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..........'-' eau Martins Fontes - II 0 Contrato Social

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social (Martins Fontes)

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O contrato social completo

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..........'-' eau

Martins Fontes

-

II 0 Contrato Social

Poucas obras marcaram tanto a historiada literatura poHtica. Ninguem nega queo Contrato Social esta entre os principaistextos neste campo.Todo empreendimento intelectual ouartistico importante nasce ao mesmo tem­po de uma insatisfa<;ao e de urn impulsode entusiasmo. Por mais que Rousseauseja diferente de seus predecessores, nesteaspecto esta em situa<;ao semelhante. Emsua reflexao poHtica, junto com uma pro­funda insatisfa<;ao existe urn entusiasmoardoroso. Insatisfa<;ao diante da socieda­de em que vive, cujas institui<;oes consideraabsurdas e perniciosas. Entusiasmo dian­te da ideia de uma ordem social radical­mente diferente, onde a obediencia a leigarantiria, pelo acordo de todos, a liber­dade de cada urn.Esses dois sentimentos guiam seu pensa­mento regendo a propria constru<;ao desua doutrina e sua arquitetura secreta.Por outro lado, 0 sucesso do titulo leva-noscom freqiiencia a esquecer 0 subtitulo:Principios do Direito Politico. Rousseaucoloca-se no plano daquilo que maistarde se chamara 0 direito publico geralou ainda a teoria geral do Estado. a pro­blema em torno do qual Rousseau iraordenar a sua reflexao poHtica e precisa­mente 0 da justifica<;ao do poder, ou me­lhor, da autoridade suprema que se impoea todos os membros da coletividade.

CAPA

Imagem Allan Rall1say. RO/lSJUlli

Projeto gnifico Katia l brullliIt-rasab

o CONTRATOSOCIAL

PRINCIPIOS DO DlREITO POLITICO

].-]. Rousseau

Traduc;aoANTONIO DE pADUA DANESI

RevisaoEDISON DARCI HELDT

Martins Fontessao Paulo 1999

Titulo original: DU CONTRAT SOCIAL - Principes du droitpolitique.

Copyright © Bordas, Paris, para 0 aparelho crftico

em que se baseou est~ edifao.

Copyright © Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,

Sao Paulo, 1989, para a presente edi(ao.

I' edi~aojunho de 1989

3' edi~aodezembro de 1996

3'tiragemnovembro de 1999

Tradu~io

ANTONIO DE pADUA DANESI

Revisio da tradu~jo

Edison Darci Heldt

Edi~io de textoMaria Ermantina Galvao

Revisio gralicaCelia Regina Rodrigues de Lima

Produ~o gnilicaGeraldo Alves

Pagioa~olFotolilOS

Studio 3 Desenvolvimento Editorial (6957-7653)

CapaKatia Harumi Terasaka

Dados Internacionais deCa~ na Publica~o (CIP)(Cimara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

lndtce

Pre/acio.... IX

Cronologia - Rousseau e seu tempo.................... XXVNota desta edi~iio XXXV

o CONTRATO SOCIAL.............................................. 1Advertencia 3

Livro I

I. Contrato social 2. Politiea - Filosofia I. Titulo. II. Serie.

Rousseau, Jean-Jacques, 1712-177~.

o contralo social / Jean-Jacques Rousseau; [traduflao Antonio de PaduaDanesi]. - 3' ed. - Siio Paulo: Martins Fontes. 1996. - (Cllissieos)

Titulo original: Du contral social : principes du droit politique.

Bibliografia.ISBN 85-336-0552-8

Todos os direitos para a Ifngua portuguesa reservados aLivraria Martins Fontes EdUora Ltda.

Rua Conselheiro Ramalho. 330134001325-000 Silo Paulo SP Brasil

Tel. (11) 239-3677 Fax (ll) 3105-6867e-mail: [email protected]

http://www.martinsfontes.com

96-5483

indices para call\logo sistematico:I. Contralo social: Ciencia polilica 320.11

CDD-320.11

I.II.

III.IV.V.

'I VI.

VII.\ VIII.

IX.

Objeto deste primeiro livro ..Das primeiras sociedades .Do direito do mais forte ..Da escravidao ..De como sempre e preciso remontar a umaprimeira conven~ao .Do pacto social ..Do soberano ..Do estado civil ..Do dominio real .

9101213

;;920232527

Livro II

I. A soberania e inalienavel .II. A soberania e indivisivel... .

III. Se a vontade geral pode errar. .IV. Dos limites do poder soberano .v. Do direito de vida e de motte .

VI. Da leL .VII. Do legislador .

VIII. Do povo .IX. Continua~ao .X. Continua~ao .

XI. Dos diversas sistemas de legisla~ao .XII. Divisao das leis .

.Livro III

I. Do governo em geral.. ..II. Do principia que constitui as diversas for-

mas de governo ..III. Divisao dos governos ..IV. Da democracia ..V. Da aristocracia ..

VI. Da monarquia ..VII. Dos governos mistos .

VIII. Nem toda forma de governo convem a to-dos as paises .

IX. Dos indkios de urn born governo .X. Do abuso do governo e de sua tendencia a

degenerar .XI. Da motte do corpo politico .

XII. Como se mantem a autoridade soberana ..

3334373843454954 )56596265.£W

71

778082848794 I

95101

103107108

XIII. Continua~ao 109XIV. Continua~ao................................................... 111XV. Dos deputados au representantes 112

XVI. A institui~ao do governo nao e urn contrato 117XVII. Da institui~ao do governo............................ 118

XVIII. Meio de prevenir as usurpar;6es do govemo 120In

Livro IV

I. A vontade geral e indestrutivel 125II. Dos sufragios 128

III. Das eleir;6es................................................... 131IV. Dos comicios romanos 134V. Do tribunato 146

VI. Da ditadura...................... 149VII. Da censura..................................................... 152

VIII. Da religiao civil............................................. 155IX. Conclusao 167

! (.,"i,

Notas................................................. ......................... 169

Prefdcio

De Jean-Jacques crians;a, Rousseau escreve: "Ima­ginava-me grego ou romano." Entendamos que se entu­siasmava pelo heroismo e civismo dos herois de Plu­tarco. Genebra parecia-lhe uma cidade da Antiguidade.Logo deixa sua patria; tanto em Savoia como em Parisempenha-se numa busca incessante de si mesmo. Aostrinta e urn anos, urn acaso 0 envia a Veneza, como se­cretario do embaixador da Frans;a. Os venezianos nao saoespartanos. Diante dos costumes corrompidos e do maugoverno, e provavelmente urn dos primeiros a ver, nostempos modernos, que "tudo estava ligado a politica".Sim, mas ha urn drculo, pois 0 governo depende doscostumes que estimula. A primeira tarefa nao e formarbons cidadaos? A politica supoe uma boa educaS;ao. 0pensamento de Rousseau esta esbos;ado. 0 espet:iculo daFrans;a confirma seu diagnostico. Logo sonha escreverInstitutions politiques, Ie bons autores ao mesmo tempoem que compoe seu Discours sur l'inegalite, depois, paraa Enciclopedia, 0 artigo Economiepolitique. . .

Em 9 de abril de 1756, retira-se para Montmorency.eestabelece seu plano de trabalho. Primeiro resumir e co­mentar os trabalhos do abade de Saint-Pierre, cujos ma-

IX

_________ 0 Contrato Social _

nuscritos ele possui, sobre a Paix perpetuelle e a Po­lysynodie, govemo pelos conselhos. Em seguida realizartres grandes projetos: terminar as Institutions politiquesiniciadas em 1751, escrever a Morale sensitive, sobre aharmonia entre a felicidade e a virtude, reunir suas ideiassobre a educa~ao. Interrompido pela composi~ao impre­vista de La nouvelle Heloise, perde a coragem de traba­lhar em suas Institutions politiques. Estas deviam ter duaspartes, uma sobre os prindpios .do direito politico eoutra sobre as relapSes entre os povos. Conservou a pri­meira e queimou 0 resto. 0 conteudo dessas tres obrasconcretizou-se na reda~ao do tratado sobre a educa~ao,

Emile, cujo quinto livro trata de politica. Mas publicasimultaneamente seus prindpios do direito politico sobo titulo de 0 contrato_social~~E impossivel deixarde notar quese~mantema-Iiga~ao estreita entre a politi­ca e a educa~ao, que Rousseau ja encontrava em A Repu­blica de Platao.

Para nos, a politica e a arte de administrar uma so­ciedade, de manter nela a paz social, de transformar alegisla~ao para adapta-Ia as modifica~6es acarretadaspela historia, de controlar as diversas atividades dos ho­mens de tal modo que as institui~6es sejam justas e efi­cazes, de regular as rela~6es entre 0 Estado e os outrosEstados. Falamos de politica financeira, escolar, econo­mica, social. Mas a enfase e outra quando a palavra seaplica a arte de conquistar ou de conservar 0 governo.Rousseau certamente nao ignora esses problemas. Sabe,em particular, que a politica e, como se disse, a arte dopossivel; ele 0 mostra quando raciocina sobre casos con­cretos: a Polonia, a Corsega, Genebra, ou quando escre­ve 0 artigo Economiepolitique. Tambem sabe que se po-

x

_ Pre/acio _

de conceber uma ciencia politica que busca as leis que"resultam da natureza das coisas": Montesquieu forneceuos prindpios em seu~_~spir;t? das l§f(i7~Rousseaunao ambiciona refazer esse-grande llvro, nem estudar apolitica em si mesma, mas determinar seu fundamento,os "principios do direito politico".110ntesquieu e, emp.!ime~rQJuga(TuD§~~oqQlOg~.~~~e~!,_fil,?~fo"preocupa-se com a natureza e a felicidade d9 bomem;no trajeto encontra necessaifamente a politica. Naosedefiniu 0 homem como urn animal-'poHt~c:o?

·A se'Tlllodo,-reto~mas· -;utrora levantadospor Hobbes, pelos teoricos do direito natural, Grotius,Pufendorf, Barbeyrac. Ma~_ ~~~e_s_Cl:utore.s,.segundo Ro~_s­

seau, estao mais preocupados em justificar 0 que e, empaftlr-dos·""fatos", do que em buscar a·que deve ser. Porexemplo, Hobb~§J2ensa que, £':l_Q.Cl.J1ill CI.ll~~!l~() sua s.e.:guran~a, tf"necessario um.podt:EJo!t~~ue imp.e~aQhQ-,~em'deser urn lobo parao homem. Quanto aos teoricosdo direito natural, eles nao estao suficientemente preo­cupados em analisar essa natureza; tambem partem dosfatos, e Grotius, do mesmo modo que Hobbes, justifica aordem estabelecida.

Ora, a questao e precisamente essa "ordem". ParaRousseau, a politica nao e justificada nem pela "nature­za", nem pelo interesse, nem pela for~a, nem pelo fato

hconsumado. AJ20litica ~_~m prim~ir.() luggr....llwa moral,!',realiz<i ohomem, qu~e vontade,_fazao, consctencia. sen-rti~~fltO e nao sirnplesmente_necessidade.epaixii9. _.§1!: \£6~~~~~C:!<l do homem", e esta e praticamentc: ine­,x!stente,poi~ os autores se contentam em olhar a sua;-l~olta e dizer: assim e 0 homem. Certamente, mas este e i

l.o·hOmefiicorr()mpido por nossa civiliza~ao alienante, 0:

XI

_________ 0 Contrato Social _

,et!rQPeu. c:Qsmopolita, 0 homem das cidades e das cortesperseguil1_Qo S~!Js_pr~tensos interesses:-Restam outros- ii­pas hlimanos, artesaos e lavrac:loresem lugares afasta­dos, povos selvagens, cidadaos antigos. Em suma, nao sebuscou 0 que e 0 homem "em geral", nao houve a preo­cupaC;ao com tudo 0 que este podia se tomar. Nada com­preenderemos do "utopismo" de Rousseau, se esquecer­mos esse pano de fundo, essa preocupac;ao por umapolitica que, para 0 homem, seja meio de se fazer, naode se corromper. :E verdade que "por toda parte 0 ho­mem esti agrilhoado". A polltica e a arte de forjar essesgrilhoes ou, pelo contrario, de libertar deles? Quem sabeo que significa a liberdade?

Dessa ciencia, Rousseau empreendeu 0 esboc;o noDiscours sur I'inegalite, que e uma das chaves de 0 con­trato social. Pondo entre parenteses a sociedade, paramelhor visar ao que e natural e nao cultural, Rousseauimagina urn "estado de natureza" onde cada urn vive so­zinho. 0 homem original e uma especie de animal tranqUi­10, movido por poucas necessidades, indiviso, sem coer­C;ao e, consequentemente, feliz, ligado apenas ao presen­teo Mas permanece "esrupido e limitado". Ora, segundosua natureza, ele tambem e perfectivel, portanto chama­do a se desenvolver. Aqui intervem a sociedade: apenasela permite que se adquira a palavra, a memoria, as ideias,os sentimentos, a consciencia moral, em suma, as luzes.Infelizmente, essa educac;ao dos homens foi feita ao aca­so, sem principios, sem reflexao, sem respeito pela or­dem natural. 0 resultado e urn estado em que as neces­sidades do homem se multiplicam, em que ele nao aspode satisfazer sem 0 outro: toma-se cada vez mais fra­co, cada vez mais dividido e preocupado, cada vez me-

XII

_ Pre/acio _

nos livre. Vive num estado de "agregaC;ao"', onde cadaurn pensa em primeiro lugar em si mesmo, luta a fim dese fazer reconhecer e dominar. Para sobreviver e precisofazer-se aceitar, submeter-se ou impor-se, portanto preo­cupar-se com a opiniao dos outros.~sta e ~pior ~§.f£'!Yi:

dao: precisamos dis~.Jll!~_~2rn<::>~.lpa.r~£~!:J2_9.,~C::

"nao somos:-Ohomem natural se destr6i ~em "~e r~aliz~r,

urn eu"ficticio vai formando-se aos poucos e substituinosso verdadeiro eu. Todos ficam divididos e infelizes, eacabam se acomodando com seus grilhoes.

Nesse estado instavel, perigoso, ate os poderosospodem temer a revolta ou a astucia dos fracos. Sua habi­lidade evita isso: seduzindo a opiniao ingenua dos fra­cos, eles os convencem a legalizar 0 estado de fato (naoa legitima-lo) par urn falso contrato social: nos lhes con­cedemos seguranc;a, dizem eles, contanto que voces nosconcedam obediencia. Assim sao os homens que conhe­cemos, quando as leis fortalecem os fortes e enfraque­.cem os fracos. Dns penam, os outros governam. Dizem­'oos agora: assim e a natureza. Os filosofos 0 justificamcom uma moral do interesse que ve a felicidade na mul­tiplicac;ao dos prazeres, sem compreender que ela mer­gulha todo homem na escravidao de seus desejos, desuas ambic;oes, do luxo, da vaidade, das paixoes. Emnenhum lugar ha liberdade, nem felicidade.

Rousseau distingue assim a rna socializac;ao, queresulta de urn certo peso sociologico do qual 0 Discoursdescreve as etapas necessarias; estabelecimento da pro­priedade, divisao das tarefas, enriquecimento, sujeiC;ao.o estrago e consideravel: ninguem ouve mais sua razao,e sim seus~o_fismas;)llem sua consciencia, e sim seus pre­conceitos. Sem:-vlrtude, os homens vivem na inseguran-

XIII

_________ 0 Contrato Social _

c;a, submetidos a pressao dos costumes, que presidem atoda educac;ao. ~aQ resulta dai, entretanto, que a sociali- ,zac;ao seja rna por na.tureza, ela e_~!n..bi&4a: indispensavelpara a realizac;ao do homem providQ de todas as faculga­ges que a natureza Ihe proporciona, poderia ajud4~Lc.>...llencontrar sua felicidade, mas Q SQrroqipe. Bast;triaJ:Ql},,,teber uma boa socia~ao: -as .cida<:ies'aa 'antiguidadeinostram que em certas cOll,dic;6es isso foi-possive!.

,;. ,'" Vma boa socializac;ao s6 pode~~rgi;-da von~..d~ra-"". ---_._._..__ .._--_., - -.- ..'-cional, consciente de seus finse:'de seus meios. Aqui ain-

da estamos em urn drctiro','ja cllleo·Iiomem nac> tern von­tade e razao senao atraves de uma sociedade preexisten­teo Epreciso enta~ urn concurso excepcional de circuns­tancias para que se efetue 0 acontecimento. Mas isso naonos deve impedir de meditar sobre os principios de umasociedade justa, portanto fundada na vontade racional.9ra,.ClgirJivremente com urn outro. signifi~a e§t:a.p.elecer,com ele urn confiito em que ambos se comprometem.

~$i1!1_2.contr~.t2~Q~iaI(6 atQ_fii.ful)..Q:l~aOde umacidade. Assinalemos a originalidade disso. Desde a IdadeMedia, foram muitos os autores que desenvolveram aideia de urn pacto politico. Mas em gera! nao passava deurn pacto de govemo, 0 acordo estabelecido, por exem­plo, entre urn povo e uma dinastia, para the conferir a co­roa segundo certas leis fundamentais. Mas tais atos sem­pre sup6em urn corpo politico preexistente. 0 contratosocial, segundo Rousseau, nao contem nada disso: ho­mens se reunem, como esses aventureiros que, diz-se, acom­panhavam Romulo. Ate entao viviam na anarquia, em quea luta pela vida faz a lei. Mas eles tern a ideia de justic;aque, segundo Rousseau, e inata ao homem: prop6em-sefundar uma sociedade justa, urn corpo politico.

XIV

_ Pro/acio _

Pouco importa, alias, a historia. No principio,S'.l.<.:la,.urn se dirige a todos e lhes oferece sua vida e seus beJ;1s'~'aliena~aQ ite!~Se se tratasse'-de uma escravidao,isso seria impensavel. Seu carater e de ser "total": cada urncompromete-se inteiramente a ser membro do carpo poli­tico; por outro lado, a alienac;ao e reciprqs;_a:...todQ~~ban­

donam tudojTudo significa sua p~ete~sa liberdad~subsistir, ma~r, pilhar, coagir, mas tambem de ser morto,despojado, caagido pelos mais fortes. <.l.9.!!e.§ll~ge _~_e.s,se.

, contra.-1Q e o@ ~~1)..1e_a-1lida,jana9 e 'lll).1 dome:~<:ari2 c4tlla!Ur~z~.!!1~.~!ErecQnbe~imentoda socie:~ade, os be~j~t1~Q..sao yma PQSs.~.tru!~llma l?.f9p!ie,Qa­de~'k sociedade inteira toma-se a fiadora. 0 homemperde uma liberdade, por certo ilimitada, mas afinal iluso-ria, e ganha uma liberdade'feglllada, mas'segura. _ ...

.. Tudo se organiza, portanto, em tomoda nOc;ao delei. Esta e a expressao da vontade geral. A vontade egeral quando racional, isto e, quando seu proprio objetoe geral, quando estabelece urn principio valida para todarazao. E infalivel no sentido precise em que tern a infali­bilidade da razao perante a evidencia dos principios. Ora,esta e uma caracteristica de todo homem esc1arecido.Logo, a vontade de cada urn pode ser geral: so possoquerer a lei se ouc;o minhapr<?2ria raza2L no silencio daspaiX6es~'Assiffi:-qua~~-~b~,d~c;oiki=~~~J!~iiyre,nao ob;de~oseiiiio a ffiim mesmo. Se"sou iusensato, e com fre­~ncia sou~~~~~s:~.42 ge..,(), serl.,~erei ~'fQ~.8!~O ..~_s_e..!-!!:vre", a obedecer a razao. Assim fazem nossas sociedadesquanci~,-p-or"exe~plC;',~;}os obrigam a higiene, nao parasujeitar, mas para libertar, nos e os outros.

Devemos entao distinguir a vontade geral da vonta­de de todos, soma de vontades particulares subjetivas

xv

_________ 0 Contrato Social _

ou mesmo passionais. Por exemplo, a designa~ao porunanimidade de urn chefe nao e uma lei: 0 objeto dissoe particular e a razao, saindo dos prindpios para partici­par na preferencia do melhor, pode errar. Desse modo,o voto e a decisao da maioria sao somente meios como­dos de presumir a vontade geral. Se a manobra, a propa­ganda insinuante, as paixoes intrometem-se, ja nao lida­mos senao com a vontade do numero. A lei apenas po­de dizer que nos casos duvidosos e mais racional que aminoria ceda diante da maioria.

~Entao_a lei e jm;ta, porqu~.~~.':l:plif~.-A.tQdQ~! N~ RQ.Qeoprimir, .poi~._~_()2~essa2 es.e!Jlpre ocasiona~~~lgyns.

Nao pode ordenar nada contra a liberdade inalienavel dQhomemsensat~~-lliniia~ana--m~did;-em-quese trat~··da

ordem dvica co~tra os interesses particulares de urn indi­viduo, de uma dasse, de urn partido. Mas a cidade, real­mente una em sua vontade, deve ignorar as fac~oes.

o soberano e 0 povo. Aqui ainda a ideia e nova: nasantigas doutrinas do contrato, 0 povo s6 e soberano porurn instante para abdicar de sua liberdade e entrega-Ianas maos daqueles que chamamos habitualmente de so­beranos. Essa soberania, mesmo escarnecida, permane­ce inalienavel. Cada homem, ao mesmo tempo membrodo soberano e sudito, faz a lei e lha obedece.

Quando os prindpios estao estabelecidos, a maqui­na deve funcionar, e cumpre localizar 0 poder que tomaas decisoes em conformidade com a lei, em particular adesigna~ao das fun~oes. Chama-se magistrado. Rouss~aunao se pronuncia com dareza sobre os regimes politicos.Ele assinala, ap6s Montesquieu, que sua forma dependedas circunstancias. Pouco numerosa, a magistratura emais eficaz, mas na medida em que cresce toma-se menos

XVI

_ Prefacio _

perigosa. Uma pequena Cidade (cite)· poderia ter mui­tos magistrados e, quando muito, na democracia direta,o corpo politico inteiro. Num grande Estado, as diver­gencias legitimas dos interesses sao grandes, a eficaciaimplica concentra~ao. Ha que se encontrar a justa medi­da. Contudo, a magistratura comporta urn risco: possuiseu espirito de corpo, sua vontade geral e tende a con­fundir seus interesses com os do Estado, que Rousseauprefere pequeno.

Vimos que a origem das Cidades e diflcil, por naoserem os homens ainda racionais. Extraimos da hist6riao ensinamento_g~qu~ os pov"Q~sfo· institllld~s P9!"_~mI~illdocLicw;g.o J~z Espana,. Nwnac.riQu ROlll;a, c():­mo Moises, o~jud~. Ou desde 0 come~o, ou quandouTiii-crise grave destr6i as estruturas, 0 povo inexpe­riente aceita a li~ao de urn sabio. Uma unica pessoa po­de ser mais darividente que todas. Discerne os prind­pios do justo e do injusto, mas nao constr6i no ar: ana­lisa a situa~ao geografica, demografica, psicol6gica, com­preende 0 que os homens podem admitir e os meios deforma-los. Sobre esse saber, 0 Legislador estabelece urnsistema de leis, das quais muitas sao arbitrarias, atemesmo surpreendentes, mas respondem a finalidade daCidade. A evidencia de muitos preceitos de Moises naose impoe: proibi~ao das imagens, saba, tabus alimenta­res, regras de casamento ou de partilha de bens. Seupapel e obrigar constantemente 0 povo a sentir-se uno,sob uma lei, em sua diferen~a de todos os outros. En­trega-se a habitos que the dao uma s6 alma. Num outroestilo, Licurgo 0 fez em Esparta, e Rousseau tentou

• Ver nota 19, p 172. (N. do R.)

XVII

_________ 0 Contrato Social _

imita-Ios, quando seus amigos poloneses, transtomadospela iminencia do perigo, pediram-Ihe conselho.

Mas e precise assinalar que 0 Legislador nao e nemsoberano, nem magistrado. Permanece fora do povo,pode ser estrangeiro. Propoe urn sistema que 0 soberanoadota. Depois se retira. Portanto e urn pedagogo, quebusca a maneira de fazer homens, impondo as crianc;asuma disciplina que as molde para se tomarem cidadaos. Eurn mediador entre a justic;a pura e os fatos, uma especiede genio universal, que se impoe pelo prestigio de suainspiraC;ao e empreende a "desnaturac;ao'" dos homens, 0

que significa: faze-los sair do isolamento, de seu egoc~n:

trismo~s12QntaneD.obriga-Ios a se verem como elementosde urn todo, como "unidades fracionarias", e nao absolu­tas, submetidos a lei, isto e, ao dever, capazes de vencer asi mesmos, logo, virtuosos. Acrescentemos que, para queas consciencias sejam bern esclarecidas e os habitos arrai­gados, 0 sistema das leis deveria ser intangivel.

Essa especie de nacionalismo, espiritual e moral, eurn dos pontos delicados da doutrina. Entre 0 individua-

•• ; L~h_\;~ ,-',

lismo e 0 universalismo, Rousseau quer 0 C1Vlsmo. Paraele nao ha amor fraternal de toda a humanidade: amam-,se os tartaros que nao se veem para se dispensar de amaro proximo. A boa Cidade, realmente una, original, per­manece na medida de nossa experiencia, nao reune inte­resses demasiado divergentes, podemos pensa-Ia, quere­la e ama-Ia. Mais alem, outras Cidades existem. Rousseau_~_~_d.YeI~Ariosl() CbsIl19P~!~~.que_<}_<:~_l:!<?i as singulari:dadeS,<:lenuncia_a:·uiop)a._do born abade de Saint-Pi~rre

sobre a .pa.:?_lJJl.ive!§~l. Para ele, as cidades tern poucoscontatos com as outras e vivem na autarcia economica.Permanecem entre si no estado de natureza. Mesmo que

XVIII

__________ Pre/acio _

eXistam, a maneira antiga, leis de hospitalidade, nao hacontrato social universal. Em termos bergsonianos, diga­mos que a moral civica de Rousseau e fechada.

o problema coloca-se quase da mesma maneira paraa religiao, fermento da unidade espiritual. 0 vigario sa­boiano ensina que a verdadeira religiao e natural, isto e,sensata, mostrando urn Deus autor e guardiao de todaordem, cosmica e moral, e a imortalidade da alma. A reli­giao assegura a consciencia moral e fortalece 0 homemem seu dever. A moral do ateu e sem fundamento, suaadesao ao contrato social, sem garantia: nao participa daalma da cidade, nao tern lugar ali. A religiao civil unificaos corac;oes sem forc;ar as consciencias, pois ela naoimpoe nada que nao seja sensato, inclusive 0 reconheci­mento do carater sagrado do contrato. Nao e intolerante.As formas do culto nao concemem as consciencias, saoda alc;ada do govemo, "estatutarias", did Kant, e entramno sistema das leis. A liberdade das consciencias so teriasentido se coexistissem tradicionalmente varias religioes.Mas a vontade geral nao pode ir mais longe que a reli­giao natural.

Talvez Rousseau tivesse nostalgia do tempo em quecada Cidade possuia seus deuses, mas e preciso que secoloque a questao do cristianismo, ao qual 0 vigario davasua adesao. Enquanto exprime a religiao natural, nada adizer, com a condi~ao de que nao se tome "fanatico",intolerante. Mas ele pretende ser uma religiao universal,que nao limita 0 proximo ao concidadao: nao poderia por­tanto aceitar 0 civismo como principio ultimo. Sob certosaspectos, 0 cristao nao pode ser totalmente cidadao. NaCidade fechada, vamos dizer, ele representa a moralaberta. Certamente Rousseau proclama a universalidade

XIX

_________ 0 Cantrata Sacial _

da consciencia moral e 0 vigario repelia expressamenteas anomalias morais que tais viajantes descrevem aqui ouali. E urn ponto em que 0 pensamento de Rousseau seembara~a por nao haver considerado, como Kant 0 cen­sura, urn estatuto do genero humano.

E urn aspecto importante de sua atitude. Se e urn1'"tant«Leticent6quanto a considerar a familia como 0 mo­

delo da sociedade politica, as duas institui~oes sao no en­tanto pensadas em conexao. 0 casamento e uma decisao,urn contrato social particular entre duas pessoas, e a fa­milia, assim que os filhos tern uso da razao, deixa de sernatural para se tomar contratual. Nesse sentido, poderia­mos ver a Cidade como uma grande familia, onde a edu­ca~ao e publica, logo coletiva. Como toda familia, naopoderia ser ilimitada sem dissipar a for~a de sentimentoque une seus membros.

Temos duas versoes de 0 contrato social. A primei­ra, que s6 foi publicada no final do seculo XIX, pareceter sido redigida por volta de 1758. Nao oferecern dife­ren~as doutrinais importantes. Rousseau modificou aordem das duas primeiras partes para toma-Ias mais coe­rentes. A primeira come~ava com a sociedade geral dogenero humano (cap. 11), que fazia a liga~ao entre 0Discurso e 0 contrato social. Esse capitulo suprimidocede lugar na versao definitiva a uma polemica contra asdoutrinas adversas. A questao da soberania e passadapara 0 segundo livro. Rousseau refaz 0 capitulo da reli­giiio civil que era demasiado polemico na primeira ver­sao. Termina 0 terceiro livro esbo~ado e, fiel a seus pri­meiros amores, introduz num quarto capitulos sobre a"policia" romana, para mostrar como funciona "urn Con­selho de duzentos mil homens".

xx

--------__ Pre/acia _

Q..livro-Z..-.2roibidoQ~_lran9-, .£<?E1<iel]-ado em Ge­nebra,clif1!llc!ill::~~Jentamem~. Foi jylgaq() dificil. A che­gada da Revolu~ao fez com que olessem: falaram muitodele, e as vezes nele se inspiraram, como, par exemplo,Robespierre e Saint-Just. Para homens as voltas com aa~ao politica urgente, ele estava urn pouco afastado dosfatos. E preciso sobretudo assinalar 0 cuho extraordina­rio prestado a Jean-Jacques ap6s sua morte. Transfor­maram 0 autor de 0 contrato social em mito e em sim­bolo estimulante da reconstru~ao politica. Sua estatuaem Paris, sua transferencia para 0 Pantheon, 0 decretode 7 de maio de 1794, instituindo os dogmas da religiaodo vigario saboiano, sao os apices disso. Ligada assim aRevolu~ao, sua obra participa dos julgamentos e dossentimentos contradit6rios suscitados por esse momentadecisivo de nossa hist6ria. Ate cerca de 1830, Rousseauperma.!l:~C:~__1!ty.a.!. Despert~""i-pafx6esH'at~--o il1iCIo'oenosso seculo. Entrementes, na Alemanha, KanhJ'i~l).l~l

tI.s~JJaziam.deJ.e...ullL~I~~§j£,:_Q_da filosofia..Podia ser qualificado como utopista, porque se man­

tern no nivel dos principios, no abstrato. Constr6i amaquina, diz ele, cabe aos outros faze-Ia funcionar. Es- \

I -\'tabeleceram:~e duas tradis:oes inversas: uns leem em 0

~toa_apo~~~~democracia 5!~~~!~!-da~~nc!:i~~~C£o~povo. Outros compreendem ali a antecipa~ao do guethama~0~J~i1l!~~_~?~}it~_rio~·ls21a.m:~~_i~,_~xa.k'!ri~~~-;;facilmente os textos. No entanto, essas duas series de~onse(rliencias que's~ extraem deles menosprezam, anosso ver, 0 fato de que para Rousseau a autoridade naoenem 0 povo, em sua realidade, nem 0 poder politico,mas a ezao esclarecida pela c2.-l)§<::iegcia.)50berano emdireito, 0 povo e digno dele se traz em si a vontade ge-

_________ 0 Contrato Social _

~t ral, nao suas paix6es ou seus preconceitos; mesmo sen-\'

~o possivel admitir que as paix6es e os preconceitos s~

anulam ~o~ sua o~osi~ao, ha maior probabilidade de querna malona expnma a vontade geral. Quanto ao gover­

no, e1e se exerce legitimamente somente nos limites deuma lei que ele nao faz, e 0 Legislador inspirado perma-nece sem poder. ~iml 0 her<?! messiani~2-~~.~2._!~~E?~?nheceu, com 0 aparelho de_>~~>~£-Q.li~iae a ~x:

plora~aQ_ de sua propaganda cientifi~a...J!~Q..t~m rda~ao

com a dou~n~_ humanista de QJ:Qturato Ele se chama~--'~'-"_.~----'.-~"""-' . -. . .' _. ~"~~

propriamente 0 tirano. Certamente Rousseau sabe que oshomens sao mal-educados, pouco esc1arecidos, com fre­qiiencia pervertidos a ponto de ignorar sua consciencia,batizada preconceito, -subordinando seu julgamento aspaixoes. Nunca tern em vista, a maneira de Maquiavel,que se possa explora-los. Mas, sobretudo, voltamos ao es­sencial, ao tema que da sua verdadeira, e sempre atual,significa~ao politica a Rousseau.

A politica implica antes de tudo a educa~aodo cida­dao. Apenas homens esc1arecidos nao se deixarao enga­nar por insidiosas propagandas, temo como (mica paixaoo amor pela patria, so e1es poderao estabelecer uma so­ciedade justa. Enquanto nao formos capazes desse esfor­~o, permaneceremos escravos. Como moralista e comofilosofo, Rousseau anuncia que os homens sao responsa­veis pela sociedade que fazem, qualquer que seja a escusasociologica que possam encontrar. 0 contrato social naotern interesse historico, e a condi~ao implicita de todo jul­gamento politico. A Cidade so existe tendo em vista 0bern do homem, isto e, sua realiza~ao como vontade es­c1arecida. Sendo as situa~6es demograficas, economicasou outras que sao, nao nos devemos entregar a urn des-

XXII

--------__ Prefacio _

tina que transformaria os homens em simples objetos,mas nos referirmos aos objetivos da Cidade, determina­dos pe10 contrato. Nao nos deixaremos mais seduzir nempe10s demagogos, os homens das paix6es, nem pelos tec­nocratas, os homens do destino. Platao ensinava que, noEstado bern instituido, os filosofos seriam reis e os reis fi­losofos, isto e, tambem educadores. De resto, basta lembraraos homens que amar a si mesmo, essa indica~ao da na­tureza, e desejar-se verdadeiramente livres, isto e, sabios.

Rousseau era suficientemente cetico acerca de seuscontemporaneos, ate mesmo de seus compatriotas, paranao e?Xergar a decadencia das institui~6es e dos costu­mes. E por isso que se persuadiu de que a zona de a~ao

do homem de boa vontade agora nao podia estender-semuito alem da familia e que seu tratado de educa~ao selimitou a esse dominio: talvez os pais ainda possam edu­car seus filhos de acordo com a natureza, 0 que significasensatamente. Mas inscreveu 0 contrato social no Emile.Seu aluno nao ignora os reveses e os dissabores, a ambi­~ao do mestre e que 0 verdadeiro homem terminara seimpondo sobre aqueles que nao passam de escravos.Multipliquemos os Emiles e talvez chegue 0 dia em quea aventura da cidade antiga podera recome~ar sob umaforma nova.

Pierre Burgelin

XXIII

Cronologia

Rousseau e seu_tempo

LA Preparafilo (1712-1742)

1712. 28 de junho. Nasce em GenebraJean-Jacques Rous­seau, segundo filho de Isaac Rousseau e de Su­zanne Bernard. Esta morre em 7 de juIho.Berkeley: Dialogos entre Hylas e Philonous.

1712-1722. Rousseau vive com seu pai, e sob sua influen-cia Ie fomanc~, sobretud(t~.h:lt<;lrf0'/

1713. Nasclmentocle Dlderot. ..1714. Leibniz: Monadologie.1715. Morte de Luis XIV.1721. Funda~ao da primeira Ioja ma~omca na Fran~a.

Montesquieu: Lettres persanes.1722-1724. Isaac Rousseau muda-se para Nyon em 1722.

Jean-Jacques e seu primo Abraham Bernard saomandados para Bossey, onde sao pensionistas dopastor Lambercier.

1722. J-S. Bach: Cravo bem temperado.1724. Nascimento de Kant.1725. Aprendizado com 0 gravador Ducommun.1727. Morte de Newton.1728. 14 de mar~o. Rousseau abandona Genebra e tor-

xxv

________ a Contrato Social _

na-se cat6lico. No dia 21 encontra a Sra. de Warensem Annecy. Em 21 de abril abjura em Turim. Tra­balha como lacaio e secretario.

1729-1'731. Ap6s urn ana de servi~o na casa de particula­res na Imlia, Rousseau vai viver em casa da Sra. deWarens em Annecy, mais tarde em Chambery.Aprendera diversos oficios, especialmente musica.Viagens a Sui~a (1730-1731), a Paris (junho-agostode 1731).Outubro de 1731-junho de 1732. Rousseau trabalhano cadastro de Sav6ia.

1734. Montesquieu: Considerations., Voltaire: Lettres anglaises.

1735 ~u 1736. Primeira estada em Charmettes (Chambery),-u\.'. casa de campo da Sra. de Warens, onde come~a a

escrever.1738-1739. Em Charmettes, Rousseau prossegue sua edu­

ca~ao cientffica, literaria, filos6fica e compoe seumagasin d'idees.

1739 Hume: Traite de la nature bumaine.Frederic II: Anti-Macbiavel.

1740-1741. Estada em Lyon como preceptor dos filhos deMably, fun~ao em que nao se sai bern. Escreve 0

ProjetPour !'education de M. de Sainte-Marie. En­tra em contato com 0 fil6sofo Bordes e com 0 ci­rurgiao Parisot.

II. Os Anos Parlsienses (1742-1756)

1742. Depois de sua chegada a Paris, Rousseau apresen­ta a Academia de Ciencias seu Projet concernantde nouveaux signes pour la musique.

XXVI

_________ Cronologia _

1743-1744. Rela~6es com as Dupin e com as Francueil. Co­me~a a escrever uma 6pera: Les muses galantes.Rousseau passa uma temporada em Veneza comosecremrio do embaixador da Fran~a. Descobre a im­portancia da politica.

1745. Amizade com Diderot. Primeira apresenta~ao de Lesmuses galantes. Inicio de sua liga~ao com ThereseLevasseur. Deixara seus filhos no Enfants-Trouves(asilo de crian~as abandonadas).

1746. Secremrio da Sra. Dupin, Rousseau trabalha com elaem urn livro sobre as mulheres. Publica~ao do Essaisur l'origine des connaissances bumaines, de Con­

~ dillac.ll~Montesquieu publica 0 espirito das leis.

1749. Rousseau escreve os artigos sobre musica da Ency­clopedie. Em outubro, na estrada de Vincennes,indo visitar Diderot, que esta preso, Ie no Mercurede France 0 tema do concurso da Academia deDijon: Se 0 restabelecimento das ciencias e das ar­tes contribuiu para purificar os costumes; tern umainspira~ao repentina. Buffon come~a a publicarsua Hist6ria natural.

.~ Nascimento de Goethe.r '<1750,)9 de julho. 0 Discours de Rousseau sobre as cien-

,-- cias e as artes e laureado. Esse ataque contra a ci­viliza~ao parisiense tera grande repercussao e seraobjeto de polemicas de 1750 a 1752.

1751. Voltaire: Le siecle de Louis XlV.Inicio da publica~ao da Encyclopedie.

1752, outubro. Le devin village, letra e musica de Rous­seau, e representada em presen~a de Luis XV. 0autor se retira sem querer ser apresentado. Em de-

XXVII

--- 0 Contrato Social _

zembro, no Theatre-Fran~ais,representa~aode suape~a Narcisse ou I 'amant de lui-meme, para a qualescreve urn importante prefacio.

1753, novembro. Retiro em Saint-Germain para meditarsobre 0 tema proposto pela Academia de Dijon:Qual e a origem cia desigualdade entre os homens ese e autorizada pela lei natural. Seu discurso sobreesse tema sera 0 ponto de partida de sua obra politi­ca. Logo depois de sua Lettre sur la musiquefran~ai-

..--->-:.~, recusam-lhe 0 ingresso a6pera (dezembro).~~75~viagem a Genebra. Rousseau e reintegrado na Igre­

-- . ja Calvinista, recebe a comunhao e recupera seus-, direitos de cidadao.

\

1755./Publica~ao do segundo Discours com uma dedi-cat6ria aRepublica de Genebra, urn prefacio e notas.o tomo V da Encyclopedie contem 0 artigo Eco­nomie politique.Morte de Montesquieu.

IlL A Solidiio de Montmorency (1756-1762)

1756, 9 de abril. Rousseau instala-se em Ermitage, casade campo da Sra. D'Epinay. Come~a a meditar so­bre os amores de Saint-Preux e Julie.18 de agosto. Carta a Voltaire sobre 0 tremor de ter­ra em Lisboa e a Providencia.

1756. Nascimento de Mozart.Voltaire: Essay Sur les moeurs.Marques de Mirabeau: l'ami des hommes.

1757. Idilio com a Sra. de Houdetot. Briga com Grimm,Sra. D'Epinay e Diderot. Em dezembro instala-se noMontlouis em Montmorency.

XXVIII

_________ Cronologia _

1758. Rousseau responde ao artigo de Alembert sobreGenebra, publicado no tomo VII da Encyclopedie:a Lettre aM. d'Alembert sur les spectacles. PorqueRousseau nao quer 0 teatro que Voltaire e seusamigos queriam ver estabelecido em Genebra. Rous­seau termina a reda~ao de La nouvelle Heloise ecome~a a preparar Emile. Abandona a ideia deescrever suas Institutions politiques. Trabalha so­bre os manuscritos do abade de Saint-Pierre 0658­1743).Quesnay: Tableau economique.

1759. Voltaire publica Candide, que Rousseau nao Ie. Ami­zade com 0 marechal e Sra. de Luxembourg.Condena~ao da Encyclopedie.

1760. Franklin: inven~ao do para-raio.1761, janeiro. Publica~ao e sucesso de La nouvelle He­

... _ loise.-" , 1762)janeiro. Rousseau escreve as quatro cartas autobio­

,; C7graficas a Malesherbes. 0 contrato social e' publi­cado em abril e Emile em maio.

IV; Os Anos Errantes (1762-1770)

1762, 9 de junho. Condena~ao de Emilee processos con­tra 0 autor, que foge e se refugia em Yverdon 04de junho), depois em M6tiers 00 de julho), noprincipado de Neuchatel, que pertence ao rei Fre­derico da prussia. Em 19 de junho Emile e 0 con­trato social sao queimados em Genebra. Em 28 deagosto pastoral contra Emile de Christophe de Beau­mont, arcebispo de Paris. Rousseau responde para

XXIX

________ 0 Contrato Social _

se defender; e a Lettres a Christophe de Beaumont,que sera publicada em mar~o do ano seguinte.

1763. Rousseau renuncia a burguesia de Genebra. Seucompatriota Tronchin publica as Lettres ecrites dela campagne.

1764. Rousseau responde a Tronchin atraves das Lettresecrites de la montagne, onde ataca 0 processo utili­zado contra ele e examina as institui~6es religiosas ecivis de Genebra. Sao publicadas no fim de outubro.Empenha-se em redigir urn projeto de constitui~ao

para a C6rsega. Trabalha em suas Confessions./----:\Voltaire: Dictionnairephilosophique.

.. 1765JRousseau, que pratica sua religiao, desentende-se---' com 0 pastor e com os habitantes de M6tiers. Es­

tadas na ilha de Saint-Pierre. Em outubro e expulsopelo Pequeno Conselho de Berna. E festejado em

.__ Estrasburgo (novembro) e em Paris (dezembro).

~~:::~u~I;~;Te:'@H=~~ volta a...:::-.: Fran~a e se instala no fim de junho em Trye, em

Beauvaisis, em casa do principe de Conti. Seu Dic­tionnaire de musique e posto avenda em Paris nofinal de novembro.James Watt constr6i a maquina a vapor.

1768./1Deixa Trye em meados de junho, passa por Lyon,- Grenoble, Chambery e se instala em Bourgoin no

Dauphine em agosto. No dia 30 casa-se com The­rese.

:xxx

_________ Cronologia _

v; Paris. Ulttmos Anos (1770-1778)

.1770. Em abril, Rousseau deixa Monquin, onde tinha seestabelecido no fim de janeiro de 1769. Em junhoinstala-se em Paris, na rua Platriere. Come~a afazer leituras privadas das Confessions.Nascimento deQI~~

1771.Come~o de ~reIa~Oescom Bernardin de Saint­Pierre. Leituras publicas das Confessions. Concluisuas Considerations sur Ie gouvernement de Polog­ne, escritas a pedido de Wielhorsky.

1772. Nascimento de Ricardo, de Fourier, de Novalis ede Coleridge.Fim da publica~aoda Encyclopedie.

1773. Rousseau escreve seus Dialoguescome~dosno anoanterior: Rousseau juge de jean-jacques, para defen­der sua obra e sua pessoa perante a posteridade.

1774. Morte de Luis XV.1775. Representa~ao de Pigmalit10na Comedie Fran~aise.1776, 24 de fevereiro. Rousseau nao consegue depositar

seu manuscrito dos Dialogues no altar-mor deNotre-Dame. Em abril distribui na rua sua circularA toutfranr;ais aimant encore la justice et la ven­te. Composi~ao dos dois primeiros Passeios deReveries du promeneur solitaire.Declara~ao de independencia das col6nias ingle­sas na America. Thomas Paine: The Common Sen­se. Adam Smith: A riqueza das nar;6es.

1777. Composi~ao dos cinco Passeios seguintes.'(f778) Composi~ao dos uI~imos Passeios..Rou~seau dirige­

se no dia 20 de malO a Ermenonvl1le, a casa do Sr.De Girardin. Therese vai ter com ele no dia 26.

XXXI

________ 0 Contrato Social _

.Rousseau morre no dia 2 de julho e e enterrado nodia 4 na ilha dos Peupliers, que logo se tomara urnlocal de peregrinac;ao.Morte de Voltaire 00 de maio).Goethe: Iphigenie (primeira versao).

VI. A GlOria Postuma

1782. Publicac;ao das obras de Rousseau em Genebrapelos cuidados de urn comite. Entre os ineditos: ostextos sobre 0 abade de Saint-Pierre (apenas os ex­traits sur la paix perpetuelle haviam sido publica­dos em 1761), a primeira parte das Confessions, osDialogues e as Reveries.

1788. Mme. de Stael publica suas Lettres sur Ie caractereet les ecrits dej.-J. Rousseau.

.1789-1791. Assembleia Constituinte.1790, julho. 0 busto de Rousseau e carregado triunfal­

mente em Paris.1791, junho. A rna Platriere ganha 0 nome de].-]. Rous­

seau.21 de dezembro. A Assembleia Constituinte apro­va a realizac;ao de uma estatua de Rousseau e aconcessao de uma pensao para sua viuva.

1792. 0 Conselho Geral de Genebra anula 0 decreto lan­c;ado contra Rousseau.Queda da monarquia.

1794, 7 de maio. Por decreto da Convenc;ao, 0 povo fran­ces reconhece a existencia de Deus, as sanc;oes davida futura e a imortalidade da alma.

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-------__ Cronologia _

26 de setembro. Therese Levasseur oferece aCon­venc;ao urn manuscrito das Confessions.9-11 de outubro. Transferencia dos restos de Rous­seau para 0 Pantheon. A cerimonia e seguida defestas solenes em Lyon e em diversas cidades.

1795. Kant publica seu livro: Para a pazperpetua.1801. Dia 12 de julho Therese Levasseur morre em Ples­

sis-Belleville, perto de Ermenonville.

XXXIII

Nota Desta Edifilo

A presente tradw;ao foi feita a partir do texto da edi­s;ao original de 1762. As notas indicadas por asteriscos eapresentadas no pe da pagina sao de J.-J. Rousseau.

As notas indicadas por numeros e apresentadas nofinal do livro sao de J. M. Fateaud e M. C. Bartholy, pre­paradas para a edis;ao da obra publicada na serie Universdes Lettres Bordas, Ed. Bordas, Paris; se1ecionadas, tra­duzidas e adaptadas por Maria Ermantina Galvao G. Pe­reira.

o Editor

o CONTRATO SOCIALou

Prindpios do Direito Politicopor j. -]. Rousseau, cidadiio de Genebra

- foederis aequasDicamus leges.

Eneida, XI

Advertencia

Este pequeno tratado fOi extraido de uma obra maisextensa, empreendida outrora sem nenbuma consultaas minbasforr;as e de ba muito abandonada. Dos diver­sos trecbos que se poderiam tirar do que estava pronto,este e 0 mais consideravel e pareceu-me 0 menos indig­no de ser oferecido aopublico. 0 resto ja nao existe mais.

3

Livro I

Quera indagar se pode existir, na ordem civil, algu­rna regra de administra~aolegitima e segura, consideran­do os homens tais como sao e as leis tais como podemser. Procurarei sempre, nesta investiga~ao, aliar 0 que 0

direito permite ao que 0 interesse prescreve, a fun deque a justi~a e a utilidade nao se encontrem divididas.

Entro na materia sem pravar a impomncia de meussunto. Perguntar-me-ao se sou principe ou legisladorara escrever sabre polltica. Respondo que nao, e que

por isso mesmo escrevo sobre polltica. Fosse eu principeIOU legislador, nao perderia meu tempo dizendo 0 qu'deve ser feito: ou 0 faria, ou me calaria.

Nascido cidadao de urn Estado livre e membra doSoberano1

, por fragil que seja a influencia de minha opi­niao nos neg6cios publicos, 0 direito de votar basta paraimpor-me 0 dever de instruir-me a esse respeito. Todasas veZes que medito sobre os governos, sinto-me felizpor encontrar sempre, em minhas reflex6es, novos moti­vos para amar 0 do meu pais!

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CAPITULO I

Objeto Deste Prlmeiro Livro

o homem naseeu livre e por toda parte ~ls: est;) agri­Ihoa~Q: Aquele que se ere senhor dos outros nao deixade-ser mais eseravo que eles. Como se deu essa mudan­s;:a? Ignoro-o. 0 que pode legitima-Ia? Creio poder resolveresta questao.

Se eu eonsiderasse apenas a fors;:a e 0 efeito que deladeriva, diria: enquanto urn povo e obrigado a obedeeere 0 faz, age bern; assim que pode saeudir esse juga e 0

faz, age melhor ainda; porque, reeobrando a liberdadepelo mesmo direito que lha tinha arrebatado, ou ele ternrazao em retoma-Ia ou nao tinham em lha tirar. Mas a~ds::m social eurn c;!ireito sagrado, que serve de base para-todos os demais. Tal direito, entretant()L~!-qjlQY~nula._llil-

tureza; funda-se.1 pois, s:m eonven\;Q~~.: Trata-se de saberquais sao essas eonvens;:oes. Antes de ehegar a esseponto, devo estabeleeer 0 que aeabo de adiantar.

9

renata
Highlight

_________ 0 Contrato Social _

CAPiTULO II

Das Prlmeiras Sociedatles

A mais antiga de todas as sociedades, ,e «u~atu­e1-t.a da familia, Ainda assim, os mhos s6 permanecemligados ao pai enquanto necessitam dele para a pr6priaconserva~ao. Assim que essa necessidade cessa, dissolve­se 0 vinculo natural. Isentos os mhos da obediencia quedeviam ao pai,isento 0 pai dos cuidados que devia aos fi­lhos, voltam todos a ser igualmente independentes. Secontinuam unidos, ja nao e de maneira natural, mas volun­!:iria, e a pr6pria fw!lja s6 se rnan~m por c9.m:S~g().

Essa liberdade comum decorre da natureza do ho­memo Sua P.!'.!,meira lei consist~em ze~~U?ela.m:(>mtL92U:-­serv~a.9, seus primeiros cuidados sao aqueles que deveconsagrar a si mesmo, e, tjQ lQgo alcarn;a a jdade ..ctua:­yo. sendo 0 (mico juiz dos meios ade QU!l9QS a§.llil con:-.§erva~o.. toma:s~p.QLissQ_se..u pr6prio senbor. ,

I J.y familia, pois~~2...ndmejw rnodel~.sgci~dadesr!.1?Qlill~as, 0 chefe e a imagem do pai, 0 povo a dos mhos, e;todos, tendo nascido iguais e !iYr..e.§......SQ aIi~&ffi sua liberda-:-j[q~_ ~m.P£<:>.v:~Fopr6'prj9: .A. diferenca toda es!:i em ep le,[email protected].~J:I'lQ! do pai pe!os filbos.WIIl-Pe~Q~_.0:lidado~(que lhes dedk~enquanto no Estado .9 praz~!'_cle. <:()man~n.

~u'p.!e esse am9.!'JLu.~Q..chef.en.3.oJ:e.m-PQI...seY§P9Y()s. i_. Grotfiisr'nega que todo poder humano seja estabele-cido em favor daqueles que sao govemados; como exem­plo, cita a escravidao. Sua maneira mais comum de ra­ciocinar consiste sempre em estabelecer 0 direito peiofato·. Poder-se-ia empregar urn metodo mais conseqiien­te, porem nao mais favoravel aos tiranos.

• "As eruditas investigacOes sobre 0 direito publico nada mais sao, fre­qiientemente, que a hist6ria dos antigos abusos, e muita discussao inutil tern

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_ LivroI _

E pais duvidoso, segundo Grotius, se a genera hu­mana pertence a uma centena de homens ou se essa cen­tena de homens pertence ao genero humano; e, ao lon­go de todo 0 seu livro, parece inclinar-se pela primeirahip6tese; esta e, tambem, a opiniao de Hobbes4• Eis, por­tanto, a especie humana dividida em rebanhos, cada qualcom seu chefe, que 0 guarda para devora-lo.

Assim como urn pastor e de natureza superior a deseu rebanho, tambem os pastores de homens, que sao osseus chefes, possuem natureza superior a de seus povos.Desse modo raciocinava, segundo Fl1onS, 0 imperador Ca­ligula, concluindo comodamente, dessa analogia, que osreis eram deuses, ou os povos eram animais.

o raciodnio desse Caligula remete ao de Hobbes e:o de Grotius. Tambem Arist6teles, antes de todos eles,

,dissera que as homens Qao sao naturalmente iguais, mas"-------- ,). nascem uns para a escravidao e outros para 0 dominio.1Tinha razao Arist6teles, porem tomava 0 efeito pela

causa6• Todo homem nascido na escravidao nasce para a

escravidao: nada mais certo. Os escravos tudo perdem sobseus grilhoes, ate 0 desejo de libertar-se deles; amam a ser­vidao como os companheiros de Ulisses amavam 0 pr6­prio embrutecimento·. Se ha, pois, escravos par nature­~,_ ~.P~~ql)_~_hQ.\Jve escrayos contra a natureza. ~ for~a

fez os primeiros escravos, sua covardia o~~etuou._........--.,----~-- ..... ,--~._ ...,_.,."---_."-- .~ --"sido travada quando alguem se da ao trabalho de estuda-Ias em demasia."Traite des interets de fa Fr. avec ses voisins; par M. L. M. d'A. [Na edicao de1782, a referenda e dada da seguinte maneira: Traire des interets de fa Fr. avecses voisins, par M. Ie Marquis d'Argenson' (impresso por Rey, em Amster­dam)".J Foi exatamente 0 que fez Grotius.

• Ver urn pequeno tratado de Plutarco intitulado: De como os animaisusam a raziio.

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renata
Highlight

_____-'- 0 Contrato Social _

Nada disse do rei Adao, nem do imperador Noe, paide tres grandes monarcas que dividiram entre si 0 univer­so, como 0 fizeram os filhos de Saturno, nos quais mui­tos acreditaram reconhecer aqueles7

• Espero que apre­ciem a minha modera~ao, pois, descendendo diretamen­te de urn desses principes, e talvez do ramo mais antigo,quem sabe se, pela verifica~ao dos titulos, eu nao chega­ria a conclusao de ser 0 legitime rei do genero humano?Seja como for, nao se pode discordar de que Adao tenhasido soberano do mundo como Robinson foi de sua ilha,enquanto permaneceu como 0 seu linico habitante; e 0que havia de comodo nesse imperio era que 0 monarca,garantido em seu trono, nao tinha a temer nem rebeli6es,nem guerras, nem conspiradores.

CAPITULO III

Do Direito do Mais Forte'

Q_.1ID!iUorte nllnca e bastante..fgnel?ll.@~~r semp.~e I.

o se~£Ea~.2!!!!.<!~,§~.aJ2r~a e.ll1<:l!reito~aob~- )diencia .em~_Dai 0 direito do mais forte, direito to-I~~ -~ ~.~..•~,- - )

mado aparentemente com ironia e na realidade estabele- !cido como principio. Mas sera que urn dja oas._eJ5:plica-ir;!g essa palavra? A for£a e urn pader fiS!CO.,i.n.a.a)lej.Ohq1J~\~<:>~aajIe1?.i~sultarde seus ~feitq§. Ceder aJor~a e~

P.La.!2_<:l£ l}~~ssida~e, .~?a~_d~ vontad<ie,.s.~ando mu~- ;'£t~l!!._a.~~.d~_.p~d~ncia: ..~_J.!l:.g~~ senti~o"'p_02:~,ra constj-IYU'".um clever? ,

Suponhamos por urn momenta e~~ retenso direi­, to. Digo que dele s6 resulta urn galimatia inexplicavel.~.seja..aio~a que..gera.o.di1:e ita, Q.,efeito mu-

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_ LivroI _

da_com a cau~t,oda for~a gue sobrepuja a primeira ha4e sucede-Ia-Eess~JQ. Tao logo se possa desobede­~!!!!E~nementeL1Qrna-se.Jegitimofaze-la, e, como 0mais.fot:te..s~u:u?r~J~m ra.Z~o, ba,sta.'!ID!Qe modo a se.r..s;-mt:\is.JQJ.te. Ora, 0 que e urn direito que perece quandocessa a for~a? Se e preciso obedecer pela for~a, nao hanecessidade de obedecer por dever, e, se ja nao se e for­~ado a obedecer, tambem nao ja se e obrigado a faze-Io.ve-se, pois, que a palavra direito nada acrescenta a for­~a; nao significa, aqui, absolutamente nada.

Obedecei aos poderosos. Se isso quer dizer: "cedei afor~a", opreceito e born, mas superfluo; afirmo que ja­mais sera violado. Todo poder vern de DeusS, reconhe­~o-o, mas tambem todas as doen~as. Significa isso que naose deva chamar 0 medico? Quando urn bandido me ata­ca num canto do bosque, nao s6 precise for~osamente

entregar-Ihe minha bolsa, mas tambem, caso pudesse sal­va-la, estaria obrigado, em sa consciencia, a entrega-Ia?MinaI, a pistola que ele empunha e tambem urn poder.

Convenhamos, pois, que a for~a nao faz 0 direito, eque s6 se e obrigado a obedecer aos poderes legitimos.Assim, minha pergunta inicial permanece de pe.

CAPITULO IV

Da Escravidilo

Ja que ne!?-.h~mhomem tern autoridade natural sobre~.~~!!1elhan..!e, e uma vez que a19~a naa produz dirci­!2.algum,~m entao as convenc6es como base de todaautoridade legitima entre os homens.

Se urn~~~lar'9i~~ti~Qde aUe.naL.SJla liber­dade e conY~!1:~1"...~e ~m.£§.c:rnYo cle..l,lms.eoo()r, porque

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_________ 0 Contrato Social _

t090~lIlJ~g~() n..~<u2Qderia alienar a sua.~JQrnar:s..~ sudi~

J:o de Urn reil Ha aqui muitas palavras equivocas que exi­gem explica~ao, mas atenhamo-nQs ao...It:;~qIl~~alieY!a!:>

Alienar e dar ou vender. Ora, urn homem .,gues~ faz ~s..:­

cravo de outro nao se d( vende-se, pelo menos em tro--"-', .__.- - ..~-~a~~~_.§~bsis!~!1cia; mas ul!1 P0.Y52,J2QLm!e se vend~?Longe de prover asubsistencia de seus suditos,~Q.r~~!las tim a sua.rleles, e, segund~ u}]l..IeLpao vivef9!Il QOuco. Os suditos, por conseguinte, dao suas pr6­prias pessoas sob a condi~ao de que se tomem tambemos seus bens? Nao vejo 0 que lhes resta para conservar.

1pir-s~-:aq~_~g despota asg~.gura.aQS suditos a tra,n1

qiiilida.de civi!: Seja. Mas que ganham eles com isso, se a~

,guerras que sua ambi~ao lhes acarreta, se sua insaciave~

\avidez, se os vexames de seu ministerio os desolam9mai~

ique as pr6prias dissens6es? Que ganham eles, se essa,'mesma tranqiiilidade e uma de suas miserias? Vive-seitranqiiilo tambem nas masmorras, e isto bastara para qu·nos sintamos bern nelas? Os gregos encerrados no antr;~o Ciclope vivia~ tranqiiilos ali, esperando a vez def;erem devorado~ 9"

Dizer que urn homem se da~t:~m~I}!e~ di~er.ugla

. c()ls~-ilQ§.\.l!da ~ .in<;'Q..ll£.ebive!; este ato e ilegitimo e nulo,pelo simples fato de que quem 0 pratica nao esta em seujuizo perfeito. Dizer 0 mesmo de todo urn povo e suporurn povo de loucos: a loucura nao estabelece 0 clireit()..

Mesmo que cada urn pudesse a~nar-se a si mesmo,nao poderia alienar os filhos; estes nascem homens e li­vres; sua liberdade lhes pertence e ninguem, senao eles,tern 0 direito de dispor dela. Antes de chegarem a idadeda razao, 0 pai, em nome deles, pode estipular as condi­~6es para a sua conserva~aoe bem-estar; mas nao os dar

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_ Livrol _

irrevogavel e incondicionalmente, pois tal doa~ao e con­traria aos fins da natureza e ultrapassa os direitos da pa­ternidade. Seria necessario, portanto, para que urn go­verno arbitrario fosse legitimo, que em cada gera~ao 0povo fosse senhor de admiti-Io ou rejeita-Io: mas enta~

esse governo ja nao seriaarbitrario.Renunciar a liberdade e renunciar a gyalidade de. i

homemJ. aQs_<:l~~eito~_<:l'!. h':!..manidade! e 1l!~ .ao_~ 2r6.p~i()_~ (~everes. Nao ha nenhuma repara~ao possivel para quemrenuncia a tudo. Tal renuncia e incompativel com a natu­reza do homem, e subtrair toda liberdade a sua vontadee subtrair toda moralidade a suas a~6es. Enftrn, e inutil e~0_ntradit6ria a conven~ao que estipula, de urn lado, umaat!!o.rtc4lcle absQhJta._~ c!e_9ull.:9-,-l!.J!1a_()!?ediencia_sem li!ni-.~e~. ~~o esta claro que nao se tern ob~~o~p~

com aquele de quemse tern 0 direito de_!l!<:l()exigir~ E estasimples condi~~O:-sem-eciui;al~ncG.~ .sem compensa~ao,

nao acarreta a nulidade do ato? ~()is qlle51.k~!QJ~cta meuescravo contra mim, seJyQ.Qg_queel~~§st!i.me.perten~e.,se,-~~o. seu-clirelto ~. weu, esse direito meu contra mimine$mQ·~\.l~~pi:tlavra-·d~;nf.QYi~de mg!~~r sentido~

Grotius e outros encontram na guerra outra origemdo pretenso direito de escravidao. Tendo 0 vencedor,segundo eles, 0 direito de matar 0 vencido, este poderesgatar sua vida :lc$-'fQ~!ls~1J de sua liberdade, conven- I

~ao tanto mais legitima quanto proveitosa a ambas aspartes.

Mas e evidente que esse pretenso direito de matar osvencidos nao resulta, de modo algum, do estado de guer­ra. Isto apenas porque os homens, vivendo em sua pri­mitiva independencia, nao tern entre si uma rela~ao(&~.~.~constante para constituir nem 0 estado de paz nem 0

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__________ 0 Contrato Social _

estado de guerra; nao sao naturalmente Immigos. E arela~ao das coisas, e nao dos homens, que produz a guer­ra, e, como 0 estado de guerra nao pode nascer das sim­ples rela~6es pessoais, mas sorriente das rela~6es reais, aguerra particular, ou de homem para homem, nao podeexistir nem no estado natural, em que nao ha proprieda­de constante, nem no estado social, em que tudo se achasob a autoridade das leisS!J

Os combates particulares, os duelos, os recontros saoatos que nao constituem urn estado; e, quanto as guerrasprivadas, autorizadas pelas ordena~6es de Luis IX, rei deFran~a, e suspensas pela paz de Deus, sao abusos do.89vem..<Li~udg1si~~!ll~L~bsurdo.£Q!llo_j,!m~iLbmt.Y5:

9Utro,Contr~riO'!Q~P£~12iosds>_dire~(~U!:l!lJt:aLe!!JQd.Ll b~a~2C ~:"'(\~;)j:';"" ,Q,ii ",; c)

A guerra na~ e, pois, ~ma rehl~ao de homem parahomem, mas uma rela~ao de Estado para Estado, na qualos particulares s6 sao inimigos acidentalmente, nao co­mo homens, nem mesmo como cidadaos*, mas comosoldados; nao como membros da patria, mas como seus

• Os romanos, que, mais que qualquer outra na~iio do mundo, [melbor]compreenderam e respeitaram 0 direito da guerra, levavam tiio longe os escrn­pulos com rela~iio a isso que niio sepermitia a um cidadiio servir como volun"tario sem se ter alistado expressamente contra 0 inimigo eprincipalmente con­tra determinado inimigo. Tendo sido riformada uma legiiio em que Catiio, 0

jovem, iniciava-se na guerra sob 0 comando de Popilio, Catiio, 0 Velbo, escre­veu a Popilio que, se desejasse que seu filbo continuasse a servir sob seucomando, era misterfaze-lo prestar um novo juramento militar, ja que, estan­do 0 primeiro anulado, ele niio podia mais voltar as armas contra 0 inimigo.E 0 mesmo Catiio escreveu a seu filbo aconselbando-o a abster-se de se apre­sentar em combate enquanto niio tivesse prestado 0 novo juramento. Bem seiquepoderiio objetar-me com 0 sitio de Clusium e outrosfatos particulares, maseu cito leis e costumes. Os romanos siio os que com menosfreqiiencia transgre­diram suas leis e foram os unicos ate-las tiio betas. [Nota acrescentada a edi­~ao de 1782.]

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-------- LivroI _

defensores. Enfim, cada Estado s6 pode ter por inimigosoutros Estados, e nao homens, porquanto nao se podeestabelecer nenhuma verdadeira rela~ao entre coisas dediversa natureza.

Esse principio se conforma inclusive as maximas es­tabelecidas em todos os tempos e a pratica constante detodos os povos civilizados. As declara~6es de guerra saoadvertencias dirigidas menos as potencias que aos seussuditos. 0 estrangeiro, seja rei, particular ou povo, querouba, mata ou detem os suditos sem declarar guerra aoprincipe, nao e urn inimigo, e urn bandido. Mesmo em ple­na guerra, urn principe justo se apodera de tudo 0 quepertence ao publico em pais inimigo, mas respeita a pes­soa e os bens dos particulares; respeita os direitos nosquais assentam os seus. Sendo 0 objetivo da guerra a de~,

~:~~<:>_~~_ES~:~~_i~~ig~l~m-§e 0 dlLe.!!9_<l~_m.~ta..~.r_~.. ~,us;! e ensores enquanto estlverem de armas na ma0.i..ma~,[rIO momeiito·eiiiq\.l(ra~~~p~~m eS_~!~!l:~~~ ·~~~.sando.~~fSer inimigos. ou .ins~~C::~!Q~.<:lo inimigo) tOfll:l!D:~C:_~~!::Ifvez- sinipIesmeiiie"-homens e. ja @,<) se temdireilQ_§.9l?~.~.... .. "_..__.,.

'su~_y-i~~~~.matlr~ E~ta~ se.,m 1Ila~!.u~Is6 de.~s membroS; ora, a guerra nao cia nenhum direito'~nao seja necessario ao seu objetivo. Esses principiosnao sao os mesmos de Grotius; nao se fundam na autori­dade de poetas, mas derivam da natureza das coisas ebaseiam-se na razao.

Sobre 0 direito de conquista, nao tern ele outro fun­damento senao a lei do mais forte. §e a guerra nao eta aovencedor 0 direito de niasS'l£mrQ~px9~.y.~!!<:i<:iQ~•.e~~

..£ireito,.slld~~le l!aQj~~9 P2-<:i~.§~ryi!:..c:l~bas.e_.a,o_dir~i->v to_Qe.e_S~(ilYiza::19~. S6 se tern 0 direito de matar 0 inimi­

go quando nao se pode escraviza-Io; 0 direito de escra-

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_________ 0 Contrato Social _

viza-Io nao decorre, pois, do direito de mara-Io: portan­to, e uma troca iniqua faze-Io comprar, ao pre~o de sualiberdade, sua vida, sabre a qual nao se tern direito algum.Quando se funda a direito de vida e de morte no direitode escravidao, e a direito de escravidao no direito de vidae de marte, nao esra claro que se cai num drculo vicioso?

Mesmo admitindo-se como possivel esse terriveldireito de tudo matar, digo que urn escravo feito na guer­ra au urn povo conquistado nao tern nenhuma obriga~ao

para com seu senhor, salvo obedece-Io enquanto a issoe for~ado. Ao~ urn eqyivalente a sua vida, o..§enhornao the concedeu graca algl1wa' em 'rez .cL~,mata-:l~proveito, mat~ll_-o utilmeqJe. Longe, pais, de ter adquiri-

aosobre'ele qualquer autoridade alem da for~a, a esta­do de guerra subsiste entre eles como antes, sua pr6priarela~ao e urn efeito desse estado, e a usa do direito daguerra nao supoe nenhum tratado de paz. Fizeram umaconven~ao; seja: mas essa conven~ao, lange de destruira estado de guerra, supoe sua continuidade." Assim, seja qual for a lado par que se consideremlas coisas, a direito de escravizar e nulo, nao somente!porque ilegitimo, mas porque absurdo e sem significa1~ao .....A..sp!!I~!y!,!§" escravidiio e direjto sao cOntradit6~ias;\

excluem-se mutuamente. Seja de homem para homem,'seja de urn homem para urn povo, este discurso hi de~sempre igualmente insensato13

: .f-ar;9-.(?2!J1./gfJ,JJma._fP ­Eet!fiio em que fica lJgJ.Q. a feu encargo e t.udQ_W meu ..p~C!.~iiio:~qi!:~·obserJ!J1:r:gi et1(juanfo me aprouuer, e qUeJJJ, \

obseroaras enquan~o~Qt1'l~.(1,g!fl:g.p'.

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_ LivroI _

CAPITULO V C')\1

De Como Sempre ePreciso Remontar a umaPrlmeira Convetlfilo

Mesmo que eu concordasse com tudo a que refuteiate aqui, as fautores do despotismo nao estariam em me­lhor situa~ao. Sempre havera grande diferen~a entre sub­meter uma multidao e reger uma sociedade. Que homensisolados sejam subjugados sucessivamente a urn s6, qual­quer que seja a seu mlmero, nao vejo nisso senao urnsenhor e escravos, e de modo algum hei de considera-Iosurn povo e seu chefe. E, talvez, uma agrega~ao, mas naouma associa~ao; nao ha nela nem bern publico nemcorpo politico. Ainda que esse homem houvesse sUbjuga­do metade do mundo, sempre seria urn particular; seuinteresse, separado do interesse dos outros, sera sempreurn interesse privado. Se esse mesmo homem vern a

. perecer, seu imperio, depois dele, fica disperso e semliga~ao, como urn carvalho, depois de consumido pelofogo, se desfaz e se converte num monte de cinzas.

Urn povo, diz Grotius, pode entregar-se a urn rei.Segundo Grotius, portanto, urn povo e urn povo antes deentregar-se a urn rei. Mesmo esse dam e urn ato civil,supoe uma delibera~ao publica. Portanto, antes de exa­minar a ato pelo qual urn povo elege urn rei, seria bornexaminar a ato pelo qual urn povo e urn povo. Porqueesse ato, sendo necessariamente anterior ao outro, cons­titui 0 verdadeiro fundamento da sociedade.

Com efeito, se nao houvesse conven~ao anterior, amenos que a elei~ao fosse unanime, onde estaria a obri­ga~ao de as menos numerosos se submeterem aescolhados mais numerosos, e de onde vern a direito de cern

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_________ 0 Contrato Social _

individuos, que querem urn senhor, votar por dez quenao 0 querem? A lei da pluralidade dos sufragios e por siso urn estabelecimento14 de conven~aoe supoe, pe10 me­nos lima vez, a unanimidade.

CAPITULO VI

Do Pacto Social

Suponho que os homens tenham chegado aqueleponto em que os obstaculos prejudiciais a sua conserva­~ao no estado de natureza sobrepujam, por sua resisten­cia, as for~as que cada individuo pode empregar para semanter nesse estado. Entao, esse estado primitivo ja naopode subsistir, eo genero humano pereceria se nao mu­dasse seu modo de ser.

Ora, como os homens nao podem engendrar novasfor~as, mas apenas unir e dirigir as existentes, nao ternmeio de conservar-se senao formando, por agrega~ao,

urn conjunto de for~as que possa sobrepujar a resisten­cia, aplicando-as a urn so movel e fazendo-as agir emcomum acordo15.

Essa soma de for~as so pode nascer do concurso demuitos; mas, sendo a for~a e a liberdade de cada homemos primeiros instrumentos de sua conserva~ao, como asempregara sem prejudicar e sem negligenciar os cuida­dos que deve a si mesmo? Essa dificuldade, reconduzin­do ao meu assunto, pode enunciar-se nestes termos:

"Encontrar uma forma de associa~ao que defenda eproteja com toda a for~a comum a pessoa e os bens decada associado, e pela qual cada urn, unindo-se a todos,so obede~a, contudo, a si mesmo e permane~a tao livre

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_ Hvrol _

quanto antes."16 Este e 0 problema fundamental cuja so­lu~ao e fornecida pelo contrato social.

As chiusulas desse contrato sao de tal modo determi­nadas pela natureza do ato que a menor modifica~ao astornaria inuteis e sem efeito, de sorte que, embora talvezjamais tenham sido formalmente enunciadas, sao em todaparte as mesmas17

, em toda parte tacitamente admitidas ereconhecidas; ate que, violado 0 pacto social, cada qualretorna aos seus primeiros direitos e retoma a liberdadenatural, perdendo a liberdade convencional pela qualrenunciara aque1a. .

Bern compreendidas, essas diusulas se reduzem todasa uma so, a saber, a aliena~ao total de cada associado, comtodos os seus direitos, a toda a comunidade. Pois, em pri­meiro lugar, cada qual dando-se par inteiro, a condi~ao eigual para todos, e, sendo a condi~ao igual para todos, ninJ

guem tern interesse em torna-la onerosa para os demais.Alem disso, como a aliena~ao se faz sem reservas, a

uniao e tao perfeita quanto possive1, e nenhum associa­do tern algo a reclamar, pois, se restassem alguns direitosaos particulares, comonao haveria nenhum superior co­mum capaz de decidir entre e1es e 0 publico, cada qualsendo em algum ponto seu proprio juiz, logo pretenderiase-Io em todos; 0 estado de natureza subsistiria e a asso­cia~ao se tornaria necessariamente tiranica ou va.

Enfim, cada urn, dando-se a todos, nao se da a nin­guem, e, como nao existe urn associado sobre 0 qualnao se adquira 0 mesmo direito que se the ceqe sobre simesmo, ganha-se 0 equivalente de tudo 0 que se perdee mais for~a para conservar 0 que se tern.

Se, pois, retirarmos do pacto social 0 que nao e desua essencia, veremos que ele se reduz aos seguintes ter-

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__________ 0 Contrato Social _

mos: Cada um de nos pOe em comum sua Pessoa e todo 0

seu poder sob a suprema dire~iio da vontade geral; e re­cebemos, coletivamente, cada membro como parte indi­visivel do todo.

Imediatamente, em vez da pessoa particular de cadacontratante, esse ato de associa~aoproduz urn corpo mo­ral e coletivo composto de tantos membros quantos saoos votos da assembleia, 0 qual recebe, por esse mesmoato, sua unidade, seu eu comum1S, sua vida e sua vonta­de. Essa pessoa publica, assim formada pela uniao de to­das as demais, tomava outrora 0 nome de Cidade*, e hojeo de Republica ou de corpo politico, 0 qual e chamadopor seus membros de Estado quando passivo, soberanoquando ativo e Potencia quando comparado aos seussemelhantes. Quanto aos associados, eles recebem cole­tivamente 0 nome de povo e se chamam, em particular,cidadiios, enquanto participantes da autoridade sobera-

• 0 verdadeiro sentido dessa palavra perde-se quase por completo entreos modernos; a maioria considera urn burgo [ville] como uma Cidade19 [cite],e urn burgues como urn cidadao. Nao sabem que as casas formam 0 burgo,mas que sao os cidadiios que formam a Cidade. Esse mesmo erro custou caro,outrora, aos cartagineses. Nao me consta que 0 titulo cives tenha sido dadoalguma vez aos suditos de algum principe, nem mesmo antigamente aosmaced6nios, nem, em nossos dias, aos ingleses, embora estes se encontremmais perto da liberdade que todos os demais. S6 os franceses tomam familiar­mente esse nome de cidadiios, porque nao tern uma n~ao verdadeira dotermo, como se pode ver em seus dicionarios, sem 0 que incorreriam, porusurpa-lo, no crime de lesa-majestade. Para eles, essa palavra exprime umavirtude e nao urn direito. Quando Bodin quis falar de nossos cidadiios e bur­gueses, cometeu grave equivoco, tomando uns pelos outros. 0 Sr. d'Alembertnao se enganou neste particular e, em seu artigo intitulado "Genebra", distin­guiu muito bern as quatro ordens de homens (ou mesmo cinco, se nelas seincluirem os simples estrangeiros) que existem na nossa cidade e das quaissomente duas comp6em a Republica. Que eu saiba, nenhum outro autor fran­ces compreendeu 0 verdadeiro sentido da palavra cidadiio.

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___________ LivroI _

na, e suditos, enquanto submetidos as leis do Estado. Es­ses termos, porem, confundem-se amiude e sao tornadosurn pelo outro; basta saber distingui-Ios quando empre­gados em toda a sua precisao.

CAPITULO VII

DoSoberano

Ve-se, por essa f6rmula, que 0 ato de associa~aoen­cerra urn compromisso redproco do publico com os par­ticulares, que cada individuo, contratando, por assimdizer, consigo mesm020, acha-se comprometido numadupla rela~ao, a saber: como membro do soberano emface dos particulares e como membro do Estado em facedo soberano. Mas nao se pode aplicar aqui a maxima doDireito Civil, segundo a qual ninguem esta obrigado aoscompromissos assumidos consigo mesm021; pois ha umagrande diferen~a entre obrigar-se perante si mesmo eperante urn todo do qual se faz parte.

Cabe notar ainda que a delibera~ao publica, que podeobrigar todos os suditos em face do soberano, em virtudedas duas rela~5es diferentes sob as quais cada urn deles eencarado, nao pode, pela razao contciria, obrigar 0 sobera­no em face de si mesmo e que, por conseguinte, e contra anatureza do corpo politico impor-se 0 soberano uma leique nao possa infringir. Nao podendo considerar-se senaosob uma unica e mesrna rela~ao, encontra-se enta~ nocaso de urn particular contratando consigo mesmo, poronde se ve que nao ha, nem pode haver, nenhurna espe­cie de lei fundamental obrigat6ria para 0 corpo do povo,nem mesmo 0 contrato social. Isto nao significa que esse

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---- 0 Contrato Social _

corpo nao possa comprometer-se com outrem no quenao derrogue esse contrato; pois, em rela~ao ao estran­geiro, ele se torna urn ser simples, urn individuo.

Mas 0 corpo politico ou 0 soberano, tirando seu serunicamente da santidade do cohtrato, jamais pode obri­gar-se, mesmo em rela~ao a outrem, a nada que derrogueesse ato primitivo, como alienar uma parte de si mesmoou submeter-se a outro soberano. Violar 0 ato pelo qualele existe seria aniquilar-se, e 0 que nada e nada produz.

Tao logo essa multidao se encontre assim reunidanum corpo, nao se pode ofender urn dos membros sematacar 0 corpo, nem, muito menos, ofender 0 corpo semque os membros disso se ressintam. Assim, 0 dever e 0

interesse obrigam igualmente as duas partes contratantesa se ajudarem mutuamente, e os mesmos homens devembuscar reunir, sob essa dupla rela~ao, todas as vantagensque dela emanam.

Ora, 0 soberano, sendo formado apenas pelos parti­culares que 0 comp5em, nao tern nem pode ter interessecontrario ao deles; consequentemente, 0 poder soberanonao tern nenhuma necessidade de garantia em face dossuditos, porque e impossivel que 0 corpo queira prejudi­car todos os seus membros e veremos a seguir que naopode prejudicar ninguem22 em particular. 0 soberano, s6pelo fato de se-Io, e sempre tudo aquilo que deve ser.

o mesmo, porem, nao ocorre com os suditos emrela~ao ao soberano, por cujos compromissos, apesar dointeresse comum, ninguem responderia se nao encon­trasse meios de assegurar-se de sua fidelidade.

Com efeito, cada individuo pode, como homem, teruma vontade particular oposta ou diversa da vontadegeral que tern como cidadao. Seu interesse particular po-

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___________ Liuro 1 _

de ser muito diferente do interesse comum; sua existen­cia absoluta e naturalmente independente pode leva-Io aconsiderar 0 que deve a causa comum como uma contri­bui~ao gratuita, cuja perda sera menos prejudicial aos de­mais do que sera 0 pagamento oneroso para ele; e, con­siderando a pessoa moral que constitui 0 Estado comourn ente de razao, pois que nao e urn homem, gozarados direitos do cidadao sem querer cumprir os deveres dosudito - injusti~a cujo progresso redundaria na ruina docorpo politico.

A fim de que 0 pacto social nao venha a constituir,pois, urn formulario vao, compreende ele tacitamente essecompromisso, 0 unico que pode dar for~a aos outros:aquele que se recusar a obedecer a vontade geral a issosera constrangido por todo 0 corpo - 0 que significaapenas que sera for~ado a ser livre23, pois e esta a condi­~ao que, entregando a patria cada cidadao, 0 garantecontra toda dependencia pessoal, condi~ao que configu­ra 0 artificio e 0 jogo da maquina politica, a unica a legi­timar os compromissos civis, que sem isso seriam absur­dos, tiranicos e sujeitos aos majores abusos.

CAPITULO VIII

Do Estado Civil 24

A passagem do estado de natureza ao estado civilproduz no homem uma mudan~a consideravel, substi­tuindo em sua conduta 0 instinto pela justi~a e conferin­do as suas a~5es a moralidade que antes lhes faltava. S6entao, assumindo a voz do dever 0 lugar do impulso fi­sico, e 0 direito 0 do apetite, 0 homem, que ate entao

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nao levara em conta senao a si mesmo, se viu obrigado aagir com base em outros principios e a consultar sua razaoantes de ouvir seus pendores., Conquanto nesse estado seprive de muitas vantagens concedidas pela natureza,ganha outras de igual importancia: suas faculdades seexercem e se desenvolvem, suas ideias se alargam, seussentimentos se enobrecem, tada a sua alma se eleva a talponto que, se os abusos dessa nova condi~ao nao 0 degra­dassem amiude a uma condi~ao inferior aquela de quesaiu, deveria bendizer sem cessar 0 ditoso instante quedela 0 arrancou para sempre, transformando-o de urn ani­mal esrupido e limitado num ser inteligente, num homem.

Reduzamos todo esse balan~025 a termos de f:kilcompara~ao. 0 que 0 homem perde pelo contrato sociale a liberdade natural e urn direito ilimitado a tudo quan­to deseja e pode alcan~ar; 0 que com ele ganha e a liber­dade civil e a propriedade de tudo 0 que possui. Paraque nao haja engano a respeito dessas compensa~6es,

importa distinguir entre a liberdade natural, que tern porlimites apenas as for~as do individuo, e a liberdade civil,que e limitada pela vontade geral, e ainda entre a posse,que nao passa do efeito da for~a ou do direito do primei­ro ocupante, e a propriedade, que s6 pode fundar-senum titulo positivo.

Sobre 0 que precede, poder-se-ia acrescentar aaqui­si~ao do estado civil a liberdade moral, a unica que tomao homem verdadeiramente senhor de si, porquanto 0impulso do mero apetite e escravidao, e a obediencia alei que se prescreveu a si mesmo e liberdade. Mas ja faleimuito sobre essa materia, eo sentido filos6fico da pala­vra liberdade nao e aqui do ambito do meu assunto.

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_ LivroI _

CAPiTULO IX

Do Dom{nio Real26

Cada membro da comunidade entrega-se a ela nomomenta de sua forma~ao, tal como se encontra naque­Ie instante - ele e todas as suas for~as, das quais fazemparte os bens que possui. Nao que, por esse ato, a possemude de natureza ao mudar de maos e se tome proprie­dade nas do soberano, mas sim que, sendo as forc;as daCidade incomparavelmente maiores que as de urn parti­cular, a posse publica e tambem, na verdade, mais forte emais irrevogavel, sem ser mais legitima, pelo menos paraos estrangeiros. Porque 0 Estado, perante seus membros,e senhor de todos os seus bens pelo contrato social, queno Estado serve de base a todos os direitos; mas nao 0 eperante as outras potencias senao pelo direito de primei­ro ocupante que recebeu dos particulares.

o direito de primeiro ocupante, embora mais real queo do mais forte, s6 se toma urn verdadeiro direito ap6s 0estabelecimento do direito de propriedade. Todo homemtern naturalmente direito a tudo 0 que the e necessario;mas 0 ato positivo, que 0 toma proprietario de qualquerbern, 0 exclui de tudo 0 mais. Tomada a sua parte, develimitar-se a ela, e ja nao goza de nenhum direito a comu­nidade. Eis por que 0 direito de primeiro ocupante, taofragil no estado de natureza, e respeitavel para todos oshomens civis. Respeita-se menos, nesse direito, aquiloque pertence a outrem do que aquilo que nao se possui.

Em geral, para autorizar 0 direito do primeiro ocupan~

te sobre urn terreno qualquer,. sao necessarias as seguin­tes condi~6es: primeiro, que esse terreno nao esteja aindahabitado por ninguem; segundo, que dele s6 se ocupe a

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_________ 0 Contrato Social _

por~ao de que se tern necessidade para subsistir; terceiro,que dele se tome posse, nao por uma cerimania va, maspelo trabalho e 0 cultivo, unicos sinais de propriedadeque, na ausencia de titulos juridicos, devem ser respeita­dos pelos outros27

Com efeito, atribuir anecessidade e ao trabalho 0 di­reito de primeiro ocupante nao sera leva-Io tao longequanto possivel? Poder-se-a nao estabelecer limites paraesse direito? Bastara par os pes num terreno comum paralogo pretender ser 0 seu dono? Bastara a for~a, capaz deafastar dele por urn momenta os outros homens, paratirar-Ihes 0 direito de ali voltar? Como pode urn homemou urn povo apossar-se de urn territ6rio imenso e privardele todo 0 genero humano, a nao ser por uma usurpa­~ao punivel, pois que tira ao resto dos homens 0 abrigoe os alimentos que a natureza lhes deu em comum? Quan­do Nunez Balboa28 tomou posse, no litoral, do mar doSuI e de toda a America meridional em nome da coroade Castela, sera que isso 0 autorizava a despojar todos oshabitantes e excluir dali todos os principes do mundo?Em tais bases, tais cerimanias se multiplicavam inutil­mente, e ao Rei Cat6lico bastaria, de seu gabinete, tomarposse de uma s6 vez de todo 0 universo, mesmo quetivesse de excluir em seguida de seu imperio 0 que antespertencia a outros principes.

Concebe-se como as terras dos particulares, reuni­das e contiguas, se tornam territ6rio publico, e como 0

direito de soberania, estendendo-se dos suditos ao terre­no por eles ocupado, se torna ao mesmo tempo real epessoal, 0 que coloca os possuidores numa dependenciaainda maior e faz de suas pr6prias for~as a garantia desua fidelidade. Essa vantagem nao parece ter sido bern

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_ LivroI _

compreendida pelos antigos monarcas que, intitulando­se simplesmente rei dos persas, dos citas, dos maced6­nios, pareciam considerar-se mais como chefes dos ho­mens que como senhores do pais. Os monarcas de hoje,mais habeis, chamam-se a si mesmos reis da Fran~a, daEspanha, da Inglaterra, etc. Dominando assim 0 territ6rio,sentem-se mais seguros de dominar os habitantes.

o que ha de singular nessa aliena~ao e que, aceitan­do os bens dos particulares, a comunidade, longe de des­poja-Ios, s6 faz assegurar-Ihes a posse legitima, transfor­mando a usurpa~ao num verdadeiro direito e a frui~ao empropriedade29 • Passando os possuidores, enta~, a seremconsiderados como depositarios do bern publico, com seusdireitos respeitados por todos os membros do Estado esustentados por todas as suas for~as contra 0 estrangeiro,em virtude de uma cessao vantajosa ao publico e maisainda a si mesmos, adquirem, por assim dizer, tudo quan­to deram. Esse paradoxo se explica facilmente pela distin­~ao entre os direitos que 0 soberano e 0 proprietario ternsobre os mesmos bens, como se vera adiante.

Pode suceder tambem que os homens comecem aunir-se antes de possuir qualquer coisa e que, apossando­se em seguida de urn terreno suficiente para todos, 0 des­frutem em comum ou 0 partilhem entre si, seja em partesiguais, seja em propor~5es estabelecidas pelo soberano.De qualquer forma que se fa~a essa aquisi~ao, 0 direito decada particular sobre seus pr6prios bens esta sempresubordinado ao direito da comunidade sobre todos, semo que nao teria solidez 0 vinculo social, nem for~a real 0

exerdcio da soberania.Encerrarei este capitulo e este livro por uma obser­

va~ao que deve servir de base a todo 0 sistema social:

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__________ a Contrato Soctal _

em vez de destruir a igualdade natural, a pacta funda­mental substitui, ao contrario, por uma igualdade morale legitima aquila que a natureza poderia trazer de desi­gualdade fisica entre os hamens, e, podendo ser desiguaisem for~a ou em talento, tadas se tornam iguais par con­ven~ao e de direito·.

• Sob os maus governos, essa iqualdade e apenas aparente e ilus6ria:serve somente para manter 0 pobre em sua miseria e 0 rico em sua usurpa­~ao. Na realidade, as leis sao sempre (iteis aos que possuem e prejudiciais aosque nada tern. Donde se segue que 0 estado social s6 e vantajoso aos homensna medida em que tOOos eles tern alguma coisa e nenhum tern demais.

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Livro II

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Sticky Note

CAPITULO I

A Soberania e lnaltendvel

A primeira e mais importante consequencia dos prin­dpios acima estabelecidos e que s6 a vontade geral podedirigir as for~as do Estado em conformidade com 0 obje­tivo de sua institui~ao, que e 0 bern comum: pois, se aoposi~ao dos interesses particulares tornou necessario 0

estabelecimento das sociedades, foi 0 acordo desses mes­mos interesses que 0 tornou possivel. 0 vinculo social eformado pelo que ha de comum nesses diferentes inte­resses, e, se nao houvesse urn ponto em que todos osinteresses concordam, nenhuma sociedade poderia exis­tiro Ora, e unicamente com base nesse interesse comumque a sociedade deve ser governada.

Digo, pois, que a soberania, sendo apenas 0 exerd­cio da vontade geral, nunca pode alienar-se, e que 0

soberano, nao passando de urn ser coletivo, s6 pode serrepresentado por si mesmo; pode transmitir-se 0 poder ­nao, porem, a vontade.

Com efeito, se nao e impossivel que uma vontade par­ticular concorde num determinado ponto com a vontade

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geral, e pela menos irnpossivel que esse acordo sejaduradouro e constante, porque a vontade particular, porsua pr6pria natureza, tende as predile~oes, enquanto avontade geral propende para a igualdade. Mais impossi­vel ainda e ter uma garantia desse acordo; ainda que hou­vera sempre de existir, naa seria urn efeito da arte, senaodo acaso. 0 soberano pode muito bern dizer: "Quero,neste momento, 0 que quer tal homem, ou, pelo menos,a que ele afirma querer". Nao pode, porem, afirmar: "0que esse homem quiser amanha, tambem eu hei de que­rer" - porque e absurdo submeter-se a vantade a grilhoesfuturos e porque nao depende de nenhuma vontade con­sentir em algo contrario ao bern do ser que quer. Se, pois,o povo promete simplesmente obedecer, por esse mes­mo ato ele se dissolve e perde sua qualidade de povo; nomomenta em que ha urn senhor, ja nao ha soberano e,desde entiio, destr6i-se 0 corpo politico.

Isto nao significa que as ordens dos chefes nao pos­sam passar por vontades gerais, enquanto 0 soberano,livre para a isso se opor, nao 0 faz. Em tal caso, pelosilencio universal deve-se presumir 0 consentimento dopovo. Isso sera mais amplamente explicado.

CAPITULO II

A Soberania e Indivisivel

Pela mesma razao por que e inalienavel, a soberaniae indivisivel, visto que a vontade ou e geral* ou nao 0 e;

• Para que uma vontade seja geral, nem sempre e necessaria que sejaunanime, mas sim que todos as votos sejam contados. Qualquer exclusao for­mal rompe a generalidade.

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__________ Livro 11 _

au e a do corpo do povo, ou unicamente de uma parte. Noprimeiro caso, essa vontade declarada e urn ato de sobe­rania e faz lei; no segundo, nao passa de uma vontadeparticular ou de urn ato de magistratura; e, quando mui­to, urn decreto.

Mas, nao podendo dividir a soberania em seu princi­pio, nossos politicos a dividem em seu objeto; eles a divi­dem em for~a e vontade, em poder legislativo e poderexecutivo, em direitos de impostos, de justi~a e de guerra,em administra~aointerior e em poder de negociar com 0

estrangeiro; ora confundem todas essas partes, ora asseparam. Fazem do soberano urn ser fantastico, formadode diversas pe~as entremeadas, tal como se formassem 0

homem de varios corpos, urn dos quais tivesse olhos,outro bra~os, outro pes, e nada mais. Os pelotiqueiros do]apao, segundo se conta, despeda~am uma crian~ aosolhos dos espeetadores e depois, jogando para 0 ar todosos seus membros, urn ap6s outro, fazem voltar ao chao acrian~a viva e totalmente recomposta. Tais sao, aproxima­damente, os passes de magica dos nossos politicos: de­pois de desmembrar 0 corpo social por uma ilusao dignadas feiras, tornam a reunir as pe~as sabe-se la como.

Decorre esse erro do fato de nao disporem de no­~oes exatas a respeito da autoridade soberana e de teremtornado como partes dessa autoridade 0 que nao passa­va de emana~oesdela. Assim, por exemplo, consideram­se 0 ato de declarar a guerra e 0 de fazer a paz comoatos de soberania, quando nao 0 sao, visto nao ser cadaurn desses atos uma lei, mas apenas uma aplica~ao dalei, urn ato particular que determina 0 caso da lei, comose vera claramente quando definirmos a ideia ligada apalavra lei.

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_________ 0 Contrato Social _

Examinando-se de igual modo as demais divisoes,ver-se-a que se incorre em erro todas as vezes que seacredita estar a soberania dividida, porquanto os direitostornados como partes dessa soberania the estao todossubordinados e supoem sempre vontades supremas, asquais tais direitos se limitam a dar execu~ao.

Impossive1 dizer 0 quanto de obscuridade essa faltade exatidao lan~ou sobre as conclusoes dos autores emmateria de direito politico, quando quiseram julgar os res­pectivos direitos dos reis e dos povos com base nos prin­dpios que haviam estabelecido. Pode-se ver, nos capitu­los III e IV do primeiro livro de Grotius, como esse sabioe seu tradutor, BarbeyracJ, se confundem, embara~ando­se em seus sofismas, temerosos de dizer demais sobre 0

assunto ou de nao dizer 0 bastante segundo seus pontosde vista, pondo em choque os interesses que deviamconciliar. Grotius, refugiado na Fran~a, descontente comsua patria e desejoso de agradar a Luis XIII, a quem seulivro e dedicado, nada poupa para despojar os povos detodos os seus direitos e para com e1es revestir os reiscom toda a arte possivel. Tal foi, tambem, 0 estilo deBarbeyrac, que dedicou sua tradu~ao ao rei da Ingla­terra, Jorge I. Infelizmente, porem, a expulsao de JaimeII, que ele denomina abdica~ao, for~ou-o a manter-seem reserva, a esquivar-se, a tergiversar, para nao fazer deGuilherme urn usurpadof. Houvessem esses dois escri­tores adotado os verdadeiros prindpios, todas as dificul­dades desapareceriam e teriam sido sempre conseqiien­tes; mas, nesse caso, diriam tristemente a verdade e naocortejariam senao 0 povo. Ora, a verdade nao conduz afortuna, e 0 povo nao concede nem embaixadas, nemdtedras, nem pensoes.

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CAPITULO III

Se a Vontade Geral Pode Errar

Decorre do exposto que a vontade geral e invariavel­mente reta e tende sempre a utilidade publica; mas dai naose segue que as delibera~oes do povo tenham sempre amesma retidiio. Deseja-se sempre 0 pr6prio bern, mas naoe sempre que se pode encontci-lo. Nunca se corrompe 0

povo, mas com freqiiencia 0 enganam, e s6 entiio eleparece desejar 0 mal.

Via de regra, ha muita diferen~a entre a vontade detodos e a vontade geral; esta se refere somente ao interes­se comum, enquanto a outra diz respeito ao interesse pri­vado, nada mais sendo que uma soma das vontades parti­culares. Quando, porem, se retiram dessas mesmas vonta­des os mais e os menos que se destroem mutuamente*,resta, como soma das diferen~as, a vontade geral.

Se, quando 0 povo suficientemente informado delibe­ra, os cidadaos nao tivessem nenhuma comunica~aoentresi, do grande numero de pequenas diferen~as haveria deresultar sempre a vontade geral, e a delibera~ao seria sem­pre boa. Mas, quando se estabelecem faq;:oes, associa~oesparciais a expensas da grande, a vontade de cada umadessas associa~oes se faz geral em re1a~ao aos seus mem­bros, e particular em re1a~ao ao Estado; pode-se, entiio,dizer que ja nao ha tantos votantes quantos sao os ho-

• "Cada interesse", diz 0 marques d'Argenson, "tern prindpios diferentes.o acordo de dois interesses particulares se forma por oposi~ao ao de urn ter­ceiro." Poderia ter acrescentado que 0 acordo de todos os interesses se formapor oposi~ao ao de cada urn. Se nao houvesse interesses diferentes, mal seperceberia 0 interesse cornurn, que nunca haveria de encontrar obstftculo:tudo caminharia por si rnesrno, e a politica deixaria de ser urna arte.

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mens, mas apenas tantos quantas sao as associa~oes3. Asdiferen~as tornam-se menos numerosas e ciao urn resulta­do menos gera!. E, por fun, quando uma dessas associa­~oes e tao grande que sobrepuja todas as demais, ja naose tern por resultado uma soma de pequenas diferen~as,

senao uma diferen~a (mica; entao, ja nao ha vontadegeral, e a opiniao vencedora nao passa de uma opiniaoparticular.

Importa, pois, para se chegar ao verdadeiro enuncia­do da vontade geral, que nao haja sociedade parcial noEstado e que cada cidadao s6 venha a opinar de acordocom seu pr6prio ponto de vista*. Tal foi a (mica e subli­me institui~ao do grande Licurg04. Em havendo socieda­des parciais, impoe-se multiplicar-lhes 0 mlmero a fim deimpedir a desigualdade entre elas, como fizeram S6lonS,Numa6 e Servio'. Essas precau~oes sao as (micas adequa­das para que a vontade geral seja sempre esclarecida e 0

povo nao se engane.

CAPITULO IV

Dos Limites do Poder Soberano

Se 0 Estado ou a Cidade nao constituem senao umapessoa moral, cuja vida consiste na uniao de seus mem­bros, e se 0 mais importante de seus cuidados e 0 de sua

• "Vera cosa e", diz Maquiavel, "cbe a/cune divisioni nuocono aile Re­publicbe, e a/cune giovano: quelle nuocono cbe sono da/Ie sette e da partigia­ni accompagnate: que/Ie giovano cbe senza sette, senza partigiani si manten­gono. Non potendo adunqueprovedere unfondatore d'una Republica cbenomsiano nimicizie in que/la, bii da proveder a/meno cbe non vi siano sette" Usto­rie Fiorentine, 1. VII).

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pr6pria conserva~ao, torna-se-lhe necessaria uma for~a

universal e compulsiva8 para mover e dispor cada parteda maneira mais conveniente ao todo. Assim como anatureza da a cada homem urn poder absoluto sobretodos os seus membros, 0 pacto social da ao corpo poli­tico urn poder absoluto sobre todos os seus, e e essemesmo poder que, dirigido pela vontade geral, recebe,como ficou dito, 0 nome de soberania.

Mas, alem da pessoa publica, temos de considerar aspessoas privadas que a compoem e cuja vida e liberdadesao naturalmente independentes dela. Trata-se, pois, dedistinguir entre os respectivos direitos dos cidadaos e dosoberano*, e os deveres que os primeiros devem cumprirna qualidade de suditos, e 0 direito natural de que devemgozar na qualidade de homens.

No tocante a tudo quanto cada urn aliena, pelo pactosocial, de seu poder, de seus bens e de sua liberdade,convem-se que representa somente a parte de tudo aqui­10 cujo uso interessa acomunidade, mas e preciso convirtambem que s6 0 soberano pode julgar desse interesse.

Todos os servi~os que urn cidadao pode prestar aoEstado passam a ser urn dever tao logo 0 soberano ossolicite; mas 0 soberano, de sua parte, nao pode oneraros suditos com nenhuma pena inutil a comunidade; naopode sequer deseja-lo, pois, sob a lei da razao, naomenos que sob a da natureza, nada se faz sem causa.

Os compromissos que nos ligam ao corpo social s6sao obrigat6rios por serem mutuos, e sua natureza e tal

• Leitores atentos, nao vos precipiteis, por favor, em acusar-me aqui decontradi~ao. Nao pude eviti-la nos termos, em virtude da pobreza da lingua,mas esperai.

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_________ a Contrato Social _

que, ao cumpri-Ios, nao se pode trabalhar para outremsem trabalhar tambem para si mesmo. Por que a vonta­de geral e sempre reta, e por que todos querem constan­temente a felicidade de cada urn, senao pelo fato de naohaver ninguem que nao se aproprie da expressao cadaurn e nao pense em si mesmo ao votar por todos? Eis aprova de que a igualdade de direito e a nos;ao de justis;aque ela produz derivam da preferencia que cada urn ternpor si mesmo e, por conseguinte, da natureza do homem,de que a vontade geral, para ser verdadeiramente geral,deve se-Io tanto em seu objeto quanto em sua essencia9;

de que deve partir de todos, para aplicar-se a todos; e deque perde sua retidao natural quando tende a algumobjeto individual e detenninado, porque entao, julgandoaquilo que nos e estranho, nao temos aguiar-nos ne­nhum verdadeiro principio de eqiiidade.

Com efeito, desde que se trata de urn fato ou de urndireito particular sobre urn ponto que nao foi regula­mentado por uma convens;ao geral e anterior, 0 caso tor­na-se contencioso. Eurn processo em que os particularesinteressados representam uma das partes e 0 publico aoutra, mas no qual nao vejo nem a lei que deve ser ob­servada, nem 0 juiz que deve pronunciar-se. Seria ridkulo,entao, querer recorrer a uma decisao expressa da vonta­de geral, que nao pode ser senao a conclusao de umadas partes e que, por consequencia, nao passa, para aoutra, de uma vontade estranha, particular, nessa ocasiaoinduzida a injustis;a e sujeita ao erro. Assim, do mesmomodo que uma vontade particular nao pode representara vontade geral, esta, por sua vez, muda de natureza aoter urn objeto particular e nao pode, como geral, pro­nunciar-se nem sobre urn homem nem sobre urn fato.

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Quando 0 povo de Atenas, por exemplo, nomeava oudestituia seus chefes, concedia honrarias a urn, impunhacastigos a outro e, por urn sem-numero de decretos par­ticulares, exercia indistintamente todos os atos do gover­no, 0 povo nao tinha mais vontade geral propriamentedita; ja nao agia como soberano, mas como magistrado.Isso parecera contrario as ideias comuns, mas deem-metempo para expor as minhas.

Deve-se compreender, nesse sentido, que 0 que ge­neraliza a vontade e menos 0 numero de votos que 0 inte­resse comum que os une, pois, nessa instituis;ao, cadaqual se submete necessariamente as condis;oes que impoeaos demais: admiravel acordo entre 0 interesse e a justi­s;a, que da as deliberas;oes comuns urn carater de equida­de que vemos desaparecer na discussao de qualquerneg6cio particular, pela falta de urn interesse comum queuna e identifique a regra do juiz com a da parte.

Qualquer que seja a via pela qual se remonte aoprincipio, chega-se sempre a mesma conc1usao, a saber:o pacto social estabelece tal igualdade entre os cidadaosque todos eles se comprometem sob as mesmas condi­s;oes e devem gozar dos mesmos direitos. Assim, pelanatureza do pacto, todo ato de soberania, isto e, todo atoautentico da vontade geral, obriga ou favorece igualmen­te todos os cidadaos, de sorte que 0 soberano conhecesomente 0 corpo da nas;ao e nao distingue nenhumdaqueles que a compoem. Que e, pois, propriamente,urn ato de soberania? Nao e uma convens;ao do superiorcom 0 inferior, mas uma convens;ao do corpo com cadaurn de seus membros: Convens;ao legitima porque terncomo base 0 contrato social, equitativa porque comum atodos, util porque nao pode ter outro objeto senao 0 bern

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geral, e s6lida porque tern por garantia a for~a publica eo poder supremo. Enquanto os suditos s6 estiverem sub­metidos a tais conven~5es, nao obedecem a ninguem,mas apenas a sua pr6pria vontade; e perguntar ate ondese estendem os respectivos direitos do soberano e doscidadaos e perguntar ate que ponto estes podem com­prameter-se consigo mesmos, cada urn com todos e todoscom cada urn.

Ve-se, assim, que 0 poder soberano, por mais absolu­to, sagrado e invio1<lvel que seja, nao ultrapassa nem podeultrapassar os limites das conven~oes gerais, e que qual­quer homem pode dispor plenamente do que the foi dei­xado, por essas conven~oes, de seus bens e de sua liber­dade; de modo que 0 soberano nunca tern 0 direito deonerar mais a urn sudito que a outro, porque enta~, tor­nando-se a questao particular, seu poder ja nao e compe­tente.

Vma vez admitidas essas distin~oes, e tao falso queno contrato social haja por parte dos particulares qual­quer verdadeira renuncia, que sua situa~ao, por efeitodesse contrato, vern a ser realmente preferlvel a que haviaantes dele, e, em vez de uma aliena~ao, nao fizeramsenao uma troca vantajosa de urn modo de ser incerto eprecario por urn outro melhor e mais segura, da indepen­dencia natural pela liberdade, do poder de prejudicar aoutrem pela pr6pria seguran~a, e de sua for~a, que outraspodiam superar, por urn direito que a uniao social tornainvendvel. A pr6pria vida, que devotaram ao Estado, epor este continuamente protegida e, quando a expoempara sua defesa, que fazem senao retribuir-Ihe 0 que delereceberam? Que fazem que nao fariam mais amiude ecom maior perigo no estado de natureza, quando, travan-

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do combates ineviraveis, defenderiam com 0 risco da pr6­pria vida aquilo que lhes serve para conserva-Ia? Todostern de combater pela patria quando necessario, e verda­de; mas tambem ninguem ted jamais que combater porsi mesmo. No que respeita a nossa seguran~a, nao ga­nhamos ainda em correr uma parte dos riscos que preci­sariamos correr por n6s mesmos tao logo ela nos fosseretirada?

CAPITIJLO vDo Dlreito de Vida e de Morte

Pergunta-se10 como os particulares, nao tendo 0 direi­to de dispor de sua pr6pria vida, podem transmitir aosoberano esse mesmo direito que nao tern. A questao s6parece dificil de resolver porque esra mal colocada. Qual­quer homem tern 0 direito de arriscar sua pr6pria vidapara conserva-Ia. Acaso ja se disse que aquele que se lan­~a por uma janela para escapar a urn incendio seja culpa­do de suiddio? Acaso ja se atribuiu tal crime aquele queperece numa tempestade cujo perigo nao ignorava ao em­barcar?

o tratado social tern por finalidade a conserva~ao

dos contratantes. Quem deseja os fins deseja tambem osmeios, e esses meios sao inseparaveis de certos riscos, eate de certas perdas. Quem deseja conservar sua vida aexpensas dos outros tambem deve da-Ia por eles quan­do necessario. Ora, 0 cidadao ja nao e juiz do perigo aoqual a lei quer que ele se exponha, e, quando 0 prlnci­pel1 the diz: "E util ao Estado que morras", deve morrer,pois foi somente gra~as a essa condi~ao que ate entao

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viveu em seguranc;a e que sua vida ja nao e apenas umadadiva da natureza, mas urn dom condicional do Estado.

A pena de morte infligida aos criminosos pode serencarada, de certo modo, sob 0 mesmo ponto de vista:e para nao ser a vitima de urn assassino que alguem con­sente em morrer, caso se torne assassino. Nesse tratado,longe de dispor de sua propria vida, so se pensa em ga­ranti-Ia, e nao e de presumir-se que, por isso, qualquer doscontratantes premedite fazer-se enforcar.

Ademais, qualquer malfeitor, atacando 0 direito so­cial, torna-se por seus crimes rebelde e traidor da patria,deixa de ser urn de seus membros ao violar suas leis e atelhe faz a guerra. Entao, a conservac;ao do Estado e incom­pativel com a sua, sendo necessario que urn deles pere­c;a, e, quando se faz morrer 0 culpado, e menos como ci­dadao que como inimigo. Os processos e 0 julgamentosao as provas e a dec1arac;ao de que ele rompeu 0 trata­do social e, por conseguinte, de que ja nao e membro doEstado. Ora, como ele se reconheceu tal, ao menos porsua residencia, deve ser afastado pelo exHio como infra­tor do pacto, ou pela morte como inimigo publico; poistal inimigo nao e uma pessoa moral, e urn homem, eentao 0 direito da guerra e 0 de matar 0 vencido.

Mas, objetara alguem, a condenac;ao de urn crimino­so e urn ato particular. De acordo; por isso essa conde­nac;ao nao pertence ao soberano - e urn direito que elepode conferir sem poder ele proprio exerce-Io. Todas asminhas ideias sao coesas, mas nao posso expo-las todasao mesmo tempo.

De resto, a freqiiencia dos suplicios e sempre urnsinal de fraqueza ou de preguic;a no governo. Nao hamalvado que nao se possa tornar born para algo. Nao se

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tern 0 direito de matar, mesmo para servir de exemplo,salvo aquele que nao se pode conservar sem perigo.

Quanto ao direito de perdao, ou de isentar urn culpa­do da pena imposta pela lei e pronunciada pelo juiz, estedireito nao pertence senao aquele que est<! acima do juize da lei, a saber, 0 soberano. Ainda assim, seu direito naoest<! bern definido, e os casos de aplica-Io sao muito raros.Num Estado bern governado poucas sao as punic;oes, naoporque se concedem muitos indultos, mas porque hapoucos criminosos: a abundancia de crimes assegura suaimpunidade quando 0 Estado decaL Sob a Republica ro­mana, nunca 0 Senado nem os consules tentaram conce­der indulto; nem sequer 0 povo 0 concedia, embora asvezes revogasse seu proprio juizo. Os indultos constantesanunciam que logo os delitos se tornarao impunes, etodos sabem aonde isso leva. Mas sinto que meu corac;aomurmura e detem minha pena. Deixemos a discussaodestas questoes para 0 homem justo que nunca incorreuem falta e que jamais necessitou de indulto.

CAPITULO VI

DaLei

Pelo pacta social demos existencia e vida ao corpopolitico. Trata-se agora de dar-Ihe 0 movimento e a von­tade pela legislac;ao. Pois 0 ato primitivo, pelo qual essecorpo se forma e se une, nada determina ainda daquiloque the cumpre fazer para conservar-se.

o que e born e conforme a ordem 0 e pela naturezadas coisas e independente das convenc;6es humanas. Todajustic;a provem de Deus, so ele e a sua fonte; mas, se

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soubessemos recebe-Ia de tao alto, nao necessitariamosnem de governo nem de leis. Ha, por certo, uma justi~a uni­versal que emana unicamente da razao, porem essa jus­ti~a, para ser admitida entre nos, precisa ser reciproca.Se consideramos humanamente as coisas, desprovidasde san~ao natural, as leis da justi~a sao vas entre os ho­mens. Produzem somente 0 bern do malvado e 0 mal dojusto, quando este as observa para com todos sem queninguem as observe para com ele. Por conseguinte, tor­nam-se necessarias conven~6es e leis para unir os direitosaos deveres e conduzir a justi~a ao seu fun. No estado denatureza, em que tudo e comum, naOO devo aqueles aquem naOO prometi, e nao reconhe~o como de outremsenao 0 que me e inutil. 0 mesmo nao se passa no estadocivil, no qual tados os direitos sao estabelecidos pela lei.

Mas que e, afinal, uma lei? Enquanto nos contentar­mos em ligar a essa palavra apenas ideias metafisicas,continuaremos a raciocinar sem chegarmos a urn acordo,e quando dissermos 0 que e uma lei da natureza naosaberemos melhor 0 que e uma lei do Estado12

Ja disse que nao existe vontade geral acerca de urnobjeto particular. Esse objeto particular, com efeito, ou estano Estado ou fora dele. Se esta fora do Estado, uma von­tade que the e estranha nao e geral em rela~ao a ele; seesta no Estado, faz parte dele. Forma-se, enta~, entre 0 todoe sua parte, uma rela~ao que os converte em dois seresseparados, urn dos quais e a parte e 0 outro 0 tado menosessa parte. Porem, 0 tado menos uma parte nao e 0 todo,e enquanto subsistir essa rela~ao nao existe 0 todo, senaoduas partes desiguais; donde se segue que a vontade deuma nao e geral em rela~ao a outra.

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Todavia, quando todo 0 povo estatui sobre todo 0

povo, nao considera senao a si mesmo, e nesse caso, seha uma rela~ao, e entre 0 objeto inteiro sob urn ponto devista e 0 objeto inteiro sob urn outro ponto de Vista, semnenhuma divisao do todo. Entao a materia sobre a qualse estatui e tao geral quanto a vontade que estatui. E aesse ate que chama uma lei.

Quando afirmo que 0 objeto OOs leis e sempre geral,entendo que a lei considera os suditos coletivamente eas a~6es como abstratas, nunca urn homem como indivi­duo nem uma a~ao particular. Assim, a lei pode perfeita­mente estatuir que havera privilegios, mas nao podeconcede-los nomeadamente a ninguem. Pode criar di­versas classes de ciOOdaos, e ate especificar as qualiOOdesque darao direito a essas classes, porem nao pode no­mear os que nela serao admitidos. Pode estabelecer urngoverno real e uma sucessao hereditaria, mas nao podeeleger urn rei nem nomear uma familia real; numa pala­vra, toda fun~ao que se refere a urn objeto individualnao esta no ambito do poder legislativo.

Partindo dessa ideia, ve-se com clareza que ja nao epreciso perguntar a quem compete fazer as leis, vistoserem atos da vontade geral, nem se 0 Principe esta aci­rna da lei, visto ser membro do Estado, nem se a lei podeser injusta, porquanto ninguem e injusto para consigomesmo, nem como se e livre e ao mesmo tempo submis­so as leis, ja que estas sao meras express6es de nossavontade.

Ve-se, ademais, que, reunindo a lei a universaliOOde00 vontade e a do objeto, 0 que urn homem, seja elequem for, ordena por si mesmo nao e uma lei. 0 que or­dena 0 soberano sobre urn objeto particular nao e, tam-

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pouco, uma lei, mas urn decreto, nem urn ate de sobera­nia, mas de magistratura.

Chamo, pois, Republica a todo Estado regido por leis,qualquer que seja a sua forma de administra~ao,porques6 entao 0 interesse publico governa e a coisa publicasignifica algo. Todo governo legitimo e republicano*: maisadiante explicarei 0 que e governo.

As leis nao sao, em verdade, senao as condis;6es daassociaS;ao civil. 0 povo submetido as leis deve ser 0

autor delas; somente aos que se associam compete regu­lamentar as condis;6es da sociedade. Mas como as regula­mentamo? De comum acordo ou por subita inspiraS;ao?o corpo politico disp6e de urn 6rgao para enunciar es­sas vontades? Quem the dara a previdencia necessariapara formar-Ihe os atos e publica-los com antecipaS;ao,ou como os pronunciara no momenta da necessidade?Como uma multidao cega que muitas vezes nao sabe 0

que quer, porque raramente sabe 0 que the convem, le­vara a born termo uma empresa tao grande e difkil co­mo 0 e urn sistema de legislaS;ao? 0 povo, por si, quersempre 0 bern, mas nem sempre 0 reconhece por si s6.A vontade geral e sempre reta, mas 0 julgamento que aguia nem sempre e esc1arecido. E necessario fazer comque veja as objetos tais como sao, as vezes tais como lhedevem parecer, mostrar-Ihe a born caminho que procu­ra, preserva-Ia da sedus;ao das vontades particulares,relacionar aos seus olhos as lugares e os tempos, contra-

• Por esse termo nao entendo somente uma aristocracia ou uma demo­cracia, mas, de maneira geral, qualquer governo guiado pela vontade geral,que e a lei. Para ser legitimo, nao e necessario que 0 governo se confundacom 0 soberano, mas sim que seja 0 seu ministro; enta~, a pr6pria monarquiae republica. Isto sera esclarecido no livro seguinte.

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balan~ar 0 atrativo das vantagens presentes e sensiveispelo perigo dos males distantes e ocultos. Os particula­res veem 0 bern que rejeitam, 0 publico quer 0 bern quenao ve. Todos necessitam igualmente de guias. Epreci­so obrigar uns a conformar suas vontades a razao e ensi­nar 0 outro a conhecer 0 que deseja. Entao das luzespublicas resulta a uniao do entendimento e da vontadeno corpo social, dai 0 exato concurso das partes e, en­fim, a maior fors;a do todo. Eis de onde nasce a necessi­dade de urn legislador.

CAPITULO VII

Do Legislador13

Para descobrir as melhores regras de sociedade queconvem as nas;6es, seria necessaria uma inteligenciasuperior, que visse todas as paix6es dos homens e naoexperimentasse nenhuma, que nao tivesse relas;ao algumacom nossa natureza e a conhecesse a fundo, cuja felici­dade fosse independente de n6s e, no entanto, admitis­se ocupar-se da nossa; e que, enfim, no transcurso do tem­po, contentando-se com uma gl6ria longinqua, pudessetrabalhar num seculo e usufruir em outro*. Haveria ne­cessidade de deuses para dar leis aos homens.

o mesmo raciodnio que fazia Caligula quanto aofato, fazia-o Platlo quanto ao direito para definir 0 ho­mem civil ou real, que ele procura em seu livro do reino14

;

mas, se e verdade que urn grande principe e urn homemraro, que dizer de urn grande legislador? Ao primeiro

• Urn povo s6 se torna celebre quando sua legisla~ao come~a a declinar.Ignora-se durante quantos seculos a institui~ao de Licurgo fez a felicidade dosespartanos, antes que se falasse deles no resto da Grecia.

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basta seguir 0 modelo que 0 segundo deve propor. Estee 0 mecanico que inventa a maquina, aque1e nao passado operario que a monta e a faz funcionar. Na origemdas sociedades, diz Montesquieu, sao os chefes das re­publicas que fazem a institui~ao e em seguida e a insti-

d 'bl' 15tui~ao que forma os chefes as repu lcas .Quem ousa empreender a institui~ao de urn povo

deve sentir-se capaz de mudar, por assim dizer, a nature­za humana; de transformar cada individuo que, por simesmo, e urn todo perfeito e solidario em parte de urntodo maior, do qual esse individuo recebe, de certa forma,sua vida e seu ser; de alterar a constitui~ao do homempara fortalece-Ia; de substituir por uma existencia parcial emoral a existencia fisica e independente que todos rece­bemos da natureza. Deve, numa palavra, arrebatar aohomem suas proprias for~as para the dar outras que lhesejam estranhas e das quais nao possa fazer uso sem 0

auxilio de outrem. Quanto mais mortas e aniquiladas saoas for~as naturais, mais as adquiridas sao grandes e dura­douras, e na mesma propor~ao a institui~ao esolida e per­feita. De sorte que, quando cada cidadao nada e e nadapode senao com todos os outros, e quando a for~a adqui­rida pelo todo eigual ou superior asoma das for~as natu­rais de todos os individuos, pode dizer-se que a legisla~ao

esta no mais alto grau de perfei~ao a que pode chegar.o legislador e, sob todos os pontos de Vista, urn

homem extraordinario no Estado. Se 0 e por seu genio,nao 0 e menos por seu cargo. Nao se trata de magistra­tura nem de soberania. Esse cargo, que constitui a Repu-, ,blica nao entra em sua constitui~ao. E uma fun~ao par-, . ,ticular e superior que nada tern em comum com 0 lffipe-rio humano, porque, se aquele que manda nos homens

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nao deve mandar nas leis, aquele que manda nas leisnao deve tampouco mandar nos homens; do contrarlo suasleis, ministros de suas paixoes, nada mais fariam, muitasvezes, do que perpetuar suas injusti~as, e ele nunca po­deria evitar que opinioes particulares alterassem a santi­dade de sua obra.

Quando Licurgo deu leis asua patria, come~ou abdi­cando a realeza. Era costume da maioria das cidades gre­gas confiar aos estrangeiros 0 estabe1ecimento de suasleis. As Republicas modernas da Italia imitaram freqiien­temente esse costume; a de Genebra fez 0 mesmo combons resultados·. Roma, em seu fastigio, viu renascer emseu meio todos os crimes da tirania e viu-se prestes aperecer por ter reunido nas mesmas cabe~as a autorida­de legislativa e 0 poder soberanol6

No entanto, os proprios decenviros nao se arroga­ram jamais 0 direito de promulgar uma lei emanada ape­nas de sua autoridade. "Nada do que propomos", diziamao povo, "pode transformar-se em lei sem 0 vosso con­sentimento. Romanos, sede vos mesmos os autores dasleis que devem fazer vossa felicidade."

Aquele que reclige as leis nao tern, portanto, ou naodeve ter nenhum direito legislativo, e nem 0 proprio povopode, quando 0 quiser, despojar-se desse direito intrans­ferivel porque, segundo 0 pacto fundamental, somente avontade geral obriga os particulares, e so se pode assegu­rar que uma vontade particular esta de acordo com a von-

• os que consideram Calvino como simples te61ogo conhecem mal aextensao de seu genio. A reda~ao de nossos sabios editos, em que ele teveimportante participa~ao, faz-Ihe tanta honra quanto sua institui~ao. Seja qualfor a revolu~ao que 0 tempo venha a introduzir em nosso culto, enquanto 0

amor da patria e da Iiberdade nao se extinguir entre n6s, jamais a mem6riadesse grande homem deixara de constituir uma ben~o.

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tade geral depois de submete-Ia aos sufragios livres dopovo. Jei disse isso, mas nao e imltil repeti-Io.

Assim, encontram-se simultaneamente na obra da le­gisla~ao duas coisas que parecem incompativeis: uma em­presa acima da for~a humana e, para executa-la, uma au­toridade insignificante.

Outra dificuldade merece aten~ao. Os seibios quedesejam falar sua linguagem ao vulgo nao seriam com­preendidos. Ora, ha mil tipos de ideias impossiveis detraduzir a lingua do povo. Os aspectos muito genericose os objetos por demais afastados est:lo igualmente forade seu alcance; cada individuo, nao experimentandooutro plano de governo afora aquele que se refere aoseu interesse particular, tern dificuldade em perceber as

. vantagens que deve tirar das priva~oes continuas impos­tas pelas boas leis. Para que urn povo nascente experi­mentasse as maximas sas da politica e seguisse as regrasfundamentais da razao de Estadol7, seria necessario que 0

efeito se convertesse na causa, que 0 espirito social quedeve ser a obra da institui~ao presidisse a pr6pria insti­tui~ao, e que os homens fossem antes das leis 0 que de­veriam tornar-se por elas. Assim, pois, nao podendo 0

legislador empregar nem a for~a nem 0 raciocinio, preci­sa recorrer a uma autoridade de outra ordeml8, capaz deconduzir sem violencia e persuadir sem convencer.

Eis 0 que obrigou, em todos os tempos, os pais dasna~oes a recorrerem a interven~ao celeste e a honrar osdeuses por sua pr6pria sabedoria, a fim de que os povos,submetidos as leis do Estado como as da natureza, e reco­nhecendo 0 mesmo poder na forma~ao do homem e nada cidade, obede~am com liberdade e aceitem docilmen­te 0 juga da felicidade publica.

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Essa razao sublime, que se eleva acima do entendi­mento dos homens vulgares, e aquela pela qual 0 legisla­dor poe as decis6es na boca dos imortais, para conduzir,atraves da autoridade divina, os que nao seriam abaladospela prudencia humana*. Mas nem a todo homem e dadofazer os deuses falarem, nem ser acreditado quando seanuncia como interprete deles. A e1eva~ao de esplrito dolegislador e 0 verdadeiro milagre que deve provar sua mis­sao. Todo homem pode gravar tabuas de pedra, ou com­prar urn oraculo, ou simular urn secreto comercio com al­guma divindade, ou adestrar urn passaro para falar-Ihe aoouvido, ou encontrar outros meios grosseiros para impor­se ao povo. Quem nao souber mais que isso podera atereunir ocasionalmente urn bando de insensatos, mas nun­ca havera de fundar urn imperio, e logo sua extravaganteobra perecera com ele. Vaos prestigios formam urn vmculopassageiro, s6 a sabedoria pode toma-Io duradouro. A leijudaica sempre subsistente, a do mho de Ismael que hadez seculos vern regendo metade do mundo revelamainda hoje os grandes homens que as ditaram; e, enquan­to a orgulhosa mosofia ou 0 cego espirito de partido naove neles senao felizes impostores, 0 verdadeiro politicoadmira em suas institui~oes 0 grande e poderoso genioque preside aos estabelecimentos duradourosl9.

Nao se conclua, de tudo isso, como WarburtonZO, quea politica e a religiao tenham entre n6s urn objeto comum,mas sim que, na origem das na~oes, uma serve de instru­mento para a outra.

• "E verarnente", diz Maquiavel, "rnai non fii alcuno ordinatore di [eggistraordinarie in un popolo, che non ricorresse a Dio, perche altrimenti nonsarebbero accettate;perche sono rnolti beni conosciuti da uno prudente, iquali non hanno in se raggioni evidenti da potergli persuadere ad altrui"(Discorsi sopra Tito Livio, 1. I, c. XI).

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CAPITIJW VIII

DoPOV0 21

Assim como 0 arquiteto, antes de construir urn gran­de edificio, sonda e examina 0 solo para ver se este podesustentar 0 peso, 0 sabio instituidor nao come~a redigin­do leis boas em si mesmas, mas verifica antes se 0 povo,ao qual sao destinadas, est:! apto a suporta-las. Poi porisso que Platao recusou dar leis aos arcades e aos cirenai­COS

22, sabendo que esses dois povos eram ricos e nao

podiam admitir a igualdade; foi por isso que se viram emCreta boas leis e homens perversos, porque Minos s6havia disciplinado urn povo carregado de vkios.

Brilharam sobre a Terra milhares de na~5es que nun­ca teriam podido suportar boas leis, e mesmo as que te­riam admitido duraram apenas um breve lapso de tempopara isso. Os povos, assim como os homens23, s6 saod6ceis na juventude; ao envelhecer, tornam-se incorrigi­veis; uma vez estabelecidos os costumes e enraizados ospreconceitos, e empresa va e arriscada pretender reforma­los; 0 povo nao pode sequer admitir que se toque emseus males para destrui-los, como esses doentes esrupidose pusilanimes que tremem a simples presen~a do medico.

Nao quer isto dizer que, assim como certas doen~as

transtornam 0 juizo dos homens e lhes tiram a lembran~a

do passado, nao haja as vezes, na dura~ao dos Estados,epocas violentas em que as revolu~5es ocasionam nopovo 0 mesmo que certas crises provocam nos indivi­duos, em que 0 horror do passado ocupa 0 lugar doesquecimento e 0 Estado, incendiado pelas guerras civis,renasce por assim dizer de suas pr6prias cinzas e retomao vigor da juventude, emergindo dos bra~os da morte.

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Assim foi Esparta no tempo de Licurgo, assim foi Romadepois dos Tarqiiinios; e assim foram, entre n6s, a Holan­da e a Sui~a ap6s a expulsao dos tiranos24

Mas tais acontecimentos sao raros; formam exce~5es

cujo motivo se acha sempre na constitui~aoparticular doEstado que apresenta a exce~ao. Nem poderiam ocorrerduas vezes a urn mesmo povo, porque ele pode tornar­se livre enquanto apenas e barbaro, mas nao quando 0

aparelho civil est:! gasto25• Entao, as agita~5es podem des­

trui-lo sem que as revolu~5es sejam capazes de restabe­led~-lo; e, tao logo seus grilh5es se partem, 0 povo sedispersa e deixa de existir. Dai por diante, passa a neces­sitar de urn senhor, e nao de urn libertador. Povos livres,lembrai-vos desta maxima: pode-se conquistar a liberda­de; nunca, porem, recupera-la.

Ha para as na~5es, assim como para os homens, urntempo de maturidade que e preciso aguardar6 antes desubmete-las as leis; mas a maturidade de urn povo nemsempre e facil de reconhecer, e, se for antecipada, a obraaborta. Tal povo e disciplinavel ao nascer, outro nao 0

sera ao cabo de dez seculos. Os russos nao serao jamaisverdadeiramente policiados, porque 0 foram cedo demais.Pedro tinha 0 talento imitativo, nao 0 verdadeiro genio,aquele que cria e faz tudo de nada. Algumas coisas quefez foram boas, a maioria inoportuna. Viu que seu povoera barbaro, mas nao viu que nao estava maduro para 0

policiamento; quis civiliza-lo quando s6 devia torna-loaguerrido. Quis, de inkio, fazer alemaes e ingleses, quan­do devia come~ar fazendo russos; impediu seus suditosde jamais se tornarem 0 que poderiam ser, persuadin­do-os de que eram 0 que nao sao. Assim e que urn pre­ceptor frances educa seu pupilo para brilhar por urn mo-

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mento durante sua infancia para, depois, nao ser jamaisninguem. 0 Imperio da Russia podera querer subjugar aEuropa, mas sera ele proprio subjugado. Os tartaros, seussuditos ou seus vizinhos, se converterao em seus senho­res enos nossos. Essa revolu~ao parece-me infalivel. To­dos os reis da Europa trabalham de comum acordo paraacelera-Ia27

CAPITULO IX

Continuafilo

Assim como a natureza estabeleceu limites a estaturade urn homem bem-conformado, alem dos quais so pro­duz gigantes ou an6es, fez 0 mesmo, com referencia amelhor constitui~ao de urn Estado, limitando-Ihe a exten­sao a fim de que nao seja nem muito grande para poderser bern govemado, nem muito pequeno para poder semanter por si mesmo. Ha em todo corpo politico urnmaximo de for~a que ele nao poderia ultrapassar, e doqual com freqliencia se afasta amedida que cresce. Quan­to mais se estende 0 vinculo social, tanto mais se afrou­xa, e em geral urn pequeno Estado e proporcionalmentemais forte que urn grande.

Mil raz6es demonstram essa maxima. Em primeirolugar, a administra~ao toma-se mais penosa nas grandesdistancias, assim como urn peso se toma rnais pesado naponta de uma alavanca maior. Toma-se tambem mais one­rosa a medida que os escal6es se multiplicam; pois cadacidade tern, a principio, a sua administra~ao, que 0 povopaga; cada distrito tern a sua, paga ainda pelo povo; emseguida cada provincia, depois os grandes govemos, as

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satrapias28, os vice-reinos, que se deve pagar cada vez

mais caro, a medida que se sobe, e sempre a custa dodesditoso povo; vern, por fim, a administra~ao suprema,que tudo esmaga. Tantas sobrecargas exaurem continua­mente os suditos que, longe de serem rnais bern gover­nados por essas diferentes ordens, 0 sao menos do quese houvesse apenas uma acima deles. Entretanto, malrestam recursos para os casos extraordinarios; e, quandoe preciso recorrer a eles, 0 Estado sempre se encontra abeira da ruina.

E nao e tudo; nao somente 0 govemo tern menosvigor e rapidez para fazer observar as leis, impedir as ve­xa~Oes, corrigir os abusos, prevenir as empresas sediciosasque possam ocorrer nos lugares distantes, como tambem 0

povo tern menos afei~ao aos chefes, a quem nunca ve, apatria, que aos seus olhos e como 0 mundo, e aos conci­damos, cuja maioria the e estranha. As mesmas leis naopodem convir igualmente a tantas provmcias diversas, comcostumes diferentes e dimas opostos, e que nao podemadmitir a mesma forma de govemo. Leis diferentes so ge­ram perturba~ao e confusao entre povos que, vivendo soba dire~ao dos mesmos chefes, e em comunica~ao conti­nua, transitam de urn lugar para outro ou se casam unscom os outros e, submetidos a outros costumes, nunca sa­bern se seu patrim6nio realmente lhes pertence. Os talen­tos permanecem ocultos, as virtudes ignoradas, os viciosimpunes, nessa multimo de homens desconhecidos unsaos outros, que a sede da administra~ao suprema reunenum mesmo lugar. Os chefes, sobrecarregados de afaze­res, nada veem por si mesmos; funcionarios governam 0

Estado. Enftm, as medidas necessarias a manuten~ao daautoridade geral, aqual tantos funcionarios afastados que-

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rem subtrair-se, ou mesmo ludibriar, absorvem todos oscuidados publicos; e nada mais resta para a felicidade dopovo, salvo 0 indispensavel a sua defesa, e e assim que urncorpo grande demais para sua constitui~ao defmha e pere­ce, esmagado debaixo de seu pr6prio peso.

Por outro lado, deve 0 Estado assegurar-se uma certabase para ter solidez, para resistir aos abalos que nao dei­xara de experimentar e aos esfor~os que sera obrigado afazer para se manter; pois todos os povos tern uma espe­cie de for~a centrifuga, pela qual atuam continuamenteuns contra os outros e tendem a expandir-se a expensasde seus vizinhos, como os turbilh6es de Descartes29

• As­sim, os fracos correm 0 risco de ser engolidos, e nenhumpode conservar-se anao ser colocando-se, em rela~ao aosdemais, numa especie de equilibrio, que em toda partetoma a compressao mais ou menos igual.

Ve-se porai haver raz6es para expandir-se e raz6espara encolher-se, e nao e0 menor aspecto do talento dopolitico encontrar, entre umas e outras, a propor~ao maisvantajosa para a conserva~ao do Estado. Pode-se dizer, deurn modo geral, que as primeiras, sendo apenas exterio­res e re1ativas, devem ser subordinadas as outras, que saointemas e absolutas; uma constitui~ao sa e forte e a pri­meira coisa a procurar, e deve-se contar mais com 0 vigornascido de urn born govemo que com os recursos fome­cidos por urn grande territ6rio.

De resto, viram-se Estados de tal modo constituidosque a necessidade das conquistas fazia parte de sua pr6­pria constitui~ao, e que, para se manter, eram for~ados aexpandir-se sem cessar. Talvez muitos deles se felicitas­sem por essa feliz necessidade, que nao obstante lhesmostrava, com 0 termo de sua grandeza, 0 inevitave1momenta de sua queda30

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CAPITULO X

Continutlfilo

Pode-se medir urn corpo politico de duas maneiras,a saber: pe1a extensao do territ6rio e pelo numero dapopula~ao; e, entre uma e outra dessas medidas, ha umarela~ao conveniente para dar ao Estado sua verdadeiragrandeza. Sao os homens que fazem 0 Estado, e e 0 ter­reno que alimenta os homens; essa rela~ao consiste, pois,em que a terra baste para a manuten~ao de seus habitan­tes e haja tantos habitantes quantos a terra pode alimen­tar. Enesta propor~ao que se acha 0 maximo de for~a deurn dado numero de popula~ao;porque, se houver terre­no em demasia, sua guarda e onerosa, a cultura insufi­ciente, 0 produto superfluo; e sera a causa pr6xima deguerras defensivas; se nao houver terreno suficiente, 0

Estado se vera, para 0 suprir, entregue a merce de seusvizinhos; e sera a causa pr6xima de guerras ofensivas.Todo povo que, por sua posi~ao, s6 tern a altemativa en­tre 0 comercio ou a guerra e fraco em si mesmo; dependede seus vizinhos, depende dos acontecimentos; jamaistera senao uma existencia incerta e breve. Subjuga emuda de situa~ao, ou e subjugado e nao sera coisa algu­rna. S6 pode conservar-se livre a for~a de sua pequenezou de sua grandeza.

Nao e possive1 calcular uma re1a~ao fixa entre a ex­tensao de terra e 0 numero de homens que se bastemurn ao outro, nao s6 por causa das diferen~as existentesnas qualidades do terreno, em seus graus de fertilidade,na natureza de suas produ~6es, na influencia dos dimas,como por aquelas que se notam nos temperamentos doshomens que os habitam, uns consumindo pouco num

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pais fertil, outros muito num solo ingrato. Cumpre aindaconsiderar a maior ou menor fecundidade das mulheres,o que 0 pais pode ter de mais ou menos favonlve1 a po­pula<;ao, a quantidade com a qual 0 legislador pode es­perar ai concorrer por seus estabelecimentos, de sorteque nao deve basear seu julgamento no que ve, mas noque preve, nem se deter no estado atual da popula<;ao,mas no que ela vira naturalmente a ser. Finalmente, exis­tern mil ocasioes em que os acidentes particulares do lugarexigem ou permitem que se abarque mais terreno doque parece necessario. Assim a expansao sera grande numpais montanhoso, onde as produ<;oes naturais, isto e, osbosques, as pastagens, requerem menos trabalho, onde aexperiencia ensina que as mulheres sao mais fecundas quenas planicies e onde urn grande solo inc1inado nao fome­ce mais que uma pequena base horizontal, a (mica comque se pode contar para a vegeta<;ao. Ao contcirio, pode­mos comprimir-nos na orIa do mar, mesmo em rochedos eareias quase estereis; porque a pesca ai pode suprir emgrande parte as produ<;oes da terra, e os homens devempermanecer mais unidos para repe1ir os piratas, e porque,de resto, e mais f:icil desembara<;ar 0 pais, por meio decol6nias, dos habitantes que 0 sobrecarregam.

A essas condi<;oes, para instituir urn povo, e neces­sario acrescentar uma que nao pode suprir nenhumaoutra, mas sem a qual todas se revelam inuteis: a de quese goze da abundancia da paz, porque 0 tempo duranteo qual se ordena urn Estado e, como aquele em que seforma urn batalhao, 0 instante em que 0 corpo e menoscapaz de resistencia e mais facil de destruir. Resistir-se-iamelhor numa desordem absoluta que num momenta defermenta<;ao, quando cada qual se ocupa de sua c1asse e

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nao do perigo. Se uma guerra, uma fome, uma sedi<;aosobrevem nesse tempo de crise, 0 Estado e infalivelmen­te derrubado.

Isto nao significa que nao haja muitos govemos esta­belecidos durante essas tempestades, mas entao sao es­ses mesmos governos que destroem 0 Estado. Os usurpa­dores precipitam ou escolhem sempre esses tempos deperturba<;oes para promulgar, gra<;as ao terror publico,leis destrutivas que 0 povo jamais adotaria em situa<;aonormal. A escolha do momento da institui<;ao e urn doscaracteres mais seguros pelos quais se pode distinguir aobra do legislador da obra do tirano.

Que povo e, pois, apropriado para a legisla<;ao?Aquele que, achando-se ja ligado por algum vinculo deorigem, de interesse ou de conven<;ao, nao tenha aindasuportado 0 verdadeiro juga das leis; aquele que nao terncostumes nem supersti<;oes bern arraigados; aquele quenao teme ser esmagado por uma invasao subita e que,sem entrar nas querelas de seus vizinhos, pode resistirsozinho a cada urn deles ou obter a ajuda de urn para re­pelir 0 outro; aquele em que cada membra pode ser co­nhecido de todos e no qual nao se e obrigado a fazer urnhomem carregar urn fardo que nao pode suportar; aque­Ie que pode dispensar os outros povos, e estes possampassar sem ele*; aquele que nao e rico nem pobre e pode

• Se, de dois povos vizinhos, urn nao pudesse passar sem 0 outro, istoconstituiria uma situa~o muito dificil para 0 primeiro e bastante perigosa parao segundo. Qualquer na\;aO sensata se esfor\;aci, num caso assim, para Iibertarrapidamente a outra dessa dependencia. A Republica de Tlascala, encravadano Imperio do Mexico, preferia privar-se de sal a compci-Io dos mexicanos,negando-se ate mesmo a aceim-Io gratuitamente. Os prudentes t1ascalanos per­ceberam a armadilha oculta sob tal Iiberdade. Conservaram-se Iivres, e essepequeno Estado, encerrado nesse grande imperio, acabou sendo 0 instrumen­to de sua ruina.

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bastar-se a si mesmo; aquele, enfun, que reune a consis­tencia de urn povo antigo a docilidade de urn povo merdemo. 0 que toma penosa a obra da legislac;ao nao e tan­to 0 que cumpre estabelecer como 0 que cumpre des­truir; eo que toma 0 sucesso tao raro e a impossibilida­de de encontrar a simplicidade da natureza junto com asnecessidades da sociedade. Todas essas condic;6es, e ver­dade, dificilmente se acham reunidas. Eis por que se veempoucos Estados bern constituidos.

Existe ainda na Europa urn pais capaz de legislac;ao:e a ilha da C6rsega. 0 valor e a constancia com que essebravo povo soube reconquistar e defender sua liberdadebern merecem que algum sabio the ensine a conserva-la.Tenho certo pressentimento de que urn dia essa peque­na ilha havera de assombrar a Europa31

CAPITULO XI

Dos Dlversos Sistemas de Legislafilo

Se indagarmos em que consiste precisamente 0 maiorde todos os bens, que deve ser 0 fun de qualquer sistemade legislac;ao, chegaremos a conclusao de que ele se re­duz a estes dois objetivos principais: a liberdade e a igual­dade. A liberdade, porque toda dependencia particular eigualmente forc;a tirada ao corpo do Estado; a igualdade,porque a liberdade nao pode subsistir sem ela.

Ja disse 0 que ea liberdade civil; a respeito da igual­dade, nao se deve entender por essa palavra que os grausde poder e riqueza sejam absolutamente os mesmos,mas sim que, quanta ao poder, ela esteja acima de qual­quer violencia e nunca se exerc;a senao em virtude da

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classe e das leis, e, quanta a riqueza, que nenhum cida­dao seja assaz opulento para poder comprar 0 outro, enenhum assaz pobre para ser obrigado a vender-se. 0que sup6e, da parte dos grandes, modera~ao de bens ede credito, e, da parte dos pequenos, modera~ao de ava­reza e de cobi~a·.

Essa igualdade, dizem, e uma quimera especulativaque nao pode existir na pratica. Mas, se 0 abuso e inevi­tavel, segue-se que nao se deva pelo menos regulamen­ta-lo? :E exatamente porque a for~a das coisas tende sem­pre a destruir a igualdade que a for~a da legisla~ao devesempre propender a mante-la.

Mas os objetivos gerais de toda boa institui~ao de­vern ser modificados em cada pais pelas rela~6es quenascem tanto da situa~ao local como do carater dos habi­tantes, e e com base nessas relac;6es que importa destinara cada povo urn sistema particular de institui~aoque sejao melhor, nao talvez em si mesmo, mas sim para 0 Estadoao qual se destina. Por exemplo, 0 solo e ingrato e este­ril, ou 0 pais excessivamente exiguo para os habitantes?Voltai-vos para a industria e as artes, cujas produ~6es tro­careis pelos generos que vos faltam. Viveis, ao contnirio,em ricas plankies e encostas ferteis? Num born terreno,faltam-vos habitantes? Dedicai todos os vossos cuidadosa agricultura, que multiplica os homens, e esquecei asartes, que s6 acabariam despovoando 0 pais, amontoan-

• Quereis dar consist€mcia ao Estado? Aproximai os graus extremos tantoquanto seja possive!; nao tolereis nem homens opulentos nem indigentes.Esses dois estados, naturalmente inseparaveis, sao igualmente funestos aobern comum; de urn se originam os fautores da tirania, e de outros os tiranos.Esempre entre e!es que se faz 0 triifico da liberdade publica: urn a compra, 0

outro a vende.

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do em alguns pontos do territ6rio os poucos habitantesque possui*. Viveis em costas extensas.e comodas? Jun­cai 0 mar de navios, cultivai 0 comercio e a navega~ao;

tereis uma existencia brilhante e fkil. 0 mar em vossoslitorais nao banha senao rochedos quase inacessiveis?Permanecei barbaros e icti6fagos32

; vivereis mais tranqiii­los, talvez melhor, e seguramente mais felizes. Numapalavra, alem das maximas comuns a todos, cada povoencerra em si alguma causa que os ordena de maneiraparticular e torna sua legisla~ao apropriada unicamentea ele. Foi por isso que os hebreus outrora, e recentemen­te os arabes, tiveram como principal objeto a religiao, osatenienses as letras, Cartago e Tiro 0 comercio, Rodes amarinha, Esparta a guerra e Roma a virtude. 0 autor deo espirito das leis demonstrou com muitos exemplos comque arte 0 legislador dirige a institui~ao para cada urn deseus objetos.

o que torna a constitui~ao de urn Estado verdadei­ramente s6lida e duradoura e 0 fato de as convenienciasserem de tal forma observadas que as rela~oes naturais eas leis estao sempre de acordo nos mesmos pontos, eestas ultimas nao fazem, por assim dizer, senao assegu­rar, acompanhar e retificar as outras. Mas, se 0 legislador,enganando-se em seu objeto, tomar urn principio dife­rente daquele que nasce da natureza das coisas, urn ten­dendo para a servidao e 0 outro para a liberdade, urnpara as riquezas e 0 outro para a popula~ao, urn para apaz e outro para as conquistas, veremos as leis se enfra-

• Qualquer ramo de comercio exterior, diz 0 marques d'Argenson, naodifunde senao uma falsa utilidade para urn reino em geral; pode enriqueceralguns particulares, ou mesmo algumas cidades, mas a na\;ao em conjuntonada ganha, nem tampouco 0 povo.

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quecerem gradualmente, a constitui~ao se alterar, e 0 Es­tado nao deixara de agitar-se ate ser destruido ou muda­do e a invencivel natureza recuperar 0 seu imperio.

CAPITULO XII

Divisilo das Leis

Para ordenar 0 todo ou dar a melhor forma possivela coisa publica, ha que considerar diversas rela~oes. Pri­meiramente, a a~ao do corpo inteiro atuando sobre simesmo, isto e, a rela~ao do todo com 0 todo, ou do sobe­ranD com 0 Estado, e essa rela~ao e composta da rela~ao

dos termos intermediarios, como veremos mais adiante.As leis que regulam essa rela~ao sao denominadas

leis politicas; chamam-se tambem leis fundamentais, naosem alguma razao, se forem sabias. Porque, se nao ha,em cada Estado, senao uma boa maneira de ordena-lo, 0

povo que a encontrou deve conserva-la; mas, se a ordemestabelecida e rna, por que tomar por fundamentais leisque a impedem de ser boa? Alias, em qualquer situa~ao,

urn povo e sempre senhor de mudar suas leis, mesmo asmelhores, pois, se Ihe agrada fazer mal a si mesmo,quem ted 0 direito de impedi-lo?

A segunda rela~ao e ados membros entre si ou como corpo todo, e essa rela~ao deve ser no primeiro casotao pequena e no segundo tao grande quanto possivel,de sorte que cada cidadao esteja em perfeita indepen­dencia de todos os outros e em excessiva dependenciada Cidade; 0 que se consegue sempre pelos mesmosmeios, pois s6 a for~a do Estado faz a liberdade de seus

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membros. E dessa segunda rela~ao que se originam asleis cMs.

Pode-se considerar uma terceira especie de rela~ao

entre 0 homem e a lei, a saber, a da desobediencia a pe­nalidade, dando lugar ao estabelecimento das leis crimi­nais, que no fundo sao menos uma especie particular deleis que a san~ao de todas as outras.

A essas tres especies de leis, junta-se uma quarta, amais importante de todas, que nao se grava nem no mar­more nem no bronze, porem nos cora~6es dos cidadaos;que faz a verdadeira constitui~ao do Estado; que ganhatodos os dias novas for~as; que, quando as outras leisenvelhecem ou se extinguem, as reanima ou supre, con­serva urn povo no espirito de sua institui~ao e substituigradualmente a for~a da autoridade pela do habito. Reflfo­me aos usos, aos costumes e sobretudo a opiniao, partedesconhecida de nossos poHticos33, mas da qual dependeo sucesso de todas as demais; parte de que 0 grande legis­lador se ocupa em segredo, enquanto parece limitar-se aregulamentos particulares que nao passam do cimbre daab6bada, da qual os costumes, mais lentos para nascer,formam enfim a chave inabalavel.

Entre essas diversas classes, as leis poHticas, que cons­tituem a forma do governo, sao as (micas ligadas ao meuassunto.

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Livro III

Antes de falar de diversas formas de govemo, procure­mos fixar 0 sentido preciso dessa palavra, ainda nao per­feitamente explicado.

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CAPITULO I

Do Governo em Geral

Previno 0 leitor de que este capitulo deve ser lido pau­sadamente, e de que nao conhe~o a arte de ser claro paraquem nao deseja ser atento.

Toda a~ao livre tern duas causas que concorrem paraproduzi-Ia, uma moral, a saber, a vontade que deterrninao ato, e outra fisica, ou seja, 0 poder que a executa. Quan­do me dirijo a urn objeto, e preciso, primeiro, que euqueira ir ate ele e, em segundo lugar, que meus pes melevem ate lao Que urn paralitico queira correr, que urnhomem agil nao 0 queira, ambos ficarao no mesmo lugar.o corpo politico tern os mesmo m6veis; nele se distin­guem a for~a e a vontade, esta sob 0 nome de poder legis­lativo e aquela sob 0 nome de poder executivo1

• Nada sefaz nele, ou nao se deve fazer, sem seu concurso.

Vimos que 0 poder legislativo pertence ao povo, e s6a ele pode pertencer. Efacil perceber, ao contrario, pelosprindpios anteriorrnente estabelecidos, que 0 poder exe­cutivo nao pode pertencer ao conjunto dos cidadaos comolegislador ou soberano, pois que esse poder consiste

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_________ 0 Contrato Social _

apenas em atos particulares que nao sao, em absoluto, daal~ada da lei, nem, por conseguinte, da do soberano,cujos atos s6 podem ser leis.

Requer, pois, a for~a publica urn agente pr6prio quea reuna e a ponha em a~ao segundo as dire~oes da von­tade geral, que sirva para a comunica~ao entre 0 Estado eo soberan02

, que fa~a de certo modo na pessoa publica 0que faz no homem a uniao da alma e do COrp03. Eis quale, no Estado, a razao do governo, confundido indevida­mente com 0 soberano, de quem e apenas 0 ministro.

Que vern a ser, entao, 0 governo? Urn corpo interme­diario estabelecido entre os suditos e 0 soberano, para per­mitir sua mutua correspondencia, encarregado da exe­cu~ao das leis e da manuten~ao da liberdade, tanto civilcomo poHtica4

Os membros desse corpo chamam-se magistrados oureis5

, isto e, govemadores, e 0 corpo todo recebe 0 nomede principe*. Desse modo, muita razao assiste aos quepretendem que 0 ato pelo qual urn povo se submete a che­fes nao e urn contrato. Isto nao e, absolutamente, senaouma comissa06, urn emprego no qual, como simples ofi­ciais do soberano, eles exercem em seu nome 0 poder deque os fez depositarios, e que pode limitar, modificar eretomarquando the aprouver, sendo a aliena~ao de taldireito incompativel com a natureza do corpo social econtraria a finalidade da associa~ao.

Chamo, pois, govemo ou suprema administra~ao aoexerdcio legitimo do poder executivo, e principe ou ma­gistrado ao homem ou ao corpo encarregado dessa admi­nistra~ao.

• Eassim que em Veneza se da ao colegio 0 nome de Serenissimo Prin­cipe, mesmo quando 0 doge a ele nao assiste.

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__________ LivroIII _

Eno governo que se encontram as for~as intermedia­rias, cujas rela~6es compoem a do todo com 0 todo, oudo soberano com 0 Estad07

• Pode-se representar esta ulti­ma rela~ao pela dos extremos de uma propor~ao conti­nua, cuja media proporcional e 0 governo. 0 governo re­cebe do soberano as ordens que da ao povo, e, para queo Estado permane~a em born equilibrio, e necessario que,tudo compensado, haja igualdade entre 0 produto ou 0poder do governo, tornado em si mesmo, e 0 produto ouo poder dos cidadaos, que por urn lado sao soberanos e,por outro, suditos.

Ademais, nao se poderia alterar nenhum dos tres ter­mos sem romper instantaneamente a propor~ao. Se 0soberano quer governar, ou se 0 magistrado quer pro­ll).ulgar leis, ou se os suditos se recusam a obedecer, a de­sordem toma 0 lugar da regra, a for~a e a vontade ja naoagem de comum acordo e 0 Estado, dissolvido, cai assimno despotismo ou na anarquia. Enfim, como existe ape­nas uma media proporcional entre cada rela~ao, nao ha,tampouco, mais que urn born governo possivel num Es­tado. Como, porem, mil acontecimentos podem mudar asrela~oes de urn povo, nao somente diferentes governospodem ser bons para diversos povos, mas tambem parao mesmo povo em diferentes epocas.

Para dar uma ideia das varias rela~oes que podemreinar entre esses dois extremos, tomarei como exemploo numero da popula~ao, por ser uma rela~ao mais f:icilde exprimir.

Suponhamos que 0 Estado se componha de dez milcidadaos. 0 soberano s6 pode ser considerado coletiva­mente e como urn corpo. Mas cada particular, na qualida­de de sudito e considerado como indMduo. Logo, 0 so-,

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_________ 0 Contrato Social _

berano esta para 0 sudito assim como dez mil estao paraurn, isto e, cada membro do Estado tern como sua apenasa decima milesima parte da autoridade soberana, conquan­to the esteja submetido por inteiro. Se 0 povo se compoede cern mil homens, 0 estado dos suditos nao muda, ecada qual suporta igualmente todo 0 imperio das leis, en­quanto seu sufragio, reduzido a urn centesimo de milesi­mo, tern dez vezes menos influencia em sua reda~ao.

Entao, permanecendo 0 sudito sempre urn, a rela~ao dosoberano aumenta em razao do numero dos cidadaos. Se­gue-se que, quanto mais 0 Estado aumenta, mais diminuia liberdade.

Quando digo que a rela~ao aumenta, entendo que elase afasta da igualdade. Assim, quanto maior for a rela~o naace~odos geometras, tanto menor sera a rela~o na acep­~o comum; na primeira, a rela~o considerada segundo aquantidade, mede-se pelo expoente, e, na outra, considera­da segundo a identidade, estima-se pela semelhan~a.

Ora, quanto menos as vontades particulares corres­pondem a vontade geral, isto e, os costumes as leis, tantomais a for~a repressiva deve aumentar. Portanto, 0 gover­no, para ser born, deve ser relativamente mais forte namedida em que 0 povo e mais numeroso.

Por outro lado, como 0 crescimento do Estado ofere­ce aos depositarios da autoridade publica maior numerode tenta~oes e meios para abusar de seu poder, de maisfor~a precisa 0 governo para conter 0 povo e mais for~a

requer 0 soberano, por sua vez, para conter 0 governo.Nao falo aqui de uma for~a absoluta, mas da for~a relati­va das diversas partes do Estado.

Decorre dessa dupla rela~ao que a propor~ao conti­nua entre 0 soberano, 0 principe e 0 povo nao e uma ideia

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_ LivroIII _

arbitraria, mas uma consequencia necessaria da naturezado corpo politico. Segue-se ainda que, sendo urn dos ex­tremos, a saber, 0 povo como sudito, flXO e representadopela unidade, sempre que a razao composta aumenta oudiminui, tambem a razao simples aumenta ou diminui, eque, consequentemente, 0 termo medio se modifica, 0 quedemonstra nao haver uma constitui~ao de govemo unica eabsoluta, mas que pode haver tantos govemos de distintanatureza quantos Estados de diferentes grandezas.

Se, ridicularizando esse sistema, se dissesse que paraencontrar essa media proporcional e formar 0 corpo dogovemo nao e preciso, a meu ver, senao extrair a raiz qua­drada do numero da popula~ao, eu responderia que s6tome aqui esse numero a titulo de exemplo, que as rela­~Oes a que me reflfo nao se medem unicamente pelo nu­mero de homens, mas, em geral, pela quantidade de a~o,

que se combina por uma infmidade de causas, e que deresto, se, para me expressar em poucas palavras, tome deemprestimo alguns termos da geometria, nem por issoignoro que a precisao geometrica nao e cabivel nas quan­tidades morais.

o governo e em pequena escala 0 que 0 corpopolitico, que 0 encerra, e em grande escala. Euma pes­soa moral dotada de certas faculdades, ativa como 0

soberano, passiva como 0 Estado, e que se pode decom­por em outras rela~oes parecidas; de onde nasce, conse­quentemente, uma nova propor~ao, e ainda outra nesta,segundo a ordem dos tribunais, ate se chegar a urn termomedio indivisivel, isto e, a urn unico chefe ou magistradosupremo, que podemos representar, no meio dessa pro­gressao, como a unidade entre a serie das fra~oes e adosnumeros.

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_________ 0 Contrato Social _

Sem nos embarac;armos nessa multiplicac;ao de termos,contentemo-nos em considerar 0 govemo como urn novocorpo no Estado, distinto do povo e do soberano, e inter­mediario entre urn e outro.

Ha entre esses dois corpos esta diferenc;a essencial: 0Estado existe por si mesmo, 0 govemo s6 existe pelo so­berano. Assim, a vontade dominante do principe s6 e ous6 deve ser a vontade geral ou a lei; sua forc;a nao e senaoa forc;a publica nele concentrada; tao logo ele deseja tirarde si mesmo algum ato absoluto e independente, a liga­c;ao do todo comec;a a afrouxar. Se acontecesse, enfim, queo principe tivesse uma vontade particular mais ativa que ado soberano, e para exigir a obediencia a essa vontadeparticular fizesse uso da forc;a publica que esta em suasmaos, de modo que houvesse, por assim dizer, dois sobe­ranos, urn de direito e outro de fato, nesse mesmo instan­te a uniao social se desvaneceria e 0 corpo politico seriadissolvido.

Todavia, para que 0 corpo do govemo tenha umaexistencia, uma vida real que 0 distinga do corpo do Es­tado, para que todos os seus membros possam agir decomum acordo e responder a fmalidade para a qual foiinstituido, e-Ihe necessario urn eu particular, uma sensibi­lidade comum aos seus membros, uma forc;a, uma vonta­de pr6pria que propenda a sua conservac;ao. Essa existen­cia particular sup6e assembleias, conselhos, urn poder dedeliberar, de resolver, direitos, titulos e privilegios quepertencem exc1usivamente ao principe e que tomam acondic;ao do magistrado mais honocivel na proporc;aoem que e mais penosa. As dificuldades residem na ma­neira de ordenar num todo esse todo subaltemo, de modoque nao altere a constituic;ao geral ao afirmar a sua; que

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_ LivroIII _

distinga sempre sua forc;a particular, destinada a sua pr6­pria conservac;ao, da forc;a publica, destinada a conserva­c;ao do Estado; e que, numa palavra, esteja sempre prontoa sacrificar 0 govemo ao povo, e nao 0 povo ao govem08

,

Por outro lado, embora 0 corpo artificial do govemoseja obra de outro corpo artificial e tenha, de certa forma,apenas uma vida emprestada e subordinada, isso naoimpede que possa agir com mais ou menos vigor ou rapi­dez, gozar, por assim dizer, de uma saude mais ou menosrobusta. Finalmente, sem se afastar diretamente do alvode sua instituic;ao, dele pode-se separar mais ou menos,conforme a maneira como esta constituido.

E de todas essas diferenc;as que nascem as diversasrelac;6es que 0 govemo deve ter com 0 corpo do Estado,segundo as relac;6es acidentais e particulares pelas quaisesse mesmo Estado se modifica, pois com freqiiencia 0melhor govemo em si se tomara 0 mais vicioso, se suasrelac;6es nao forem alteradas de acordo com os defeitosdo corpo politico ao qual pertence.

CAPITULO II

Do Princlpw que Constituias Diversas Formas de Governo

Para expor a causa geral dessas diferenc;as, cumpredistinguir, neste ponto, 0 principe e 0 govemo, como 0fiz mais acima entre 0 Estado e 0 soberan09•

o corpo do magistrado10 pode compor-se de maiorou menor numero de membros. Dissemos que a relac;aoentre 0 soberano e os suditos era tanto maior quanto maisnumerosa fosse a populac;ao e, por uma analogia eviden-

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_________ 0 Contrato Social _

te, podemos dizer 0 mesmo do govemo em rela~ao aosmagistradosll

.

Ora, a for~ total do govemo, sendo sempre a doEstado, nao varia absolutamente; segue-se que, quantomais usar dessa for~a sobre seus proprios membros, me­nos the restaci para agir sobre todo 0 povo.

Portanto, quanto mais numerosos forem os magistra­dos, tanto mais fraco seci 0 govemo. Como esta maximae fundamental, apliquemo-nos em esclarece-Ia melhor.

Podemos distinguir na pessoa do magistrado tres von­tades essencialmente distintas. Primeiro, a vontade pro­pria do individuo, que so tende ao seu beneficio particu­lar; segundo, a vontade comum dos magistrados, que dizrespeito unicamente ao beneficio do principe e se podedenominar vontade de corpo, a qual egeral em rela~ao aogovemo e particular em rela~ao ao Estado de que 0 go­verno faz parte; em terceiro lugar, a vontade dopovo oua vontade soberana, que e geral tanto em rela~ao ao Es­tado considerado como urn todo quanto em rela~ao aogovemo considerado como parte desse todo.

Numa legisla~ao perfeita, a vontade particular ou in­dividual deve ser nula, a vontade de corpo propria dogovemo muito subordinada e, em consequencia, a vonta­de geral ou soberana sempre dominante, (mica regra detodas as outras.

Segundo a ordem natural, pelo contcirio, essas dife­rentes vontades tomam-se mais ativas a medida que seconcentram. Assim, a vontade geral e sempre a mais fra­ca, a vontade de corpo ocupa 0 segundo lugar e a vonta­de particular 0 primeiro de todos, de sorte que no gover­no cada membro e em primeiro lugar ele proprio, depoismagistrado e enfim cidadao. Grada~ao diretamente opos­ta a exigida pela ordem social.

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_ Livro lII _

Isto posto, que todo 0 govemo seja colocado nas maosde urn unico homem. Eis a vontade particular e a vontadede corpo perfeitamente reunidas e, consequentemente,esta ultima no mais alto grau de intensidade a que podechegar. Ora, como e do grau da vontade que depende 0

usa da for~a, e como a for~a absoluta do govemo naovaria de forma alguma, segue-se que 0 mais ativo dosgovemos e 0 de urn so. Pelo contcirio, unamos 0 gover­no a autoridade legislativa; fa~amos do soberano urnprincipe, e de todos os cidadaos, magistrados: entao avontade de corpo, confundida com a vontade geral, naoteci mais atividade que esta e deixaci a vontade particularcom toda a sua for~a. Assim 0 govemo, sempre com amesma for~a absoluta, permanececi em seu ramo de for­~a relativa ou de atividade.

Essas rela~6es sao incontestaveis, e outras considera­~6es vern confrrma-Ias ainda mais. Ve-se, por exemplo,que cada magistrado e mais ativo em seu corpo que cadacidadao no seu, e que, por conseguinte, a vontade parti­cular tern muito mais influencia nos atos do govemo quenos do soberano, pois cada magistrado e quase sempreencarregado de alguma fun~ao do govemo, ao passo quecada cidadao, tornado em particular, nao tern nenhumafun~ao da soberania. Alias, quanto mais 0 Estado se es­tende, mais aumenta sua for~a real, conquanto nao au­mente em razao de sua extensao; mas, permanecendo 0

Estado 0 mesmo, por mais que os magistrados se multi­pliquem, 0 govemo nao adquire com isso maior for~a

real, porque essa for~a ea do Estado, cuja medida esem­pre igual. Assim, a for~a relativa ou a atividade do gover­no diminui, sem que sua for~a absoluta ou real possa au­mentar.

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_________ 0 Contrato Social _

Eainda certo que a expedi<;ao dos neg6cios toma-semais lenta a medida que mais pessoas deles se encarre­gam; que, concedendo-se demasiado aprudencia, nao seda 0 bastante a fortuna; que se deixa fugir a ocasiao eque, afor<;a de deliberar, muitas vezes se perde 0 fruto dadelibera<;ao.

Acabo de provar que 0 govemo se afrouxa amedidaque os magistrados se multiplicam, e provei, mais acima,que quanto mais numerosa for a popula<;ao, mais deveraaumentar a for<;a repressora. Donde se segue que a rela­<;ao entre os magistrados e 0 govemo deve ser 0 inversoda rela<;ao entre os suditos e 0 soberano; ou seja, quantomais cresce 0 Estado, tanto mais deve se contrair 0 gover­no, de modo que 0 numero dos chefes diminui em razaodo aumento da popula<;ao.

De resto, s6 me refrro aqui afor<;a relativa do govemo,e nao asua retidao, pois, ao contrario, quanto mais nume­rosa for 0 magistrado, mais a vontade de corpo se aproxi­mara da vontade geral; ao passo que, sob urn magistradounico, essa mesma vontade de corpo nao passa, como jadisse, de uma vontade particular. Assim sendo, perde-se deurn lado 0 que se pode ganhar de outro, e a arte do legis­lador esti em saber flXar 0 ponto em que a for<;a e a von­tade do govemo, sempre em propor<;ao reciproca, se com­binam na rela<;ao mais vantajosa para 0 Estado.

CAPITULO III

Divisilo dos Governos

Vimos no capitulo anterior por que se distinguem asdiversas especies ou formas de govemo pelo numero dos

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_ Livro llI _

membros que as compoem; resta ver, agora, como se fazessa divisao.

o soberano pode, em primeiro lugar, confiar 0 gover­no a todo 0 povo ou amaior parte do povo, de modo quehaja mais cidadaos magistrados que simples cidadaos parti­culares. Essa forma de govemo denomina-se Democracia.

Ou entao pode confinar 0 govemo nas maos de urnpequeno numero, de sorte que haja mais simples cida­daos que magistrados, e essa forma de govemo recebe 0

nome de Aristocracia.Pode, enfim, concentrar todo 0 govemo nas maos de

urn magistrado unico, de quem os demais recebem 0 seupoder. Essa terceira forma e a mais comum e denomina­se Monarquia ou govemo real.

Note-se que todas essas formas, ou pelo menos asduas primeiras, sao suscetiveis de amplia<;oes ou redu­<;oes, tendo ate grande latitude, porque a Democraciapode abarcar todo 0 povo ou restringir-se ametade dele.A Aristocracia, por sua vez, partindo da metade do povopode retrair-se indeterminadamente a uma quantidadediminuta. A pr6pria Monarquia e suscetivel de certa par­tilha. Esparta teve constantemente dois Reis segundo suaconstitui<;ao, e viu-se no Imperio Romano ate oito impe­radores simultaneos, sem que se pudesse afirmar que 0

Imperio se encontrava dividido. Ha, assim, urn ponto emque cada forma de govemo se confunde com a formaseguinte, e ve-se que com apenas tres denomina<;oes 0

govemo e realmente suscetivel de tantas formas diversasquanto 0 Estado tern de cidadaos.

E mais: podendo esse mesmo govemo, em certosaspectos, subdividir-se em outras partes, cada qual admi­nistrada de diferentes maneiras, dessas tres formas com-

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binadas pode resultar uma multidao de formas mistas,sendo cada uma delas multiplicavel por todas as formassimples.

Muito se discutiu, em todos os tempos, sobre a melhorforma de govemo, sem levar em considera~ao que cadauma delas e a melhor em certos casos e a pior em outros12

Se, nos diferentes Estados, 0 numero dos magistradossupremos deve estar na razao inversa do numero doscidadaos, segue-se que, em geral, 0 govemo democraticoconvem aos pequenos Estados, 0 aristocritico aos mediose 0 monirquico aos grandes. Esta regra se deduz direta­mente do principio, mas como contar a multidao de cir­cunsmncias que podem dar origem as exce~6es?

CAPITULO IV

Do. Democrada

Quem faz a lei sabe melhor que ninguem como sedeve execut:i-Ia e interpret:i-Ia. Parece, pais, que nao pode­ria haver melhor constitui~o que aquela em que 0 poderexecutivo est:i unido ao legislativo. Mas e justamente issoque toma esse govemo insuficiente em certos pontos, por­que as coisas que devem ser distinguidas nao 0 sao, e 0

principe e 0 soberano, sendo a mesma pessoa, nao for­mam, por assim dizer, senao urn govemo sem govemo.

Nao convem que quem redige as leis as execute,nem que 0 corpo do povo desvie sua aten~ao dos de­signios gerais para concentci-Ia nos objetivos particula­res. Nada mais perigoso que a influencia dos interessesprivados nos neg6cios publicos. 0 abuso das leis pelogovemo e urn mal menor que a corrup~ao do legislador,

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_ LivroIII _

conseqiiencia infalivel dos designios particulares. Entao,alterado 0 Estado em sua subsmncia, qualquer reforma setoma impossive!. Urn povo que jamais abusasse do go­verno nao abusaria, tampouco, da independenciaj urn po­vo que govemasse sempre bern nao teria necessidade deser govemado.

Se tomarmos 0 termo no rigor da acep~ao, nuncaexistiu verdadeira democracia, nem jamais existici. Econ­tra a ordem natural que 0 grande numero goveme e 0

pequeno seja govemado. Nao se pode imaginar que 0

povo permane~a constantemente reunido para ocupar-sedos neg6cios publicosj e ve-se facilmente que nao seriapossivel estabelecer comissoes para isso sem mudar aforma da administra~ao.

Creio, com efeito, poder estabelecer como principioque, quando as fun~oes do govemo sao divididas entrevirios tribunais, os menos numerosos adquirem cedo outarde a maior autoridade, quando mais nao fosse, devidoa facilidade de resolver rapidamente as questoes que osleva naturalmente a isso.

Por outro lado, quantas coisa!; dificeis de reunir naosupoe tal govemo? Primeiro, urn Estado muito pequeno,em que seja ficil reunir 0 povo e onde cada cidadao pos­sa conhecer facilmente todos os outrOSj segundo, umagrande simplicidade de costumes que previna 0 grandenumero de dificuldades e as discussoes espinhosas; emseguida, muita igualdade nas classes e nas fortunas, semo que a igualdade nao poderia subsistir por muito temponos direitos e na autoridadej e, enfim, pouco ou nenhumluxo, pois ou 0 luxo e 0 efeito das riquezas ou as tomanecessiriasj corrompe ao mesmo tempo 0 rico e 0 pobre,urn pela posse, outro pela cobi~aj vende a pitria a lassi-

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dao e avaidade; subtrai ao Estado todos os seus cidadaospara sujeita-Ios uns aos outros, e todos a opiniao13

Eis por que urn autor celebre14 instituiu a virtude paraprincipio da Republica, pois sem ela todas essas condi­~5es nao poderiam subsistir; mas, por nao ter feito as dis­tin~5es necessarias, nao raro faltou a esse bela talentoprecisao e as vezes clareza, e nao viu que, sendo a auto­ridade soberana a mesma em toda parte, 0 mesmo prin­cipio deve vigorar em todo Estado bern constituidol5,mais ou menos, e verdade, segundo a forma do governo.

Acrescentemos que nao ha governo tao sujeito asguerras civis e as agita~5es intestinas quanto 0 democni­tico ou popular, porque nao existe nenhum outro quetenda tao forte e continuamente a mudar de forma, nemque demande mais vigilancia e coragem para ser manti­do em sua forma original. :E sobretudo nessa constitui~ao

que 0 cidadao deve armar-se de for~a e constancia, e di­zer em cada dia de sua vida, no fundo do cora~ao, 0 quedizia urn virtuoso palatino* na Dieta da Pol6nia: Malo pe­riculosam libertatem quam quietum servitium16.

Se houvesse urn povo de deuses, haveria de gover­nar-se democraticamente. Urn governo tao perreito naoconvem aos homens.

CAPiTULO V

Da Arlstocracia

Temos aqui duas pessoas morais muito distintas, asaber, 0 governo e 0 soberano, e, por conseguinte, duas

• 0 palatino da Posnania, pai do rei da Pol6nia, duque da Lorena.

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_ LivroIII _

vontades gerais, uma referente a todos os cidadaos, outrasomente aos membros da administra~ao.Assim, emborao governo. possa regulamentar sua pollcia interior comolhe aprouver, nunca podeni falar ao povo a nao ser emnome do soberano, isto e,em nome do pr6prio povo, 0

que jamais se deve esquecer.As primeiras sociedades se governaram aristocratica­

mente. as chefes de familias deliberavam entre si sobre osassuntos publicos. as jovens cediam facilmente a autori­dade da experiencia. Oai os nomes de padres, anciiios,senado e gerontes17

• as selvagens da America setentrionalainda se governam assim em nossos dias, e sao muito berngovernados.

Mas, amedida que a desigualdade de institui~aOl8so­brepujou a desigualdade natural, a riqueza ou 0 poder*foram preferidos a idade, e a aristocracia tornou-se eleti­va. Enftm, sendo 0 poder transmitido com os bens do paiaos filhos, ao tomar as familias patricias, tornou 0 gover­no hereditirio, e houve senadores de vinte anos.

Hi, pois, tres tipos de aristocracia: natural, eletiva ehereditiria. A primeira s6 convem a povos simples; a ter­ceira e 0 pior de todos os governos. A segunda e 0 me­lhor: e a aristocracia propriamente dita.

Alem da vantagem da distin~ao dos dois poderes,possui a da escolha de seus membros; pois no governopopular todos os cidadaos nascem magistrados, mas esteos limita a urn pequeno numero e eles s6 podem serescolhidos por elei~ao", meio pelo qual a probidade, as

• Claro esti que a palavra Dptimates, entre os antigos, nao quer dizer "osmelhores", e sim "os mais poderosos".

•• E importante regular atraves de leis a forma de elei~ao dos magistra­dos, pois, abandonando-a a vontade do principe, nao se pode evitar que sevenha a cair na aristocracia hereditaria, como sucedeu com ali repiiblicas de

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luzes, a experiencia e todas as demais razoes de prefe­rencia e de estima publica constituem outras tantas novasgarantias de que seremos sabiamente governados.

Ademais, as assembl€~ias se reunem mais comoda­mente, os neg6cios sao mais bern discutidos e executadoscom mais ordem e diligencia, 0 credito do Estado mais bernsustentado no estrangeiro por senadores veneraveis quepor uma multidao desconhecida ou desprezada.

Numa palavra, a ordem melhor e mais natural e queos mais sabios governem a multidao, quando se tern certe­za de que a governarao em beneficio dela, e nao em pro­veito pr6prio; nao e preciso multiplicar em VaG os recur­sos, nem fazer com vinte mil homens 0 que cern homensescolhidos podem fazer ainda melhor. Cumpre notar, po­rem, que 0 interesse de corpo, nesse caso, come~a a diri­gir menos a for~a publica, segundo a regra da vontadegeral, e que outra propensao inevitivel retira das leis partedo poder executivo.

No tocante as conveniencias particulares, nao se re­quer nem urn Estado tao pequeno nem urn povo tao sim­ples e tao rete para que a execu~o das leis decorra imedia­tamente da vontade publica, como numa boa democracia.Nao convem, tampouco, uma na~o tao grande que os che­fes, dispersos para governa-Ia, possam passar por sobera­no, cada qual em seu departamento, e come~ar a tornar-seindependentes e converter-se, enflm, em senhores.

Mas, se a aristocracia exige menos virtudes que 0 go­verno popular, exige tambem algumas que the sao pr6-

Veneza e Berna. Com efeito, a primeira e ha muito tempo urn Estado dissolvi­do, enquanto a segunda se mantem em virtude da extrema sabedoria de seuSenado - exce~ao muito honrosa e perigosa.

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_ LtvroIII _

prias, como a modera~ao dos ricos e 0 contentamento dospobres; pois parece que nela uma igualdade rigorosa es­taria deslocada: nem mesmo Esparta a observou.

De resto, se essa forma comporta certa desigualdadede fortuna, e para que, em geral, a administra~ao dos ne­g6cios publicos seja confiada aos que podem dedicar-Ihetodo 0 seu tempo, mas nao, como pretende Arist6teles,para que os ricos sejam sempre preferidos. Ao contrario,importa que uma escolha oposta ensine as vezes ao povoque ha, no merito dos homens, razoes de preferenciamais importantes que a riqueza.

CAPITULO VI

Da Monarquia 19

Ate aqui consideramos 0 principe como pessoa mo­ral e coletiva, unida pela for~a das leis e depositaria, noEstado, do poder executivo. Temos agora de consideraresse poder reunido nas maos de uma pessoa natural, deurn homem real, que sozinho tenha 0 direito de dispordele segundo as leis. E0 que se denomina urn monarcaou urn rei.

Contrariamente as outras administra~oes, em que urnser coletivo representa urn individuo, nesta urn individuorepresenta urn ser coletivo, de sorte que a unidade moralque constitui 0 principe e ao mesmo tempo uma unidadefisica, na qual todas as faculdades que a lei reune no outrocom tantos esfor~os se acham naturalmente reunidas.

Assim, a vontade do povo, a do principe, a for~a

publica do Estado e a for~a particular do governo respon­dem todas ao mesmo m6ve!. Todos os recursas da maqui-

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na estao nas mesmas maos, tudo caminha para 0 mesmofim; nao ha movimentos opostos que se destruam recipro­camente, e nao se pode imaginar nenhum tipo de consti­tui~ao em que urn menor esfor~o produza a~ao mais con­sideravel. Arquimedes, sentado tranqiiilamente na praia esirgando sem trabalho urn grande navio, representa, ameu ver, urn monarca habil governando do pr6prio gabi­nete seus vastos Estados e fazendo tudo mover-se, apa­rentando estar im6vel.

No entanto, se nao existe governo que possua maisvigor, tambem nao ha outro em que a vontade particulartenha mais imperio e domine mais facilmente as demais.Tudo caminha para 0 mesmo fim, e certo, mas este estalonge de ser 0 da felicidade publica, e a pr6pria for~a daadministra~ao reverte incessantemente em prejuizo doEstado.

as reis querem ser absolutos, e de longe lhes brada­mos que a melhor forma de 0 serem consiste em se faze­rem amar por seus povos. Essa maxima e muito bonita eate verdadeira em certos sentidos. Infelizmente, semprezombarao dela nas cortes. a poder decorrente do amordos povos e sem duvida 0 maior, porem precario e con­dicional; os principes nunca se contentarao com ele. asmelhores reis querem ser maus quando isto lhes apetece,sem deixar de ser os senhores. Por mais que urn prega­dor politico se esforce em dizer-Ihes que, sendo a for~a

do povo a sua, 0 maior interesse deles e que 0 povo sejaflorescente, numeroso, temivel, sabem perfeitamente queisso nao e verdade. Seu interesse pessoal e, antes detudo, que 0 povo seja fraea, miseravel, e jamais the possaresistir. Reconhe~o que, supondo os suditos sempre intei­ramente submissos, 0 interesse do principe seria entao

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que 0 povo fosse poderoso, a fim de que, sendo essepoder 0 seu, 0 tornasse temido por seus vizinhos; mas,como esse interesse e apenas secundario e subordinado,e as duas suposi~6es incompativeis, e natural que os prin­cipes deem sempre preferencia amaxima que lhes e maisimediatamente util. E 0 que Samuepo expos, com vigor,aos hebreus; e 0 que Maquiavel fez ver com evidenc1a.Fingindo dar li~6es aos reis, deu-as, e grandes, aos povos.oprincipe de Maquiavel e 0 livro dos republicanos*21.

Vimos, atraves das rela~6es gerais, que a monarquias6 convem aos grandes Estados, e 0 veremos ainda ao exa­mina-Ia em si mesma. Quanto mais numerosa e a adminis­tra~ao publica, mais a rela~ao entre 0 principe e os suditosdiminui e se aproxima da igualdade, de modo que essarela~ao e uma ou a pr6pria igualdade na democracia. Essamesma rela~ao aumenta a medida que 0 governo se res­tringe e atinge seu ponto mciximo quando 0 govemo estcinas maos de uma unica pessoa..Ha enta~ uma distanciaenorme entre 0 principe e 0 povo, e 0 Estado carece deliga~ao. Para forma-la, sao necessarias ordens intermedia­rias: precisa-se dos principes, dos grandes e da nobrezapara representci-Ias. Ora, nl1da disso convem a urn peque­no Estado, pois todos esses escal6es 0 arruinam.

Mas, se e difkil que urn grande Estado seja bern go­vernado, mais difkil ainda e se-Io por urn unico homem,

• Maquiavel era um bomem bonrado e um bom cidadiio, mas, ligado iicasa dos Medicis, via-se obrigado, diante da opressiio de sua patria, a dissimu­lar seu amor pela liberdade. A simples escolba de seu execravel ber6i deixamanifesta sua inten{:iio secreta, e a oposi{:iio dos preceitos de seu livro 0principe aos de seus discursos sobre Tito Livio e de sua bist6ria de Floren{:ademonstra que esse politico profundo s6 teve ate aqui leitores superficiais oucorrompidos A corte de Roma proibiu severamente 0 seu livro, creio. E essacorte que ele descreve mais claramente. [Nota acrescentada Ii edi~ao de 1782.]

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e todos sabemos 0 que acontece quando 0 rei nomeiasubstitutos22

Urn defeito essencial e inevitivel, que sempre coloca­ra 0 govemo monarquico abaixo do republicano, e queneste 0 voto publico quase sempre eleva aos primeirospostos apenas homens esclarecidos e capazes, que ospreenchem honrosamente, enquanto os que chegam ae1es nas monarquias nao passam, 0 mais das vezes, de tra­paceiros, velhacos e intrigantes, cujos talentos diminutos,que nas cortes permitem ascender aos postos mais eleva­dos, s6 servem para mostrar publicamente sua inepcia taologo chegam a eles. a povo se engana bern menos nessaescolha que 0 principe, e urn homem de verdadeiro meri­to e quase tao raro no ministerio como urn tolo a testa deurn govemo republican023 • Assim, quando por urn felizacaso urn desses homens nascidos para govemar toma 0timao dos neg6cios numa monarquia quase arruinada paressa profusao de politiqueiros, ficamos surpresos com osrecursos que ele encontra, e isso marca epoca na hist6riade urn pais24

Para que urn Estado monarquico pudesse ser berngovemado, seria necessario que sua grandeza ou sua ex­tensao fosse proporcional as faculdades de quem gover­na. Emais facil conquistar que reger. Com uma alavancaadequada, com urn dedo pode-se abalar 0 mundo; mas,para sustenta-Io, sao necessarios os ombros de Hercules.Por pouco que urn Estado seja grande, 0 principe e quasesempre demasiado pequeno. Quando, ao contrario, 0Estado e muito pequeno para seu chefe, 0 que e bastan­te raro, ainda assim e mal govemado, porque 0 chefe,seguindo sempre a grandeza de seus alvos, esquece osinteresses dos povos e nao os toma menos infelizes pelo

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abuso do excesso de talento que urn chefe limitado porcarecer desse mesmo talento. Seria preciso, por assim di­zer, que urn reino se expandisse ou se contraisse a cadareinado, segundo a capacidade do principe; ao passo queos talentos de urn Senado, tendo medidas mais fixas,podem determinar constantes limita~6es ao Estado semprejudicar a administra~ao.

a inconveniente mais sensivel do govemo de umas6 pessoa e a falta dessa sucessao continua que formanos dois outros uma liga~ao ininterrupta. Morto urn rei, epreciso outro; as elei~6es abrem intervalos perigosos; saotempestuosas e, a menos que os cidadaos sejam de urndesinteresse, de uma integridade que esse govemo naocomporta, as disputas e a corrup~ao nao se fazem espe­rar. E dificil que aquele a quem se vendeu 0 Estado naoo venda por sua vez e nao se indenize a custa dos fracosdo dinheiro que os poderosos the extorquiram. Maiscedo ou mais tarde, tudo se toma venal em tal adminis­tra~ao, e a paz que se goza entao sob os reis e pior quea desordem nos interregnos.

Que se fez para impedir tais males? Pez-se com queas coroas se tomassem hereditarias em certas famHias, eestabeleceu-se uma ordem de sucessao que evita qual­quer disputa amorte dos reis. au seja, substituindo 0 in­conveniente das elei~6es pelo das regencias, preferiu-seuma aparente tranquilidade a uma administra~ao sabia,preferindo-se correr 0 risco de ter por chefes crian~as,

monstros ou imbecis a disputar a elei~ao de bons reis;nao se considerou que, expondo-se assim aos riscos daaltemativa, coloca-se contra si quase todas as possibilida­des. Poi uma frase muito sensata a do jovem Dionisio, aquem seu pai, censurando-Ihe uma a~ao vergonhosa, dis-

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se: "Dei-te eu esse exemplo?" "Ah!", respondeu 0 mho,"vosso pai nao era rei!"25

Tudo concorre para privar de justi~a e de razao urnhomem educado para mandar nos outros. Emuito traba­lhoso, ao que se diz, ensinar aos jovens principes a arte dereinar; nao parece que essa educa~ao lhes traga proveito.Melhor seria come~ar por ensinar-lhes a arte de obedecer.Os maiores reis que a Hist6ria celebra nao foram educa­dos para reinar; esta e uma ciencia que nunca se possuimenos do que depois de te-la aprendido demais, e que seadquire melhor obedecendo que mandando. Nam utilissi­mus idem ac brevissimus banarum malarumque rerumdelectus, cagitare qUid aut nalueris sub alia Principe autvolueris*26.

Urn dos resultados dessa falta de coerencia e a incons­mncia do govemo real que, baseando-se ora num plano,ora noutro, segundo 0 carater do principe reinante ou daspessoas que reinam por ele, nao pode ter por muito tempourn objetivo f1XO nem uma conduta consequente. Essa va­ria~ao leva sempre 0 Estado a flutuar de maxima em maxi­ma, de projeto em projeto, 0 que nao ocorre nos outros go­vemos em que 0 principe e sempre 0 mesmo. Assim, ve­se que, em geral, se ha mais asrucia numa corte, ha maissabedoria num Senado, e que as republicas atingem seusfins por vias mais constantes e mais frequentadas, enquan­to cada revolu~ao no ministerio produz outra no Estado; arruixima comum a todos os ministros, e a quase todos osreis, e tomar em todos os assuntos posi~ao contraria adeseu antecessor.

Dessa mesma incoerencia se extrai ainda a solu~ad7

de urn soflSma muito familiar aos politicos reais28: nao ape-

• Tacita: Hist., 1. I.

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nas comparar 0 governo civil ao governo domestico e 0

principe ao pai de familia, erro ja refutado, mas aindaatribuir liberalmente a esse magistrado todas as virtudesde que ele tern necessidade e supor sempre que 0 prin­cipe e 0 que deveria ser. Com base nessa suposi~ao, 0 go­verno real e evidentemente preferivel a qualquer outro,porque e incontestavelmente 0 mais forte e, para ser tam­bern 0 melhor, nao the falta senao uma vontade de corpomais de acordo com a vontade geral.

Se, porem, segundo Platao*, 0 rei e por natureza umapersonagem tao rara, quantas vezes a natureza e a fortu­na contribuirao para coroa-lo, e se a educa~ao real corrom­pe necessariamente os que a recebem, que se deve espe­rar de urn sequito de homens educados para reinar? Equerer iludir-se, pois, confundir 0 governo real com 0 deurn born rei. Para ver 0 que e esse governo em si mesmo,cumpre considera-Io sob 0 mando de principes limitadosou perversos, porque como tais chegarao ao trono, ou 0

trono os tomara tais.Essas dificuldades nao escaparam a nossos autores29,

porem eles nao se deixaram embara~ar. 0 remedio e, di­zem eles, obedecer sem murmurar. Deus da os maus reisem sua c6lera, e devemos suporta-los como castigos doceu. Esse discurso e edificante, por certo; mas nao sei senao conviria mais ao pulpito que a urn livro de politica.Que dizer de urn medico que promete milagres, mas cujaarte se resume a exortar 0 doente a paciencia? Sabemosque e preciso suportar urn mau governo quando 0 temos;a questao est<! em encontrar urn born.

• In Ovi/i.

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CAPITULO VII

Dos Governos Mistos

Para ser exato, nao existe governo simples. Eneces­sario que urn chefe unico tenha magistrados subalternos;e necessario que urn governo popular tenha urn chefe.Assim, na divisao do poder executive ha sempre grada­~ao do grande para 0 pequeno numero, com a diferen~a

de que ora 0 grande numero depende do pequeno, ora eo pequeno que depende do grande.

As vezes ha partilha igual, quer quando as partesconstitutivas estao em mutua dependencia, como no go­verno da Inglaterra, quer quando a autoridade de cada par­te e independente mas imperfeita, como na Pol6nia. Estaultima forma e rna porque nao existe unidade no gover­no e porque 0 Estado carece de coesao.

Qual sera melhor, urn governo simples ou urn gover­no misto? Questao muito debatida entre os politicos e aqual se deve dar a mesma resposta que dei mais atrassobre todas as formas de governo.

o governo simples e 0 melhor em si, pelo unico fatode ser simples. Quando, porem, 0 poder executive naodepende muito do legislativo, isto e, quando ha mais rela­~ao entre 0 principe e 0 soberano do que entre 0 povo eo principe, deve-se remediar essa falta de propor~ao divi­dindo-se 0 governo; porque, enta~, todas as suas partesnao tern menos autoridade sobre os suditos, e a divisaodelas as torna, em seu conjunto, menos fortes contra 0

soberano.Evita-se ainda 0 mesmo inconveniente estabelecen­

do magistrados intermediarios que, deixando integro 0

governo, servem somente para equilibrar os dois poderes

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e manter seus respectivos direitos. Entao 0 governo naoe misto, mas temperado.

Pode-se remediar por meios semelhantes 0 inconve­niente oposto e, quando 0 governo e muito frouxo, erigirtribunais para concentra-Io. Isto se pratica em todas as de­mocracias. No primeiro caso, divide-se 0 governo paraenfraquece-Io, no segundo para fortalece-Io; porque 0

maximo de for~a e de fraqueza se encontra igualmentenos governos simples, ao passe que as formas mistasconferem uma for~a media.

CAPITULO VIII

Nem Toda Forma de GovernoConvem a TotIos os Paises

Nao sendo urn fruto de tooos os dimas, a liberdadenao esta ao alcance de todos os povos. Quanto mais me­ditarmos nesse principio estabelecido por Montesquieu,tanto mais the sentimos a veracidade. Quanto mais 0 contes­tamos, mais ocasioes the damos de estabelecer-se atravesde novas provas30•

Em todos os governos do mundo, a pessoa publicaconsome e nada produz. De onde vern, entao, a subsran­cia consumida? Do trabalho de seus membros. E0 super­fluo dos particulares que produz 0 necessario do publico.Donde se segue que 0 estado civil s6 pode subsistir en­quanta 0 trabalho dos homens rende acima de suas ne­cessidades.

Ora, esse excedente nao e 0 mesmo em todos os pai­ses do mundo. Em muitos ele e consideravel, em outrosmediocre, em outros nulo, em outros, ainda, negativo.

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Essa rela~ao depende da fertilidade do clima, do tipo detrabalho exigido pelo solo, da natureza de suas produ­~6es, da for~a de seus habitantes, do maior ou menorconsumo que lhes e necessario e de varias outras rela­~6es semelhantes de que se comp6e cada pais.

Por outro lado, nem todos os governos possuem amesma natureza; ha-os com maior ou menor voracidade,e as diferen~as assentam neste outro principio: quanto maisas contribui~6es publicas se afastam de sua fonte, tantomais onerosas se tornam. Nao e peIa quantidade das im­posi~6es que se deve medir esse onus, mas pelo caminhoque elas precisam percorrer para regressar as maos deque sairam; quando essa circula~ao e pronta e bern esta­belecida, que se pague pouco ou mUito, nao importa; 0

povo e sempre rico e as finan~as vao sempre bern. Quan­do, ao contrario, por pouco que 0 povo contribua, essepouco nao the retorna as maos, ao contribuir sempre elese esgota com rapidez; 0 Estado nunca sera rico, e 0 povosera sempre indigente.

Segue-se que quanto maior e a distancia entre 0 po­vo e 0 governo, mais onerosos se tornam os tributos; assim,na democracia, 0 povo e 0 menos sobrecarregado, na aris­tocracia e 0 mais e na monarquia suporta 0 maior peso.A monarquia, portanto, s6 convem as na~6es.opulentas;a aristocracia, aos Estados mediocres tanto em riquezacomo em extensao; e a democracia aos Estados peque­nos e pobres.

De fato, quanto mais refletimos sobre isso, mais dife­ren~a encontramos entre os Estados livres e os monarqui­cos: nos primeiros, tudo se emprega para a utilidadecomum; nos segundos, as for~as publicas e particularessao reciprocas, e uma aumenta peIo enfraquecimento da

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outra. Finalmente, em vez de governar os suditos paratorna-los felizes, 0 despotismo os converte em miseraveispara governa-los.

Eis,. portanto, em cada clima, causas naturais que per­mitem indicar a forma de governo a qual a for~a do climaconduz, e mesmo dizer que especie de habitantes deveter. Os sitios ingratos e estereis, onde 0 produto nao valeo trabalho requerido, devem permanecer incultos e deser­tos, ou povoados unicamente por selvagens. Os sitios emque 0 trabalho dos homens s6 produz 0 estritamentenecessario devem ser habitados por povos barbaros, poisqualquer politict1 ai seria impossivel; as regi6es em que 0

excesso do produto sobre 0 trabalho e medio convem aospovos livres; aqueles em que 0 solo abundante e fertil for­nece muito produto para pouco trabalho querem ser go­vernados monarquicamente, para consumir pelo luxo doprincipe 0 excesso de superfluo dos suditos; pois e me­lhor que esse excesso seja absorvido pelo governo quedissipado pelos particulares. Existem exce~6es, bern sei;mas tais exce~6es s6 fazem confirmar a regra, porquemais cedo ou mais tarde produzem revolu~6es quereconduzem as coisas a ordem natural.

Distingamos sempre as leis gerais das causas particula­res que podem modificar-lhes 0 efeito. Mesmo que todo 0

SuI estivesse coberto de republicas e todo 0 Norte deEstados desp6ticos, nao seria menos certo que, por efeitodo clima, 0 despotismo convem aos paises quentes, a bar­barie aos frios e a boa politia as regi6es intermediarias.Vejo ainda que, admitindo 0 principio, poderemos discu­tir sobre a aplica~ao: poderemos dizer que ha paises friosmuito ferteis e paises meridionais muito ingratos. Poremessa dificuldade s6 existe para os que nao examinam a

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coisa em todas as suas rela~6es. Epreciso, como ja disse,considerar as re1a~6es de trabalho, de for~as, de consu­mo, etc.

Suponhamos que, de dois terrenos iguais, urn produ­za cinco e 0 outro dez. Se os habitantes do primeiro con­somem quatro e os do segundo nove, 0 excesso do pri­meiro produto sera 1/5 e 0 do segundo 1/10. Sendo, pois,a rela~ao desses dois excessos inversa ados produtos, 0

terreno que produzir apenas cinco dara 0 dobro do su­perfluo daque1e que produzir dez.

Mas nao se trata de urn produto em dobro, e creioque ninguem ousa, em geral, p6r a fertilidade dos paisesfrios em situa~ao de igualdade com ados paises quentes.Todavia, suponhamos essa igualdade; deixemos, se assimse quiser, em equilibrio a Inglaterra com a Sicilia, e a Po­Ionia com 0 Egito. Mais ao suI teremos a Africa e a India,mais ao norte nada mais teremos. Para essa igualdade deproduto, que diferen~a na cultural Na Sicilia basta arra­nhar 0 solo; nao Inglaterra, quantos, cuidados para ama­nha-lo! Ora, la onde se requer maior numero de bra~os

para dar 0 mesmo produto, 0 superfluo deve ser necessa­riamente menor.

Considerai, alem disso, que a mesma quantidade dehomens consome muito menos nos paises quentes. 0dima exige que sejamos s6brios para nos sentirmos bern:os europeus que querem viver ali como se estivessem emseus pr6prios paises morrem todos de disenteria e indi­gest6es. "Somos", diz Chardin32 , "animais carniceiros, 10­bos, em compara~ao com os asiaticos. Alguns atribuem asobriedade dos persas a circunstancia de seu pais sermenos cultivado; creio, ao contrario, que 0 pais e menosabundante em generos porque seus habitantes tern me-

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nos necessidade de1es. Se sua frugalidade", continua e1e,"fosse urn efeito de penuria do pais, s6 os pobres come­riam pouco, enquanto tal acontece geralmente com todomundo, e comer-se-ia mais ou menos em cada provinciasegundo a fertilidade da terra, ao passe que a mesma so­briedade se encontra por todo 0 reino. Os persas se ga­bam de sua maneira de viver, dizendo que basta olharsua tez para reconhecer como e1a e mais excelente que ados cristaos. De fato, a tez dos persas e lisa; tern a pe1ebonita, fma e lustrosa, enquanto os armenios, seus suditos,que vivem a maneira europeia, a tern rude, avermelhada,e seus corpos sao gordos e pesados."

Quanto mais se aproximam do equador, de menosnecessitam os povos para viver. Quase nao comem came;o arroz 0 milho, 0 cuscuz, 0 milhete, a broa de mandioca, ,sao seus alimentos mais comuns. Existem na India mi-Ih6es de homens cuja alimenta~ao nao custa urn soldo pordia. Nao propria Europa, vemos diferen~s sensiveis, notocante ao apetite, entre os povos do Norte e os do SuI.Urn espanhol vivera oito dias com 0 jantar de urn alemao.Nos paises em que os homens sao mais vorazes, 0 luxese volta tambem para as coisas de consumo. Na Ingla­terra, mostra-se numa mesa carregada de carnes; na It:ilia,seremos regalados com a~ucar e flores.

o luxe dos vestuarios tambem oferece diferen~as se­melhantes. Nos dimas em que as mudan~as das esta~6es

sao rapidas e violentas, usam-se roupas melhores e maissimples; naque1es em que as pessoas se vestem apenaspara enfeitar-se, busca-se mais a be1eza que a utilidade;os pr6prios trajes sao ai urn luxo. Em Napoles, vereis to­dos os dias passear no Posilipo homens em casacos dou­rados e sem meias. 0 mesmo sucede com as constru~6es;

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tudo se concede a magnificencia quando nada se tern atemer dos danos do ar. Em Paris, em Londres, quer-seestar calida e comodamente alojado. Em Madri, ha sal5essoberbos, mas nenhuma janeIa que feche, e dorme-se emninhos de ratos.

Os alimentos sao muito mais substanciosos e sucu­lentos nos paises quentes; esta e uma terceira diferen~a

que nao pode deixar de influir sobre a segunda. Par quese comem tantos legumes na Italia? Porque ali sao exce­lentes, nutritivos e saborosos. Na Fran~a, onde sao ali­mentados apenas de agua, nao tern nenhum valor nutri­tivo e quase podem ser dispensados na mesa. Nao ocu­pam, no entanto, menos terreno e exigem peIo menos 0mesmo trabalho para serem cultivados. Sabe-se, porexperiencia, que os trigos de Barbaria, alias inferiores aosda Fran~a, rendem muito mais em farinha, e que os daFran~a, por sua vez, rendem mais que os trigos do Norte.Donde se pode conc1uir que semeIhante grada~ao seobserva geralmente na mesma dire~ao do equador aop610. Ora, nao constitui uma visivel desvantagem ter emigual produto uma menor quantidade de alimento?

A todas essas diversas considera~5es posso acrescen­tar uma que delas decorre e as refor~a: a de que os paisesquentes tern menos necessidade de habitantes que os pai­ses frios, e poderiam alimenta-Ios por mais tempo, 0 queproduz urn duplo superfluo, sempre em beneficio do des­potismo. Quanto mais extensa e uma superficie ocupadapelo mesmo numero de habitantes, mais difkeis se tor­nam as revoltas, porque nao se podem combina-Ias nemrapida nem secretamente, e sempre e facil para 0 gover­no descobrir as conspira~5es e cortar as comunica~5es;

mas, quanto mais pr6ximo se encontra urn povo numero-

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so, menos 0 governo pode usurpar 0 soberano; os che­fes33 deliberam tao seguramente em seus quartos quantoo principe em seu conselho, e a multidao se reune com amesma facilidade nas pra~as que as tropas no quartel. Avantagem de urn governo tiranico e, pois, a de agir a gran­des distancias. Com 0 auxilio dos pontos de apoio de quedisp5e, sua for~a aumenta ao longe como a das alavancas·.A do povo, ao contrario, s6 atua quando concentrada: eva­pora-se e se perde ao estender-se, como 0 efeito da p6lva­ra espalhada pelo chao, que s6 se inflama grao por grao.as paises menos povoados sao assim os que mais convematirania: os animais ferozes s6 reinam nos desertos.

CAPITULO IX

Dos lndfcios de um Bam Governo

Quando, pois, se pergunta em carater absoluto quale 0 melhor governo, levanta-se uma questao insoluvel eindeterminada; ou, em outras palavras, que possui tantasboas solu~5es quantas combina~5es posslveis nas posi­~5es absolutas e relativas dos povos.

Se, porem, se perguntasse por quais indicios se podeconhecer que urn determinado povo e bern ou mal go­vernado, seria outra coisa, e a questao de fato poderia serresolvida.

• Isso nao contradiz 0 que afirmei anteriormente CLivro II, cap. IX) sobreos inconvenientes dos grandes Estados, porque ali se tratava da autoridade dogoverno sobre seus membros, enquanto aqui se trata de sua for~a contra ossuditos. Os membros esparsos the servem de pontos de apoio para atuar delonge sobre 0 povo, mas nao disp6e ele de nenhum ponto de apoio paraatuar diretamente sobre esses mesmos membros. Assim, num dos casos 0

comprimento da alavanca faz a sua fraqueza, e no outro a sua for~a.

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E, no entanto, de modo algum a resolvemos, porquecada qual pretende resolve-Ia a sua maneira. Os suditosenaltecem a tranquilidade publica, os cidadaos a liberda­de dos particulares; um prefere a seguran~a das posses,outro a das pessoas; um quer que 0 melhor govemo sejao mais severo, outro sustenta que e 0 mais suave; este querque se punam os crimes, aquele e de opiniao que se devepreveni-Ios; um acha que se deve ser temido pelos vizi­nhos, outro prefere ser ignorado por eles; um fica con­tente quando 0 dinheiro circula, outro exige que 0 povotenha pao. Mesmo que houvesse acordo sobre esses pon­tos e outros semelhantes, teriamos avan~ado mais? Fal­tando a medida precisa as quantidades morais, muito em­bora se concorde quanto ao indicio, como faze-Io quantoa aprecia~ao?

Quanto a mim, sempre estranhei que se desconhe~a

um indicio tao simples ou que se tenha a ma fe de naoconcordar com ele. Qual a finalidade da associa~ao poli­tica? Ea conserva~ao e a prosperidade de seus membros.Equal 0 indicio mais seguro de que eles se conservam eprosperam? Seu numero e popula~o. Nao procureis, pois,alhures esse indicio tao discutido. Sendo todas as coisasiguais, 0 govemo sob 0 qual, sem meios estranhos, semnaturaliza~ao, sem colonias, os cidadaos habitam e se mul­tiplicam mais e infalivelmente 0 melhor; aquele sob 0

qual um povo diminui e desaparece e 0 pior. Calculado­res, a tarefa agora evossa: contai, medi, comparai*.

• Pelo mesmo principio se devem julgar os seculos que merecem a pre­ferencia pela prosperidade do genero humano. Muito admirados foramaqueles em que se viu florescer as letras e as artes, sem que se penetrasseno objeto secreto de sua cultura, sem que se considerasse seu funesto efei­to, idque apud imperitos humanitas vocabatur, cum pars servitutis esset".

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CAPITULO X

Do Abuso do Governoe de Sua Tendencia a Degenerar

Assim como a vontade particular atua incessantemen­te contra a vontade geral, assim 0 govemo se esfor~a con­tinuamente contra a soberania. Quanto mais aumenta esseesfor~o, mais se altera a constitui~ao e, como nao ha aquioutra vontade de corpo que, resistindo a do principe, fa~a

equilibrio com ela, mais cedo ou mais tarde deveca 0 prin­cipe, enfim, oprimir 0 soberano e romper 0 tratado social.Este e 0 vicio inerente e inevit<1vel que desde 0 nascimen­to do corpo politico tende sem tregua a destrui-Io, tal co­mo a velhice e a morte destroem 0 corpo do homem.

Sera que veremos urn dia, nas maximas dos livros, 0 interesse grosseiro queleva os autores a falar? Nao, digam eles 0 que disserem, quando, sem embar­go de seu brilho, urn pais se despovoa, nao e verdade que tudo esteja indobern, e nao basta que urn poeta tenha cern libras de renda para que seu seculoseja 0 melhor de todos. Deve-se atender menos ao repouso aparente e a tran­qiiilidade dos chefes que ao bem-estar das na~oes em seu conjunto, mormen­te dos Estados mais numerosos. 0 granizo desola alguns cantoes, mas rara­mente ocasiona a penuria. Os motins, as guerras civis muito assustam os che­fes, porem nao sao responsaveis pelas verdadeiras desgra~as dos povos, quepodem ate gozar de uma certa tranqiiilidade enquanto combatem aqueles queos tiranizam. Ede seu estado permanente que nascem suas prosperidades ousuas calamidades reais. Quando tudo e esmagado sob 0 jugo, e enta~ que tu­do deperece, e os chefes tudo destroem a seu bel-prazer, ubi solitudinemja­ciunt, pacem appellant". Quando as intrigas dos grandes agitavam 0 reino deFran~a e 0 coadjutor de Paris levava ao Parlamento urn punhal no bolso, issonao impedia que 0 povo frances vivesse feliz e numeroso em sua honesta elivre abastan~. Antigamente, a Grecia florescia em meio as guerras mais crueis;o sangue corria ali aos borbot5es, mas todo 0 pais estava povoado. Parecia,diz Maquiavel36, que em meio aos assassinios, as proscri~5es e as guerras civis,nossa republica se tornava mais poderosa. A virtude de seus cidadaos, seuscostumes, sua independencia contribuiam mais para fortalece-la que todas asdissens5es para debilita-la. Urn pouco de agita~aoda mais energia as almas, eo que leva realmente a especie a prosperar e menos a paz que a liberdade.

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Ha duas vias gerais pelas quais urn governo degene­ra, a saber: quando se restringe ou quando 0 Estado se dis-solve. .

o governo se restringe quando passa do grande parao pequeno mlmero, ou seja, da democracia para a aristo­cracia, e da aristocracia para a realeza. Ai esta sua inc1ina­~ao natural*. Se retrocedesse do pequeno para 0 grande

• A lenta forma\;ao e 0 progresso da Republica de Veneza em suas lagu­nas oferecern notavel exemplo dessa sucessao; e e surpreendente que, depoisde mais de mil e duzentos anos, os venezianos pare\;am estar ainda no segun­do termo, 0 qual come\;ou no Serrar di consiglio" em 1198. Quanto aos anti­gos duques, que sejam censurados, nao importa 0 que possa dizer 0 squitiniodella liberta veneta", mas esta provado que nao foram seus soberanos.

Nao deixarao de me objetar que a Republica romana seguiu, segundodirao, urn progresso totalmente contr:irio, passando da monarquia ii aristocra­cia, e da aristocracia, ii democracia. Estou bern longe de pensar assim.

o primeiro estabelecimento de Romulo foi urn governo misto que dege­nerou prontamente em despotismo. Por causas particulares 0 Estado pereceuantes do tempo, como se ve morrer urn recem-nascido antes de atingir a idadeadulta. A expulsao dos Tarqiiinios foi a verdadeira epoca do nascimento daRepublica, mas esta nao teve, de inicio, uma forma constante, porque a obrafoi feita apenas pela metade, nao se abolindo 0 patriciado. Desse modo, aaristocracia hereditaria, que e a pior das administra\;oes legitimas, permaneceuem conflito com a democracia, e a forma do governo, sempre incerta e flu­tuante, nao foi fixada, como 0 provou Maquiavel, senao quando do estabele­cimento dos tribunos. 56 entiio houve urn verdadeiro governo e uma verda­deira democracia. De fato, 0 povo, entao, era nao somente soberano comotambem magistrado e juiz, 0 5enado nao passava de urn tribunal subordina­do, incumbido de moderar ou concentrar 0 governo, e os pr6prios consules,embora patricios e primeiros magistrados, embora generais absolutos na guer­ra, eram em Roma apenas os presidentes do povo.

Logo, viu-se tambem 0 governo seguir seu pendor natural e tender for­temente para a aristocracia. Abolindo-se 0 patriciado como que por si mesmo,a aristocracia passou a residir nao mais no corpo dos patricios, como ocorreem Veneza e Genova, mas no corpo do 5enado, composto de patricios e ple­beus, ou mesmo no corpo dos tribunos, quando estes come\;aram a usurparurn poder ativo; de resto, as palavras nao mudam em nada as coisas, e quan­do 0 povo tern chefes que governam por ele, seja qual for 0 nome quetenham esses chefes, constituem sempre uma aristocracia.

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_ Livro IlI _

numero, poderiamos dizer que se afrouxa, mas esse pro­gress039 em sentido inverso e impossive!.

Urn governo, com efeito, s6 muda de forma quandosua mola, desprovida de elasticidade, 0 deixa excessiva­mente enfraquecido para poder conservar sua forma. Ora,se ela, esticando-se, se afrouxasse ainda mais, sua for~a setornaria totalmente nula e nao poderia subsistir. Epreci­so, pois, refor~ar e comprimir a mola a medida que estacede; do contcirio, 0 Estado que e1a sustenta tombaria emminas.

o caso da dissolu~aodo Estado pode ocorrer de duasmaneiras.

Primeiro, quando 0 principe ja nao administra 0 Es­tado de acordo com as leis e usurpa 0 poder soberano.Da-se entao uma mudan~a noravel: e que, nao 0 governo,mas 0 Estado se restringe; quero dizer que 0 grande Esta­do se dissolve e que se forma outro dentro dele, compos­to somente dos membros do governo e que nada mais e,em rela~ao ao resto do povo, senao 0 senhor e 0 tirano.De modo que, no momenta em que 0 governo usurpa asoberania, rompe-se 0 pacto social e todos os simples ci­dadaos, reintegrados de direito em sua liberdade natural,sao for~ados, mas nao obrigados, a obedecer.

o mesmo caso sobrevem quando os membros dogoverno usurpam separadamente 0 poder que s6 devemexercer em conjunto, 0 que nao constitui menor infra~ao

das leis e produz uma desordem ainqa maior. Temosentao, por assim dizer, tantos principes quantos magistra-

Do abuso da aristocracia nasceram as guerras civis e 0 triunvirato. 5ila,JUlio Cesar, Augusto tornaram-se de fato verdadeiros monarcas e, finalmente,sob 0 despotismo de Tiberio, 0 Estado foi dissolvido. A hist6ria romana naodesmente, portanto, 0 meu principio, antes 0 confirma.

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_________ 0 Contrato Social _

dos, e 0 Estado, nao menos dividido que 0 govemo, pe­rece ou muda de forma.

Quando 0 Estado se dissolve, 0 abuso do govemo, sejaele qual for, toma 0 nome comum de anarquia. Esta­belec;amos a distinc;ao: a democracia degenera em oelo­cracia40, a aristocracia em oligarquiaj acrescentaria que arealeza degenera em tirania, mas esta palavra e equivo­ca e requer explicac;ao.

Na acepc;ao vulgar, 0 tirano e urn rei que govemacom vioH~ncia e sem atender a justic;a e as leis. Em suaacepc;ao precisa, 0 tirano e urn particular que se arroga aautoridade real, sem aela ter direito. Assim os gregos en­tendiam a palavra tirano; aplicavam-na indistintamenteaos bons ou maus principes cuja autoridade nao era legi­tirna·. Desse modo, tirano e usurpadorsao duas palavrasperfeitamente sinonimas. Para dar diferentes nomes a di­ferentes coisas, chamo tirano ao usurpador da autorida­de real, e despota ao usurpador do poder soberano. 0tirano e aquele que decide, contra as leis, govemar segun­do as leis; 0 despota e aquele que se poe acima das pr6­prias leis. Assim, 0 tirano pode nao ser despota, mas 0

despota e sempre tirano.

• Omnes enim et habenturet dicuntur Tyranni quipotestate utunturper­petua, in ea Civitate que lihertate usa est", Corn. Nep., in Miltiad. Everdadeque Arist6teles, Mor. de Nicom., 1. VIII, c. 10, distingue 0 tirano do rei, nissoem que 0 primeiro governa em proveito pr6prio e 0 segundo somente emproveito de seus suditos; mas alem de que todos os autores gregos tomaramem geral a palavra tirano em outro sentido, como se pode ver sobretudo noHieron de Xenofonte", da distin\;iio de Arist6teles concluia-se que desde 0

come\;o do mundo ainda niio teria existido urn s6 rei.

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___________LtvroIII _

CAPITULO XI

Do. Morte do Corpo Polttico

Tal e a tendencia natural e inevitavel dos govemosmais bern constituidos. Se Esparta e Roma pereceram, queEstado pode esperar durar para sempre? Se queremos for­mar urn estabelecimento duradouro, nao pensemos jamaisem toma-lo etemo. Para sermos bem-sucedidos, nao de­vemos tentar 0 impossivel, nem vangloriarmo-nos de dara obra dos homens uma solidez que as coisas humanasnao comportam.

o corpo politico, assim como 0 corpo do homem, co­mec;a a morrer desde que nasce e traz em si mesmo ascausas de sua destruic;ao. Mas urn e outro podem ter umaconstituic;ao mais ou menos robusta e apropriada para con­serva-los mais ou menos longamente. A constituic;ao dohomem e obra da natureza, a do Estado e obra da arte.Nao depende dos homens 0 prolongamento de suas vi­das, mas deles depende prolongar a do Estado pelo tem­po que for possivel, dando-lhe a melhor constituic;ao quepossa existir. 0 Estado mais bern constituido, porem, teramaior durac;ao que 0 outro, se nenhum acidente impre­visto determinar sua perda antes do tempo.

o principio da vida politica repousa na autoridadesoberana. 0 poder legislativo e 0 corac;ao do Estado; 0

poder executivo, 0 cerebro, que da movimento a todas aspartes. 0 cerebro pode paralisar-se e 0 individuo continuara viver. Urn individuo toma-se imbecil e vive, mas, tao lo­go 0 corac;ao deixa de funcionar, 0 animal morre.

Nao e pelas leis que 0 Estado subsiste, mas em virtu­de do poder legislativo. A lei de ontem nao obriga 0 diade hoje, porem 0 consentimento tacito e presumido do

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_________ 0 Contrato Social _

silencio, e supoe-se que ° soberano confirma incessante­mente as leis que nao ab-roga, podendo faze-Io. Tudoquanto declarou querer uma vez, ele 0 quer sempre, amenos que 0 revogue.

Por que, pois, se confere tanto respeito as leis anti­gas? Por sua pr6pria antiguidade. Ede crer que somentea excelencia das vontades antigas as tenha podido con­servar por tanto tempo; se 0 soberano nao as tivessereconhecido como constantemente salutares, mil vezes asteria revogado. Eis por que, longe de se debilitarem, as leisadquirem sem cessar uma for~a nova em qualquer Estadobern constituido; 0 preconceito da antiguidade43 torna-ascada dia mais veneraveis, ao passo que, quando as leis sedebilitam, envelhecendo, isso prova que 0 poder legisla­tivo inexiste e que 0 Estado ja nao vive.

CAPITULO XII

Como se Mantem a Autorldade Soberana

Nao tendo outra for~a alem do poder legislativo, 0

soberano s6 age por meio das leis; e, nao sendo estasmais que atos autenticos da vontade geral, 0 soberano s6pode agir quando 0 povo se encontra reunido. 0 povoreunido - dir-se-a -, que quimera! Euma quimera hoje,mas nao 0 era ha dois mil anos. sera que os homens mu­daram de natureza?

Os limites do possivel, nas coisas morais, sao menosestreitos do que pensamos. 0 que os restringe sao nossasfraquezas, nossos vicios, nossos preconceitos. As almasinferiores nao acreditam nos grandes homens; os vis es­cravos riem com ar zombeteiro da palavra liberdade.

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_ LivroIII _

Pelo que se fez, consideremos 0 que se pode fazer.Nao falarei das antigas republicas da Grecia; mas a Repu­blica romana, ao que me parece, era urn grande Estado, ea ciOOde de Roma uma grande ciOOde. 0 ultimo recensea­mento arrolou em Roma quatrocentos mil ciOOdaos emarmas, enquanto 0 ultimo censo do Imperio registrou maisde quatro milhoes de ciOOdaos, sem contar os vassalos, osestrangeiros, as mulheres, as crian~as e os escravos.

Que dificuldade nao haveria para reunir freqiiente­mente em assembleia 0 povo imenso dessa capital e arre­dores? Entretanto, era raro que se passassem semanas semque 0 povo romano se reunisse, ate varias vezes. 0 povonao s6 exercia os direitos 00 soberania como uma partedos direitos do governo. Tratava de certos neg6cios, julga­va certas causas, e todo esse povo era na pra~a publicaquase tao freqiientemente magistrado quanto ciOOdao.

Remontando aos primeiros tempos OOs na~6es, ver­se-ia que a maioria dos antigos governos, mesmo os mo­narquicos, como os dos macedonios e dos francos, pos­suiam conselhos semelhantes. Seja como for, esse unicofato incontestavel responde a todas as dificuldades. Doexistente ao possivel, a conseqiiencia parece-me boa.

CAPITULO XIII

Continutlfilo

Nao basta que 0 povo reunido em assembleia tenhauma vez ftxado a constitui~ao do Estado, sancionando urncorpo de leis; nao basta que tenha estabelecido urn go­verno perpetuo ou provido, de uma vez por todas, a elei­~ao dos magistrados. Alem das assembleias extraordina-

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_________ 0 Contrato Social _

rias que casos imprevistos podem exigir, e necessario queas haja Hxas e periodicas, que por nada possam ser abo­lidas nem proteladas, de tal modo que no dia marcado 0

povo seja legitimamente convocado pela lei, sem quepara tanto seja preciso fazer outra convoca~ao formal.

.Mas, afora essas assembleias, juridicas por terem datamarcada, qualquer outra assembleia popular que naotiver sido convocada pelos magistrados, designados paraesse Hm e segundo as normas prescritas, deve ser tidapor ilegitima, e por nulo tudo quanto nela se fa~a, vistoque a propria ordem de reunir-se deve emanar dalei.

Quanto a repeti~ao mais ou menos frequente dasassembleias legitimas, ela depende de tantas considera­~5es que nao e possivel fomecer regras precisas sobre 0

assunto. Tudo 0 que se pode dizer, de maneira geral, eque, quanto mais for~a tern 0 govemo, com tanto maisfrequencia 0 soberano deve se mostrar.

Isso, objetar-me-ao, pode ser born para uma (micacidade; mas que fazer quando 0 Estado se comp5e de mui­tas? Dividir a autoridade soberana, ou concentra-Ia numa(mica cidade e subjugar todas as demais?

Respondo que nao se deve fazer nem uma nem outracoisa. Em primeiro lugar, a autoridade soberana e simplese una, e nao se pode dividi-Ia sem destrui-Ia. Em segundolugar, uma cidade, bern como uma na~ao, nao pode serlegitimamente sujeitada a outra, porque a essencia do cor­po politico esta no acordo entre a obediencia e a liberda­de, e os termos sudito e soberano sao correla~5es identi­cas cuja ideia se reune numa unica palavra: cidadiio.

Respondo ainda que e sempre urn mal unir variascidades numa so, e que, querendo fazer essa uniao, naonos poderemos gabar de evitar com ela os inconvenientes

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_---- Livro llI _

naturais. Nao e necessario objetar 0 abuso dos grandes Es­tados a quem so os deseja pequenos. Mas como dar aospequenos Estados for~a suficiente para resistir aos gran­des, tal como, outrora, as cidades gregas resistiram ao gran­de rei, e, mais recentemente, a Holanda e a Sui~a resisti­ram acasa da .Austria?

Todavia, se nao podemos reduzir 0 Estado aos justoslimites, resta ainda urn recurso: 0 de nao admitir uma ca­pital, fazendo sediar 0 govemo altemadamente em cadacidade e ai reunir, tambem de modo altemado, os Esta­dos do pais.

Povoai igualmente 0 territorio, estendei por toda parteos mesmos direitos, levai a todos os lugares a abundanciae a vida - assim 0 Estado se tomara ao mesmo tempo 0

mais forte e 0 mais bern governado possivel. Lembrai-vosde que os muros das cidades nao se erigem serno com osdestr~os das casas dos campos. Para cada palacio quevejo elevar-se na capital, creio ver desabar em minas todourn pais.

CAPITULO XIV

Continutlfilo

No momenta em que 0 povo se encontra legitima­mente reunido em corpo soberano, cessa qualquer juris­di~ao do govemo, suspende-se 0 poder executivo e a pes­soa do ultimo cidadao e tao sagrada e inviolavel quantoa do primeiro magistrado, porque onde esta 0 represen­tado deixa de haver 0 representante. A maior parte dostumultos que ocorreram em Rama durante os comiciosoriginou-se de se ter ignorado ou negligenciado essa

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_________ 0 Contrato Social _

regra. Os consules eram enta~ apenas os presidentes dopovo, os tribunos simples oradores* e 0 Senado absoluta­mente nada.

Esses intervalos de suspensao, em que 0 principe re­conhece ou deve reconhecer urn superior atual44

, semprelhe pareceram temiveis; e essas assembleias populares,que sao a egide45 do corpo politico e 0 freio do governo,foram em todos os tempos 0 horror dos chefes; por issoeles nunca pouparam nem cuidados, nem obje<;6es, nemdificuldades, nem promessas para dissuadir os cidadaosde realiza-Ias. Quando estes sao avaros, covardes, pusila­nimes, mais amantes do repouso que da liberdade, nao seop6em por muito tempo aos redobrados esfor<;os dogoverno; quando a for<;a resistente aumenta sem cessar, aautoridade soberana acaba por se desvanecer e a maiorparte das cidades decai e perece antes do tempo.

Mas, entre a autoridade soberana e 0 governo arbi­trario, introduz-se por vezes urn poder intermediario deque e preciso falar.

CAPITULO XV

Dos Deputados ou Representantes

Tao logo 0 servi<;o publico deixa de ser a principalatividade dos cidadaos, ao qual preferem servir com suabolsa do que com sua pessoa, ja 0 Estado se acha a beirada ruina. Se e preciso seguir para 0 combate, pagam astropas e ficam em casa; se e preciso ir ao conselho, no-

• Mais ou menos no sentido que se dii a essa palavra no Parlamento daInglaterra. A semelhan~a desses empregos pas em conflito os cansules e ostribunos, mesmo quando toda jurisdi~iio tivesse sido suspensa.

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__________Livro IIl _

meiam deputados e continuam em casa. A for<;a de pre­gui<;a e de dinheiro, terao, enfim, soldados para escravizara patria e representantes, para vende-Ia.

Ea confusao do comercio e das artes, e 0 avido inte­resse do ganho, e a lassidao e 0 amor das comodidadesque transformam os servi<;os pessoais em dinheiro. Cede­se parte do lucro para aumentci-Io a vontade. Dai dinhei­ro e logo tereis grilh6es. A palavra Finan~a e uma palavrade escravo; e desconhecida na Cidade. Num Estado real­mente livre, os cidadaos fazem tudo com seus bra<;os, enada com 0 dinheiro. Longe de pagar para isentar-se deseus deveres, pagariam para cumpri-Ios eles mesmos. Es­tou bern longe das ideias comuns, por isso considero ascorveias46 menos contrarias a liberdade que os impostos.

Quanto mais bern constituido e 0 Estado, tanto maisos neg6cios publicos prevalecem sobre os privados noespirito dos cidadaos. Chega mesmo a haver muito menosneg6cios privados, porque, fornecendo a soma da felici­dade comum uma por<;ao mais consideravel a de cadaindividuo, resta-Ihe menos a procurar em suas ocupa<;6esparticulares. Numa cidade bern dirigida, todos correm asassembleias; sob urn mau governo, ninguem quer dar urnpasso nesse sentido, porque ninguem se interessa peloque nelas se faz, porque sabe de antemao que a vontadegeral nao prevalecera e porque, enfim, os cuidados parti­culares tudo absorvem. As boas leis permitem fazer outrasmelhores, as mas conduzem a piores. Quando alguemdiz, referindo-se aos neg6cios do Estado: Que me impor­ta?, pode-se ter certeza de que 0 Estado esta perdido.

o arrefecimento do amor a patria, a atividade do in­teresse privado, a imensidao dos Estados, as conquistas,o abuso do governo fizeram com que se imaginasse 0

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_________ 0 Contrato Social _

recurso dos deputados ou representantes do povo nasassembl€~ias da na~ao. Eo que em alguns paises se ousadenominar 0 Terceiro Estado. Assim, 0 interesse particularde duas ordens e colocado no primeiro e no segundoplano, ficando 0 interesse publico relegado ao terceiro47

A soberania nao pode ser representada pela mesmarazao que nao pode ser alienada; consiste essencialmentena vontade geral, e a vontade nao se representa: ou e amesma, ou e outra - nao existe meio-termo. Os deputa­dos do povo nao sao, pois, nem podem ser os seus repre­sentantes; sao simples comissarios, e nada podem con­cluir defmitivamente. Toda lei que 0 povo nao tenha rati­ficado diretamente e nula, nao e uma lei. 0 pavo inglespensa ser livre, mas esta redondamente enganado, pois s6o e durante a elei~ao dos membros do Parlamento; assimque estes· sao eleitos, ele e escravo, nao e nada. Nos bre­ves momentos de sua liberdade, pelo uso que dela fazbern merece perde-Ia.

A ideia dos representantes e moderna: ela nos verndo governo feudal, desse governo iniquo e absurdo noqual a especie humana e degradada e em que 0 nome dehomem constitui uma desonra. Nas antigas republicas, eate nas monarquias, jamais 0 povo teve representantes;nao se conhecia semelhante palavra. E muito singularque em Roma, onde os tribunos eram tao sagrados, naose tenha sequer imaginado pudessem eles usurpar as fun­~oes do povo, e que, no meio de tao grande multidao,jamais tenham decidido por conta pr6pria urn unico ple­biscito. ]ulgue-se, entretanto, que embara~o a turba asvezes causava, peio que aconteceu no tempo dos Gracos,quando uma parte dos cidadaos dava seu sufragio decima dos telhados.

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Onde 0 direito e a liberdade sao tudo, os inconve­nientes nada sao. Nesse povo sabio, tudo se encontravaem sua justa medida: permitia-se aos lictores48 fazerem 0

que seus tribunos nao teriam ousado, pois nao se temiaque aqueles quisessem representa-Io.

No entanto, para explicar como os tribunos 0 repre­sentavam algumas vezes, basta conceber como 0 governorepresenta 0 soberano. Sendo a lei apenas a declara~ao

da vontade geral, torna-se claro que, no poder legislativo,o povo nao pode ser representado; mas pode e deve se-Iono poder executivo, que nada mais e que a for~a aplicadaa lei. Isso permite ver que, bern examinadas as coisas, s6umas poucas na~Oes possuem leis. Seja como for, e certoque os tribunos, nao tendo parte alguma no poder executi­YO, jamais puderam representar 0 povo romano pelosdireitos de seus cargos, mas s6 usurpando os do Senado.

Entre os gregos, tudo quanto 0 povo tinha a fazer,fazia-o por si mesmo; estava frequentemente reunido napra~a. Vivia num clima ameno, nao era avido,os escra­vos faziam seu trabalho e sua grande ocupa~ao era a li­berdade. Nao dispondo das mesmas vantagens, como con­servar os mesmos direitos? Vossos climas mais inclemen­tes impoem-vos mais necessidades*; durante seis mesesdo ana a pra~a publica e insuportavel; vossas linguas sur­das nao se podem fazer ouvir ao ar livre49

; dais mais aten­~ao a vosso ganho que a vossa liberdade; e temeis maisa miseria que a escravidao.

Como! A liberdade s6 se mantem com 0 apoio da ser­vidao? Pode ser. Os dois excessos se tocam. Tudo 0 quenao se acha na natureza tern seus inconvenientes, e a

• Adotar, nos paises frios, 0 luxo e a lassidao dos orientais equerer acei­tar os seus grilh6es, esubmeter-se a isso ainda mais necessariamente que eles.

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sociedade civil mais que todo 0 resto. Hi tais situa~oes

infelizes em que nao se pode conservar a liberdade senaoacusta da de outrem, e em que 0 cidadao so pode ser per­feitamente livre se 0 escravo for extremamente escravo.Assim era a situa~ao de Esparta. Quanto a vas, povosmodernos, nao tendes escravos, porem 0 sois; pagais coma vossa a liberdade deles. Por mais que vos jacteis dessapreferencia, vejo ne1a mais covardia que humanidade.

Nao entendo, por tudo isso, que seja necessaria aexistencia de escravos nem que seja legitimo 0 direito deescravidao, visto que provei 0 contrario. Indico apenas asrazoes por que os povos modernos, que se creem livres,tern representantes e por que os povos antigos nao os ti­nham. De qualquer modo, no momento em que urn povonomeia representantes, ja nao e urn povo livre: deixa deser povo.

Tudo bern considerado, nao me parece possive1, do­ravante, que 0 soberano possa conservar entre nos 0exerdcio de seus direitos se a Cidade nao for muito pe­quena. Mas, sendo muito pequena, sera subjugada? Nao.Mostrarei mais adiante* como se pode reunir 0 poderioexterior de urn grande povo ao policiamento facil e a boaordem de urn pequeno Estado.

• Foi 0 que propus fazer na continua\;ao desta obra, quando ao tratardas rela\;oes externas, chegasse as confedera\;Oes, materia totalmente nova ecujos principios estao ainda par estabelecer.

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CAPITULO XVI

A lnstituifilo do Governo niJoe um Contrato

Vma vez bern estabe1ecido 0 poder legislativo, cum­pre estabelecer igualmente 0 poder executivo, porquantoeste ultimo, que so opera mediante atos particulares, naosendo da essencia do outro, dele se encontra naturalmen­te separado.

Se fosse possive1 que 0 soberano, considerado comotal, tivesse 0 poder executivo, 0 direito e 0 fato estariamde tal forma confundidos que ja nao se saberia 0 que e leie 0 que nao 0 e, e 0 corpo politico, assim desnaturado5<J,

logo seria vitima da violencia contra a qual fora instituido.Sendo todos os cidadaos iguais pe10 contrato social,

todos podem prescrever 0 que todos devem fazer, enquan­to nenhum tern 0 direito de exigir que outro fa~a 0 que e1emesmo nao faz. Ora, e exatamente esse direito, indispensa­vel para fazer viver e mover 0 corpo politico, que 0 sobe­ranG concede ao principe quando institui 0 govern051 •

Muitos pretenderam que 0 ato desse estabelecimen­to era urn contrato entre 0 povo e os chefes que e1e no­meia, contrato pe10 qual se estipulavam entre as duas par­tes as condi~oes sob as quais uma se obrigava a mandar ea outra a obedecer. Ha de se convir, estou certo, que estae uma estranha maneira de contratar! Mas vejamos· se es­sa 'opiniao e sustentavel.

Em primeiro lugar, a autoridade suprema nao podemodificar-se tanto quanto nao pode alienar-se; limitci-Iaequivale a destrui-Ia. Eabsurdo e contraditorio que 0 so­berano nomeie urn superior: obrigar-se a obedecer a urnsenhor e capitular em plena liberdade.

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De mais a mais, e evidente que 0 contrato do povocom determinadas pessoas seria urn ato particular. Dondese conclui que esse contrato nao poderia constituir nemuma lei nem urn ato de soberania e que, por conseguin­te, seria ilegitimo.

Ve-se ainda que as partes contratantes estariam sujei­tas entre si apenas alei da natureza, sem nenhuma garan­tia de seus compromissos redprocos, 0 que repugna detodos os modos ao estado civil. Como quem tern a for~a

nas maos e sempre 0 senhor da execu~ao, seria 0 mesmoque dar 0 nome de contrato ao ato de urn homem quedissesse a outro: Dou-Ihe todos os meus bens, sob a con­di~ao de que me devolva aque1es que the aprouver.

Nao existe senao urn contrato no Estado: 0 da assa­cia~ao; e este, por si s6, exclui qualquer outro. Nao sepoderia imaginar nenhum contrato publico que nao fosseuma viola~ao do primeiro.

CAPITIJLO XVII

Da lnstituifilo do Governo

A luz de que ideia se deve, pois, conceber 0 ato pe10qual 0 govemo e instituido? Observarei, de inkio, queesse ato e complexo ou composto de dois outros, a saber:o do estabe1ecimento da lei e 0 de sua execu~ao.

Pelo primeiro, 0 soberano estatui que havera urn cor­po de govemo estabelecido sob esta ou aque1a forma - ee claro que esse ato constitui uma lei.

Pelo segundo, 0 povo nomeia chefes que se incumbi­rao do govemo estabelecido. Ora, sendo urn ato particular,essa nomea~ao nao e uma segunda lei, mas somente umaconseqiiencia da primeira e uma fun~ao do govemo.

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A dificuldade esta em compreender como se podeter urn ato de govemo antes de existir 0 govemo, e comoo povo, que s6 e soberano ou sudito, pode tomar-seprincipe ou magistrado em determinadas circunstancias.

Eainda aqui que se descobre uma dessas surpreen­dentes propriedades do corpo politico, pelas quais eleconcilia opera~oes aparentemente contradit6rias. Poisisto se faz por uma conversao subita da soberania emdemocracia, de sorte que, sem nenhuma mudan~a sensi­vel, e somente por uma nova re1a~ao de todos com ta­dos, os cidadaos, tomados magistrados, passam dos atosgerais aos atos particulares, e da lei a execu~ao.

Essa mudan~a de rela~aonao e uma sutileza de espe­cula~ao sem exemplo na pratica; acontece todos os diasno Parlamento da Inglaterra, no qual a Camara Baixa, emcertas ocasioes, transforma-se em grande comite paramelhor discutir os neg6cios e assim, de corte soberanaque era, converte-se em simples comissao, de tal modoque, em seguida, comunica a si mesma, na qualidade deCamara dos Comuns, 0 que acaba de resolver como gran­de comite, e delibera novamente, sob urn titulo, 0 que jadeliberara sob outro.

Tal e a vantagem pr6pria do govemo democratico:poder estabelecer-se de fato par urn simples ato da vonta­de gera1. Depois disso, 0 govemo provis6rio permaneceempossado, se tal e a forma adotada, ou estabelece emnome do soberano 0 govemo prescrito pela lei, e tudovolta anormalidade. Nao e possivel instituir 0 govemo denenhuma outra maneira legitima e sem renunciar aosprindpios acima estabelecidos.

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CAPITULO XVIII

Meio de Prevenir as UsurpQfoesdo Governo

Resulta desses esc1arecimentos, confirmando 0 capitu­lo XVI, que 0 ato que institui 0 governo nao e urn contra­to, mas uma lei; que os deposit:irios do poder executivonao sao os senhores do povo, mas seus oficiais; que estepode nomea-los ou destitui-los quando the aprouver; quede modo algum lhes cabe contratar, mas obedecer; e que,incumbindo-se das func;oes que 0 Estado lhes impoe, nadamais fazem que cumprir com seu dever de cidadaos, semter, de forma alguma, 0 direito de discutir as condic;6es.

Quando acontece, pois, que 0 povo institui urn go­verno heredit:irio, seja monarquico, numa familia, seja aris­tocratico, numa ordem de cidadaos, nao se trata de urncompromisso assumido, mas de uma forma provis6riaque ele confere aadministrac;ao, ate quando the aprouverordena-la de maneira diferente.

Everdade que tais mudanc;as sao sempre perigosas eque s6 se deve tocar no governo estabelecido quandoeste se torna incompativel com 0 bern publico; mas estaprudencia e uma maxima politica, e nao uma regra dedireito, e 0 Estado nao e mais obrigado a deixar a autori­dade civil nas maos de seus chefes do que a autoridademilitar nas de seus generais.

Eigualmente verdade que nao se poderia, em seme­lhante caso, observar com bastante cuidado todas as for­malidades requeridas para distinguir urn ato regular elegitimo de urn tumulto sedicioso, e a vontade de todourn bovo dos c1amores de uma facc;ao. E neste ponto,sobretudo, que s6 se deve dar ao caso odios052 0 que nao

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se pode recusar-lhe em todo rigor do direito, e e tambemdessa obrigac;ao que 0 principe se aproveita para conser­var seu poder apesar da oposic;ao popular, sem que se pos­sa dizer que ele 0 tenha usurpado. Pois, parecendo fazeruso apenas de seus direitos, e-lhe muito facil estende-lose impedir, a pretexto da tranquilidade publica, as assem­bleias destinadas a restabelecer a boa ordem, prevalecen­do-se assim de urn silencio que ele mesmo impede quese rompa ou das irregularidades que faz cometer para su­por a aprovac;ao daqueles que 0 medo faz calar e punir osque ousam falar. Assim os decenviros, eleitos a principiopor urn ano, depois conservados por mais urn, tentaramperpetuar-se no poder, nao mais permitindo que 0 povose reunisse em comkio; e e grac;as a esse facil meio quetodos os governos do mundo, uma vez revestidos da for­c;a publica, mais cedo ou mais tarde vern a usurpar a auto­ridade soberana.

As assembleias peri6dicas, a que ja aludi anteriormen­te, sao apropriadas para prevenir ou adiar esse mal, mor­mente quando nao dependem de convocac;ao formal, poisenta~ 0 principe nao poderia impedi-las sem se dec1ararabertamente infrator das leis e inimigo do Estado.

A abertura dessas assembleias, cujo unico objetivo emanter 0 tratado social, sempre deve ser feita por duasproposic;oes que nunca possam ser suprimidas e que pas­sem separadamente pelos sufragios.

A primeira e: Se apraz ao soberano conservar a pre­senteforma de governo; e a segunda: Se apraz aopovo dei­xar a administrafiio aos que dela se acbam atualmenteincumbidos53 •

Suponho, neste ponto, 0 que creio ter demonstrado,isto e, que nao ha no Estado nenhuma lei fundamental

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que nao se possa revogar, nem mesmo 0 pacto social;porque, se todos os cidadaos se reunissem para romperesse pacto de comum acordo, nao h<i duvida de que eleseria muito legitimamente rompido. Grotius chega a pen­sar que cada qual pode renunciar ao Estado de que emem­bro e retomar sua liberdade natural e seus bens, saindodo pais·. Ora, seria absurdo que todos os cidadaos reuni­dos nao pudessem fazer 0 que 0 pode separadamentecada urn deles54

• Naturalmente, desde que nao se abandone a patria para fugir ao devere deixar de servi-la no momento em que ela precisa de nos. A fuga entao seriacriminosa e punivel; nao se trataria mais de retirada, mas de deser~ao.

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LivroIV

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CAPITULO I

A Vontade Geral e Indestrutfvel

Enquanto muitos homens reunidos se consideramcomo urn s6 corpo, tern uma s6 vontade que se refere aconserva~ao comum e ao bem-estar geral. Entao todosos m6beis do Estado sao vigorosos e simples, suas maxi­mas sao claras e luminosas, nao existem interesses con­fusos e contradit6rios, 0 bern comum mostra-se por todaparte com evidencia e nao exige senao born senso paraser percebido. A paz, a uniao e a igualdade sao inimigasdas sutilezas poHticas. as homens retos e simples sao di­ficeis de enganar em virtude de sua simplicidade. as en­godos, os pretextos ardilosos nao se lhes imp6em; nao saosequer suficientemente sutis para serem tolos. Quandose ve entre os povos mais felizes do mundo grupos decamponeses resolvendo os neg6cios do Estado asombrade urn carvalho e se conduzindo sempre com sabedoria,pode-se deixar de desprezar os rebuscamentos das outrasna~6es, que se tornam ilustres e miseraveis com tantaarte e tantos misterios?!

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Urn Estado assim govemado precisa de pouqulssimasleis2 e, a medida que se faz necessario promulgar outrasnovas, tal necessidade e reconhecida universalm~nte. 0primeiro a propo-Ias nao faz senao dizer 0 que todos jasentiram, e nao cabem nem discussoes nem eloqiH~ncia

para converter em lei 0 que cada urn ja resolveu fazer,desde que esteja certo de que os demais 0 famo como ele.

o que engana os polemistas e que, venda apenasEstados mal constituidos desde suas origens, ficam cho­cados com a impossibilidade de manter ai uma policia3

semelhante. Riem ao imaginar todas as parvoices queurn habil impostor, urn palrador insinuante poderia im­pingir ao povo de Paris ou de Londres. Ignoram queCromwell teria sido submetido aos guizos pelo povo deBema e 0 duque de Beaufort posto na disciplina pelosgenebrinos4

Quando, porem, 0 vinculo social come~a a afrouxareo Estado a debilitar-se, quando os interesses particula­res come~am a se fazer sentir e as pequenas sociedadesa influir sobre a grande, 0 interesse comum se altera eencontra oponentes, a unanimidade ja nao reina nos vo­tos, a vontade geral deixa de ser a vontade de todos,levantam-se contradi~oes, debates, e 0 melhor parecernao e admitido sem disputas.

Por fim, quando 0 Estado, abeira da ruina, ja naosubsiste senao por uma forma ilus6ria e va, quando 0

vinculo social se rompeu em todos os cora~oes, quandoo mais vil interesse se pavoneia impudentemente com 0

nome sagrado do bern publico, entao a vontade geralemudece e todos, guiados por motivos secretos, ja naoopinam como cidadaos, como se 0 Estado jamais tivesseexistido, e fazem-se passar fraudulentamente, sob 0 no-

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me de leis, decretos iniquos cuja unica finalidade e 0 in­teresse particular.

Decorre dai que a vontade geral esteja aniquilada oucorrompida? Nao. Ela e sempre constante, inalteravel epura, mas esta subordinada a outras que a sobrepujam.Cada qual, desvinculando seu interesse do interesse co­mum, ve que nao pode separa-Ios por inteiro, porem suaparte do mal publico parece-Ihe insignificante quandocomparado ao bern exc1usivo de que pretende apropriar­se. Excetuado.esse bern particular, cada qual deseja 0 berngeral em seu pr6prio interesse e com 0 mesmo vigor quequalquer outro. Mesmo vendendo seu sufragio, em trocade dinheiro, nao extingue em si a vontade geral: elide-a.A falta que comete esta em mudar 0 estado da questao eem responder coisa diversa do que se the perguntou; demodo que, em vez de dizer atraves de seu voto: Evan­tajoso para 0 Estado, diz: Evantajoso para tal bomem outal partido que este ou aquele parecer seja aprovado.Assim, a lei da ordem publica nas assembleias nao consis­te tanto em manter a vontade geral quanta em fazer comque esta seja sempre interrogada e que responda sempre.

Nesta altura eu teria muitas reflexoes a fazer sobre 0

simples direito de votar em qualquer ato de soberania;direito este que nada pode subtrair aos cidadaos; e sobreo direito de opinar, de propor, de dividir, de discutir, queo govemo tern sempre 0 grande cuidado de reservar ape­nasaos seus membros. Porem essa importante materiaexigiria urn tratado aparte, e neste nao posso dizer tudo.

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CAPITULO II

Dos Sufrdgios

Ve-se, pelo capitulo anterior, que a maneira pela qualse tratam os neg6cios gerais pode fomecer urn indicebastante seguro do estado atual dos costumes e da saudedo corpo politico. Quanto maior a harmonia reinante nasassembleias, isto e, quanta mais as opinioes aproximam­se da unanimidade, tanto mais prevalece a vontade geral;porem os debates interminaveis, as dissensoes e 0 tumul­to anunciam 0 predominio dos interesses particulares e 0declinio do Estado.

Isso parece menos evidente quando duas ou maisordens entram em sua constituis;:ao, como em Roma os pa­tricios e os plebeus, cujas querelas perturbaram com fre­quencia os comkios5, mesmo nos melhores tempos da Re­publica. No entanto, essa exces;:ao e mais aparente quereal, porque entao, pelo vicio inerente ao corpo politico,tem-se, por assim dizer, dois Estados em urn: 0 que naoe verdadeiro para os dois em conjunto 0 e para cada urnem separado. E, de fato, mesmo nos tempos mais contur­bados, os plebiscitos do povo, quando 0 Senado nelesnao se ingeria, realizavam-se sempre com tranquilidade epluralidade de votos: nao tendo os cidadaos mais que urninteresse, 0 povo tinha apenas uma vontade.

No outro extrema do drculo a unanimidade retoma:e quando os cidadaos, tombados na servidao, ja nao ternnem liberdade nem vontade. Entao 0 medo e a adulas;:aomudam os sufragi;s em aclamas;:oes; ja nao se delibera ­adora-se ou amaldis;:oa-se. Esta era a abjeta maneira deopinar do Senado sob os imperadores. Algumas vezesisto se fazia com precaus;:oes ridkulas. Tacitd observa

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que, reinando Otao, os senadores, ao cumular Vitelio deexecras;:oes, faziam ao mesmo tempo urn enorme alari­dos, a fim de que, se por acaso ele se tornasse 0 senhor,nao pu?esse saber 0 que cada urn deles dissera.

Dessas diversas consideras;:oes nascem as maximaspelas quais se deve regulamentar a maneira de contar osvotos e de comparar as opinioes, conforme a vontade ge­ral seja mais ou menos facil de conhecer e 0 Estado estejaem major ou menor declinio.

Ha somente uma lei que, por sua natureza, exige urnconsentimento unanime: e 0 pacta social, pois a associa­s;:ao civil e 0 mais voluntario de todos os atos do mundo;cada homem tendo nascido livre e senhor de si mesmo,ninguem pode, sob pretexto algum, sujeita-Io sem seuconsentiment07

• Decidir que 0 filho de urn escravo nasceescravo e decidir que ele nao nasce homem.

Se, no momento do pacto social, houver, pois, opo­sitores, sua oposis;:ao nao invalida 0 contrato, impedeapenas que se incluam nele: serao estrangeiros entre oscidadaos. Quando 0 Estado e instituido, a residenciaimplica 0 consentimento; habitar 0 territ6rio e submeter­se a soberania*.

Fora desse contrato primitivo, 0 voto da maioria obrigasempre os demais - e uma consequencia do pr6prio con­trato. Pergunta-se, porem, como pode urn homem ser livree ao mesmo tempo fors;:ado a se conformar com vontadesque nao sao a sua. Como podem os oponentes ser livres e,ao mesmo tempo, submetidos a leis que nao consentiram?

• Entenda-se sempre como tal urn Estado livre; pois, do contcirio, afamilia, os bens, a falta de asilo, a necessidade e a violencia podem reter urnhabitante no pais contra a sua vontade, e entao apenas sua permanencia janao supoe consentimento ao contrato ou a viola\;ao do contrato.

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Respondo que 0 problema esta mal colocado. 0 ci­dadao consente todas as leis, mesmo as que sao aprovadascontra sua vontade, e mesmo as que 0 punem quandoousa violar alguma delas. A vontade constante de todosos membros do Estado e a vontade geral; por ela e queeles sao cidadaos e livres·. Quando se propoe uma lei naassembleia do povo, 0 que se the pergunta nao e preci­samente se aprovam a proposta ou se a rejeitam, mas seela esta ou nao de acordo com a vontade geral que e adeles; cada qual, dando seu sufcigio, da seu parecer, edo ca1culo dos votos extrai-se a dec1ara~ao da vontade ge­ral. Quando, pois, 0 parecer contcirio ao meu prevalece,isto s6 prova que eu me enganei e que aquilo que euimaginava ser a vontade geral nao 0 era. Se meu parecerparticular tivesse prevalecido, eu teria feito 0 que naodesejava e entao nao teria sido livre.

Isto supoe, e verdade, que todos os caracteres davontade geral estejam ainda na pluralidade; quando dei­xam de estar, seja qual for 0 partido que se tome, ja naoha liberdade.

Ao mostrar, mais acima, como a vontade geral erasubstituida pelas vontades particulares nas delibera~oes

publicas, indiquei suficientemente os meios praticaveisde prevenir tal abuso; falarei ainda sobre isso mais adian­teo A prop6sito do numero proporcional dos sufcigios'para dec1arar essa vontade, fomeci tambem os prindpioscom base nos quais se pode determina-Io. A diferen~a deurn unico voto rompe a igualdade; urn unico oponente

• Em Genova, le-se na fachada das prisOes enos grilh6es dos condena­dos a palavra Libertas. Essa aplica~iio da divisa e bela e justa. Com efeito, s6os malfeitores de todos os tipos impedem 0 cidadiio de ser livre. Num pais emque toda essa gente estivesse nas gales, gozar-se ia da mais perfeita liberdade.

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rompe a unanimidade; no entanto, entre a unanimidadee a igualdade, ha varias divisoes desiguais, para cada umadelas pode-se fixar esse numero segundo a situa~ao e asnecessidades do corpo politico.

Dois preceitos gerais podem servir para regulamen­tar essas rela~oes8: primeiro, quanta mais graves e impor­tantes sejam as delibera~oes, mais se deve aproximar daunanimidade 0 parecer aprovado; segundo, quanto maisrapidez exige 0 assunto debatido, mais se deve restringira diferen~a prescrita na divisao dos pareceres, e, nas deli­bera~oes a serem encerradas imediatamente, 0 exceden­te de urn s6 voto deve bastar. 0 primeiro desses precei­tos parece mais conveniente as leis, 0 segundo aos neg6­cios. De qualquer forma, e com base em sua combina~ao

que se estabelecem as melhores rela~oes sobre as quais apluralidade deve pronunciar-se.

CAPITuLO III

Das Eleifoes

A respeito das elei~oes do principe e dos magistra­dos, que sao, como ja disse, atos complexos, existem duasmaneiras de realiza-Ias, a saber: a escolha e 0 sorteio.Vma e outro foram empregados em diversas republicas, eainda hoje se ve uma mistura muito complicada das duasna elei~ao do doge de Veneza9

"0 sufcigio por sorteio", diz Montesquieu, "pertencea natureza da democracia."IO Concordo, mas por que? "0sorteio", continua ele, "e urn modo de eleger que naoaflige ninguem; deixaa cada cidadao uma razoavel espe­ran~a de servir a patria." Isso nao sao razoes.

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Se considerarmos que a e1eiC;;ao dos chefes e umafunC;;ao do governo e nao da soberania, veremos por queo expediente do sorteio esta mais na natureza da demo­cracia, na qual a administraC;;ao e tanto melhor quantomenos multiplicados sao os atos.

Em qualquer verdadeira democracia, a magistraturanao e uma vantagem, mas uma carga onerosa que nao sepode, com justic;;a, impor mais a urn particular que a outro.S6 a lei pode impor essa carga a quem 0 sorteio indicar,pois, neste caso, sendo a condiC;;ao igual para todos, e naodependendo a escolha de nenhuma vontade humana, naoha aplicaC;;ao particular que altere a universalidade da leFI.

Na aristocracia, 0 principe escolhe 0 principe e 0 go­verno se conserva por si mesmo; nela os sufragios saobern adequados.

o exemplo da eleiC;;ao do doge de Veneza, longe de .destrui-Ia, confirma tal distinC;;ao. Essa forma combinadaconvem a urn governo misto, pois e urn erro tomar 0 go­verno de Veneza por uma verdadeira aristocracia. Se 0 po­vo nao tern ali nenhuma parte no governo, a pr6pria no­breza e constituida pelo povo. Vma multidao de pobresbarnabotesl2 jamais se aproximou de uma magistratura, ede sua nobreza tern apenas 0 titulo vao de Excelencia eo direito de assistir ao Grande Conselho. Sendo esseGrande Conselho tao numeroso quanto 0 nosso Conse1hogeral de Genebra, seus ilustres membros nao gozam demais privilegios que os nossos simples cidadaos. Certo eque, a parte a extrema disparidade ·das duas republicas,a burguesia de Genebra representa exatamente 0 patri­ciado veneziano; nossos nativos e habitantes represen­tam os citadinos e 0 povo de Venezaj nossos campone­ses representam os suditos da terra firmej e, finalmente,

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de qualquer maneira que se considere essa Republica,abstrac;;ao feita de sua extensao, seu governo nao e maisaristocratico que 0 nosso. Toda a diferenc;;a esta em que,nao possuindo nenhum chefe vitalicio, nao experimen­tamos a mesma necessidade de recorrer a sorte.

As e1eic;;6es por sorteio apresentariam poucos inconve­nientes numa verdadeira democracia, onde, sendo todosiguais quer pelos costumes e talentos, quer pelos preceitose pela fortuna, a escolha se tornaria quase indiferente. Mas,como ja afirmei, nao existe verdadeira democracia.

Quando a escolha e 0 sorteio se combinam, a pri­meira deve preencher os postos que exigem talentos apro­priados, como os cargos militares; 0 segundo convem aospostos que requerem apenas born senso, justic;;a e inte­gridade, como os cargos de judicatura, porque, num Es­tado bern constituido, tais qualidades sao comuns a todosos cidadaos.

o sorteio e os sufragios nao tern nenhum cabimen­to no governo monarquico. Sendo 0 monarca, de direi­to, principe unico e magistrado unico, s6 a ele competea escolha de seus auxiliares. Quando 0 abade de Saint­Pierre propunha multiplicar os conselhos do rei da Fran­c;;a e e1eger seus membros por escrutinio, nao via queestava propondo mudar a forma do governo13

Deveria ainda falar do modo de dar e recolher osvotos na assembleia do povo, mas talvez 0 hist6rico dapolicia romana a esse respeito explique me1hor todas asmaximas que eu poderia estabelecer. Nao e indigno deurn leitor judicioso ver em pormenores como se tratavamos neg6cios publicos e particulares num conselho deduzentos mil homens.

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CAPITULO IV

Dos Comfcios Romanos 14

Nao possuimos nenhum monumento fidedigno dosprimeiros tempos de Roma, havendo mesmo muitos in­dicios de que a maior parte das coisas que nos contam aesse respeito nao passa de fabulas*; e, em geral, a partemais instrutiva dos anais dos povos, que e a hist6ria deseu estabelecimento, e a que mais nos falta. A experien­cia nos ensina todos os dias quais as causas que origi­nam as revolus;oes dos imperios; mas, como ja nao seformam novos povos, s6 dispomos de conjeturas paraexplicar como se formaram.

Os usos que encontramos estabeIecidos atestam pelomenos que tiveram uma origem. Das tradis;oes que re­montam a tais origens, as que tern 0 apoio das maioresautoridades, e que se confrrmam por raz6es mais fortes,devem ser consideradas como as mais certas. Sao essasmaximas que procurei seguir ao investigar como 0 povomais livre e poderoso da Terra exercia seu poder supremo.

Ap6s a fundaS;ao de Roma, a Republica nascente, istoe, 0 exercito do fundador, composto de albanos, sabinose estrangeiros, foi dividido em tres classes que, a partirdessa divisao, receberam 0 nome de tribos. Cada uma des­sas tribos foi subdividida em dez curias, e cada curia emdecurias, a testa das quais colocaram-se chefes denomi­nados curi6es e decuri6es.

• 0 nome de Roma, que se pretende vir de Romulus, e grego e signifi­ca forfa; 0 nome de Numa etambem grego e significa lei. Nao eestranho queos dois primeiros reis dessa cidade tenham possuido nomes tao relacionadoscom 0 que haveriam de fazer"?

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Alem disso, tirou-se de cada triba urn corpo de cerncavaleiros ou cavalheiros, chamada centUria - par ondese ve que essas divisoes, pouco necessarias num burgo,eram a principio apenas militares. Parece, contudo, queurn instinto de grandeza levou a pequena cidade de Ra­rna a criar, por antecipaS;ao, uma policia conveniente acapital do mundo.

Dessa primeira divisao logo resultou urn inconve­niente. Eque, ficando a tribo dos albanos* e ados sabi­nos** no mesmo estado, enquanto ados estrangeiros***crescia cada vez mais, gras;as ao seu perpetuo afluxo, estaultima nao tardou a ultrapassar as outras duas. 0 remedioque Servio16 encontrou para esse abuso perigoso foi mu­dar a divisao, e a das ras;as, que aboliu, foi substituida poroutra, tirada dos lugares da cidade ocupados por cadatribo. Em vez de tres tribos, organizou quatro, cada qualocupando uma das colinas de Roma, cujos nomes adota­ram. Assim, ao remediar a desigualdade presente, eIeainda a prevenia para 0 futuro e, a fim de que essa divi­sao nao fosse somente de lugares, mas tambem de ho­mens, proibiu que os habitantes de urn setor passassempara outro, 0 que impediu a mistura das ras;as.

Duplicou tambem as tres antigas centUrias de cavala­ria e acrescentou-Ihes outras doze, sempre, porem, sob osantigos nomes - meio simples e judicioso peIo qual aca­bou por distinguir 0 corpo dos cavaleiros do corpo dopovo, sem que este ultimo tivesse motivos para murmurar.

A essas quatro tribos urbanas, Servio acrescentouquinze outras, chamadas tribos rUsticas, por serem cons-

• Ramnenses.•• Tatienses.••• Luceres.

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tituidas de habitantes do campo, divididas em outrostantos cant6es. Em seguida criaram-se novas tribos, e 0

povo romano viu-se enfim dividido em trinta e cinco tri­bos, numero que nao mais se alterou ate 0 fim da Re­publica.

Dessa distin~ao entre as tribos da cidade e as docampo resultou urn efeito digno de ser observado, vistonao haver outro exemplo analogo, e porque a ele deveuRoma, ao mesmo tempo, a conserva~ao de seus costu­mes e 0 crescimento de seu imperio. Seria de crer que ast&os' urbanas logo se arrogassem 0 poder e as honrariase nao tardassem a aviltar as tribos rUsticas. Pois aconte­ceu justamente 0 contrario. Conhece-se 0 gosto dos pri­meiros romanos pela vida campestre. Vinha-Ihes essegosto do sabio instituidor!7 que uniu a liberdade os traba­lhos rUsticos e militares e, por assim dizer, relegou a cida­de as artes, os ofkios, a intriga, a fortuna e a escravidao.

Assim, como tudo 0 que Roma tinha de ilustre vivianos campos e cultivava as terras, tornou-se costume bus­car so ali os esteios da Republica. Sendo esse 0 estadopreferido pelos mais dignos patricios, acabou sendo hon­rado par todos; a vida simples e laboriosa dos alde6espassou a ser preferida a vida ociosa e dissoluta dos bur­gueses!8 de Roma, e aquele que na cidade nao passavade urn infeliz proletario veio a tornar-se cidadao respei­tavel como agricultor. Nao foi sem razao, dizia Varrao!9,que nossos magnanimos ancestrais estabeleceram naaldeia 0 viveiro desses homens robustos e valentes queos defendiam nos tempos de guerra e os alimentavamnos tempos de paz. Plini020 afirma positivamente que astribos dos campos eram honradas em virtude dos ho­mens que as compunham, ao passo que, como ignomi-

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nia, se transferiam para as da cidade os covardes que sequeriam castigar. 0 sabino Apio Claudio, ao ter se estabe­lecido em Roma, foi cumulado de honrarias e inscrito nu­rna tribo rUstica que posteriormente recebeu 0 nome desua familia. Enfim, todos os libertos entravam nas tribosurbanas, nunca nas rurais, e nao ha em toda a Republicaurn so exemplo de algum liberto que tenha atingido algu­rna magistratura, embora se tornasse cidadao.

Esse preceito era excelente, mas foi levado tao longeque dele resultou, afinal, uma mudan~ae certamente urnabuso na polkia. Em primeiro lugar, os censores, depoisde se terem arrogado por muito tempo 0 direito de trans­ferir arbitrariamente os cidadaos de uma tribo para outra,permitiram que a maioria se inscrevesse na que lheaprouvesse, permissao que, seguramente, de nada serviae privava a censura de uma de suas grandes armas. Alemdisso, como todos os grandes e os poderosos se inscre­viam nas tribos do campo e os libertos, convertidos emcidadaos, permaneciam com 0 populacho nas da cidade,as tribos, em geral, deixaram de ter sede e territorio, etodas se viram de tal modo misturadas que ja nao se po­dia discernir os membros de cada uma senao pelos regis­tros. Desse modo, a ideia da palavra tribo passou do reaP!ao pessoal ou, antes, tornou-se quase uma quimera.

Aconteceu ainda que, estando as tribos da cidademais bern localizadas, acharam-se amiude as mais fortesnos comkios e venderam 0 Estado aos que se dignavamcomprar os sufragios da canalha que as compunha.

No tocante as curias, tendo 0 instituidor feito dez emcada tribo, todo 0 povo romano, enta~ encerrado nos mu­ros da cidade, foi organizado em trinta curias, cada qualcom seus templos, seus deuses, seus oficiantes, seus sa-

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cerdotes e suas festas, denominadas compitalia, semelhan­tes as paganalia, instituidas mais tarde entre as tribosrUsticas.

Na nova divisao de Servio, nao podendo esse nume­ro de trinta dividir-se igualmente pelas quatro tribos, naoquis ele tocar nisso, e as curias, independentes das trioos,converteram-se em outra divisao dos habitantes de Roma.Mas nao se cogitou de ctirias, nem nas tribos rUsticas, nemnopovo que as compunha, porque, tornando-se as tribosurn ~stabelecimento puramente civil, e tendo sido intro­duzida outra polkia para 0 recrutamento das tropas, asdivis6es militares de Romulo passaram a ser superfluas.Assim, embora todo cidadao estivesse inscrito numa tribo,dificilrnente cada urn nao 0 estaria numa curia.

Servio criou ainda uma terceira divisao, que nao ti­nha rela~ao alguma com as duas precedentes e tornou­se, por seus efeitos, a mais importante de todas. Distri­buiu todo 0 povo romano em seis classes, que nao se dis­tinguiam nem pelo lugar nem pelos homens, e sim pelosbens. Dessa forma, as primeiras classes eram compostaspelos ricos, as ultimas pelos pobres e as medias pelos quegozavam de uma fortuna mediana. Essas seis classes sub­dividiam-se em cento e noventa e tres outros corpos, cha­mados centtirias, e esses corpos estavam de tal forma dis­tribuidos que a primeira classe compreendia, sozinha,mais da metade deles, e a ultima nao contava mais queurn. Resultou assim que a classe menos numerosa emhomens era mais numerosa em centtirias, e toda a ultimaclasse nao era considerada senao como uma subdivisao,conquanto abrangesse, sozinha, mais da metade dos habi­tantes de Roma.

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A fim de que 0 povo percebesse menos as consequen­cias desta ultima forma, Servio simulou conferir-Ihe fei~ao

militar. Inseriu na segunda classe duas centtirias de armei­ros e na quarta duas de instrumentos de guerra. Em cadadasse, com exce~ao da ultima, distinguiu os mo~os dosvelhos, isto e, os que estavam obrigados ao servi~o militardos que, por sua idade, dele se achavam isentos par lei;distin~ao essa que, mais que ados bens, provocou a ne­cessidade de recome~arfrequentemente 0 censo ou a con­tagem. Quis, finalmente, que a assembleia se realizasse noCampo de Marte e que todos os que estavam em idade deservir comparecessem com suas armas.

A razao pela qual ele nao seguiu, na ultima classe,essa mesma divisao entre mo~os e velhos residia no fatode nao se conceder ao populacho, de que se achavacomposta, a honra de empunhar armas em defesa da pa­tria; era necessario ter urn lar para obter 0 direito de de­fende-Io, e dessas inumeraveis tropas de indigentes, quebrilham hoje em dia nos exercitos dos reis, nao se contaurn s6, talvez, que nao teria sido recha~ado com desdemde uma coorte romana quando os soldados eram osdefensores da liberdade.

No entanto, distinguia-se ainda, na ultima dasse, osproletdrios dos que se chamavam capite censi22

• Os pri­meiros, que nao estavam totalmente reduzidos a miseria,forneciam ao menos cidadaos ao Estado, as vezes atesoldados, nas necessidades mais prementes. Os que naotinham absolutamente nada, e que s6 se podiam compu­tar por suas cabe~as, eram considerados nulos, e Mariofoi 0 primeiro que se dignou alista-Ios.

Sem afirmar aqui se esse terceiro arrolamento era bornou mau em si mesmo, creio poder asseverar que s6 oscostumes simples dos primeiros romanos, seu desinte-

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resse, seu gosto pela agricultura, seu desprezo pelo co­mercio e pela febre do ganho puderam torna-Io pratica­vel. Onde esta 0 povo moderno ao qual a avidez devo­radora, 0 espirito inquieto, a intriga, os constantes desloca­mentos, as perpetuas revolu~oes das fortunas pemitiriamdurar vinte anos urn estabelecimento semelhante semconvulsionar todo 0 Estado? E necessario ate assinalarque os costumes e a censura, mais fortes que essa insti­tui~ao, corrigiram 0 vicio em Roma, e que urn certo ricose viu,.relegado a classe dos pobres por ter ostentado emdemasia sua riqueza.

Por tudo isso e facH compreender por que quase sem­pre se mencionam apenas cinco classes, conquanto hou­vesse, na verdade, seis. A sexta, nao fornecendo nemsoldados ao exercito nem eleitores ao Campo de Marte*,e nao tendo quase nenhuma utilidade na Republica,raramente era contada para alguma coisa.

Assim, foram as diferentes divisoes do povo roma­no. Vejamos agora 0 efeito que produziram nas assem­bleias. Essas assembleias legitimamente convocadas de­nominavam-se comicios; realizavam-se geralmente napra~a de Roma ou no Campo de Marte e distinguiam-seem comkios por curias, comicios por centUrias e comi­cios por tribos, segundo aquela dessas tres formas combase nas quais estavam ordenados: os comkios por curiaspertenciam a institui~ao de Romulo, os por centUria a deServio, os por tribos aos tribunos do povo. Nenhuma leiera sancionada, nenhum magistrado era eleito a nao sernos comkios e, como nao havia nenhum cidadao que

• Digo Campo de Marte porque era ali que se reuniam no Fornm oualhures, e entao os capite censi dispunham de tanta influencia e autoridadequanto os primeiros cidadaos.

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nao se encontrasse inscrito numa curia, numa centUria ounuma tribo, segue-se que nenhum cidadao era excluidodo direito de sufragio e que 0 povo romano era verdadei­ramente soberano de direito e de fato.

Para que os comicios se realizassem legitimamente eo que ali se fizesse tivesse for~a de lei, impunham-se trescondi~oes: primeira, que 0 corpo ou 0 magistrado queos convocasse estivesse para tanto revestido da autorida­de necessaria; segunda, que a assembleia ocorresse numdos dias permitidos pela lei; e, terceira, que os auguriosfossem favoraveis.

A razao da primeira exigencia nao requer explica~ao.

A da segunda e urn problema de pollcia: assim, nao sepermitia a realiza~ao de comicios nos dias de festa e demercado, quando Os camponeses vinham a Roma a ne­g6cios e nao tinham tempo para passar 0 dia na pra~a

publica. Pela terceira exigencia 0 Senado refreava urnpovo altivo e turbulento, e temperava convenientementeo ardor dos tribunos sediciosos; estes, porem, acharammais de urn meio de se subtrairem a tal constrangimento.

Nao eram as leis e a elei~ao dos chefes os unicos pon­tos submetidos ao julgamento dos comicios. Tendo 0 po­vo romano usurpad023 as mais importantes fun~oes dogoverno, pode-se dizer que 0 destino da Europa era deci­dido em suas assembleias. Essa variedade de objetivosdava lugar as diversas formas assumidas pelas assem­bleias, conforme as materias sobre as quais deviam pro­nunciar-se.

Para julgar dessas diversas formas, basta compara­las entre si. Romulo, ao instituir as curias, tinha em vistaconter 0 Senado pelo povo e 0 povo pelo Senado, domi­nando igualmente sobre todos. Deu, pois, ao povo, por

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essa forma, toda a autoridade do numero para contraba­lan~ar a do poder e a das riquezas, deixadas aos patri­cios. Mas, segundo 0 espirito da monarquia, deixou, noentanto, mais vantagem aos patricios, devido a influen­cia de seus clientes sobre a pluralidade dos sufcigios.Essa admicivel institui~ao dos patronos e dos clientes foiuma obra-prima de politica e de humanidade, sem a qualo patriciato, tao contrario ao espirito da Republica, naoterifl podido subsistir. Roma foi a unica a ter a honra dedarao mundo esse bela exemplo, do qual nunca resulta­ram abusos e que, nao obstante, jamais foi imitado.

Essa mesma forma das curias subsistiu sob os reis,ate Servio, e, nao tendo 0 reinado do ultimo Tarquiniosido aceito como legitimo, isso levou a distinguir as leisreais pelo nome de leges curiatae.

Sob a Republica, as curias, sempre circunscritas asquatro tribos urbanas e nao contendo senao 0 populachode Roma, nao podiam convir nem ao Senado, que estavaa testa dos patricios, nem aos tribunos, que, embora ple­beus, estavam a frente dos cidadaos abastados. Cairam,portanto, no descredito, e tamanho foi seu aviltamentoque seus trinta lictores reunidos em assembl€~ia realiza­yam 0 que os comicios por curias deveriam ter feito.

A divisao por cenrurias era tao favocivel a aristocra­cia que, a principio, nao se percebia como 0 Senado naovencia sempre nos comicios que tinham esse nome, epelos quais se elegiam os consules, os censores e os de­mais magistrados curuis. Com efeito, das cento e noventa etres cenrurias que compunham as seis classes de todo 0

povo romano, a primeira classe compreendia noventa eoito, e, nao se contando os votos senao por cenrurias,essa primeira classe suplantava sozinha, em numero de

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votos, todas as outras. Quando todas as suas cenruriasestavam de acordo, nem se continuava a recolher os su­fragios; 0 que 0 menor numero tinha decidido passavacomo decisao da multidao, e pode-se dizer que, nos co­micios por cenrurias, os neg6cios se regulavam muitomais pela pluralidade dos escudos do que pela dos votos.

Essa extrema autoridade, no entanto, era abrandadade duas maneiras. Em primeiro lugar, pertencendo os tri­bunos e urn grande numero de plebeus, de ordinario, aclasse dos ricos, contrabalan~avam 0 credito dos patri­cios nessa primeira classe.

A segunda maneira consistia em que, em vez de fa­zer inicialmente com que as centurias votassem segundosua ordem, 0 que significava sempre come~ar pela pri­meira, escolhia-se uma por sorteio, e esta* procedia sozi­nha a elei~ao, ap6s 0 que todas as centurias, convocadasoutro dia de acordo com sua categoria, repetiam a mesmaelei~ao e em geral a confirmavam. Desse modo, subtraiu­se a autoridade do exemplo a categoria para entrega-Ia aoacaso, conforme 0 principio democratico.

Outra vantagem decorria desse uso: os cidadaos docampo tinham tempo, entre as duas elei~6es, para infor­mar-se do merito do candidato provisoriamente nomea­do, a fim de s6 darem seu voto com conhecimento decausa. Todavia, sob 0 pretexto de urgencia, esse costu­me veio a ser abolido, e as duas elei~6es passaram a serfeitas no mesmo dia.

Os comicios por tribos eram propriamente 0 conse­lho do povo romano. Somente os tribunos os convoca-

• Tal centUria, assim sorteacla, chamava-se prae rogativa, em razao de seca primeira a sec solicitacla para 0 voto; foi clai que veio a palavra prerrogativa.

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Yam; ne1es OS tribunos eram e1eitos e se faziam aprovarOS plebiscitos. Nao s6 0 Senado nao possuia ali nenhumposto como nao tinha sequer 0 direito de assistir a e1es;e, far~ados a obedecer a leis que nao tinham podidovotar, os senadores, neste particular, eram menos livresque 0 ultimo dos cidadaos. Essa injusti~a era de todo malcompreendida e por si s6 bastava para invalidar os decre­tos de urn corpo no qual nem todos os membros eramadmitidos. Ainda que todos os patricios assistissem a es­ses.comicios, segundo 0 direito que possuiam como cida­daos, transformados entao em simples particulares, naopoderiam influir muito numa forma de sufragio cujosvotos eram recolhidos por cabe~a e na qual 0 menor dosproletcirios podia tanto quanto 0 principe do Senado.

Vemos assim que, alem da ordem resultante dessasdiversas distribui~6es para 0 recolhimento dos sufragiosde urn povo tao numeroso, tais distribui~6es nao se redu­ziam a formas indiferentes em si mesmas, tendo cada umade1as efeitos relacionados aos objetivos que as tornavampreferidas.

Sem entrar em maiores detalhes a esse respeito, re­sulta dos esclarecimentos acima que os comicios por tri­bos eram os mais favoraveis ao governo popular, e oscomicios por centurias, a aristocracia. Quanto aos comi­cios por curias, cuja pluralidade era formada unicamen­te pelo populacho de Roma, como s6 serviam para favo­recer a tirania e os maus designios, acabaram caindo emdescredito; os pr6prios sediciosos se abstiveram de urnmeio que punha demasiado a mostra os seus projetos.Certo e que toda a majestade do povo romano encontra­va-se apenas nos comicios por cenrurias, os unicos com­pletos, visto que nos comicios por curias faltavam as tri-

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bos rUsticas e, nos comicios por tribos, 0 Senado e ospatricios.

No que concerne amaneira de recolher os sufragios,era ela, entre os primeiros romanos, tao simples quantoseus costumes, conquanto menos simples ainda que emEsparta. Cada urn dava seu sufragio em voz alta, enquan­to urn escrivao 0 anotava; a pluralidade de votos em cadatribo determinava 0 sufragio da tribo, a pluralidade devotos entre as trihos determinava 0 sufragio do povo, e 0

mesmo ocorria nas curias e nas cenrurias. Esse uso foiborn enquanto reinava a honestidade entre os cidadaos eenquanto cada urn tinha vergonha de dar publicamenteseu sufragio a urn projeto injusto ou a urn sudito indigno;quando, porem, 0 povo se corrompeu e se passou a com­prar os votos, tornou-se mais conveniente da-Ios em se­gredo para conter os compradores pela suspeita e forne­cer aos velhacos urn meio de nao se tornarem traidores.

Bern sei que Cicero reprova24 essa mudan~a e the atri­bui, em parte, a ruina da Republica. Contudo, embora sen­tindo 0 peso que deve ter aqui a autoridade de Cicero,nao posso partilhar a mesma opiniao. Penso que, ao con­trario, par nao se ter feito bastantes mudan~as semelhan­tes e que se acelerou a ruina do Estado. Como 0 regimedas pessoas sas nao e apropriado aos doentes, nao sedeve querer governar urn povo corrompido pelas mes­mas leis que convem a urn povo born. Nada comprovamelhor essa maxima que a dura~ao da Republica deVeneza, cujo simulacro ainda existe unicamente porquesuas leis nao convem senao a homens maus.

Distribuiram-se entao aos cidadaos umas tabuinhascom as quais cada urn podia votar sem que se soubessequal era sua opiniao. Estabe1eceram-se tambem novas

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formalidades para 0 recolhimento das tabuinhas, a con­tagem dos votos, a comparaC;;ao dos numeros, etc. Issonao impediu que muitas vezes se suspeitasse da fidelida­de dos funcionarios encarregados dessas func;;oes*. Pinal­mente, para impedir 0 conluio e 0 trafico dos sufcigios,promulgaram-se editos cuja inutilidade e atestada por suaquantidade.

Nos ultimos tempos, era-se freqiientemente obriga­do a recorrer a expedientes extraordinarios para suprir ainsuficiencia das leis. Ora se imaginavam prodigios, masesse' meio, que podia enganar 0 povo, nao enganavaaqueles que 0 governavamj ora se convocava brusca­mente uma assembleia antes que os candidatos tivessemtempo para urdir seus conluios, ora se consumia umasessao inteira a falar quando se via 0 povo, ja conquista­do, disposto a tomar urn mau partido. Mas, por fim, aambiC;;ao frustrou tudo, e 0 mais incrivel e que, em meioa tantos abusos, esse povo imenso, grac;;as a seus antigosregimentos, nao deixava de eleger os magistrados, deaprovar as leis, de julgar as causas, de resolver os neg6­cios particulares e publicos, quase com a mesma facilida­de com que 0 poderia ter feito 0 pr6prio Senado.

CAPiTULO V

Do Trlbunato

Quando nao se pode fixar uma proporc;;ao exata en­tre as partes constitutivas do Estado, ou quando causas

• Custodes, Distributores [Ed. de 1782: Diribitoresl, Rogatores sufJragio­

rum".

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indestrutiveis alteram sem cessar suas relac;;oes, institui­se entao uma magistratura particular que nao forma cor­po com as demais, que restabelece cada termo em suaverdadeira relaC;;ao e impoe uma ligaC;;ao ou urn meio­termo, seja entre 0 principe e 0 povo, seja entre 0 prin­cipe e 0 soberano, seja ainda,se necessario, de ambos oslados ao mesmo tempo.

Esse corpo, que chamarei de tribunato26, e 0 conser­

vador das leis e do poder legislativo. Serve algumas ve­zes para proteger 0 soberano contra 0 governo, comofaziam em Roma os tribunos do povo, outras vezes parasustentar 0 governo contra 0 povo, como faz agora emVeneza 0 Conselho dos Dez, e outras, ainda, para man­ter 0 equilibrio de urn lado e de outro, como faziam osHoros em Esparta27

o tribunato nao e uma parte constitutiva da Cidade enao deve dispor de nenhuma parcela do poder legislati­vo nem do executivo, mas e justamente ai que reside suamaior forc;;a, pois, nada podendo fazer, tudo pode impe­dir. Emais sagrado e reverenciado como defensor das leis .do que 0 principe que as executa e 0 soberano que asdita. Poi 0 que se viu com muita c1areza em Roma, quan­do esses orgulhosos patricios, que sempre desprezaramtodo 0 povo, foram forc;;ados a curvar-se perante urn sim­ples funcionario do povo, que nao tinha nem auspiciosnem jurisdiC;;ao28

o tribunato sabiamente equilibrado e 0 mais firmeapoio de uma boa constituiC;;ao, mas, por pouco quecresc;;a sua forc;;a, tudo subverte. Quanto a fraqueza, elanao esti em sua natureza e, desde que ele seja algumacoisa, nunca e menos que 0 necessario.

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o tribunato degenera em tirania quando usurpa 0

poder executivo, de que e apenas 0 moderador, e quan­do quer outorgar as leis que s6 the compete proteger. 0enorme poder dos Horos, que nao constituiu perigoenquanto Esparta conservou os seus costumes, aceleroua corrup~ao come~ada. 0 sangue de Agis, degolado poresses tiranos, foi vingado por seu sucessorj 0 crime e 0

castigo dos Horos apressaram igualmente a ruina daRepublica e, ap6s Cleomenes, Esparta nao foi mais nada29

Roma pereceu tambem pela mesma via, e 0 poder exces­sivo dos tribunos, usurpado gradativamente, serviu en­fim, com 0 auxilio das leis feitas para a liberdade, de sal­vaguarda aos imperadores que a destruiram30

• Quanto aoConselho dos Dez em Veneza, trata-se de urn tribunalsangrento, tao horrivel para os patricios como para 0

povo, e que, longe de proteger impavidamente as leis, janao serve, depois de seu aviltamento, senao para desfe­rir nas trevas golpes que nao se ousa perceber.

o tribunato, como 0 governo, debilita-se pela multi­plica~ao de seus membros. Quando os tribunos do povoromano, a principio dois, depois cinco, quiseram duplicaresse numero, 0 Senado permitiu que 0 fizessem, certo deconter uns pelos outros, 0 que nao deixou de acontecer.

A melhor forma de prevenir as usurpa~6es de urncorpo tao temivel, forma essa que nenhum governoatentou ate aqui, seria nao tornar esse corpo permanen­te, regulamentando os intervalos durante os quais ficariasuprimido. Tais intervalos, que nao devem ser suficiente­mente grandes para nao dar aos abusos tempo para afir­mar-se, podem ser fixados pela lei, de modo que sejafacil abrevia-Ios, quando necessario, por comiss6es ex­traordimirias.

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Esse meio me parece livre de inconvenientes, vistoque, como ja disse, nao fazendo parte da constitui~ao, 0

tribunato pode ser suprirnido sem que ela sofra com isso.E parece-me eficaz porque urn magistrado novamentereintegrado em suas fun~6es nao parte do mesmo poderde seu antecessor, mas apenas do que a lei the concede.

CAPITULO VI

DaDitadura

A inflexibilidade das leis, que as impede de se adap­tarem aos acontecimentos, pode, em certos casos, torna­las perniciosas e causar por seu intermedio a perda doEstado em crise. A ordem e a lentidao das formas reque­rem urn lapso de tempo que as circunstancias algumasvezes recusam. Podem apresentar-se mil casos nao pre­vistos pelo legislador, e e uma previdencia muito neces­saria saber que nao se pode preyer tudo.

Nao se deve, portanto, querer consolidar as institui­~6es politicas a ponto de retirar-se 0 poder de suspender­lhes 0 efeito. A pr6pria Esparta deixou de lado suas leis.

Mas s6 os maiores perigos podem contrabalan~ar0

de alterar a ordem publica, e nunca se deve sustar 0

poder sagrado das leis a nao ser quando se trata da sal­va~ao da patria. Nesses casos raros e manifestos, prove­se a seguran~a publica por urn ato particular que a colo­ca nas maos do mais digno. Esse encargo pode ser outor­gada de duas maneiras, conforme a especie do perigo.

Se, para remedia-Io, basta aumentar a atividade dogoverno, deve-se concentra-Io em urn ou dois de seusmembros. Desse modo, 0 que se altera nao e a autorida-

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de das leis, mas apenas a forma de sua administra~ao. Seo perigo e de tal monta que a aparelho das leis constituaurn obsticulo a sua garantia, nomeia-se entao urn chefesupremo que fa~a calar todas as leis e suspenda por urnmomenta a autoridade soberana; em tal caso, a vontadegeral nao e duvidosa, e tornasse evidente que a primei­ra inten~ao do povo e que a Estado nao venha a pere­cer. Assim, a suspensao da autoridade legislativa nao sig­nifica a sua aboli~ao: 0 magistrado que a silencia naopode faze-Ia falar, domina-a sem poder representi-Ia etudo pode fazer, exceto ditar leis.

o primeiro meio era empregado pelo Senado roma­no quando encarregava os consules, par uma f6rmulaconsagrada31 , de prover a salva~ao da Republica; 0 se­gundo ocorria quando urn dos dois consules nomeavaurn ditador*, uso cujo exemplo Alba dera aRoma.

No come~o da Republica, recorreu-se com muita fre­qiiencia aditadura, porque a Estado nao tinha ainda urnalicerce suficientemente fixo para poder sustentar-se uni­camente pela for~a de sua constitui~ao. Entao, como ascostumes tornavam superfluas muitas das precau~6es

necessarias em outros tempos, nao se temia que urn dita­dor abusasse de sua autoridade, nem que tentasse con­serva-Ia alem do prazo estabelecido. Parecia, ao contra­rio, que tao grande poder era uma sobrecarga para quemdele estava revestido, tanto seu detentor se apressava emdesfazer-se dele, como se ocupar 0 lugar das leis consti­tuisse urn posto excessivamente arduo e perigoso.

Assim, nao e 0 perigo do abuso, mas a do avilta­mento, que me leva a reprovar 0 uso imoderado dessa

• Essa nomea~iio era feita a noite e secretamente, como se tivessem ver­gonha de colocar um homem acima das leis.

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__________Livro IV _

suprema magistratura nos primeiros tempos. Pois, en­quanto a prodigalizavam em elei~6es, em consagra~6es,

em coisas de mera formalidade, era de recear-se que elase tornasse menos temivel em caso de necessidade e quese acostumassem a olhar como urn titulo VaG esse que s6era empregado em vas cerimonias32 •

Perto do fnn da Republica, os romanos, tornando-semais circunspeetos, ao administrarem a ditadura poupa­ram tanta razao quanto a que haviam prodigalizado ante­riormente. Era facll ver que seu medo era infundado, quea fraqueza da capital constituia entao sua seguran~a con­tra os magistrados que abrigava em seu seio, que urn dita­dor podia, em certos casos, defender a liberdade publicasem jamais poder atentar contra ela, e que os grilh6es deRoma nao seriam, de modo algum, forjados na pr6pria Ro­rna, mas em seus exercitos. A pouca resistencia que Ma­rio ofereceu a Sila, e Pompeu a Cesar, mostra muito berno que se podia esperar da autoridade de dentro contra afor~a de fora.

Esse equivoco fez com que cometessem grandes er­ros, como, por exemplo, 0 de nao nomear urn ditador nocaso de Catilina33, pois, como se tratava apenas de caso in­terno da cidade, ou, quando muito, de alguma provinciada Itilia, com a autoridade ilimitada que as leis conferiamao ditador, ele teria facilmente dissipado a conjura~ao,

que s6 foi abafada gra~as ao concurso de acasos felizes,com os quais a prudencia humana jamais deveria contar.

Em vez disso, a Senado contentou-se em delegar to­do 0 seu poder aos consules, donde resultou que Cicero,para agir eficazmente, viu-se obrigado a passar34 essepoder num ponto capital. Se os primeiros transportes dealegria levaram aaprova~ao de sua conduta, foi com jus-

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ti~a que, em seguida, Ihe pediram conta do sangue doscidadaos derramado contra as leis, censura que nao sepoderia fazer a urn ditador. A eloquencia do consul, po­rem, arrebatou-os; e ele proprio, conquanto cidadao roma­no, preferindo sua propria gloria a patria, nao buscavatanto 0 meio mais legitimo e seguro de salvar 0 Estadoquanto 0 de obter todas as honrarias desse caso·. Porisso foi justamente glorificado como libertador de Romae justamente punido como infrator das leis. Por brilhan­te que tenha sido sua volta, e certo que foi uma gra~a.

De resto, de qualquer maneira que seja conferida essaimportante comissao, importa flXar-lhe a dura~ao numprazo muito breve e que jarnais possa ser prorrogado; nascrises que deterrninam 0 seu estabelecimento, 0 Estado elogo destruido ou salvo e, passada a necessidade premen­te, a ditadura toma-se tiranica ou va. Em Roma, so haven­do ditadores por seis meses, a maioria abdicou antes decompletar-se esse prazo. Se 0 prazo tivesse sido mais lon­go, talvez fossem tentados a prorroga-lo ainda mais, comofizeram os decenviros com 0 prazo de urn ano. 0 ditadorso tinha tempo para prover a necessidade que provocarasua elei~ao; nao 0 de pensar em outros projetos.

CAPITULO VII

Da Censura 35

Assim como a dec1ara~ao da vontade geral se faz pe­la lei, a dec1ara~ao do julgamento publico se faz atraves

·0 que ele nao podia garantir-se se propusesse urn ditador, nao ousandonomear a si mesmo e nao podendo ter certeza de que seu colega 0 nomearia.

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da censura. A opiniao publica e a especie de lei cujoministro e 0 censor, 0 qual nada mais faz que aplica-laaos casos particulares, a exemplo do principe36•

Longe, pois, de ser 0 arbitro da opiniao do povo, 0

tribunal censorio e apenas 0 seu dec1arador, e, assim quedela se afasta, suas decisoes sao vas e sem efeito.

E inutil distinguir os costumes de uma na~ao dosobjetos de sua estima, uma vez que tudo se prende aomesmo principio e se confunde necessariamente. Entretodos os povos do mundo, nao e a natureza, mas a opi­niao que decide da escolha de seus prazeres. Reformaias opinioes dos homens e seus costumes se depuraraopor si mesmos. Amamos sempre 0 que e belo ou 0 queconsideramos tal, mas e nesse julgamento que nos enga­namos, razao pela qual e mister regula-lao Quem julga oscostumes julga a honra, e quem julga a honra tira sualeP7 da opiniao.

As opinioes de urn povo nascem de sua constitui­~ao. Conquanto a lei nao rege os costumes, e a legisla­~ao que os faz nascer; quando a legisla~ao se debilita, oscostumes degeneram, mas entao 0 julgamento dos cen­sores nao fad 0 que a for~a das leis nao tiver feito.

Decorre dai que a censura pode ser utH para conser­var os costumes, nao, porem, para restabelece-los. Instituicensores durante a vigencia das leis, finda a qual instaura­se 0 desespero. Nada de legitimo ted for~a quando as leisdeixarem de te-Ia.

A censura preserva os costumes impedindo que asopinioes se corrompam, conservando-Ihes a retidao me­diante sabias aplica~oes, chegando as vezes a fixa-lasquando se mostram ainda incertas. 0 usa dos "segundos"nos due1os, levado ate 0 furor no reino de Fran~a, veio a

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ser abolido em decorrencia destas simples palavras deurn edito do rei: "Quanto aos que tern a covardia de re­correr a segundos." Esse julgamento, antecipando-se aodo publico, determinou-o de urn golpe. Mas, quando osmesmos editos quiseram estabelecer que era igualmenteuma covardia bater-se em duelo, 0 que e perfeitamenteverdadeiro, porem contcirio aopinHio comum, 0 publicozombou dessa decisao, sobre a qual ja formara seu juizo.

Ja disse alhures· que, nao estando a opiniao publicasubmetida a coa~ao, torna-se desnecessario qualquer ves­tigio disso no tribunal instituido para representa-Ia. Nun­ca admiraremos em demasia a arte com a qual esse re­curso, totalmente perdido para os modernos, era utiliza­do pe10s romanos e mais ainda pe10s lacedem6nios.

Tendo urn homem de maus costumes apresentadouma boa proposta no Conselho de Esparta, os Horos,sem leva-Ia em considera~ao, fizeram com que a mesmaproposta fosse apresentada por urn cidadao virtuoso.Que honra para urn, que infamia para 0 outro, sem quese fizesse nenhum louvor nem censura a qualquer dosdois! Uns bebados de Samos·· profanaram 0 tribunal dosforos; no dia seguinte, par edito publico, os samios obti­veram permissao para se comportarem como vilaos38 • Urnverdadeiro castigo teria sido menos severo que seme­lhante impunidade. Quando Esparta pronunciou-se sobreo que era ou nao honesto, a Grecia nao ape10u de seusjulgamentos.

• limite-me a indicar neste capitulo 0 que tratei mais extensamente naLettre aM. d'Alembert.

•• Eram eles de outra ilha [Quio}, que a delicadeza de nosso idioma proi­be nomear neste momento. [Nota acrescentada a edi~ao de 1782.]

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CAPITULO VIII

Da Religiilo Civil

Os homens nao tiveram, no principio, outros reisalem dos deuses, nem outro governo que nao 0 teocrati­C039• Raciocinaram entao como Caligula, e era justo 0 seuraciocinio. Enecessaria uma longa altera~ao de sentimen­tos e ideias para que se possa resolver a tomar urn seme­Ihante como senhor e persuadir-se de que isso constituiurn bern.

Pelo simples fato de se colocar Deus a frente decada sociedade politica, e licito conduir que houve tan­tos deuses quantos foram os povos. Dois povos estra­nhos urn ao mitro, e quase sempre inimigos, nao podemreconhecer por muito tempo urn mesmo senhor; doisexercitos em luta nao podem obedecer ao mesmo chefe.Assim, das divisoes nacionais resultou 0 politeismo, edeste a intoleriincia teol6gica e civil, que naturalmente ea mesma, como sera explicado mais adiante.

A fantasia, acalentada pelos gregos, de reencontrarseus deuses entre os povos barbaros veio daque1a, quetambem tinham, de se considerarem os soberanos natu­rais desses povos. Em nossos dias, contudo, e bern ridi­cula a erudi~ao que pretende identificar os deuses dasdiversas na~oes, como se Moloch, Saturno e Cronos pu­dessem ser 0 mesmo deus; como se 0 Baal dos fenicios,o Zeus dos gregos e 0 Jupiter dos latinos pudessem sero mesmo; como se pudesse haver algo comum entreseres quimericos que usam nomes diferentes! Se me per­guntarem por que, no paganismo, onde cada Estadotinha seu culto e seus deuses, nao havia guerras de reli­giao, responderei que era exatamente por isso, porquecada Estado, tendo seu culto pr6prio do mesmo modo

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que seu govemo, nao distinguia seus deuses de suas leis.A guerra politica era tambem teol6gica: a jurisdis;:ao dosdeuses era, por assim dizer, circunscrita pelos limites dasnas;:oes. 0 deus de urn povo nao tinha direito algum sobreos outros povos. Os deuses dos pagaos nao eram deusesciumentos; dividiam entre si 0 imperio do mundo. 0 pr6­prio Moises e 0 povo hebreu admitiam essa ideia algumasvezes, falando do Deus de Israel. Viam como nulos, e ver­dade, os deuses dos cananeus, povos proscritos, fadados adestruis;:ao e cujo lugar deviam ocupar; mas reparai emcomo e1es falavam das divindades dos povos vizinhos quelhes era proibido atacar: "A posse do que pertence a Cha­mos, vosso Deus", diziaJefte aos amonitas, "nao vos e legi­timamente devida? Pe1as mesmas razOes, possuimos as ter­ras que nosso Deus vencedor adquiriu."* Ai esti, ao queme parece, uma paridade perfeitamente reconhecida entreos direitos de Chamos e os do Deus de Israel.

Quando, porem, os judeus, submetidos aos reis daBabilania e, mais tarde, aos reis da Stria, quiseram obsti­nar-se em nao reconhecer nenhum outro deus alem doseu, tal recusa, encarada como uma rebeliao contra 0

vencedor, atraiu sobre eles as perseguis;:oes que lemosem sua hist6ria e das quais nao se conhece outro exem­plo antes do cristianismo**.

• Nonne ea quae possidet Chamos deus tuus tibi jure debentur? Tal e 0

texto da Vulgata, 0 Padre de Carrieres traduziu: "Nao acreditais ter direito apossuir 0 que pertence a Chamos, vosso deus?" Ignoro a for~a do textohebreu, mas vejo que, na Vulgata, ]efte reconhece positivamente 0 direito dodeus Chamos e que 0 tradutar frances enfraquece esse reconhecimento porurn "segundo v6s" que nao consta do texto latino.

•• Eevidente que a guerra dos f6cios, chamada guerra sagrada, nao foiuma guerra de religiao. Tinha par objeto punir sacrilegios, e nao submeter osincreus.

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Estando, pois, cada religiao ligada unicamente asleis do Estado que a prescrevia, nao havia outra formade converter urn povo a nao ser subjugando-o, nem ou­tros missionarios alem dos conquistadores; e, sendo a leidos vencidos a obrigas;:ao de mudar de culto, era precisocomes;:ar por veneer antes de pregar. Longe de combate­rem os homens pelos deuses, eram, como se ve em Ho­mero, os deuses que se batiam pelos homens. Cada qualpedia ao seu deus a vit6ria, e a pagava com novos alta­res. Os romanos, antes de tomar urn lugar, intimavam osdeuses locais a abandona-Io, e quando deixaram aos ta­rentinos seus deuses irritados foi porque consideravamesses deuses como submetidos aos seus e obrigados aprestar-Ihes homenagem. Deixavam aos vencidos seusdeuses, como de resto suas leis. Vma coroa ao Jupiter doCapit6lio era quase sempre 0 unico tributo que lhes im­punham.

Pinalmente os romanos, tendo estendido, juntamen­te com seu imperio, 0 seu culto e os seus deuses, e ten­do e1es pr6prios adotado muitas vezes os dos vencidos,concedendo a uns e outros 0 direito de Cidade, os povosdesse vasto imperio acabaram, sem perceber, por possuiruma multidao de deuses e cultos, quase sempre os mes­mos em todos os lugares; desse modo veio 0 paganismoa ser conhecido em todo 0 mundo como uma unica eidentica religiao.

Poi nessas circunstancias que Jesus veio para estabe­lecer na Terra urn reino espiritual; 0 que, separando 0

sistema teol6gico do sistema politico, subtraiu a unidadedo Estado e provocou as divisoes intestinas que nuncadeixaram de agitar os povos cristaos. Ora, essa ideia novade urn reino do outro mundo nunca pade entrar na ca-

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be~a dos pagaos, e eles sempre consideraram os cristaoscomo verdadeiros rebeldes que, sob uma submissao hi­pocrita, so esperavam pelo momenta em que se torna­riam independentes e senhores, usurpando habHmente aautoridade que simulavam respeitar em sua fraqueza. Talfoi a causa das persegui~6es40.

o que os pagaos temiam aconteceu. Entao, tudomudou de figura: os humildes cristaos mudaram de lin­guagem e logo se viu esse pretenso reino do outro mundotornar-se, sob a dire~ao de urn chefe visivel, 0 mais via­lento despotismo neste mesmo mund041.

Entretanto, como sempre houve urn principe e leiscivis, resultou desse duplo poder urn eterno conflito dejurisdi~aoque impossibHitou a existencia de qualquer boapolitia nos Estados cristaos, e jamais se conseguiu saber aque senhor ou sacerdote se estava obrigado a obedecer.

Varios povos, contudo, mesmo na Europa ou emseus arredores, quiseram conservar ou restabelecer 0antigo sistema, mas sem sucesso; 0 espirito do cristianis­mo dominou tudo. 0 culto sagrado permaneceu sempreou veio a tornar-se independente do soberano e sem li­ga~ao necessaria com 0 corpo do Estado. Maome teveobjetivos muito salutares; soube ligar muito bern seu sis­tema politico e, enquanto a forma de seu governo sub­sistiu sob a dire~ao dos califas que the sucederam, talgoverno foi exatamente coeso e, por isso, born. Mas, tor­nando-se os arabes florescentes, letrados, polidos, fracose covardes, foram subjugados pelos barbaros. Recome­r;ou enta~ a divisao entre os dois poderes; embora sejamenos visivel entre os maometanos que entre os cris­taos, nem por isso deixa de existir entre eles, sobretudo.na seita de Ali; e ha Estados, como a Persia, em que istose faz sentir continuamente.

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_ LivrolV _

Entre nos, os reis da Inglaterra converteram-se em che­fes da Igreja, e 0 mesmo fizeram os czares; com esse titulo,porem, tornaram-se mais ministros que senhores; adquiri­ram mais 0 direito de mante-la que 0 de muoo-Ia. Nao saolegisladores, mas apenas principes. Onde quer que 0 cleroconstitua urn corpo*, e, em sua al~ada, senhor e legislador.Existem, pois, dois poderes, dois soberanos, na Inglaterra ena Russia, do mesmo modo que alhures.

De todos os autores cristaos, 0 filosofo Hobbes42 foio unico que viu 0 mal e 0 remedio, que ousou propor areuniao das duas cabe~as da aguia, criando a unidade po­litica, sem a qual nunca 0 Estado e 0 governo serao bernconstituidos. Mas Hobbes deve tef visto que 0 espiritodominador do cristianismo era incompativel com 0 seusistema e que 0 interesse do sacerdote seria sempre maisforte que 0 do Estado. Nao foi tanto 0 que ha de horrivele de falso em sua politica, como 0 que nela ha de justo ede verdadeiro, que a tornou odiosa**43.

Creio que, desenvolvendo sob este ponto de vista osfatos historicos, facilmente se refutariam os sentimentosopostos de Bayle e Warburton44, dos quais 0 primeiro pre­tende que nenhuma religiao e utH ao corpo politico e 0

• Note-se que nao sao tanto as assembleias formais, como as da Fran\;a,que unem 0 clero num corpo, mas a comunhao das igrejas. A comunhao e aexcomunhao sao 0 pacto social do clero, pacto com 0 qual sera sempre 0

senhor dos povos e dos reis. Todos os sacerdotes que comungam juntos saoconcidadaos, ainda que se encontrem nos dois extremos do mundo. Essainven\;ao e uma obra-prima em politica. Nada existia de semelhante entre ossacerdptes pagaos. Por isso jamais constituiram urn carpo clerical.

•• Vede, entre outras, numa carta de Grotius a seu irrniio, de 11 de abrilde 1643, 0 que esse sabio homem aprova e 0 que censura no livro De cive(Docidadao). Everdade que, inclinado it indulgencia, ele parece perdoar ao autoro bern em favor do mal; mas nem todo mundo e assim tao clemente.

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_________ 0 Contrato Social _

segundo sustenta, ao contf<lrio, que 0 cristianismo cons­titui seu mais firme apoio. Provariamos ao primeiro quenunca houve Estado a que a religiao nao servisse debase, e ao segundo que a lei crista e, no fundo, maisnociva que utH a forte constitui~ao do Estado. Para mefazer entender melhor, basta dar urn pouco mais de pre­cisao as ideias, por demais vagas, sobre religiao relativasao meu assunto.

A religiao, considerada em rela~ao a sociedade, quee geral ou particular, pode tambem dividir-se em duasespecies, a saber: a religiao do homem e a do cidadao. Aprimeira, desprovida de templos, de altares e de ritos,limitada unicamente ao culto interior do deus supremo eaos deveres eternos da moral, e a pura e simples religiaodo Evangelho, 0 verdadeiro teismo, eo que se pode cha­mar de direito divino natural. A outra, inscrita num unicopais, fornece-lhe os deuses, os padroeiros pr6prios etutelares: tern seus dogmas, seus ritos, seu culto exteriorprescrito por leis; afora a unica na~ao que a segue, todassao consideradas por ela infieis, estrangeiras, barbaras;nela os direitos e os deveres do homem nao van alem deseus altares. Assim foram todas as religioes dos primeirospovos, as quais se pode dar 0 nome de direito divino oupositivo.

Ha urn terceiro tipo de religiao, mais estranho, que,dando aos homens duas legisla~oes, dois chefes, duaspatrias, submete-os a deveres contradit6rios e os impedede serem ao mesmo tempo devotos e cidadaos. Tal e areligiao dos lamas, ados japoneses e 0 cristianismo ro­mano. Pode-se denominar esta ultima de religiao do Pa­dre. Dai resulta uma especie de direito misto e insocia­vel45 que nao tern nome.

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_ Livro IV _

Se considerarmos politicamente esses tres tipos dereligiao, veremos que todos eles tern os seus defeitos. 0terceiro e tao evidentemente mau que constitui perda detempo 0 divertimento de demonstci-Io. Tudo quanto rom­pe a unidade social nao serve para nada. Todas as institui­~oes que poem 0 homem em contradi~aoconsigo mesmonada valem.

o segundo e born na medida em que reune 0 cultodivino e 0 amor das leis e, fazendo da patria 0 objeto daadora~ao dos cidadaos, ensina-Ihes que servir ao Estadoe servir ao deus tutelar. E uma especie de teocracia, naqual nao se deve ter outro pontifice alem do principe,nem outros sacerdotes alem dos magistrados. Entao,morrer por seu pais e alcan~ar 0 martirio, violar as leis eser impio e submeter 0 culpado a execra~ao publica esacrifica-Io a c6lera dos deuses: sacer estod46

E, porem, mau na medida em que, fundado no erroe na mentira, engana os homens, torna-os credulos,supersticiosos, e sufoca 0 verdadeiro culto da divindadenum van cerimonial. E mau ainda quando, tornando-seexclusivo e tiranico, leva 0 povo a ser sanguinario e into­lerante, de modo que ele s6 respira assassinio e massa­cre e acredita praticar uma a~ao sagrada ao matar quemquer que nao admita os seus deuses. Isso coloca tal povoem estado natural de guerra contra todos os demais, 0

que e muito prejudicial a sua pr6pria seguran~a.

Resta, entao, a religiao do homem ou 0 cristianismo,nao 0 de nossos dias, mas 0 do Evangelho, que dele di­fere POf completo. Por essa religiao santa, sublime, ver­dadeira, os homens, filhos do mesmo Deus, se reconhe­cern todos como irmaos, e a sociedade que os une naose dissolve nem na morte.

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-- 0 Contrato Social _

No entanto essa religHlo, nao tendo nenhuma rela­c;ao particular com 0 corpo politico, deixa as leis unica­mente com a forc;a que elas tiram de si mesmas, sem lhesacrescentar nenhuma outra, e, por isso, urn dos grandesvinculos da sociedade particular fica sem efeito. E mais:longe de unir os corac;c5es dos cidadaos ao Estado, ela osafasta, como, alias, de todas as coisas terrenas. Nao co­nhec;o nada mais contrario ao espirito social.

Dizem-nos que urn povo de verdadeiros cristaos for­maria a mais perfeita sociedade que se pode imaginar.Nao vejo nessa suposic;ao senao uma grande dificuldade:e que uma sociedade de verdadeiros cristaos ja nao seriauma sociedade de homens.

Afirmo ate que essa suposta sociedade nao seria, comtoda a sua perfeic;ao, nem a mais forte nem a mais dura­doura. A forc;a de ser perfeita, faltar-lhe-ia uma ligac;ao;seu vicio destrutivo residiria em sua pr6pria perfeic;ao.

Cada qual cumpriria 0 seu dever; 0 povo estaria sub­metido as leis, os chefes seriam justos e moderados, osmagistrados integros, incorruptiveis, os soldados despre­zariam a morte, nao haveria luxo nem vaidade. Tudoisso e muito born, mas tentemos enxergar mais longe.

o cristianismo e uma religiao totalmente espiritua147,

preocupada unicamente com as coisas do ceu. A patriado cristao nao e deste mundo. E verdade que ele cum­pre seu dever, mas 0 faz com profunda indiferenc;a acer­ca do born ou mau exito de seus esforc;os. Desde quenada haja a reprovar-lhe, pouco the importa que tudocorra bern ou mal ca embaixo. Se 0 Estado floresce, 0

cristao mal ousa desfrutar da felicidade publica; temeorgulhar-se da g16ria de seu pais; se 0 Estado declina, eleabenc;oa a mao de Deus que pesa sobre 0 povo.

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_ LivroIV _

Para que a sociedade fosse tranquila e se mantives­se a harmonia, seria preciso que todos os cidadaos, semexcec;ao, fossem igualmente bons cristaos. Se, porem,por infelicidade, houver entre eles urn s6 ambicioso, urns6 hip6crita, urn Catilina, por exemplo, urn Cromwell, estefara de seus piedosos compatriotas 0 que bern entender.A caridade crista nao permite facilmente que se pensemal do pr6ximo. Desde que tal individuo, grac;as a qual­quer ardil, haja encontrado urn meio de impor-se a eles eapoderar-se de uma parte da autoridade publica, sera urnhomem investido de dignidade; Deus quer que seja res­peitado. Torna-se logo urn poder: Deus quer que sejaobedecido. 0 depositario desse poder abusa dele? Ea va­ra com que Deus castiga seus filhos. Se a conscienciaaconselhasse 0 afastamento do usurpador, seria precisoperturbar a tranquilidade publica, usar de violencia, der­ramar sangue, e tudo isso nao se harmoniza com a doc;u­ra do cristao; e, por fim, que importa ser livre ou escravonesse vale de miserias? 0 essencial e ir para 0 paraiso, ea resignac;ao nao passa de mais urn meio para atingi-lo.

Sobrevem uma guerra estrangeira? Os cidadaos mar­cham sem dificuldade para 0 combate; nenhum dentreeles pensa em fugir; todos cumprem 0 seu dever, mas sempaixao pela vit6ria. Melhor sabem morrer que vencer.Vencedores ou vencidos, que importa? Nao sabe a Pro­videncia, melhor que eles, 0 que lhes convem? Imagine-seque partido urn inimigo altivo, impetuoso e apaixonadopode tirar de seu estoicismo! Colocai a frente deles essespovos generosos, devorados pelo ardente amor da g16riae da patria, suponde vossa republica crista em face deEsparta ou de Roma: os piedosos cristaos serao venci­dos, esmagados, destruidos antes de terem tido tempo

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_________ 0 Contrato Social _

para se reconhecerem, ou entao se salvarao gra~as ao des­prezo do inimigo. A meu ver, era urn belo juramento 0dos soldados de Fabi048

: nao juravam morrer ou veneer,mas juravam voltar vencedores, e cumpriam seu jura­mento. Nunca os cristaos agiriam de forma semelhante,pois acreditariam estar desafiando Deus. Engano-me, po­rem, ao aludir a uma republica crista: cada urn dessestermos exclui 0 outro. 0 cristianismo prega unicamenteservidao e dependencia. Seu espirito e demasiado favo­ravel a tirania para que ela nao se aproveite disso comfrequencia. Os verdadeiros cristaos sao feitos para serescravos; sabem disso e nao se comovem muito; aos seusolhos, esta vida breve tern muito pouco valor.

As tropas crisms sao excelentes, dizem. Nao concor­do. Mostrem-me essas tropas. Quanto a mim, nao conhe­~o tropas cristas. Citar-me-ao as Cruzadas. Sem discutir 0valor das Cruzadas, observarei que, longe de serem cris­taos, eram soldados do clero, eram cidadaos da Igreja;batiam-se por seu pais espiritual, que ela, nao se sabecomo, transformara em temporal. Bern pesadas as coisas,era uma volta ao paganismo. Como 0 Evangelho naoestabelece uma religiao nacional, toda guerra sagrada eimpossivel entre os cristaos.

Sob os imperadores pagaos, os soldados cristaos erambravos. Todos os autores cristaos 0 afirmam, e eu acredi­to: era uma emula~ao de honra contra as tropas pagas.Assim que os imperadores se tornaram cristaos, essaemula~ao ja nao subsistiu; e, quando a cruz expulsou aaguia, todo 0 valor romano desapareceu.

Mas, deixando de lado as considera~oes politicas,voltemos ao direito e fixemos os principios relativos aesse ponto importante. 0 direito, que 0 pacto social con-

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_ Livro IV _

fere ao soberano sobre os suditos, nao ultrapassa, comovimos, os limites da utilidade publica*. Portanto, os sudi­tos s6 devem ao soberano contas de suas opinioes namedida em que estas interessam a comunidade. Ora, aoEstado importa que cada cidadao tenha uma religiao queo fa~a amar seus deveres; os dogmas dessa religiao,porem, nao interessam nem ao Estado nem a seus mem­bros, a nao ser enquanto se ligam a moral e aos deveresque aquele que a professa e obrigado a obedecer em re­la~ao a outrem. No mais, cada qual pode ter as opinioesque the aprouver, sem que toque ao soberano tomarconhecimento delas, pois, como sua competencia naochega ao outro mundo, 0 destino dos suditos na vida futu­ra nao the diz respeito, contanto que sejam bons cida­daos nesta vida.

Ha, pois, uma profissao de fe meramente civil, cujosartigos 0 soberano deve fixar, nao exatamente como dog­mas de religiao, mas como sentimentos de sociabilidade,sem os quais e impossivel ser born cidadao ou suditofiel**. Sem poder obrigar ninguem a acreditar neles, podebanir do Estado quem quer que nao creia neles; pode ba­ni-los, nao como impios, mas como insociaveis, como

• "Na Republica", diz 0 marques d'Argenson, "cada qual e perfeitamen­te livre naquilo que nao prejudica os demais." Eis 0 limite invari<ivel; nao sepode fOOi-lo mais exatamente. Nao pude resistir ao prazer de mencionar algu­mas vezes esse manuscrito, embora desconhecido do publico, para honrar amemoria de urn homem i1ustre e respeitivel, que conservou ate no ministerioo cora\;ao de urn verdadeiro cidadao e opini6es retas e salutares sobre 0

governo de seu pais.•• Cesar, pleiteando por Catilina, procurava estabelecer 0 dogma da

mortalidade da alma; Catao e Cicero, para refuti-Io, nao perderam tempo filo­sofando: contentaram-se em demonstrar que Cesar falava como mau cidadaoe expunha uma doutrina perniciosa ao Estado. Com efeito, era essa a questaoque 0 Senado de Roma devia julgar, e nao uma questao de teologia.

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__________ 0 Contrato Social _

incapazes de amar sinceramente as leis, a. justi~a, e deimolar, em caso de necessidade, sua vida ao dever. Se al­guem, depois de ter reconhecido publicamente esses mes­mos dogmas, se conduz como se nao acreditasse neles,deve ser punido com a morte, pois cometeu 0 maior doscrimes: mentiu perante as leis.

Os dogmas da religiao civil devem ser simples, empequeno numero, enunciados com precisao, sem expli­ca~5es nem comenmrios. A existencia da divindade po­derosa, inteligente, benfazeja, previdente e providente, avida futura, a felicidade dos justos, 0 castigo dos maus, asantidade do contrato social e das leis, sao estes os dog­mas positivos. Quanto aos dogmas negativos, limito-os aurn s6: a intolerancia, implicita nos cultos que exc1uimos.

Enganam-se, a meu ver, os que distinguem49 a into­lerancia civil da intolerancia teol6gica. Essas duas intole­rancias sao inseparaveis. E impossivel viver em paz compessoas que se acredita reprobas; ama-Ias seria odiarDeus que as castiga; e absolutamente necessario conver­te-Ias ou tortura-Ias. Onde quer que se admita a intole­rancia teol6gica, e impossivel que nao haja urn efeitocivil*; e, assim que este aparece, 0 soberano deixa de sersoberano, mesmo no tocante ao poder temporal: dai por

• 0 matrimonio, por exemplo, sendo urn contrato civil, tern efeitos civissem os quais e impossivel que a sociedade subsista. Suponhamos, pois, queurn clero acabe atribuindo apenas a si mesmo 0 direito de realizar esse ato,direito que deve necessariamente usurpar em qualquer religiao intolerante.Entao, nao e evidente, que, fazendo valer a autoridade da Igreja nesse ponto,tomara va a do principe, que nao tera mais suditos alem daqueles que 0 clerohaja por bern dar-lhe? Senhor de casar ou nao casar as pessoas segundo pro­fessem esta ou aquela doutrina, segundo adInitam ou rejeitem este ou aqueleformulario, segundo the sejam mais ou menos devotadas, comportando-seprudentemente e mantendo-se firmes, nao e claro que s6 ele dispora das

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_ LivroIV _

diante, os sacerdotes passam a ser os verdadeiros senho­res; os reis serao apenas seus funcionariosso.

Agora que ja nao ha nem pode haver religiao nacio­nal exc1usiva, deve-se tolerar todas as que se mostramtolerantes com as outras, desde que seus dogmas nadatenham de contrario aos deveres do cidadao. Mas quemquer que ouse dizer: Fora da Igreja nao hd salvafaOs1

J

deve ser banido do Estado, a menos que 0 Estado seja aIgreja, e 0 principe, 0 pon(uice. Tal dogma s6 pode serutil num governo teocratico; em qualquer outro, e perni­cioso. A razao pela qual se diz que Henrique IV abra~ou

a religiao romana deveria fazer com que todos os ho­mens de bern se afastassem dela, especialmente todoprincipe que soubesse raciocinar.

CAPITULO IX

Conclusao

Depois de ter exposto os verdadeiros prindpios dodireito politico e procurado fundar 0 Estado em sua ba­se, restaria ainda ampara-Io por suas rela~5es externas, 0

heran~as, dos cargos, dos cidadaos e do pr6prio Estado, que nao podera sub­sistir composto unicamente de bastardos? Mas, dir-se-a, cita-lo-ao aos tribunaiscomo abusivo, intimida-lo-ao, sentencia-lo-ao, sera condenado pelo podertemporal. Que lastima! 0 clero, por pouco que tenha, nao direi de coragem,mas de born senso, deixara tranqiiilamente citar, intimar, sentenciar, prender,e acabaci sendo 0 senhor. Nao e, creio eu, grande sacrificio abandonar umaparte quando se tern a certeza de apoderar-se do todo. [Esta nota s6 figuraem alguns exemplares da edi~ao original. Rousseau pedira sua supressao aseu editor, embora a tiragem da obra ja tivesse come~ado. Reapareceu na edi­~ao de 1782.]

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_________ 0 Contrato Social _

que compreenderia a direito das gentes, a comercio, adireito da guerra e das conquistas, a direito publico, asligas, as negocia~6es, as tratados, etc. Tudo isso, porem,constitui urn assunto novo e muito vasto para minhacurta vista. Tive que fixa-Ia sempre mais perto de mim.

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Notas

LivroI

1. 0 povo de Genebra e, mais especiaImente, 0 ConselhoGeral dessa cidade, chamado de Soberano Conselho 0.200"cidaclaos e burgueses"), no qual Rousseau foi admitido a tomarparte uma vez em 1754.

2.jurista hol~d~ 0583-1645),.um dos principais .~<:6ri<:~~

do direito natural do seculo XVII. Suas obras mais conhecidassao Dejure belli acpacis e De jureproedae.

3. Ministro de Luis XV.4. Fil6sofo ingles 0588-1679), urn dos grandes pensado­

res do seculo XVII no campo da filosofia politica; autor de Decive (642) e Leviata (651).

5. Fllon de Alexandria, tambem chamado F'J.1on, 0 judeu,fil6sofo do primeiro seculo de nossa era.

6. Arist6teles, Polftica, Livro I.7. Alusao a Robert FiImes, autor de urn livro intitulado: Pa­

triarcha or the Natural Power ofKings (680), que Locke ja cri­ticara.

8. Alusao asenten\;a de Sao Paulo: Non estpotestas nisi aDeo (nao ha autoridade que nao proceda de Deus) (Epistolasaos romanos, XIII, I).

9. No sentido de arruinar.

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___~ o Contrato Social _

10. Rousseauvi?~a~,!,i a tese de Hob~..p~a.qu~m .~civil e o· bell.' supremo. A esta:'Rousseau prefere a liberrlaQ@-.

< '-' ... -,. __ .' '.""---'-"- ..

11. Sobre a guerra, ver Ecrits sur I'abbe de Saint-Pierre, O.c., III, p. 601. Segun.Qg..Rousseall, a g,1!ma, no sentido estrito,s6 existe entre' Estados, nag entre individllos.-- 12. Aportuguesamento de politie, transcri~ao do gregg1tOA1'tEl<X, que significa: governo, regime politico, republica,condi~ao de cidadao. Lembremos que este e 0 titulo do dialo­go de Platao, designado pelo nome de Republica. Ha motivospara se pensar que esse termo evocava para Rousseau toda a"Cidade-antiga".

13. Insensato, isto e, que na~ corresponde a exigencia dereciprocidade de todo compromisso verdadeiro.

14. Uma institui~ao.

15. Essas observa~6es deixam evidente que 0 corpo poli­tico assim formado e uma cria~ao voluntaria de individuosdeterminados a promover uma comunidade que nada deve a"natureza" e tudo a "arte". Donde a expressao de artificialismoempregada as vezes para qualificar essa doutrina, artificialismoextremo pelo qual se aparenta profundamente a doutrina deHobbes.

16. E0 elemento essencial e original da doutrina de Rous­seau. Para ele, "a essencia do corpo politiCO esta na. concordan­cia entre a obediencia e a liberdade".

17. Isto e, as clausulas sao universais e necessarias. Saoimpostas pela razao, tal como e entre todos os homens.

18. Rousseau ja afirmara no Diseurso sobre a eeonomiapolitiea: "A vida de ambos [do corpo politico e do corpo orga­nizado] e 0 Eu comum ao todo, a sensibilidade redproca e acorrespondencia interna de todas as partes."

19. Cite, para Rousseau, na~ corresponde ao sentido cor­rente da palavra cidade. Segundo 0 Die. Robert; cite e uma 'f~=

derasa.o ;lut6noma de tribos agrupadas soJ2.jnsl:ituiQ'>e§.religio­~pQHt;;s~C:Qmu.D-£ significado que se aproxirna do terrnogrego "p6lis". Por na~ se dispor de urn terrno espedfico para

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_ Notas _

esse sentido na lingua portuguesa, cite sera traduzido pelo ter­mo Cidade (grafado com inicial maiuscula).

20. Cf. Carta a d'Alembert: "Os suditos e 0 soberano saoapenas os mesmos homens considerados a partir de rela~6es

diferentes." Assim, cada associado e cidadao e sudito ao mesmotempo, sem que nisso haja contradi~ao.

21. Como todos os contratos, 0 pacto social deve preen­cher as condi~6es de validade essenciais para a pr6pria exis­tencia de urn contrato, antes de tudo, 0 consentimento das par­tes, 0 que implica ao menos duas partes contratantes.

22. Porque s6 pode proceder mediante leis e atos gerais,pode pronunciar-se apenas acerca de objetos de interessecomum, com exclusao de qualquer outro objeto. Dai s6 podertomar decis6es que se aplicam indiscriminadamente a todos oscidadaos; d. Livro II, cap. IV.

23. F6rmula voluntariamente paradoxal, que desnorteoumuitos comentadores e motivou (juntamente com a exigenciade aliena~ao total) a acusa~ao de totalitarismo, abrindo urndebat~ que ainda hoje esta longe de estar encerrado.

, 24. Civil: "que pertence a sociedade, em oposi~aoa selva­gem" (Die. Littre).

25. Esse paralelo.26. Dominio (do latim dominium, propriedade) real (de

res, coisas): termo juridico que designa a propriedade das coi­sas e dos bens.

27. Cf. J. Locke, Ensaio sobre 0 poder civil, cap. V, § 36: "0limite natural da propriedade e nitidamente definido pelacapacidade humana de trabalho e pela satisfa~ao das necessi­dades vitais."

28. Nunez Balboa, conquistador espanhol da primeirametade do seculo XVI, descobriu, do alto dos montes do istmodo Panama, 0 oceano Pacifico, do qual tomou posse em nomedo rei da Espanha.

29. Usurpafao, no original usurpation, e empregado nosentido etimo16gico: "usurpare, propriamente, apoderar-se pe­10 usa, pela posse, sem direito a aquisi~ao" (Die. LittW).

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__________ 0 Contrato Social .,....- _

LivroII

1. Professor de direito em Groningue, Barbeyrac publi­cou, no inicio do seculo XVII, tradu~oes comentadas das obrasde Grotius e de Pufendorf. Ao contrario desses autores, era detendencia liberal.

2. Halbwachs resume assim os fatos lembrados aqui porRousseau: "Em 1628, quando Guilherme de Orange desembar­cou na Inglaterra, 0 rei Jaime II fugiu pura a Fran~a. 0 Par­lamento declarou entio que Jaime II abdicara e elegeu Gui­lherme como rei. Se Barbeyrac dissesse que Jaime II fora ex­pulso, escorra~ado, teria admitido que Guilherme era rei pelavontade do povo, mas contrariamente ao direito da realezalegitima hereditaria. Eis por que adere atese da abdica~aoqueera contraria aos fatos" (p. 141).

3. Rousseau pensa nas institui~oes quase independentesque existiam em Genebra: conselhos, parlamentos e Igrejas.

4. Organizador lendario do Estado espartano que, repar­tindo as terras em partes iguais, suprirniu as desigualdadessociais (ver Livro II, cap. VII).

5. S6lon (640-548), legislador ateniense, dividiu os cida­daos em quatro classes, de acordo com sua fortuna.

6. Numa Pompilio, rei lendario de Roma que, a fim derestituir a unidade aRoma dividida em duas ligas (os romanose os sabinos), dividiu 0 povo em grande quantidade de asso­cia~oes de oficios.

7. Servio TUlio, rei lendario de Roma, organizou a cidadepor cenrurias.

8. Uma forca que se aplica a todos e capaz de coagir.9. Em seu objeto: tern por objetivo 0 interesse geral; em

sua essencia: e a vontade geral.10. Alusao a Locke que, em Ensaio sobre 0 governo civil

(1. III, § 2), escreve: "Urn homem, nao tendo direito sobre apr6pria vida, nao pode, por nenhum tratado nem por seu pr6­prio consentimento, tornar-se escravo de quem quer que seja,

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_ Notas _

nem se submeter ao poder absoluto e arbitrario de urn outro,que the tire a vida quando the aprouver. Ninguem pode darmais poder do que tern; e aquele que nao pode tirar a pr6priavida nao pode, por certo, transmitir a outrem direito algumsobre ela."

11. Principe designa 0 governo ou 0 magistrado encarre­gado da execu~ao das leis (ver 1. III, cap. I).

12. Estas linhas visam a Montesquieu.13. "Aquele que institui leis para urn povo. Licurgo foi 0

legislador da Lacedemonia, S6lon, 0 de Atenas" (Die. Littr§).14. Trata-se do dialogo de Platio intitulado Politico. Cali­

gula considera que os chefes sao de fato superiores aos ho­mens que comandam, como os pastores 0 sao aos animais queconduzem. Platao, tendo definido os reis como pastores dehomens, critica essa defini~ao e empenha-se em analisar asqualidades requeridas pela fun~ao real. Mostra, no fim do dia­logo, que estas se resumem ao dominio da ciencia, que e aces­sivel a apenas pouquissimos homens.

15. Ver Montesquieu, Grandeur et decadence des Ro­mains (Grandeza e decadencia dos romanos), cap. 1.

16. Alusao aos decenviros que redigiram, de 451 a 449, alei das Doze Tabuas (concedendo a igualdade civil aos patri­cios e aos plebeus). Os decenviros eram antigos consules, emnumero de dez, investidos de autoridade absoluta durantetodo 0 periodo de reda~ao das leis. Editadas as leis, foramexpulsos pelo povo devido a seus abusos.

17. A palavra nao deixa de surpreender. A ideia de razaode Estado e a de uma especie de interesse superior que 0 poli­tico pode invocar em favor de suas decisoes, que parecem con­testaveis do ponto de vista da moral privada. Trata-se de umano~ao que se tornou corrente a partir de Maquiavel, isto e,desde a epoca em que surgiram os grandes Estados modernos.Rousseau nao emprega aqui esse termo extatamente nesse sen­tido. Trata~se, para ele, da razao encarnada no Estado, da racio­nalidade da qual 0 Estado e portador.

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__________ 0 Contrato Social _

18. Isto e, ordem religiosa.19. A leijudaica: obra de Moises, urn dos grandes legisla­

dores, com S610n e Licurgo. 0 fllho de Ismael: Maome. A orgu­lhosa fllosofla: alusao a tragedia de Voltaire, Maome, que nelae mostrado como urn impostor. 0 cego espirito de partido:subentender "da Igreja romana".

20. Warburton (1698-1779), bispo ingles, autor de obras ce­lebres na epoca sobre as rela~6es entre a religiao e a politica.

21. Na primeira versao de 0 contrato, em que os capitulos8, 9 e 10 formavam apenas urn capitulo, 0 titulo escolhido porRousseau era Do povo para instituir. Este indica, melhor que 0titulo da versao definitiva, 0 objetivo da passagem: determinaras condi~6es que urn povo deve preencher para estar "prontopara a legisla~ao".

22. Detalhes tirados de Plutarco: "Platao fora convidadopelos habitantes de Grene para deixar-Ihes leis escritas por suamao e para regulamentar a administra~ao da Republica deles.Mas ele recusou-se, dizendo que era dificil, no estado de pros­peridade em que viviam os cirenaicos, redigir leis para eles."

23. A edi~ao de 1782 traz: "A maior parte dos povos berncomo dos homens" (A um principe ignorante).

24. Alusao as lutas travadas nos Paises Baixos por Egmonte Guilherme de Orange contra a ocupa~ao espanhola, e as tra­vadas por Guilherme Tell na Sui~a contra 0 imperador.

25. Na edi~ao de 1782: "A juventude nao e a infancia. Paraas na~6es como para os homens existe urn tempo de juventu­de ou de maturidade que e preciso esperar."

26. Reminiscencias de Maquiavel, Discurso sobre Tito Li­vio, passim.

27. Esta passagem, que devia irritar sobremaneira Voltaire,corresponde a uma ideia fundamental de Rousseau, a de que"todo povo deve ter urn carMer nacional". Projet de constitu­tion pour la Corse (Projeto de constitui~ao para a C6rsega, p.913). A prop6sito da profecia de Rousseau, Voltaire escreveu:"A corte de Petersburgo nos olhara como a grandes astr610gos,

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-------- Notas _

se souber que urn de nossos rapazes relojoeiros regulou a horaem que 0 imperio russo deve ser destruido." Idees republicaines(Ideias republicanas, § 37).

28. Divisao administrativa da Persia antiga.29. Ver Principes (Prindpios), III, §§ 65 ss. Propondo-se a

explicar 0 mundo, Descartes admite dois elementos: a materiae 0 movimento. Sup6e que a materia, agitada pelo movimen­to perpetuo, deve deslocar-se em peda~os, e que 0 movimentogeral que a agita deve fragmentar-se pouco a pouco em cor­rentes refrat:irias em linha reta, e, por isso, turbilhonares. As­sim, segundo Descartes, 0 universo e formado por imensosturbilh6es que movem e arrastam massas de materia. Celebredoutrina acatada ate 0 seculo XVIII.

30. Provaveis reminiscencias de Maquiavel, Discurso so­bre Tito Livio, I, 6, e de Montesquieu, Grandeur et decadencedes Romains (Grandeza e decadencia dos Romanos, IX).

31. Ao contr:irio do que as vezes se afirma, Rousseau naoprofetiza aqui a vinda de Napoleao. Pensa na resistencia que oscorsos opuseram a Republica de Genova, sob a dire~ao dePaolo Paoli, her6i admirado pela maioria dos fil6sofos daepoca, inclusive Voltaire. A C6rsega era, para a opiniao publicadaquele tempo, 0 simbolo da coragem que pode demonstrarurn pobre povo apaixonado pela liberdade. Assim, nao e de seestranhar que tenha impressionado a imagina~ao de Rousseau.

32. Comedores de peixes.33. Talvez 0 alvo dessa critica nao seja Montesquieu, co­

mo pretende Beaulavon (p. 206). Halbwachs vai de encontroa essa opiniao, alegando que 0 livro XIX de 0 espirito das leistrata dos costumes, assim como a teoria dos prindpios dosdiversos governos remete ao ambito dos costumes. Talvez sedeva admitir que nossos signifique aqui "modernos" de modogeral, e que Rousseau critique a seus contempodneos menosa ignorancia dos costumes do que 0 desconhecimento de suaimportancia, perfeitamente reconhecida pelos autores antigos.Por outro lado, a expressao sobretudo a opiniiio e urn convite

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_________ 0 Contrato Social _

para aproximar esta passagem ao capitulo IV das Conside­rations sur Ie gouvernement de Pologne, no qual Rousseau afir­ma que a educa~ao, "formando os gostos e as opini6es" (p. 966),constitui a base mais firme da ordem social. Nesse ponto, co­mo assinala Bertrand de Jouvenel (p. 250), Rousseau sente-seurn disdpulo dos autores antigos, que nao dissociavam politi­ca e pedagogia como se ve em A Republica e em As leis dePlatao ou na Republica dos lacedemonios de Xenofonte.

LivrolIl

1. Montesquieu, em 0 espirito etas leis, tambem distingueesses dois poderes, mas os coloca no mesmo plano, dividindoassim a soberania, que e, segundo Rousseau, indivisivel (Livro II,cap. I). Rousseau foi 0 primeiro a estabelecer, entre 0 legislativoeo executivo, uma separa~ao tao radical (que ele desenvolveucom perfeita coerencia, mas que nao deixa de ser problematica).

2. Para Rousseau, 0 Estado e 0 corpo politico enquantopassivo, logo, 0 conjunto dos suditos, ao passo que 0 soberanoe 0 corpo politico enquanto ativo, ou 0 conjunto de cidadaosenquanto legisladores.

3. Ideia cartesiana. Ver 0 Discurso do metodo.4. Isto e, ados cidadaos (especialmente os direitos de pro­

priedade) e a da Cidade em seu conjunto.5. A palavra rei surpreende. Cumpre lembrar que rei vern

de rex, que deriva de regere, que significa governar. Rousseaupretende salientar que se deve distinguir entre rei e soberano.o emprego da palavra principe para designar 0 corpo de ma­gistrados tambem surpreende. Parece pr6prio de Rousseau.

6. Ha que se notar este termo, assim como as palavras empre­go e oftciais, lembrando-se que oficial vern de oficio (cargo).

7. Entender: do conjunto de cidadaos considerados comoativos com 0 conjunto dos suditos ou cidadaos consideradoscomo passivos.

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------- Notas _

8. Embora muito hostil ao despotismo, Rousseau nao epartidario da anarquia, nem de urn executive fraco. Esse todosubalterno interior ao todo da Republica deve ter uma "vidareal" e, contanto que subsista 0 vinculo de subordina~aoque 0

une ao soberano, Rousseau deseja que seja "forte", nao sem sedar conta das "dificuldades" existentes.

9. 0 principe: 0 todo coletivo; 0 governo: 0 conjunto deindividuos. 0 principe corresponde ao soberano, 0 governo aoEstado. Rousseau vai mostrar que a forma de governo depen­de do numero de magistrados que 0 comp6em.

10. Magistrado e tornado no sentido abstrato: conjunto demagistrados.

11. Este termo designa os membros do governo.12. Notar 0 relativismo, expresso aqui, quanto a "forma"

de governo, relativismo essencial ao pensamento de Rousseau.Mas, para ele, se as formas de governo que distingue sao todasaceitaveis, s6 ha urn regime politico legitimo: 0 regime demo­cratico, isto e, 0 que se fundamenta na soberania do povo. Vermais adiante.

13. A apologia do luxo e urn lugar-comum do seculo XVIII:ver Mandeville, Lafable des abeilles (1705); Melon, Essais sur Iecommerce (1734); Voltaire, Le mondain (1736). Mais uma vez,Rousseau op6e-se a seus contemporaneos e, em sua condena­~ao do luxo, faz lembrar 0 tom dos moralistas antigos e dos ser­monarios. Ver 0 Discurso sobre as ciencias e as artese 0 prefa­cio de Narciso.

14. Montesquieu, 0 espirito das leis (1. III, cap. III).15. "Chamo republica (= Estado legitimo) a todo Estado

regido por leis" (1. II, cap. VI).16. "Antes os perigos da liberdade do que a tranquilidade

da servidao."17. Geronte: velho (palavra grega).18. Sobre essa no~ao, ver 0 Discours sur l'inegalite (Dis­

curso sobre a desigualdade).

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_________ 0 Contrato Social _

19. Capitulo que exige aten~ao. A monarquia tratada noinicio e, com toda a evidencia, a monarquia republicana deque Rousseau menciona a possibilidade te6rica no 1. II, cap.VI. Mas a do fim do capitulo refere-se as monarquias de fato,em particular a monarquia francesa.

20. Ver especialmente em Samuel 1, cap. VIII, versiculos 1a 8 e 10 a 18.

21. Esta interpreta~ao de Maquiavel nao e exdusiva deRousseau. Encontra-se em Spinoza (Tractatus politicus, 1. V,cap. VII) e em Diderot (Enciclopedia).

22. Alusao ao poder dos ministros que, artifices do abso­lutismo, atrairam para si 0 6dio de uma parte da nobreza e doTerceiro Estado.

23. Voltaire cia sua resposta a Rousseau: "Esse amontoadode pequenas antiteses cinicas nao convem de modo algum aurn livro sobre 0 governo, que deve ser escrito com a dignida­de da sabedoria. Quando urn homem, seja quem for, presumebastante de si mesmo para dar li~Oes sobre a adrninistra~ao

publica, deve parecer prudente e imparcial, como as pr6priasleis que prega." Idees republicaines(Ideias republicanas).

24. Todo este paragrafo foi acrescentado ao texto nas pro­vas (Carta a Rey, 6 de janeiro de 1762, Correspondencegenerale,VII, p. 41). A frase um desses homens nascidos para governareurn elogio a Choiseul, a quem Rousseau esperava agradar. Naoatingiu seu objetivo; ver Conjessions(ConflSsOeS), II, livro IX.

25. Ver Plutarco, Ditos notiiveis de reis e grandes capitiies,§ 21. A ideia de que 0 poder corrompe e antiga, ja estando pre­sente em Platiio, As leis, III, e Arist6teles, Politica, III e VIII.

26. "Pois 0 meio mais eficaz e mais rapido de discernir 0

bern do mal e perguntares a ti mesmo 0 que quererias ou naoquererias sob urn outro reL"

27. Refuta~ao.

28. as defensores da monarquia.29. Alusao talvez a Bossuet, Politique tiree de l'ecriture sain­

te, 1. IV, cap. 1.

180

___________ Notas _

30. Ver 0 espirito das leis, 1. XVII, cap. II.31. Ver a defini~ao do termo na nota 12 do livro 1.32. Jean Chardin 0643-1713). Sua obra, Voyages en Perse

et aux Indes Orientales (1 i! edi~ao em 1711), teve consideravelrepercussao. Euma das fontes de Montesquieu e Voltaire.

33. Isto e, os chefes do povo revoltado.34. "as tolos denominavam cultura 0 que ja era urn inicio

de servidao."35. "No lugar onde estabeleceram urn deserto, pretendem

ter estabelecido a paz."36. Maquiavel, Hist6ria de Florenfa, "Introdu~ao".

37. Encerramento do Conselho.38. Titulo de uma obra anonima, publicada em 1612, vi­

sando a estabelecer os direitos do imperador sobre a Republicade Veneza.

39. Sentido neutro: movimento.40. Oclocracia: governo do populacho; oligarquia: gover­

no de poucas pessoas.41. "Entendem-se por tiranos aqueles que preparam a ins­

tala~ao do poder numa cidade que foi livre."42. Hierou, dialogo de Xenofonte, autor de Anabasis e

Memorabflia(430-354 a.c.). Deve-se Ier 0 6timo estudo de Levi­Strauss, De la tyrannie, que e urn comentario desse dialogo.

43. A opiniao favoravel que delas se tern pelo fato de suaantiguidade.

44. Atual: tanto no sentido de "real" em oposi~ao a possi­vel ou virtual, quanto de "presente" em oposi~ao a passado efuturo. A assembleia e 0 soberano que se manifesta "em carnee osso" aos olhos dos governantes, lembrando-Ihes que estesdependem dele.

45. No sentido pr6prio de escudo.46. Rousseau e 0 unico de seu tempo a defender a corveia

(condenada pela opiniao esdarecida e que Turgot tentara abo­Iir) e a protestar contra a introdu~ao de impostos destinados asubstitui-Ia. Ver tambem Projetpour la legislation de la Corse eConsiderations sur Ie gouvernement de Pologne.

181

_________ 0 Contrato Social _

47. Esta clara a alusao a Fran~a.

48. Guardas que acompanhavam os altos magistrados emRoma.

49. Cf. Essai sur l'origine des langues, cap. xx.50. 0 termo desnaturado nao tern aqui 0 sentido positivo

que amiude Rousseau the empresta, mas 0 sentido negativo dealterado, viciado.

51. Todos os cidadaos sao legisladores (prescrevem). Uni­camente 0 govemo, em virtude de urn mandato, tern 0 poderexecutivo (0 de exigir). Por que 0 soberano se isentaria dastarefas de exec'u~ao?Porque s6 pode, enquanto tal, prescreverde modo geral e porque essas tarefas sempre tern urn caciterparticular.

52. Expressao juridica antiga, que vern do Direito Romano.Eurn caso no qual 0 exercicio do direito reivindicado pareceser perigoso (segundo Beauvalon, p. 282).

53. Foi sobretudo essa passagem que causou a condena­~ao da obra: acusaram Rousseau de querer destruir todos osgovemos.

54. Grotius partilha essa ideia, ver Do direito da guerra eda paz, 1. II, cap. V.

LIVROIV

1. Isto e, os cantoes sui~os.

2. Cf. Considerations sur Ie gouvernement de Pologne, X,e Fragments politiques.

3. Organiza~ao politica.4. Guizos (sonnettes em frances): penitenciaria onde eram

detidos os condenados por penas graves (do alemao Schalle­nhaus); disciplina: casa de corre~aode Genebra para os jovensturbulentos e ind6ceis da cidade.

5. Comfcios: assembleias eleitorais de Roma.6. Hist6rias, I, 85.

182

_ Notas _

7. Principio individualista essencial a doutrina do contra­to, igualmente admitido por Pufendorf e Locke.

8. Ver Considerations sur Ie gouvernement de Pologne, 1.IX, Obras Completas, III.

9. Os doges eram eleitos mediante urn procedimento com­plicado que compreendia mais de oito opera~oes de escrutinioe de sorteio (segundo Beauvalon).

10. 0 espfrito das leis, LJI, cap. II.11. Rousseau, como os pensadores antigos, considera a

magistratura como uma "carga", e 000 como uma ''vantagem'',menos ainda como urn "emprego" no sentido modemo do termo.

12. Em Veneza, usava-se 0 termo bamabotes para desig-nar os pobres, que moravam no bairro de Sao Bamabe.

13. Ver Polysynodie (Polissinodia) e ]ugement sur Polysy­nodie (Julgamento sobre a Polissinodia).

14. Dreyfus-Brisac mostrou que os autores que serviramde fonte a Rousseau neste capitulo enos tres seguintes foramSigonius (De antiquo jure civium romanorum [Direito antigodos cidadaos romanos]) e Maquiavel (Discorsi sopra Tito Livio[Discurso sobre Tito Livio]).

15. Essas etimologias sao duvidosas e parece que 0 nomede Roma tern origens etruscas. Entretanto, como observou Ber­trand de ]ouvenel, a nota de Rousseau assume novo relevo se!ida aluz dos trabalhos de G. Dumezil. Para este eminente histo­riador, os dois primeiros reis de Roma sao personagens fabulo­sos representando, 0 primeiro, a for~a e, 0 segundo, a justi~a,

dois aspectos da soberania; d. Mitra e Varuna, Paris, 1948.16. Segundo a lenda, Servio Tulio deu a Roma sua primei-

ra constitui~ao politica.17. R6mulo.18. Entender: habitantes da cidade.19. Varrao (116-27 a.c.), autor de De Re Rustica (Da agri­

cultura). Ede se notar a parcialidade de Rousseau para com aagricultura.

20. Plinio, 0 velho, urn dos mais celebres eruditos de Roma.

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__________ 0 Contrato Social _

21. Real: relativo aos bens materiais.22 Os que s6 podem ser recenseados pela cabec;a.23. Palavra que surpreende. Ha duas interpretac;6es: au a po­

va "apoderou-se" do govemo que pertencia aos patricios, au apovo "apossou-se" de func;6es que nao the cabiam (teoria expos­ta no Livro III). 0 contexto parece indicar esta ultima leitura.

24. Cicero (De Legibus, III, 15): "Quem nao ve que a leique estabelece a escrutinio secreta arrebatou da elite toda aautoridade que esta podia ter? Desta lei, nunca urn povo livresentiu necessidade; ele a reclama com insistencia quando eoprimido pelo poder e pela dominac;ao dos grandes." VerMontesquieu, 0 espirito das leis, 1. II, cap. II.

25. "Os que guardam, as que distribuem, as que recolhemas sufragios."

26. Do latim tribunatus. Os tribunos foram instituidos emRoma par volta de 493. De origem plebeia, tinham par func;aoa defesa da plebe contra as magistrados e as patricios. Tinham,contra todos as magistrados, a direito de veto e a de interces­sao. Sacrossantos, dispunham de poder consideravel. Rous­seau retoma aqui esse termo e generaliza seu sentido.

27. Eforos, magistrados instituidos para manter a discipli­na espartana entre as cidadaos; acabaram par se tamar asdonas da Cidade.

28. Auspicios: as tribunos da plebe sao criados sem que setirem previamente as auspicios (inauspicato), ao passo que asoutros magistrados s6 podem ser nomeados ap6s exame dosauspicios. Sem jUrisdi~ao: as tribunos nao aplicam leis, apenasimpedem as abusos do poder.

29. Reminiscencias de Plutarco. Agis e Cleomenes figuramentre as ultimos reis de Esparta, no seculo III a.c.

30. Alusao a Cesar, e sobretudo a Otavio, entre cujos po­deres encontrava-se a poder tribunicio.

31. Caveant consules, ne qUid detrimenti res publica ca­piat: "Que as consules zelem para que a republica nao sofranenhum dana."

184

_ Notas _

32. Beauvalon assinala: "Alem dos casas de guerra e desedic;ao, nomeavam-se tambem ditadares para presidir certosatos religiosos au algumas cerimonias civis, e eles abdicavamassim que sua func;ao estava cumprida. Alem do nome, naotinham quase nada em comum com as chefes absolutos aquem se recorria cm caso de perigo extremado."

33. "Caso" celebre do fim da republica. Membro de umaantiga familia patricia, partidario de Sila, Catilina, ap6s se fazernotar par abusos e crimes, quis, em vao, dispor a consuladocontra Cicero. Morreu no ana seguinte depois de tentar assas­sinar este.

34. No sentido de "ultrapassar". Alusao ao fato de Cicero,ao conseguir a condenac;ao dos cumplices de Catilina com aconcorwncia do Senado, mas recusando-Ihes a direito de re­correr da sentenc;a, ter tornado uma medida ilegal. Seus adver­sarios condenaram-no, em seguida, ao exilio por esta razao.

35. Como a tribunato e a ditadura, a censura representauma magistratura particular cuja func;ao e "conservar as costu­mes".

36. Como a principe (0 govemo) aplica a lei editada pelosoberano (0 povo), a censor aplica aos casas particulares asjulgamentos da opiniao publica.

37. Seus valares. Sabre a opiniiio, segundo Rousseau, ver aDiscours sur l'inegalite, 1. III.Observar-se-a a ordem de depen­dencia num Estado bern constituido: as costumes dependemdas leis, e, entre urn povo cujas leis sao boas, a opiniao e sadia.

38. Camponeses.39. Isto e, de carater sobrenatural.40. Sabre a situac;ao dos cristaos no Imperio Romano, es­

creve urn especialista contemporaneo: "Ignoramos qual a mo­tivo juridico exato das perseguic;6es que sofreram... De todomodo, a opiniao publica detestava as cristaos sobretudo parconsidera-Ios como ateus." (Piganiol, Histoire romaine, p. 250)

41. Entender: a despotismo do papado. Ao mesmo tempoprotestante e homem do seculo XVIII, Rousseau tinha horrorda Igreja Cat6lica.

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_________ 0 Contrato Social _

42. Cf. Leviatii, em particular 01. II, 42. Ai Hobbes criticadiretamente as teses do cardeal Bellarmin (Tratado do poderdo Soberano Pontifice em materia corporal, 1610) e indireta­mente 0 episcopado anglicano. Sustenta que, desde a conver­sao dos chefes temporais ao cristianismo, todo 0 poder lhespertence. Ver tambem Do cidadiio, XVII, § 28.

43. 0 que ha de horrivel e de falso: a tese do estado denatureza como estado de guerra de todos contra todos; dejustoe de verdadeiro: a tese da subordinac,;:ao absoluta do poderespiritual ao poder temporal.

44. Pierre Bayle (1646-1707), autor do celebre Dicionariohist6rico e critico (1697) e de urn eloquente protesto contra arevogac,;:ao do Edito de Nantes. Cf. Montesquieu, 0 espirito dasleis,1. XXIV, cap. VI. Warburton, ver nota 20 do Livro II.

45. Insociavel: que nao permite estabelecer relac,;:6es desociabilidade. Lembremos que, para Rousseau, a soberania eindivisivel: 0 homem nao poderia obedecer a dois senhores.

46. Sacer estod: que seja consagrado aos deuses infernais,maldito.

47. Este e 0 principio, contestavel e contestado, de toda aargumentac,;:ao contra 0 cristianismo.

48. Cf. Tito Livio, II, 45.49. Provavel alusao a Diderot. Cf. Enciclopedia, artigo

Intolerancia.50. Sentenc,;:a de Tertuliano, urn dos Padres da Igreja do

Ocidente. Simboliza aqui a intoledncia do catolicismo roma­no.

51. 0 que e, aos olhos de Rousseau, a subversao daordem visada pelo contrato onde 0 Principe (= governo) e 0

"officier" do Soberano (= 0 povo).

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