para mim e para a minha irmã, a Katy acabara de nascer, faltou-me o apoio familiar com que estava a contar. A nossa mãe também sentiu muito a separação, ainda hoje tem esse desgosto, éramos muito próximas uma da outra.» Enxuga as lágrimas que, rebeldes, continuam a humedecer o rosto. «Este ano, por ocasião dos 25 anos do meu casamento, vamos, pela primeira vez, reunir a família toda, iremos fazer uma grande festa, aqui em Montreal.» Agora, as lágrimas transformaram-se, já correm de alegria. “Gente feliz com lágrimas» disse o escritor João de Melo e ele sabia bem do que tratava, com família imigrada nestas terras. Sublimadas as mágoas do afastamento, a roda da vida continuou a girar sem parança, mas por mais voltas que se dê, por mais horizontes que se transponham, por mais desafios que se ultrapassem, por vezes as vozes matriciais, adormecidas, acabam, inesperadamente, por despertar e reconduzir-nos os passos aos caminhos antigos. «Quando casei, durante algum tempo deixei de frequentar

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a Missão, havia outras coisas que fazer, outras preocupações, mas, passados alguns anos, voltei a aproximar-me. A minha filha mais velha ficou mais crescida, inscrevi-a na escola portuguesa, passou a cantar no coro infantil e, ainda hoje dá apoio às actividades dos mais pequenos, os Pirilampos, enquanto os pais estão na missa. Eu e a minha irmã somos muito próximas uma da outra e ainda há dias, ao falarmos sobre os nossos filhos, eu disse-lhe que nós, inconscientemente, seguimos muito o exemplo dos nossos pais. Tal como nós fizemos no nosso tempo, as minhas filhas também vêm à Comunidade Portuguesa, têm amigos portugueses, seguiram os nossos passos, e isso dá-me uma tranquilidade que nem sei explicar. Quando mo perguntam, eu não hesito, digo sempre que sou portuguesa, mesmo as minha filhas que nasceram cá não dizem que são quebequenses, dizem que são também portuguesas, não sei se é porque as encaminhámos sempre para a cultura portuguesa mas a verdade é que elas sentem muito orgulho disso.» Mas até no chão mais adverso o fermento da transformação persiste na sua tarefa, sem folgas, sem pressas, de levedar o pão da miscigenação. «No princípio, lá em casa só falávamos português até por causa do meu marido que falava pouco francês. Hoje há uma mistura, falamos com elas em português, as filhas respondem geralmente em francês, há uma grande liberdade. Não é como no meu tempo, em casa dos meus pais éramos obrigadas a falar português, eu com minha irmã, quando estávamos sozinhas, é que lá escapava uma ou outra conversa em francês.» Para não fugir à regra das famílias portuguesas da época, a vigilância era apertada, os horários rígidos, o receio do desconhecido estava sempre presente. «Quando namorava o meu marido, só tinha autorização de sair no domingo à tarde e às nove horas já tinha que estar em casa, e já tinha 21 anos.» Solta mais uma risada, quase saudosa, o correr dos anos acabou por limar as arestas mais ásperas. «Eram muito severos. A minha mãe era muito nossa amiga, costurava muito, passava a semana a fazer roupas para mim e para a minha irmã, mas as regras tinham de ser seguidas.» Mais uma vez se volta a falar da Missão Santa Cruz, que nos últimos anos polariza grande parte das actividades culturais da Comunidade. Ressalta um travo amargo, uma nota de

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pessimismo, quando afirma: «Na Missão, o padre José Maria fez muito pela Comunidade, a UTL-Universidade dos Tempos Livres, as actividades para pessoas idosas, é pena que as pessoas não aproveitem completamente o que lhes é oferecido. Se já agora é assim, quando ele se for embora preocupa-me o futuro da Missão. Também penso que a Comunidade Portuguesa está a ficar cada vez mais enfraquecida. Onde está o Bairro Português? Quase que desapareceu, as nossas lojas estão todas a fechar, dá pena. Já ninguém chama a isto a zona portuguesa, chamam-lhe o Plateau. Vamos à zona italiana e vê-se que aquilo é italiano, é diferente, há ali muita força, muita vontade de manter a identidade italiana. O futuro da Comunidade são os jovens e não vejo muita implicação deles. Aqui na Missão, a minha filha faz parte do grupo Jovens em Acção mas não há grandes actividades, falta alguma coisa que os chame, nem sei bem o quê, mas a verdade é que eu sinto que faz falta qualquer coisa nova. Devia-se formar um grupo de reflexão sobre essa situação, pôr ideias em cima da mesa, para que esta Comunidade possa continuar. Talvez que na escola portuguesa os professores pudessem discutir o assunto e apresentar ideias, criar um projecto. Vemos que os alunos fazem a 6ª classe e depois, infelizmente, a maioria vai-se embora, nunca mais ninguém os vê, não há mais nada que os interesse e que os mantenha ligados à Comunidade.» Fica absorta, voga-lhe no olhar um farrapo de nostalgia, apoia o rosto na palma da mão antes de prosseguir: «Também já fui mais activa na Missão, pertenci durante muitos anos à comissão de pais da escola Santa Cruz , frequentei os ateliers de azulejos da UTL mas depois dum grave acidente que tive, há cerca de três anos, fiquei muito enfraquecida e fui obrigada a retirar-me mais. Adorei o curso de azulejo da UTL, enquanto lá estava esquecia todos os problemas da vida, estava concentrada naquilo, o professor Nelson era uma pessoa formidável, ainda hoje sou amiga dele. Fiz trabalhos muito bonitos, já me ofereceram muito dinheiro por um dos quadros mas por dinheiro nenhum do mundo o vendia, tem para mim um grande valor sentimental.» De chofre, uma centelha de inspiração salta à tona do olhar, desabrocha num sorriso aberto. «Por falar nisso, talvez criar um curso de azulejos para os jovens não fosse uma má

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ideia. Seria uma maneira de os reunir e de os valorizar. Entusiasmá-los a fazer um mural em grupo...quem sabe?» Pela luz dos olhos, mais intensa, suspeitámos que nos recônditos da mente, naquele preciso instante, uma semente sacudira o torpor da resignação, ansiosa por germinar. Seria? O futuro o dirá.

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Ludmila Aguiar

Uma jovem que ama os desafios

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Entrevista realizada a 23 de Março de 2013, em Montreal

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Salta logo aos olhos que a Ludmila Aguiar é uma jovem

decidida, disposta a conquistar o seu lugar ao sol. Quem a vê deambular, desenvolta, pelas instalações do hotel Dix (Ten), ali na esquina do Boul. St-Laurent com a Sherbrooke, onde é a directora de vendas, não pode deixar de reparar na sua postura voluntariosa e determinada. Nasceu em Maio de 1977, em Montreal, no Plateau, como ela gosta de mencionar, o que quer dizer no Bairro Português, para sermos mais bairristas e para melhor compreensão por parte das nossas gentes.

«Cresci até aos catorze anos no Plateau, altura em que os meus pais decidiram comprar casa em Laval.

Os meus pais chegaram muito novos a Montreal e são os dois de S. Miguel. Já se namoravam nos Açores e casaram aqui. A minha mãe tinha dezassete anos quando eu nasci, aos vinte e três anos já tinha três filhas.

Andei na escola primária Saint Enfant Jesus, no Plateau. Guardo muitas memórias agradáveis da infância. Havia muitas crianças portuguesas, gostávamos de brincar muito na rua.» Olhos nostálgicos, passa os dedos pelos cabelos longos e frisados. «Quando penso na minha infância, recordo logo o filme “Manuel, le fils emprunté”, por causa das imagens, das crianças a brincarem na rua, as pessoas sentadas à porta das casas. Então no verão adorávamos porque ficávamos na rua até às tantas da noite, havia uma camaradagem entre os vizinhos, era muito interessante, coisa que perdemos quando fomos viver para Laval. Mas mesmo depois continuámos a fazer quase toda a nossa vida aqui no Plateau, a escola, as compras, cada vez que me perguntam donde sou, eu digo que sou do Plateau. Em casa falava-se sempre português, o meu pai não queria que perdêssemos a nossa cultura e a nossa língua. Quando alguma das nossas amigas portuguesas ia lá a casa, o meu pai avisava-a logo para só falar português. Quando somos miúdas achamos isso um bocado chato mas hoje acho que fez

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muito bem. Tenho primos que vivem nos Estados Unidos e só falam inglês, quando cá vinham visitar-nos nem conseguiam comunicar com a minha avó, era triste. Eu sempre mantive uma boa relação com a minha avó porque conseguia falar com ela, enquanto que para eles era como se fosse uma pessoa estranha, a relação era muito diferente.» Pelo modo insistente com que fala da avó, apercebemo-nos do carinho que as unia, por isso insistimos para que aprofunde um pouco mais esse mundo dos seus afectos. Solta uma gargalhada curta, nervosa, há lágrimas que lhe saltam aos olhos e que limpa com a ponta dos dedos, fixa o olhar no tecto para se recompor.

«Vão-me fazer chorar, é difícil falar dela», continua, com voz embargada.«Como ela faleceu há um ano, ainda está muito fresco. Eu tinha uma relação muito próxima com a minha avó, eu e as minhas irmãs, pelo facto de que ela viveu sempre aqui, em Montreal connosco, era normal estarmos sempre em casa dela. Deixou-nos muitas tradições açorianas, como a sopa de safio, a massa sovada, as malassadas, o polvo da consoada, o presépio no Natal.» As lágrimas, rebeldes, continuam a humedecer-lhe o rosto. «Hoje em dia, tenho muito orgulho em ser açoriana porque a minha avó conseguiu transmitir-me parte da sua cultura, também certas palavras que ela utilizava e que não são muito correntes, por exemplo, a minha avó não dizia o passeio, dizia o ladriz, “então, mulher, não sabes o que é um ladriz?”, espantou-se quando eu lhe ouvi a palavra a primeira vez e não a compreendi. Também havia tudo aquilo que ela nos contava, as histórias da família, como quando nos falava da mãe dela que engravidou vinte cinco vezes, enfim muitas histórias de antigamente, da pobreza, da vida difícil daquele tempo. A minha avó era uma pessoa muito orgulhosa, gostava de vestir bem, de se maquilhar, nunca aceitou a idade que tinha, tinha setenta anos mas era como se tivesse cinquenta. Como era assim, pensávamos que iria durar para sempre. Nós, as três irmãs, quando agora falamos dela, queremos fazer as coisas que ela fazia, queremos todas aprender como se faz massa sovada, como se fazem malassadas. Acho que isso é importante para mim porque vivo em Montreal, Québec, mas a minha cultura é muito portuguesa, sinto-me acima de tudo portuguesa.»

Para tentar compreender esta evolução identitária, voltámos atrás, aos verdes anos da vida de estudante.

«Fiz todos os meus estudos em Montreal, a escola

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secundária, o cégep, a universidade. Dizia muita vez, eu ia para Laval era só para dormir. Ao contrário de outros alunos que conheci, gostei de frequentar a escola portuguesa dos sábados, conclui o 11º ano e isso permitiu-me encontrar outros estudantes portugueses, foi fundamental para aprender a história e a língua portuguesas, nunca me passou pela cabeça desistir, sobretudo, ajudou-me a amar Portugal que, a partir de 1997 ou 1998, passei a visitar todos os anos.

Quanto à escola francesa, frequentei o colégio Marie-Rose, que mais tarde se passou a chamar colégio Rachel, era uma escola privada, só para raparigas. Foi uma experiência que ainda hoje me levanta certas dúvidas, se um dia for mãe, acho que não irei inscrever as minhas filhas numa escola só para raparigas. Recordo que quando, mais tarde, cheguei ao Cégep Maisonneuve, no convívio com os rapazes senti-me bastante intimidada, tive alguma dificuldade em integrar-me, sentia vergonha, nas aulas não queria falar, ficava no meu cantinho a fazer as minhas coisas.

Mas reconheço que o colégio Marie-Rose me deu uma boa formação, foi essa a principal razão que levou o pai a matricular-me, assim como às minhas irmãs, nesse estabelecimento, não obstante o sacrifício financeiro que isso acarretava.»

Concluído o cégep, depois de algumas hesitações, optou por fazer um curso em comunicação na UQAM (Université du Québec à Montréal).

«Acabei por não trabalhar nesse ramo, presentemente estou mais ligada às relações públicas, como sabem, sou directora de vendas aqui no hotel. Mas ainda penso regressar à universidade, apesar de adorar a comunicação, também há a área do marketing que me atrai muito e que gostaria de explorar mais, para conseguir uma base mais sólida que sinto que me fará falta na minha vida profissional futura.»

Mas nem tudo foram facilidades na sua vida de estudante, cedo ingressou no mercado de trabalho para aliviar a carga dos pais.

«Paralelamente aos estudos, comecei a trabalhar logo que acabei a escola secundária, para ajudar a pagar os estudos no cégep e depois também a universidade. Trabalhei num Dunkin Donuts, depois tive outros trabalhos, e quando fui para a universidade trabalhava na recepção dum hotel.

Foi difícil conciliar estudos e trabalho, cheguei a trabalhar

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trinta horas por semana. Com três filhas, as despesas eram muito elevadas para os meus pais e todas trabalhámos para os ajudar. Apesar das dificuldades, saímos todas da universidade com um diploma, que era aquilo que os meus pais mais queriam.»

Com calendário tão preenchido, mesmo assim ainda conseguia arranjar tempo para se divertir como qualquer rapariga da sua idade, no que contou sempre com a compreensão dos pais.

«Os meus pais, apesar de serem bastante tradicionais nalguns aspectos, sempre foram pessoas muito abertas, nunca puseram barreiras, aproveitámos bem a nossa juventude. Nunca nos impuseram horários, não havia nada disso, deram-nos a liberdade de fazermos o que quiséssemos, mas, em contrapartida, nós impusemo-nos as nossas próprias barreiras. Tive uma juventude com muita liberdade, reconheço.

A atitude deles deveu-se talvez ao facto de terem sido pais muito novos e terem já uma mentalidade diferente. O que também ajudou muito foi o facto de desde miúdas sermos muito responsáveis. O desporto sempre foi muito importante para o meu pai, e nós aos cinco anos já fazíamos também desporto, durante a minha infância todos os dias havia a natação. Nós sabíamos que depois da escola não havia brincadeiras, era ir a casa buscar os nossos sacos de treino e íamos logo para a piscina até às seis horas da tarde, essa disciplina tornou-nos muito responsáveis.»

É sabido que o pai, o Norberto Aguiar, sempre esteve ligado aos meios de comunicação nomeadamente como chefe de redacção do jornal A Voz de Portugal e mais tarde como editor e também chefe de redacção do jornal LusoPresse, foi, pois, com naturalidade que a Ludmila também, a certo passo, se envolveu nessas lides.

«Segui um pouco os passos do meu pai, das três irmãs fui a mais envolvida, fiz parte, durante muitos anos, da equipa de jovens do LusoPresse, o que foi muito interessante. Aprendi muito, desenvolvi também a minha maneira de escrever, só que depois acontece a vida». Encolhe os ombros e sorri, um pouco enleada. «A gente começa a desligar-se, começamos a pensar na nossa própria carreira, vai faltando o tempo. Tenho pena que já não exista uma equipa de jovens ligados ao jornal, os tempos mudaram muito rapidamente, os jovens parecem muito desinteressados da vida da Comunidade, não sei como explicar.»

A sua participação nas actividades da Comunidade não se

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ficou por esta experiência, fez rádio, na Rádio Centre-Ville, foi durante algum tempo apresentadora na televisão comunitária, fez teatro na Casa dos Açores e numa peça encenada pela actriz Isabel dos Santos, para além de ser animadora de inúmeras festas e encontros culturais.

Mas, tal como ela disse, depois aconteceu a vida, com outras exigências, outros caminhos solicitaram os seus passos.

«A certo ponto fiquei um pouco saturada, queria-me concentrar na minha carreira e também senti que, apesar de tanto esforço, era um bocado ingrato, não havia muito reconhecimento pelo meu trabalho.» Franze a testa, cala-se, em busca das palavras. Há algumas nuvens a vogar nos olhos enormes e expressivos. «É muito fácil criticar, muitas vezes não se dá muito valor ao que fazemos, isso mexeu um bocado comigo, talvez fosse o sinal para me retirar e concentrar-me noutros objectivos.

Depois de terminar a universidade continuei a trabalhar na área da hotelaria. Presentemente, o meu trabalho é um grande desafio, é muito exigente, mas dá-me muita satisfação porque preciso de ser estimulada, preciso de desafios.»

Palavra puxa palavra, a conversa deslizou para os problemas da sociedade actual. Confrontada com a dissolução dos valores tradicionais da 1ª geração, tem um ponto de vista que difere bastante do de muitos jovens da sua geração.

«Os meus pais estão casados há trinta e sete anos, acho isso muito bonito. Eu tenho trinta e seis anos e ainda não sei o que será a minha vida quanto a esse respeito. O que eu vejo é que os jovens da minha geração, após alguns anos de vida em comum, se separam com a maior das facilidades. Acho triste porque as pessoas não fazem grande esforço para manter a relação. E devido ao facto de as mulheres agora trabalharem, já não precisam dos homens, nem para ter filhos, tudo isso faz com que as relações sejam muito mais difíceis. Adaptamo-nos a esta evolução mas acho triste porque, realmente, ninguém quer acabar os seus dias sozinho.»

Com tantas voltas e reviravoltas, chegámos à questão sacramental da identidade.

«No fundo de mim mesma, sinto-me portuguesa», confessa, sem rodeios. «Portuguesa, porque não há ninguém que olhe para mim e diga “tu es québécoise, toi”, talvez agora, nos últimos três ou quatro anos, é que, por vezes digo que os meus pais são portugueses e que eu nasci cá, mas o que eu, realmente, me sinto é portuguesa, é a primeira coisa que me vem

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à cabeça. Não me identifico com as tradições canadianas ou quebequenses, mas a verdade também é que quando vou a Portugal ninguém diz que eu sou portuguesa.» Uma certa perplexidade derrama-se pelos olhos muito abertos. «Aceito este paradoxo mas dói, é como se não reconhecessem que eu venho de pais portugueses, nasci fisicamente num país mas tudo o resto é português. Apesar de tudo, se um dia tiver filhos tenho a certeza de que irei ensiná-los a falar português, tal como a minha irmã já faz com os seus três filhos.»

Os seus contactos com a Comunidade Portuguesa são, presentemente, muito superficiais, resumem-se ao convívio familiar, às idas aos restaurantes e pouco mais. Mas Apesar de certo desencanto, ainda lhe acalenta o coração uma réstia de esperança, no que diz respeito ao futuro da Comunidade Portuguesa.

«Acredito que na Comunidade há muitos talentos escondidos, sobretudo nas 2ª e 3ª gerações, gente com grande formação, ainda há dias soube que uma minha antiga colega de escola era médica, nem me passava pela cabeça. E como este exemplo há muitos mais, tenho a fé que um dia todos esses valores despertarão, acabarão por sair do seu individualismo e saberão dar as mãos.»

Se a profecia se concretizar, ainda um dia voltaremos a ver a Ludmila de volta às lides da Comunidade, lê-se nos seus olhos luminosos onde a esperança teima em persistir.

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Paula de Vasconcelos

O doce olhar da Arte

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Entrevista realizada a 30 de Março de 2013, em Montreal

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Como era de esperar, a conjugar harmoniosamente com o

seu perfil, a Paula de Vasconcelos mora num recanto tranquilo do Plateau propício à reflexão e à paz de espírito que as exigências da sua arte requerem. É lá, na sua casa recatada, onde habita há mais de vinte anos, que nos acolhe calorosamente, com a simplicidade, despojada de artifícios, que a caracteriza. Para dar ainda mais calor à ambiência, um cão enorme, amistoso, deambula tranquilamente pela casa, vem-nos farejar, intromete-se na conversa, como que a indagar quem somos e o que pretendemos. Na cozinha, o marido e os filhos, ainda ao redor da mesa do almoço, fazem-se discretos, evitam perturbar o nosso encontro. Logo no primeiro contacto, o que mais impressiona na postura da nossa anfitriã, é a doçura do olhar. Um olhar que encerra um saber que se vai alimentar em nascentes profundas, muito para além do mundo visível e explicável. Para facilitar o desenrolar da conversa, poderemos começar por apresentá-la: Actriz, autora e encenadora, Paula de Vasconcelos chegou ainda criança a Montreal e desde muito cedo foi atraída pelo mundo do teatro. É, em colaboração com o marido, Paul-

Antoine Taillefer, directora do Pigeons Internacional, um espaço

teatral onde tem levado à cena criações de grande qualidade e prestígio e onde explora temas que sempre a fascinaram: a solidão, o indivíduo a multidão, a fraternidade, a humanidade, a abolição das barreiras, a mestiçagem das culturas, a pertença a uma aldeia global. Posto isto, deixemo-nos enlear pelo sussurrar da sua voz melodiosa: «Nasci em Lisboa, a 4 de Abril de 1964. Os meus pais já tinham emigrado para Montreal mas como eu era a primeira filha, a minha mãe quis que eu nascesse em Portugal, junto da minha avó e da família. Tinham a intenção de me chamar Sónia mas como não era um nome português não foi aceite. Então a minha mãe enviou um telegrama ao meu pai que dizia assim: olha,

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papá, nasci mas não sou Sónia, sou Paula.» Solta uma gargalhada divertida que lhe ilumina o olhar, a revelar uma mulher de bem com a vida. «Voltámos para cá e a minha irmã Erika nasceu onze meses depois de mim. Entretanto, os meus pais começaram a achar a vida aqui muito difícil, não tinham cá família, poucos amigos, não havia um lugar onde tomar um bom café, estavam habituados à vida de Lisboa e cá tudo era diferente. Decidiram, então, regressar a Portugal e a minha mãe partiu primeiro, com as filhas, para arranjar casa e preparar a mudança. Mas, pouco tempo depois, o patrão da empresa de importação e exportação de produtos alimentares onde o meu pai trabalhava morreu e ele, vendo ali uma boa oportunidade, decidiu continuar o negócio por conta própria. Faziam muitos negócios com os países das Caraíbas e da América do Sul e o meu pai, que nasceu nas Canárias, falava muito bem o espanhol, tinha muito jeito para aquilo. Com esta mudança inesperada, a minha mãe regressou a Montreal e eu e a minha irmã ficámos em Lisboa em casa dos meus avós paternos. As minhas primeiras memórias da infância começaram aí, era um apartamento pequeno, no 4º andar, sem elevador.» O olhar ilumina-se com a chama duma ternura indisfarçável. «A minha avó já devia ter uns sessenta e tal anos mas era muito activa, cozinhava, fazia a nossa roupa, até os casacos de inverno, íamos todos os dias à praça com ela, íamos à igreja todos os dias, era uma mulher extraordinária que adorava crianças. Enfim, no ano que ficámos em Portugal estivemos muito bem rodeadas, com muito carinho. Depois os negócios começaram a correr bem ao meu pai e nós voltámos para o Canadá, tinha eu quatro anos. Lembro-me de chegar aqui e de estar muito envergonhada. Foi um período de adaptação não só à língua mas também até aos meus pais que eu já não via há um ano. A minha mãe tinha arranjado o nosso quarto de meninas, com duas caminhas, com bonecas, um autêntico quarto de princesas, enfim, adorei. E foi assim que recomeçou a minha vida, morávamos na Ville de Saint-Laurent, ainda hoje os meus pais lá vivem. Além da companhia de importação e exportação, o meu pai comprou uma fábrica de peixe congelado em New-Brunswick, que exportava para o estrangeiro em grandes quantidades. Os meus pais sempre tiveram uma atitude super aberta, vieram para cá pelo gosto de aventura, a minha mãe já falava

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inglês e francês quando cá chegou e facilmente arranjou trabalho como assistente de administração. Eram muito trabalhadores, como quase todos os portugueses que conheço, mas sempre com um grande interesse pela vida, sempre com a filosofia de que as filhas iriam escolher o caminho que quisessem, que poderíamos seguir a carreira que mais nos agradasse. A minha mãe sempre adorou História, fazíamos muitas viagens culturais, em todos os lugares que visitávamos tínhamos sempre qualquer coisa nova para aprender. Mesmo vivendo numa zona predominantemente inglesa, fomos para a escola francesa. Como na rua brincámos com crianças de língua inglesa, aprendemos logo a falar as duas línguas sem mesmo nos apercebermos disso, são idades ideais em que tudo entra sem esforço. Como disse, os meus pais eram muito abertos, deixaram-nos seguir o nosso próprio caminho. Toda a minha infância fiz muito ballet, fiquei enamorada do mundo das artes, da dança, do teatro. Desde nova, nas escolas sempre organizei peças de teatro, espectáculos, estava sempre envolvida nesse mundo. A partir dai, decidi que queria ser actriz, na Universidade Concórdia tirei um curso de encenação que correu muito bem, no segundo semestre montei a peça Blood on a Cat’s Neck. Foi tão grande o sucesso que toda a gente à minha volta me disse que tinha de voltar a apresentá-la.»

Com este encorajamento, em colaboração com o futuro marido, Antoine Taillefer, que estava, então, a frequentar a École Nacional de Theâtre e que já fizera ballet profissional, decidiram convidar estudantes das duas escolas e voltar a levar a peça à cena, não obstante os limitados escassos recursos de que dispunham. Os olhos refulgem-lhe ao recordar tão belos tempos quando as portas dum mundo maravilhoso se abriram de par em par à sua frente.

«Foi um sucesso! Essa peça conseguimos representá-la em muitos lugares, durante muitos anos, até na Europa, e foi assim que nasceu a companhia Pigeons Internacional.

A escolha do nome da companhia deveu-se ao facto de querermos um nome que se pudesse dizer da mesma maneira em francês e inglês pois os nossos espectáculos, uma mistura de teatro e dança, pretendem estar abertos a todas as culturas. A escolha também se deveu ao facto de os pigeons (pombos) serem pássaros urbanos, com quem as pessoas têm uma relação de amor e aversão e que vivem das migalhas da sociedade, para

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além disso, os pombos-correios também são mensageiros, o que nós também pretendemos ser.

A abertura às diferentes realidades culturais aconteceu desde o início, pelo facto de eu ser filha de imigrantes e não poder imaginar fazer arte só para uma língua, exclusivamente para um sector da sociedade. O meu marido é québécois e eu tenho um grande amor à cultura quebequense, penso que se deve proteger a língua francesa, mas ao mesmo tempo tenho uma grande admiração por todas as outras culturas. Nos primeiros anos, este posicionamento criou uma certa polémica no nosso grupo mas depois tudo se esclareceu. A verdade é que quando fizemos o primeiro espectáculo nunca pensámos que vinte e cinco anos mais tarde ainda andaríamos por aqui.»

Depois, como é do conhecimento público, foram sucessos atrás de sucessos, trabalhos como Perdu dans les coquelicots/Lost in the Poppies, Savage/Love, Cruising Paradise and The Making of Macbeth, Les Bachantes, La Trilogie de la Terre, L’Autre, Boa Goa e Humanity Project, consagraram Paula de Vasconcelos como uma das mais prestigiosas figuras do teatro canadiano. Pelo meio ficou a participação como actriz em alguns filmes e na série televisiva Urban Angel, uma incursão esporádica na sétima arte que ainda mais aprofundou o seu amor ao teatro. «Não gostava desse mundo, sentia que aquele não era o meu sítio, era um mundo muito artificial, com demasiado dinheiro, ao contrário do teatro em que todos nós somos pobres. Reconheço que essa participação me ajudou no aspecto financeiro a realizar alguns projectos teatrais pouco rentáveis, mas não era o meu mundo. Compreendi que gostava era do mundo do teatro. Ser encenadora é ser a actriz escondida por detrás de tudo. Sou eu a organizar, a escrever, a criar. Assim é que me sinto bem.»

Reacende-se o êxtase do olhar, passeia a mão pelo rosto, pelo cabelo, quase que a podemos imaginar por detrás do palco, a sonhar mundos mágicos e fabulosos.

Os passos da Pigeons Internacional raras vezes se cruzaram com a Comunidade Portuguesa. Presentemente, a ensaiarem num estúdio da Avenue du Parc, só há alguns anos atrás é que estiveram instalados por cima das instalações do Sport Montréal e Benfica.

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«No princípio, nem sabíamos que eles também estavam no mesmo edifício. Em tempos houve a possibilidade de nos instalarmos do último piso da Associação Portuguesa do Canadá mas, por vários motivos, não resultou.»

Não obstante a sua frenética actividade teatral, Paula de Vasconcelos continua a manter uma ligação umbilical a Portugal, onde se desloca frequentemente.

«Sinto uma grande necessidade de ir, quase todos os anos, a Portugal. Há um sentimento de pertença que cada vez está mais vivo. Portugal, para mim é um país de sonho, não me vejo lá a viver todo o ano mas aqueles rituais das reuniões de família, dos convívios à volta duma boa mesa, são coisas de que gosto muito, além disso é um país lindíssimo. Até mesmo os cheiros estão muito carregados de emoções para mim, penso que fiquei marcada desde o tempo da infância em casa da minha avó.

Já a minha irmã não foi marcada do mesmo modo, como era muito pequena não se lembra desse tempo e não tem o mesmo tipo de emoções. Os meus filhos também adoram ir a Portugal, Para eles, férias verdadeiras são na aldeia do Penedo, perto de Sintra.»

Também no decorrer das suas lides teatrais, Portugal não foi esquecido, a aproximação tem-se intensificado com o correr dos anos. A peça Cinc Heures du Matin, da Trilogie de la Terre, foi representada no Teatro D. Maria II, em 2006. Em 2007, a peça L’Autre, produzida em colaboração com a Fundação Calouste Gulbenkian, onde foi representada, deixou-lhe também belas recordações.

«Esta co-produção foi um projecto lindíssimo e deu-nos a possibilidade de contratar dois artistas portugueses que vieram a Montreal passar três meses connosco, e que ainda hoje são grandes amigos nossos. E também em consequência da co-produção, ficámos instalados, durante duas semanas, em Vila Velha de Ródão, num estúdio para artistas numa quinta maravilhosa que se chama Tojeira. Aquilo é verdadeiramente o campo português, as oliveiras, os animais.» O espectáculo também foi depois apresentado na Gulbenkian e no Teatro D. Maria II. cortar

No prosseguimento deste intercâmbio, o seu espectáculo Boa Goa, realizado em 2010, que presta homenagem às navegações portuguesas e à busca da “aldeia global”, foi representado no Porto, na FITEI, e no teatro Camões, em Lisboa.

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«Para poder montar este espectáculo fiz uma viagem sozinha à Índia, dormi na casa do Vasco da Gama, em Cochim, foi uma viagem fascinante.

Hoje sinto que o meu gosto de viajar é quase genético, faz parte da minha cultura. Vejo a história de Portugal, as aventuras dos navegantes, aquela coragem de enfrentar o mar e os monstros, como o adamastor, e o desejo de ver o que havia lá fora, do outro lado, acho que isso é fundamental na mentalidade portuguesa. Talvez eu seja um pouco romântica mas penso que a nossa maneira de ser, um pouco melancólica, facilita o encontro com os outros, foi por isso que quando chegámos à Índia começámos logo a mestiçar-nos, a transformar a sociedade rígida, de castas, que encontrámos.

O nosso próximo espectáculo, que se chama L’Architecture de la Paix, vai ser co-produzido pelo Teatro S. Luís, de Lisboa. Como vêm, a ligação com Portugal mantém-se viva, adorava, se fosse possível, passar temporadas mais prolongadas lá.»

Já sabíamos que todos os seus espectáculos têm um fio condutor comum, mas Paula de Vasconcelos não se cansa de reafirmar, de reforçar a sua visão da vida e do mundo. O seu rosto, geralmente repassado de serenidade, incendeia-se à evocação dos ideais que a alimentam e que têm norteado toda a sua vida.

«Todos os meus espectáculos celebram a riqueza da variedade humana, é indispensável estarmos abertos ao outro, aos outros, para nos conhecermos a nós próprios. Não podemos compreender quem nós somos se ficarmos num lugar hermético, é através dos encontros com os outros que compreendemos quem somos, onde vamos, donde viemos, onde estamos.»

Com a entrevista já avançada, ainda quisemos falar da irmã, a Erika de Vasconcelos, escritora consagrada, presentemente a residir em Toronto, autora dos romances My Darling Dead Ones e Between the Stillness and the Grove, que são obras incontornáveis da literatura luso-canadiana.

«Nós sempre fomos muito ligadas mas quando ela casou, aos dezasseis anos, e foi viver para Toronto, a nossa relação ficou um bocadinho arretée dans le temps. Teve duas filhas muito nova, divorciou-se e depois tornou a casar com um escritor fantástico, de origem italiana, o Nino Rici, do qual teve mais um filho.» Pressentem-se algumas nuvens a vogar por ali, quando tenta explicar o afastamento. «A distância geográfica transformou

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a nossa relação. Quando as pessoas se vêm uma vez por ano, tudo é diferente.»cortar

Sabe-se que a sua ligação com a Comunidade Portuguesa está, de certa forma, bastante diluída, sem grandes pontos de contacto.

«Eu nunca tive a veleidade de querer que a Comunidade, só porque sou portuguesa, fosse assistir aos meus espectáculos e se interessasse pelo meu trabalho. Fico contentíssima quando os portugueses aparecem mas não sinto que a Comunidade me deve alguma coisa, assim como, também, não sinto que lhe devo alguma coisa. E claro que sou solidária com a minha cultura, quando posso faço compras nos comércios portugueses, por vezes também vou a restaurantes portugueses.» E após uns instantes de reflexão: «É um facto que a Comunidade Portuguesa não tem muito interesse pelo mundo das artes, por isso eu não gosto de forçar. Evidentemente que, por exemplo, seria fascinante se pudesse fazer o meu último espectáculo com 35 pessoas da Comunidade Portuguesa mas tenho a consciência de que isso, por várias razões, é muito difícil. Talvez a 2ª geração já se comece a interessar mais pelas artes mas, actualmente, a realidade é que os imigrantes, e não só os portugueses, têm pouco interesse pelas actividades artísticas. Mas também ninguém lhes abre a porta, isso é o que eu estou a descobrir, com muita tristeza.»

Quando ventilámos a possibilidade de um dia montar um espectáculo baseado na “viagem dos portugueses para o novo mundo”, a nossa convidada esboçou um sorriso céptico.

«Não vejo bem essa possibilidade, até porque não sou uma autora que escreve com palavras, sou sobretudo coreógrafa, não são espectáculos de narrativa, por enquanto não vejo como poderia encenar isso.»

Quem sabe se a semente não ficou a germinar em qualquer parte do seu espírito criativo? A descoberta dos outros, tema que tanto a fascina, não passará um dia pela descoberta da alma genuína da Comunidade Portuguesa?

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Nisa Remígio

Pelos caminhos da verde esperança

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Entrevista realizada a 6 de Abril de 2013, em Montreal

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Há pessoas que nascem para, numa alquimia redentora,

transformar a matéria imponderável dos sonhos em alimento para as almas sedentas do maravilhoso.

Assim é a Nisa que, qual Alice no país das maravilhas, se aventurou pelos caminhos da “Verde Esperança”, para nos presentear com um ramalhete de histórias de vida de mulheres açorianas emigrantes. Este projecto tem sido, nos últimos anos, a sua ponta de lança na batalha que empreendeu em busca das suas raízes. Será, para melhor dizer, a sua obsessão, tal é o esforço, empenho e o tempo que tem dedicado à sua criação e divulgação.

Nascida em Montreal, em 1964, de origem açoriana, o pai foi um dos pioneiros açorianos, tendo chegado a Montreal em 1954, no navio Homeland.

«Passados anos regressou a S. Miguel, à freguesia da Maia, concelho da Ribeira Grande, onde conheceu a minha mãe já adulta, que é onze anos mais nova do que ele,» conta-nos, «acabaram por casar e vieram para Montreal em 1963.

Voltando atrás, o meu pai era o mais novo de cinco irmãos, duma família pobre, e estava na tropa quando surgiu a possibilidade de emigrar. Veio trabalhar para Saint-Constant, aqui perto de Montreal, numa quinta. Passado um ano, com mais dois compatriotas, foram de comboio para Vancouver, na esperança de encontrar emprego, ficaram por lá três meses, aquilo não deu certo e acabaram por regressar ao Québec onde encontraram trabalho numa barragem hidroeléctrica, em La Tuque. Esteve também no norte do Québec e em Sept-Îles, no sector das madeiras. Mais tarde, trabalhou aqui em Montreal como pasteleiro e também como concierge, responsável por um prédio de 68 inquilinos. Nos dois últimos anos da sua estadia em Montreal, esteve numa cartonagem na Ville de St-Laurent.

Vivi uma boa parte do meu tempo de criança em Hampstead e em Outremont, frequentei as aulas de português da Escola Santa Cruz, mas poucos contactos tinha com a

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Comunidade Portuguesa. Frequentei uma escola anglófona porque não me aceitaram numa escola de língua francesa pela simples razão de não ser de origem francófona, mas acabei por adquirir as duas línguas porque parte das minhas aulas eram em imersão bilingue.

Em 1973, os meus pais decidiram regressar definitivamente aos Açores. Eu tinha nove anos e a minha ideia do regresso ao Canadá penso que nasceu no mesmo dia da chegada aos Açores, não gostava absolutamente nada de lá viver.

Quando ia aos Açores de férias gostava imenso, tinha a minha avó que fazia tudo por mim, aqueles primos todos, mas viver lá permanentemente era diferente. Por exemplo, eu em Outremont ia em fato de banho para a piscina que ainda ficava afastada da nossa casa mas nos Açores não podia fazer isso porque era mal visto; aqui brincava com rapazes, lá não podia fazê-lo porque também era mal visto. Coisas simples mas aos nove anos de idade não podia compreender essas proibições que apareceram assim, dum dia para o outro, na minha vida. Não havia electricidade, algumas ruas eram de terra batida, a casa de banho era lá fora, passei a ser alérgica a tudo quanto era alimentos, detergentes e sabões, não sei se era o meu corpo que se rebelava dessa forma mas o certo é que foram anos muito complicados.

Eu era a novidade lá da terra, toda a gente queria conhecer-me, falar comigo, meter-se comigo. Lembro-me de estar na aula da professora Elisa, na terceira classe, no meio daqueles alunos com uma pronúncia tão diferente daquela a que eu estava habituada, e com idades tão diferentes uns dos outros, alguns já eram quase homens e mulheres, e isso impressionou-me muito.»

Quando fala da adolescência, ainda hoje a Nisa se debate num misto de emoções por vezes contraditórias. Faz uma longa pausa para arrumar as ideias. Começa a falar pausadamente.

«Eu tive tudo quanto uma jovem pode querer, desde a educação, os meus pais puseram-me numa escola privada, tive óptimos professores que puxaram bem por mim, que perceberam que eu gostava de aprender. Mas nunca me senti parte, senti-me sempre um pouco alheia, o meu sentido de identidade não estava bem definido e mantive sempre aquela ideia de regressar ao Canadá, que quando fosse adulta voltaria.

Não posso dizer que era infeliz, mas também não era feliz, havia qualquer coisa que me faltava. O facto de estar interna num colégio privado, o Colégio S. Francisco Xavier, em Ponta Delgada

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e dormir lá, sem poder ir para casa, também não me agradava. Os meus pais pressentiram o meu mal-estar muito cedo e prometeram-me que quando chegasse o tempo de ingressar na universidade poderia voltar para Montreal, que eles me iriam apoiar, aquilo foi como que uma luz no fundo do túnel, fiquei a saber que poderia lá chegar.»

Não obstante a inquietação, a roçar a angústia, que foi sua companheira inseparável naquele tempo, hoje, enriquecida pela experiência, o seu olhar sobre aquela época já é diferente.

«Guardo memórias muito vivas e muito ricas desse tempo a que dou mais valor depois de ter saído de lá. Foram, sobretudo, experiências que me marcaram em termos dos meus valores, os valores que eu escolhi. Por exemplo, tive a oportunidade de trabalhar na quinta dos meus pais, na lavoura da minha mãe, e perceber a riqueza da terra, perceber quanto tempo leva a criar um porco, uma galinha, uma vaca e não ser iludida pela facilidade de pegar no carro, ir ao supermercado e dez minuto depois ter um steak em cima da mesa. Há que ter um respeito muito mais profundo por todo o processo, pela terra, pela pessoa que a cultiva e que a transformam. Outro exemplo é a água, as pessoas lá tinham a noção de quanto custa a água, do seu valor precioso.

Então, eu acho que esse contacto com a natureza tornou-me uma pessoa bem mais assente, que procura valores mais duradouros. O que também me ajudou imenso foi ter visto essa diferença, fez que em vez de falar de diferenças eu possa olhar para mim e perguntar-me por que é eu sou da maneira que sou e, a partir dai tentar criar pontes, realçar aquilo que todos temos em comum e só então procurar as diferenças e tentar conciliá-las e respeitá-las.

O ter vivido em vários sítios, em várias épocas, com valores diferentes, também me deu uma visão diferente da justiça social. Criei um grande respeito pelas pessoas, pelo que elas sentem, pelo que elas vivem, pela generosidade que têm, que não tem nada a ver com haveres, a generosidade do compartilhar.» Escapa-lhe uma risada nervosa, agita-se, pressente-se que este tema é de extrema importância para ela. «Estou a ficar comovida. Estou a lembrar-me de coisas, estou agora a pensar no meu avô paterno, não me recordo do seu rosto mas lembro-me da enorme mão que ele tinha. Trabalhava numa pedreira e lembro-me daquela mão enorme cheia de cortes e de calos mas duma suavidade enorme ao segurar a minha, a sensação de segurança quando andava com ele é indiscritível, são coisas assim que

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ficam, que te marcam para sempre.» Depois de várias hesitações, com um ano de professorado

pelo meio, «uma experiência inesquecível», reconhece, decidiu que o caminho a seguir seria tirar um curso de oceanografia.

«Éramos um pequeno grupo, queríamos ser os primeiros oceanógrafos dos Açores mas só um de nós é que conseguiu o seu objectivo.

Foi então, para prosseguir os estudos nessa área, que decidi regressar a Montreal, isto no Outono de 1983. Tinha cá uma prima que me era muito chegada e fiquei a viver com ela três meses até ir para uma das residências da Universidade Concórdia onde me inscrevi num curso de Biologia numa área muito especializada, uma coisa extremamente específica, a comparação do sistema neurológico das baleias com o dos seres humanos, para aplicação na medicina.

Acrescentarei que, para minha surpresa, à minha chegada voltei a ter um choque cultural imenso. Não eram as línguas, que eu falava fluentemente, o que era problemático eram os valores, sobretudo a nível político, sentia que as pessoas aqui eram apolíticas, não entravam em debates. É preciso recordar que eu vivi o 25 de Abril e toda aquela agitação política que se lhe seguiu, e quando cá cheguei parecia que nada mexia, a época da Revolution Tranquille já tinha passado, a agitação dos anos setenta também, e depois as coisas estavam assim meio mornas. Mesmo com os referendos sobre a independência, eu achava que as pessoas não iam ao fundo das questões, notava muita emotividade mas quando era para argumentar havia muita superficialidade, era como um jogo de ping-pong, bola cá, bola lá.

Apesar desse choque, estava tudo bem encaminhado mas surgiram grandes obstáculos no meu caminho, principalmente por questões de saúde.» Um véu de tristeza tolda-lhe a limpidez dos olhos azuis, as palavras suaves, resignadas, vêm explicar uma certa fragilidade que todo o seu ser emana. «Desde os doze anos que tenho cancro, de vez em quando tenho que parar tudo, fazer operações, recomeçar, mais operações, recomeçar. Mais tarde tive um acidente em que bati com a cabeça numa estrutura metálica, perdi parte da memória, tive que reaprender muita coisa, a doença fez sempre parte da minha vida.

No meio disto tudo, apercebi-me que não queria andar com uma bata de laboratório e não cheguei a acabar o curso, fui então tirar um curso de cinema, comecei a trabalhar nesse campo, sempre em trabalhos muito independentes, fazia a

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produção, ajudava na montagem, sem nunca me envolver com as grandes cadeias, todos os trabalhos que fiz eram sobre o racismo, sobre a exclusão, sempre com um cariz social.»

Faz mais uma pausa reflexiva, fixa-nos nos olhos, para ter a certeza de que as suas palavras não se irão perder.

«No fundo, se eu tivesse que me definir, o que mais me interessa, em primeiro lugar é aprender, estou sempre a mudar de carreira porque o que gosto é de aprender, depois gosto de ajudar os outros a descobrirem os utensílios que têm à sua volta para alimentarem os seu sonhos, para fortalecerem a sua auto-estima, para fazer deles cidadãos activos. Foi isso que sempre me animou e que sempre me guiou.»

Evidentemente que esta entrega desinteressada e este despojamento têm os seus custos, por vezes enormes custos.

«Eu sempre tive os meus pais que me ajudaram financeiramente, sem eles tudo teria sido muito mais complicado, sobretudo por causa das interrupções por causa da saúde.

Em 1989, cheguei a trabalhar no Centro Português de Referência e Promoção Social, gostei imenso dessa experiência, encontrei pessoas maravilhosas, talvez tenha sido um dos meus primeiros contactos com a Comunidade Portuguesa, nunca me envolvi nas associações ou na igreja mas, em contrapartida, faço muito a promoção da cultura portuguesa fora da Comunidade.»

Faz mais uma pausa, interlúdio para nova reflexão, curiosamente convergente com outros depoimentos que temos recolhido.

«Mas o que é a Comunidade? Há dias estive a falar com algumas pessoas e chegámos a uma conclusão: existe um conceito do espaço físíco do que é a Comunidade; depois existe outro conceito que tem mais a ver com os valores e as tradições da 1ª geração; eu acho que, hoje em dia, o conceito de Comunidade Portuguesa deveria ser mais lato, não excluir, mas incluir. Penso que um dos nossos grandes problemas é de existir uma definição muito restrita, conheço imensa gente, fora desses conceitos, que não esconde que é portuguesa, que tem orgulho da sua origem, que trabalha em diversas profissões mas que não se reúne, necessariamente, sob a tutela duma bandeira, não sei bem explicar porque eu própria estou a tentar compreender.»

Quase sem nos apercebermos, estávamos já a debater a questão da identidade, colectiva e individual. A nossa entrevistada, está muito bem posicionada para este debate por ser um dos temas que mais a apaixonam, por isso prestámos

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redobrada atenção, para não perder pitada das suas palavras. «Eu ando há mais de dez anos que me dedico à questão

da identidade e trabalho sobretudo com as pioneiras açorianas. Esse projecto começou numa conversa de café na avenida Afonso Henriques, em Ponta Delgada, com a jornalista Humberta Araújo, em 2002. Cruzámo-nos por azar, tomámos café e ela disse-me: Nisa, para o ano a Comunidade faz 50 anos, por que não fazes um documentário sobre isso? Há muita pouca coisa sobre as mulheres. Podíamos depois escrever um livro.

Fiquei de pensar na proposta, já em Montreal encontrámo-nos, mais tarde, algumas vezes, outras vezes também com o Paulo Castro Lopes, e a dado momento apercebemo-nos que tínhamos certas divergências e concordámos que o melhor seria que cada qual desenvolvesse o tema à sua maneira.

Fui aos Açores, fiz pesquisa na Biblioteca Pública, nas bibliotecas todas de S. Miguel, em Santa Maria, em Lisboa, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, no total digitalizei 65.000 documentos sobre pedidos de emigração, do que resultou uma enorme base de dados. A partir daí comecei a identificar as pessoas e as famílias e depois fui procurá-las pessoalmente por todo o Canadá.»

Desse trabalho exaustivo nasceu uma recolha de testemunhos das mulheres pioneiras da emigração açoriana que, transformada numa exposição, aprimorada com componentes audiovisuais, tem sido exibida por várias localidades açorianas, nomeadamente no Museu da Emigração, na Ribeira Grande que montou uma exposição permanente que tem merecido os mais rasgados elogios. Consequentemente, este trabalho tem proporcionado imensos convites para conferências onde a Nisa, apoiada pelo acervo de material recolhido, conta histórias, com desenvoltura veste a pele das entrevistadas, por quem fala na primeira pessoa, o que empresta mais vida e colorido ao evento.

«Tenho verdadeiros tesouros, não há palavras para descrever a generosidade daquelas mulheres. Tudo isto me tem aberto muitas portas e, entre outras iniciativas em curso, para explorar outras potencialidades, vou voltar para a universidade para fazer um doutoramento em história oral, que se baseará sobre o material recolhido neste trabalho e que culminará com a publicação dum livro.

Foram dez anos de investimento de muita energia, se tivesse buscado ajudas talvez tudo se tivesse realizado em menos tempo mas sinto-me muito feliz por ter conseguido levar a

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cabo este sonho.» “O sonho comanda a vida”, quase apetece parafrasear o

poeta António Gedeão, ao contemplar o rosto, agora esfusiante, da nossa entrevistada.

«Nas minhas últimas conferências tenho defendido a ideia de que essas mulheres, que em grande parte não sabiam ler nem escrever, nem mesmo assinar o seu nome, eram verdadeiras líderes, mesmo sem se aperceberem disso. A maior parte do trabalho nas associações e nas outras instituições comunitárias eram elas que o faziam embora, aparentemente, fossem os homens que tomavam as decisões. Esta é mais uma vertente do meu projecto que desejo desenvolver e focar no futuro, a partir do material já recolhido. Hoje em dia, dá-me imenso prazer poder partilhar isto tudo, são histórias que têm que ser contadas, olhadas sob outros ângulos.»

Apoiada na experiência do seu trabalho, a Nisa tem uma opinião muito própria sobre a problemática dos imigrantes portugueses que atingiram a terceira idade.

«Baseada na minha experiência, a primeira coisa de que me dei conta é que não há estereótipos. As senhoras que entrevistei não são aquelas mulheres todas vestidas de preto, em sessenta só encontrei uma ou duas assim, o resto eram todas senhoras gaiteiras. Por outro lado, também senti que havia uma certa solidão, daí talvez a alegria que manifestavam quando alguém como eu queria conhecê-las e assim que começavam a falar, pronto, a cassete não chegava, poderia estar lá três ou quatro dias que teria histórias e mais histórias para ouvir.

Um facto que retive é que nos grandes meios como Toronto ou Montreal, porque há médicos que falam português, porque há lojas portuguesas, etc. etc., as pessoas dessa idade podem fazer a sua vida em português. Vivendo em comunidades mais pequenas, tinham de aprender outra língua o mais depressa possível e estão muito menos dependentes dos familiares. Mas essa independência também causa um maior afastamento dos filhos, dos netos, por vezes sentia nelas o peso dessa solidão.

Poucas falavam em voltar para os Açores. “Já não tenho lá ninguém, a minha família está aqui, o que é que eu ia lá fazer? Onde eu me sinto bem é aqui, na minha casa”, respondiam-me, apontando ao redor, mostrando o conforto do lar onde a televisão, sempre ligada na emissão portuguesa, ocupava um lugar de destaque.»

Presentemente, no Cégep de Saint-Laurent, no quadro

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dum programa de inclusão, é agente de integração e dá aulas de cultura e valores sociais quebequenses aos imigrantes recém-chegados, onde lhes tenta incutir os valores que sempre lhe têm norteado a vida.

«No meu contacto com os novos imigrantes sempre defendi a ideia da inclusão, para mim ser quebequense não é necessariamente ser pure laine, ou vieille souche, o Québec é mais do que isso. À partida, digo logo aos meus alunos que nasci no Québec e que sou de origem portuguesa. Depois, continuo dizendo-lhes que tenho imenso respeito pelos seus valores de origem e que integrarem-se não é aceitarem tudo o que lhes impõem. Integrarem-se não significa serem como o outro, é encontrar o seu lugar e participar no diálogo, participar na mudança, e isso não significa transformarem-se naquilo que os outros querem que eles sejam. Mas significa também respeitar os valores locais, pois a sociedade de acolho também tem a sua própria história, a sua própria evolução social, o seu próprio sistema de valores. O importante é criar uma ponte de concórdia e de respeito mútuo para que sejamos unos.»

Embora se sinta de certa forma afastada da actividades tradicionais da Comunidade, não deixa de promover regularmente encontros literários onde os apaixonados da cultura lusófona têm encontro marcado com as letras para “ler e recitar poemas, contos, trechos de romances, e outros géneros literários de escritores oriundos de países de expressão portuguesa. Duas horas de leitura e escuta, puro prazer!”, segundo as suas próprias palavras.

Quando o punhal do sofrimento nos atinge, há, principalmente, dois tipos de reacção, ou nos refugiamos na nossa torre de marfim, a sós com a nossa solidão e as nossas mágoas, ou então abrimo-nos aos outros, procuramos na entrega e na dádiva superar as nossas dores. Salta aos olhos que a Nisa, não obstante a vida atribulada causada pela doença implacável, achou no segundo caminho a forma de se sentir em paz consigo mesma e, simultaneamente, de ser útil ao próximo e ao mundo que a rodeia.

Esta entrevista, que poderia nunca mais terminar, tal a paixão com que a Nisa fala do seu mundo maravilhoso, é a prova real do que acabámos de afirmar.

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Ricardo Poupada

Uma bela história de sucesso

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Entrevista realizada a 12 de Abril de 2013, em Montreal

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O mês de Abril já ia avançado, anunciador da Primavera,

mas foi fustigados por inesperada tempestade de neve que partimos ao encontro do nosso entrevistado que nos recebeu calorosamente na sede da revista AskMen, situada no 8º andar do imponente edifício localizado na intersecção do Bl. St-Laurent com a Rue Rachel, em pleno coração do bairro português. Ricardo Poupada é a personificação do jovem empresário da nova era. O olhar vivo, a voz metálica, o gesto enérgico, a desenvoltura de quem se habituou a lidar com grandes decisores financeiros. Foi com evidente orgulho que nos fez percorrer o moderno e bem apetrechado local onde está instalada aquela que é presentemente uma das mais populares e bem-sucedidas revistas digitais do mundo. Mas a história deste sucesso fica reservada lá mais para o miolo da nossa conversa. Para principiar, começámos por lhe pedir que nos falasse um pouco sobre a sua infância e a sua chegada a Montreal, ao que ele prontamente acedeu, com um sorriso afável a iluminar-lhe o olhar.

«Chamo-me Ricardo Vigia Poupada, nasci a 20 de Setembro de 1976, na Nazaré e cheguei ao Canadá quando tinha 3 anos. O meu pai, depois do 25 de Abril, teve a oportunidade de ingressar nos quadros do Fundo de Fomento de Exportação, penso que é esse o nome, o que implicou a aceitação dum posto no estrangeiro. Foi-lhe dada a opção de escolher entre Caracas, Nova Iorque e Montreal. Acabou por optar por Montreal, que era, a seu ver, a cidade mais segura e tranquila.

Fomos viver na Dochester, hoje Réné-Lévesque, um pouco afastados da Comunidade Portuguesa. Senti o contraste entre a Nazaré e uma grande cidade como Montreal. Eu era um miúdo muito curioso e irrequieto, estava sempre a perder-me dos meus pais que têm muitas histórias para contar a esse respeito, como por exemplo quando fui de WestMount até Longueil, uma história que até envolveu a polícia.

Fui para a escola inglesa, porque o meu pai, pensando

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que só iríamos ficar por cá alguns anos, achou ser o inglês a língua mais aconselhada para eu aprender. Mas também, desde a chegada cá, fui para a escola portuguesa dos sábados, era muito importante para os meus pais que eu continuasse a falar português. A minha situação era diferente da dos outros jovens portugueses porque, durante as férias, ia todos os anos passar três meses a Portugal, portanto a minha ligação ao país era muito forte. Mesmo sem me aperceber disso, desde miúdo sempre tive muito orgulho em ser português.

Desse tempo recordo o amor que o meu pai tinha ao fado, na nossa casa estava sempre o Carlos do Carmo a tocar. Confesso que, então, eu não gostava muito desse tipo de música mas hoje em dia sou eu que levo amigos a Lisboa para ouvir o fado. Fiz o ensino secundário na Rosemount High School, frequentei a Dawson e terminei o meu curso na Universidade Concórdia, em 1999. Como não havia muitos portugueses na escola inglesa, todos os meus amigos eram de outras nacionalidades. Depois que os meus pais divorciaram, tinha eu dez anos, era muito difícil manter a ligação com a Comunidade Portuguesa. Houve um tempo em que até queria esconder a minha origem, porque, jovem e inexperiente como era, pensava erradamente que os portugueses não tinham a melhor imagem, que eram só criados e trabalhadores da construção, foi um período da minha vida em que não sentia a motivação para me aproximar da Comunidade. Então as festas, – suspira – sei que é bonito manter as tradições, mas como ia todos os anos a Portugal, via a evolução enquanto que aqui se estava preso no tempo. Portanto, em parte por estas razões, a imagem que eu tinha da comunidade portuguesa no Canadá era bastante negativa. Apesar disso, gostava muito de ir à escola portuguesa. Adorava dizer aos meus amigos que estava a estudar a História de Portugal, enquanto aqui, no Canadá, as guerras eram entre umas centenas de pessoas, lá eram entre milhares de combatentes, tal como a batalha de Aljubarrota e todas as outras grandes batalhas. Para mim não tinha grande interesse a História do Canadá, quando tinha uma história espectacular em Portugal. Mas entrava na escola e saía, nunca ficava aqui no Bairro Português, não tinha amigos portugueses, durante muitos anos estive muito afastado. E depois, quando comecei a sair e a interessar-me por miúdas, não havia nenhuma portuguesa ao

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meu redor.» Chegado a este ponto, há uma pausa no seu discurso. Um laivo de quase melancolia aprofunda a intensidade do olhar, arredonda o timbre da voz. Vozes subterrâneas agitam-se, acabam por se soltar e emergir, transformam o teor da conversa, até aí demasiado formal. O homem, mais visceral, mais autêntico, emerge, ganha uma dimensão renovada e mais abordável. «Só que dentro de mim sempre quis ter uma ligação mais forte às minhas raízes, alguém, uma namorada. Eu queria estar mais envolvido e sempre senti essa falta.» Muda de posição na cadeira, pela primeira vez menos seguro de si. «Pelo facto de ter nascido em Portugal e de manter tantas ligações a Portugal, continuo a sentir-me muito mais português do que certos jovens luso-descendentes já nascidos cá. Quando era mais jovem sentia a necessidade de me alimentar dessa cultura, de um dia poder transmitir essa riqueza aos meus filhos. Portanto, fruto dessa necessidade, quando tinha vinte e tal anos esforcei-me muito por me envolver mais na Comunidade, por conhecê-la.» Instado para que desenvolvesse um pouco mais esta dimensão dos seus afectos, não manifestou grandes hesitações, como se fosse um tema já bastante polido no seu íntimo. «O facto de eu ter nascido em Portugal e de lá ir frequentemente, fazia com que eu me sentisse muito mais português do que certos jovens aqui da Comunidade. Mesmo agora vou lá todos os anos e de certa maneira conheço Portugal muito melhor do que muitos portugueses. Em jovem, era importante para mim preservar a minha cultura, eu via os jovens de outras comunidades, por exemplo os gregos ou italianos que não falavam bem a língua de origem, eram gregos ou italianos talvez cada quatro ou cinco anos, quando visitavam os países de origem. Para mim era importante pensar que um dia poderia transmitir a minha riqueza cultural aos meus filhos, poder dizer-lhes: tu tens uma história de que te podes orgulhar. Portanto, mais tarde, quando tinha vinte e tal anos, esforcei-me muito por me envolver na Comunidade Portuguesa, por conhecê-la, por conhecer pessoas. Quando comecei a sair com uma namorada portuguesa, também foi um ponto importante porque ela estava muito envolvida nas actividades culturais da Comunidade e, por conseguinte, o meu envolvimento ficou muito facilitado. Agora vejo a Comunidade com olhos diferentes, já não me

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envergonho, já vejo tudo de outra forma. Faço os possíveis por mostrar aos outros, às outras comunidades, que sinto muito orgulho da minha origem. Tenho muitos negócios com pessoas de outros países, nomeadamente com americanos, e estou sempre a falar-lhe de Portugal, tenho sempre fotografias no meu telemóvel que lhes estou constantemente a mostrar.» Há um sorriso que lhe alastra pelo rosto. «Hoje em dia, sinto-me um embaixador que tem por obrigação divulgar e melhorar a imagem dos portugueses de Montreal. Todos os meus amigos dizem que eu sou a pessoa mais patriota que conhecem. Houve tempo em que assinava os meus emails como Ric, presentemente assino sempre Ricardo, assumo o facto de ser português com todo o orgulho.

Ainda hoje levei um cliente grego a um restaurante português, iniciei-o na descoberta da gastronomia portuguesa e é assim, penso, que passo a passo se pode modificar a imagem, por vezes negativa, que os outros têm de nós.

De certa maneira, mesmo com a AskMen, eu sempre tentei transmitir uma imagem favorável de Portugal quando escrevíamos, por exemplo, sobre o vinho do Porto e quando abordávamos outros temas, como a gastronomia.»

Era o momento propício para tornar a abordar o seu percurso escolar e, inevitavelmente, a sua prodigiosa carreira profissional.

«Na Universidade Concórdia, diplomei-me em finanças e fiz uma mineur em marketing porque o meu sonho era trabalhar na Wall Street. Sempre me interessei por temas financeiros, desde muito novo compreendi que havia dois mundos: o dos decisores e o resto do mundo. Perguntava-me como é que se poderia entrar no mundo dos decisores e a resposta que encontrei foi que a maneira mais fácil era entrar na Bolsa, no mundo financeiro.

Não sei o que aconteceu com a nossa Comunidade, mas apercebo-me que não temos a mesma ambição de outras comunidades.» Faz uma pausa para aclarar os pensamentos, morde os lábios. «Na minha opinião, a Comunidade Portuguesa não foi capaz de evoluir, talvez esteja satisfeita com aquilo que alcançou mas não tem a ambição de dar um passo em frente, de arriscar e ir mais além. Os pais transmitiram aos filhos essa falta de ambição, encorajaram-nos a contentarem-se com um emprego estável e a ficarem por ali, sem sonhos mais altos, em vez de lhes dizerem: tu podes ser o melhor do mundo, tu podes ser um

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vencedor. Como tenho muitos amigos de outras comunidades, vou

aos seus centros comunitários, observo os jovens, vejo as suas atitudes, sinto-os muito mais ambiciosos do que os jovens portugueses. Talvez eu pudesse ser uma fonte de inspiração para eles, incutir-lhes outra visão, nesse campo é que penso que poderia ser útil.

A primeira coisa que em eventuais encontros diria aos jovens portugueses é que não deixem de visitar Portugal, só assim poderão preservar os laços afectivos e culturais com o país. A segunda coisa que lhes diria é que profissionalmente não se contentem em encontrar um emprego confortável mas que sejam exigentes com eles próprios, procurem fazer coisas de alta qualidade. Dou exemplos: do Mourinho, as pessoas dizem que é o melhor treinador do mundo e a imagem de Portugal sai engrandecida deste reconhecimento, dizem que Ronaldo é o melhor jogador do mundo e mais uma vez a imagem de Portugal brilha.

Aqui em Montreal um dos caminhos que nos tem dado bastante reconhecimento é o da gastronomia. Muitos jovens estão a abrir restaurantes e isso tem sido muito positivo, é um primeiro passo. Mas há muito mais a fazer, é preciso dar mais atenção ao marketing para vender a imagem de Portugal, conseguir realçar o que temos de bom, salientar aquilo em que somos melhores do que os outros, e com isso a Comunidade Portuguesa também iria beneficiar imenso.

Fazer este trabalho através das instituições existentes poderá ser difícil. Quando falamos entre jovens, o que se diz é que as nossas instituições não evoluíram, ninguém quer participar nas nossas festas, porquê? Devemos pensar nisso. As pessoas podem ficar magoadas com esta opinião mas esta é que é a realidade.

A grande questão que se põe hoje em dia é esta: o que é ser português aqui em Montreal? Penso que é preciso criar um branding que faça com que os outros reconheçam o novo valor e nos admirem. É esse branding que nos falta.

Reconheço que posso ser um exemplo para a juventude portuguesa de Montreal e que também tenho uma responsabilidade nesse sentido. Eventualmente, poderia reunir um grupo de jovens ambiciosos que queiram ser empresários e ser um mentor para eles, ajudá-los a dar os primeiros passos, seria muito mais proveitoso do que me envolver nas actividades

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tradicionais da Comunidade. Mas para tudo isto é preciso tempo e disponibilidade e, como disse anteriormente, não vejo uma urgência para os jovens se reunirem e avançarem com um projecto que renove a Comunidade. Talvez dentro de dez ou quinze anos seja possível.»

Já está mais do que contada e recontada a fabulosa história do nascimento da revista digital AskMen mas o tema não poderia deixar de vir à baila para fechar com chave de oiro esta conversa. O Ricardo, com um grande sorriso no rosto, não se fez rogado:

«Em 1999, quando acabei a universidade, queria ir para a Bolsa, era uma época de muita euforia, a internet estava numa explosão, existiam grandes oportunidades. Tinha-me interessado muito pela internet e aprendera as bases da programação.

Certo dia, estava num café, com mais um amigo, o Chris Rovny, a falar do futuro, quando entrou um senhor, acompanhado por uma bela mulher, bem vestido, com uma fato feito por medida e uns sapatos de qualidade. Foi então que reparei que, apesar de estar impecavelmente vestido, tinha uma meias brancas que destoavam terrivelmente do conjunto.

Eu e o meu amigo largámos a rir e a ideia saltou-nos à mente com a velocidade dum raio: por que não criar uma revista na net que dê dicas às pessoas sobre a maneira de se vestirem e de se comportarem em público? Era uma ideia que nos divertia mas que poderia ter futuro.»

Para avançar, poderemos resumir em poucas palavras o que aconteceu em seguida:

Com a colaboração de outro amigo, o Luís Rodrigues, deitaram mãos à obra e rapidamente encontraram um investidor que os ajudou a expandir o site de forma tão fulgurante que em 2005 foi vendido por 17 milhões de dólares à IGN Entertainment. Nessa altura os amigos afastaram-se mas o Ricardo manteve-se ligado ao grupo com as funções de director geral e de vice-presidente.

Rapidamente, sob a batuta da alta finança, a AskMen internacionalizou-se e actualmente tem delegações em vários países do mundo, num intrincado intercâmbio com outros veículos da comunicação social que a transformaram numa das mais bem sucedidas revistas digitais do mundo.

«Presentemente, a minha área de actividade está muito diversificada, adoro, por exemplo trabalhar no sector dos jogos vídeos. Faço também investimentos noutros mercados, o que é

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também uma forma muito interessante e proveitosa de me sentir realizado e activo.»

A hora já ia adiantada e foi com um caloroso aperto de mão que nos despedimos deste jovem que, como ele próprio afirmou, poderá servir de modelo para os outros jovens portugueses que se queiram aventurar no mundo empresarial. A grande lição que retirámos foi que, geralmente, é de ideias simples que nascem os grandes empreendimentos e se abrem as portas de mundos fabulosos. O importante é não ter medo de sonhar, como diria o Ricardo Poupada.

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Maria de Andrade

Há vozes que não morrem

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Entrevista realizada a 13 de Abril de 2013, em Montreal

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Outremont é uma das zonas residenciais mais renomadas

da ilha de Montreal, aqui fixou residência uma boa parte da elite da sociedade quebequense, em belas mansões construídas à sombra do denso arvoredo que desce da montanha.

Foi numa dessas tranquilas moradias, onde habita com a família, que Maria de Andrade nos recebeu calorosamente, quando os monturos de neve, acumulados ao longo do rigoroso inverno, já começavam a derreter e a dar os primeiros indícios da chegada da Primavera.

Nascida no Machico, na ilha da Madeira em 1958, Maria de Andrade chegou ao Québec em Junho de 1961. «O meu pai casou no Outono de 1951 e chegou ao Canadá em 1953, não tenho bem a certeza se foi um dos pioneiros que veio no navio Satúrnia. O meu irmão mais velho nasceu em 1952 e eu em 1958, o que significa que a minha mãe engravidou durante as primeiras férias do meu pai na Madeira, em 1957.

Como todos os pioneiros, foi trabalhar para a agricultura, numa quinta perto da cidade do Québec. Eu sei que no princípio ele quis regressar a Portugal porque não era bem tratado, tinha emagrecido muito, mas depois, com a ajuda de outro compatriota, a situação melhorou, foi trabalhar para uma quinta pertencente às Écoles Chrétiennes, na Île de Orléans, onde permaneceu vários anos. Mais tarde, foi trabalhar para o Lac St-Jean como bucheron e quando a família se reuniu já o meu pai trabalhava em Gagnon, depois de ter estado alguns anos em Sept-Îles, na construção do caminho de ferro que ligava as duas localidades, como aconteceu com muitos outros portugueses.» Erigida no norte do Québec, à beira do Lac Jeannine, com a desactivação da mina de ferro que lhe deu origem, poucos vestígios restam da Gagnon dos tempos áureos. «Como era muito pequena, não tenho grande recordações da chegada a Gagnon. Lembro-me que ia à escola, com o meu irmão mais velho, subíamos uma ladeira e ele levava-me pela mão. Pouco depois nasceram-nos mais dois irmãos que foram

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das primeiras crianças a nascerem naquela região. A maioria dos habitantes eram québecois e recordo-me dos garotos que eram nossos vizinhos e que nos chamavam les porticus, les porticus, lançavam os cães que tinham atrás da gente, isso é uma coisa que recordo sempre. Havia a diferença de hábitos, recordo-me que os québecois jantavam às 5 horas da tarde, as crianças iam todas para dentro de casa a essa hora e nós ficámos a brincar, quando nós íamos jantar era a hora de eles saírem. Recordo-me também que aos domingos, quando íamos à missa, a minha mãe e a minha avó usavam um lenço na cabeça e eles comentavam. Mas fora disso, na escola nunca me senti muito diferente deles.» O olhar floresce à evocação de uma recordação que lhe dá grande prazer relembrar. Há mesmo uma pequena gargalhada que lhe sobe aos lábios. «Lá em casa os meus pais escutavam música portuguesa, sobretudo os fados Amália Rodrigues e eu também os tentava cantar, sentia que era um dos poucos laços que me ligavam a Portugal, que eu mal conhecia, mas que me fazia sonhar. Sonhava que um dia iria estudar em Portugal, que iria ser advogada e que iria viver lá, fazia parte do meu imaginário de criança. Na minha cabeça havia as capas pretas dos estudantes a esvoaçar, imagens que não sei de onde vinham mas que eram muito agradáveis. Mais tarde, o meu pai fez uma carta de chamada para os meus tios que também foram viver para lá. Em 1963 ou 1964, os meus avós maternos também se reuniram à família. Estavam lá mais três ou quatro famílias portuguesas mas eu não lidava muito com elas. Algumas delas agora estão em Montreal, encontramo-nos por vezes, um dos rapazes daquele tempo é colega de trabalho do Jacques, o meu marido, também é advogado.» Devido à inexistência de estabelecimentos escolares com cursos mais avançados, em 1975 a família decidiu estabelecer-se em Montreal, perto do oratório St-Joseph. «Fui estudar para o colégio Brebeuf que naquele tempo, há mais de trinta anos, era uma escola de elite, da bourgeoisie québecoise. Os meus pais diziam sempre que podiam não nos deixar dinheiro mas que a instrução era a maior riqueza que nos podiam deixar, não queriam que os filhos tivessem uma vida tão difícil como a que eles tiveram. O meu pai, aqui em Montreal, era empregado de limpeza num hospital e a minha mãe trabalhava numa fábrica, fizeram um grande esforço para que tanto eu como os meus irmãos estudássemos em escolas privadas. Quando acabei o cégep, também no Brebeuf, fui para a

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Université de Montréal estudar Direito. Talvez por ter sido muito submissa em criança, queria ter uma vida mais livre, mais independente e via na profissão de advogado essa possibilidade. Nesse tempo estava muito interessada em política, se não tivesse ido para Direito teria escolhido Ciências Políticas mas compreendi que seria muito mais difícil encontrar emprego nesse domínio e como sou uma pessoa terra-a-terra, muito pragmática, não hesitei muito na escolha.» O ingresso na universidade deu-lhe a oportunidade de escapar à severa vigilância dos pais, sempre receosos de a verem trilhar caminhos desconhecidos. «Eu era uma rapariga obediente, não queria histórias com os meus pais, mas sempre senti que havia um conflito entre nós. Sempre os recriminei por não me terem dado a liberdade que deram aos meus irmãos, pelo facto de eu ser uma rapariga. Na cabeça dos meus pais eu sair à noite era uma vergonha, o que é que as pessoas iriam dizer, era uma questão de honra da família, isso sempre foi uma coisa que me chocou. Se chegava tarde, a minha mãe estava desperta à minha espera, cheia de perguntas, sempre receosa do que pudesse ter acontecido. Se tivesse tido uns pais mais abertos, talvez tivesse ido para Portugal, como era o meu desejo, mas como sabia que eles não me iriam permitir não fiz grande força nesse sentido. Quando cheguei à Universidade, deu-se uma ruptura, encontrei um bom grupo de amigos, e para alcançar uma maior liberdade e sair daquele jugo estava mesmo disposta a deixar a casa, tive finalmente a coragem de afrontar os meus pais. Foi na Universidade que encontrei o Jacques, o meu marido. Ele também andava em Direito e fazia parte do meu grupo de amigos, éramos uma gang de sete ou oito, saíamos muito, estudávamos juntos, foram os anos mais bonitos da minha vida.» A aproximação com a Comunidade Portuguesa aconteceu pontualmente, na maioria dos casos ao sabor de situações fortuitas. « É verdade que nós nunca estivemos muito ligados aqui à Comunidade, íamos às festas, à festa da Nossa Senhora do Monte, um ano até fui a presidente da comissão organizadora, os meus pais e os meus avós também trabalharam muito na organização das festas. Ainda nos meus tempos de estudante, em 1977 ou 1978, participei no Projet Changement, com a Lídia Ribeiro, no Centre

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Multi-Étnique Saint-Louis. Foi um trabalho de verão e gostei muito de trabalhar com as pessoas da terceira-idade, lembro-me que levei a minha avó, foi muito interessante, foi aí que comecei a lidar mais de perto com portugueses e a ter os primeiros contactos com a Comunidade. Mais tarde, em 1982, estava a terminar o meu curso e andava à procura dum estágio, numa viagem de avião para Portugal, travei conhecimento com o advogado Arlindo Vieira que me propôs ir trabalhar com ele, na Comunidade. Ele fora nomeado adido político do ministro Gérald-Godin e, como ficava com muito menos tempo livre para a sua actividade de advogado, precisava de alguém para o ajudar. Hesitei bastante porque nesse tempo tinha vergonha de falar português mas acabei por aceitar o convite» Solta uma risada, divertida com os seus medos da juventude. «Ainda não falo bem o português mas agora já não tenho vergonha. Depois o Jacques também se juntou a nós e ficámos lá cerca de dois anos. Foi nesse tempo que começámos a ir também ao Clube Oriental, foi uma bela experiência na nossa vida, ainda agora recordamos o tempo em que íamos lá tomar café e às festas. O Jacques, que já falava um pouco o português, ainda chegou a pertencer ao conselho de administração. Em 2003, fiz parte da comissão que organizou as comemorações dos 50 anos da chegada oficial dos portugueses ao Canadá, uma experiência que me aproximou mais uma vez da Comunidade Portuguesa.» A ocasião era propícia para aflorar o tema da portugalidade. Mesmo longe, atraída por outros mundos, a criança que trauteava os fados da Amália nunca esqueceu o paraíso donde partira um dia. «A primeira vez que fui a Portugal, à Madeira, tinha dez anos. Recordo-me que estivemos na casa dos meus avós maternos, eles mesmo vivendo cá, guardaram sempre a casa. Conheci muitos primos, as minhas tias, como viviam numa quinta, numa aldeia, havia muitos animais domésticos, vacas, porcos, galinhas, eu nunca tinha lidado com aquilo, era diferente do meio ambiente a que estava habituada, foram umas férias muito interessantes. Depois, quando conheci o Jacques comecei a ir com mais regularidade a Portugal. Os meus avós passaram a lá ir todos os anos e o Jacques encorajou-me a ir com eles. Quando casámos, íamos lá frequentemente, umas vezes ao continente, outras à

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Madeira, ele gosta muito de Portugal, gosta da maneira de viver das pessoas, tudo é mais calmo, as pessoas comunicam mais umas com as outras, aqui a vida é mais apressada, penso que foi isso que o atraiu. Ele adorava a casa dos meus avós, o terraço coberto pela latada com os cachos de uvas pendurados que gostava de depenicar. A primeira vez que lá fomos, o Jacques ainda não falava português, só tivera uns cursos de espanhol na universidade, mas as pessoas lá da aldeia, muitas da idade dos meus avós, achavam graça quando ele se esforçava por falar com elas.» Há uma onda de emoção que lhe marulha no olhar. «Era assim, era engraçado. Mais tarde, os meus pais também passaram a ir a Portugal todos os anos e, quando os meus avós faleceram, acabaram por ficar com a casa da família, que compraram aos meus tios.» Com o nascimento dos filhos, o Olivier e o Julien, o entusiasmo pelo torrão natal não esmoreceu. «Como eu não trabalhava no verão, ia à Madeira muitas vezes com os meus pais, lembro-me que um ano passei lá dois meses com o Olivier, mais tarde, também já com o Julien, passei lá mais algumas temporadas. Mas depois os filhos começaram a crescer e como queríamos conhecer também outros países, as visitas passaram a ser menos frequentes. No verão de 2011, a família reuniu-se toda, pela primeira vez, em Portugal, no casamento duma sobrinha que tinha ido daqui estudar na universidade do Porto e acabou por encontrar trabalho e casar por lá. Foram umas férias mágicas, os meus filhos ficaram encantados, agora só falam em passar lá o verão.» Mais uma vez fica nostálgica, o olhar perdido, há vozes subterrâneas que lhe marulham na alma, quando as palavras se soltam, num esvoaçar trémulo, arredondam o desenho dos lábios. «Eu penso que nós regressamos sempre à terra dos nossos pais, às nossas recordações, há laços que nunca desaparecem, quer a gente queira quer não. Estou contente, o facto de os meus filhos quererem ir lá é importante para mim, sinto-me orgulhosa disso, reconcilia-me comigo própria, diz-me que, apesar de tudo, transmiti alguma coisa portuguesa aos meus filhos.» Sente a necessidade de se desdobrar em mais explicações, de justificar certas decisões. «Ainda pensei em mandar os meus filhos à escola

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portuguesa dos sábados mas isso significava que não poderiam ir jogar hóquei com os amigos canadianos e dedicarem-se a outras actividades, seria um sacrifício para eles. Como a minha mãe sempre os guardou depois da escola, ela falava-lhes em português e eles respondiam-lhe em francês, mas compreendem-se bem.» Profissionalmente, a ascensão foi fulgurante, depois da esporádica experiência na Comunidade Portuguesa, trabalhou vários anos na Chambre d’imeuble de Montréal, ingressou posteriormente na função pública onde trabalhou como advogada na Comission de l’immigration et du statut de refugié onde presentemente desempenha as funções de comissaire (juiza). «A minha missão é estudar os dossiês dos refugiados e proferir uma sentença. É um trabalho muito difícil, porque quando a decisão é negativa, fica sempre o pensamento de que a decisão irá ter repercussões sobre a vida daquela pessoa. Há, inevitavelmente, uma relação humana que se estabelece, por detrás do que estás a ouvir, seja verdade ou mentira, há sempre uma história de vida difícil, de tristeza. É muito difícil manter a imparcialidade e aplicar as leis friamente.» A sua percepção da Comunidade Portuguesa de Montreal não é muito lisonjeira, há uma evidente amargura na forma como se exprime. «Nos últimos anos não tenho estado ligada à Comunidade mas apercebi-me que existem certas tensões e grupos de interesses que se entrechocam e isso é prejudicial para o seu desenvolvimento e afirmação, há pessoas que têm receio de perder os seus petits royaumes. Penso que a Comunidade deveria prestar mais atenção ao que se passa em Portugal. Portugal mudou muito, é um país moderno, com uma maneira de viver diferente da América, aqui deveríamos fazer mais a promoção do que lá se acontece, divulgar os artistas, a cultura portuguesa actual.» Mulher realizada tanto no plano profissional como pessoal, a Maria de Andrade não escamoteia os conflitos identitários que por vezes a assaltam. «Sinto que não sou completamente de cá nem de lá. Eu digo sempre que sou portuguesa e o que é interessante é que quando era mais nova não precisava de falar assim. Penso que quando ficamos mais velhos, voltamos às raízes, mas também vivemos numa época em que as pessoas precisam de ir ao encontro das suas origens e reivindicam mais as suas diferenças.

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Por vezes penso que gostaria de ter passado mais tempo em Portugal, para conhecer melhor os portugueses, para conhecer quem eu sou realmente. Quando nos reformarmos, tanto eu como o Jacques queremos comprar uma casa em Portugal e terminar os nossos dias por lá, é o nosso grande sonho.» Estávamos a meio desta revelação quando o Jacques, todo sorridente, surgiu com uma garrafa de vinho do Porto na mão e foi num português surpreendentemente fluente que confirmou o seu carinho por Portugal e a sua admiração pela nossa cultura. Também a meio da libação, os filhos, dois rapazes altos e aloirados, se nos juntaram e tivemos, num instante mágico, a impressão de estar no aconchego dum lar tipicamente português. Só faltava que do outro lado das vidraças da janela, em vez dos monturos de neve, nos espreitasse uma frondosa latada repleta de doirados cachos de uvas ansiosos por serem colhidos.

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Emanuel Linhares

Um líder forjado em basalto

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Entrevista realizada a 8 de Maio de 2013, em Montreal

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Este homem é, incontestavelmente, um líder nato.

Presença física imponente, olhar perscrutante, voz forte e dominadora, são atributos sobejamente reconhecidos de que se socorre na condução das assembleias gerais e reuniões dos conselhos de administração dos vários organismos onde, ao longo dos anos, tem exercido o seu leadership. Mas, espanto dos espantos, à medida que a conversa se desdobra por chão mais propenso às confidências, vamos, aqui e ali, vislumbrando salpicos de ternura que nos revelam, inesperadamente, um homem diferente, sensível ao universo dos afectos e das emoções mais autênticas. A conversa decorre tranquilamente no seu amplo gabinete, debruçado sobre o Boulevard St-Laurent, da firma de contabilidade JOEM de que é proprietário, em estreita colaboração com a esposa, vai para três décadas. Pelas paredes, sobre os móveis, quadros, barcos e outros adornos evocativos dos Açores, demonstram um amor indefectível à terra onde nasceu. Escudado atrás da sua sólida secretária, habituado como está a lidar diariamente com o público, toma rapidamente as rédeas da conversa, remetendo-nos para o papel de ouvintes atentos ao desenrolar das memórias que lhe afluem aos lábios, abundantes de detalhes, numa catarse que lhe incendeia o olhar. «Nasci na ilha de Santa Maria, no arquipélago dos Açores, no ano de 1960. Cheguei ao Canadá, em 1980, o que não é verdade, a primeira vez foi realmente em 1975, como já irei contar. A particularidade da ilha de Santa Maria era que ficava lá localizado o aeroporto internacional e esse facto marcou a minha infância. Os meus pais são oriundos de S. Miguel, da freguesia de Ribeira Quente. O meu pai trabalhava para uma organização chamada Terra Nostra, pertencente à família Bensaúde, e era o responsável no hotel do aeroporto pela secção do bar e restaurante.

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Naquele tempo, depois da escola, era típico as crianças irem ver chegar e partir os aviões. Ainda hoje tenho uma colecção de postais de aviões que é uma coisa maluca. A competição era ver quem chegava primeiro ao aeroporto e tentar falar inglês com os pilotos americanos: do you have post cards? era a primeira pergunta que fazíamos. Todos os aviões que faziam a travessia do Atlântico pousavam lá, havia sempre passageiros por ali, no restaurante, no bar, era raro o dia em que não fôssemos ver o movimento. Foi uma abertura ao mundo que me marcou muito. Quando íamos passar férias à Ribeira Quente via já uma grande diferença entre nós e os rapazes de lá. Por exemplo, a coca-cola para mim sempre existiu, a canada-dry sempre existiu, a situação de lidar com pessoas de outras origens também aconteceu muito cedo na minha vida. Pelo facto de haver muitos americanos a trabalhar no aeroporto, posso dizer que comecei a jogar baseball aí com oito anos. Além disso, o facto de o meu pai trabalhar no hotel, havia situações mais especiais. Por exemplo recordo que havia uma companhia de aviação cubana que se chamava Avianca. Certo ano, por volta do Natal, nunca mais me esquece, chegou um avião que avariou e a tripulação e os passageiros tiveram que ficar em S. Maria. Enquanto os passageiros pernoitaram no hotel, o meu pai convidou o comandante e os outros pilotos para passarem a consoada em nossa casa, eles ficaram todos contentes porque assim poderiam celebrar essa quadra longe dos olhares dos outros cubanos pois, como nos contaram, tinham receio de possíveis represálias quando chegassem a Cuba. À meia-noite, toda a família foi à missa do galo e os três cubanos acompanharam-nos à igreja, felizes da vida.» Quando chegou a idade de frequentar a escola primária já o Emanuel era um rapaz de rija têmpera, difícil de vergar. É com um brilho brincalhão no olhar que confessa: «Tenho que dizer a verdade, em inglês diz-se what you see, is what you get, isto não é de hoje, o problema não é feitio, é defeito, é verdade que já quando eu era garoto os professores queixavam-se ao meu pai porque eu era um pouco reguila. Recordo uma situação desse tempo em que a minha professora, a D. Filomena tinha-nos dado um ditado para fazer e eu dei um erro, falta-me um acento agudo numa palavra de que agora não me lembro. Ela chamou-me à frente e deu-me cinco reguadas em cada mão. Não sei se estão a ver as carteiras, onde

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nós nos sentávamos, tinham dois lugares, ao meio o tinteiro, e eu, furioso, com as mãos a queimar, quando regressei ao meu lugar, atirei-lhe com o tinteiro, ainda hoje estou a ver a D. Filomena, de bata branca, toda cheia de tinta.» A evocação da cena fá-lo soltar uma gargalhada divertida, quase lhe saltam as lágrimas aos olhos. « Só tive tempo de agarrar as minhas coisas e de fugir para casa.» O que lhe valeu foi que o pai, não obstante a sua rigidez, era um homem recto e, ao tomar conhecimento do ocorrido, compreendeu as razões da sua revolta e, não sem antes lhe aplicar uma sacramental reprimenda, perdoou-lhe a intempestiva reacção. Justo como é, já circunspecto, o Emanuel não quis terminar o relato desta aventura sem restabelecer o equilíbrio dos factos: «Fazíamos uma grande caminhada para chegar à escola, muitas vezes no Inverno chegávamos lá todos molhados e recordo-me que a D. Filomena estava à nossa espera com folhas de jornais que nós púnhamos dentro das calças para não ficarmos molhados o dia todo, para além de ser muito exigente, recordo sempre esse seu lado humano, sem esquecer o facto de nos ter dado uma formação muito sólida.» A criança cresceu e quando terminou a escola primária os pais não regatearam sacrifícios para o matricular no externato do aeroporto. «Os professores eram o pessoal especializado, com cursos universitários, do próprio aeroporto, que dedicavam os seus tempos livres ao ensino, já que naquele tempo só existia liceu em Ponta Delgada. Passado pouco tempo, o meu pai teve uma aliciante oferta de emprego para ir trabalhar como mordomo do Palácio da Conceição do Governo Civil, em Ponta Delgada, onde eu prossegui os meus estudos na Escola Roberto Ivens, tendo transitado depois para a Escola Industrial e Comercial. Ficámos a viver no próprio palácio o que foi um privilégio para a família.» Dinâmico como sempre foi, nas longas férias grandes daquela época não poderia ficar parado a ver a vida passar. «Habituei-me a trabalhar desde muito novo, nas férias trabalhava como ajudante de pedreiro e carpinteiro.» Entretanto, rompera a alvorada do 25 de Abril, a sociedade portuguesa estava a passar por grandes transformações e o pai do nosso entrevistado resolveu tentar a

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sua sorte no Canadá, tendo a família chegado a Montreal a 25 de Julho de 1975. «A situação política era um pouco instável e a cultura da emigração fazia parte do pensamento dos açorianos que desde sempre sonharam sair das ilhas, para melhorar as suas condições de vida. Como o pai tinha estreitos contactos com as entidades oficiais, foi fácil tratar de toda a documentação necessária. Além disso, tanto do lado do meu pai como do da minha mãe tínhamos cá família. A família veio toda junta, os meus pais e os três filhos, e arranjámos casa aqui no Bairro, na rua Clark. Os meus pais arranjaram trabalho, através da família, em fábricas de têxteis. Iam às compras na loja Universal, que ficava na Hôtel de Ville com a Mont-Royal e um dia o proprietário, o senhor Correia, viu-me lá com os meus pais e perguntou-me se eu não queria trabalhar na loja. A minha tarefa era entregar as compras nas casas dos clientes, tinha uma bicicleta, com um cesto à frente, e lá ia eu a pedalar por ali fora.» Ri, mais uma vez, bem-humorado. «Foi o meu baptismo de trabalho aqui no Canadá. Entretanto, eu o meu irmão fomos frequentar a escola Nôtre-Dame du Rosaire que ficava ali na Villeray com a St-André. Quando chegava da escola, trocava de roupa e ia para a Universal trabalhar.» Mas nem tudo eram rosas, no rosto acabrunhado do pai transparecia a tristeza que lhe cobria o coração. «No mês de Setembro, eu e o meu irmão tivemos uma conversa séria no quarto e chegámos à conclusão de que os nossos pais não tinham necessidade daquilo. Eu via o meu pai chegar a casa com os dedos todos picados pelos anzóis porque o trabalho que ele tinha na fábrica era pendurar os tecidos molhados para secarem. A minha mãe, que nunca tinha trabalhado no exterior, também não tinha uma vida fácil. Quando falámos no assunto ao meu pai, ainda estou a ouvi-lo dizer: não é hoje nem amanhã, é já, se é isso que vocês pensam, nós também pensamos assim.» O regresso a Ponta Delgada deu-se sem grandes contratempos pois o pai, que partira com uma licença sem vencimento, ainda tinha o emprego assegurado. «O meu pai partiu logo na semana seguinte e nós em Dezembro, para podermos completar o período e não perdermos o ano escolar.»

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A vida continuou a correr sem grandes sobressaltos. O jovem Emanuel concluiu o seu curso comercial e rapidamente encontrou colocação. «Quando acabei o curso, encontrei emprego, como escriturário, no Governo dos Açores, com o grande cientista Victor Hugo Forjaz, num grande projecto geotérmico que mais tarde se transformou no Programa Geotérmico dos Açores.» Naturalmente, em tempos de tanta efervescência, e devido à posição privilegiada do pai no epicentro da acção, assistiu a toda a evolução política, à constituição da Junta Governativa dos Açores, às primeiras eleições, à chegada das emissões televisivas locais, conheceu de perto a maioria dos políticos que passavam pelo Palácio da Conceição. «O Mota Amaral tinha uma grande consideração pelo meu pai que passou a ser o seu homem de confiança e devido a todos esses contactos, fui parar a Juventude Social-democrata. Profissionalmente, apesar de ser muito novo, comecei, a assumir muitas responsabilidades no Programa Geotérmico, para a primeira central, comprada aos japoneses, toda a parte administrativa estava a meu cargo, liderei grande parte do processo da compra de equipamentos. Mas a certa altura comecei a ficar desiludido com o que via politicamente à minha volta, havia certas facetas que me desagradavam e resolvi regressar ao Canadá, onde cheguei em 1980. No início fiquei cerca de um mês na casa de uma tia mas depois eu e o meu irmão João Paulo, que já se encontrava cá, fomos morar num apartamento na rua Parthenais. O meu irmão trabalhava num restaurante e eu, passado pouco tempo também arranjei emprego a lavar pratos. Mais tarde, trabalhei à noite, na limpeza, na CCQ–Commission de Construction du Québec e inscrevi-me na universidade. Fui aceite na Concórdia University, no programa Business Administration. Entretanto, comecei a conhecer lá rapazes e raparigas de origem portuguesa e decidimos organizar-nos numa associação, a CUPSA. Posteriormente, realizámos exposições, promovemos colóquios e criámos uma biblioteca de língua portuguesa que ainda agora existe, integrada na biblioteca da universidade.» Dos seus tempos de estudante relembra situações que então o chocaram mas que agora o fazem sorrir.

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«Nessa época encontrei raparigas e rapazes que não queriam ser conhecidos na universidade como portugueses. Outra situação caricata que me recordo é que certa manhã, no metro, deparei com um grupo de raparigas que me pareceu reconhecer e que, quando entraram na universidade, se dirigiram aos cacifos onde guardavam a roupa e, nas casas de banho, mudaram completamente de indumentária. Foi uma transformação completa, era como se tivessem uma vida dupla, com um comportamento em casa e outro, completamente diferente, na universidade. Mais tarde contaram-me que se quisessem continuar na universidade teriam de proceder daquela forma pois os pais não as deixavam maquilhar e usar calças de ganga.» Num dos primeiros fins-de-semana, quando o convidaram para ir a uma das tradicionais matinés do Clube Portugal, pouco faltou para arregalar os olhos com o que deparou. «Foi a primeira vez na minha vida que vi duas mulheres a dançar juntas, na minha juventude, nos Açores, nunca tal vira. Conto estas coisas para ilustrar a mentalidade que reinava por cá na época.» O encontro com a Maria João, a jovem que hoje é sua mulher e associada na JOEM aconteceu com a maior naturalidade deste mundo, os astros conspiraram todos a favor do inevitável desenlace do qual nasceram dois filhos, o Alexandre e o Marco, que «como trabalhávamos juntos, sempre estiveram no berço ao nosso lado», explica, ao mesmo tempo que, nos revela mais alguns detalhes do namorico, com uma pícara piscadela de olho. «Enquanto estudante, fui dar aulas aos sábados na escola portuguesa e aí o que acontece? Há uma rapariga que me põe o olho em cima e foi até hoje.» Sorri, feliz, certo de ter acertado na chave da felicidade. Logo no primeiro ano da sua experiência lectiva, propôs ao padre José Manuel de Freitas a abertura das instalações da igreja (então na rua Clark) para a implementação de aulas de português, nas férias de verão, destinadas aos jovens interessados. «O padre José Manuel achou a ideia extraordinária e durante todo o verão eu e a Maria João conseguimos reunir cerca de oitenta ou noventa alunos. Pegávamos nos grupos, íamos fazer leitura para a montanha, foi muito interessante.»

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Estavam assim dados os primeiros passos de aproximação com a Comunidade Portuguesa. Passados mais de trinta anos, o Emanuel deverá ser uma das pessoas de origem portuguesa mais populares e prestigiadas na Comunidade. Inesperadamente, com aquela atitude expedita que tão bem o caracteriza, retirou duma pasta, até aí adormecida sobre a secretária, algumas folhas de papel que nos apresentou com um sorriso de indisfarçável orgulho: «Está aí quase tudo.» Para quê mais perguntas? As respostas estavam ali todas expostas, preto no branco, uma interminável lista elucidativa da sua “participação na sociedade canadiana ao longo dos últimos trinta anos”, como focava o cabeçalho. Seria fastidioso transcrever neste trabalho toda a sua actividade fervilhante, mas pela amostra que apresentamos já os leitores poderão avaliar toda a dinâmica deste homem incansável:

Em Setembro de 1981, participou na criação da primeira Associação de Estudantes no Québec. É nomeado presidente fundador da “Concórdia University Portuguese Students Association”, que dirigiu de 1981 a 1984;

Em 1983, participou activamente na criação do Conselho da Comunidade Portuguesa em Montreal, tendo exercido o cargo de secretário do conselho de administração de 1983 a 1985;

Em 1983, foi eleito para o conselho de administração da Caixa de Economia dos Portugueses de Montreal;

Em 1985, conjuntamente com a esposa Maria João, funda a empresa de contabilidade JOEM Contabilistas;

Em 1989, participou na criação da Aliança dos profissionais e empresários Portugueses do Québec, de que foi presidente do conselho de administração de 1991 a 1993;

Entre 1992 e 1995 fez parte do conselho de Administração da Confederação Mundial dos Empresários Portugueses, em Lisboa;

Em 1994, participou activamente na criação da escola primária privada, em Repentigny, Academie François Labelle. Foi presidente fundador e mais tarde vice-presidente, até 2001;

Em 1996, foi nomeado membro da corporação do Collège de l’Assomption. O primeiro membro não-francófono a exercer essas funções;

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Em 1998, aquando do sismo que abalou a Ilha do Faial, foi o planificador e director responsável da construção de 200 habitações, com a colaboração duma companhia quebequense;

Em 2001, participou na criação da Société de développement du boulevard Saint-Laurent, da qual foi vice-presidente até 2010;

Em 2001 foi eleito presidente da Caixa Portuguesa Desjardins, cargo que ainda exerce;

Em 2005, foi eleito para o conselho dos representantes das Caixas do Mouvement Desjardins, cargo que ainda exerce;

Em 2007, foi eleito Presidente do Congresso Nacional Luso-Canadiano;

Em 2009, foi nomeado pela presidente do Mouvement Desjardins, para o comité consultivo da presidência;

Etc. etc. etc. Um dos seus maiores orgulhos é a sua prestação como presidente do conselho de administração da Caixa Portuguesa Desjardins que, segundo as suas palavras, no ano 2000 «tinha um volume de negócio de 50 milhões e que hoje está com 280 milhões.» Contudo, num relancear das folhas, apercebemo-nos que, talvez por não estarem ainda concretizados, faltava ali a enunciação de dois projectos de grande envergadura em que se envolveu de alma e coração nos últimos anos.

«Já em 1982, quando se discutia da mudança da Missão Santa Cruz da rua Clark para a rua Rachel, antiga escola Our Lady of Mount-Royal, eu defendi a ideia de que seria o momento ideal para juntarmos as associações num só local e rentabilizarmos os espaços da Missão. Perdemos uma grande oportunidade. Voltei a insistir em 1983, quando se fundou o Conselho das Comunidades Portuguesas, e defendi a importância de se criar um organismo de cúpula das associações portuguesas.» Durante meses e meses, na companhia da Joaquina Pires, andou de associação em associação a expor as vantagens da fusão. Não foi tarefa fácil, as reticências foram muitas, todo o seu poder de persuasão esbarrou contra as sólidas muralhas do cepticismo e do culto do status quo. «Eu acho que ainda é possível. Nós temos a responsabilidade moral de continuar as consultas e de fechar o

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círculo. Depois, perante o relatório que apresentarmos, as pessoas decidirão do caminho a tomar. Acho que, depois do processo de consultas concluído, deverá ser a nova geração a tomar as rédeas da iniciativa, seria uma boa oportunidade que teriam para se implicarem.» O segundo projecto contempla a construção de um lar para pessoas idosas, o que contaria com o precioso suporte da Caixa Portuguesa. «Este será o meu último mandato na Caixa, mas não vou aceitar que este projecto não se realize porque acho que é extremamente importante. Acho que é uma dívida que a própria Comunidade tem para com as pessoas da terceira idade. O projecto está depositado na Ville de Montréal, estamos à espera que o governo provincial vote os créditos necessários e está tudo encaminhado para que a Missão Santa Cruz apadrinhe a sua realização porque, por lei, não poderá ser a Caixa a fazê-lo. A Missão será o gestor do projecto, a Caixa irá fazer um contrato, a longo termo, de arrendamento do terreno. Avançará logo que se desbloqueiem certos impedimentos burocráticos, incluindo claro está, a apresentação à Assembleia Geral da Caixa do projecto proposto pelo seu Conselho de Administração, pois são os associados da Caixa a decidirem da autorização ou não da sua realização.» Para terminar, o Emanuel Linhares ainda referiu que o tema central que escolheu para apresentar na assembleia geral da Caixa Portuguesa, neste ano em que se comemoram os 60 anos da Comunidade, foi que as pessoas pusessem de lado o “eu” para começarem a pensar no “nós”. «Penso também que é preciso motivar as gerações mais novas, que têm uma certa desconfiança, para que sintam que podem trazer sangue novo à Comunidade, por isso há pouco referi a importância da sua implicação na criação do novo Centro Português. Também estou sempre a relembrar aos membros mais jovens do conselho de administração da Caixa Portuguesa a importância de assumirem uma certa liderança.» Não quis deixar de terminar o seu depoimento sem uma mensagem de esperança: «Sempre disse aos meus filhos que não podemos ir para lado nenhum se não soubermos donde vimos, e mesmo que eles já tenham nascido aqui, falam um português correcto, porque a nossa casa sempre foi território português e soubemos transmitir-lhes os valores da portugalidade.» E mais abrangente: «Por ter

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conhecido outras Comunidades Portuguesas, como na Califórnia, e saber o tempo que levou essas comunidades a acordarem, só a partir da 4ª geração é que elas começaram a sentir necessidade de irem ao encontro das suas raízes e de fazerem a busca da sua identidade, reconheço que os nossos sessenta anos, aqui, ainda não são nada e ainda há muito caminho para percorrer.»

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Daniel André

Um rapaz com urgência de viver

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Entrevista realizada a 15 de Maio de 2013, em Montreal

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“Filho de peixe sabe nadar”, é a primeira citação que me

ocorre à mente para começar a estruturar esta entrevista. Quem não se recorda ainda do pai, o Fernando André, que chegou a Montreal em 1982 e que logo desatou a espargir braçados de afectos pela Comunidade fora? Como bagagem, trazia uma mala carregada de sonhos, na mão uma viola para afugentar as horas de solidão e uma vontade imensa de "falar a todo o mundo do seu povo, da sua gente, a sua terra, Portugal." O Daniel, com o fulgor dos seus verdes anos, não lhe fica atrás na entrega, na generosidade e na urgência de viver, cada vez mais certo de que a vida é uma dádiva preciosa que não se pode malbaratar. Num português fluente, apresenta-se com a desenvoltura que o caracteriza: «O meu nome é Daniel de Carvalho André. Nasci a 27 de Janeiro de 1991, em Montreal, no Canadá.» E logo prossegue pelos largos caminhos da memória, sem nos dar tempo para lhe fazer as perguntas sacramentais. «Os meus pais nasceram em Portugal e conheceram-se aqui em Montreal, em 1982, na Festa do Senhor Santo Cristo. A minha mãe, a Nina, como é mais conhecida, nasceu em Perre, uma aldeia perto de Viana do Castelo e o meu pai, o Fernando André, nasceu na aldeia do Castedo, no concelho de Torre de Moncorvo. O meu pai estudou no seminário dos Carvalhos, em Vila Nova de Gaia. Depois fez um curso de desenho industrial e trabalhou na Setenave, em Setúbal, antes de emigrar para o Canadá, em 1982. Pouco tempo depois, começou a trabalhar na sala de desenho da companhia PetroCanada onde permaneceu, mais tarde como responsável do departamento, até ao seu falecimento em 2006. Já tinha publicado, em Portugal, um livro de poesia intitulado “Gostava de Ser Poeta” e envolveu-se logo à chegada nas actividades da Comunidade. Começou a escrever no jornal A Voz de Portugal, foi um dos fundadores do Rancho Folclórico Praias de Portugal, depois disso escreveu mais dois livros e participou em muitas outras actividades, como toda a

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gente sabe. Quanto à minha mãe, que é educadora de infância, já tinha imigrado com os pais para Montreal, aos dezassete anos de idade, em 1976. Casaram em Setembro de 1983, ainda há dias estive e ver as fotos do casamento e fiquei muito emocionado.» É notório que a evocação de tantas reminiscências, ensombradas pela ausência do pai, ainda lhe humedecem os olhos, apressam-no a avançar para os anos aprazíveis e encantatórios da infância. «Vivemos durante vários anos em Montréal-Nord e no ano de 2000 fomos viver para Rivière-des-Prairies onde ainda residimos actualmente. Como grande parte do meu ensino primário decorreu em Montréal-Nord, muitos dos meus amigos eram de várias origens, do Haiti, da América Latina, da Itália, dos países árabes. Adorei aquele tempo, eu era muito bom aluno, o primeiro da classe, gostava muito de ler, de descobrir coisas, aprendi a tocar piano, mas também adorava brincar na rua com os meus amigos. Já nesse tempo gostava de ler o jornal pela manhã, antes de ir para a escola, ainda hoje não passo sem isso, foram hábitos que ficaram.» Pelo fio de voz, adivinha-se a criança de então, sôfrega por descobrir os mistérios da vida, de olhos escancarados para os belezas do mundo. «Quando mudámos para Rivière-des-Prairies, foi um choque, tinha medo de perder os meus amigos, mas adaptei-me com facilidade. Era uma zona com menos imigrantes e os meus colegas na escola, diziam que eu usava expressões diferentes ao falar o francês, coisa de nunca me tinha apercebido antes.» Os seus contactos com a Comunidade Portuguesa começaram cedo por via do envolvimento do pai na escola portuguesa, primeiro na comissão de pais e depois como professor, mas também devido às actividades do rancho folclórico. «Mesmo antes de frequentar a escola portuguesa aos sábados, já acompanhava o meu pai a algumas das reuniões que ele tinha e também dancei alguns anos no rancho onde fiz os meus primeiros amigos de origem portuguesa. Gostava muito de ir à escola portuguesa, principalmente a partir dos onze, doze anos, quando me comecei a interessar pela cultura e pela história de Portugal, era uma paixão para mim. Conclui o décimo primeiro ano e houve professores que me marcaram muito, estou-me a lembrar do professor Costa e do professor Eusébio que tinham um método de ensino diferente que cativava os alunos. Em minha casa sempre existiu um clima propício ao despertar do meu

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interesse pela leitura mas também a professora D. Maria de Lourdes foi muito importante nesse sentido, ainda hoje me recordo da poesia “Balada da neve” do poeta Augusto Gil. Foi também ela que me encorajou a ver em casa o telejornal da RTPi, para ouvir uma opinião diferente e poder fazer comparações com os noticiários do Canadá. Como passava com frequência férias em Portugal com os meus pais, isso também me ajudou a reforçar os laços com as minhas raízes e com a cultura portuguesa. Recordo-me muito do ano de 2004 quando o país estava numa loucura com o campeonato europeu de futebol, com bandeiras em todas as janelas, foi impressionante. Devido à doença e ao falecimento do meu pai em 2006, também criei laços muito fortes com a família em Portugal, tanto do lado da minha mãe como do meu pai. Todas as semanas reservo algum tempo para lhes telefonar e para manter esse contacto que é muito importante para mim.» Com uma névoa de mágoa a reemergir, era o momento oportuno para dar mais uma reviravolta na conversa e para regressar aos tempos da adolescência e do curso secundário. «Frequentei a École Henri-Bourassa, integrado no Programme d’Éducation Internationale, que me proporcionou uma educação de grande qualidade e que reforçou o meu gosto pela cultura e pelas viagens. Nesse tempo, fui muito marcado por um acontecimento triste que atingiu um aluno, o Fredy Villanueva, que foi alvejado mortalmente por um polícia. Durante bastante tempo houve muita raiva em Montréal-Nord, manifestações violentas, desacatos, foi um grito de revolta da população, constituída principalmente por imigrantes recém-chegados, na maioria pertencentes às minorias visíveis, apercebi-me, então, das grandes carências existentes naquela zona da cidade. Essa constatação e o desejo de ajudar levou-me a fazer voluntariado nos organismos Les Fourchettes de l’Éspoir, Environnement Jeunesse e, mais tarde no Conseil Régional de l’Environnement (como patrulhador ambiental) que sensibilizava a população para os problemas ecológicos.» O à-vontade que se lhe derrama pelo rosto revela que este é um dos seus temas predilectos, a solidariedade social sempre foi uma das suas preocupações desde muito novo. «Ainda andava no secundário quando, por intermédio dum programa da Unicef, apadrinhei uma criança no Mali. Era mais uma forma de me lembrar que tenho a sorte de viver num país

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como o Canadá e que temos o dever de ajudar os mais desfavorecidos. Em 2011, participei numa missão humanitária na República Dominicana e no Haiti organizada pelo organismo Solidarité Jeunesse, em colaboração com a Oxfam-Canadá. Foi uma experiência muito enriquecedora e que me deu uma nova perspectiva do mundo e da vida. Uma das nossas principais missões foi a construção de seis casas na República Dominicana perto da fronteira com o Haiti, destinadas a famílias haitianas que trabalhavam nas plantações da cana do açúcar. Viviam em condições miseráveis, muito perto da escravatura e uma das nossas preocupações foi também sensibilizá-los para a sua situação e fazê-los compreender que tinham direitos que deviam ser respeitados pelos donos das plantações. Durante a nossa curta estadia em Port-au-Prince declarou-se um surto de cólera e tivemos de ser evacuados para lugar mais seguro pelas forças das Nações Unidas que lá se encontravam.» Com espírito tão aberto, foi com naturalidade que a certa altura lhe despertou no peito o desejo de viajar e de desbravar o mundo que adivinhava cheio de atractivos para um rapaz da sua idade. «Sempre me interessei por outras culturas e ainda na escola secundária fomos, em viagem de grupo, à Grécia, um país lindíssimo, com uma história tão rica para descobrir. Mais tarde, num intercâmbio de estudantes, integrado num projecto do Cégep, passei cinco semanas em Berlim a aperfeiçoar o alemão. Mas foi em 2010 que viajei mais, a Espanha, a França, a China. Assistir à Exposição Universal em Xangai foi um marco na minha vida que nunca esquecerei. Quando cheguei à China estava sozinho e andar pelas ruas de Pequim, uma cidade que nunca dorme, com aquela gente toda, foi uma experiência única. O ano passado, num intervalo dos meus estudos universitários, fui com um amigo passar três meses no Brasil. Estivemos no Rio de Janeiro, em S. Paulo e como tenho família, do lado da minha avó materna, em Minas Gerais, também lá fomos passar uma temporada. Adorei o Brasil, o clima, a língua, sentia-me em casa, é um país onde pretendo voltar. Este ano, tenciono visitar a Polónia.» De permeio com tantas viagens, no rescaldo de tanta interacção com outras culturas, quisemos saber em que termos estava a sua relação com a cultura portuguesa e qual o vigor da sua portugalidade.

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«Agora valorizo muito mais o facto de poder reinvindicar as minhas origens. Presentemente, dou muito mais valor ao facto dos meus pais me terem enviado à escola portuguesa dos sábados e de me terem criado num clima português lá em casa. Sinto que isso é uma mais-valia. Hoje, considero-me, com muito orgulho, um cidadão de Montreal de origem portuguesa.» Pela tranquilidade do olhar, pela forma calma como se exprime compreende-se que não lhe corre no peito qualquer conflito identitário, que soube conciliar todas as suas pertenças da forma sadia que só o respeito pela diversidade cultural permite atingir. «Quando estava no Brasil, dizia que era português, na China identificava-me como canadiano, nunca tive qualquer problema desse tipo.» Clarificado este ponto, chegava a altura de falar mais detalhadamente da Comunidade Portuguesa de Montreal e dos desafios que a esperam. «A Comunidade Portuguesa está viva, tem as escolas, actividades interessantes, como, por exemplo, as actividades da UTL-Universidade dos Tempos Livres. Mas chegámos a um ponto em que há muitos luso-descendentes muito dispersos, alguns que já nem falam língua portuguesa, é preciso preparar o futuro e a próxima grande etapa será a construção de um grande Centro, tal como os italianos têm o Centro Leonardo da Vinci, que promova determinadas actividades culturais e desportivas e que possa acolher artistas portugueses de qualidade. Evidentemente que o funcionamento deste Centro não poderia assentar somente no esforço voluntário dos seus membros, como presentemente acontece com as nossas associações, deveriam ser criados postos de trabalho remunerados para os quais, estou certo, deveriam aparecer muitos candidatos com as competências requeridas. Também não estou a descartar a possibilidade de num projecto desta envergadura existir um investimento privado, há muitas outras possibilidades que deveriam ser exploradas e tidas em consideração. Acho essencial, numa fase inicial, fazer confiança a um grupo de pessoas, que englobasse os jovens, para liderar este projecto. A verdade é que as actividades da Comunidade começam a enfraquecer e que é preciso fazer qualquer coisa, chegou o tempo de começar a arregaçar as mangas. Sei que já houve muitas tentativas anteriormente nesse sentido, algumas muito recentes, mas que, por um motivo ou por outro, nunca

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foram avante. Devemos deixar as rivalidades de lado, pensar que somos todos luso-canadianos e construir um Centro que nos una a todos e que tenha a dimensão que a Comunidade merece. Deverá ser um projecto viável, de possível realização, que dê garantias de financiamento, hoje em dia o tempo é cada vez mais precioso e não há ninguém que queira perder o seu tempo sabendo que não estão reunidas as condições indispensáveis para a sua concretização.» Para rematar a conversa, chegava a hora de mudar de tema e de escutar o que tinha a dizer sobre os seus projectos pessoais mais imediatos. «Quero concluir o meu bacharelato multidisciplinar ainda este ano, na Université de Montréal. Anteriormente, estudei alguns semestres na Université d’Ottawa e na Université Laval. Neste momento também estou implicado numa empresa de comunicação e de organização de eventos. Um dos meus sonhos, como empresário, é desenvolver outros projectos nessa área, há vários mercados emergentes que apresentam muitas possibilidades, estou agora a pensar no Brasil que é um país em grande expansão e com um enorme potencial.» Desde que a conversa enveredou para este tema, o rosto do nosso entrevistado emana uma luz diferente, há, por ali, um fervilhar de sonhos que o alimentam e que irão fazer da sua vida uma aventura fascinante e sempre renovada. Tal como escrevi, a respeito do pai, do Fernando André, há alguns anos atrás, também, agora, o poderei repetir, sem falsear o espírito das palavras: “Certas pessoas vieram a este mundo para desfraldar ao vento a bandeira da mudança, para agitar as almas atoladas no marasmo dum quotidiano sem história. São elas o fermento da transformação, tocadas pelo condão, pela graça de dar forma ao informe, voz ao silêncio, luz às trevas, sentido ao incompreensível.” O Daniel André é, indiscutivelmente, uma delas. Tem à sua frente as portas da vida abertas de par em par e um futuro promissor para comprová-lo e dissipar quaisquer dúvidas que ainda possam subsistir.

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Glenn Castanheira

O crente no American Dream

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Entrevista realizada a 17 de Maio de 2013, em Montreal

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Já me tinham advertido que o Glenn Castanheira era um

daqueles jovens pragmáticos e tenazes sempre pronto para deitar mãos às obras mais espinhosas. Com a sua barba bem talhada, um ar radioso, gestos largos, o ar seguro de quem encontrou o seu lugar no mundo, presta-se à entrevista com um sorriso prazenteiro e cortês de quem já se habituou a andar debaixo das luzes da notoriedade que o prestigioso posto de director-geral da Société de développement du boulevard Saint-Laurent lhe confere. «Chamo-me Glenn Castanheira, nasci a 14 de Julho de 1986, em Montreal. Tenho um irmão oito anos mais velho do que eu. Como os meus pais tinham casa em Kirkland, em West Island, foi sempre lá que vivi e frequentei a escola, mas fui praticamente criado em Villeray, em casa da minha avó materna, no tempo uma zona de emigrantes, na maioria portugueses, gregos e italianos. Praticamente, só ia para Kirkland para dormir, quando os meus pais acabavam o trabalho.

A família do lado do meu pai é continental e a da minha mãe é açoriana, da Ribeira Grande. Sobretudo do lado da minha mãe, a família é muito unida, muito trabalhadores mas sempre apoiando-se uns aos outros. Como a família era numerosa, tinha muitos tios, muitos primos, havia um sentimento da família. Em Villeray, brincava nas ruelas, foi aí que aprendi português, foi lá que dei o meu primeiro beijo amoroso», confessa, com uma risada. O facto de ser o rebento de pai continental e de mãe açoriana, força-o frequentemente a fazer comparações de culturas e de vivências.

«Penso que os açorianos têm mais o sentido da família e gostam de festejar e de se divertirem. Integram-se com muita mais facilidade nesta sociedade porque no fundo são muito parecidos com os québecois.»

Por imposição da lei 101, frequentou a escola francesa mas confessa que nunca lhe despertou grande interesse, tinha no sangue o “vício” do negócio, herdado dos dois ramos da família.

«Quando acabei o secundário IV, havia muito trabalho no

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nosso restaurante, o Coco-Rico, e eu nunca estava muito concentrado nos estudos que acabei por abandonar. Só conclui o secundário dois anos mais tarde, numa escola privada, já em part-time. Mais tarde fui estudar contabilidade no Cégep mas passado um ano, como tinha também a nacionalidade portuguesa, fui chamado para fazer o serviço militar em Portugal. Seria muito complicado abandonar tudo e partir mas essa situação encorajou-me a fazer o serviço militar cá , no Canadá, o que me permitiu cumprir o meu dever de cidadão e ao mesmo tempo continuar os meus estudos. Foi também uma experiência extraordinária no que respeita às relações humanas. Ali somos todos iguais, não há distinções sociais e esse facto desenvolve uma camaradagem que nos une para o resto da vida.» Com a especialidade de logística de transportes, por lá ficou oito anos que o marcaram para sempre e que lhe inculcaram uma resiliência que muito o ajudou no regresso à vida civil. «A vida de comerciante é muito esgotante, são sete dias sobre sete de trabalho, há sempre qualquer coisa que acontece e que é preciso resolver, a disciplina da tropa deu-me uma grande capacidade de lidar com as situações mais difíceis e stressantes. Mas sempre foi muito encorajante para mim escutar os elogios da clientela, ouvi-los falar do poulet portugais, ver aquelas bichas só para provarem os pastéis de nata. A cozinha portuguesa ajudou muito à integração da Comunidade Portuguesa e foi muito importante para que os outros reparassem em nós e começassem a conhecer e a admirar a nossa cultura.» Quando confrontado com a pergunta sacramental sobre a sua identidade, o Glenn respira profundamente, recosta-se no espaldar da cadeira para ganhar fôlego, coça a barba, tenta projectar uma segurança aqui e ali salpicada por subtis hesitações. «Qual é a minha identidade? É uma boa pergunta.» Solta uma risada. «Eu, no continente, em Portugal, sinto-me um emigrante canadiano, nos Açores sinto-me um português continental, aqui sinto-me um montréalais, um luso-monréalais.» Ergue a mão como uma espada a traçar um rumo, a estabelecer uma escala de valores mais concisa. «Realmente o que eu me sinto é montréalais, de origem portuguesa, habitando em Montréal, no Québec, no Canadá. É assim que eu me sinto. O facto de me sentir montréalais, faz-me ver o passado,

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compreender o que me trouxe até cá, a chegada dos meus avós para terem uma vida melhor, sem nunca esquecerem as raízes portuguesas. Pelo facto de viver em Montréal posso guardar as minhas raízes de origem, posso dizer sem medo, com muito orgulho: eu sou português.» A paixão por Montreal, especialmente pelo Plateau, que despontou em criança, nunca esmoreceu, levou-o, recentemente, a comprar um triplex na rue St.-Denis. «Sempre alimentei o sonho de viver no Plateau. Quando passava pela St-Denis via aquelas casas giras, cheias de vitrais e dizia para mim próprio que um dia iria comprar uma delas. Aconteceu agora, ando a renová-la ao meu gosto, para realizar o meu sonho da infância.» Como aconteceu com uma boa parte dos entrevistados deste projecto, o Glenn apercebe-se da existência dum fosso bastante profundo entre o Portugal actual e a Comunidade Portuguesa de Montreal. «Penso realmente que a Comunidade Portuguesa de Montreal não é representativa da sociedade portuguesa actual e levei algum tempo a compreender essa diferença. A verdade é que Portugal modernizou-se e a Comunidade Portuguesa ficou, em grande parte, agarrada aos valores antigos. Não estou a criticar, não digo que é bom ou mau, é só uma constatação. Mas também me apercebo que, não obstante esse facto, a nossa comunidade se integrou bem, não ficámos num gueto como, por exemplo, os judeus ou os árabes. As gerações mais velhas fizeram um grande trabalho, o facto de eu sentir orgulho de ser português devo-o a esse trabalho, posso andar na rua de cabeça erguida e dizer que sou português, a reputação da nossa Comunidade é muito boa. O português tem a reputação de ser trabalhador e honesto e em Montreal é um privilégio podermos dizer que somos portugueses. Mas também penso que até pelo facto de nos termos integrado pacificamente, chegou agora a hora de reivindicarmos aquilo a que temos direito, como já se faz em Toronto onde os portugueses têm muita força nos sindicatos e até a nível da política. O futuro da Comunidade passará inevitavelmente por pessoas como eu mas a situação preocupa-me um pouco. Constato que na minha geração há cada vez menos jovens a falar português e a conhecer a História de Portugal. Tenho receio que os nossos filhos um dia digam que são portugueses mas que não falem português nem saibam nada da cultura portuguesa.»

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Apercebemo-nos, rapidamente, que o Glenn se tem debruçado imenso sobre este problema e não ficámos admirados quando nos expôs o seu plano para o ajudar a debelar. «Uma das medidas possíveis para melhorar essa situação é que seja reconhecido o Bairro Português. É importante que seja reconhecido onde foi o berço da Comunidade porque, quando a primeira geração desaparecer, e com ela muitos dos comércios portugueses agora existentes, se não houver um reconhecimento geográfico, as gerações futuras não serão capazes de identificar onde tudo começou. De certa maneira somos vitimas do nosso sucesso, a minha geração não quer continuar à frente dos comércios que os seus pais fundaram, já tem outras ambições, há o perigo de tudo desaparecer. Mas para que o Bairro Português se torne uma realidade penso que, para além do reconhecimento oficial, sou da opinião que todas as placas toponímicas dessa zona deveriam ostentar o escudo português, um sinal visível da nossa presença.» Aqui, o jovem aguerrido emerge iluminado pela força das suas convicções. «Já falharam muitas tentativas nesse sentido mas eu sei que isto ainda é possível, vou lutar por isso e tenho a certeza que irei conseguir concretizá-lo.» O nosso entrevistado é suficiente lúcido para reconhecer que as maleitas existentes não desaparecerão com um simples toque de varinha mágica e que há mesmo uma certa tendência para que se agravem no futuro. «A Comunidade Portuguesa está muito dispersa, em Montreal, em Laval, por todo o lado, em vez de existir uma grande Comunidade Portuguesa, existem pequenos grupos. Onde é que a minha geração vai praticar a língua portuguesa? No meu caso, praticamente só em casa da minha avó, quando há reuniões de família. Se há cada vez menos lugares onde praticar a língua portuguesa, a perca da identidade vai-se acentuar. Eu sei que existem muitas instituições portuguesas aqui no Bairro, a Caixa Portuguesa, a Missão, o Clube Portugal, a Associação Portuguesa, as escolas, mas a quem é que isso serve? A minha geração, presentemente, beneficia muito pouco delas. As associações existentes actualmente servem sobretudo as necessidades da 1ª geração, acredito que precisam de passar por uma grande transformação, de se abrirem a todos, como por exemplo faz a Casa da Espanha onde a maioria dos frequentadores já não são espanhóis. Mas os espanhóis quando lá vão sentem o orgulho de dizer: esta é a minha casa, a casa dos

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espanhóis. O que eu quero dizer é que temos de saber vender o que é português e para isso talvez seja preciso despertar em nós o orgulho de sermos portugueses.» As suas actuais funções de director-geral da Société de développement du boulevard Saint-Laurent já lhe facultaram um profundo conhecimento da realidade e das carências dos comerciantes portugueses da zona. «Reconheço que os comerciantes portugueses são os menos implicados na Société de développement e, por conseguinte, os menos implicados nas decisões que são tomadas. Isto surpreendeu-me ao princípio mas depois compreendi que essa situação se deve ao facto de cada vez haver menos comerciantes portugueses na zona e de não existir a união necessária entre eles. Nota-se também uma certa falta de preparação para se adaptarem às novas regras que regem o funcionamento das empresas. Dou como exemplo que nos tempos antigos o meu avô ia matar os porcos à quinta e hoje isso já não ser possível, tudo mudou. Ser grande trabalhador já não é suficiente, as regras e as leis mudaram radicalmente e a adaptação a esta nova realidade por vezes é difícil. Apesar de tudo, acredito que a renovação da Comunidade Portuguesa passará sobretudo pelos estabelecimentos comerciais, restaurantes, cafés, etc.» Chegado a este ponto, o Glenn aproveitou a oportunidade para discorrer longamente sobre a sua visão do mundo comercial e empresarial. Pelo modo caloroso como falava, era evidente que aquele é um tema que o apaixona. O pequeno comércio familiar, onde existe amor ao que se faz e onde se preserva, como um tesouro, a identidade das culturas de origem dos seus proprietários, merece toda a sua solidariedade e um carinho indisfarçável que lhe adoça o brilho do olhar. Apontou como exemplo a seguir, contra os perigos da desumanização e da descaracterização, a atmosfera acolhedora das padarias e pastelarias portuguesas ainda existentes, o aconchego e o calor dos restaurantes, que souberam preservar a alma da gastronomia portuguesa. Não obstante o grande pragmatismo que lhe norteia os passos e o olhar objectivo que deita ao mundo que o rodeia, o Glenn também sabe cultivar o sonho, certo de que a vida sem as pinceladas coloridas das artes é muito mais triste. Como prova disso aí está em marcha um ambicioso projecto, o Mural, festival d’art public, que pretende embelezar o Boulevard, criando murais

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artísticos por toda a parte e que servirá obviamente para dar uma oportunidade aos talentosos artistas da rua. Lamenta que alguns comerciantes portugueses não tenham manifestado muito interesse pela iniciativa mas, a despeito desta contrariedade, o seu entusiasmo não esmoreceu e continua de vento em popa. «Posso desde já revelar que, no próximo ano, teremos entre nós artistas portugueses que virão pintar um grande mural no Centro Comunitário Santa Cruz. Para esse projecto contamos com a Caixa Portuguesa Desjardins, que está sempre pronta para apoiar as nossas iniciativas.» Foi com um grande sorriso de esperança que o nosso jovem entrevistado se despediu, com mais uma achega: «O importante é definir o que é ser português em Montreal e a partir daí saber vender este concept aos outros.» “E a partir daí tudo é possível”, não o disse mas deve tê-lo pensado, escudado na sua inabalável crença no american dream.

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Carta aos meus filhos

A força da diversidade

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Carta escrita a 3 de Novembro de 2013, em Montreal

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Queridos filhos, Antes de mais, quero dizer-vos que vos amo e que juntos tentaremos atravessar este período difícil e turbulento da partida do vosso pai para o que poderemos chamar o Além... Para ele, a família era, sem qualquer dúvida, um valor fundamental, para não dizer a sua maior fortuna. Para que possamos ter paz e serenidade devemos reconhecer e aceitar as suas fragilidades e a doença que o afligiu durante uma grande parte da sua existência. Só assim é que poderemos sarar certas feridas que a vida nos trouxe. Para mim, a família é a imagem da floresta, onde encontramos muitos tipos de árvores, arbustos e seres vivos com funções e destinos diferentes. É essa diversidade que também caracterisa a humanidade. Rosana e Mário-Joaquim o que vos peço é que, na medida do possível, sejais justos, solidários, livres de pensamento e orgulhosos das vossas raízes apesar de alguns nós que elas possam ter. Quanto à vossa identidade, não estou muito preocupada, tendes todas as ferramentas para fazer a melhor escolha, o mais importante é que sejais felizes. Sempre que estejais tristes e desamparados, recordai aquele magnífico e indescritível quadro que formámos os quatro, no adro da capela de Santa Isabel em Padamonte, naquela tarde chuvosa de Outubro de 2013, unidos e livres naquele cenário deslumbrante da serra do Soajo. Com carinho Vossa mãe Joaquina Enes Pires

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Os filhos do sonho

Tributo à vida

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Texto escrito a 13 de Maio de 2013, em Montreal

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O parque, fiel refúgio nos meus prolongados passeios

retemperadores, é um lugar mágico onde os acontecimentos mais imprevisíveis podem surgir a cada passo. Principalmente em dias primaveris com o de hoje, quando a exuberância da natureza parece rebentar em jorros de vida que nos entram olhos adentro como mananciais vivificantes. Quando me aproximei do campo de relva sintética, localizado lá para o fundo, junto às courts de ténis, um grupo de rapazes e raparigas entregava-se aos prazeres dum jogo de futebol que decorria em alegre algazarra. Por ali fiquei, cotovelos fincados na vedação, a seguir, ociosamente, o desenrolar da partida. Ao intervalo, um rapaz e uma rapariga apartaram-se do grupo e, depois de refrescarem o rosto no jacto de água que esguichava dum fontanário ali à mão, encostaram-se à vedação a recuperar forças. Estavam na força da idade, transbordantes de energia. Ele era vigoroso, uma fronte límpida e ampla de deus grego. Ela tinha uns olhos negros enormes e luminosos, um busto esbelto de cisne. Aquelas camisolas da selecção portuguesa de futebol, que envergavam com garbo, não deixavam margem para dúvidas. - São portugueses? - meti conversa. A rapariga, um pouco arisca, franziu a testa e olhou-me de soslaio. O rapaz sacudiu a juba encharcada e sorriu-me. - Os meus pais são do continente. Eu nasci no Canadá. - Falava um português escorreito, enfeitado com um subtil sotaque que só um ouvido mais atento poderia detectar. - Os avós da minha blonde são madeirenses, mas ela não fala o português, embora compreenda tudo o que dizemos. - Mas sentem orgulho da vossa origem - continuei, apontando a camisola. O rapaz afagou o emblema das quinas. - Tem razão, quando jogamos usamos sempre estas camisolas. É o nosso talismã. - Apostava que ainda se sentem um pouco portugueses. - Pode ser, no meu caso nunca fui muito agarrado a esses valores mas também nunca reneguei as minhas raízes. Para lhe ser franco, não são pensamentos que me preocupem

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muito. Em todo o caso, quando a selecção portuguesa ganha, nunca falto à festa que a malta faz ali na St-Laurent, no bairro português. - Se gostam tanto de futebol e da nossa selecção, podiam organizar uma equipa portuguesa - insisti, a testar a tolerância deles. Desta vez, o rapaz olhou-me surpreendido, enquanto que a rapariga, com um sorriso irónico a enfeitar-lhe os lábios carnudos, me avaliava, à socapa, da cabeça aos pés, encostando a cabeça ao peito do namorado. - Para quê? - exclamou ele. - Quando nos apetece jogar, temos estes amigos todos. - Apontava o grupo dos companheiros que já se preparavam para recomeçar a partida. - São de todas as origens, sul-americanos, africanos, chineses, até um inuit cá temos. É muito mais divertido assim, não acha? E, sem me dar tempo para prolongar a conversa, deu uma corrida para reocupar a sua posição no terreno. A rapariga presenteou-me, finalmente, com um sorriso e foi-lhe no encalce. Ao longe, as camisolas rubras das quinas sobressaiam no cacho multicolor que já reatara o jogo, em aceso alarido. Que gesta lhes moldou o ser e os conduziu, através dos dédalos das gerações, até este lugar? O rapaz, pela afabilidade e pelo garbo, adivinho-o empregado de mesa por aí nalgum restaurante, ou até mesmo barman de bar reputado. A rapariga poderá ser vendedora em boutique de pronto a vestir ou coisa parecida. Certamente, gente simples, sem grandes histórias de vida para partilhar, figurantes despercebidos na larga cena desta metrópole de variadas alquimias procriada. Afinal, todas estas conjecturas são desprovidas de qualquer fundamento, fruto da minha fértil imaginação sempre perdida em traiçoeiras divagações. A única e incontestável certeza é que ali vão agora, atrás da bola multicolor, em correria sem amarras, rendidos aos beijos do sol, estuantes de vida, um grito triunfal a irromper-lhes do peito, numa urgência de desbravar novas clareiras na floresta existencial. Quando prossegui o meu passeio, ia remoendo farrapos de pensamentos antigos: “Quanto mais caminhamos mais nos transformamos, entrelaçamos e caldeamos com as multidões peregrinas que, vindas por outros trilhos, afluem de outros mundos e de outras vidas. Sempre assim foi, sempre assim será. É sabedoria velha ciclicamente esquecida e relembrada.”

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É em ocasiões com esta que todas as lucubrações sobre as tortuosidades da existência se dissipam, pulverizadas pelo fulgor das forças originais que, incansáveis, nos moldam e fundem, eternos, na densa substância do porvir. O parque ainda florescia mais agasalhador, a rebentar pelas costuras, numa esplendorosa simbiose, de sol, verde, azul e gente. Cerrei os olhos e respirei fundo, a desfrutar, por todos os poros, a honra de estar vivo, como escreveu, em hora inspirada, o poeta Jorge de Sena.

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(...)

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.

É possível, porque tudo é possível, que ele seja aquele

que eu desejo para vós. Um simples mundo, onde tudo tenha

apenas a dificuldade que advém de nada haver que não seja

simples e natural.

Um mundo em que tudo seja permitido,conforme o vosso

gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, o vosso respeito pelos

outros, o respeito dos outros por vós.

E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto o

que vos interesse para viver. Tudo é possível, ainda quando

lutemos, como devemos lutar, por quanto nos pareça a

liberdade e a justiça, ou mais que qualquer delas uma fiel

dedicação à honra de estar vivo.(...)

Jorge de Sena

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Os nossos agradecimentos a todos os entrevistados, familiares e amigos que contribuíram para o nascimento desta obra.