ROUANET, Sérgio Paulo. Este século tem dois anos - a propósito do bicentenário de Victor Hugo

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    Este sculo tem dois anos: a propsito do bicentenriode Victor HugoSergio Paulo Rouanet

    Academia Brasileira de Letras H quase oitenta anos, um Embaixador da Frana, Alexandre Conty, foi saudado em nossa

    Academia com um discurso int itulado "Victor Hugo e o Brasil". Em suas palavras, disse oacadmico Constncio Alves:

    No lcito esquecer Victor Hugo, sempre que se fala naamizade da Frana pelo Brasil. Quem de ns ignora que onome do Brasil se l, e no raramente, na obra colossal dogrande francs? Foi ele nosso mestre sem rival no correr doromantismo e at depois. Rutilam raios de sua luz na prosa ena poesia de numerosos escritores nossos. Se a sua obra oassombro, sua vida o modelo dos homens de letras: oexemplo inexcedvel de inspirao disciplinada pela ordem, daindependncia ganha pelo trabalho, da poesia ao servio dosgrandes interesses da civilizao, do esprito no devotamentoherico do campo de batalha. Mas quem atentar napersonalidade de Victor Hugo, na fecundidade do seu trabalho,na perptua juventude de seu gnio, no poder irradiante doseu esprito, no seu senso da realidade da vida, em suasaspiraes de porvir, na exuberncia de sua vitalidade, nauniversalidade de sua simpatia, no seu interesse pelas causasgenerosas, no seu otimismo robusto, nos seus ideais detolerncia, justia, fraternidade e paz, h de ver, neste francsprodigioso, a imagem da Frana imortal.

    Tempora m utantur. Hoje exprimiramos nossa admirao por Hugo com um estilo menoshugoano. No entanto a citao de Constncio Alves elucidativa, porque d uma idia doclima de francofilia dentro do qual se deu a recepo de Hugo no Brasil.Essa atitude no foi s uma idiossincrasia brasileira, e sim um fenmeno geral na cultura latino-americana. Ele se manifesta, por exemplo, em Ruben Daro, que escreve em Peregrinaciones :"Meu desejo e meu pensamento foram-me dados pela Frana; eu seria incapaz de viver se meproibissem de viver em francs".Palavras que encontram eco no uruguaio Horacio Quiroga:

    "Para ns, pobres desterrados da suprema intelectualidade, a viso de Paris a nostalgia deum lugar que nunca vimos".So freqentes os intelectuais que escrevem em francs. nesselngua que Daro dirige uma invocao quase religiosa cidade-smbolo da cultura: "Et toi

    Simpsio Internacional VictorHugo, Gnio Sem Fronteiras

    De 23 a 26 de julho de 2002Campus UFMG - Belo Horizonte, MG -

    BrasilRealizadores Julio Jeha - Professor UFMGJunia Barreto - DoutorandaUFMG/Paris III

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    Paris! Magicienne de la Race, / Reine latine, claire notre jour obscur". O chileno Huidobropublicou em francs seu primeiro livro de poemas: Horizon carr, em 1917. Mas no Brasil a admirao pela Frana foi especialmente entusistica. No sculo 19 eprimeiras dcadas do sculo 20, vamos tudo pela tica francesa. Paris nos ensinava a sentir ea pensar. Tudo vinha da Frana, desde a culinria at a filosofia, desde a comdia de bulevar

    at o tratado de balstica. Vivamos as crises polticas da Frana, numa solidariedade que svezes ia alm dos bons sentimentos, como quando os brasileiros fizeram doaes de alimentospara os mutilados, rfos e vivas da Frana, na guerra de 1870. Mas mesmo dentro do clima de venerao pela cultura francesa, a idolatria por Hugo foiexcepcional. No preciso deter-me na recepo de Victor Hugo no Brasil, assunto jamplamente documentado por Antnio Carneiro Leo, em seu livro Victor Hugo no Brasil, e porisso me limito aqui a alguns episdios mais significativos. O mais prestigioso dos admiradores de Hugo no Brasil foi o prprio Imperador, D. Pedro II. D.Pedro acompanhou todas as etapas da produo de Hugo. Ele tinha um fraco, talvezcompreensvel num soberano que era parente de todas as cabeas coroadas da Europa, pelospoemas da fase legitimista de Hugo, em que o jovem bem-pensante fazia odes a propsito doassassinato do duque de Berry e da sagrao de Carlos X. D. Pedro chegou a traduzir emportugus um dos poemas dessa fase, Louis XVII, do livro Odes et ballades(1822). Massabemos, por sua correspondncia, que ele se mantinha atualizado com todas as obras deHugo, lendo-as assim que eram publicadas.Se Hugo pde cativar um imperador letrado, mas que no era escritor de ofcio, pode-seimaginar a fascinao que ele exerceu sobre os intelectuais brasileiros. Tudo isso foi reconhecido por muitos dos que criticaram Hugo. Como lembrou FernandoMendes Viana, os grandes precursores da poesia moderna seriam impensveis sem Hugo.Baudelaire deve a Hugo a esttica do grotesco, de repulsi vo, sem o qual no teria compos toa Charogne; Rimbaud viu em Hugo "o maior dos videntes"; e Mallarm declarou ser Hugo "o

    verso personificado". O jovem sans-culottedo verso foi tambm par de Frana e Acadmico,mas sem ele as vanguardas do sculo 20 no teriam podido prosseguir a obra de destruiocriadora iniciada pelo romantismo. Ultrapassada, a forma de Hugo? Ao contrrio, sobretudopela forma que Hugo imperecvel. Artfice absoluto, transforma em alexandrinos perfeitostodos os enigmas do universo, todos os objetos inanimados, todas as abstraes do espritohumano. Sua facilidade formal to prodigiosa, que parece inverter a relao entrepensamento e linguagem: como notou Paul Valry, tem-se a impresso de que para ele alinguagem deixa de ser um meio para a expresso do pensamento, e de que o pensamento seconverte num meio a servio da linguagem potica. No entanto, essa impresso falsa. Hugo nada tinha de formalista. Esse poeta imortal eratambm um pensador, mas a questo est em saber se seu pensamento continua sendovlido. Mesmo os que admiram o estilo de Hugo tm algumas dvidas sobre a atualidade desuas idias. No fundo o crtico discorda dessas idias, e em vez de rejeit -las pura esimplesmente, declara-as obsoletas. o que acontece com as grandes meditaes pot icas deHugo sobre o progresso da humanidade, sobre a lenta ascenso do homem em direo verdade. Em vez de dizer abertamente que no acredita no valor moral do progresso, o crticoprefere dizer que essas concepes derivam de uma ideologia cientificist a do sculo 19, hojeirremediavelmente antiquada. Mas antiquada segundo que parmetros? luz das realidadescontemporneas, responderia o crtico, realidades que diferem em tudo das que caracterizaramo sculo 19. Mas a tese de uma descontinuidade radical entre as duas pocas precisa ser demonstrada. Eno h melhor ocasio para isso que uma efemride como a nossa, que precisamente junta asduas pontas de um arco temporal, estendendo-se entre o presente da comemorao e o

    passado a ser comemorado.

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    Sabemos qual esse passado, no caso do Bicentenrio: 1802. Quais as foras histricasque atuavam nesse ano? Como elas se refrataram na personalidade de Hugo? Temos nossadisposio, para responder a essas perguntas, um documento excepcional, o primeiro poemade Feuilles dautomne,que alude, justamente, a 1802: ce sicle avait deux ans. um dospoemas mais dolorosamente subjetivos de Hugo, e ao mesmo tempo aquele em quetransparece mais claramente a interpenetrao do destino individual e da histria externa.Em sua dimenso subjetiva, 1802 foi o ano de nascimento do poeta. Nesse ano, nascia emBesanon o filho do General Hugo, uma criana doentia, com poucas chances desobrevivncia, salvo da morte pela dedicao materna, graas qual ele fora "duas vezes ofilho de sua me".Esse menino crescera, sofrera muito, meditara muito, e se escreviaromances irnicos e punha em cena personagens diversos, era porque tudo no mundo faziareluzir e vibrar sua alma de cristal, aberta a todas as vozes, "eco sonoro" no centro de todas ascoisas.Mas 1802 foi tambm o ano em que o destino do mundo estava sendo determinado porcolossais foras histricas. Quais foram elas? Quando o sculo tinha dois anos, diz Hugo,"Roma substitua Esparta / J Napoleo despontava sob Bonaparte /, E em muitos lugares afronte do Imperador / Quebrava a mscara estreita do Primeiro-Cnsul". Com isso, Hugoidentifica duas dessas foras: a austeridade jacobina de Esparta e a glria militar de Roma, ouseja, em linguagem menos metafrica, a Repblica e o Imprio. No final do poema, apareceuma terceira fora: a Vendia, isto , a tradio, o torro natal, que em nome do antigo regimese ope s duas vertentes da modernidade poltica, a republicana e a imperial. As trs forashistricas se refratam nas escolhas adultas de Hugo. Muito freudianamente, ele nos diz quesuas posies polticas foram moldadas por duas influncias familiares, a paterna,representando o Imprio, e a materna, representando a tradio, e que ele evoluiu por escolhaconsciente, independentemente de prottipos familiares, em direo constelao histricaremanescente, a liberdade republicana. Tudo isso est contido nos ltimos seis versos: "Apster cantado, escuto e contemplo, / Ao Imperador cado erguendo um templo na sombra, /

    Amando a liberdade por seus frutos, por suas flores, / O trono por seu direito, o rei por seusinfortnios, / Fiel enfim ao sangue que injetaram em minhas veias / Meu pai, velho soldado, eminha me, vendeana!"Em suma, ao evocar 1802, Hugo se percebe como produto de influncias familiares, por suavez engendradas por determinadas foras histricas, e nomeia claramente essas foras: oImprio, a Tradio e a Repblica. Hoje o sculo 21 que tem dois anos: "ce sicle a deux ans" .Supondo que neste momentoesteja nascendo um novo Victor Hugo, como descreveria ele, quando se tornasse adulto, o anode 2002? Estranhamente, tenho a impresso de que apesar das mudanas ocorridas nosltimos duzentos anos, ele reencontraria em nossa poca as trs foras que seu poema tinhaidentificado em 1802: o Imprio, a Tradio e a Repblica. Em 1802, o imprio era Napoleo, ehoje Bush; a tradio era La Rochejaquelein, general da Vendia feudal, e hoje Le Pen,lder da Frente Nacional; a repblica era Mirabeau ou Robesp ierre, e hoje seriam os partidrios

    de uma democracia mundial.Se assim, podemos encontrar em Victor Hugo todos os elementos para uma reflexocontempornea.

    Primeiro, com o fim da guerra fria, o mundo vive hoje sob o jugo de uma nova realidadeimperial. Para alguns, esse imprio impessoal, annimo, inevitvel como uma fora danatureza, e seu nome globalizao. Para outros, o imprio tem um rosto e uma bandeira: oimprio americano. possvel que Hugo, acostumado com imprios que nada tinham deabstratos, achasse mais plausvel essa segunda verso, e sobre ela que vamos nos demorar.Sem dvida, h diferenas de estilo e de QI entre o Imperador dos Franceses e o Presidentedos Estados Unidos, mas nos dois casos a arrogncia de Csar a mesma. Como Napoleo,

    Bush quer impor sua lei ao mundo por uma autoridade usurpada: foi o prprio Bonaparte queps a coroa em sua cabea, e foi o prprio Bush que se outorgou a estrela de xerife. Nos doiscasos, o unilateralismo a regra, e nos dois casos o poder militar o argumento supremo.

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    Sabemos que numa certa fase de sua vida Hugo votou a Napoleo um culto irracional,manifestado em odes comoA la colonne de la Place Vendme (1827)ouA la colonne(1830).Mas sabemos tambm que desde o discurso de recepo na Academia Francesa, em 1841,Hugo temperava seu entusiasmo pela glria napolenica com a condenao de sua poltica deguerra permanente.

    Quando a guerra tende a dominar, quando ela se torna oestado normal de uma nao, quando ela passa ao estadocrnico, quando h, por exemplo, 13 grandes guerras em 14anos, por magnficos que sejam os resultados ulteriores, chegaum momento em que a humanidade sofre (...) o sabre torna-seo nico instrumento da sociedade; a fora forja-se um direitoprprio.

    Mais tarde Hugo se torna virulentamente antimonarquista, e na Lgende des siclescondenatodos os reis, presentes e passados, sem abrir nenhuma exceo a favor de Napoleo. Ficaevidente, nessa fase, que para Hugo o imprio a negao dos princpios de liberdadeindividual estabelecidos pela Revoluo francesa e do direito de autodeterminao dos povosque a conscincia civilizada do universo estava impondo no sculo 19. O ltimo poemade Feuilles dautomne um grande hino de clera contra todas as prepotncias imperiais:

    Odeio a opresso com um dio profundo; / Por isso, quandoouo, em qualquer canto do mundo, / sob um cu inclemente,sob um rei assassino, / Um povo que degolam debater-se egritar; / Quando pelos reis cristos entregue aos carrascosturcos / A Grcia, nossa me, agoniza trespassada pelaespada... / Quando Lisboa, outrora bela e festiva / Pendeenforcada, com os ps de Miguel na cabea... / Quando umcossaco horrvel, possesso de raiva / Estupra Varsvia,descabelada e morta.../ Ento, oh, eu maldigo em sua corte,em seu antro, / Esses reis cujos cavalos tm sangue at o

    ventre! / Sinto que o poeta seu juiz! Sinto / Que a musaindignada, com seus punhos possantes,/ Pode, como numpelourinho, amarr-los em seu trono / E fazer-lhes um jugocom sua covarde coroa .../ Marcados na testa com um versoque o futuro ler.

    Segundo, a ao avassaladora do imprio, quer ele assuma a forma da globalizao, quer a doexpansionismo americano, gera reaes particularistas, defensivas, que se traduzem nareativao de especificidades locais, tnicas, culturais, religiosas. Reaparecem velhaspatologias, que se julgavam h muito superadas, como o nacionalism o, o racismo e ofundamentalismo. Algo de semelhante aconteceu na Vendia, na poca da RevoluoFrancesa. O furaco universalista que soprava de Paris, com sua tendncia a dissolver oscostumes seculares das velhas provncias francesas, sua religiosidade, suas fronteiras

    geogrficas tradicionais, suas lnguas, seus pesos e medidas, estimulou reaes locais dasquais a insurreio da Vendia foi a mais perigosa para a jovem Repblica. Hoje como ontem,esses particularismos so problemticos. No se pode resistir a presses globais por meioslocais. Uma realidade imperial, cuja eficcia transborda todas as fronteiras, s pode sercombatida por meios igualmente trans -nacionais. Reaes meramente locais so ou irrealistas,quando vem da esquerda, ou perigosas, quando vem da direita. Esse segundo caso exemplificado por movimentos que pretendem lutar contra a globalizao pela reativao dosvalores tradicionais, como ocorre com a Frente Nacional de Le Pen. O que pensaria Victor Hugo a respeito? Sabemos que no incio o jovem ultramonarquista seidenti ficava com a causa da Vendia. Aos 17 anos, Hugo celebra numa ode dedicada aChateaubriand os "mrtires" que tinham dado seu sangue para lutar contra a repblicasacrlega instalada em Paris. Mas com a evoluo das suas idias polticas, o tom de Hugo semodifica. Em 1874, ele publica Quatre-vingt-treize, que tem entre os personagens principais umnobre implacvel, o marqus de Lancenac, que mobiliza as s impatias feudais dos camponeses

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    da Vendia e os arrasta para crimes inominveis em nome do trono e do altar. Em 1877, Hugopublica a segunda srie da Lgende des sicles, que contm um poema intitulado JeanChouan. Hugo continua admirando o herosmo dos vendeanos, mas condena semambigidade a sua causa.

    Camponeses! Camponeses! No tnheis razo / Mas vossa

    recordao no apequena a Frana... Irmos, ns todoscombatemos; ns queramos / O futuro. Vs quereis opassado, negros lees; / O esforo que ns fazamos parasubir aos pncaros / Ai de mim, vs o fazeis para voltar aoabismo... / Ns, para fechar o inferno, vs para reabrir otmulo.

    No h dvida: so elementos para uma reflexo ainda atual sobre os descaminhos do anti-universalismo, quando ele assume a forma equivocada de uma volta a particularismostradicionais.Primeiro, com o fim da guerra fria, o mundo vive hoje sob o jugo de uma nova realidadeimperial. Para alguns, esse imprio impessoal, annimo, inevitvel como uma fora danatureza, e seu nome globalizao. Para outros, o imprio tem um rosto e uma bandeira: oimprio americano. possvel que Hugo, acostumado com imprios que nada tinham deabstratos, achasse mais plausvel essa segunda verso, e sobre ela que vamos nos demorar.Sem dvida, h diferenas de estilo e de QI entre o Imperador dos Franceses e o Presidentedos Estados Unidos, mas nos dois casos a arrogncia de Csar a mesma. Como Napoleo,Bush quer impor sua lei ao mundo por uma autoridade usurpada: foi o prprio Bonaparte queps a coroa em sua cabea, e foi o prprio Bush que se outorgou a estrela de xerife. Nos doiscasos, o unilateralismo a regra, e nos dois casos o poder militar o argumento supremo. Sabemos que numa certa fase de sua vida Hugo votou a Napoleo um culto irracional,manifestado em odes comoA la colonne de la Place Vendme (1827)ouA la colonne(1830).Mas sabemos tambm que desde o discurso de recepo na Academia Francesa, em 1841,

    Hugo temperava seu entusiasmo pela glria napolenica com a condenao de sua poltica deguerra permanente. Quando a guerra tende a dominar, quando ela se torna oestado normal de uma nao, quando ela passa ao estadocrnico, quando h, por exemplo, 13 grandes guerras em 14anos, por magnficos que sejam os resultados ulteriores, chegaum momento em que a humanidade sofre (...) o sabre torna-seo nico instrumento da sociedade; a fora forja-se um direitoprprio.

    Mais tarde Hugo se torna virulentamente antimonarquista, e na Lgende des siclescondenatodos os reis, presentes e passados, sem abrir nenhuma exceo a favor de Napoleo. Ficaevidente, nessa fase, que para Hugo o imprio a negao dos princpios de liberdadeindividual estabelecidos pela Revoluo francesa e do direito de autodete rminao dos povosque a conscincia civilizada do universo estava impondo no sculo 19. O ltimo poemade Feuilles dautomne um grande hino de clera contra todas as prepotncias imperiais:

    Odeio a opresso com um dio profundo; / Por isso, quandoouo, em qualquer canto do mundo, / sob um cu inclemente,sob um rei assassino, / Um povo que degolam debater-se egritar; / Quando pelos reis cristos entregue aos carrascosturcos / A Grcia, nossa me, agoniza trespassada pelaespada... / Quando Lisboa, outrora bela e festiva / Pendeenforcada, com os ps de Miguel na cabea... / Quando um

    cossaco horrvel, possesso de raiva / Estupra Varsvia,descabelada e morta.../ Ento, oh, eu maldigo em sua corte,em seu antro, / Esses reis cujos cavalos tm sangue at o

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    ventre! / Sinto que o poeta seu juiz! Sinto / Que a musaindignada, com seus punhos possantes,/ Pode, como numpelourinho, amarr-los em seu trono / E fazer-lhes um jugocom sua covarde coroa .../ Marcados na testa com um versoque o futuro ler.

    Segundo, a ao avassaladora do imprio, quer ele assuma a forma da globalizao, quer a doexpansionismo americano, gera reaes particularistas, defensivas, que se traduzem nareativao de especificidades locais, tnicas, culturais, religiosas. Reaparecem velhaspatologias, que se julgavam h muito superadas, como o nacionalismo, o racismo e ofundamentalismo. Algo de semelhante aconteceu na Vendia, na poca da RevoluoFrancesa. O furaco universalista que soprava de Paris, com sua tendncia a dissolver oscostumes seculares das velhas provncias francesas, sua religiosidade, suas fronteirasgeogrficas tradicionais, suas lnguas, seus pesos e medidas, estimulou reaes locais dasquais a insurreio da Vendia foi a mais perigosa para a jovem Repblica. Hoje como ontem,esses particularismos so problemticos. No se pode resistir a presses globais por meioslocais. Uma realidade imperial, cuja eficcia transborda todas as fronteiras, s pode sercombatida por meios igualmente trans -nacionais. Reaes meramente locais so ou irrealistas,quando vem da esquerda, ou perigosas, quando vem da direita. Esse segundo caso

    exemplificado por movimentos que pretendem lutar contra a globalizao pela reativao dosvalores tradicionais, como ocorre com a Frente Nacional de Le Pen. O que pensaria Victor Hugo a respeito? Sabemos que no in cio o jovem ultramonarquista seidenti ficava com a causa da Vendia. Aos 17 anos, Hugo celebra numa ode dedicada aChateaubriand os "mrtires" que tinham dado seu sangue para lutar contra a repblicasacrlega instalada em Paris. Mas com a evoluo das suas idias polticas, o tom de Hugo semodifica. Em 1874, ele publica Quatre-vingt-treize, que tem entre os personagens principais umnobre implacvel, o marqus de Lancenac, que mobiliza as simpatias feudais dos camponesesda Vendia e os arrasta para crimes inominveis em nome do trono e do altar. Em 1877, Hugopublica a segunda srie da Lgende des sicles, que contm um poema intitulado JeanChouan. Hugo continua admirando o herosmo dos vendeanos, mas condena semambigidade a sua causa.

    Camponeses! Camponeses! No tnheis razo / Mas vossarecordao no apequena a Frana... Irmos, ns todoscombatemos; ns queramos / O futuro. Vs quereis opassado, negros lees; / O esforo que ns fazamos parasubir aos pncaros / Ai de mim, vs o fazeis para voltar aoabismo... / Ns, para fechar o inferno, vs para reabrir otmulo.

    No h dvida: so elementos para uma reflexo ainda atual sobre os descaminhos do anti-universalismo, quando ele assume a forma equivocada de uma volta a particularismostradicionais.Terceiro, h outra maneira de combater o globalismo: atac-lo no prprio terreno em que elese manifesta: o terreno internacional. Temos que responder aos riscos de nivelamento esubordinao implcitos no globalismo dando um salto para frente, em vez de dar um salto paratrs. Temos que caminhar, em suma, em direo a uma democracia mundial, capaz de fazer -nos participantes de todas as decises que afetam os interesses do gnero humano, em vezde continuarmos sendo destinatrios passivos de polticas adotadas nossa revelia nosgrandes centros de poder. a grande idia kantiana de uma repblica cosmopolita, a nicasusceptvel de assegurar uma paz perptua. Assim como no plano nacional a nica alternativaaceitvel ao imprio a repblica, no plano internacional a nica alternativa possvel aoimprio mundial uma repblica mundial.De novo, o caminho foi mostrado por Victor Hugo. A evoluo do jovem legitimista de 1820 emdireo repblica e democracia linear, sem nenhum retrocesso. E desde 1848, ele falaem repblica universal. Em conversa com Lamartine, logo depois da proclamao da

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    Repblica, o poeta das Mditations potiques, chefe do governo provisrio, diz que no possvel que um homem como Hugo no seja republicano. Hugo responde que mesmoduvidando da oportunidade da proclamao da repblica na Frana, considerava realmenteessa forma de governo a mais digna de todas. E diz textualmente: "A repblica universal altima palavra do progresso". Dias depois, termina um discurso improvisado feito quando seplantava uma rvore da Liberdade na Place des Vosges, em frente sua residncia, com um

    grito veemente, muito aplaudido: "Viva a repblica universal!" Em 1867, o exilado deGuernesey entrev o advento de uma grande nao: "Essa nao se chamar a Europa nosculo 20, e nos sculos seguintes, mais transfigurada ainda, ser chamada a humanidade." evidente que para ele essa repblica s poder ser democrtica. o que fica bvio quandoele confronta a repblica terrorista de 1793, que oprimia os cidados atravs de uma ditadurada virtude, com a repblica da qual ele se declarava partidrio, fundada no respeito aos direitoshumanos, e no na guilhotina. E seria uma repblica social, porque para ele mesmo que nofosse possvel abolir o sofrimento humano, a abolio da pobreza era possvel e necessria.No Congresso da Paz, em Lausanne, em 1867, Hugo foi mais longe: essa repblica no seriasomente social, seria socialista. "Cidados, o socialismo afirma a vida, a repblica a firma odireito. Um eleva o indivduo dignidade de homem, o outro eleva o homem dignidade decidado. Existe acordo mais profundo?"Utopia? Ele pregou a unificao da Europa, vendo -a como um passo decisi vo em direo repblica universal, e isso na poca era uma quimera. Hoje a Europa unida uma realidade. instrutivo saber como ele via, em 1855, os contornos dessa Europa, "O continente seria um s povo; as nacionalidades viveriam sua vida prpria nessa vidacomum; a Itlia pertenceria Itlia, a Polnia pertenceria Polnia, a Hungria pertenceria Hungria, a Frana pertenceria Europa, e a Europa pertenceria humanidade... O grupoeuropeu sendo apenas uma nao, a Alemanha seria para a Frana, a Frana seria para aItlia o que hoje a Normandia para a Picardia e a Picardia para a Lorena; no haveria maisguerra, e portanto no haveria mais exrcito...Uma moeda continental, nica, tendo por pontode apoio todo o capital europeu e por motor a atividade livre de 200 milhes de pessoas,

    substituiria e absorveria todas as absurdas variedades monetrias de hoje, efgies de prncipes,figuras da misria". No, no prudente ridicularizar as previses de um autor que com 147 anos de antecednciaanunciou o advento do euro. Ele profetizou num extraordinrio poema,Le satyre, a conquista definitiva da terra, dos mares e dos ares, e anteviu, no final da primeirasrie de Lgende des sicles, no s o triunfo da navegao area, como o advento dasviagens interestelares: "Et peut-tre voici qu'enfin la traverse / Effrayante, d'um astre l'autre,est commence!"Por que no seria ele igualmente certeiro em sua anteviso de uma repblicauniversal, democrtica e social? Mas suponhamos que as grandes premonies do nosso profeta sejam realmente utpicas nascondies atuais. Nesse caso temos que fazer o que os psicanalistas fazem quando um

    paciente descarta uma interpretao verdica em nome da realidade: se isso acontece, arealidade que falsa, e no a interpretao. A realidade repressiva no pode ser usada comotribunal de ltima instncia para refutar um pensamento libertador. Mesmo que Lyotard tenharazo quando decreta a extino dos grandes ideais iluministas - as chamadas "grandesnarrativas" - no intil invoc-los, porque sua rejeio pelo mundo moderno diz mais sobreesse mundo que muitos conceitos extrados da atualidade mais viva. A relevnciacontempornea de certas idias pode estar em sua obsolescncia, porque elas testemunhamcontra um presente que as transformou em anacronismos.Por esse critrio, as guerras intertnicas e as agresses imperialistas que envergonham osegundo aniversrio do nosso sculo no tm o poder de invalidar os sonhos de fraternidadeuniversal de Hugo. nosso presente que deve ser marcado com ferro em brasa por no tersabido transformar esses sonhos em realidades histricas. Quando o sculo 19 tinha dois anos, o Brasil era uma sociedade escravocrata. O pensamentode Hugo foi usado por nossos abolicionistas para defender a extino do regime servil. Agora

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    que nosso sculo que tem dois anos, que vemos em nosso pas?A instituio monstruosa foi formalmente abolida, mas o que Nabuco chamava a "obra daescravido" sobrevive em toda a sua infmia: a pobreza abj eta em que vivem largas parcelasda populao brasileira, composta em grande parte de descendentes dos antigos escravos.No seria mal se fssemos buscar no autor dos Misrables a inspirao para erradicar essaterrvel seqela da escravido. O hlasde Gide pesou durante cem anos sobre Hugo, como uma lpide funerria. Se nocorrigirmos as injustias que nos humilham diante do mundo, bem possvel que a lpiderecaia sobre ns - sobre nosso povo, nossa terra, sobre o Brasil, hlas.