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Quando o Cinema é Política A linguagem cinematográfica dos Noticiários do Fascismo, do Franquismo e do Varguismo Cristina Souza da ROSA Doutora em História Social - UFF Pós-doutoranda em História e Cinema Centre d'Investigaciò Film-Història Universitat de Barcelona - Espanha [email protected] Resumo O presente artigo tem por objetivo comparar a linguagem cinematográfica utilizada nos cinejornais produzidos pelo Fascismo, pelo Varguismo e pelo Franquismo discutindo o uso político e a estética empregada. Busco analisar como os cinejornais utilizaram os elementos de um cinema político: a criança vítima, o inimigo externo, o grande líder, a multidão, para construir o consenso em torno dos governos produtores dos noticiários e para legitimá-los. A referência teórico-metodológica utilizada é história comparada, que nos permite discutir as semelhanças e as diferenças dos cinejornais aqui estudados. Palavras-chave: Mussolini, Franco, Vargas, Cinejornal, Política. Abstrat This article aims to compare the language used in the film cine journal produced by Fascism, Varguismo and the Francoism by discussing the political use and aesthetics employed. I try to analyze how the cine newspapers used the elements of a political cinema: the child victim, the external enemy, the great leader, the crowd to build consensus around the news producers and governments to legitimize them. The reference theoretical methodology used is comparative history, which allows us to discuss the similarities and differences between the cine journal studied here. Keywords: Mussolini, Franco, Vargas, Cine Journal, Politics. Introdução ste artigo tem por fonte histórica os noticiários cinematográficos produzidos durante os anos 1930 e 1940 pelos governos autoritários de Mussolini, Vargas e Franco. São eles respectivamente: Cinegiornale LUCE, Fascismo; Cinejornal Brasileiro, Varguismo; Noticiário NO-DO, Franquismo. Estes cinejornais foram produzidos com o fim de levar aos cinemas as imagens dos governos autoritários nacionalistas. Desta forma, utilizando a E

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ste artigo tem por fonte histórica os noticiários cinematográficos produzidos durante os anos 1930 e 1940 pelos governos autoritários de Mussolini, Vargas e Franco. São eles respectivamente: Cinegiornale LUCE, Fascismo; Cinejornal Brasileiro, Varguismo; Noticiário NO-DO, Franquismo. Estes cinejornais foram produzidos com o fim de levar aos cinemas as imagens dos governos autoritários nacionalistas. Desta forma, utilizando a Resumo Abstrat Introdução

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Quando o Cinema é Política A linguagem cinematográfica dos Noticiários do Fascismo, do

Franquismo e do Varguismo

Cristina Souza da ROSA Doutora em História Social - UFF

Pós-doutoranda em História e Cinema Centre d'Investigaciò Film-Història Universitat de Barcelona - Espanha

[email protected]

Resumo O presente artigo tem por objetivo comparar a linguagem cinematográfica utilizada nos cinejornais produzidos pelo Fascismo, pelo Varguismo e pelo Franquismo discutindo o uso político e a estética empregada. Busco analisar como os cinejornais utilizaram os elementos de um cinema político: a criança vítima, o inimigo externo, o grande líder, a multidão, para construir o consenso em torno dos governos produtores dos noticiários e para legitimá-los. A referência teórico-metodológica utilizada é história comparada, que nos permite discutir as semelhanças e as diferenças dos cinejornais aqui estudados. Palavras-chave: Mussolini, Franco, Vargas, Cinejornal, Política. Abstrat This article aims to compare the language used in the film cine journal produced by Fascism, Varguismo and the Francoism by discussing the political use and aesthetics employed. I try to analyze how the cine newspapers used the elements of a political cinema: the child victim, the external enemy, the great leader, the crowd to build consensus around the news producers and governments to legitimize them. The reference theoretical methodology used is comparative history, which allows us to discuss the similarities and differences between the cine journal studied here. Keywords: Mussolini, Franco, Vargas, Cine Journal, Politics. Introdução

ste artigo tem por fonte histórica os noticiários cinematográficos produzidos durante os anos 1930 e 1940 pelos governos autoritários de Mussolini, Vargas e Franco. São eles respectivamente: Cinegiornale LUCE, Fascismo; Cinejornal Brasileiro, Varguismo;

Noticiário NO-DO, Franquismo. Estes cinejornais foram produzidos com o fim de levar aos cinemas as imagens dos governos autoritários nacionalistas. Desta forma, utilizando a

E

história comparada como referencial teórico, discutiremos como se dava o processo de consenso e legitimação nas telas dos cinemas. Mussolini foi o primeiro entre os três líderes a chegar ao poder. Isto aconteceu em 1922, depois da “Marcha Sobre Roma”, evento em que milhares de Camisas Negras entraram em Roma exigindo o poder político. O Rei, em uma tentativa de controlar os fascistas, convidou Mussolini a assumir o posto de Primeiro Ministro. A partir de então, o chefe dos Camisas Negras passou a organizar o regime fascista de forma a consolidar seu poder como o grande líder italiano. Getúlio Vargas, apoiado por grupos políticos e militares do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro, comandou a Revolução de 30, cujo resultado foi a destituição do presidente Washington Luís. Neste mesmo ano, Vargas assumiu como presidente provisório do Brasil. Em 1934, se mantém no cargo através de eleições indiretas, realizadas no parlamento nacional, e, em 1937, dá um golpe de Estado instaurando um governo autoritário nacionalista chamado Estado Novo. Na Espanha, em 1936, Francisco Franco, em meio à Guerra Civil Espanhola, foi proclamado, por uma junta militar “Generalíssimo” de todas as Forças Armadas e chefe do governo do Estado Espanhol. A nomeação, a princípio provisória, logo deu passo a uma ditadura vitalícia e em 1° de outubro de 1936, Franco foi investido como chefe de Estado na cidade de Burgos, sendo aclamado por uma multidão como o grande salvador. De imediato começou a firmar decretos-leis, dando início ao regime Franquista. Em 1939, com o fim da Guerra Civil, Franco se consolida no poder assumindo em Madrid todas as funções de mando político e militar do Estado Nacional. Cada um destes três líderes chegou ao poder por vias distintas e instaurou regimes de tipo nacionalistas autoritários de relativa duração1. Franco se manteve no poder até 1975, quando morreu em 20 de novembro; Mussolini deixou o poder em 1943 quando retiram o apoio político ao Fascismo e Vargas em 1945 com o fim da Segunda Guerra Mundial. O projeto de nação desenvolvido pelos três líderes continham elementos comuns como: incentivo à industrialização, militarização, fortalecimento político interno e externo, nacionalismo e construção de uma nova estrutura social, baseada em novas práticas e organização social, formação de um novo sujeito social. Com relação ao cinema, Mussolini foi o pioneiro a organizar e controlar o cinema para fins políticos. Em 1925 organizou o Istituto L’Unione Cinematografica Educativa – LUCE, criado a partir da “costela” do Sindacato Istruzione Cinematografica, dirigido pelo advogado Luciano De Feo. O Instituto LUCE, como ficou conhecido, foi o primeiro instituto nacional de cinema educativo e de propaganda organizado por um governo não comunista. Sua produção consistia em filmes de curta, média e longa-metragem que variavam entre ficção, ciência e educação, que tinham por fim divulgar a italianidade. O instituto estava dividido em cinematecas, que produziam filmes para diferentes setores do regime fascista.

1 Denomino o Fascismo, o Varguismo e o Franquismo de governo nacionalistas autoritários, pois tanto o

nacionalismo como o autoritarismo perpassam os três regimes e também é o viés nacionalista e autoritário deles que me interessa análisar.

Em 1927, nasce o Giornale Cinematografico Luce, ou Cinegiornale Luce, No ano de estreia foram produzidos 44 números, distribuídos através de 902 cópias; em 1928 a produção foi de 201 cinejornais, e foram distribuídas 4410 cópias (LAURA, 2004, p. 47). Diante destes números, pode-se dizer que o Cinegiornale Luce era, praticamente, um noticiário quotidiano. No entanto, com o passar dos anos a exibição foi sendo organizada de modo que toda semana fosse exibido um noticiário nos cinemas. O Cinegiornale Luce contava sempre com a exibição de um acontecimento político, no entanto, segundo Laura, a princípio, este tipo de acontecimento não era o mais importante dentro da estrutura do noticiário. Tal atitude mudou com o tempo, à medida que o governo de Mussolini foi se consolidando no poder. Junto às informações da vida diária e da política italiana, o Cinegiornale oferecia ao público um curta metragem produzido por uma das cinematecas do LUCE. Isto estava relacionado com o objetivo inicial do instituto, que era o de produzir documentários de tipo educativo. No Brasil, o primeiro número do Cinejornal Brasileiro foi exibido em 1938 nos tempos do Departamento Nacional de Propaganda (DNP). No entanto, foi com o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que o noticiário brasileiro ganhou força e corpo político. O Cinejornal Brasileiro não era diferente dos produzidos na Europa e nos Estados Unidos até então. Sua estrutura estava formada por assuntos de atualidade brasileira e internacional, destacando os feitos governamentais. Entre 1939 e 1946 foram produzidas 607 edições do cinejornal, um por semana, que eram exibidos nas salas de projeção antes da programação normal (TOMAIN, 2006). A exibição do mesmo era garantida pelo decreto-lei n° 21.240, de 1932, que obrigava as salas de cinema a incluir na programação de cada semana um filme nacional. Desta forma, os brasileiros tinham contato com as ações governamentais e podiam ver nas telas o Presidente Getúlio Vargas. A entidade oficial NO-DO nasceu em 29 de setembro de 1942 na Espanha, com a função de editar um noticiário e produzir documentários. Segundo a resolução de 17 de dezembro de 1942, o objetivo oficial era “manter, com impulso próprio e diretriz adequada, a informação cinematográfica nacional” (BOE de 22-XII-1942). A projeção dos noticiários e documentários do NO-DO teve início em janeiro de 1943 e foi encerrada em maio de 1981, já entrada a transição política. A entidade estava vinculada à Vicesecretaria de Educación Popular de FET y de las JONS, e seu primeiro diretor foi Joaquim Soriano. A edição dos noticiários NO-DO foi grande: 1.966 números, com 4.016 cópias. As cópias do NO-DO foram enviadas à América Hispânica, 1.504 números, e para o Brasil, 566 números. Foram editados 1.219 documentários, sob o título de Revista Imágenes e filmes ditos culturais: 498 a cores e 216 em preto e branco. A princípio o NO-DO tinha apenas uma versão, mas a partir do número 20, se editaram duas versões semanais, A e B, destinadas a diferentes cinemas. O conteúdo do noticiário era formado por temas de atualidade e crônicas políticas, divididas em “vida nacional”, “atualidade nacional” e “informação nacional”. Segundo Araceli Rodriguez, tais temas não tinham uma periodicidade determinada. Fixos, eram os temas políticos, reservados a figura de Franco e aos rituais mais importantes do regime exibidos no final do noticiário e de maneira destacada. A ordem em que apareciam os temas políticos e Franco era uma normativa a ser seguida a risca na hora de montar as edições do NO-DO. Com o passar do tempo, à medida que os noticiários se tornavam mais populares, Francisco Franco foi se consagrando como a grande estrela do NO-DO e foi ocupando cada vez mais espaço no noticiário.

Os cinejornais aqui citados faziam parte de uma estrutura política autoritária, cujo objetivo era a construção de um governo de longa duração baseado na força política e na mitologia do Estado representado pelo grande líder. Nestes regimes, a relação entre governo e povo se estabelece de forma distinta da existente na democracia, ela é baseada em um “pacto social”, onde o povo revela à autoridade suas necessidades e esta, por sua virtude e sensibilidade, capta e executa (TOMAIN, 2006, p. 113). A participação nesta nova sociedade, ou seja, a cidadania, é autorizada por meio de uma mudança de mentalidade, em que o sujeito além de aceitar o “pacto social” participa dele através do trabalho coletivo, em prol do crescimento da nação e do amor ao líder e a Pátria. Neste cenário, o cinema atuava como educador e construtor de uma imagem do Fascismo, do Estado Novo, do Franquismo e também de seus líderes. A propaganda, nos governos autoritários, estava relacionada com a educação, pois segundo os ideólogos dos regimes citados, o Estado tinha a função de educar o povo para atuar conforme a nova realidade social e política. Ao mesmo tempo, a propaganda tinha a finalidade de construir um consenso em torno dos governos autoritários e de legitimá-los. Sendo assim, o cinema surge como um importante aliado, pois é, segundo Mussolini, la arma più forte e conforme Vargas:

Elemento de cultura, influindo diretamente sobre o raciocínio e a imaginação, ele apura as qualidades de observação, aumenta os cabedais científicos e divulga o conhecimento das coisas, sem exigir o esforço e as reservas de erudição que o livro requer e os mestres, nas suas aulas, reclamam (VARGAS, 1938, p. 187-188).

Entre os três governos autoritários analisados neste artigo, o Fascismo, foi certamente, o que mais uso fez desse cinema. A organização da cultura fascista começou muito antes que Vargas e Franco chegassem ao poder, e Mussolini não tardou muito em perceber o poder de persuasão que tinha o cinema. Isto fez com que o Fascismo estivesse melhor aparelhado que o Estado Novo e o Franquismo para a produção de cinejornais e tivesse mais claro o objetivo final. O Franquismo, por sua vez, levou muitos anos para organizar o cinema e controlar sua produção, seis anos depois de Franco chegar ao poder. Mesmo assim, a única produção oficial do estado Franquista foi o noticiário NO-DO e Franco não se interessou pela produção de filmes educativos como seus companheiros. Vargas apostou no cinema com mais intensidade. Durante seus quinze anos de governo foram criados dois órgãos de cultura que produziam filmes: o Departamento de Imprensa e Propaganda, DIP, realizador do Cinejornal Brasileiro e responsável pela censura cinematográfica, e o Instituto Nacional de Cinema Educativo, INCE, organizado em 1936, e com a finalidade de produzir filmes educativos destinados às escolas e às salas de projeção comercial. A partir desta breve exposição sobre a chegada ao poder dos três chefes e sobre a evolução do cinema em cada um dos três governos, discutirei como os cinejornais contribuíram para a construção de uma imagem de seus governos. Para isto realizarei uma análise da linguagem cinematográfica dos noticiários em questão. O objetivo é identificar nas produções uma linguagem comum que os insere em um contexto transnacional, onde a circulação de ideias tinha um papel relevante na construção dos Estados autoritários nacionalistas.

Os cinejornais do Estado Novo, do Fascismo e do Franquismo Os cinejornais produzidos durante o Fascismo, o Estado Novo e o Franquismo tem por objetivo o convencimento, a persuasão, mais do que a informação. Eles não são uma reprodução da realidade e sim uma representação do mundo em que foram produzidos, e como tal representam uma visão política e social. Desta forma, procuram convencer através de argumentos e da organização das imagens sobre um ponto de vista. Isto é a voz do documentário, ou seja, a maneira especial de expressar um argumento ou uma perspectiva (NICHOLS, 2005, p. 73). Segundo Bill Nichols, a voz está relacionada com o estilo, à maneira pela qual um filme, de ficção ou não, molda seu tema e o desenrolar da trama ou do argumento de diferentes formas, sendo que o estilo funciona de modo diferente no documentário e na ficção. Sendo assim, considero importante analisar, de forma comparada, os estilos cinematográficos empregados no Cinegiornale Luce, no Cinejornal Brasileiro e no NO-DO, para compreender a representação social do mundo em que exibem. Para desenvolver a proposta de análise é importante, em primeiro lugar, compreender que os cinejornais lidam com a experiência prévia e com o desejo dos espectadores, e o entendimento disto retira dos noticiários o caráter de manipulação. Quando pensamos que os filmes manipulam, retiramos do espectador a responsabilidade da recepção. Sabe-se que a recepção de um filme depende muito mais do entendimento do espectador, do que da intenção do diretor. Neste sentido, os noticiários trabalham para extrair do público as histórias que trazem, com o fim de estabelecer ligações e não repulsa ou projeção. Desta forma, podem apelar para a curiosidade ou desejos. Para isto utiliza elementos cinematográficos do universo do público para poder criar a empatia. As expectativas levadas ao cinema têm um efeito significativo na forma de recepção do mesmo. Assim, os filmes de propaganda se destinam a plateias que já compartilham seus valores, satisfazendo necessidades preexistentes.

Logo, não se trata de manipular, mas de fascinar as multidões, buscar elementos visuais e sonoros que provocassem a adesão destas por meio de um processo de identificação, uma vez que a “imagem da realidade nos filmes de propaganda é amplamente determinada pelo nível das ideias preconcebidas da plateia” (TOMAIN, op.cit, p. 97).

Desta forma, analisaremos os elementos estéticos que compõem um cinema político com o fim de discutir como eles contribuíam para o processo de identificação do público com as imagens e do público com os governos. Quatro são os elementos estéticos que ajudam a mobilizar o povo: a criança, o inimigo da nação, o líder e a multidão. A criança é um elemento de grande apelo emocional, pois sua imagem é capaz de desarmar as pessoas e de construir sentimentos fortes. Nos noticiários, as crianças aparecem em distintos papéis, são vistas como vítimas dos inimigos da nação, como desprotegidas e desamparadas e como representantes do verdadeiro nacionalismo e como símbolos de amor do e para o líder. O NO-DO n. 6, de 1943, intitulado Desfile da Vitória, celebra os três anos de libertação de Madrid pelas tropas franquistas. Neste noticiário, as crianças são vistas como vítimas do comunismo. O filme relembra que Madrid estava tomada pelos comunistas que ameaçavam a vida quotidiana das pessoas. Com medo, crianças e adultos estavam escondidos em suas

casas ou abrigos, sem poder sair. Depois de relembrar a presença comunista, o narrador fala que as tropas de Franco libertaram a cidade, deixando-a livre dos comunistas. Neste momento surge na tela imagens de arquivo, de 1939, onde vemos homens, mulheres e crianças saindo de seus esconderijos, sorrindo e fazendo a saudação fascista. Na sequência, o noticiário é tomado por uma música alegre e empolgante enquanto na tela vemos imagens de uma menina sorridente, com aproximadamente cinco anos de idade, que estende o braço em saudação fascista. Nesta sequência fica claro que a mesma, vítima do inimigo, agradece a Franco por sua liberdade. Assim, além de vítima a criança simboliza o novo começo, aceitando o líder e engajando-se no projeto de futuro oferecido por ele.

Fig.1. Cena do Noticiário NO-DO Día de la Victoria

Fonte: BIOSCA, Vicente Sánchez, TRANCHE, Rafael R. NO-DO. El tiempo y La memoria. Madrid: Cátedra/Filmoteca Española, 2000, p. 306.

Em 1942, circulam nos cinemas do Brasil o Cinejornal “Vítimas da crueldade dos totalitários! Primeiros flagrantes dos sobreviventes do “Itagiba” e do “Arara” na cidade de Salvador (CJB, vol.2, n. 146, 1942). Este cinejornal, destinado a contar o episódio dos navios brasileiros afundados por submarinos nazistas na costa do Brasil, além de mostrar os tripulantes feridos dos navios, mostra Valderez Cavalcanti, filha de um dos tripulantes do Itagiba. O narrador diz: “Valderez Cavalcanti, uma encantadora garotinha de quatro anos, viveu, entretanto, um dos mais impressionantes episódios do afundamento do Itagiba. Atirada ao mar com a explosão do torpedo, conseguiu agarrar-se a uma caixa vazia, ficando assim ao sabor das ondas até ser salva” (TOMAIN, op.cit, p. 244). Surge na tela a doce menina, sentada em uma cadeira, com o braço enfaixado, ela olha para a câmera e sorri. Em seguida, a vemos junto a seu pai, que está deitado em uma cama de hospital. A família reunida e salva demonstra alegria e agradecimento ao chefe da nação que lhes salvou. O público, nestas cenas, é tomado por dois sentimentos, o ódio pelos nazistas que ferem, sem escrúpulo, uma criança indefesa e pela alegria ao verem a família salva e reunida, obra do Estado Novo.

Fig 2 e 3. CJB, vol.2, n. 146, 1942

Fonte: TOMAIN, op.cit., p. 148

Os cinejornais fascistas, em sua maioria, não utilizaram as crianças para promover sentimentos contra inimigos externos, como os comunistas por exemplo. Porque, quando o cinema de propaganda ganhou força na Itália fascista, os comunistas já estavam controlados, já estavam fora do poder e presos. De modo geral nos cinejornais fascistas analisados por mim, a criança aparece como vítima de inimigos internos, como: doenças, alcoolismo, desestrutura familiar, pobreza. Situações que prejudicavam o crescimento econômico da Itália. Sendo assim, nos noticiários produzidos pelo LUCE estas crianças são vistas em situações de antes e depois, onde as vemos em condições de risco e depois sob o manto protetor do Fascismo, que as acolhe em instituições de ensino da Opera Nazionale Balilla ou da Gioventù Italiana del Littorio. Nestes lugares, recebem a educação fascista que consiste em aprender um oficio de trabalho, noções de higiene pessoal, praticar educação física para proteger o corpo das doenças e para fortalecê-lo, valores nacionais e fascistas. Isto tudo oferecido por Mussolini, que na condição de doador, representa o líder que se preocupa com o povo. As crianças e jovens retribuem a doação através do amor ao líder e à Pátria e com disciplina e ordem. O inimigo da nação faz parte de uma estrutura política de construção do medo e do terror, onde o fim é semear a insegurança gerando a necessidade do salvador da nação. No cinema de propaganda a imagem do inimigo é acompanhada de um elemento de excitação, como, por exemplo, a criança, que permite a plateia fazer suas próprias descobertas, pois não é o filme que deve demonstrar indignação e sim o espectador (TOMAIN, op,cit, p. 93). Para isto, os filmes de propaganda utilizam um discurso retórico de alternância entre recurso à prova, recurso ao público, recurso ao fato e recurso à emoção (NICHOLS, op.cit, p. 89). A função disto é fazer a comprovação visível do que se diz e trazer com as imagens uma energia emocional. Os NO-DOs que comemoram a vitória de Franco sobre os republicamos fazem uso do recurso da prova da seguinte forma: os narradores informam sobre o caos que era a Espanha antes da vitória de Franco. Falam sobre desemprego, sobre greves, confusões nas ruas. As imagens de arquivo que aparecem nos noticiários reforçam a fala dos narradores ao mostrarem os comunistas nas ruas, falando em palanques aos transeuntes, criando confusão, mostram as fachadas dos edifícios de Madrid tomados por cartazes com fotos de Lenin, de Stalin e frases de efeito. O ato de retrospecção, de olhar para trás, relembrando acontecimentos anteriores

que têm ligação com o presente, são fundamentais para a interpretação do filme. O processo de relembrar, de revisar o passado, através de imagens é fundamental na hora de interpretar o presente como fruto do trabalho de Franco, pois o presente oferecido pelo Franquismo é povoado pela ordem e pela segurança social e política. Desta forma, o emprego do discurso retórico do passado ajuda a construir a legitimação do Franquismo e da pessoa de Franco.

Nos cinejornais italianos e brasileiros o recurso de usar o passado em imagens para construir o inimigo da nação não é tão comum como nos noticiários espanhóis. Em comparação ao noticiário NO-DO, os cinejornais do Fascismo usam com frequência a metáfora ou a metonímia2. Estes recursos de linguagem oferecem uma imagem mais vivida e convincente de algumas coisas, corresponda essa imagem a uma verdade maior ou não. A construção do inimigo da nação não deixa de acontecer e o veículo utilizado nos cinejornais do Estado Novo e do Fascismo é a palavra, mais que a imagem. Neste contexto, quem atua é a voz em off, conhecida também como a voz de Deus. Esta voz é a voz da autoridade, que conduz o espectador pelo filme e pela verdade do filme. Esta voz tem credibilidade garantida pela entonação solene e pelo estilo objetivo. Ao mesmo tempo, ela é masculina, usando do pressuposto culturalmente construído de que são os homens quem falam do mundo real e que podem fazer com autoridade (NICHOLS, op.cit, p. 86). O emprego deste recurso fica claro no Cinejornal Brasileiro sobre o afundamento dos navios, por exemplo, quando o narrador fala da menina Valderez. Não a vemos sendo atacada pelos nazistas, não vemos seu sofrimento, mas a voz em off conta o acontecimento com emoção, conduzindo os sentimentos dos espectadores. Além da voz em off, o discurso dos líderes também ajuda a construir o inimigo da nação, pois a palavra do grande condutor concretiza o imaginário. A criança e o inimigo nos conduzem ao terceiro elemento utilizado no cinema político: o grande líder. A criança vítima e o inimigo que ameaça a nação exigem a força de um salvador. É assim que surge a figura do grande líder, o que retira a nação do caos, o que trás a paz e a harmonia social; o que conduz a nação a um tempo melhor, o salvador dos indefesos. Mussolini, Vargas e Franco são os salvadores da Pátria, pois livraram seus países da ameaça comunista e organizaram a nação socialmente, politicamente e economicamente. Seus atos conduzem o país ao crescimento econômico, oferecendo uma vida de oportunidades aos trabalhadores. Nos cinemas a construção do mito do grande líder passa por uma elaborada forma de filmar e de mostrar, onde os chefes da nação não são vistos como pessoas comuns, mas como seres divinos. Para isto, os operadores de câmera dos três cinejornais evitavam filmar os líderes em situações que gerassem graça ou incômodos. Entre os três cinejornais aqui discutidos, o Cinegiornale Luce é o melhor arquiteto do mito do grande líder e Mussolini o melhor ator. Mussolini, a partir da década de 1930, adotou uma maneira teatral, abandonando o estilo político do século XIX de falar alto, rápido e com gestos largos. Ao discursar, Mussolini usava a fala marcada, a pausa, os gestos certos que indicavam força e poder, como o punho cerrado em alto, o gesto do queixo e as mãos na cintura. Sua performance lhe conferia força, segurança e sabedoria e era isto que os cinejornais do LUCE mostravam nos cinemas. Para reforçar o mito político de Mussolini, os

2 As metáforas unem fenômenos fisicamente desconexos para sugerir uma semelhança subjacente, ao passo que a metonímia faz associações entre fenômenos fisicamente conexos.

operadores o filmavam em um plano cinematográfico de baixo para cima, o que elevava a figura do ditador e lhe dava um ar grandioso. Em discursos noturnos o cerimonial utilizava um jogo de luzes e sombras que lhe conferia um ar divino, ou ainda, faziam reverberar sua voz pelas praças. Tudo contribuía para transformar Mussolini em um Deus. Vargas e Franco também eram filmados de baixo para cima, o que favorecia a figura dos dois que eram baixos e barrigudos. Assim, eram vistos nas salas de projeção mais altos e esbeltos. No entanto, o filmar de baixo para cima tinha por intenção dar grandeza aos dois de forma a aparecerem com mais poder. A condição de grandeza dos dois também era refletida na roupa em que usavam. Vargas sempre era visto elegante, com terno e gravata e algumas vezes com cartola. Franco, por sua vez, usava o uniforme das forças armadas ou da Falange, o que lhe conferia o poder militar e de chefe da nação. Nos cinejornais, os três líderes são visto com frequência discursando e nestes momentos estão destacados das outras autoridades. Isto facilitava a relação com o povo, pois era no momento do discurso que o pacto social era estabelecido. Neste sentido, o afastamento do líder das outras autoridades construía um diálogo íntimo entre o líder e a massa. Pois era através do verbo, do discurso, que os líderes ofereciam os benefícios e as conquistas sociais, políticas e econômica ao povo. Era também através da palavra que o líder personificava o Estado, pois era a voz amplificada da instituição política que encarna. Para Girardet, é pelo poder específico do Verbo que se opera, com efeito, essa estranha comunhão que faz com que, dirigindo-se o chefe político à multidão, seja igualmente a multidão que se exprima nele, com ele (1987, p. 79). Toda a nação é vista no líder, que do alto do palanque ou da sacada emana o poder como um Deus em um altar. Para reforçar tal condição, Mussolini, Franco e Vargas sempre são vistos em um palanque, em uma sacada ou em pé em um carro aberto. Quando estão entre o povo, não se diluem nele, seguem em destaque, como se caminhassem sobre as águas. Neste processo de construção do mito, a multidão tinha um papel fundamental, sendo ela quem legitimava a condição mitológica do líder. Sendo assim, pergunto como tal legitimação era vista nos noticiários? Pode-se dizer que os cinejornais do Fascismo, do Estado Novo e do Franquismo seguiram, mais ou menos, um caminho parecido. O mecanismo funcionava da seguinte maneira: o líder discursava e a multidão respondia com vibração, aplausos, emoção, tremulando bandeiras, saudando com o braço em alto, no caso do Fascismo e do Franquismo. Esta era a multidão emocionada, que ouve o líder e através da vibração aceita o sua liderança. Os cinejornais do LUCE exageravam nesta emoção, evidenciando a fascinação que Mussolini exercia sobre o povo. Nos Cinegiornale Luce o que se vê é uma multidão que espera Mussolini com euforia, fala, vibra, se movimenta, no entanto, quando o Duce aparece na sacada o povo cala, e assim permanece até o momento em que é autorizado a participar. Este momento chega nas pausas da fala de Mussolini. Para os fascistas, a multidão era irracional e tinha o espírito feminino da inquietude e por isto deveria ser conduzida e dominada. Mussolini havia se inspirado na teoria de Le Bon, em que as multidões deveriam ser controladas através do carisma e do diálogo com o líder. Já a multidão do Franquismo e do Estado Novo não se parece com a multidão do Fascismo, é uma multidão, que mesmo emocionada, é controlada, disciplinada e ordenada.

Por fim, a multidão representa o mito da unidade nacional. Nas cerimônias cívicas, a multidão misturada e agregada demonstrava o “todo orgânico”, ou seja, o povo unido em torno de um único líder e de um único objetivo. Porque a multidão representa a unidade? No seio da multidão não existe o indivíduo, que é diluído na coletividade perdendo suas características particulares, seus desejos individuais e sua vontade própria. A multidão se torna expressão de uma vontade única representando a nacionalidade em um único corpo. Também é através das imagens da multidão e da coletividade que as ideias de disciplina e harmonia social são difundidas. Na multidão não existe classe social e cor, não existe disputa política e nem interesses divergentes, o povo reunido está ali por um mesmo motivo e unido no mesmo interesse e por um único líder. Ao mesmo tempo, a multidão é disciplinada, pois através da ordem do líder se cala ou se manifesta. Neste processo, a multidão também demonstra a adesão nacional, quando vibra aceita a fala do líder e quando cala reconhece a autoridade do mesmo. Por fim, a multidão dos cinemas funciona como um espelho, onde o espectador pode através do olhar se sentir parte do todo, não é preciso estar no local da cerimônia cívica para formar parte da unidade nacional, basta experimentá-la na sala escura. Considerações finais Ao longo do texto tentei mostrar como os governos autoritários utilizaram os elementos de um filme político para construir uma imagem de si mesmos e de seus governantes. Os cinejornais aqui discutidos fazem parte de uma estrutura política, onde a busca pelo consenso e pela adesão nacional era uma constante. Assim, empregavam uma retórica do tipo cerimonial ou panegírica, em que davam aos líderes e aos fatos uma coloração moral de forma que os espectadores pudessem julgá-los merecedores de emulação e respeito. Para convencer, persuadir ou predispor a visão de mundo determinada por eles recorriam às experiência prévias dos espectadores e aos seus desejos. Ou seja, falavam a um público que ia ao cinema aberto ao convencimento e interessado em ouvir o que os cinejornais tinham a dizer. Segundo Nichols, cada espectador chega a nova experiência, como a de assistir a um filme, com pontos de vista e motivações baseados em experiências prévias (2005, p.95). Por isto é importante entender que um filme faz parte de um triângulo comunicativo, que integra os realizadores, o filme e o espectador. A comparação entre a linguagem cinematográfica dos cinejornais além de assinalar o uso comum de uma linguagem que caracteriza o gênero dos noticiários cinematográficos, nos estimula a entender a relevância destinada a cada elemento nas diferentes ditaduras. Como visto, a construção do inimigo interno tem considerável importância nos primeiros tempos do Franquismo, quando Franco necessita legitimar-se como vitorioso. Neste sentido, a lembrança do inimigo e de seus feitos servem para validar o presente como um tempo feliz e harmonioso e justificar a condição de Franco como chefe do Estado. No Brasil, do Estado Novo, o inimigo externo ganha força, quando o Getúlio Vargas decide entrar na Segunda Guerra Mundial. As imagens de crianças são uma constante nos três cinejornais, pois são elas o futuro da nação. Por isto, na maioria das vezes as vemos não como vítimas do inimigo, mas como

protegidas pelo Estado fascista, varguista e franquista. A adesão infanto-juvenil funciona como um catalizador de emoções e sentimentos direcionados a Pátria e ao líder. Nos três cinejornais, os líderes tinham destaque, pois era em torno deles que girava o Estado autoritário e era na figura deles que se construía a nação. Eram eles os condutores, eram eles os exemplos de homens, de pais, de maridos e de trabalhadores. Desta forma, foram vistos nos cinemas encarando distintos papéis, mas nunca deixando de representar o papel principal: o Estado personificado. Independente de utilizarem mais ou menos um dos elementos, o fim dos elementos políticos nos cinejornais era o de influir na experiência de cada espectador de modo que estes aceitassem os governos e se sentissem parte da proposta política nacional. Por fim, destaco que os governos autoritários nacionalistas do século XX travavam um diálogo constante entre si e entre seus opositores, pois os elementos políticos aqui discutidos compunham a linguagem cinematográfica do cinema comunista e também hollywoodiano. Sendo assim, é importante apontar a circulação de ideias que a análise do estilo cinematográfico empregado nos cinejornais evidencia. O Fascismo foi para os governos de Vargas e Franco um inspirador, onde os dois líderes buscaram inspiração e modelos de estrutura política, econômica e cultural. Isto ressalta o poder de reformulação do Estado Novo e do Franquismo, que adaptaram e reformularam os modelos conforme suas necessidades. Referências

BIOSCA, Vicente Sánchez, TRANCHE, Rafael R. NO-DO (2000) El tiempo y La memoria. Madrid: Cátedra/Filmoteca Española. GIRARDET, Raoul (1987) Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Cia das Letras. LAURA, Ernesto G. (2004) Le Stagioni dell'aquila. Storia dell'Istituto Luce. Itália: Istituto Luce.

MATEOS, Araceli Rodriguez (2008) Un Franquismo de cine. La imagen política del Régimen en el noticiario NO-DO (1943-1959). Madrid: Rialp. NICHOLS, Bill (2005) Introdução ao documentário. Campinas: Papirus. TOMAIN, Cássio dos Santos (2006) “Janela da Alma”. Cinejornal e Estado Novo – Fragmentos de um discurso totalitário. São Paulo: Annablume.