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Cmaras de Placas
Resistivas (RPCs)
por Jorge Morais
Sumrio As cmaras de placas resistivas (em ingls, resistive plate chambers, de onde
vem a sigla RPC) so sistemas de deteco de partculas baseados na
ionizao de uma mistura gasosa entalada entre duas placas paralelas de
material resistivo. Para alm de produzirem sinais de amplitude razovel
e de permitirem uma excelente resoluo temporal, estes sistemas so
economicamente muito atractivos quando comparados com outros
sistemas de funcionalidade similar. O presente trabalho monogrfico
pretende compilar de forma sucinta informao relevante acerca da sua
histria e dos seus desenvolvimentos; dos princpios fsicos subjacentes
ao seu funcionamento; do seu desenho e tcnicas de produo; dos
mtodos usados na sua operao; e ainda de algumas das suas aplicaes
em experincias passadas e actuais.
I. Introduo
As RPCs pertencem famlia dos detectores gasosos, na qual figuram
sistemas como as cmaras de ionizao, as cmaras de fascas e os contadores
de Geiger-Mller. Empregam uma configurao de elctrodos planares
paralelos, tirando partido do campo elctrico uniforme que se estabelece na
regio entre os elctrodos.
Os primeiros detectores a adoptar esta configurao utilizavam
elctrodos condutores e funcionavam em modo de descarga, exigindo para a
sua operao um circuito auxiliar que restabelecesse a carga nos elctrodos
aps a descarga, aspecto que introduzia srias limitaes ao nvel da rapidez
do sistema. Um dos primeiros sistemas deste gnero foi a Cmara de Fascas
de Keuffel, introduzida em 1948.
Nos anos 70, introduziu-se uma inovao importante na constituio de
detectores de placas paralelas: a utilizao de elctrodos de material resistivo.
Com esta modificao dos sistemas tradicionais, o circuito auxiliar tornava-se
dispensvel, possibilitando taxas de deteco muito superiores s
anteriormente atingveis. Um dos primeiros dispositivos a implementar esta
soluo foi a Cmara Planar de Fascas, desenvolvida por Pestov com
elctrodos de vidro.
A concepo das primeiras RPCs remonta ao trabalho de R. Santonico e
R. Cardarelli, publicado em 1981. Aproveitando os recentes desenvolvimentos
tcnicos da altura na produo de lminas de baquelite, Santonico empregou
este material nos elctrodos do seu primeiro prottipo. Estes aparelhos
podiam ser operados em modo de avalanche ou em modo de streamer
(descarga transiente de aspecto filamentar, correspondendo a um estgio
preliminar da descarga contnua ou fasca). Desde ento, inmeras variaes
tm sido implementadas na construo destes sistemas: espaamento mais
pequeno entre os elctrodos; introduo de vrios elctrodos sucessivos;
combinaes de elctrodos resistivos e condutores; etc
Ao longo destes anos e ainda actualmente, estes detectores tm
encontrado variadas aplicaes em Fsica das Altas Energias, nomeadamente
como dispositivos de trigger e em medies de tempo. Continua ainda hoje
uma intensa actividade de investigao em torno destes dispositivos,
recorrendo a modelos fsicos, simulaes de Monte Carlo e testes empricos,
com o intuito de aprimorar o seu desempenho, adequ-lo a novos desafios e
expandir at a sua aplicabilidade a domnios diferentes dos at aqui explorados.
II. Caractersticas do Dectector
a) Constituio e Valores de Referncia
As RPCs mais simples possuem um desenho similar ao da figura 1. Dois
elctrodos planares resistivos so dispostos paralelamente, enchendo-se o
espao entre eles com uma mistura gasosa apropriada. A diferena de
potencial frequentemente estabelecida por intermdio de camadas
condutoras (por exemplo, de grafite) deposta nas superfcies exteriores dos
elctrodos, embora originalmente fosse estabelecida directamente aos
elctrodos resistivos. Comummente, encontramos ainda uma camada
isoladora mais externa, sobre a qual so depositados os terminais de pick up
dos sinais gerados no detector. Estes terminais so habitualmente fios ou
lminas condutoras, dispostas paralelamente sobre a mesma superfcie e
perpendicularmente entre as duas superfcies. So tambm frequentemente
includos espaadores de material isolador cuja funo estabilizar o hiato
entre os elctrodos. Podem ainda combinar-se duas ou mais unidades destas
paralelamente, como exemplificado na figura 2.
Nestas RPCs, a distncia entre os elctrodos ronda tipicamente os 2 mm,
sendo operadas a uma voltagem da ordem de 10 kV, o que corresponde a um
campo elctrico da ordem dos 50 kV/cm. Com estes valores, atingem-se
resolues temporais da ordem de 1 ns. Os elctrodos tm espessuras mdias
de 2 mm e resistividade compreendida entre 108 e 1011 cm, dependendo do
material utilizado.
Figura 1 Esquema de uma RPC simples.
A mistura gasosa a utilizar deve ter uma voltagem de operao
relativamente baixa, um ganho elevado, boas caractersticas de
proporcionalidade e capacidade para operar a taxas de deteco elevadas.
Tipicamente, o principal componente gasoso utilizado (em torno dos 90%)
o C2H2F4 (tetrafluoretano), que para alm de cumprir os requisitos
supramencionados no inflamvel, tornando a operao do aparelho mais
segura. Outros componentes comuns so o C4H10 (butano ou isobutano); e o
SF6 (hexafluoreto de enxofre), que pela sua electronegatividade intervm no
sentido de controlar a formao de descargas. Quando operada no modo de
streamer, comum incluir-se rgon na mistura gasosa. Por ltimo, de notar
que, de um modo geral, esta mistura satisfaz as condies de operao mesmo
a presso atmosfrica, revelando assim ainda outra vantagem destes sistemas.
Figura 2 Exemplo de uma RPC de gap dupla.
Na figura 3 est esquematizada uma configurao de multigap, em que se
incluem alguns elctrodos resistivos adicionais que subdividem o volume
gasoso em seces. Os elctrodos adicionais so sustidos por flutuao
elctrica no campo estabelecido entre os dois elctrodos originais. Esta
inovao foi introduzida em 1996. H ainda a possibilidade de intercalar
elctrodos condutores e resistivos, preservando a operacionalidade do sistema
nos regimes de avalanche e de streamer. Nestas configuraes, tm-se distncias
tpicas de 0.25 mm entre os elctrodos, e produzem-se campos da ordem dos
100 kV/cm.
Figura 3 Esquema de uma RPC de multigap.
b) Princpios de Funcionamento
Nas RPCs, como nos outros detectores gasosos, o sinal tem origem na
multiplicao da carga produzida no meio gasoso passagem de partculas
ionizantes. Os elctrodos estabelecem um campo elctrico uniforme entre si,
ficando as cargas sujeitas acelerao por ele provocada. Se a diferena de
potencial entre os elctrodos for suficientemente grande, atinge-se um regime
de multiplicao de carga por meio de avalanche: os electres originados na
ionizao primria adquirem energia suficiente para provocar ionizaes
secundrias atravs de colises com as molculas do meio gasoso, e assim
sucessivamente. Como o campo uniforme, a multiplicao passvel de
ocorrer em qualquer localizao no volume do gs.
O processo acima descrito conhecido como avalanche de Townsend.
Matematicamente, a variao infinitesimal do nmero de electres no meio
gasoso ao longo de um percurso infinitesimal dada por
( )
em que um coeficiente que descreve a probabilidade de o electro ser
captado por uma molcula electronegativa, e um factor conhecido por
primeiro coeficiente de Townsend que est relacionado com o inverso do
caminho livre mdio do electro entre colises inelsticas ionizantes. Para um
campo elctrico uniforme, como o caso da RPC, este coeficiente constante,
originando um crescimento exponencial no nmero de electres produzidos
no meio:
( ) ( )
Aqui definiu-se um coeficiente efectivo
A utilizao de elctrodos resistivos torna o colapso do processo de
avalanche e a subsequente ocorrncia de descargas muito mais difcil
comparativamente utilizao de elctrodos condutores. A elevada resistncia
faz com que as flutuaes de carga nos elctrodos seja altamente localizada,
permitindo ainda que o restante espao esteja disponvel para a deteco de
outros eventos. No entanto, a partir de certo ponto, outros efeitos comeam a
fazer-se sentir. Por um lado, uma grande concentrao de cargas provoca
distores importantes no campo elctrico de fundo. Por outro lado, a
emisso de fotes no meio gasoso permite que os processos de avalanche se
espalhem a todo o volume gasoso. O chamado limite de Raether define um
limiar fenomenolgico para a multiplicao de carga sem que se entre no
regime de descarga: , o que corresponde a uma multiplicao mxima
de . Na prtica, devido s flutuaes estatsticas inerentes ao processo de
multiplicao, no desejvel um factor de multiplicao superior a
para manter a operao no modo de avalanche.
Considerando o atravessamento de uma partcula ionizante, esta
produzir cargas em vrios pontos da sua trajectria ao longo do gs. Todas as
cargas primrias estaro sujeitas aos mesmos processos de multiplicao. Uma
forma simples e aproximada de modelar o que acontece tem como ponto de
partida a suposio de que a ionizao primria est contnua e
uniformemente distribuda em todo o volume do gs. Seja o nmeros de
electres primrios por unidade de comprimento. Se a distncia entre os
elctrodos for e os electres tiverem velocidade de deriva , de esperar
que ao fim de um tempo o nmero total de electres seja
( ) ( )
atendendo ao facto de os electres irem sendo colectados medida que
atingem o nodo. A corrente induzida nos elctrodos , pois
( ) ( )
(
)
desprezando a contribuio dos ies positivos, o que razovel dada a sua
baixa mobilidade. No caso de existirem mltiplos pick ups de leitura, utiliza-se
o mtodo de Ramo com campos de ponderao.
c) Modos de Operao
Como j foi referido, as RPCs podem ser operadas em dois regimes
distintos: o regime de avalanche e o regime de streamer. No primeiro regime,
pretende-se que os processos de avalanche se mantenham abaixo do limite de
Raether, sendo que qualquer fenmeno de descarga constitui aqui um efeito
indesejado. Neste modo, os sinais gerados tm amplitudes extremamente
pequenas, embora o sistema tenha capacidade para trabalhar a taxas de
deteco mais elevadas.
O modo de streamer, que historicamente precedeu o de avalanche, tem
um output de amplitude significativamente maior, o que se deve maior
quantidade de carga formada e a uma maior velocidade de propagao. Assim,
simplifica-se a electrnica associada no que diz respeito amplificao de sinal.
No entanto, perde-se algum poder de resposta em tempo, sendo ainda este
tipo de sistema consideravelmente mais difcil de modelar e simular.
d) Timing e Resoluo Temporal
Para a determinao de tempos, define-se um limiar de amplitude com o
qual ser comparado o sinal induzido. Atingido o limiar, a electrnica
associada ao detector regista o instante correspondente.
Em linha com o discutido acima, o sinal de corrente gerado tem uma
evoluo exponencial no tempo. Um tratamento estatstico do processo de
avalanche permite estabelecer uma distribuio estatstica da amplitude
atingida pelo sinal da forma
( )
em que a amplitude mdia. Escrevendo
( )
mostra-se que o limiar atingido num tempo
( )
Pode mostrar-se que distribuio estatstica deste tempo para um dado limiar
tem a forma
( )
(
)
A forma desta distribuio independente de , sendo que uma variao no
limiar resulta apenas numa deslocao do tempo. A sua varincia calculada
como
( )
Para valores tpicos destes parmetros em RPCs de timing, consegue-se atingir
resolues da ordem dos 50 ps.
e) Eficincia
A eficincia destes detectores depende explicitamente dos parmetros
e e est intimamente relacionada com a probabilidade com que se produzem
aglomerados de ionizaes primrias passveis de desencadear os processos de
avalanche. Pode definir-se a ineficincia como a probabilidade de uma
partcula atravessar o meio detector sem provocar nenhuma ionizao,
relacionando-a com o comprimento efectivo da regio sensvel do detector.
As RPCs apresentam valores de eficincia bastante elevados. Nas mais
simples so comuns eficincias de 70 e 80%, enquanto em configuraes com
mais elctrodos se atingem eficincias superiores a 95%. O facto de se
atingirem eficincias to elevadas num pequeno volume sensvel sugere que os
efeitos de space charge (distoro do campo elctrico pela prpria carga
produzida) sejam crticos no processo de formao do sinal.
f) Outros Aspectos
Para alm dos aspectos j referidos, relevante mencionar a capacidade
de localizao que as RPCs mais modernas apresentam. Com um sistemas de
pick ups adequado, possvel atingir resolues espaciais da ordem dos 50m e
at mais finas. Assim, este um sistema que alia caractersticas espaciais e
temporais robustas, embora o destaque continue a recair sobre a resoluo
temporal.
Outra questo relevante prende-se com o envelhecimento dos detectores
com o uso continuado. Vrios estudos tm sido levados a cabo neste mbito,
indicando que o principal efeito observvel um aumento da corrente de
fundo com perda de eficincia, devido sobretudo acumulao de depsitos
superfcie dos elctrodos. De um modo geral, estes depsitos so facilmente
eliminados com uma limpeza simples. Para alm disso, esta acumulao
lenta, pelo que o detector apresenta uma durabilidade considervel.
III. Aplicaes
Antes das RPCs, em aplicaes que exigissem uma resoluo temporal
muito fina, eram utilizados detectores cintiladores acoplados a tipos especiais
de fotomultiplicadores que atendessem s exigncias do problema. Estes
sistemas eram caros e difceis de produzir, ainda mais se fosse necessrio
cobrir uma grande rea. Neste mbito, a introduo das RPCs como
alternativa queles sistemas foi acolhida com apreo e entusiasmo.
As RPCs de single gap encontram aplicao sobretudo como
componentes de trigger em montagens de maior dimenso. J as RPCs mais
recentes, de gap duplo ou de multigap, tm aplicao na medio do tempo de
vo de partculas, o que permite, em conjunto com a determinao do seu
momento, o clculo da massa e, por conseguinte, a identificao da partcula.
Pode assim compreender-se o papel relevante que estes detectores podem
assumir ao integrar uma montagem experimental.
As RPCs tm vindo a encontrar aplicao em diversas reas de
investigao, em especial dentro da Fsicas das Altas Energias. Experincias
como o BABAR, o BELLE, o LHCb e o ATLAS tiraram partido destes
dispositivos no conjunto dos seus aparatos. Em particular, destaca-se a
utilizao de RPCs de timing na experincia ALICE, no CERN, para a medio
de tempos de vo, cobrindo uma rea de 160m2.
Outra aplicao interessante das RPCs foi na medio da anisotropia dos
raios csmicos na experincia Argo-YBJ, levada a cabo no Tibete. No entanto,
neste campo encontram-se ainda desafios por resolver, nomeadamente no que
diz respeito deteco de partculas que chegam superfcie terrestre com
energias relativamente baixas.
Como exemplo da versatilidade destes sistemas, vale pena mencionar
recentes projectos que visam implementar RPCs em sistemas de imagiologia
mdica, nomeadamente em PET. A ideia seria utilizar uma configurao de
multigap com uma aceitncia de cerca de 90%. A excelente resoluo temporal
do detector permitiria aumentar a rejeio de eventos fortuitos, melhorando a
qualidade da imagem produzida. Para alm disso, como alternativa aos
sistemas de cintiladores actualmente usados, representa atractivos econmicos
muito interessantes.
Recentemente, conceberam-se os primeiros detectores GEM de
microestrutura com elctrodos resistivos, inspirando-se directamente nas
virtudes das RPCs. Isto pode ser visto como uma aplicao indirecta, ou seja,
no do sistema em si mas da ideia conceptual que lhe serve de base. Com esta
inovao, consegue-se diminuir drasticamente o efeito nefasto da eventual
produo de descargas em sistemas to sensveis como as GEMs de
microestrutura.
IV. Concluso
As RPCs so sistemas de deteco extremamente aliciantes pelas suas
caractersticas e por todo o potencial que ainda encerram. Constituem
ferramentas de medio extremamente precisas que, pela versatilidade a que se
do no desenho e concepo (desde a escolha dos materiais s dimenses e ao
esquema de aquisio do sinal), encontram lugar em diversos contextos de
aplicao. A sua construo comporta custos baixos relativamente a uma boa
parte dos outros sistemas detectores, o que permite cobrir reas mais extensas
com menor oramento. A investigao em torno desta famlia de detectores
prossegue empolgada por todas estas razes, e promete fazer face aos desafios
que se lhe vo colocando.
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