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1 Dos dilemas da visibilidade midiática para a deliberação pública Rousiley Celi M. Maia 1 * UFMG Resumo: Este artigo explora o papel que a mídia desempenha na deliberação pública, com foco na luta entre as fronteiras de visibilidade/invisibilidade. A partir do quadro normativo da deliberação pública, busca- se caracterizar o espaço de visibilidade midiática, e distinguir entre as desigualdades de ingresso dos chamados “públicos fortes” e “públicos fracos” aos canais da mídia e os processos de argumentação para a consecução de um debate público eficaz. Indaga-se acerca da potência da visibilidade midiática para criar espaços generalizados de discussão, na forma de debates públicos, através da interpenetração de fluxos comunicativos variados. Concepção deliberativa de democracia: complexidade e públicos fortes e fracos Discussões recentes acerca do modelo deliberativo de democracia abriram novas perspectivas para que se examinem as estruturas simbólicas e discursivas que acompanham a luta entre as fronteiras entre a visibilidade e o segredo no chamado “espaço de visibilidade” dos mídia. O espaço de visibilidade midiática promove uma complexa relação entre os atores das instâncias formais do sistema político e aqueles da sociedade civil, bem como entre a política e a cultura. As concepções deliberativas da democracia baseiam-se no princípio de que “as decisões afetando o bem-estar de uma coletividade devem ser o resultado de um procedimento de deliberação livre e razoável entre cidadãos considerados iguais moral e politicamente” (Benhabib, 1996: 69) É condição necessária –com vistas à obtenção de legitimidade para o exercício do poder público nas principais instituições de uma sociedade, e de racionalidade para tomada de decisão na política – que aquilo que será considerado como o “interesse comum” resulte de um processo de deliberação coletiva. Deliberação aqui não é entendida como tomada de decisão que se dá num determinado momento, mas, ao invés disso, como um processo argumentativo, “intercâmbio de razões feito em público” (Cohen, 1997: 73). A amplitude das instituições modernas faz com que seja extremamente difícil imaginar a coordenação das decisões políticas através das práticas do debate. Os ideais do modelo deliberativo de democracia parecem “viáveis” apenas em pequenas escalas espaciais e temporais. No entanto, diversos autores têm refutado os pressupostos básicos do elitismo democrático de que 1 * Rousiley C. M. Maia é professora adjunta no Departamento de Comunicação Social da UFMG e doutora em ciência política pela University of Nottingham, Inglaterra. Este trabalho deriva-se da discussão desenvolvida no GT Comunicação e Política na XI Reunião Anual da Compós de 2002, a partir do texto de minha autoria, “Mídia e deliberação pública: mediações possíveis”, e do relato produzido pelo prof. Wilson Gomes, a quem sou

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Dos dilemas da visibilidade midiática para a deliberação pública

Rousiley Celi M. Maia1*

UFMG

Resumo:

Este artigo explora o papel que a mídia desempenha na deliberação pública, com foco na luta entre asfronteiras de visibilidade/invisibilidade. A partir do quadro normativo da deliberação pública, busca-se caracterizar o espaço de visibilidade midiática, e distinguir entre as desigualdades de ingresso doschamados “públicos fortes” e “públicos fracos” aos canais da mídia e os processos de argumentaçãopara a consecução de um debate público eficaz. Indaga-se acerca da potência da visibilidademidiática para criar espaços generalizados de discussão, na forma de debates públicos, através dainterpenetração de fluxos comunicativos variados.

Concepção deliberativa de democracia: complexidade e públicos fortes e fracos

Discussões recentes acerca do modelo deliberativo de democracia abriram novas

perspectivas para que se examinem as estruturas simbólicas e discursivas que acompanham a luta

entre as fronteiras entre a visibilidade e o segredo no chamado “espaço de visibilidade” dos mídia.

O espaço de visibilidade midiática promove uma complexa relação entre os atores das instâncias

formais do sistema político e aqueles da sociedade civil, bem como entre a política e a cultura.

As concepções deliberativas da democracia baseiam-se no princípio de que “as decisões

afetando o bem-estar de uma coletividade devem ser o resultado de um procedimento de

deliberação livre e razoável entre cidadãos considerados iguais moral e politicamente” (Benhabib,

1996: 69) É condição necessária –com vistas à obtenção de legitimidade para o exercício do poder

público nas principais instituições de uma sociedade, e de racionalidade para tomada de decisão na

política – que aquilo que será considerado como o “interesse comum” resulte de um processo de

deliberação coletiva. Deliberação aqui não é entendida como tomada de decisão que se dá num

determinado momento, mas, ao invés disso, como um processo argumentativo, “intercâmbio de

razões feito em público” (Cohen, 1997: 73).

A amplitude das instituições modernas faz com que seja extremamente difícil imaginar a

coordenação das decisões políticas através das práticas do debate. Os ideais do modelo

deliberativo de democracia parecem “viáveis” apenas em pequenas escalas espaciais e temporais.

No entanto, diversos autores têm refutado os pressupostos básicos do elitismo democrático de que

1 * Rousiley C. M. Maia é professora adjunta no Departamento de Comunicação Social da UFMG e doutora emciência política pela University of Nottingham, Inglaterra. Este trabalho deriva-se da discussão desenvolvida no GTComunicação e Política na XI Reunião Anual da Compós de 2002, a partir do texto de minha autoria, “Mídia edeliberação pública: mediações possíveis”, e do relato produzido pelo prof. Wilson Gomes, a quem sou

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as formas mais complexas de administração podem prescindir da participação ativa e

argumentativa por parte do público mais amplo. Esses autores sustentam que é possível reconhecer

a complexidade dos problemas na sociedade contemporânea e o pluralismo dos interesses

envolvidos, e, ainda assim, defender os ideais democráticos de autonomia e soberania dos

cidadãos.

A fim de solucionar as dificuldades da democracia radical, a qual pressupõe que a

soberania popular deva ser exercida ativamente pelo conjunto dos cidadãos, alguns autores têm

promovido a distinção entre a deliberação pública e o poder de tomada de decisão nas instituições

complexas. Habermas (1997) distingue entre a “constituição da opinião” na esfera pública

informal e a “formação da vontade” formal das instituições políticas como uma característica

central do Estado Constitucional. De maneira semelhante, Nancy Fraser (1992) elabora uma

distinção entre “públicos fortes” e “públicos fracos”, segundo o poder de decisão dos mesmos. O

público forte diz respeito àqueles grupos representantes do centro do sistema político e às elites. O

público fraco é o sujeito da opinião pública. Tem como atividade a formação da opinião,

desatrelada das decisões, a qual realiza-se “numa rede pública e inclusiva de esferas públicas que

se sobrepõem umas às outras, cujas fronteiras reais, sociais e temporais são fluídas” (Habermas,

1997: 33). Nessa perspectiva, a esfera pública não é entendida de forma única e global, mas, sim,

constituída por diversos públicos que se organizam em torno de temas ou causas de interesse

comum.

Esta demarcação tem o intuito de preservar a dimensão crítica do público, isto é, a

possibilidade de o público contestar o modo pelo qual os representantes exercem o poder, de

reivindicar novos direitos ou diferentes modos de participação política. Nesse esteio, teóricos

sobre movimentos sociais, tais como A. Touraine (1988), A. Melluci (1996), I. Young (1996), M.

Warren (2001) têm buscado evidenciar o modo pelo qual as diversas associações presentes na

sociedade civil podem promover um tratamento crítico de problemas sociais, estabelecendo uma

importante relação entre participação e argumentação pública. Os grupos cívicos são vistos como

atores que agem tanto para modificar os modos de perceber e interpretar os problemas sociais

quanto para articular projetos alternativos de políticas públicas, propagando, em outros grupos da

população, o interesse em suas causas ou questões. De tal sorte, podem não só modificar o

contexto para o entendimento de determinados problemas, como, também, propor o rumo de

soluções mais apropriadas e, assim, exercer uma pressão eficaz sobre aqueles que detêm o poder

particularmente grata. Este texto apresenta resultados parciais de meu projeto de pesquisa “Mídia e dimensões dadeliberação”, financiado pelo CNPq e FAPEMIG.

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de decisão no sistema político. Além disso, a distinção entre formação da opinião pública e

processos de tomada de decisão nas instâncias formais do sistema político é também útil porque

evita o equívoco de se supor que uma esfera pública ativa resulte necessariamente em instituições

democráticas. Por certo, formas de poder ilegítimo podem se acumular de modo crescente em

instituições de grande porte das sociedades contemporâneas, mas o uso do poder público não fica

imune da crítica (ou crise) da própria legitimidade.

O sistema de mídia desempenha, indubitavelmente, um papel central na disseminação de

informações a grandes audiências. “Para responder questões fundamentais sobre a experiência dos

cidadãos no processo democrático, requer, cada vez mais, que se compreenda a centralidade da

comunicação mediada nos processos de governança e também nas percepções que os cidadãos têm

da sociedade e seus problemas” (Bennet e Entman, 2001:1). Assim sendo, torna-se instigante

indagar o modo pelo qual a mídia contribui para “criar um espaço para deliberação social” e o

“intercâmbio de razões em público”.

Este artigo encontra-se organizado em duas partes. Na primeira parte, busco rever as

contribuições dos estudos que visam inserir os meios de comunicação na estrutura da sociedade de

maneira ampla, a fim de examinar o papel que exercem na pré-estruturação da esfera pública

política. Examino alguns elementos da noção de publicidade, com o propósito de apontar certas

tensões da chamada visibilidade midiática. Na segunda parte, discuto certas dificuldades

apresentadas pelas perspectivas pluralistas de democracia ao tratar as restrições de acesso dos

chamados “públicos fracos” aos canais da mídia, para a consecução de um debate público eficaz.

Através do quadro normativo da deliberação, procuro distinguir entre as desigualdades de ingresso

e de participação do público forte e do público fraco na mídia, buscando localizar a natureza

dessas assimetrias no terreno midiático. Argumento que o espaço de visibilidade criado pela mídia,

embora marcado por profundas assimetrias na estruturação da comunicação dos atores sociais,

contribui para a promoção de um diálogo público generalizado e para a criação de uma base

reflexiva para a deliberação pública nas sociedades complexas.

O valor da Publicidade

A publicidade é um requerimento fundamental para a deliberação, tanto para as concepções

liberais de democracia quanto para as concepções republicanas. De modo geral, a publicidade

pode ser entendida como “a propriedade das coisas na medida em que estão visíveis e disponíveis

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para o conhecimento comum” (Gomes, 1999) ou como “caráter e qualidade do que é público”

(Aurélio).

É possível distinguir entre duas concepções de publicidade. Num sentido fraco, a

publicidade refere-se à visibilidade, exposição social de fenômenos, intenções, planos e

atualidades que se oferecem ao conhecimento de todos (em oposição ao segredo). Num sentido

forte, a noção de publicidade vai além da exposição das posições ao conhecimento comum e diz

respeito às normas que regulam o diálogo e a negociação dos entendimentos em público (enquanto

juízo público). Nesse sentido, para alcançar uma publicidade forte, não basta que algo seja trazido

à atenção de todos, mas é preciso satisfazer certas regras pragmáticas que possibilitam o debate e a

argumentação.

Na perspectiva kantiana, o princípio da publicidade representa um “teste” 2 da política justa.

Apesar de enormes controvérsias em torno de muitos elementos desta concepção3, o pensamento

kantiano tem inspirado diversos autores a desenvolver o princípio da publicidade como uma forma

de mediação entre a moralidade e a política. Autores deliberacionistas (J. Cohen, J. Habermas, J.

Bohman, T. McCarthy) defendem que o teste da publicidade, inscrevendo-se no terreno moral,

requer uma prática real e não meramente um exercício de pensamento hipotético. Nesta

perspectiva, a publicidade opera em três níveis: i) cria um espaço para a deliberação social; ii)

governa o processo de deliberação e as razões aí presentes e iii) produz um padrão para julgar os

acordos.

Em primeiro lugar, a publicidade cria um espaço para a deliberação. Somente quando os

atos, as intenções ou os planos podem ser conhecidos tem-se a possibilidade de gerar um processo

dialógico de troca de razões com o objetivo de solucionar situações problemáticas. Obviamente,

muitas formas de poder – seja poder concebido genericamente como capacidade de agir sobre o

outro e produzir certos efeitos, seja concebido enquanto relação de coerção para levar o outro a se

2 A política para ser considerada justa deve passar pelo teste da publicidade: “Todas as ações que se relacionam com odireito de outro homem são contrárias ao direito e à lei, se sua máxima não permite publicidade”. Em “Máximas doentendimento humano comum”, Kant descreve que a utilização pública da razão requer a capacidade para umpensamento “alargado”, consistente e “isento de preconceitos”, sendo que isso depende da capacidade de “pensar doponto de vista de todos os demais” e revisar, subseqüentemente, o próprio julgamento. O raciocínio moral que deveser mantido em segredo é auto-derrotista e não é, portanto, moralmente aceitável. Eternal Peace, The philosophy ofKant, New York, Random House, 1949, p.470.3 Apesar de o pensamento Kantiano capturar várias condições essenciais para o uso público da razão, há diversascríticas em relação à forma de funcionamento da publicidade como “um experimento de pensamento hipotético”. Aestipulação de limites da própria justificação mostra-se precária e excessivamente permissiva, uma vez que os oficiaispúblicos poderiam justificar a ação desenvolvida em segredo sempre que convencessem a si mesmos, através dopensamento privado, de que suas ações satisfazem o teste da publicidade. Além disso, o esquema kantiano, ao serestringir meramente ao sujeito singular, não chega a apresentar uma dinâmica convincente para a reflexão pública. A

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comportar de acordo com os próprios desejos e interesses – está assentado, em grande parte, no

segredo. Nem todas as intenções ou razões podem ser manifestas explicitamente ou estendidas a

uma audiência ampliada. “Nem todos os interesses podem ser representados publicamente”

(Habermas, 1997: 71). Como Bobbio aponta:

“Qual o empregado público poderia declarar em público, no momento em que éempossado em seu cargo que irá se apropriar do dinheiro público? (…) Qualempregado público afirmaria que irá constranger este ou aquele a dar-lhe dinheiroabusando da sua qualidade ou das funções para obter vantagens pessoais? É evidenteque semelhantes declarações tornariam impossível a ação declarada pois nenhumaadministração pública confiaria um cargo a quem as fizesse” (Bobbio, 1992: 92)

Intenções de corrupção, chantagem, malversação devem ser mantidas em segredo, para que

não se inviabilize a realização desses mesmos atos ou a série deles. Para manter o caráter público

da comunicação, os interlocutores precisam assumir responsabilidade sobre seus próprios

proferimentos e, também, sustentar as condições da comunicação, seguindo de maneira

apropriada as normas sociais de interação. Seguindo o estudo de William Gamson acerca de

conversas de grupos rivais sobre questões políticas, em Talking politics, Bohman aponta que:

“Mesmo em pequenos grupos as pessoas se mostram cientes de que muitos de seusproferimentos não podem ser tornados públicos: eles violam não apenas as normasde civilidade, mas também as normas do discurso público que torna possívelcomunicar com a audiência implícita de todos os outros cidadãos (Bohman, 2000:26).É nesse sentido que os autores deliberacionistas defendem que a publicidade governa o

processo de deliberação. Na situação de debate, os participantes são chamados a enunciar seus

argumentos a favor das proposições feitas, a suportá-las ou criticá-las. Além disso, se os

interlocutores desejam ser compreendidos, devem coordenar suas falas de acordo com um

conhecimento (prévio) acerca do vocabulário de seus interlocutores, das premissas sustentando

seus pontos de vista. O intercâmbio de razões feito em público precisa operar com ‘razões’ que

possam ser compreendidas e que, ainda, possam ser potencialmente aceitáveis, i.e justificáveis

numa dada situação ou num dado contexto.

Em sua revisão procedimental e intersubjetiva da publicidade kantiana, Habermas sustenta

que o princípio da publicidade não é algo excepcional na vida social, mas que, ao invés disso,

várias formas de argumentação são acionadas para lidar com problemas recorrentes no dia a dia 4.

necessidade de justificar as ações de fato publicamente, e, não apenas hipoteticamente, não se constitui num padrãocrítico de teste neste âmbito (Gutmann & Thompson,1996; Cohen, 1997).4Na análise habermasiana dos atos de fala, os falantes e ouvintes estabelecem expectativas mútuas para uma interaçãofutura por oferecer ou aceitar reivindicações de validade. A base do caráter vinculante é a expectativa de que osfalantes serão capazes de proporcionar razões que sustentem seus atos de fala, buscando redimir suas reivindicações

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Se os participantes têm em mente resolver os impasses e os conflitos que os impedem de alcançar

um entendimento compartilhado5 – lidar com situações atípicas, resolver controvérsias entre

pontos de vista, negociar uma nova definição da relação produzida entre falantes e ouvintes ou,

ainda, de suas intenções – emerge uma “comunicação de segunda ordem”. Este é um discurso

prático6 enquanto uma “forma refletida da ação comunicativa”, em que as reivindicações

problemáticas precisam ser acordadas claramente (precisam ser redimidas) para que a coordenação

seja restaurada. Nesse caso, a justificação de alguma reivindicação torna-se o tema explícito da

comunicação.

Por fim, a publicidade produz um padrão para julgar os acordos. O uso público da razão,

nesse sentido, permite descortinar as limitações das razões em jogo e as restrições presentes no

próprio processo deliberativo. São consideradas razões convincentes aquelas que: a) são dirigidas a

uma audiência e, mais, a uma audiência inclusiva; b) sustentam-se na situação de diálogo, em que

o assentimento e o dissenso possam ser livremente expressos.

“Quando a deliberação é desenvolvida em um fórum público aberto, há maioreschances para que a qualidade das razões se aperfeiçoe. Neste fórum, a opinião públicaprovavelmente será formada sobre a base de todas as perspectivas relevantes. Assim,haverá menor chance de excluir os interesses legítimos, as informações apropriadas ouas opiniões dissidentes (Bohman, 2000: 27).

Visibilidade midiática

Diversos autores já procuraram definir visibilidade midiática. Através da mídia – por causa de seus suportes

técnicos e de sua materialidade simbólica durável –, proposições, discursos, atos, acontecimentos podem ser tornados

públicos, adquirindo “uma publicidade que é independente de ser visto ou ouvido diretamente pela pluralidade de

quando requisitados a fazê-lo, através da justificação para cada contestação particular. Isso encontra-se assentado emum conhecimento implícito, pré-reflexivo, que fazemos uso de modo intuitivo, e que se torna expresso no ato de fala.5 Quando a comunicação (a coordenação da interação lingüisticamente mediada) se rompe, os falantes não podemsimplesmente prosseguir como antes. Eles têm à frente diferentes opções: “podem tentar restabelecer a comunicação,ignorando as contestações problemáticas, de modo tal que as pressuposições compartilhadas se encolhem; podemmover-se para o terreno discursivo, o qual é aberto a questões imprevistas, contendo resultados incertos; podemretirar-se da interação e romper de vez a comunicação ou, ainda, podem volver-se para a ação estratégica (…) Amotivação racional baseada na capacidade de cada pessoa dizer ‘não’ possui a vantagem de estabilizar a expectativade comportamentos de maneira não coerciva” (Habermas, 1996:21).6 Habermas pretende, como Kant, fundar os princípios de justiça nas noções de razão prática e de auto-determinação.Diferentemente de Kant, pretende fazer isso sem recorrer a noções não empíricas de razão e autonomia. Por discursoprático, Habermas denomina a comunicação de segunda ordem sobre a própria comunicação, que acontece, num nívelreflexivo, através do argumento. Através do discurso, os falantes buscam reconstruir as pressuposições dacomunicação (parte do conhecimento pré-reflexivo, tomado como dado) que se mostraram falíveis no contexto dainteração. O discurso visa um entendimento mútuo, o que significa, no mínimo, uma compreensão dos tópicos quedividem o falante e o seu parceiro, e, no máximo, a conquista de uma visão comum, compartilhada. Por conseguinte,um desentendimento racional exige que se entendam as reivindicações que estão sendo rejeitadas (McCarthy, 1995:462; Chambers, 1996: 90-105).

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indivíduos em situação de co-presença” (Thompson, 1995: 126; 2000). Wilson Gomes considera que a visibilidade

midiática está ligada à cena, proscênio social, disponível ao conhecimento e ao domínio público.

“Cena pública é constituída sobretudo por exibição, exposição, mostra, pelo que Habermas chamou derepresentação, ou seja, apresentação das posições para a obtenção do favor geral” (Gomes, 1999: 217).

A esfera de visibilidade midiática é constituída pelo conjunto de emissões dos mídia, em suas diversas

modalidades. De tal sorte, não é possível pensar, em primeiro lugar, que exista unicidade do sujeito emissor (como no

modelo da comunicação interpessoal) e nem uma lógica geral ou uma consciência que reuna em uma só estrutura

aquilo que é dito. Diferentes tipos de mídia, com formatos distintos de organização, funcionamento e regulamentação,

apresentam especificidades irredutíveis, constituindo uma produção diversificada e descentralizada.

Em segundo lugar, o espaço de visibilidade midiática é constituído por uma complexidade de conteúdos:

materiais culturais e artísticos, de entretenimento, jornalismo de diferentes formatos, documentários, peças

publicitárias. É preciso salientar que há material de valor cognitivo distinto relacionado tanto ao reino político-

institucional estrito (informações sobre o que o governo faz, a substância da política, falas de representantes do

sistema político) quanto informações políticas num sentido mais amplo – sobre educação, segurança, cuidados com a

saúde física e mental, riscos de ambiente de trabalho, problemas de assédio sexual no ambiente de trabalho, etc…

Nesse sentido, é difícil definir o que seria uma informação política ideal, já que materiais de naturezas diversas podem

se tornar relevantes para a ação dos indivíduos em seus múltiplos papeis como cidadãos, e não apenas como eleitores

(Norris, 2000: 213; Bennet e Entman, 2001: 470).

Ademais, há uma esfera de debate sobre questões determinadas dentro da própria cena

midiática. Não estamos nos referindo apenas aos programas em que há uma troca de opiniões

numa situação presencial, tal como nos debates televisionados ou talk shows. Também várias

controvérsias e polêmicas, com diferentes modalidades de discurso (de especialistas, de

representantes do aparato estatal administrativo, de leigos ou de grupos organizados da sociedade

civil) se desdobram na cena midiática. Os agentes da mídia processam e editam fluxos

comunicativos de origens distintas e organizam, de maneira peculiar, um conjunto de “opiniões em

perspectiva”, “discursos dogmáticos” ou “discursos argumentativos”, como diz Gomes (1999:

227), para “recompo-los como os termos de uma discussão”. Nesse caso, a mídia pode ser vista

como um “fórum para o debate pluralista” (Norris, 2000), em que não há parceiros fixos ou

autorizados.

Ao promover um tipo de publicidade fraca, disponibilizando matérias diversas para o conhecimento comum, a

mídia é uma importante instituição para pré-estruturar a esfera pública política. Utilizamos aqui a noção de pre-

estruturação, em primeiro lugar, porque a mídia cria um tipo peculiar de audiência: um público não simultâneo de

ouvintes, leitores e telespectadores. A produção dos mídia é, por definição, elaborada para ser enviada a um público

difuso, diversificado e potencialmente ilimitado, e que gera, conseqüentemente, uma “interatividade diferida/difusa”

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no tempo e no espaço7, como propõe Braga.

Em segundo lugar, deve-se falar em pré-estruturação da esfera pública política por causa do

volume informativo altamente denso e diversificado presente na cena midiática e pela

impossibilidade de determinar a priori o modo pelo qual os telespectadores, ouvintes e leitores

irão adquirir e utilizar os bens simbólicos mediados. Como vem sendo amplamente reiterado pelos

estudos da comunicação, a interpretação do produto midiático se dá sempre a partir de um

conhecimento interpretativo anterior, à luz do qual o receptor estabelece o que é relevante ou não,

inscreve elementos assim processados nas rotinas práticas da vida cotidiana, e utiliza tal material

simbólico de maneiras diversas, dentro de comunidades particulares e/ou contextos culturais e

políticos específicos. Aquilo que se dispõe ao conhecimento comum no “espaço de visibilidade

midiática” pode ser ‘destacado’ do denso ambiente informativo e passar a alimentar diferentes

discussões politicamente relevantes. Isso coloca em movimento diversas interações e lutas dentre e

entre os agentes sociais e interfere, de maneira dinâmica, nas próprias relações sociais e na

organização dos debates fora da mídia (Gamson, 2001; Bennet e Entman 2001).

A comunicação e a argumentação presentes nos debates internos à cena midiática podem ser

estendidos, através da escrita e de outros suportes tecnológicos, a uma variedade de contextos,

sendo que, em todos os casos, novas dimensões temporais e espaciais emergem. Habermas

denomina tal esfera pública como abstrata (Habermas, 1996: 374). As pessoas são convocadas a

se posicionarem diante de determinadas matérias publicizadas, mas a interpretação e o

posicionamento são sempre manifestações que dependem da ação autônoma dos indivíduos,

podendo ou não ocorrer. Nesse sentido, o que se pode assumir é que o material da mídia fomenta,

num processo circular, a esfera pública política, enquanto locus da argumentação, que ocorre

através da estrutura geral e inevitável da comunicação em encontros informais, episódicos ou em

fóruns de debates organizados em diversos setores da sociedade, freqüentemente longe da

visibilidade midiática.

Pode a mídia funcionar como um fórum para o debate pluralista?

As teorias do pluralismo democrático8 mostram-se relevantes para tratar a complexa

relação que a mídia estabelece com o ambiente político e os graus distintos de autonomia dos

7A fim de ultrapassar o recorte simplista de “ações mútuas entre produtor e receptor”, José Luiz Braga argumenta quea preocupação central deve ser “captar o modo pelo qual a interatividade desenvolve-se em conseqüência ou em tornode ‘mensagens’ (proposições, produtos, textos, discursos, etc.) e como ela opera – seja nos casos pontuais, específicos,seja como tendências, em relação a determinados tipos de produtos ou tipos de situação”(Braga, 2001: 120)

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agentes da mídia com relação às instâncias formais do sistema político. Segundo a perspectiva

pluralista, há um grande potencial para conflito nas sociedades funcionalmente diferenciadas,

altamente complexas; uma distribuição policêntrica de poder e uma dispersão de influência, de

autoridade e de controle em direção a uma diversidade de instituições, associações e grupos

políticos. A suposição que subjaz é a de que o pluralismo e a complexidade das sociedades

modernas contribuem para uma melhor distribuição de custos e riscos entre os poderes oficiais e

extra-oficiais do sistema político, proporcionando também um ambiente informativo policêntrico,

plural e controverso.

Partindo da premissa de que o sistema político se constitui como uma “estrutura global de

centros de influência e informação plurais e diversos” (Sartori, 1989: 139), os teóricos adeptos do

pluralismo assumem que a mídia possui uma relação variada, dispondo de graus distintos de

autonomia, com os diferentes poderes, seguindo as condições dadas pela estruturação prévia do

sistema. Isso faz com que “a intervenção midiática possua pesos estratégicos diferenciados para o

(des)equilíbrio do sistema, em função mesmo do peso igualmente diferenciado que a variável

publicidade guardar para cada Poder. Assim, dadas estas prováveis desigualdades de situação

frente à publicidade, os Poderes oficiais também deverão contar com diferentes competências

específicas – mais ou menos estruturais – para transacionar com a mídia” (Lattman-Weltman,

2001).

Evidentemente, não caberia aqui nenhuma ingenuidade da proposição dos pensadores

liberais quanto à missão da imprensa livre e autêntica, no exercício de suas funções de vigilante

(Watchdog) ou de fórum para o debate pluralista. Diversas relações de interesse se estabelecem

entre os atores políticos e os agentes da mídia, os quais possuem recursos diversos para filtrar,

fazer cortes e edições, seja para criar um enquadramento para os eventos, seja para favorecer

deliberadamente determinados atores. Mais que isso, sabemos bem o modo pelo qual a

informação é controlada pelas elites e a mídia goza da prerrogativa de esconder informações

políticas relevantes, mantendo fora do domínio público questões de interesse coletivo (Dahl, 1985:

102; Bobbio, 1992).

A perspectiva do pluralismo reconhece que a mídia constitui um alvo prioritário da ação

estratégica dos diversos agentes sociais, sobretudo dos atores do campo político, mas nega

qualquer causalidade única ou direta sustentando essa relação. As próprias funções de vigilância

8 Utilizo o termo “pluralismo” enquanto corrente de pensamento desenvolvida por seus expoentes originais – J.Madison, D. B. Truman e R. Dahl –, bem como às novas variantes denominadas de “neo-pluralistas” ou de“pluralismo crítico” que têm tratado de revisar diversos elementos das abordagens anteriores.

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da mídia (mais particularmente do jornalismo) de estar atenta ao ambiente sócio-político, expondo

a corrupção oficial, os escândalos e as falhas do governo ou de organizações sociais, podem ser –

e freqüentemente o são – utilizadas de maneira ardilosa pelos atores políticos em conflito. O

discurso mesmo de auto-legitimação de que a imprensa deve “defender as pessoas”,

“salvaguardando o interesse público e desafiando as autoridades” é explorado de maneira tácita

por atores com objetivos de alcançar ou manter posições relativas a interesses particulares.

Assim sendo, a perspectiva do pluralismo faz ver que a tentativa de políticos e elites de

administrar a visibilidade e fazer repercutir discursos e versões do próprio interesse no espaço de

visibilidade midiática, constituem-se num campo de estratégias e contra-estratégias, como em

qualquer jogo político. Atores sociais e políticos contradizem-se uns aos outros; imagens,

discursos e ações táticas chocam-se entre si, informações antes ocultas podem ser dadas a ver,

gerando pressões e contra-pressões no jogo político. Neste sentido, a perspectiva do pluralismo

mostra a inutilidade de procurar deslindar entre as “boas” e as “más” intenções dos agentes, já que

não há um ponto de vista arquimediano para julgar tais interesses de forma externa. A política é

feita de ‘competição ideológica’ de conflitos entre sistemas de pensamento e de ação. Diante da

impossibilidade e da indesejabilidade de tentar especificar os “fins últimos” da política – através

de definições substantivas de “bem comum” ou de proposições de uma moralidade objetiva – as

teorias pluralistas da democracia defendem que os processos do debate devem ser os critérios para

se chegar às definições necessárias para a implementação de políticas públicas legítimas.

Defende-se, assim, a necessidade de garantir uma competição justa entre os grupos, a fim

de que todos tenham chances iguais de expressar seus interesses e se fazer representar. Se há a

manutenção de um pluralismo regulado, a atividade não está inteiramente sob o controle de

nenhum sujeito singular. Somente assim seria possível garantir uma melhor distribuição de custos

e riscos, bem como uma auto-limitação do poder nos sistemas democráticos.

A perspectiva do pluralismo apresenta, a meu ver, diversas vantagens sobre as perspectivas

que entendem o papel da mídia como manipulação unificada ou como porta-vozes diretos de

interesses particulares. A relação que os agentes da mídia estabelecem com os atores políticos,

quer essa relação prossiga através de modalidades de cooperação, visando o fortalecimento da

legitimidade, quer se desenvolva através de modalidades conflituais, de exacerbação das

divergências e dos antagonismos, segue um padrão complexo de interações, e não uma relação

singular. A perspectiva pluralista evidencia que o esforço por parte dos agentes políticos, de

administrar imagens ou discursos no cenário de visibilidade midiática – espaço em que diversos

agentes atuam conjuntamente – gera efeitos imprevistos no jogo competitivo da política. Da

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perspectiva de cada ator, mesmo que determinadas comunicações pretendam realizar certos

efeitos, não se pode prever quais serão esses resultados, quando ou como eles serão produzidos.

Apesar de todas as restrições à comunicação pública, no sentido mais forte da acepção de

publicidade, a tentativa de coordenar as atividades, de modo particularmente estratégico na cena

de visibilidade midiática, promove confrontos diretos ou tecnicamente mediados, que também se

ramificam para além da oposição inicial dos atores e suas eventuais estratégias. Nesta dimensão, a

visibilidade midiática cria um movimento constante na fronteira entre a visibilidade e o segredo,

provocando contínuas modificações no conhecimento que alimenta as eventuais estratégias

privadas desses atores.

Contudo, tal perspectiva mostra-se frágil para lidar com as desigualdades deliberativas. Para reforçar o

sistema de checks & balances e interferir na limitação e no auto-controle dos poderes oficiais, a mídia deve garantir a

competição mais equilibrada entre os representantes e os representados na cena midiática. Pois bem, boa parte da

crítica ao sistema dos mídia aponta exatamente o fato de que o monopólio de grandes conglomerados torna

evidentemente precária a competição entre os veículos e compromete a oferta de perspectivas políticas alternativas. Se

a maioria dos output da mídia favorece apenas um ator político, partido, ou ponto de vista ou, ainda, se exclui os

partidos menores e as perspectivas minoritárias, reduz-se o ambiente informativo. A oferta ampla e diversificada de

canais de acesso ao campo de discursos públicos e a distribuição relativamente equânime do poder de agenda entre os

veículos são elementos imprescindíveis para a efetivação das premissas de participação e de competição no processo

democrático9. Quando falham as condições para um acesso equilibrado à arena de discussão, a perspectiva do

pluralismo não consegue ir muito além da conclusão estabelecida pelas teorias afeitas ao elitismo democrático. O jogo

da política acaba por ficar restrito àqueles que já dispõem de recursos políticos para se fazer ouvir na esfera pública ou

interferir nas instâncias formais da política.

De fato, se compreendemos a visibilidade midiática como um espaço no qual “vários

grupos sociais e instituições competem entre si e lutas ideológicas se desdobram sobre a definição

e a construção da realidade social” (Gurevitch and Levy, 1985: 19), o problema de acesso aos

canais da mídia torna-se, de fato, candente. Se o processo de tomada de decisão é definido em

termos de discussão e debate, então, todos precisam ter chance igual de falar; todos precisam ter

chances iguais de participação nas arenas relevantes para debate e discussão (Cohen, 1997: 74).

Apesar da condição da igualdade ser contra-factual, ela precisa ser realizada em deliberações

efetivas.

9 O balanço pode ser definido em termos de diversidade externa e interna (Norris, 2000: 27). A noção de diversidadeexterna diz respeito à competição entre diferentes outlets de mídia, oferecendo aos cidadãos uma escolha variada deperspectivas políticas alternativas necessárias para preservar o pluralismo. Como modelo da diversidade externa,Norris toma como exemplo os jornais impressos ingleses, muitos fortemente ligados aos partidos políticos. No caso dadiversidade externa, a autora ressalta que o modelo típico de coberturas favorecendo um tipo de balanceamento“expressando de maneira justa a posição de ambos os lados da disputa” é um dos modos mais comuns dos jornalistasentenderem a objetividade (Norris, 2000: 27-28)

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Obviamente, os indivíduos na condição de representados ou de atores da sociedade civil não têm as mesmas

chances de se constituírem como emissores na espaço de visibilidade midiática. A mídia – como conjunto de veículos

– não oferece um espaço equânime para os atores sociais divulgarem suas causas. Esse é um espaço de acesso restrito,

que sofre forte pressão de anunciantes seguindo regras impessoais do mercado, e que está sob crescente controle dos

profissionais da mídia. Mesmo a cobertura jornalística diária está, como rotina, estreitamente relacionada ao centro do

sistema político, sendo que os grupos de interesse políticos ou econômicos e representantes do aparato estatal

administrativo têm maiores oportunidades de propor uma “agenda política governamental” na mídia. Diante da

necessidade, por exemplo, de adquirir apoio público para implementar certas políticas públicas ou para alcançar um

tratamento formal de determinadas questões pelos Poderes Legislativo ou Judiciário, personalidades políticas,

profissionais de partidos e lobbistas procuram mobilizar a esfera pública, freqüentemente tentando influenciar as

manchetes jornalísticas e televisivas, através de realeases, coletivas ou técnicas de marketing político (Coob, Ross and

Ross, 1976: 133). Atingem, assim, de cima para baixo, os cidadãos e o eleitorado.

Já o conjunto de cidadãos ou os atores coletivos dispersos da sociedade civil não contam com a organização

suficiente, nem dispõem de recursos financeiros e logísticos para transacionar com a mídia. Os chamados públicos

fracos, não tendo acesso regular ao campo jornalístico, precisam, como diz Traquina, “fazer notícia”, através da

produção de fatos noticiosos, passeatas e demonstrações públicas. Eles precisam gerar “surpresa, choque ou uma

qualquer forma latente de ‘agitação’ (Traquina, 1995: 200) para romper com as barreiras impostas pelo sistema de

produção jornalística. Numa visão global, isso não representaria muito para a perspectiva pluralista, pois esses atores

continuam dispondo de um espaço mínimo na mídia, o qual é esporádico e sempre desigual. Tal conclusão é reforçada

pelos estudos conteudísticos que se prestam a “medir” o espaço ou o tempo concedido aos atores sociais pela mídia.

Novamente, corrobora-se a idéia de que são os públicos fortes que cumprem o papel de “balancear os devidos fins”.

Avanços e restrições do Pluralismo

A perspectiva do pluralismo rompe com a unilateralidade da relação dos atores políticos com a mídia, mas não diz

nada sobre o que é a deliberação ou como ela é melhor conduzida na condição corrente de constrangimento. Alguns

teóricos propõem que seria preciso, primeiramente, preencher os requerimentos da igualdade social para que o

conjunto de cidadãos possa ter voz pública e superar aquilo que Dewey denominou de “o isolamento do público dos

aspectos políticos da vida social” (Dewey, 1954: 224). Outros defendem que seria preciso “equiparar” as

oportunidades de expressão, através de um pluralismo regulado de diversas organizações independentes da mídia,

para que os grupos possam se beneficiar, como num mercado, da publicização midiática (Thompson, 1995: 240-43).

Em ambos os casos, fica implícita uma noção de ‘tudo ou nada’, ou se participa em padrões equânimes ou não se

participa.

No modelo do pluralismo, há pouco esclarecimento sobre o que torna a deliberação pública, o que ela pode

efetivamente realizar ou quando é de fato eficaz. Não se esclarece o que faz com que as razões oferecidas na

deliberação se tornem convincentes, diante do intercâmbio de razões realizado em público. De tal modo, tal

perspectiva se mostra precária para sustentar uma análise das desigualdades deliberativas, e, no caso específico da

comunicação midiática, das restrições de acesso e de oportunidades desiguais de comunicação nos canais da mídia.

Levar em consideração o quadro normativo da deliberação torna possível compreender o modo pelo qual os

procedimentos da deliberação pública produzem razões públicas convincentes. Tal quadro permite esclarecer por que

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os atores fracos, embora sofrendo diversas restrições de acesso à mídia, podem ser capazes de interferir na composição

do quadro de visibilidade midiática e no intercâmbio de razões feito em público. Numa trajetória distinta à dos

modelos pluralistas, torna-se crucial examinar o modo pelo qual os atores fracos são encampados na agenda dos mídia

e podem fazer “uso público da razão”, a fim de ampliar deliberação informada sobre questões políticas relevantes.

Nesse caso, a participação pode ser pensada em termos de gradação, e, ainda, conforme os padrões de argumentação

adotados. Acreditamos que tal percurso permite construir uma nova crítica dos limites do acesso do público de

cidadãos aos canais da mídia.

Das desigualdades deliberativas : os públicos fracos.

De que modo os públicos fracos podem se fazer ouvir ou “fazer uso publico da razão”

através da mídia? Qual a capacidade dos representados de propagar interesses e discursos próprios,

influenciando os representantes e os demais membros da comunidade política? Antes de explorar

tais questões, é preciso qualificar a controversa noção de igualdade política. Nos processos

deliberativos, os participantes entram para a deliberação com recursos desiguais, capacidades e

posições sociais diferentes. Isso permanece mesmo quando se adota a regra de uma pessoa, um

voto10. A desigualdade social tende a reduzir a eficácia e a influência dos deliberadores menos

favorecidos. A falta de recursos culturais e de oportunidades torna mais difícil para aqueles que

sofrem de desvantagens apresentarem publicamente suas razões de maneira convincente. Eles não

convertem sem custo ou esforço suas necessidades e convicções em contribuições efetivas para as

decisões políticas.

Estabelecendo um paralelo das desigualdades políticas e comunicativas no terreno dos mídia, podemos dizer

que os públicos fracos possuem desvantagens de assimetria de poder, a qual afeta a oportunidade de acesso aos canais

da mídia; desigualdade comunicativa, que dificulta a utilização efetiva das oportunidades de expressão (por exemplo,

a posse de vocabulário para expressar suas necessidades e perspectivas, conforme a gramática dos veículos); pobreza

política dizendo respeito à falta de capacidades públicas desenvolvidas (por exemplo, a habilidade de articular

argumentos politicamente relevantes a fim de serem considerados pelos demais).

Nesse sentido, as manifestações do público como expressões dispersas e lacônicas de

pessoas anônimas sobre determinada matéria, ou a categoria “povo fala” utilizada com freqüência

em programas televisivos, aproximam-se da noção de “massa”: uma opinião em perspectiva pouco

qualificada, de baixa sofisticação política, de um todos-juntos-indiferenciado. Seria muito exigente

10 É possível retomar aqui as críticas lançadas ao esquema da representação proporcional para superar asdesigualdades do jogo político, quando se empregam meios estatísticos com o propósito de beneficiar os menosfavorecidos no jogo político. A simples agregação de preferências ou a proporcionalidade da representação (como aregra uma pessoa, um voto) não elimina a diferença. Ao invés disso, quando se busca resolver conflitos através deformas deliberativas de debate coletivo, as conseqüências institucionais são distintas: esse é o modo mesmo demodificar a distribuição dos recursos ou implementar ações afirmativas/distributivas.

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requerer desse “público”, muitas vezes “apanhado de surpresa”, os recursos necessários para a

deliberação pública: informação suficiente sobre a matéria em tela, a atenção e a disposição para

se engajar em deliberação. Tais recursos dependem, em grande parte, de condições anteriores:

nível de competência política; distribuição de recursos cognitivos sobre o assunto; natureza da

cultura pública. Nessa perspectiva, o público disperso não se mostra preparado para estabelecer

uma interlocução, de maneira recíproca, com os chamados públicos fortes.

A noção de público se modifica quando adotamos a noção de atores coletivos: associações

voluntárias, movimentos sociais ou membros de redes cívicas. Como boa parte da literatura

contemporânea vem buscando demonstrar, esses atores coletivos desenvolvem diversos elementos

– habilidades cognitivas, oportunidades de aprendizagem, escrutínio crítico e motivação para a

ação – que os capacita a superar as desigualdades deliberativas. Associar-se em torno de uma

causa comum ou de problemas afetando diretamente a própria vida desperta o desejo e a vontade

de aprender; faz aguçar a atenção para informações relacionadas a tal matéria, seja através da

vivência prática e de discussões informais, seja através de publicações especializadas e de material

divulgado pela mídia (Warren 2001: 140-62; Melluci e Avritzer, 2001; Norris, 1999, 2000). É

nesse sentido que os membros das associações voluntárias e dos movimentos sociais podem

transformar-se em cidadãos “bem informados” sobre temas específicos. Podem, de tal sorte,

formular propostas e críticas relevantes, fazendo uso efetivo da expressão, quando há oportunidade

de participar em fóruns de discussão. Este é um modelo realista de participação, pois, como bem

expressou Simone Chambers, “não é possível manter altos níveis de participação cívica, todo

tempo e sobre todos os tópicos” (Chambers, 2000: 205).

Os públicos fracos no espaço de visibilidade midiática

Grupos organizados da sociedade civil também lutam por ‘visibilidade’ (Thompson, 1995). Produzem

demonstrações diversas ou dramatização de questões, tais como as do Greenpeace, marchas pela paz e contra a

violência, as passeatas de portadores de deficiência visual, a fim de adquirir espaço na agenda dos mídia. Criam datas

especiais (como o dia do negro, da luta antimanicomial, de orgulho gay) e produzem eventos de grande apelo para

evitar que suas preocupações sejam constantemente ignoradas pela sociedade. Tais demonstrações rompem com a

invisibilidade no circuito da mídia e criam novas possibilidades de expressão. Retomando as palavras de Traquina, “os

menos poderosos perturbam o mundo social para perturbar as formas habituais de produção de conhecimento”

(Traquina, 1995: 200).

Os atores fracos precisam chamar a atenção pública para determinados problemas para, então, tentar redefini-

los, i.e, proporcionar para eles entendimentos alternativos que venham informar o debate público. As abordagens mais

radicais desprezam o conteúdo político de tais demonstrações como “meros espetáculos” e negligenciam o fato de que

o apelo à emoção, nesses casos, pode ser visto como um ponto de partida importante para a tematização de situações-

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problema na sociedade, direcionando a atenção pública para problemas urgentes da sociedade ou para necessidades

ainda não reconhecidas.

Como apontado anteriormente, para ser minimamente eficaz na deliberação, é preciso ser

capaz de iniciar um diálogo público sobre um determinado tema, de modo que as próprias razões

possam receber consideração. Se este escopo da comunicação não pode ser alcançado, então, a

matéria não se constitui para o debate público. Mas, se, ao invés disso, os atores da sociedade civil

vencem a barreira da invisibilidade e alcançam a medida mínima para a participação política e a

cooperação razoável na deliberação, então, “o uso público da razão” pode ser direcionado para a

superação das desigualdades geradas por fatores de natureza social, cultural ou política. Pode-se,

de tal modo, construir novas relações entre os cidadãos e também entre estes e as instituições,

numa dada sociedade.

Os porta-vozes dos movimentos sociais ou membros de redes cívicas, quando têm acesso

aos canais da mídia, através de entrevistas, programas televisivos, documentários, buscam

introduzir seus temas e questões no proscênio público. Assim, as percepções e os argumentos

geridos em fóruns de debate crítico dessas associações, muitas vezes longe da visibilidade

midiática, ganham acesso à cena de visibilidade pública. De forma indireta, seminários, colóquios,

encontros promovidos por ativistas, acadêmicos, ou adeptos destas causas, contribuem para

formar novos públicos e ampliar as chances de cobertura da mídia massiva.

Mais que isso, é preciso esclarecer por que os atores da sociedade civil buscariam construir

conjuntamente razões públicas, ou seja, por que estariam aptos a produzir decisões apoiadas em

razões públicas convincentes. Superar as desigualdades não é uma tarefa fácil. Um problema

inicial a ser enfrentado pelos públicos que surgem no espaço público é estabelecer credibilidade e

autoridade para além da própria comunidade de argumentantes. Não se trata de supor que os

grupos da sociedade civil sejam necessariamente virtuosos ou altruístas, nem que tenham

competência comunicativa, criatividade cultural, nem mesmo que eles apresentem razões

convincentes. Mesmo quando os atores da sociedade civil conseguem superar as barreiras

impostas pelo sistema dos mídias, a fala deles pode mostrar-se inócua ou incapaz de interferir no

debate acerca de uma determinada questão, exatamente por não serem capazes de formular razões

convincentes apropriadas aos quadros dos demais atores da deliberação.

Em primeiro lugar, a promoção de novos entendimentos culturais e/ou a correção

institucional de exclusões presentes ou passadas não podem ser conquistadas pelo indivíduo de

maneira isolada, mesmo através do exercício de seu papel de cidadão, no uso de suas capacidades

críticas (Young, 1996). A contestação diária, cotidiana, é pré-pública. Tematizar danos derivados

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de práticas rotinizadas do Estado ou de sub-sistemas funcionais que se fazem sentir na vida dos

indivíduos, ou contestar padrões culturais de injustiça, pressupõe uma empreitada coletiva. Apenas

quando convicções comuns emergem os cidadãos podem agir em concerto, desenvolvendo uma

perspectiva auto-crítica e auto-reflexiva, traduzindo suas experiências do particular para o geral,

do institucional para o civil e vice-versa (Cohen e Arato, 1992: 530; Alexander, 1998: 25). É isso

que permite uma definição compartilhada do problema e, assim, uma contestação pública de

sofrimentos ou danos comuns.

Em segundo lugar, a expansão de um movimento social não é algo que ocorra de modo

automático, mas, ao invés disso, pressupõe a mobilização de redes de comunicação informal

dentre e entre os grupos sociais. A competência comunicativa ou a criatividade cultural são

elementos que são conquistados através de amplas seqüências de falas e discussões mais ou menos

estruturadas com aqueles concernidos, e negociações em situações práticas com as quais esses se

deparam nas diversas relações do meio societário11. Jean Cohen e Andrew Arato apontam, nesse

sentido, a natureza dual dos atores coletivos da sociedade civil. Além de tentar influenciar

diretamente o sistema político, através de lobbies e programas particulares, eles se preocupam, ao

mesmo tempo, em revitalizar a esfera pública e alargar a sociedade civil – como forma de obter

confirmação de suas identidades e de sua própria capacidade de ação (Cohen e Arato, 1992: 531-

532). É por isso que os atores coletivos da sociedade civil são importantes para a constituição do

debate público, modificando a configuração das instituições ou inovando mais a longo prazo

padrões culturais da sociedade.

O discurso dos atores coletivos críticos na esfera pública

A inserção das falas (ou melhor, dos fluxos comunicativos) dos atores da sociedade civil

no espaço de visibilidade midiática pode ser pensada como uma dinâmica a curto e a longo prazo.

Particularmente em situações problemáticas, de escândalo ou crise (envolvendo matérias passíveis

de regulamentação), a mediação permite confrontos diretos ou virtuais entre representantes do

aparato estatal administrativo, especialistas e atores da sociedade civil. Isso provoca uma troca de

visões/razões num processo de idas e vindas, que também se ramifica para além da oposição

inicial dos enunciados de cada falante.

11 Nas palavras de Jean Cohen e Andrew Arato, ‘O processo da comunicação pública constitui o “nós” da açãocoletiva; isso certamente ocorre antes mesmo do grupo ser interpelado (formalmente) sobre quais seriam seusinteresses na sociedade e antes mesmo da solidariedade entre seus membros ser explorada para obtenção de finscoletivos (Cohen e Arato, 1992: 370).

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Quando encampadas pela mídia, os atores da sociedade civil podem colocar sob suspeita as

perspectivas e os discursos apresentados pelos atores poderosos, chamando a atenção pública para

pontos de vista alternativos ou para novas razões, ou mesmo, desestabilizando formas inteiras de

justificação. Também como atores estratégicos, os representantes de movimentos sociais buscam

“desvelar”, no cenário público, operações ocultas de poder, pontos cegos nas políticas públicas,

preconceito ou uso ilegítimo da autoridade de outros atores da comunicação. Em certas ocasiões,

podem oferecer novas interpretações que “enquadram” as questões de modos distintos dos padrões

convencionais12.

Os grupos de interesse ou representantes do aparato estatal-administrativo são instados a se

posicionar publicamente. Nem sempre eles estão interessados em desvelar suas intenções –

freqüentemente não o estão –, nem em produzir uma discussão politicamente relevante, nem,

ainda, em atingir algum tipo de equilíbrio, fazendo convergir interesses e visões. Diante de pontos

de vista e de razões dos atores cívicos, encampados no campo de visibilidade midiática, as falas e

os argumentos de um determinado ator podem revelar-se precários, parciais ou, mesmo,

inaceitáveis publicamente. A necessidade de manter a reputação ou o padrão público de

apresentação (de pessoa responsável por seus atos) pode levar alguém a dizer algo, ao ser

requisitado a dar respostas, seguindo uma dinâmica de expressão que, de outra maneira, não

seguiria. Isso faz com que alguns atores incorporem pontos de vista alheios em seus proferimentos

e/ou respondam às críticas em interações subseqüentes.

A visibilidade midiática contribui para o estabelecimento de um novo quadro dinâmico de

interpretações. Nesse sentido, a contribuição dos atores críticos se dá mesmo quando os membros

dos públicos fortes não respondem, na cena midiática, a objeções específicas. Nesse sentido, a

possibilidade de maior acesso dos poderosos aos canais da mídia não nos pode cegar para o fato

de que não basta falar para convencer. A oportunidade para falar não empresta nenhuma força

convincente ou efetividade àquilo que alguém diz .

Num processo mais a longo prazo, a incorporação das falas dos atores críticos da

sociedade civil no espaço de visibilidade midiática é melhor apreendida como uma contribuição à

ação conjunta de deliberação pública. É, assim, parte de um processo mais geral de interpretação

realizado por diferentes comunidades em diversos ambientes sociais, cada qual com seus próprios

interesses, entrecortado por critérios de relevância e julgamentos conflitantes (Warren, 2001: 215-

12 Estudos empíricos sobre a tematização de situações-problema pelos atores da sociedade civil em relação a outrosatores no espaço de visibilidade midiática foram desenvolvidos por Bráulio B. Neves sobre o evento da Favela Naval eAdélia B Fernandes (1999) sobre a Luta Antimanicomial. Sobre este último, ver também Maia e Fernandes, 2002.

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16). Aqueles que sofrem de exclusão, injustiça simbólica ou exploração não pensam em termos

agregados de números e estatísticas, como os especialistas tendem a fazer, mas, ao invés disso,

tematizam suas questões em termos de valores considerados fundamentais em suas comunidades.

Nesse sentido, o discurso destes atores não pode ser entendido apenas como mera ação estratégica

– de buscar os melhores meios para atingir um determinado fim com sucesso – já que eles

desejam também despertar a consciência dos demais, a fim de alterar alguns dos pressupostos

constitutivos de um dado problema.

A contribuição dos atores da sociedade civil para o debate público, no espaço de

visibilidade midiática, pode ser pensada em diferentes níveis analíticos. Em primeiro lugar, as

questões colocadas pelos atores críticos geralmente trazem considerações éticas, morais e de auto-

entendimento cultural para o debate público. Isso tende a desencadear polêmicas entre os próprios

especialistas, como aponta Habermas:

“A partir do momento em que se apela para um saber especializado, a fim de tratarde problemas relevantes para a regulamentação política, percebe-se que ele possuium teor normativo que desencadeia controvérsias polarizadoras entre os própriosespecialistas. (Habermas, 1997: 83)O debate público tende a ser ampliado, quando questões de justiça ou de valor cultural são

acrescidas às proposições do conhecimento de especialistas e/ou às negociações de metas

pragmáticas. Devido à variedade das dimensões possíveis relacionadas às situações- problemas, o

uso público da razão não pode ser limitado a um tipo singular de conhecimento ou a um conjunto

único de razões. A deliberação política, como diz Bohman, “não possui um domínio específico;

inclui atividades tão diversas quanto a formulação e obtenção de propósitos coletivos, bem como

as decisões políticas sobre meios e fins, as negociações entre princípios e interesses, a resolução de

conflitos tais como eles emergem na vida social” (Bohman, 2000: 53)

A inclusão da perspectiva dos atores da sociedade civil no debate publico, ampliando a

definição dos problemas, demanda um compartilhamento do saber social para tratar de problemas

complexos, que não podem ser resolvidos sem a cooperação coletiva. Isso não significa que os

conflitos se tornem mais fáceis de serem resolvidos. Pelo contrário, como apontam Amy Gutmann

e Dennis Thompson, “uma deliberação ampliada traz sempre o risco de desencadear um conflito

mais intenso. Porém, o fato positivo da deliberação é que ela pode trazer à superfície a

insatisfação moral legítima, suprimida por outros modos de lidar com o desacordo. O resultado

que servir aos atores em deliberação terá maior chances de gerar estabilidade” (Gutmann e

Thompson, 1997: 42). Neste sentido, desacordos mais agudos e formulados com maior clareza

contribuem para uma melhor deliberação do que as tentativas pré-maturas de consenso.

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Se o público crítico percebe restrições nas formas de comunicação, ou limitações nos

argumentos de seus oponentes e busca superá-las, apela-se para uma audiência ampliada, a fim de

convencer aos demais de que tais razões não são, na verdade, públicas, e, portanto, não são nem

responsáveis nem benéficas para o conjunto de cidadãos. De tal forma, a deliberação pública ajuda

a distinguir pragmaticamente entre as reivindicação particularistas, egoístas, e aquelas com maior

apelo coletivo. É nesse sentido que a deliberação pública deve existir para “processar os detalhes

da concepção do bem comum e aplicá-los a questões específicas da política pública” (Cohen,

1997: 362). Nas palavras de A. Gutmann e D. Thompson, “mesmo quando os deliberadores

deixam de produzir uma resolução satisfatória de um conflito em qualquer momento particular, a

capacidade para uma auto-correção permanece como a esperança mais consistente para descobrir

tal solução no futuro (Gutmann e Thompson, 1996: 44). Assim sendo, a publicidade permite um

ganho epistêmico: aperfeiçoa a qualidade da justificação política e da tomada de decisão por

subjugá-la a um grande número de opiniões alternativas possíveis.

Conclusão

A visibilidade midiática cria uma nova base reflexiva e recursiva para atores específicos.

Tal base é recursiva na medida em o quadro produzido pela mídia pode ser utilizado para encetar

aprendizado a atores específicos, entre aqueles que se encontram na cena e aqueles na platéia ou

na galeria. Isso serve não apenas para os atores modificarem suas estratégias de apresentação e

suas práticas discursivas na cena pública, diante de um público indefinido de cidadãos, mas,

também, para moldar a maneira pela qual os membros do grupo se entendem a si próprios e a seus

interesses legítimos.

A análise que busquei desenvolver compartilha, com as teorias pluralistas de democracia, a

preocupação com as desigualdades de expressão entre os representados, ou os atores da sociedade

civil, e, conseqüentemente, com o acesso desigual aos meios de comunicação e com as barreiras

presentes na comunicação estruturada pela mídia. Contudo, para além dessas assimetrias, a

investigação das desigualdades deliberativas é importante porque resiste à tendência elitista

presente nas teorias pluralistas de restringir a deliberação àqueles que já são virtuosos, sábios e

abastados. A relação entre participação e argumentação pública permite apreender o público

enquanto um agente capaz de desenvolver uma perspectiva própria de interpretação e

comunicação, a partir de um forte senso de responsabilidade para sustentar a publicidade da

comunicação. Tal senso de responsabilidade, contudo, não advém de um “espírito público”

abstrato, no sentido liberal clássico, como se os indivíduos fossem ‘repentinamente’ suspender/

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abandonar suas atividades diárias, para atender a reuniões, escrever manifestos, para deliberar em

fóruns públicos sobre todas as questões de relevância política. Ao invés disso, tal responsabilidade

advém, quando os cidadãos e seus representantes se sentem motivados a adotar uma perspectiva

crítica diante de problemas ou temas particulares que afetam diretamente suas vidas.

Diferentemente daqueles atores fortes, cujos interesses precisam, muitas vezes, ser mantidos longe

da visibilidade pública, os atores plurais da sociedade civil – exatamente por não terem como

impor seus interesses nem exercer influência direta sobre as instâncias políticas formais de

tomadas de decisão – precisam desenvolver competência comunicativa e criatividade cultural, bem

como descobrir razões convincentes para modificar os entedimentos dos demais nas relações

cotidianas e o “modo de ver as coisas” na cena pública, incluindo os fóruns mais organizados

como o da mídia, e, assim, exercer influência eficaz nas instâncias formais de tomada de decisão

das sociedades democráticas.

O quadro normativo da deliberação permite valorizar as contribuições dos atores da

sociedade civil para ‘desvelar’ novas questões ou desencadear um debate público ampliado, sobre

temas específicos, no espaço de visibilidade midiática, ainda que esses atores sofram sérias

limitações de acesso aos veículos da mídia. Claro está que o processo de deliberação une duas

capacidades sociais que são cruciais para o estabelecimento da cooperação: a accountability

permanente dos atores em situação problemática e a capacidade dos atores para engajar-se na

comunicação generalizada na esfera pública. Por isso é que é sempre uma tarefa empírica

examinar qual o padrão de argumentação efetivamente adotado pelos atores sociais no espaço de

visibilidade midiática: se a comunicação busca se desenvolver de forma cooperativa com os

demais, ou se, ao invés disso, os atores interrompem a comunicação e encerram o diálogo,

ignorando os pontos de vistas divergentes e as perspectivas conflitantes. Pesquisas empíricas

precisam ser realizadas para dar conta desses problemas, destacando, inclusive, os processos

mesmos de mediação realizados pelos agentes da mídia com relação a eventos específicos ou

debates públicos particulares.

A distinção entre a formação da opinião pública, racionalmente motivada, que ocorre de

modo relativamente espontâneo/autônomo entre os indivíduos em suas relações informais na

sociedade e os processos de tomada de decisão, formalmente regulados nos corpos administrativos

e legais do sistema político, permite tratar o problema da legitimidade do exercício do poder

público em diferentes dimensões analíticas. Uma esfera pública ativa não significa

necessariamente que os cidadãos serão capazes de intervir, de forma bem sucedida, nos processos

de tomada de decisão, uma vez que formas de poder ilegítimo podem se acumular nas instituições

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sociais. Contudo, esse quadro teórico permite que se investigue a legitimidade das decisões

políticas e os graus de interpenetração destas com a opinião construída de maneira informal, mas,

ainda assim, racionalizada. Torna-se possível, inclusive, examinar se a comunicação estruturada

pela mídia mostra-se accountable diante do conjunto de cidadãos, ou se, ao invés disso, solapa as

condições de publicidade que ela deveria fortalecer.

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