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Universidade Federal da Bahia Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo Dissertação de Mestrado RUA DE CONTRAMÃO: O movimento como desvio na cidade e no urbanismo Gabriel Schvarsberg Salvador 2011

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Universidade Federal da Bahia Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo

Dissertação de Mestrado

RUA DE CONTRAMÃO: O movimento como desvio na cidade e no urbanismo

Gabriel Schvarsberg

Salvador 2011

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Gabriel Schvarsberg

RUA DE CONTRAMÃO: O movimento como desvio na cidade e no urbanismo

Salvador 2011

Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Arquitetura e Urbanismo. Área de concentração: Urbanismo. Linha de Pesquisa: Processos Urbanos Contemporâneos.

Orientadora: Profa. Dra. Paola Berenstein Jacques

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Faculdade de Arquitetura da UFBA - Biblioteca

S397 Schvarsberg, Gabriel. Rua de contramão : o movimento como desvio na cidade e no urbanismo / Gabriel Schvarsberg. 2011. 170f. : il. Orientadora: Profa. Dra. Paola Berenstein Jacques.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Arquitetura, 2011.

1. Urbanismo - Salvador (BA) - Brasília (DF) - Ruas. 2. Cidades e vilas – Espaços públicos - Ruas. I. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Arquitetura. II. Jacques, Paola Berenstein. III. Título.

CDU: 711.4

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Profª. Dra. PAOLA BERENSTEIN JACQUES (orientadora)

PPGAU/FAUFBA

Profª. Dra. ANA CLARA TORRES RIBEIRO IPPUR/UFRJ

Prof. Dr. WASHINGTON LUIS LIMA DRUMMOND

PPGAU/FAUFBA

Salvador, 15 de Agosto de 2011

Dissertação aprovada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre pela seguinte banca examinadora:

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À Tereza, a mais nova caminhante

Aos sujeitos ambulantes, por mostrarem um caminho

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Agradeço

à Priscila, minha companheira dessa jornada e de tantas outras, por me levar consigo e me

deixar levá-la

à Paola Berenstein Jacques, orientadora deste trabalho, por instigar a crítica e os desvios hoje

e antes

à Ana Clara Torres Ribeiro e Washington Drummond, pelas contribuições fundamentais

aos amigos de Laboratório Urbano e de Bahia, pela pulsante atmosfera de trocas,

aprendizados e apoios mútuos. Este trabalho tem muito dessas pessoas: Clara Pá, Thiago,

Moreno – parceiros desde os primeiros desbravamentos acadêmicos e urbanos em Salvador; e

também Cacá, Pedro, Clara Pi, Thais Portela, Edu, Thais Rebouças, Ariadne e muitos outros

que apareceram neste percurso e o afetaram de alguma forma.

à família:

meu pai, Benny, por despertar o fascínio, sempre crítico, pelas cidades

minha mãe, Clerí, pelo incentivo à criação, sua sensibilidade à cultura e as conexões que

surgiram daí

meu irmão Alan, por compartilhar as descobertas e as lutas

minha Tia Ilana, pela inspiração no caminho da pesquisa

à João Baptista Risi e Maria Aparecida, pelo apoio essencial em Brasília

aos amigos de Brasília, parceiros de inquietações e também dos primeiros desvios, em

especial, Ricardo, Denise, Adriana e Carol

aos interlocutores deste trabalho, especialmente Zé do Pife e Paraná (o “Pirata do Asfalto”),

por me deixarem caminhar junto.

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Resumo

SCHVARSBERG, Gabriel. Rua de contramão: o movimento como desvio na cidade e no

urbanismo. 2011. 170 fls. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade

de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.

Este trabalho explora a idéia de movimento como desvio na cidade a partir das práticas

cotidianas de sujeitos ambulantes – indivíduos que trabalham, habitam, se expressam ou

simplesmente se deslocam pelas ruas de maneira marginal (ou marginalizada). As ruas,

espaços de movimento e públicos, são tomadas como campo de investigação, especialmente

as ruas centrais, vistas aqui não como o lugar do encontro, mas da colisão entre as forças

variadas que povoam os processos urbanos contemporâneos. Em meio às colisões e

atravessamentos de práticas, modos de ocupar, lentidão e aceleração de trajetórias

heterogêneas, emerge na rua um intenso campo de disputas quanto aos usos e significados dos

espaços da cidade. Tais circunstâncias podem ser pensadas como instauradoras de um estado

de rua, portador de características, ou potências, que conferem especificidade a essa

experiência urbana própria à complexidade da metrópole. O trabalho empreende então um

percurso teórico e prático, experimentando uma lente – a cidade nômade – como um modo de

ver a cidade e o próprio movimento como ferramenta metodológica, a fim de qualificar este

estado de rua que teria como características fundamentais a construção de um espaço de

disputa – a sarjeta – e o exercício de uma política da rua, distinta daquela política elevada à

esfera de governo. Uma cartografia ao nível do chão, realizada nas ruas de Salvador e

Brasília, remontada na forma de narrativas cartográficas, é o instrumento que deflagra

questões e reflexões, apontando limites e desafios éticos e políticos ao campo do urbanismo.

Palavras-chave: rua, movimento, desvio, sarjeta, política, narrativas cartograficas

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Abstract

The work explores the idea of movement as a deviation in the city under the perspective of

everyday practices of wandering subjects – individuals who work, live, express themselves or

simply move marginally (or marginalized) through the streets. The streets, both public spaces

and spaces of movement, become a research field, especially the central ones, seen here not as

the place of encounter, but of the collision between the various forces that inhabit the

contemporary urban processes. Amid the collisions and crossings of practices, ways to

occupy, slowness and acceleration of heterogeneous trajectories, emerges in the street an

intense field of disputes regarding the uses and meanings of city spaces. Such circumstances

could be thought as the responsible to create a state of street, which carries characteristics or

potencies that grants specificity to this very particular urban experience located in the

complexity of the metropolis. The work then undertakes a theoretical and practical journey,

experiencing a lens – the nomadic city - as a way of seeing the city and the movement itself as

a methodological tool in order to qualify this state of street that have as its fundamental

characteristics (1) the construction of a space of dispute - the gutter - and (2) the exercise of a

street politics, distinct from that high political level of a governmental sphere. A cartography

at ground level, held in the streets of Salvador and Brasilia, reassembled in the form of

cartographical narratives, is the instrument that triggers questions and reflections, pointing

out thresholds, ethical and political challenges to the field of urbanism.

Keywords: street, movement, deviation, gutter, politics, cartographical narratives.

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Sumário

Apresentação ...................................................................................................... 1

Introdução .......................................................................................................... 4

PARTE I: MOVIMENTO COMO DESVIO ............................................... 12

1 Desenhando o Jogo de Forças: A rua e a sociedade capsular ................................ 14 Inversões Arquitetura capsular e cidade genérica: origens utópicas? A face invisível: “tempo real”, espetáculo e individualização Usos opacos em espaços luminosos

...desvio... ......................................................................................................... 25 Narrativa Cartográfica #1 Salvador: deriva pelo centro Pausa reflexiva: sobre o estado de rua

2 Cidade nômade: movimento como lente ............................................................. 30 Para além do informal Cidade nômade Trajetórias: temporalidades no espaço

3 Movimento como ferramenta ............................................................................. 44 Corpo-andante, corpo-bicicleta Cartografia como percurso Narratividade O espaço-tempo dos outros: acoplamentos, variações de posição

...desvio... ......................................................................................................... 55 Narrativa Cartográfica #2 Salvador: seguindo sujeitos ambulantes Pausa reflexiva: sobre os usos da sarjeta

4 Movimento como desvio ..................................................................................... 62 Sujeitos ambulantes Lentidão como cultura menor Desvio de trajetória e desvio de função Arte-manhas e táticas

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PARTE II: A EXPERIÊNCIA DA RUA ..................................................... 73

...desvio... ........................................................................................................ 75 Brasília: indícios da sarjeta Narrativa Cartográfica #3 Brasília: A lentidão de Zé do Pife Pausa reflexiva: lentidão como colisão

5 A rua como potência ......................................................................................... 85 Impermanências em um território instável O sujeito da rua e a rua como sujeito: um devir-rua? Encontro com a alteridade radical A multidão como mergulho no escuro A rua como campo de criação Da potência ao ato, ou do devir ao estado de rua

6 Entra em cena o urbanismo: a rua como modelo ................................................ 98 O bulevar A autopista A rua de bairro A rua de pedestres A sarjeta como vírus

...desvio... ........................................................................................................ 112 Narrativa Cartográfica #4 Brasília: um pirata do asfalto Pausa reflexiva: movimento como desvio

7 O estado de rua e o espaço da sarjeta ................................................................ 121 O que faz de uma rua, Rua Como construir um estado de rua? Uma alegoria da rua por ela mesma A sarjeta como espaço rugoso A sarjeta como espaço liso

8 A política da rua ............................................................................................. 134 Polis ou urbis Ingovernabilidade Disputar espaço no comum Alteridade, conflito e dissenso Como potencializar a política da rua?

Considerações Finais ......................................................................................... 148

Referências ....................................................................................................... 154

Lista de figuras ................................................................................................. 159

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Apresentação

Entre a casa e o trabalho a distância não é longa, mas a seca parece estar no seu auge. O ar seco é mais

pesado, penetra com dificuldade pelas narinas, deixa o corpo mais cansado e parece produzir mais

atritos entre as sinapses. Os batimentos cardíacos acelerados começam a diminuir sua frequência

agora que atingi um ponto mais plano. A W5 é mais tranquila, faixas largas, poucos carros, agora é só

uma reta até o meu destino. A pedalada fica mais suave. Abre espaço na mente para pensar enquanto

observo a paisagem cinza-avermelhada, seca e queimada. O céu está desbotado e turvo de poeira em

suspensão. Tudo parece quase parado, com exceção de poucos carros que ultrapassam empurrando

contra mim pequenos blocos de vento compactado, o que produz micro-desestabilizações no meu

equilíbrio. O vento seco rascante, que mesmo debaixo do sol intenso do início da tarde não permite ao

corpo suar, não me deixa esquecer que em meio a esta aparente monotonia, quase entorpecente, eu

estou em movimento. É neste momento que a mente desvia. Uma angústia me leva a pensar sobre a

cidade, sobre urbanismo, sobre meu percurso. Percebo como a bicicleta ativa uma relação particular

com a cidade, um tipo de percepção própria que é ao mesmo tempo de conexão direta e de um certo

distanciamento, talvez produzido pela mecânica do pedalar, nessa construção de um corpo-bicicleta,

que permite à mente trabalhar numa frequência ligeiramente deslocada de seu modo habitual. Percebo

como aquelas ideias mais livres de amarras aparecem justo nestes momentos, quando estou pedalando

pela cidade. – O pensamento se interrompe pela chegada repentina de cachorros vira-latas que

surgem do meio do mato latindo e ameaçando o bicicleteiro. Este acelera para fugir da matilha,

mas não se surpreende com sua presença. Sabe que eles estão defendendo o território da família

que habita clandestinamente o terreno ao lado da pista, no qual descobriu aos poucos, em meio ao

mato, em pequenos relances, dia após dia, indícios de uma ocupação improvisada.

_______________

Este trabalho começava assim, ainda sem saber, em movimento sobre uma bicicleta

numa tarde de um dia comum de trabalho em Brasília. Naquele momento me assumia uma

espécie de técnico-ativista da Mobilidade Urbana. A experiência de circular em Brasília sobre

uma bicicleta (consequência de ter tido o carro roubado) e um estágio, ainda na graduação, na

Secretaria de Mobilidade Urbana do recém-criado Ministério das Cidades, ajudaram a

construir esse perfil. Já como arquiteto-urbanista, a contínua experiência cotidiana como

bicicleteiro parecia refletir-se quase totalmente na prática profissional. Enquanto técnico,

participei de alguns projetos ligados à mobilidade urbana, como planejamento de ciclovias,

requalificação de passeios e passagens subterrâneas de pedestres e implantação de corredores

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de ônibus. Eu estava quase convencido de que neste caminho eu traçava uma rota coerente:

fazendo a resistência cotidiana à hegemonia do automóvel e ajudando a construir a

mobilidade sustentável na vida profissional.

Foi, no entanto aquele quase que, agora sei, alimentava a angústia daquela tarde (e de

muitas outras), que me fez perceber que entre a experiência cotidiana e a prática profissional,

algo se perdia: um outro lado daquela experiência que não era de mobilidade apenas, mas

simplesmente de movimento na cidade, que não penetrava nem nos discursos do Ministério

das Cidades nem nos projetos que participei. O que faltava era justamente algo que pertencia

àquela experiência viva, cheia de adrenalina, inclusive pelas sensações de liberdade e

empoderamento que surgiam na disputa de espaço com os automóveis, mas também uma

abertura da percepção a situações, detalhes e facetas que surgiam num contato mais direto

com a cidade, possibilitadas naquele tempo e experiência corpórea próprios da bicicleta. Foi

esse quase, que passou a crescer paulatinamente, e que me fazia questionar cada vez mais o

caráter segregador e funcionalista daqueles projetos e discursos da mobilidade, o verdadeiro

detonador do desvio de percurso que chega, por hora, no presente trabalho.

Passei a me interessar cada vez mais por modos de vida que povoam a cidade fora de

seus circuitos planejados ou distintos daqueles modos de usar majoritários, invisíveis às vistas

de quem só experimenta a cidade a partir de um automóvel, num roteiro determinado por vias

hierarquizadas e paisagem repetitiva e monótona. Nesta recomposição de olhar sobre o

espaço, relacionada também com um tempo menos acelerado, deparei-me com uma infinidade

de pequenas trajetórias que invadem diariamente o “Plano”, inserindo ali usos não planejados.

Seus movimentos flexíveis e criativos, necessários para burlar as fiscalizações, de algum

modo conseguem romper aquela monotonia, tornando a cidade mais humana e menos

“máquina-de-morar” para cada um desses sujeitos, mas também para toda uma população

minoritária1 que compartilha essa temporalidade.

A bicicleta deixava de ser uma questão central, e convertia-se em apenas uma

ferramenta para pensar a questão do movimento nas cidades. A ideia se completou e ficou

clara quando cheguei a Salvador e a dinâmica pulsante e heterogênea que anima suas ruas me

atravessou de maneira fulminante. Era a rua, simples assim, não apenas como espaço de

circulação, mas com sua carga simbólica e seu significado antropológico, enquanto

experiência individual e coletiva, com suas possibilidades de coexistência e seus conflitos

inerentes, que me cutucava com seus pequenos e discretos atravessamentos em Brasília (na

1 O minoritário aqui diz respeito a relações de força e domínio quanto aos usos dos espaços urbanos. Assim, chamo esta população de minoritária mesmo que ela seja maior em número.

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forma como ela encontrou para se espacializar naquela cidade), mas que, no entanto, só foi

possível perceber a partir de Salvador, onde se apresenta de forma tão intensa, quase

onipresente.

O trabalho que segue apresenta-se, assim, como uma coleção de percursos em escalas

variadas: percurso de um pensamento, percurso que liga duas cidades, Brasília e Salvador, e

percurso pelas experiências de rua nessas cidades a fim de investigar desvios cotidianos e

desafios ao urbanismo. Uma articulação de práticas e pensamentos em movimento e sobre o

movimento nas cidades e no urbanismo. Percurso que não começa, nem termina aqui, mas que

se apresenta, como todo movimento, já no meio, neste caso: no meio da rua...

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Introdução

Movimento como desvio, cidade e urbanismo

Esse trabalho pretende explorar a ideia de movimento como elemento de potência no

âmbito da cidade e do urbanismo. Esta exploração, entretanto, direciona-se a um tipo

particular de movimento, que pode acontecer em contextos diversificados, mas que estará

sempre atrelado a algum tipo de desvio. Desta forma, mais do que definir um objeto de

estudo, o trabalho pretende configurar-se como um exercício de experimentação desta

operação que se faz com objetos, sobre objetos, contra objetos: o movimento como desvio, ou

os desvios pelo movimento. O desvio qualifica este movimento, colocando-o sempre em

relação a algo com o que não pode ou não quer estar conforme. Apresenta-se, portanto, como

elemento crítico que, por estar em movimento, já aponta sempre outra direção. Os objetos

aqui submetidos a esta operação são: o urbanismo enquanto pensamento e prática; a cidade,

como campo de forças; e as ruas, como experiência vivida e cotidiana. No entanto, estes não

são realmente objetos, fechados e sólidos, mas campos dentro dos quais serão explorados

desvios pelo movimento.

No campo urbanístico, o movimento apresenta-se como ferramenta para desviar de

modos de ver a cidade, isto é, maneiras usualmente utilizadas e largamente compartilhadas

entre urbanistas (pesquisadores ou técnicos) para “ler” a cidade e os fenômenos urbanos e

traçar, a partir daí, representações e categorias. O trabalho coloca-se especialmente crítico às

fixações, representações totalizantes e atemporais ou categorias estanques e polarizadas.

Propõe-se então outra lente de acesso à cidade, que será observada e experimentada como

uma cidade nômade, mais ligada aos fluxos urbanos – objetivos e subjetivos –, ao movimento

no espaço e aos imaginários em mutação. O movimento é explorado também como um modo

de fazer pesquisa, isto é, enquanto maneira de articular teoria e prática. Experimenta-se uma

cartografia ao nível do chão e em movimento que, mais do que produzir mapas de espaços,

busca cartografar práticas de espaço-tempo. Desta forma, o movimento como desvio no

urbanismo pretende apontar outros caminhos metodológicos.

No âmbito da cidade, entendida aqui enquanto campo de forças, encontraremos nessa

experimentação cartográfica alguns aliados: um grupo heterogêneo de indivíduos que

carregam em comum o fato de realizarem suas atividades em movimento. Chamaremos este

grupo de sujeitos ambulantes: indivíduos que trabalham, habitam, sobrevivem, se expressam

ou simplesmente se deslocam pelas ruas de maneira marginal ou marginalizada. Serão

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investigados os desvios pelo movimento desses sujeitos, que são apenas um recorte de um

grupo maior de indivíduos anônimos e ordinários que espacializam suas práticas nas ruas das

grandes cidades, construindo suas próprias alternativas à racionalidade expansionista e

seletiva dos processos econômicos e culturais dominantes em suas investidas sobre os

habitantes, espaços e temporalidades das cidades – ora como captura, ora como segregação.

As ruas, enquanto espaços de movimento por excelência nas cidades surgem então,

como que naturalmente, como campo onde investigar esses desvios cotidianos, a partir da

experimentação do próprio movimento como ferramenta de pesquisa.

Rua de contramão

Que papel pode ocupar a rua em meio ao campo de forças que configuram a cidade

contemporânea? Num momento em que metrópoles brasileiras aspiram ao título de cidades-

globais, ao mesmo tempo em que nunca foi tão popular e massificado o discurso do “caos

urbano”, o que passa por suas ruas?

Se por um lado, as ferramentas tradicionais do planejamento urbano parecem cada vez

mais neutralizadas diante dos poderes do capital imobiliário e financeiro sobre as cidades

brasileiras, por outro lado, é possível observar nas dinâmicas das ruas, possibilidades que

escapam aos padrões desse grande capital. São expressões e apropriações espacializadas na

cidade e produzidas nas práticas cotidianas que parecem ter a capacidade de subverter

algumas lógicas associadas aos processos que dominam a produção das cidades. Neste

contexto, é possível associar ao mercado de solo urbano, à maquinaria publicitária, à grande

mídia e aos interesses privados presentes na estrutura do Estado uma aliança de forças

estratégicas que formula e dissemina práticas e ideias consensuais que, em última instância,

acabam por eliminar a política da polis. No entanto, é possível ver resistir uma política ao

nível da rua, que parece afirmar a irredutibilidade dos micropoderes da cidade diante das

determinações daquelas forças estratégicas, e em seus enredos cotidianos pereniza o conflito

como prática inerente à condição urbana.

A rua talvez seja o símbolo máximo dos paradoxos constituintes dessa condição urbana.

Aquele espaço comum, compartilhado por todos os habitantes de uma cidade, que pode ser

visto como reflexo e expressão daquilo que a sociedade cria em suas dinâmicas culturais e

econômicas. Isto implica apresentar-se, muitas vezes, como o próprio avesso das visões

conservadoras, dos imaginários estrategicamente construídos, idealizados, mistificados e

vendidos em propagandas turísticas e plataformas políticas. Neste sentido, a rua, ou um tipo

de experiência de rua aberta à alteridade urbana, com todos os seus elementos conflituais,

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parece mesmo encontrar-se na contramão dos grandes processos urbanos contemporâneos, da

imagem de cidade que alguns querem criar e que outros querem consumir. Essa é a

experiência da rua de contramão, à qual pretendemos mergulhar e defender ao longo das

próximas páginas.

Seu simbolismo revela a própria heterogeneidade de visões e significados que se

constroem sobre o fenômeno da metrópole e suas implicações no campo social. No

imaginário dominante, podemos dizer que a rua tem carregado uma conotação negativa. A

“boa” rua parece só existir na Europa ou num passado nostálgico. Sob esta perspectiva a rua é

vista como o lugar primordial onde se verifica a desagregação dos laços sociais, dissolvidos

pelo crescimento da impessoalidade e da indiferença. Sua imagem está assim diretamente

associada às mazelas da escala da metrópole, como a violência e a pobreza. Numa outra

perspectiva a rua é vista como o abrigo e a força motriz da expressão de uma típica cultura

urbana, a chamada “cultura das ruas”, que até pouco tempo era marginalizada ou

criminalizada e hoje não é apenas reconhecida como já foi parcialmente capturada pelos

circuitos globais da arte e da indústria cultural. Ela também carrega o significado de território

espacial e simbólico privilegiado para manifestações culturais coletivas – as festas sagradas e

profanas – e também os protestos, levantes políticos e as chamadas “intervenções artísticas”.

E na perspectiva que é a deste trabalho ela pode ser vista também como espaço-aliado, que

oferece condições de possibilidades a práticas de vida desviantes.

Assim, a rua segue desviando, constrangendo, escancarando e abrigando o que há de

mais profundamente urbano: o movimento, a diferença, a coexistência, a apropriação, a

negociação, o conflito – um verdadeiro caldo de alteridade que dá corpo e constitui a própria

noção de urbano. No entanto, esta alteridade urbana está presente nas ruas apenas enquanto

ela não foi ainda fragmentada pelo alargamento das faixas viárias, pelos muros, alambrados e

outros dispositivos de enclausuramento e vigilância associados ao crescente processo de

culturalização do medo, ou então, quando suas dinâmicas cotidianas não foram reduzidas e

funcionalizadas em espaços especializados, homogeneizados ou “museificados” para a melhor

circulação do capital.

Estado de rua, sarjeta e política da rua

Talvez exista uma confluência de circunstâncias, de características físicas e simbólicas,

que permita a colisão2 entre todas essas forças, todos esses significados e práticas, que

2 A ideia de colisão, mais interessante que a de “encontro”, apareceu no XIV ENANPUR, proposta por Marcus Vinícius Faustini na mesa “Dimensões da experiência: espaço público, alteridade e lugar”. Pesquisando sobre o significado da palavra, o conceito físico pareceu bastante oportuno: “Colisão é um evento no qual dois ou mais

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ganham passagem nas ruas justamente por que elas são o mais próximo do que conseguimos

chegar da ideia de espaço público. A esta situação chamaremos de estado de rua. Esta ideia,

diferentemente da clássica visão antropológica – que há décadas já defende a rua não apenas

como espaço de circulação, mas também de encontro e socialização –, ao dirigir-se às ruas

centrais de grandes metrópoles, busca incorporar a esta visão expressões da dimensão

contemporânea da experiência urbana que envolve também a presença de todo tipo de

atividade marginalizada ou, numa perspectiva maior, a coexistência de práticas as mais

heterogêneas e conflitantes.

Considerando que espaço e uso se engendram mutuamente, podemos pensar que não

apenas é a particularidade da rua como espaço de movimento, aberto e público, o que permite

que esse estado se forme, como também são essas situações instauradas que caracterizam um

estado de rua. A palavra “estado” aponta para algo que pode aparecer e desaparecer, além de

variar em graus de intensidade; ou então para uma espécie de fator incorporado por alguns

sujeitos que o carregam consigo e têm a capacidade de ativá-lo por onde passam. Assim, um

estado de rua pode ser entendido como um fenômeno urbano e político na esfera do cotidiano

que pode se instaurar, a depender de um conjunto de fatores envolvendo a oportunidade e o

acaso, não apenas nas ruas, mas também em outros espaços urbanos.

Este tipo de situação, no entanto, parece perder cada vez mais espaço, tanto nas novas

expansões urbanas – “a cidade dos muros” –, quanto nos projetos de renovação urbana – a

cidade “museificada” ou “pacificada” (à força). Podemos constatar com isso, que estados de

rua não apenas são negados e evitados pelo planejamento das novas zonas de expansão do

tecido urbano, como têm sido reduzidos onde antes existiam, pelas remodelações de áreas

consolidadas. São produzidas cada vez menos ruas e mais vias que, ao contrário do espaço

humano e político defendido aqui, servem aos fluxos homogêneos da aceleração

contemporânea: do império do automóvel ao turismo pasteurizado, passando pelo bombardeio

de imagens publicitárias, que contaminam o campo dos desejos com um simulacro

espetacularizado da vida, onde a opressão do cotidiano, de um tempo mais lento, da escala

corpórea, leva direta ou indiretamente à redução da urbanidade nas cidades.

corpos em movimento exercem forças relativamente fortes entre si, por um tempo relativamente curto”. Sendo a colisão “elástica”, aquela em que os corpos conservam sua energia após a colisão, a colisão inelástica, mais comum e também mais interessante para a analogia buscada aqui, é aquela em que parte da energia dos corpos é alterada para outras formas de energia, incluindo uma parte da energia de cada corpo que será incorporada como energia interna dos outros corpos participantes da colisão.

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A opção pelas ruas e não pelo espaço público de maneira geral, vem da intuição de que

a experiência da rua encerra uma série de particularidades que vão além da ideia de espaço

público3. Podemos pensar que são justamente essas particularidades responsáveis pela

manutenção da prática política no próprio cotidiano da cidade, e que a investigação desse

recorte pode contribuir para uma maior politização também no imaginário sobre essas práticas

a fim de que se fortaleçam diante de processos objetivos e subjetivos que as deslegitimam e

despotencializam.

Assim, o desenvolvimento desta noção – estado de rua – será o fio condutor do

trabalho. É a sua investigação no campo empírico e teórico que aciona o uso do movimento

como desvio enquanto ferramenta metodológica.

A noção de estado de rua enquanto experiência ou situação está obviamente associada

ao espaço urbano, mas podemos considerar a existência de um tipo de espaço singular dentro

desse espaço, ligado a um tipo particular de experiência espacial na rua, ou seja, que não

existe como forma autônoma, mas se constitui no uso das ruas. Este espaço será chamado aqui

de espaço da sarjeta. Ressignificar a sarjeta enquanto espaço de uso, exige que esta se

desvincule de seu significado puramente funcional, isto é, um elemento físico de drenagem

urbana, e atinja o status de figura conceitual, mais próximo, portanto, daquele significado

simbólico de expressões populares como “cair na sarjeta” ou “rolar na sarjeta”. Mesmo assim,

manteremos algum tipo de relação com sua localização – entre a calçada e a pista. O que

propomos é uma inversão de sentidos, ou que se preencha essas expressões com novos

significados, ou seja, que esta sarjeta da expressão popular – uma situação ou condição

humana de degradação moral ou física – possa ser vista como situação urbana onde se

constrói um espaço através do qual práticas marginais se inserem nas ruas para disputar

espaço com outros sujeitos urbanos, possibilitando assim a instauração de estados de rua.

A essa esfera política do cotidiano, que surge quando se constituem estados de rua e a

partir da construção do espaço da sarjeta, chamaremos de política da rua. Esta está ligada às

3 Enquanto isso, o conceito de espaço público vem sendo utilizado para os mais variados fins. Em alguns casos, é mais associado aos espaços de praças ou parques do que às próprias ruas, isso quando elas não são completamente subtraídas da categoria. Este conceito tem também contemplado formas vagas, pouco críticas ou completamente despolitizadas que vão do discurso paisagístico pela defesa de espaços verdes, abertos e qualificados materialmente por um design eficiente, passando pelo discurso imagético e patriótico da representação cívica ou da comunidade de cidadãos iguais perante a lei, chegando a especulações sobre a recuperação de um elo perdido que remete à ágora grega que, não apenas parece incompatível com os dias de hoje, como vem carregado de significados mistificados e idealizados. Vale lembrar também, que este conceito já se integra àquelas práticas consensuais, presente em operações urbanísticas promovidas pelas chamadas “parcerias público-privadas”, sendo instrumentalizado para legitimar a condução de verdadeiras “limpezas sociais” em prol de interesses especulativos privados, escondendo assim um processo de segregação que implica na expulsão dos mais fragilizados social e economicamente e na elitização dos usos e valorização do solo.

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formas de coexistência, aos conflitos e dissensos que surgem nessas circunstâncias, mas

também aos acordos tácitos e modos de auto-organização, inerentes às colisões que se dão nos

cruzamentos de trajetórias heterogêneas nos e com os espaços da rua. Buscaremos, assim,

identificar as características e condições de possibilidades para que essa prática aconteça.

Considerando o atual nível de captura do exercício político pelas esferas de poder

hegemônicas, esta pode ser vista como a defesa deste trabalho: não apenas buscar formas de

manter esta prática política nas rua, mas também pensar formas de potencializá-la.

O trabalho estrutura-se então sobre cinco elementos que agem ao mesmo tempo como

conceitos e como instrumentos, ou táticas de aproximação da experiência empírica:

• Uma lente: cidade nômade

• Uma ferramenta: movimento como desvio

• Uma noção: estado de rua

• Um espaço: a sarjeta

• Uma prática /defesa: política da rua

Há nesta sequência, já uma noção de percurso, isto é, o pesquisador constrói uma lente

de observação (cidade nômade), que se acopla a uma ferramenta de pesquisa (movimento

como desvio), ambas utilizadas para investigar uma noção (estado de rua), que acontece

vinculada a um espaço urbano (a sarjeta), e que possibilitam um prática social (política da

rua), que seria a defesa, ou o posicionamento político deste trabalho. Entretanto, apresentar

estes elementos de forma sequencial será apenas um artifício compositivo, ou narrativo, pois

de forma alguma isto se deu de forma linear no processo de pesquisa. O trabalho de campo

entra aqui no sentido de quebra, ou desvio deste percurso linear, cumprindo a função de

articular esses elementos de forma transversal ao longo do texto.

Entendido como prática cartográfica num sentido ampliado do termo, o trabalho de

campo foi realizado nas ruas, especialmente nas ruas centrais, de Brasília e Salvador. Estas

cidades aparecerão então enquanto componentes das cartografias de campo e invariavelmente

em comentários fragmentados ao longo de todo o texto. Mas não há qualquer intuito

comparativo na escolha destas cidades. Pelo contrário, assumindo suas diferenças como fato,

procurou-se explorar o que cada uma dessas culturas urbanas nas relações que estabelecem

com o desenho da cidade pode produzir em termos de experiência de rua. Se as cidades

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surgiram como contingência do próprio percurso do cartógrafo, este se revelou um acaso

oportuno, pois proporcionou, em certo sentido, a experimentação de facetas extremas do que

o trabalho propõe-se investigar.

A cartografia foi realizada por meio de percursos a pé ou de bicicleta pelas ruas das

duas cidades. As experiências foram registradas em fotos, vídeos, e gravação em áudio de

conversas com sujeitos ambulantes. Somaram-se posteriormente relatos de memória,

desenhos e fotomontagens. Mais do que mapear os percursos, procurou-se cartografar ações,

modos de usar o espaço no “tempo oportuno”. Assim, as fotos e em grande medida, os vídeos,

funcionam como uma espécie de mapa de procedimentos ou operações de sujeitos ambulantes

ou do próprio cartógrafo. Este conjunto de elementos foi depurado e desdobrado em

narrativas cartográficas (ver diagrama na p. 11). Estas são formadas a partir de um ou mais

percursos, nos quais foram experimentadas perspectivas variadas de acesso às questões do

trabalho4.

As narrativas assumem formas e pontos de vista variados, entre eles: a) errâncias ou

derivas, onde se buscou cartografar características de estados de rua instaurados; b)

“perseguições”, ou processos de seguir o “outro”, buscando de forma anônima observar

operações espaço-temporais de sujeitos ambulantes; c) “acoplamentos”, pela ação de

acompanhar percursos de sujeitos ambulantes, onde as impressões e sensações do cartógrafo

se interpelam a depoimentos e trocas não-discursivas que revelam um pouco do ponto de vista

do “outro”; e d) auto-observação, ou o cartógrafo enquanto “outro de si mesmo”, entendendo-

se em alguns momentos como sujeito ambulante, um interlocutor prático de sua própria

investigação.

A busca por outros modos de ver e de fazer levou também à busca de um modo de

contar. Assim, a dissertação está dividida em duas partes, cada uma com quatro capítulos e

dois desvios, sendo a primeira direcionada à construção da ideia de movimento como desvio e

a segunda dedicada à experiência da rua, onde se incluem dois capítulos de caráter histórico.

As cartografias não aparecem num capítulo à parte, mas infiltram-se entre o texto dissertativo

– o que pode também ser lido de forma inversa, ou seja, como a narrativa de um único

percurso na qual se infiltram textos teóricos – ou talvez seja toda a dissertação uma grande

narrativa cartográfica. O leitor tem toda a liberdade para enxergar a prática cartográfica onde

entender encontrá-la. Sendo a narrativa também uma ficção, nada impede que as experiências

de rua sejam recriadas a partir da leitura de um livro, ou que uma ideia conceitual e crítica

4 As narrativas cartográficas apresentadas aqui são complementadas por curtos vídeos disponibilizados no sítio http://www.ruadecontramao.wordpress.com

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tenha surgido em campo, a partir de articulações disparadas por estímulos da rua, com vento

no rosto, suor, buzinas e pedaladas. Tanto o texto dissertativo quanto os desvios possuem

assim uma autonomia relativa, permitindo que o leitor leia de forma sequencial apenas os

desvios ou apenas os capítulos. Há, entretanto, uma intencionalidade compositiva na forma da

dissertação, onde trechos de narrativas cartográficas da experiência da rua intercalam-se com

trechos de texto dissertativo, marcando um certo ritmo e permitindo que se teçam ligações

com o que estava antes ou com o que vem depois. Sem, muitas vezes, uma correlação direta

facilitada pelo cartógrafo, espera-se que a leitura possa levar a conexões múltiplas e

imprevisíveis possibilitando assim, que no movimento da leitura o leitor possa realizar

também seus próprios desvios.

Diagrama Movimento como ferramenta: construção de narrativas cartográficas.

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Movimento como desvio [PARTE I]

Você será organizado, você será um organismo, articulará seu corpo – senão será um depravado. Você será significante e significado, intérprete e interpretado – senão será um desviante. Você será sujeito e, como tal, fixado – senão você será apenas um vagabundo. (...) a experimentação como operação sobre este plano (nada de significante, não interprete nunca!), o nomadismo como movimento (inclusive no mesmo lugar, ande, não pare de andar, viagem imóvel, dessubjetivação.)

Deleuze & Guattari, Mil Platôs

A chave para a interpretação correta do Brasil jaz na possibilidade de estudar aquilo que está entre as coisas. O importante seria identificar os pontos de conexão entre esses elementos e para descobri-los é preciso ser capaz de captar a sociedade brasileira em seu movimento.

Roberto DaMatta, A casa e a rua

As citações acima, de autores que falam de lugares teóricos e geográficos diferentes,

parecem ter na ideia de movimento um ponto em comum, ao mesmo tempo em que produzem

entre si um estranho paradoxo. Essas ideias isoladas provavelmente apontariam percursos

teóricos bem distintos, mas atando-as, elas podem levar a um caminho mestiço, sem filiação

precisa, que leva consigo seus paradoxos, suas questões não resolvidas.

Esta fugaz (in)definição representa o campo aberto de experimentação que se pretende

explorar nesta pesquisa. De um lado, Da Matta nos incita a interpretar, a identificar pontos de

conexão, mas também olhar para as possibilidades do “entre” e captar a sociedade em

movimento. De outro lado, Deleuze e Guattari (por negação) apontam para as possibilidades

do depravado, do desviante, do vagabundo quando se desvia das interpretações, da sujeição e

do organismo5. O caminho: a experimentação como operação, e o nomadismo como forma de

movimento. Podemos pensar que no primeiro caso o movimento é um recorte, ou uma lente

de investigação, enquanto no segundo caso, o movimento, qualificado como nomadismo, é

ferramenta de ação. Em todo caso, as duas possibilidades não deixam de instrumentalizar o

movimento para desviar de barreiras que impedem o acesso a outras facetas da realidade,

outras formas de ver e experimentar, diferentes daquelas sedimentadas pelos métodos

convencionais da pesquisa no campo social ou pelos processos de subjetivação/sujeição

dominantes. É numa composição entre esses dois caminhos que o percurso que segue se

5 No discurso urbanístico é comum o recurso ao organismo como metáfora da cidade: desde sua emergência enquanto disciplina, quando as intervenções na cidade pautavam-se em questões de higiene e saúde pública, passando pela cidade funcional do movimento moderno quando se faziam analogias entre o funcionamento da cidade e o organismo humano, até os dias de hoje, quando ainda se fala de diagnóstico ou de tecidos urbanos doentes que necessitam “acupunturas urbanas” para uma revitalização. A ideia de Deleuze e Guattari pode ser aplicada no sentido de se desconstruir as representações (não apenas a orgânica) a favor da experiência da cidade em sua singularidade.

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coloca, buscando as múltiplas possibilidades de exploração da ideia de movimento como

desvio.

A relação entre movimento e nomadismo e uma permanente tensão entre a interpretação

discursiva e um saber-fazer não discursivo serão recursos teórico-práticos que permearão todo

este percurso. Sujeitos desviantes encontrados nas ruas – muitas vezes vistos como

depravados ou vagabundos – tornam-se aliados neste processo de ressignificação das práticas,

dos usos e significados do espaço urbano. O percurso passa por pontos de desestabilização

tanto dos imaginários estabelecidos sobre as dinâmicas das ruas, quanto das próprias práticas

de análise e ação urbanísticas e está, como as derivas, aberto aos desvios que se façam

necessários de acordo com as surpresas do caminho.

Esta primeira parte do trabalho desenvolve-se em torno da ideia de movimento como

desvio: na cidade, por práticas do cotidiano, e no urbanismo, pela conjugação de um modo de

ver e de um modo de fazer.

O primeiro capítulo faz uma contextualização do jogo forças em que a experiência da

rua se insere atualmente. Nele buscou-se traçar um panorama histórico-crítico recente que diz

respeito ao esvaziamento da vida pública e a proliferação de um modo de vida que tem

remodelado a forma como nos relacionamos com a cidade e com o outro, do qual a negação

da rua é apenas um dos sintomas. Este modo de vida será chamado de sociedade capsular. Ao

mesmo tempo, aponta para a própria cidade enquanto campo de criação e resistência a esse

processo. Apesar de estar mais relacionado à experiência da rua e, portanto, à segunda parte

do trabalho, este capítulo abre a dissertação pela necessidade de se desenhar a inserção da

pesquisa num campo de forças, explicitar uma esfera de combate assim como uma tomada de

posição.

O segundo capítulo desenvolve a ideia de movimento como um modo de olhar a cidade,

e apresenta-se sob a forma de construção da lente de observação e experimentação que

chamaremos de cidade nômade.

O terceiro capítulo dedica-se à ideia da instrumentalização do movimento como

ferramenta de pesquisa, seja no âmbito empírico, ou seja, enquanto ferramenta de exploração

urbana, quanto no âmbito da teorização, mas especialmente nas possibilidades de

entrelaçamento entre essas duas esferas.

No quarto capítulo será aprofundada a ideia central desta primeira parte, o movimento

como desvio, apresentando os aliados da pesquisa. Toma-se o movimento de sujeitos

ambulantes nas ruas como ponto de partida para pensar, de forma ampliada, um conjunto de

características das práticas que têm como procedimento comum, ou finalidade, o desvio.

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1. Desenhando o jogo de forças: a rua e a sociedade capsular

Inversões

Seria possível olhar para a cidade segundo duas perspectivas, ou lentes. A primeira

delas é bastante conhecida e poderia ser chamada de cidade sedentária. Os planejadores e

urbanistas a conhecem e estudam muito bem; fazem mapas classificando onde e como os usos

da cidade acontecem; categorizam a cidade segundo a lei (formal e informal), segundo a

distribuição de renda (pobres, classe-média, ricos), segundo acesso a bens e serviços

(incluídos e excluídos). Acontece que sob essa perspectiva a cidade parece fixa, ela não está

em movimento. Isto talvez decorra da grande dificuldade que se tem em incorporar a

temporalidade dos processos urbanos nas estratégias de sua compreensão, o que demandaria

uma maior complexificação daquelas habituais categorias e esferas de análise.

Outra lente possível poderia ser chamada de cidade nômade6. Esta perspectiva olharia

para tudo aquilo que está em movimento entre aquelas categorias tradicionais e territórios

sedentarizados. Ganham importância aqui as dinâmicas e mutações materiais e humanas ao

longo do tempo. Não se trata, no entanto, apenas daquele tempo histórico, longo, mas também

daquele tempo utilizado para caminhar do início ao fim de uma rua, passar de uma rua a outra,

desenhar percursos, ou então de um tempo oportuno, como aquele que um camelô dispõe para

desmontar sua barraca antes que seja pego pelo “rapa”. A lente da cidade nômade nos liberta

daquelas categorias sedimentadas e pode possibilitar inclusive inversões de pontos de vista

estabelecidos. Parece, por exemplo, que o “informal”, o “pobre”, o “excluído” faz uso dos

espaços de movimento da cidade como muito mais liberdade do que o “rico”, o “incluído”, o

“formalizado”, que por sua vez, parece ter cada vez mais medo da rua e passa a buscar refúgio

no interior de cápsulas de proteção onde desenvolve sua vida com o menor contato possível

com o desconhecido e o imprevisível. Uma espécie de amortecimento e anestesia da

experiência urbana, que implica naturalmente a possibilidade da colisão e do choque.

Arquitetura capsular e cidade genérica: origens utópicas?

Lieven De Cauter (2004), chama de civilização capsular a esse modo de vida que ganha

força nas sociedades urbanas e metropolitanas contemporâneas. A civilização capsular seria o 6 A idéia de cidade nômade como lente de aproximação da cidade será o tema central do capítulo 2.

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resultado de uma nova geopolítica dos territórios e relações de poder no atual estágio do

processo de globalização. O primeiro mundo deixa de ser entendido enquanto um território

relativamente homogêneo, ao norte, para caracterizar-se sob a forma de enclaves de riqueza

que, em seu conjunto, formam um arquipélago de fortalezas e zonas controladas, conectadas

por um conjunto de linhas de comunicação e transporte. Esse arquipélago pode ser

visualizado na escala global, onde se vê cidades-nodais do circuito financeiro internacional

espalhadas por todo o globo, ou setores de cidades que parecem estar mais conectados a esse

circuito global do que à própria cidade onde estão inseridos. Pode também ser visualizado na

escala local, onde um conjunto de objetos arquitetônicos isolados e protegidos de seu exterior

forma o arquipélago que abriga um conjunto de dinâmicas “urbanas” de acesso restrito cujo

passe de entrada é o poder de consumo de seus usuários7.

De Cauter encontra, curiosamente, indícios desse fenômeno nas ideias arquitetônicas de

grupos utópicos dos anos 1960 e 70, entre eles os Metabolistas japoneses e os arquitetos

ingleses do Archigram8. Apesar de a cápsula estar presente em várias das propostas dos dois

grupos, o autor encontra num texto do arquiteto Kisho Kurokawa (um dos Metabolistas) de

1969, chamado Capsule declaration, uma intrigante defesa conceitual da “cápsula” com um

sentido que encontra reverberação nas questões do presente. O arquiteto defendia ali a cápsula

como modelo da arquitetura do futuro, onde “o homem, a máquina e o espaço constroem um

novo corpo orgânico que transcende a confrontação... que cria um ambiente voltado para si

mesmo... um artefato que se tornou um espaço vivo em si mesmo” (KUROKAWA9 apud

CAUTER, 2004, p. 65; grifos meus). Ora, transcender a confrontação e criar ambientes

voltados para si mesmo são justamente componentes das imagens e discursos largamente

utilizados nas estratégias de venda de habitação em condomínios auto-suficientes e

7 Neste sentido, o festejado crescimento da chamada classe C no Brasil, deve ser acompanhado de perto para se verificar se a inserção econômica de setores sociais antes excluídos do crédito e do poder de consumo – mas com uma tradição cultural de experiência de vida mais coletiva, onde existem maiores laços de solidariedade, relações de vizinhança, experiência pedestre e práticas de consumo em pequenos estabelecimentos do circuito inferior da economia – virá acompanhada de uma capsularização de seus modos de vida. 8 Apesar da distância geográfica (Londres e Tóquio) estes dois grupos formados por jovens arquitetos surgiram quase na mesma época e tinham preocupações e visões muito similares, sendo considerados expoentes da chamada corrente das “megaestruturas”. Suas propostas caracterizavam-se por projetos utópicos baseados em alta tecnologia e na produção industrial que buscavam responder à escala e a complexidade da cidade. Os metabolistas lançaram-se como movimento em 1960 a partir de um manifesto intitulado "Metabolism: A Proposal for a New Urbanism", que foi apresentado no formato de um panfleto na World Design Conference em Tóquio. Enquanto Archigram surgiu como grupo autônomo a partir de 1961, associado à produção de revista homônima que misturava cultura pop, crítica, consumo e projetos autorais utópicos. Para um panorama dos grupos Cf. www.cronologiadourbanismo.ufba.br. 9 Cf. KUROKAWA, Kisho. “Capsule Declaration” in Metabolism in Architecture. Studio Vista: London, 1977.

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automóveis, repletos de acessórios e amenidades cuja finalidade direta ou indireta é o

isolamento do indivíduo da cidade e do contato com o “outro”.

Ainda que não se possa perder de vista o contexto em que se inscrevem essas ideias10,

De Cauter tenta demonstrar o caráter profético desta declaração, mais no âmbito do

desdobramento de seus significados do que em suas formalizações futuristas. Entre os

sentidos mais fortes estava a ideia de uma arquitetura capsular enquanto extensão do corpo;

menos na ideia da tecnologia no corpo – o corpo-ciborgue – do que da tecnologia envolvendo

o corpo: a casa tornada dispositivo móvel (o trailer) e o dispositivo móvel que se torna casa (o

automóvel como um cômodo repleto de conforto). Com isso, esses arquitetos imaginavam

também, a transição de uma sociedade sedentária para uma sociedade de mobilidade sem

limites: “a capsula liberta o edifício de seus laços com o chão e abre espaço para uma

arquitetura em movimento. [...] A capsula seria a habitação do homo movens” (ibid).

Havia, sem dúvida, nas proposições radicais desses arquitetos um forte conteúdo crítico

direcionado especialmente à rigidez do urbanismo funcionalista dos CIAMs11, contra o qual a

resposta parecia apoiar-se nas possibilidades que os avanços tecnológicos poderiam

proporcionar à sociedade em termos de liberdade individual no sentido de uma ampliação da

mobilidade e das formas de comunicação. No entanto, essas propostas já vinham também

carregadas de noções como um aumento do individualismo e do esvaziamento da esfera

pública, mesmo que isso acontecesse pela ausência completa de uma posição crítica neste

sentido. Ou seja, assumindo uma postura crítica e vanguardista, mas sem posicionarem-se

politicamente em relação aos engendramentos entre processos econômicos e culturais de sua

época12, os arquitetos do Archigram e os Metabolistas, com ou sem intenção esboçavam as

características de uma arquitetura que se coloca hoje como aliada à circulação acelerada e

demolidora do capital financeiro sobre as cidades.

10 Contexto em que os avanços tecnológicos da cibernética e da corrida espacial impregnaram os imaginários da época de visões futuristas. A própria cápsula espacial foi uma influência decisiva nas idéias desses grupos. 11 Os Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, que ocorreram de 1928 a 1956. 12 Quase na mesma época, mas com alguns anos de antecedência, outro grupo considerado de vanguarda, os Situacionistas, colocavam-se justamente críticos à culturalização da mercadoria e do urbanismo enquanto ideologia capitalista, que situavam os habitantes das cidades como meros espectadores da vida convertida em espetáculo. Os situacionistas propunham, ao contrário uma retomada dos espaços públicos pela criação de situações, como forma de desalienação coletiva ante a espetacularização da vida. Um dos situacionistas, o holandês Constant, também desenvolveu o projeto utópico de uma cidade, chamada de New Babylon, que não seria um salto natural das relações culturais de sua época proporcionado pela tecnologia, mas da instrumentalização da tecnologia para um rompimento revolucionário da vida com a cultura consumista, passiva, individualista e espetacular. Cf. JACQUES, Paola Berenstein (org.). Apologia da Deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.

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De Cauter aponta a conexão que pode ser feita dessas ideias com a apologia cínica que

Rem Koolhaas faz à cidade genérica – a cidade que se apresenta como consequência passiva e

sem resistência dos processos capitalistas sobre o espaço e os modos de vida urbanos – na

qual “a condição de estar constantemente em trânsito torna-se universal” (KOOLHAAS apud

CAUTER, 2004). Com efeito, na cidade genérica passa-se a maior parte do tempo em

cápsulas de transporte: trens, ônibus, metrôs, e acima de tudo, carros e aviões. Tal sintoma

parece indicar que “quanto maior a velocidade buscada para a circulação física e

informacional, maior a necessidade humana de capsulas” (CAUTER, 2004, p. 79). Nesta

direção, em que a mobilidade está associada a uma dependência cada vez maior das

tecnologias de transporte para vencer as distâncias impostas pelas determinações de mercado

sobre a superfície da cidade, surge a contraditória condição de um falso nomadismo.

Acabamos nos tornando “nômades sedentários”, já que quanto maior a mobilidade nesses

termos, mais capsular torna-se nosso comportamento (ibid).

Assim, a vida numa sociedade cada vez mais capsular, cujo reflexo urbano é uma cidade

cada vez mais genérica, passa a ser mediada por variados tipos de cápsulas: desde as cápsulas

de transporte, às edificações enclausuradas, chegando ao shopping Center, parques temáticos

e comunidades cercadas; mas também por aquelas capsulas virtuais, ou microcápsulas, como

as telas da televisão, do computador, o telefone celular e os headphones de mp3 players.

Nestas circunstâncias, fica mais evidente o alinhamento e não a ruptura, da cidade genérica,

mas também da arquitetura capsular com uma das matrizes urbanísticas do CIAM, e mais

enfaticamente defendida por Le Corbusier: a morte da rua. No entanto, se em Le Corbusier

esta ideia ainda se esboça em termos um tanto brutos, ou objetivos, enquanto uma questão de

adequação entre forma e fluidez dos fluxos de circulação – “a morte da rua-corredor” 13 –,

nessa perspectiva mais contemporânea, nota-se uma sofisticação pela penetração no campo da

subjetividade, com a morte da experiência da rua – direta e corporal – por meio da mediação

cada vez maior promovida pela capsularização dos corpos e das edificações.

A face invisível: “tempo real”, espetáculo e individualização

Paul Virilio (1993) atribui a essa mediação, cada vez maior, de dispositivos técnicos

sobre a experiência urbana, a formação de um outro regime de temporalidade, uma

temporalidade “trans-histórica”, onde o “tempo real” passa a obliterar as referências culturais.

Trata-se, segundo ele, de uma crise generalizada das referências – éticas, estéticas – revertida

na “incapacidade de avaliar os acontecimentos em um meio em que as aparências estão contra 13 A morte da rua-corredor proposta por Le Corbusier será retomada com maior profundidade no capítulo 6.

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nós” (p. 19). De fato, como comenta o autor, a tela parece ter se convertido no local, na

encruzilhada de todos os meios de comunicação de massa, a interface que confere hegemonia

à ideologia do real. Com isso,

O desequilíbrio crescente entre a informação direta e a informação indireta, fruto do desenvolvimento de diversos meios de comunicação, tende a privilegiar indiscriminadamente toda informação mediatizada em detrimento da informação dos sentidos, fazendo com que o efeito do real pareça suplantar a realidade imediata. (VIRILIO, 1993, p. 18; grifo do autor)

Neste contexto cada vez mais mediatizado por um “tempo real” imposto, mais do que

vivido, as cápsulas passam a funcionar como mecanismos de simulação: elas tentam emular

uma esfera pública, diz De Cauter (2004). O átrio pós-moderno, sob a forma de uma praça

selada no interior de um edifício e as “praças” de alimentação dos shoppings, seriam seus

principais exemplos. Tal mecanismo seria uma resposta a processos urbanos mais amplos que

funcionam como estimuladores desse modo de vida. O autor aponta de um lado, o modelo de

Paris, que se apresenta como “disneyficação” do centro e “bronxificação” da periferia, e de

outro, o modelo de Los Angeles, onde ocorre a implosão do centro e a explosão de subúrbios

intermináveis. Parece possível identificar, mesmo que parcialmente, processos muito

similares em curso nas cidades brasileiras, e geralmente algo como uma conjunção desses

dois modelos numa mesma cidade.

É para este duplo processo que Jacques (2004) aponta sua crítica, quando defende que

as duas principais vertentes dos processos urbanos atuais, as quais chama de “neo-

culturalista” e “neo-moderna” – refletidas, respectivamente, na museificação dos centros

históricos e na “tábula-rasa” dos espaços genéricos de novos bairros ex-nihilo – seriam os dois

lados de uma mesma moeda: a espetacularização da cidade contemporânea. Se no polo neo-

moderno fica clara a negação da experiência da rua por sua tendência rodoviarista, no polo

neo-culturalista ela também desaparece junto com seus habitantes, expulsos dali junto com

sua historicidade. Sobra uma rua-simulacro, falsa, cuja diversidade de estilos e cores esconde

uma completa homogeneização de seus usos.

A proliferação desses processos urbanos vem acompanhada de dois grande processos de

subjetivação coletiva, que são também complementares: a “ecologia do medo” e a “ecologia

da fantasia”, que conjuntamente e, ambas, envolvidas numa “hiperrealidade”

espetacularizada, promovem a constituição de “psicoesferas” artificiais nas quais a vida

cotidiana passa a ser cada vez mais reprimida14. A cápsula passa a agir então como um

14 Os termo “ecology of fear”, “ecology of fantasy”, “hyperreality” (traduzidos aqui como ecologia do medo, ecologia da fantasia e hiperrealidade) foram cunhados, respectivamente, por Mike Davis, Margareth Crawford e Jean Baudrillard. Cf. “The Capsular Civilization” e “The Capsule and the Network” in: CAUTER, 2004. O termo “psicoesfera” foi proposto por Milton Santos. Cf. SANTOS, 2006.

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“aspirador” sobre a vida urbana, sugando dela toda a vida cotidiana, onde ficam do lado de

fora a pobreza, o crime e toda a espontaneidade não-planejada (CAUTER, 2004, p. 46). Com

isso, ao mesmo tempo em que se elimina a esfera pública, também se promove um

“encasulamento” do próprio indivíduo, que se reflete numa atomização generalizada da

sociedade. Neste sentido, características do fenômeno da suburbanização, como o isolamento

de núcleos familiares do meio urbano, mas conectados a outros núcleos por redes de

transporte e informação, podem ser vistas em uma lógica estendida também a moradores de

áreas consideradas totalmente urbanas (ibid; p. 82).

É possível associar esses processos coletivos de subjetivação ao que Sennett (1998),

definiu como “o declínio do homem público”, um processo social enraizado historicamente,

em que pouco a pouco as preocupações com questões públicas e com o outro deixam de ter

importância, e com isso, laços que não sejam familiares ou de amizade deixam de existir. Isso

acontece ao mesmo tempo em que se opera uma interiorização das preocupações humanas,

cuja origem estaria na crescente importância da psicologia na vida burguesa. “Multidões de

pessoas estão agora preocupadas, mais do que nunca, apenas com as histórias de suas próprias

vidas e com suas emoções particulares”(p.17). Segundo Sennett, as relações públicas passam

a ser tratadas em termos de autenticação do eu, e isso se torna quase obsessivo. Tal

comportamento reflete-se na relação que se estabelece com os espaços públicos da cidade, já

que a movimentação sem restrições, por exemplo, passa a ser considerada como um direito

absoluto do eu. Sob essa perspectiva interiorizada, afirma Sennett, o espaço público, o próprio

espaço das ruas, “torna-se sem sentido, até mesmo endoidecedor, a não ser que possa ser

subordinado ao movimento livre” (p. 28).

Se por um lado as relações coletivas passam a realizar-se preponderantemente em

termos de expressão psicológica, de sentimentos e necessidades interiores, ou seja, o universo

privado torna-se a própria linguagem de comunicação pública; por outro lado, a

reconfiguração espacial da relação público-privado pelo redesenho moderno de objetos

arquitetônicos e urbanísticos passa a definir-se pela transparência e a diluição, agora física,

das fronteiras entre essas duas esferas. Virilio (1993) vai chamar esse fenômeno, onde uma

exposição total vai compensar o esvaziamento da esfera pública, de “fratura superexposta”,

onde a transparência tomou o lugar das aparências, da temporalidade da percepção sequencial

(p. 19). No entanto esta é uma superexposição que define um mundo sem antípodas, sem

faces ocultas, onde a opacidade não é nada além de um interlúdio passageiro (p. 14). Esse

duplo processo, de acordo com Sennett, acaba configurando-se como uma armadilha, pois em

meio a uma superexposição em que todos estão se vigiando mutuamente, a sociabilidade

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diminui, o silêncio converte-se na única forma de proteção e a necessidade do espaço público

como esfera de encontro, distinta da privada, perde completamente o sentido. Sennett começa

a acreditar que “as pessoas são tanto mais sociáveis quanto mais tiverem entre elas barreiras

tangíveis, assim como necessitam de locais específicos, em público, cujo propósito único seja

reuni-las” (SENNETT, 1998, p. 29).

A questão torna-se assim, complexa. Parecem existir três vetores que caracterizam e

constroem um modo de vida capsular: o primeiro diz respeito a um conjunto de mediações

físicas, enclausuramentos, que vão da escala do corpo à escala de complexos comerciais e

habitacionais, passando também pela própria velocidade dos transportes. O segundo seria o

conjunto de mediações invisíveis, que constroem as psicoesferas do “tempo real” e da vida

como espetáculo, muitas vezes simulacro de uma esfera pública que acontece já no interior de

extensões homogeneizadas e controladas. E o terceiro seria o da própria valorização da esfera

individual e privada, superexpostas, agindo como mediação do indivíduo com o ambiente e o

outro. Nas diferentes gradações e escalas desse processo, no qual os três vetores descritos

parecem se retroalimentar, o que está em jogo é o próprio encontro com o desconhecido, com

a alteridade, aquilo que pode ser considerado, paradoxalmente, como a principal característica

da condição urbana. A importância desses encontros não apenas para a cidade, mas para o

próprio desenvolvimento do ser humano é muito bem defendida por Sennett:

Aquilo que se perde [...] é a ideia de que as pessoas só podem crescer através de processos de encontro com o desconhecido. Coisas e pessoas estranhas podem perturbar ideias familiares e verdades estabelecidas; o terreno não familiar tem uma função positiva na vida de um ser humano. Essa função é a de acostumar o ser humano a correr riscos. O amor pelo gueto, especialmente o gueto de classe média, tira da pessoa a chance de enriquecer as suas percepções, a sua experiência, e de aprender a mais valiosa de todas as lições humanas: a habilidade para colocar em questão as condições já estabelecidas de sua vida. (SENNETT, 1998, p. 360)

Em meio a este processo podemos nos perguntar em que se converte a rua? Por um

lado, dissolvida formalmente em via de circulação acelerada; por outro transformada em

cenário de uma psicoesfera de fantasia onde o cotidiano foi subtraído. Podemos,

inversamente, nos perguntar também o que uma revalorização da experiência da rua, aberta à

alteridade urbana, onde estados de rua são construídos cotidianamente e intensamente

povoados, pode acarretar para a sociedade ou, seguindo a linha de Sennett, para o próprio

desenvolvimento humano?

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Usos opacos em espaços luminosos

Em meio ao jogo de forças da cidade contemporânea, não apenas a rua, mas numa

perspectiva mais ampla, a própria “cidade subjetiva” (GUATTARI, 1992) parece estar

ameaçada. Na cidade subjetiva, tornada mais visível pela lente da cidade nômade – aquela

que não perde de vista o movimento e a temporalidade dos processos urbanos –, os indivíduos

são constantemente atravessados por um turbilhão de fluxos objetivos e subjetivos, culturais,

informacionais, semióticos, que atuam como processos coletivos de subjetivação, onde se

forjam e se articulam desejos, afetos e forças. É em meio a esses processos múltiplos, que

mesclam a sujeição e a invenção, que Guattari visualiza a cidade enquanto campo de

possibilidades para a produção de uma infinidade de modos de vida, dos níveis mais

singulares de uma pessoa aos mais coletivos – o que não significa uma coexistência pacífica e

sem conflitos.

Caminhando pelas ruas, pela cidade além das cápsulas, é possível observar modos de

uso e apropriação dos espaços da cidade que são criativos, astutos e dotados de uma

mobilidade distinta daquela capsular, e que conseguem, em alguma medida, desviar dos

processos que levam à homogeneização da experiência urbana. Por outro lado, cresce cada

vez mais a fila de candidatos a “prisioneiros voluntários”15 do modo de vida capsular.

Considerando que este modo de vida tem, não apenas ganhado espaço no campo dos desejos,

como isto se reflete na produção de espaços urbanos e arquiteturas da cidade, torna-se

importante tentar identificar os dispositivos16 através dos quais esta dinâmica opera.

Podemos nos concentrar em apenas dois desses dispositivos, desenvolvidos a favor do

“mestre-sala” e da “porta-bandeira” da cidade capitalista: o automóvel e a casa própria – ou

seus fornecedores e principais beneficiários, a indústria automobilística e a da construção

civil17. Um desses dispositivos é exatamente o conjunto de enunciados – que agem como

máquinas modeladoras de subjetividades – veiculados nas inúmeras e massivas instâncias de

comunicação que propagam a ideia consensual de que o bom, seguro, confortável e

15 Esta é uma expressão cunhada por Rem Kolhaas num de seus primeiros, mas já polêmicos, projetos, chamado “Exodus, or the voluntary prisoners of architecture”, de 1972. O projeto propunha a inserção de um enorme e longilíneo bloco sobre a malha urbana de Londres, dotado de novas possibilidades de liberdade, mas dividido em setores onde cada uma dessas possibilidades poderia ser expressa. Qualquer indivíduo poderia gozar de todas essas formas de liberdade desde que aceitasse tornar-se prisioneiro voluntário da colossal estrutura. Cf. MAU, Bruce, KOOLHAAS, Rem ; WERLEMANN, Hans. S,M,L,XL. New York: The Monacelli Press, 1994. 16 Agamben (2009) propõe uma definição simples da ideia de dispositivo: “dispositivo é tudo que tem a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes”(p. 40). 17 Que parecem ter encontrado no Estado, seja de direita ou de esquerda, seu maior aliado em função de um desenvolvimento econômico a favor do qual os fins justificam os meios.

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ultimamente até “ecologicamente correto”, é viver encapsulado. Suas ferramentas de

convencimento são tão eficazes, que conseguem levar vários indivíduos a crer que a liberdade

está, paradoxalmente, no enclausuramento dentro de condomínios fortificados e do automóvel

0 km.

O outro dispositivo é a proliferação de vias no lugar das ruas, a princípio, consequência

indispensável para a realização deste modo de vida já que é responsável por promover (em

teoria) a velocidade necessária para efetivá-lo. As vias são as pontes que conectam as ilhas

desse arquipélago capsular em meio ao mar perigoso que se tornou a própria cidade. Do status

de consequência, passa ao de colaboradora para sua reprodução: o crescente contingente que

migra para esse modo de vida, não apenas distancia-se da cidade subjetiva, como aniquila

pouco a pouco a de todos os outros, pois esses espaços rodoviários de pontes e viadutos, que

se expandem pra dar conta do volume cada vez maior de veículos no sistema circulatório da

cidade, são inertes, sem escala humana, receptáculos de um fluxo totalmente homogêneo e

automatizado.

De Cauter chama este processo de “desdramatização”, uma perda de dramaticidade

dessas zonas de expansão configuradas por meio do “espraiamento urbano aleatório e

indiferente justaposição de vias expressas” (CAUTER, 2004, p. 44). A geógrafa Ana Fani

Carlos, com muita precisão, vai chamá-los de “espaços amnésicos” – “reflexos na morfologia

urbana do processo de aceleração do tempo, um tempo efêmero, produto da nova

racionalidade imposta por profundas mudanças nos processos de acumulação” (CARLOS,

2007, p. 13). No império do tempo efêmero, esses espaços amnésicos, completamente

esvaziados de historicidade, foram impregnados pelo presente contínuo, o “tempo real” de

que fala Virilio, sem passado e sem futuro18.

Esses espaços amnésicos, associados aos espaços históricos espetacularizados parecem

compor aquilo que Milton Santos chama de “espaços luminosos”. Aqueles espaços

produzidos pela aliança entre capital e Estado19 para dar vazão à aceleração contemporânea:

um espaço minoritário em extensão, mas que subordina à sua lógica rígida todo o restante da

18 Vem à mente o cenário do filme Paris, Texas de Wim Wenders (1984): paisagens rodoviárias, sem história, amnésicas. A cidade aparece como alegoria do próprio filme, que se inicia com um homem que não parece perdido, pois caminha convicto e acelerado. Um homem aparentemente sem memória caminhando no deserto em direção ao deserto, fugindo justamente dos traumas de sua própria história. A cidade do filme é Houston, mas pode ser qualquer uma, cidade genérica, amnésica, hiperreal, capsular. 19 “O Estado é chamado a adequar o meio ambiente construído para possibilitar a ação global das forças mundializadoras do mercado. Nessas condições, o neoliberalismo não se aplica aos objetos, mas apenas às ações que os objetos inovadores tornam mais fluidas e certeiras.” (SANTOS, 2008, p. 74)

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cidade, “mudando a seu talante a distribuição das atividades e dos homens, assim como seus

ritmos” (SANTOS, 2008, p. 73).

Esta rigidez, que pode ser associada ao processo mais geral de modernização das

cidades pode ser observada inicialmente na aparência das formas: os arranha-céus, os

revestimentos reflexivos, as poucas palmeiras e extensa impermeabilização asfáltica, o ser-

humano pontual perdido na imensidão das distâncias, a frieza do lugar (mesmo que sob

intensa insolação); mas que está também nas lógicas ocultas que os criaram: as mesmas e

repetitivas determinações do mercado imobiliário, da indústria automobilística, dos grandes

monopólios de empreiteiras e multinacionais a decidir sobre os rumos da cidade; e ainda a

rigidez dos usos: os mesmos padrões sociais, mesmos modos de vida, mesma cultura de alto

consumo20. Rigidez que desvela, portanto, a falácia discursiva do aparato ideológico dos

processos de modernização, que abusa das palavras liberdade, flexibilidade, exclusividade. A

própria promessa moderna da mobilidade sem fronteiras acaba na saída da garagem, na

rigidez dos já não mais imprevisíveis congestionamentos.

Mesmo assim, Milton Santos nos ajuda a pensar a própria cidade existente como

potência de resistência a essa tendência global, justamente através de seu meio ambiente

construído, herança de períodos variados, “retrato da diversidade de classes sociais, das

diferenças de renda e dos modelos culturais”(ibid; p. 74); aquilo que o autor chama de

rugosidades dos espaços urbanos, capazes de promover a resistência à ação da aceleração

contemporânea que pede passagem pelos espaços-tempos da cidade. Segundo o autor, além

dos espaços luminosos, a cidade abriga também esses espaços cheios de rugosidades, os

espaços opacos, onde a racionalidade técnico-científica encontra dificuldade de penetrar,

onde os tempos são lentos e que por isso mesmo podem abrigar atividades mais marginais. “É

nesses espaços constituídos por formas não-atualizadas que a economia não-hegemônica e as

classes sociais hegemonizadas encontram as condições de sobrevivência” (ibid.).

Nesses espaços de maior plasticidade, que diferem da rigidez dos espaços ditos

inteligentes, opera o que o autor chama de uma “flexibilidade tropical”: modos de ação

diferentes do modelo racional-científico, associados muitas vezes a questões de sobrevivência

e responsável, em grande medida, por atenuar o tamanho da crise das grandes cidades.

Podemos pensar, entretanto, que essa distinção entre espaços opacos e luminosos pede

que se pense hoje em porosidades, certas passagens de um a outro. Os recentes processos

20 São utilizadas aqui, pela simplicidade, clareza e ao mesmo tempo abrangência, categorias sugeridas por Milton Santos: “ É desse modo que o espaço humano reveste hoje maiores diferenciações e disparidades – na aparência, nas estruturas ocultas, no uso” (ibid. p. 70; grifo meu)

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socioeconômicos em curso no país, por exemplo, parecem pressionar cada vez mais os tempos

lentos rumo à aceleração, assim como a luminosidade ou o desejo de luminosidade parecem

penetrar no que se via há 20 anos atrás como uma densa opacidade. Por outro lado, as áreas

centrais, ou de concentração de capital – centros e subcentros comerciais, financeiros, bairros

de classe-média/ alta –, atraem cada vez mais trajetórias humanas de variadas proveniências

em busca desse capital. Com isso, os espaços luminosos passam a ser “embaçados” por

práticas indesejadas. A velocidade de seus fluxos de capital, mobilidade e comunicação

começa a ser desacelerada pela interferência de tempos lentos. Neste sentido, as rugosidades

produzidas pelas camadas de tempo nos objetos da cidade, parecem ser também produzidas

pelos usos indesejados desses espaços de racionalidade21.

Talvez seja exatamente o excesso de rigidez encontrada nesses espaços luminosos, o

fator responsável por permitir uma maior possibilidade do desvio de suas determinações por

práticas baseadas em outras lógicas, flexíveis não apenas na aparência (de gambiarra,

ambulante, desmontável, fragmentária, etc.), mas em suas lógicas ocultas: a miríade de

motivos, de origens, de arte-manhas conquistadas na própria experimentação; e também nos

usos que, geralmente associados à uma necessidade de sobrevivência em maior ou menor

grau, exigem dos sujeitos o recurso a uma plasticidade criativa para adaptar-se aos desafios

do terreno – brechas, fissuras, corredores –, seja para os usos mais fixos e duráveis, ou para os

usos mais móveis e efêmeros, e à necessidade de desvio das fiscalizações e repressões

policiais.

Poderíamos então pensar não apenas em espaços opacos e tempos lentos, mas também

em práticas ou ações humanas no espaço-tempo que podem ser mais opacas ou mais

luminosas na medida em que reproduzem ou submetem-se à luminosidade (o espetáculo, as

forças hegemônicas) ou dela escapam, apontando outras possibilidades de praticas individuais

e coletivas, de usos do espaço-tempo, de modos de vida. É desta forma que, pela potência de

criação que reside e resiste no cotidiano, ancorada nas práticas mais comuns e opacas, a

experiência da rua parece encontrar suas forças para manter-se na disputa, mesmo que na

contramão, dos espaços e modos de subjetivação na cidade.

21 Neste sentido, as tentativas de converter o centro histórico de Salvador, em especial o Pelourinho, numa dessas zonas “certificadas” do turismo cenográfico global, têm falhado incessantemente desde suas primeiras investidas na década de 1980, não apenas pelas rugosidades físicas mas, tão ou mais fortes, as rugosidades humanas, teimosas, que não cansam de voltar à contaminar o cenário, “poluir” a paisagem, atazanar cada turista.

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... desvio ...

A trajetória iniciada em Brasília sofre um desvio geográfico. Lança-se uma linha de desterritorialização:

Brasília e o técnico-ativista vão se distanciando. Os territórios afetivos e conhecidos da cidade, os trajetos

cotidianos, as maneiras e manias, pequenos vícios com os quais o corpo do bicicleteiro costuma se

relacionar com o espaço da cidade estão se desfazendo. É o processo de reterritorialização, lenta e

ruidosa, numa outra grande cidade que se inicia.

O pesquisador chega a salvador. Nos inúmeros percursos pelas ruas da cidade converte-se aos

poucos em cartógrafo. O que significa um processo de objetivar o que ficava latente, tornar manual,

tátil, experimental, o que ficava de certa forma automatizado, em estado de inércia; aguçar os sentidos

para uma percepção menos passiva e mais ativa e seletiva; ativar uma constante curiosidade, incorporar

o papel do detetive e seus disfarces, equipar-se de ferramentas conceituais e estéticas; desenvolver

artimanhas. Por vezes ‘cartógrafo-andante’, por vezes ‘cartógrafo-bicicleteiro’, procurando explorar o

que cada uma dessas velocidades e modos de se relacionar com o espaço e outros sujeitos das ruas

podem proporcionar à sua investigação.

Há um choque inicial, compreensível para um corpo acostumado com Brasília. Não é apenas a umidade

no ar, as visuais que se fecham, as curvas, que se sobrepõem às retas, as ladeiras que surgem no lugar

dos planos, a presença do mar, que deixa pra trás o céu, mas uma intensa proximidade entre os corpos:

a quantidade de gente nas ruas. Caminhando, subindo e descendo dos ônibus, gritando umas com as

outras, vendendo e comprando, pedindo. Uma infinidade de barulhos, movimentos e gestos, às vezes

excessivos e invasivos para os desacostumados.

Num ônibus, um poeta ambulante, depois de compartilhar em voz alta sua poesia, distribui um panfleto

aos passageiros que dizia ser salvador a cidade mais barulhenta do Brasil; e isto estava comprovado

cientificamente. Ao fim ele pede mais silêncio. Não parece possível.

Do aeroporto ao centro os tempos da cidade se esboçam à percepção. Não é difícil percebê-los. Há

um lado de lá e um lado de cá, que se relativizam a partir do lugar de fala. Mas há também todo um

acolá, maior que os dois anteriores, onde vive a maior parte dos habitantes, trabalhadores do lado de lá

e do lado de cá.

O cartógrafo lembra-se de uma passagem de Milton Santos que fala de Brasília e Salvador, de rigidez

e plasticidade. Rigidez associada ao processo de modernização da cidade; plasticidade presente no que

existe de capa histórica, sobreposição de camadas de tempo, nos espaços. Brasília como cidade rígida e

Salvador, sua parte antiga – desde já relativizada como lado de cá – como cidade plástica.

Neste sentido, Brasília é a cidade mais moderna do Brasil e Salvador a segunda, pois deu

as costas à cidade histórica para construir, em poucos anos, uma seção inteiramente nova,

unindo o aeroporto ao centro cívico-comercial moderno e às áreas industriais, gerando um

espaço de fluidez somente encontrado na capital federal e onde os objetos contemporâneos

são o suporte de ações racionais. Assim, Brasília é toda rígida, cada pessoa ou coisa

encontrando um lugar preciso; e Salvador, como São Paulo ou Rio de Janeiro, é um híbrido

da plasticidade do passado e da rigidez do presente. (SANTOS, 2006; p. 72)

No entanto, por mais rígida que ainda se apresente, a fluidez encontrada por Milton Santos no lado de

lá já não existe mais, como em nenhum espaço de caráter rodoviário de qualquer metrópole brasileira.

Até Brasília, a cidade mais moderna e mais rígida, começa a perder sua fluidez. Mas o cartógrafo não

está interessado na fluidez, e sim na plasticidade. Mesmo aquela que existe no interior dos espaços

mais rígidos. Por isso, procurando conhecê-la melhor, segue a indicação do geógrafo e vai mergulhar

inicialmente no centro antigo de salvador.25

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NARRATIVA CARTOGRÁFICA #1Salvador: deriva pelo centro

O cartógrafo-andante chega na Avenida Sete, região conhecida pelos soteropolitanos como “o centro”.

>> Proximidades do Largo da Piedade. O centro do centro...

Sigo pela rua direita da piedade. Um homem caminhando na contramão, nos bordos da pista entre o

trânsito e os carros estacionados, xinga um motoqueiro que ao ultrapassar um carro pela direita quase

o atropela. O motoqueiro o xinga de volta. Os dois estão cheios de razão. Em Salvador nenhum dos dois

está errado. Na sarjeta é assim. E eu sigo também por ela, logo atrás de outros que também se imprensam

entre carros, mas que também os empurram. Há uma razão para isso: as calçadas são estreitas demais, o

pavimento, geralmente de pedras portuguesas, costuma ter muitos buracos e ainda há muitos motoristas

que estacionam seus carros sobre as calçadas, reduzindo mais ainda o espaço de circulação. Mas mesmo

quando há espaço nas calçadas, há sempre pedestres na pista, culturalizou-se. Continuo – confiante

então (como muitos outros) – por ali. Passo por um caminhão e logo à frente por um conjunto de veículos

estacionados na sarjeta.

Desta vez, curiosamente, não são carros, mas carrinhos, de

formatos variados, estrutura de ferro e rodinhas, mais ou menos

do mesmo tamanho. São feitos pra rodar no asfalto e não na

calçada, mas movidos à tração humana. Eles têm duas, três ou

quatro rodas, para serem puxados (com as mãos sobre os ombros),

carregados à frente (como carrinho de mão), ou empurrados (por

uma haste de ferro articulada). Esses estão vazios, à espera de

carregamento, mas volta e meia um deles cruzará o seu caminho.

Estão sempre pelos bordos, indo e vindo, por toda a cidade.

Sigo, passando novamente por carros estacionados. À minha frente

um homem alarga este espaço, carregando numa das mãos, apoiada

sobre o ombro, um grande saco cheio de frascos plásticos recicláveis

– no seu lado esquerdo, voltado para os carros que circulam, como

que para afastá-los; com o outro braço segura uma pilha de papelão

apoiada sobre a cabeça. Continuo lentamente atrás. O ambiente vai

se preenchendo, ficando mais denso de gente, vozes, objetos, carros,

lojas, jingles musicais, frutas e produtos eletrônicos. O sinal fecha e uma

pequena multidão toma a rua, cruzando-se pra todos os lados. Outros

se enfiam no meio pra vender chips de celular. É o entroncamento

da Rua Direita da Piedade com a Joana Angélica e ainda duas ruas de

pedestres repletas de camelôs, que ali chegam. O homem carregando o

saco e a pilha de papelão se foi, desviou. Sigo então o fluxo da multidão

pela Joana Angélica.

Pedestres se esbarram pela calçada estreita, alguns camelôs

se distribuem espaçadamente nos cantos da calçada. Sem espaço

suficiente, os pedestres circulam também pelos bordos da pista, que

tem agora um volume grande de carros. A Joana Angélica, neste ponto,

é uma rua comercial, com papelarias, lanchonetes, lojas de cosméticos,

de revelação e produtos fotográficos. Cruzo a saída de uma rua escura

tomada de barracas com toldo azul. Caixas de madeira empilhadas

de qualquer jeito e algumas frutas pisadas se amontoam pelo chão

da esquina. Penso em virar, mas decido seguir. Um ambulante passa

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empurrando um carrinho de café pela calçada. Logo a frente um vendedor ambulante passa no bordo da

pista com um carrinho. O volume de pedestres vai diminuindo e com ele o número de camelôs; o comércio

também diminui. O trânsito de veículos fica mais fluido. Penso em dar meia volta, quando um ambulante

passa na calçada com um carrinho soundsystem de DVDs piratas espalhando uma música popular qualquer

pelo ambiente. Isso me renova o gás e, como o homem da multidão de Poe, apresso o passo esperando

encontrar um estado de rua mais vivo pelo caminho. A avenida faz uma curva e logo à frente, onde a calçada

se alarga, avisto um conjunto de tendas brancas para onde a maioria dos pedestres se direciona, como um

funil, cuja saída só sabe onde vai dar quem conhece.

É um pequeno camelódromo, desses oficializados. À frente uma banca de jornais, um carrinho de hot-

dog e um isopor apoiado sobre um daqueles carrinhos de duas rodas, onde se amarra um sombreiro e

estão penduradas a variedade de bebidas disponíveis. Cada um é de um vendedor, mas eles parecem se

complementar bem. Entro no camelódromo escuro, escolho um de seus corredores de barracas padronizadas

que concentram a venda de uma infinidade de minúsculos objetos coloridos dos dois lados. Curioso pela luz

que indica a saída à frente mal distinguo o que são os pequenos objetos.

A luz vem de uma larga escadaria no interior de uma estrutura de

concreto e vidro nas laterais. Percebo que é mais um acesso à estação

da Lapa. Desço a escadaria, sigo uma passarela, desço outra escadaria

e finalmente chego a um ambiente fechado, mas repleto de gente

novamente cruzando-se em todos as direções. Alguns estão parados

vendendo uma coisa ou outra. É o hall da estação. Se descer chego ao

terminal de ônibus. Então sigo em frente, agora na contramão do fluxo

maior de pedestres que vem de outra grande escadaria – a que vem do

shopping Lapa –, mas desvio por uma saída alternativa: uma escadaria

aberta e mais estreita, que muda de direção duas vezes, onde os corpos

se esbarram apressados e já começam a aparecer, acochambrando-se

pelas laterais, alguns vendedores de guarda-chuvas e sandálias.

A escadaria chega numa estreita viela entre edifícios com comércio

popular dos dois lados, repleta de camelôs em barracas que quase

escondem as lojas, e ainda, uma fileira central de pequenos tabuleiros

intercalados por pessoas, dividindo o já estreito espaço em dois

canais de um fluxo caudaloso e lento de gente chegando e saindo

da estação. O ar aqui fica mais pesado. É inútil ter pressa. E os

vendedores aproveitam: gritam uns sobre os outros, estendem braços

cheios de objetos pendurados; uma barraca está cheia de capas de

celular; outra repleta de pilhas, carregadores, e pequenos produtos

eletrônicos; outra vende roupas; mais à frente mochilas e bolsas. No

centro, produtos milagrosos, “tiro e queda”, “da noite pro dia”, “com

apenas cinco gotas” e demonstrações performáticas ao vivo. Mesmo

com pressa, e sem espaço, as pessoas se reúnem em volta, deixando

outros mais curiosos. Num tabuleiro à frente, um jogo de dominó com

aposta. Os jogadores parecem não se incomodar com a multidão se

empurrando ao redor. A quantidade de informações e estímulos satura

os sentidos. Penso nesses trabalhadores que passam o dia aqui. Para

eles não se trata de passagem, mas de lugar. Conhecem-se uns aos

outros. São os donos do espaço, controlam a pressão sobre o fluxo,

mas sabem que não podem sufocá-lo demais. Podem atrapalhar, mas

não muito. É um equilíbrio dinâmico.

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Caminhando no ritmo imposto pela multidão desemboco novamente no

entroncamento da Rua Direita da Piedade com a Joana Angélica. Respiro um

pouco de espaço, justo ali onde inicialmente comecei a sentir o espaço ganhando

densidade. Os carros ressurgem, assim como as vendedoras de chips de celular.

Apesar de sinais de cansaço mental, o corpo ainda agitado não quer parar. Apresso

o passo e vou em busca de estados de rua mais densos. Passo pelas três vielas de

pedestres que desembocam na Joana Angélica: escolho a que parece mais cheia e

fechada. Adentro o ambiente, sentindo frutas pisadas sob os pés, em meio a um

corredor de bancas improvisadas de caixas empilhadas ou estruturas de ferro que

ocupam os dois lados. A maioria com pilhas de frutas, legumes ou verduras, mas

também roupas e traquitanas. Os vendedores ficam entre os vegetais e os paredões

cegos, que confinam a todos num ambiente escuro, e que ganha ainda mais coesão

pelas lonas azuis de tamanhos variados esticadas sobre conjuntos de barracas, às

vezes cobrindo uma ou duas, ou até conjuntos de oito barracas mais ao centro. Nos

intervalos entre as lonas é possível ver a faixa de céu emoldurada pelas platibandas

dos edifícios. Aqui o caminhar é também extremamente dificultoso, num espaço

estreito e com fluxo contínuo de gente onde ainda passa por vezes um carrinho-de-

mão fora de hora, abastecendo as barracas. Muitos esbarrões, algumas interrupções

abruptas vão reduzindo à força o ritmo do meu caminhar. Melhor desacelerar para

manter um movimento, mesmo que quase parando, mas constante. No meio da feira

toca um reggae, que só se houve mesmo quando se está bem próximo. Ali, na barraca

do reggae os sons da feira ficam em segundo plano. Um rastaman dançante, por trás

de seus CDs, DVDs piratas e suvenires canábicos, contagia os barraqueiros vizinhos,

que parecem gostar da atmosfera. Neste trecho, entre duas barracas, vislumbra-se

uma passagem numa das paredes cegas que dá acesso a um terreno entre terrenos,

no meio do quarteirão, cujas ruínas parecem servir de ponto de apoio da feira, ou

de outras atividades, certamente opacas, desse centro. O reggae vai sumindo e o

burburinho da feira volta a dominar, junto com a paisagem de cajus, caquis, inhames

e aipins.

O beco se abre no Largo São Pedro, já na Av. Sete, onde idosos, bêbados, crianças,

moradores de rua, casais de namorados se distribuem ao longo dos bancos que

margeiam os jardins da praça. Uma grande placa da prefeitura se ergue ao centro,

indicando a localização num mapa das “Novas Áreas dos Ambulantes”, nas quais

não consta o próprio largo, mas ruas de pedestre próximas, como a que acabei de

atravessar, distribuídas em pontos variados da região da Av. Sete. Mesmo assim,

todo o largo está repleto de ambulantes, talvez agora mais ambulantes do que antes:

barraquinhas de picolé, hot dog, milho verde, protegidas por sombreiros e sobre

rodas. Outros, vendedores de pequenos produtos, estendem-nos sobre um pano no

chão, ou sobre pequenos cavaletes de madeira retráteis, ou ainda pendurados em leves

grelhas metálicas. Paro pra tomar um caldo de cana e processar as informações.

pausa reflexiva: sobre o estado de rua

Neste percurso-deriva o cartógrafo pensa compreender a idéia de plasticidade proposta por Milton

Santos. Ela parece estar ligada a essa miríade de possibilidades de movimentos humanos colidindo-se e

esbarrando-se, mas rearranjando-se, empurrando e cedendo, criando uma polifonia de usos e gestos sem

partitura e sem maestro que culmina, mesmo assim, numa música orquestral ainda que fora do tom maior,

sem harmonia, dissensual, mas que por obra do acaso, em momentos fugazes, é capaz de produzir arranjos

de puro fluxo de criação aleatória, não-linear, mas humana e intensiva.

2828a

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A forma do espaço tem importância fundamental. São ruas constituídas, em dimensões que favorecem o

pedestre e desfavorecem a fluidez do trânsito de automóveis ou, em outras palavras: são espaços humanos

e não rodoviários. Em alguns pontos só é possível transitar como pedestre, em outros os carros circulam,

mas os pedestres também se impõem. Há, por isso, sempre possibilidade de disputa, sem mediação,

por espaço. Há também todo aquele conjunto de atividades flexíveis, que nesse território aberto, mas

densamente ocupado, encontram suas possibilidades de existência, tirando partido dessa escala, do volume

de gente e da lentidão generalizada para viabilizar suas rendas. E ainda, a presença daqueles indivíduos que

frequentam esses espaços simplesmente pelo desejo de estarem imersos nos ambientes que eles propiciam,

dando vazão à construção de seus territórios existenciais.

O estado de rua encontrado nesse percurso parece então carregar como características: (1) uma

quantidade considerável de pedestres nas ruas (sem pedestre não há camelô!). (2) Atraindo e sendo atraído

pelos pedestres, há muito comércio de rua em três variações: loja (propriedade); camelô (apropriação);

ambulante (itinerância). (3) Além do comércio e dos pedestres, há sujeitos sem atividades objetivas (jogos

de dominó, bêbados, etc). (4) Com isso, o caminhar não é simplesmente o de uma multidão de passantes,

mas movimento constantemente interrompido, atravessado por elementos que desviam a atenção ou que o

interpelam. (5) Isto demanda do caminhante, ou parar e interagir, ou estar sempre desviando dos elementos

que estão produzindo o estado de rua. Assim, a locomoção não se caracteriza pela fluidez, mas por

manobras, desvios e tropeços. Caracterizando um caminhar que não é dinâmico, mas trôpego.

Mesmo carregando esse conjunto de características em comum há uma diferença fundamental entre as

ruas que abrigam circulação de veículos e as ruas apenas de pedestres. As ruas de pedestres, becos, vielas

e travessas, ocupadas por camelôs e feiras concentram esse ar pesado, de muitos corpos próximos em

espaços apertados, onde o caminhar é mais difícil e a quantidade de estímulos aos sentidos é excessiva.

Aqui o camelô impõe os limites da passagem, mas sabe também que tem que jogar com o fluxo para não

interrompê-lo. Já as ruas com lojas e trânsito de veículos, produzem todo um movimento mais dinâmico que

não implica apenas um rearranjo lento e caudaloso como nas ruas de pedestres, mas situações de conflito

e disputa entre os variados sujeitos. Aquelas atividades que nas situações experimentadas ocupavam toda

uma rua de pedestres espremem-se agora nas estreitas calçadas, empurrando o espaço pedestrializavel

rumo à pista. Nesse movimento, tanto pedestres quanto camelôs expandem a sarjeta, diminuindo a área

útil de fluidez automotiva. E ainda passam por ali ambulantes e seus carrinhos, alargando este espaço e ao

mesmo tempo em que o povoam disputam-no com pedestres, carros e camelôs.

O estado de rua do centro parece ser então aquela ambiência concentrada pela mistura de pedestres,

atividades flexíveis e não objetivas num mesmo espaço. É natural que ele se concentre, especialmente pela

presença oportunista dos camelôs, nas imediações de nós de transporte, como a estação da Lapa, onde chega

a um nível de intensidade extrema. Na medida em que se afasta da Lapa e começa a se misturar ao trânsito

motorizado da cidade, essa intensidade começa a se esmaecer, ganhando novas formas de expressão.

A sarjeta surge aí como espaço que adapta esse estado de rua à coexistência com o trânsito e os usos

lindeiros da rua, configurando-se agora pela a disputa por espaço entre diferentes usos e temporalidades,

especialmente pela colisão das lentas com as mais aceleradas.

É fim de tarde. O cartógrafo sobe em sua bicicleta e afasta-se do centro. No caminho divide o espaço

da sarjeta com alguns vendedores de café, pedestres e outros bicicleteiros. Um homem empurrando um

enorme carrinho vazio chama sua atenção, segue-o por alguns momentos e pergunta o que ele vai carregar

ali. É um catador, que está começando sua jornada de trabalho.

29

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2. Cidade nômade: movimento como lente

O movimento surge como ponto de partida da investigação. Ele é instrumentalizado

inicialmente como um modo de ver a cidade, uma espécie de lente de observação e

experimentação que chamaremos cidade nômade. Ela surge, por um lado, pela necessidade de

definir um plano de sustentação para os desvios metodológicos da pesquisa e, por outro, a

partir de uma crítica. Esta crítica se dirige especialmente às leituras totalizantes que fixam

territórios socioeconômicos e utilizam categorizações polarizadas como incluídos/excluídos,

formal/informal, que parecem funcionar bem em mapas ou fotos de satélite, mas acabam

idealizando um espaço rígido que parece ter abolido a dimensão do tempo da ação. É

buscando desenvolver esse duplo aspecto crítico-instrumental que este capítulo apresenta,

inicialmente, a necessidade de se superar a categoria da cidade “informal”; em seguida esboça

um conjunto de princípios que constituem as bases para que a lente da cidade nômade

(sempre em construção) entre em ação; e finaliza trazendo alguns aspectos do debate teórico

sobre as relações espaço/tempo dos processos sociais, chegando à ideia de trajetórias.

Para além do informal

A polarização entre uma cidade formal e uma cidade informal – referência geralmente

para o que está dentro ou fora da lei – ainda que esteja sedimentada no discurso de gestores

públicos, ou mesmo em determinadas linhas do pensamento acadêmico sobre as cidades,

parece estar em vias de se enfraquecer diante do aprofundamento das pesquisas urbanas22.

Compreende-se cada vez mais que as situações urbanas consideradas informais se modificam,

se agenciam com variados atores políticos e econômicos, sendo atravessadas por inúmeras

forças e atravessando, por sua vez, os territórios da cidade, o que as localiza em meio a uma

trama complexa de relações23.

22 Neste rumo destacam-se pesquisas sobre a atual imbricação entre política de Estado, processos econômicos e produção da cidade. Observa-se o quanto a manutenção de uma parcela da cidade na ilegalidade é fundamental para a dinâmica eleitoral Brasileira, ou que o próprio Estado, por meio da polícia ou de agentes de fiscalização torna-se co-produtor desses territórios ao participar de esquemas de favores e propinas. Nesta última direção Cf. SAKAI, Roberta Y. A ocupação da área central pelo comércio ambulante: a produção da cidade contemporânea em questão. In: SILACC III, 2010, São Carlos.[recurso eletrônico] : anais do SILACC / organizador:Manoel Rodrigues Alves. São Carlos : SAP-EESC-USP,2010.1 CD-ROM. 23 Como afirmam Vera Telles e Daniel Hirata (2007), “nas fronteiras porosas entre o formal e o informal, de forma descontínua e intermitente, constituem-se as figuras modernas do trabalhador urbano, o qual se utiliza das oportunidades legais e ilegais que coexistem e se superpõem no mercado de trabalho” (p. 174). Cf. TELLES, V.; HIRATA, D. Cidade e práticas urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito. Estudos Avançados, v. 61, p. 173-192, 2007.

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Quando se trata da observação do movimento das ruas, as limitações de tal abordagem

tornam-se ainda mais evidentes. Atividades facilmente encontradas em ruas centrais24 como a

dos camelôs vendendo produtos ordinários e baratos, bancas de alimentos ou pontos de jogo-

do-bicho, e outras que, por estarem sempre em movimento são menos visíveis como as de

catadores e vendedores ambulantes, mostram uma cidade “informal” “contaminando” a

cidade “formal”, produzindo espaços impuros, difíceis de categorizar segundo uma única

lógica. Vemos não uma cidade estanque cheia de partições, limites e segregações, mas uma

cidade em movimento, onde dissolvem-se as representações cristalizadas da cidade sedentária

e exclusão e inclusão, público e privado, formal e informal, se embaralham, formando uma

zona de indistinção. Tal diferença de perspectivas pode ser ilustrada por aquele conhecido

círculo das cores que, quando parado apresenta um conjunto de cores claramente separadas

umas das outras e igualmente distribuídas radialmente, mas que em movimento, rotacionando-

se ao redor do próprio centro, produz uma mancha cinzenta.

Além disso, essas leituras polarizadas levam, por sua vez, a práticas urbanísticas tão ou

mais problemáticas. O ideário do urbanismo considerado progressista, ainda tributário deste

tipo de leitura, tende a uma visão vitimizadora e, por vezes, assistencial das práticas que

consideram informais ou excluídas, e em nome da justiça social costuma defender o caminho

da formalização. Este caminho, entretanto, parece desconsiderar o jogo complexo que envolve

as próprias disputas por terra e renda que simbolizam a desequilibrada dinâmica de poder na

cidade, contexto no qual é justamente o recurso a espacializações mais flexíveis, não-

registradas e com usos da terra urbana que não o da propriedade privada, que permitem a

essas atividades escapar à lógica da “periferização da pobreza”. É a “flexibilidade tropical”,

de que fala Milton Santos25, vista no uso cotidiano do espaço herdado por sujeitos

“hegemonizados”, que constroem ali suas próprias possibilidades de existência diante das

impossibilidades impostas por um sistema rígido. Enquanto isso, o planejamento urbano, “se

obediente à racionalidade dos parâmetros das cidades internacionais, termina por estabelecer

as condições de uma modernização sempre mais atual, negligenciando a maior parte da cidade

e da população” (SANTOS, 2008, p. 74).

Este modelo de urbanismo, que parece vir sempre a reboque das soluções que os

próprios indivíduos encontraram, formalizando-as e enrijecendo-as, parece também ignorar

24 São consideradas aqui tanto as ruas de centros tradicionais (de comércios e serviços), quanto ruas de bairros residenciais centrais – de alta densidade, concentradores das rendas média e alta e dotados de infraestrutura e acesso a bens, serviços e equipamentos públicos. 25 Sobre a ideia de “flexibilidade tropical” proposta por Milton Santos, ver item “usos opacos em espaços luminosos” no Capítulo 1.

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que estas situações tendem a crescer nas metrópoles periféricas do mercado mundial, onde as

desigualdades econômicas são mais acirradas, e a força centrípeta dos centros de acumulação

de capital tende a atrair sempre novos fluxos migratórios nos quais uma parcela de sujeitos

certamente recorrerá a espacializações flexíveis e desviantes. Controla-se uma situação

“informal” num ponto apenas para ver outras surgirem logo adiante.

Assim, reafirmando em suas soluções a propriedade da terra como inquestionável

princípio e finalidade de qualquer processo urbano, o urbanismo progressista dá um “tiro no

próprio pé”: captura de sujeitos “menores” sua própria potência de desvio para inseri-los na

lógica de mercado e valorização da terra que, se num primeiro momento garante a esses

sujeitos um pequeno capital (certamente não o suficiente para mudarem sua condição

econômica), numa perspectiva mais ampla, mantém a cidade sob a mesma hegemonia do

capital imobiliário e financeiro. Não seria o caso de lutar pela legitimidade de outras relações

com a terra que não apenas aquela baseada nesta cultura patrimonialista? É no âmbito desta

crítica, apontando a necessidade de ampliação não apenas das ferramentas de análise, mas do

próprio campo de pesquisa e ação urbanística que esta investigação se coloca.

Cidade nômade

Todo olhar será sempre um olhar sobre algo, um recorte relativo da experiência de

mundo. A partir da escolha das ruas como campo de investigação e do movimento como foco,

pareceu necessária a construção de uma lente de observação capaz de dar conta das

especificidades do recorte escolhido. Esta lente de observação e de experimentação será

chamada de cidade nômade. Se inicialmente a aproximação à ideia de nomadismo decorre de

uma associação simples ao foco dessa lente – o movimento –, num segundo momento esta

noção revelou-se portadora de uma intenção mais profunda a partir da exploração da noção de

nomadismo ao nível das potências, isto é, enquanto instrumento crítico aplicável a graus

variados de sedimentação ou sedentarização do pensamento e dos discursos, dos protocolos

metodológicos, das ações cotidianas na cidade e das práticas urbanísticas.

Considerando que as relações entre nomadismo e cidade já foram exploradas

anteriormente no campo do urbanismo, parece necessário inicialmente esclarecer em que

sentidos a abordagem proposta se difere de algumas dessas expressões anteriores.

A ideia de uma cidade nômade surge com alguma intensidade entre as décadas de 1950

e 197026 entre arquitetos e artistas europeus; uma produção descontínua e pontual, apesar das

26 Contexto de reconstrução das cidades europeias no pós-guerra, crítica aos paradigmas do urbanismo funcionalista, retomada do crescimento econômico mundial, todo um redesenho da geopolítica internacional e ainda o pulular de revoltas e rupturas com as instituições tradicionais no ocidente e a emergência simultânea de

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influências mútuas, que acabou ganhando alguns rótulos guarda-chuva como “vanguarda

utópica”, “megaestruturalistas” ou mesmo, num tom pejorativo, “arquitetura de papel” (pois

nunca chegou a se materializar). Com algumas diferenças ideológicas, mas também certas

similaridades, principalmente formais, as propostas de cidades nômades surgidas nessa época

caracterizavam-se por grandes estruturas baseadas em tecnologias avançadas, móveis,

extremamente flexíveis ou de expansão indefinida, que se sobrepunham às cidades existentes,

ignorando suas fronteiras. Tais estruturas seriam capazes de gerar novas formas de liberdade,

comunicação e modos de vida. Tratava-se assim de projetos de cidades, imbuídos de

intenções estéticas, utópicas, críticas e/ou políticas27.

Num contexto mais atual, Francesco Careri (2003), em seu livro Walkscapes, elabora

uma ideia de cidade nômade um pouco mais próxima à abordagem aqui proposta, não mais

como uma estrutura exógena ou autônoma que substitui a cidade ou se sobrepõe à cidade

existente, mas enquanto experiência que pertence à própria cidade. Para Careri o nomadismo

é uma prática que sempre existiu em relação de “osmose” com o sedentarismo, e estariam

ambos presentes na cidade contemporânea. Segundo o autor, “a cidade nômade vive

atualmente no interior da cidade sedentária, alimentando-se de suas sobras e oferecendo, em

troca, sua própria presença como uma nova natureza que só pode ser explorada habitando-a”

(p. 24). A cidade nômade de Careri aparece então não apenas como uma faceta pertencente à

cidade real, mas também como ambiente que se conhece apenas no ato de sua

experimentação. Neste ponto nossas abordagens coincidem.

Entretanto, o autor relaciona essa experimentação a tipos de espaço: espaços nômades e

espaços sedentários, associando os primeiros aos “vazios” e os segundos aos “cheios”, que

existiriam lado a lado “em um delicado equilíbrio de intercâmbios recíprocos”(ibid.). Há um

especial interesse nos processos de suburbanização (em um contexto europeu), nos quais

enormes regiões intersticiais, informes, surgem como espaços sem função clara para a rede de

uma cultura urbana heterogênea e multifacetada. Tudo isso permeado por um imaginário tecnológico estimulado pela corrida armamentista e espacial que se alimentava das produções da cultura de massa, especialmente do gênero ficção científica. Parece que a cultura ocidental experimentava seu próprio devir nômade. 27 Entre os projetos que desenvolveram a ideia de nomadismo destacam-se no período o projeto Ville Spatiale (1958-1960) do arquiteto e artista húngaro Yona Friedman, O projeto New Babylon (1959-74) do artista holandês Constant Nieuwenhuis (que participou do Grupo Cobra e da Internacional Situacionista) e os projetos do grupo inglês Archigram, especialmente Walking City (1964) e Living City (1968). Sobre algumas dessas diferenças ideológicas, especialmente entre projetos do Archigram e a New Babylon de Constant, ver capítulo 1 “Arquitetura capsular e cidade genérica: origens utópicas?” mais especificamente a nota 13. Para uma descrição crítica desses projetos acessar www.cronologiadourbanismo.ufba.br. Para uma análise contextualizada ver CAÚLA, Adriana. Trilogia das Utopias Urbanas: Urbanismo, HQ's e Cinema. 2008. Tese (Doutorado). Faculdade de Arquitetura – Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2008.

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“espaços sedentários”, os chamados vazios urbanos, que enquanto sobras aparecem como

território de exploração nomádica:

Os espaços vazios dão as costas à cidade para organizar uma vida autônoma e paralela, mas eles estão habitados. Os ‘difusos’ vão ali cultivar hortas ilegais, passear com cachorros, fazer pic-nics, fazer amor ou buscar atalhos para passar de uma estrutura urbana a outra. Seus filhos vão ali buscar espaços de liberdade e de vida social. [...] Os espaços vazios são uma parte fundamental do sistema urbano e habitam a cidade de uma forma nômade: deslocando-se cada vez que o poder tenta impor uma nova ordem. (p. 181)

Ainda que existam importantes contribuições do autor, especialmente no que diz

respeito à pratica do caminhar como ferramenta estética de leitura e ação sobre o território28, a

vinculação da cidade nômade a espaços específicos distancia-se da abordagem deste trabalho.

Como falar de espaços nômades, conferindo uma identidade a certos espaços, quando o

nomadismo parece estar muito mais relacionado a modos de operar sobre qualquer espaço? O

simples ato de nomear um espaço como nômade já parece fixá-lo e ir de encontro a uma

noção de espaço aberto, em contínua construção (uma aplicação de pensamento nômade sobre

o conceito de espaço). Não podemos conceber espaços por si mesmos senão pelo uso que os

presentificam e ali imprimem um devir que pode ou não se realizar.

Assim, o recurso à ideia de cidade nômade não deve ser visto aqui como uma

categorização de espaços urbanos e muito menos que estes estejam em oposição a espaços

sedentários, mas como um modo de operar no campo das significações com o duplo sentido

de criticar as sedimentações do pensamento e das práticas urbanísticas e buscar renovadas

formas de acesso às práticas cotidianas na cidade em seus movimentos de espacialização.

Neste caminho, passemos a uma calibragem conceitual dessa lente.

Michel de Certeau (2009), ao tecer sua crítica à visão panorâmica das vistas aéreas, ressalta

que a condição de possibilidade deste tipo de abstração é o esquecimento e o

desconhecimento das práticas. Como alternativa, o autor fala de uma “cidade transumante”:

Escapando às totalizações imaginárias do olhar, existe uma estranheza do cotidiano que não vem à superfície [...]. Práticas estranhas ao espaço ‘geométrico’ ou ‘geográfico’ das construções visuais, panópticas ou teóricas. Essas práticas do espaço remetem a uma forma específica de ‘operações’ (maneiras de fazer), a uma outra espacialidade (uma experiência antropológica, poética e mítica do espaço) e a uma mobilidade opaca e cega da cidade habitada. Uma cidade transumante, ou metafórica, insinua-se assim no texto claro da cidade planejada e legível. (p. 159; grifos originais)

A partir da cidade transumante de Certeau vislumbramos a metáfora de um pesquisador cego,

que diante da impossibilidade de acessar as abstrações totalizantes, ou mesmo as longas

28 Esta discussão será retomada com contribuições de Careri no capítulo 3.

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perspectivas pelo alcance da visão, põe-se a construir outros mapas, mapas não-geométricos,

sem coordenadas, ativando uma intensividade sinestésica pelo mergulho numa estranheza

intencional frente ao cotidiano. Daí só podem sair narrativas cartográficas articulando espaço

e tempo da experiência antropológica, das operações corporais junto a outros corpos e espaços

de uma cidade que não se lê, mas se pratica.

O 1º princípio da lente da cidade nômade trata de desestabilizar desde já a própria

associação da ideia de lente à simples captura de imagens: Não se cartografa

imagens de espaços, mas práticas de espaço-tempo. Seu modo de ver não se faz

com os olhos (apenas) mas por meio do corpo que experimenta.

Guattari (1992) traz outros aportes a essa lente com sua defesa da cidade subjetiva. Para

o autor, não se pode olhar as cidades apenas do ponto de vista das estruturas e infraestruturas,

serviços, trocas materiais ou fluxos de capital e comunicação, mas efetivamente como

imensas máquinas produtoras de subjetividade individual e coletiva. Trata-se de pensar como

a cidade se coloca enquanto produtora de imaginários coletivos, suas sedimentações

homogeneizadoras, mas também seus nomadismos singularizadores.

Uma cidade subjetiva que engaja tanto os níveis mais singulares da pessoa quanto os mais coletivos. [...] Re-singularizar as finalidades da atividade humana, fazê-la reconquistar o nomadismo existencial [...]. Destacar-se então de um falso nomadismo que na realidade nos deixa no mesmo lugar, no vazio de uma modernidade exangue, para aceder às verdadeiras errâncias do desejo, às quais as desterritorializações urbanas, estéticas [...] nos incitam. (p. 170)

Neste caso, não se trata apenas de um modo de ver que aponta para a importância dos modos

de subjetivação na construção permanente da cidade, mas também da explicitação de um

projeto político do autor.

O 2º princípio da lente da cidade nômade remete então à ideia de que, inserindo-se nos

atravessamentos da cidade subjetiva, a lente se caracteriza menos como uma técnica

que mira os processos de subjetivação e mais como um filtro ético-estético do

pesquisador. Este foca e desfoca, explicitando sua intenção e quer com seu

recorte também produzir subjetividades.

Deleuze e Guattari (1997) desenvolvem em seu tratado de nomadologia, um conceito

que não é o de um nomadismo romântico, que remeteria a uma condição histórica anterior à

sedentária, numa perspectiva evolucionista; mas de uma potência que se coloca segundo uma

outra lógica que não a identitária, do modelo ou da propriedade. Esta outra lógica coloca-se

em posição de diferença a uma lógica de Estado e suas réplicas, imagens, representações.

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Segundo os autores, a lógica de Estado é aquela da interiorização, ao passo que a lógica

nômade é a da exterioridade. Assim, um pensamento pode estar conforme um pensamento de

Estado, mas também segundo uma lógica nômade.

A forma de exterioridade do pensamento não é de modo algum uma outra imagem que se oporia à imagem inspirada no aparelho de Estado. Ao contrário, é a força que destrói a imagem e suas cópias, o modelo e suas reproduções, toda possibilidade de subordinar o pensamento a um modelo Verdadeiro, do Justo ou do Direito [...]. Um povo ambulante de revezadores, em lugar de uma cidade modelo.(p. 47)

E aqui podemos nos remeter diretamente aos modos de pensar que predominam no campo

urbanístico e questioná-los: a ação deste pensamento sobre a cidade só pode se materializar

pela mediação de um modo de pensar conforme o Estado (modelos, hierarquias, jurisdição,

etc.)? É a partir deste questionamento que a inserção do pensamento nômade no campo

urbanístico surge como instrumento que busca desviar e traspor esses contornos. Por isso, não

é o caso de buscar outros espaços, mas investir em outras possibilidades de investigação dos

mesmos espaços, das mesmas dinâmicas, mas com outras lentes, escapando às categorias

sedimentadas e recorrendo à construção incessante de novas ferramentas. Podemos pensar

assim que se trata da infiltração de uma nomadologia urbana no campo do urbanismo.

É muito comum na observação dos fluxos da cidade compará-los à dinâmica da água,

percorrendo condutos que podem ser mais apertados ou mais largos, o que aumentaria ou

aliviaria sua pressão. As análises do tráfego automotivo, por muito tempo praticaram esta

analogia, mas hoje já se fala do trânsito como gás, que quanto mais espaço se dá, mais este se

expande, indefinidamente. Mas os fluxos que observamos não obedecem nem a um princípio

nem ao outro. Estão geralmente no contra fluxo do movimento dominante. Parafraseando De

Certeau (2009), a imagem seria “menos uma figura de um líquido circulando nos interstícios

de um sólido do que diferentes movimentos fazendo uso dos elementos do terreno”(p. 92).

Deleuze e Guattari utilizaram esta imagem para explicar o modo de agir do Estado, que

precisaria “subordinar a força hidráulica a condutos, canos, diques que impeçam a

turbulência, que imponham ao movimento ir de um ponto a outro, que imponham que o

próprio espaço seja estriado e mensurado, que o fluido dependa do sólido (...)”. Em

contrapartida, apontam que o modo de operar de uma ciência nômade consiste em “se

expandir por turbulência num espaço liso29, em produzir um movimento que tome o espaço e

29 É preciso ter em mente em que sentido os autores utilizam o conceito de espaço liso, especialmente em oposição a um espaço estriado. Trata-se de conceitos que não fazem correspondência à ideia de rugosidade de Milton Santos. No primeiro caso, enquanto conceito filosófico, o espaço liso apresenta-se como espaço de ação do nômade, ou do pensamento nômade, cuja trajetória confunde-se com a construção deste tipo de espaço, espaço que só existe quando povoado de intensidades, acontecimentos, afetos, mais que de propriedades. O estriado remete ao esquadrinhamento, à condução de fluxos laminares, regulados, métricos (DELEUZE e

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afecte simultaneamente todos os seus pontos”. (p. 27-28). Segundo eles, o modelo seria

turbilhonar, num espaço aberto onde as coisas-fluxo se distribuem, em vez de distribuir um

espaço fechado para coisas sólidas30.

Neste sentido, os autores propõem que a existência nômade realiza um modo singular

de se relacionar com o espaço que não seria simplesmente o movimento de vagar sobre a terra

ad infinitum. Haveria, segundo os autores, uma distinção entre um caminho sedentário que

“consiste em distribuir aos homens um espaço fechado, atribuindo a cada um sua parte, e

regulando a comunicação entre as partes” e um trajeto nômade que, ao contrário, “distribui os

homens num espaço aberto, indefinido[...]” (p. 51; grifos originais). Assim, o modo sedentário,

segundo a lógica de Estado, seria o do “estriamento” do espaço por muros, cercados e

caminhos entre os cercados; pela subordinação dos fluxos a condutos onde se pode controlar

os movimentos; “fazer valer uma “zona de direitos” sobre todo um exterior”(p. 59). O modo

nômade, por sua vez, alisa o espaço, que fica “marcado apenas por traços que se apagam e se

deslocam com o trajeto. [...] O nômade ocupa, habita, mantém esses espaços, e aí reside seu

princípio de território” (p. 52). Num caso “mede-se o espaço a fim de ocupá-lo” e no outro

“ocupa-se o espaço sem medi-lo” (p. 25).

Tomando por base este modo nômade de estar no espaço, parece possível pensar mais

alguns princípios para a calibragem da lente da cidade nômade que por si mesmos podem ser

uma crítica às lentes e ferramentas que o planejamento urbano costuma tomar como

operadores.

Segundo Deleuze e Guattari, “o nômade tem um território, segue trajetos costumeiros,

vai de um ponto a outro, não ignora os pontos”, mas estes pontos “estão estritamente

subordinados aos trajetos, ao contrário do que sucede no caso do sedentário. [...] Um trajeto

está sempre entre dois pontos, mas o entre-dois tomou toda a consistência, e goza de uma

autonomia bem como uma direção próprias. A vida nômade é intermezzo” (p. 50-51).

GUATTARI, 1997). A ideia de rugosidade, por sua vez, já nasce aplicada ao espaço geográfico da cidade capitalista, enquanto propriedade do espaço herdado historicamente; ou aquilo que fica marcado enquanto forma a partir das relações passadas no espaço da cidade e que apresenta-se como dado concreto com o qual os sujeitos e processos contemporâneos têm de lidar (SANTOS, 2006). Ver Capítulo 1 “Usos opacos em espaços luminosos”. A relação entre “liso” e rugoso será aprofundada no capítulo 7 “O estado de rua e o espaço da sarjeta”. 30 Podemos pensar se este tipo de modelo turbilhonar não está de alguma maneira próximo à forma de ocupação das ruas do centro pelos camelôs, sobre o qual o Estado age, redistribuindo-os em espaços fechados, impedindo a turbulência, subordinando-a a condutos. Por que retirar os camelôs (tentativa frustrada) da Av. Sete e confiná-los à ruas de pedestres escondidas, becos e travessas? A av. Sete é o caminho dos turistas até o Pelourinho. Aos pedestres, trabalhadores comuns, não importa as condições de circulação, mas ao fluxo de automóveis e turistas importa liberar o caminho, organizar a paisagem. Ver “Narrativa Cartográfica #1_Salvador: deriva pelo centro”.

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Com isso, pode-se pensar que se as práticas urbanísticas tomam geralmente por

referência a organização dos pontos fixos da cidade e seus canais de comunicação –

edificações, espaços edificáveis, parques, praças, etc. –, uma nomadologia urbana estaria mais

interessada nos trajetos humanos, suas operações sobre o terreno, suas formas de

espacialização, relações de arranjos, desvios ou colisões entre si, inclusive as maneiras de se

relacionar com os pontos fixos.

Propõe-se então o 3º princípio da lente da cidade nômade: dar foco nos trajetos e

desfocar os pontos.

Os filósofos refletem ainda que se a relação com a terra, no caso do sedentário, está

mediatizada pelo aparelho de Estado, por um “regime de propriedade”, no caso do nômade “a

terra se desterritorializa ela mesma de modo que o nômade aí encontra um território. A terra

deixa de ser terra [lote, terreno, bem, propriedade] e tende a tornar-se simples solo ou

suporte” (p.53). Assim, o nômade urbano pode ser identificado como aquele que imprime em

sua territorialidade outros significados à terra, desviando do regime de propriedade ao qual

não tem acesso (ou este é limitado) e sobre o qual as ações do planejamento urbano se

fundamentam. Se o solo urbano é, portanto, significado em propriedade na visão da cidade

sedentária (e no urbanismo), este é desviado enquanto suporte para a ação dos sujeitos na

cidade nômade (e numa nomadologia urbana).

Disto resulta o 4º princípio da lente da cidade nômade: olhar o solo urbano como

suporte da ação e não como propriedade.

Um último aspecto que retiramos do tratado de nomadologia, que parece óbvio mas que

neste contexto é preciso explicitar, é a exigência do nômade enquanto sujeito.

“O nômade aparece ali na terra sempre que se forma um espaço liso que corrói e tende a crescer em todas as direções. O nômade habita esses lugares, permanece nesses lugares, e ele próprio os faz crescer, no sentido em que se constata que o nômade cria o deserto tanto quanto é criado por ele”. (p. 53)

Por meio dessa relação intrínseca do nômade com o deserto pensamos na produção

desse espaço que só existe em relação com um sujeito e nas práticas desse sujeito que só

existem em relação com um espaço. Se num extremo de práticas urbanísticas temos o Estado

(sujeito?), esta entidade abstrata que esquadrinha o espaço urbano para regular seu uso pelos

habitantes, no outro vemos a ação do “nômade”, que confere significados ao espaço no ato de

habitá-lo. De um lado um urbanismo de sujeito oculto escondido atrás de discursos científicos

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ou neutralidades tecnocráticas; de outro uma nomadologia urbana que pressupõe o “nômade”,

o sujeito engajado numa ação que se apresenta como modo de articular pontos, espacializar

atividades e atualizar espaços.

De onde se chega no 5º princípio da lente da cidade nômade: é preciso um sujeito da

ação. Estes cinco princípios são apenas um esboço da caracterização deste modo de ver e

experimentar a cidade. Não aspiram à condição de leis. Apresentam-se aqui apenas como as

primeiras engrenagens, sem hierarquia de importância, mas suficientes para colocar a lente da

cidade nômade – necessariamente aberta e em contínua construção – em movimento nas ruas,

onde a própria experiência deve depurá-la com o tempo.

Trajetórias: Temporalidades no espaço

Com a lente da cidade nômade provisoriamente calibrada, passamos agora a uma

conceituação das relações entre espaço, temporalidade e trajetórias urbanas. O objetivo aqui é

fundamentar a abordagem dessas dimensões da experiência enquanto completamente

imbricadas, apontando os desafios de se cartografar espaços-tempos. Foucault (2001) comenta

que se o pensamento do século XIX esteve às voltas com a questão da história, ou do tempo, o

século passado viu o desenvolvimento do pensamento sobre o espaço. “Estamos em um

momento em que o mundo se experimenta, acredito, menos como uma grande via que se

desenvolveria através dos tempos do que como uma rede que liga pontos e que entrecruza sua

trama” (p. 411).

Este movimento de “espacialização da teoria social” é contextualizado por Massey

(2008) como uma preocupação do pensamento crítico em desafiar velhas formulações, como a

de um tempo linear ao qual a história humana estaria submetida31. Esta crítica estava na base

do chamado pensamento estruturalista. Houve posteriormente, a partir da crítica aos sistemas

espaciais, porém quase acrônicos do pensamento estruturalista, a preocupação em retomar a

dimensão temporal dos processos sociais. Segundo o ponto de vista de Michel de Certeau, o

espaço, enquanto representação fechada, estaria ligado a uma certa estrutura de poder que,

atuando segundo uma lógica estratégica, levaria à uma manutenção do lugar próprio. Os

31 Segundo a geógrafa, isto teve uma razão muito forte para autores como Sartre, Althusser, Levi-Strauss, que, preocupados em escapar ao tempo da sucessão histórica, evolucionista (p. ex. a categoria dos povos “primitivos”), entenderam-se no domínio do espaço. No entanto, sem formular seu conceito de espaço e numa perspectiva binária, este resultou na simples negação do tempo. Era o espaço de sistemas e estruturas auto-suficientes; espaço fechado e sincrônico, ou mesmo acrônico. Cf. MASSEY, 2008, especialmente o capítulo 3 “A morada-prisão da sincronia”.

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mapas de espaços, sendo atemporais, seriam a representação e afirmação dessa lógica. Ele

propõe em resposta a isso a ideia de “trajetória”, mais ligada à temporalidade, mas alerta

sobre as armadilhas de sua representação.

[A trajetória] deveria evocar um movimento temporal no espaço, isto é, a unidade de uma sucessão diacrônica de pontos percorridos, e não a figura que esses pontos formam num lugar supostamente sincrônico ou acrônico. De fato, essa “representação” é insuficiente, pois precisamente a trajetória se desenha, e o tempo ou o movimento se acha assim reduzido a uma linha totalizável pela vista, legível num instante: projeta-se num plano o percurso de um pedestre caminhando pela cidade. Por mais útil que seja essa redução, metamorfoseia uma articulação temporal dos lugares em uma sequência espacial de pontos. Um gráfico toma o lugar de uma operação. Um sinal reversível (isto se lê nos dois sentidos uma vez projetado num papel) substitui uma prática indissociável de momentos singulares e oportunidades, portanto irreversível. (CERTEAU, 2009, p. 93)

Preocupado com as operações (táticas) dos sujeitos no espaço, o autor aponta a

dificuldade em incorporar a dimensão temporal das dinâmicas de espacialização dos

processos urbanos, uma falha historicamente presente nas práticas urbanísticas de matriz

funcionalista. É preciso, no entanto, tomar cuidado ao criticar um modelo (funcionalista,

espacial) para não cair no seu extremo oposto, neste caso, a valorização do tempo e a

anulação do espaço (movimento inverso ao dos estruturalistas mas igualmente binário pela

negação). O espaço urbano – a dimensão das ruas, a quantidade de obstáculos ao movimento,

sua textura produtora de atritos e desacelerações, a topografia sobre a qual se implanta e os

significados atribuídos às atividades e usos – obviamente tem grande influência sobre as

operações táticas.

Apesar de Massey colocar Certeau na posição de suscitador de novas dicotomias32 entre

espaço/estratégia versus tempo/táticas (e uma leitura rápida pode sem dúvida levar a esse tipo

de equívoco), não é exatamente de espaço que o autor fala ao se referir ao modo estratégico,

mas à constituição, defesa e expansão de um lugar de direito, uma localização onde se

capitaliza ganhos para posteriormente expandir seus domínios. É neste sentido que o autor

coloca uma distinção entre espaço e lugar:

Um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência. Aí impera a lei do próprio: os elementos considerados se acham uns ao lado dos

32 Algo de suas críticas a Certeau pode ser enriquecedor em certos sentidos, mas parece que ela mesma elabora simplificações do pensamento de Certeau a fim de fortalecer seu argumento. Para Massey, a formulação de Certeau “envolve uma concepção de poder em sociedade, como uma forma monolítica, de um lado, e as táticas dos fracos, de outro. Isto não apenas tanto superestima a coerência dos ‘poderosos’ e o caráter sem costuras com que a ‘ordem’ é produzida, como também reduz (embora tente fazer o oposto) o poder potencial dos ‘fracos’ e obscurece a implicação dos ‘fracos’ no poder. Mas a questão também vai mais fundo, pois através de todo o livro as estratégias são interpretadas em termos de espaço, e as táticas em termos de tempo” (MASSEY, 2009, p. 77). As noções de tática e estratégia serão trazidas mais adiante, no capítulo 4 “movimento como desvio”.

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outros, cada um situado num lugar próprio e distinto que define. Um lugar é portanto uma configuração instantânea de posições. (CERTEAU, 2009, p. 184)

De Certeau defende então sua ideia de espaço, indissociável do tempo:

Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidades de velocidade e a variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. [...] Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidades polivalentes de programas conflituais ou de proximidades contratuais. [...] Em suma, o espaço é um lugar praticado. (Ibid.)

O autor se vale ainda da distinção que Merleau-Ponty fazia entre um “espaço

geométrico” e um “espaço antropológico”. Com isso, percebe-se em Certeau uma

preocupação em temporalizar e politizar o conceito de espaço que Massey parece não ver33.

Suas perspectivas no fundo se complementam: sendo espaço e tempo, conceitos integrantes

um do outro, no mínimo para o tempo ser concebido como aberto (crítica à perspectiva

evolucionista, do tempo cronológico ou teleológico), o espaço também tem de ser concebido

como aberto, ou seja, se ele não é um dado fechado, o processo de construí-lo envolve

disputas que o tornam esfera eminentemente política (MASSEY, 2009).

A geógrafa também tece sua crítica aos mapas, menos na linha do argumento de

Certeau sobre os problemas da visão do alto, mas da ideia que esses constroem de que o

espaço seja uma superfície ou a esfera da horizontalidade. Assim, ela diz que se o espaço não

é uma multiplicidade de coisas inertes, mas uma heterogeneidade de práticas e processos, ele

não pode ser visto como um “todo já-interconectado, mas um produto contínuo de

interconexões e não-conexões”. Isto implica que este seja sempre inacabado e aberto e,

portanto, não pode ser visto como uma superfície, um terreno firme para ficar.

Trata-se do espaço como esfera de uma simultaneidade dinâmica, constantemente desconectada por novas chegadas, constantemente esperando por ser determinada por novas relações [...] Se realmente tomássemos um recorte através do tempo, seria cheio de buracos, de desconexões, de primeiros encontros provisórios malformados. [Ou haveria] sempre conexões ainda a fazer, justaposições ainda a florescer em interações [...] resultados imprevisíveis e histórias em curso. (p. 160-161)

Neste caminho, encontramos como ponto de cruzamento das ideias de espaço e tempo

de Massey e Certeau a visão de um conjunto de trajetórias de variadas temporalidades,

33 A questão é que em sua perseguição aos binarismos, a geógrafa proponha inclusive que não se fale mais em lugar e espaço, mas apenas em espaço. Ela tenta apontar, por sua vez, as “armadilhas” do lugar, geralmente associado à esfera do cotidiano, mas também idealizado no plano dos significados enquanto ponto de apoio, refúgio da identidade autêntica, do espírito de comunidade contra as tentativas de invasão do global. Nesta concepção se apoiam os conservadorismos que, segundo a autora, levam novamente a uma idéia de espaço enquanto algo homogêneo e fechado. Cf. MASSEY, 2009, p. 24-25.

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encontrando-se no espaço para instaurar na simultaneidade de seus tempos uma esfera

política, que seria a própria construção desse espaço – geográfico e antropológico.

Milton Santos (2008) ajuda a compreender essa relação de diversos tempos com o

espaço pela ideia de tempo das “sucessões” e tempo das “coexistências”. Para o autor, esses

tempos estão diretamente relacionados às técnicas, que deveriam ser um dos dados

fundamentais para a investigação do espaço contemporâneo. Um lugar pode ser assim visto

como um acúmulo de elementos técnicos que o constituem em termos de paisagem acumulada

e o transformam nas ações do presente. Do ponto de vista das temporalidades, as técnicas

podem ser vistas por um lado, enquanto conjunto de frações diacrônicas entre si – na medida

em que surgiram enquanto dispositivo de ação, produção humana em diferentes contextos

históricos e geográficos – e por outro, nos termos das ações sincrônicas, enquanto fatores que

associados aos usos sociais, estão produzindo simultaneamente o espaço geográfico. Neste

sentido, essas técnicas, portadoras de diferentes temporalidades, podem ser vistas como

vetores globais atuando no espaço local assim como vetores regionais ou os mais intimamente

locais, interagindo em níveis variados de tensão com os primeiros tanto no sentido de

submeter-se a eles e reproduzi-los quanto no de opor-se sob a forma de desvios ou colisões.

Assim, podemos visualizar todo o dispositivo técnico associado ao modo de vida

capsular – isto é, aqueles de proteção, controle e segurança: câmeras de vigilância,

arquiteturas panópticas ou neomedievais (muros, cercas, arame-farpado); mas também as

grandes obras rodoviárias produzidas pelo Estado; e o dispositivo midiático que reproduz e

intensifica no campo subjetivo (discursivo, imagético) a culturalização da violência e do

medo. Ao mesmo tempo, no mesmo espaço, outros dispositivos técnicos são utilizados para

outras finalidades que apontam, por sua vez, para culturas “outras”, culturas “menores”, ou

nos termos do autor – mais “opacas” que, vale ressaltar, sempre se produziram, mas que na

configuração geográfica contemporânea, onde uma cultura global cada vez mais espetacular e

luminosa expande seus domínios sobre a vida urbana, configura-se mesmo sem intenção

como resistência diante da possibilidade (desde o início falha) de uma homogeneização

generalizada. Poderíamos falar de toda uma tecnologia da precariedade, associada à lógica da

gambiarra34, que instrumentaliza a ação de muitos sujeitos nesse mesmo espaço, ao mesmo

tempo.

34 Nas palavras de Thais Portela a gambiarra constitui “processo de construção de coisas que pressupõe um estado de precariedade, de falta, e uma consequente ação de adaptação à esse estado, na base do improviso. Faz-se o que pode com o que se tem. Esse processo de criação gera uma ética e uma estética comum às situações de informalidade, marginalidade e pobreza [...] A gambiarra é uma ética e uma estética marcante nos espaços opacos” (PORTELA, 2007, p. 79)

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Assim, de acordo com Santos (2008), o tempo do lugar não pode ser tomado como

unitário, mas como um conjunto de temporalidades intimamente ligadas ao conjunto de

técnicas existentes num determinado ponto do espaço (p.58). O autor explica nos termos de

Saussure35 que “a diacronia interessa ao eixo das sucessividades, e a sincronia, ao eixo dos

estados ou situações” (p. 62; grifo nosso). Mas alerta que no domínio das relações espaciais,

“sincronia e assincronia não são realmente opostas, mas complementares, pelo simples fato de

que as variáveis são as mesmas” (ibid.).

Pensando com Santos, numa abordagem que busca associar a experiência à reflexão

complexificadora, os dois eixos de experiências temporais relacionados ao espaço aberto

proposto por Certeau e Massey se complementam nos termos da investigação proposta. De

um lado, a diacronia e o eixo das sucessões tornam-se ferramentas de apoio à cartografia das

operações que compõem as trajetórias de sujeitos no espaço, aquelas práticas de

espacialização indissociáveis de oportunidades; de outro, a sincronia e o eixo das

coexistências dão suporte à cartografia de situações urbanas, mais especificamente, à

investigação daquele estado de rua (aproveitando-se a coincidência dos termos propostos por

Saussure) instaurado pelo encontro no espaço de diferentes temporalidades naquela

simultaneidade de trajetórias.

35 Apud Antoine Saucerotte, “Temps et marxisme”, La Pensée (158): 40-54, août 1971.

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3. Movimento como ferramenta

Corpo-andante, corpo-bicicleta

A cidade nômade, como lente de acesso ao movimento na cidade, pode ser uma

ferramenta para o tensionamento dos modos sedimentados de ver a cidade assim como certos

modos de fazer do planejamento urbano, que costumam dar mais ênfase às definições dos

elementos fixos, onde ocorrem atividades fixas, do que a toda uma gama de atividades que

acontecem em movimento por entre esses objetos. O movimento pode ser então também uma

ferramenta de campo que, acoplada à lente da cidade nômade, desvie desses modos de ver e

fazer para mergulhar em outros aspectos da organização humana nas cidades, especialmente

em seus modos de auto-organização espontânea. Seria necessário, assim, um tipo de

cartografia ao nível do chão, em movimento e interação com o “outro”, capaz de revelar

outras relações espaciais, diferentes padrões de significação e de práticas que também

produzem a cidade.

Este tipo de cartografia, que investe na exploração de ambiências urbanas através do

engajamento intencional do corpo em movimento no espaço, apesar de pouco valorizada no

campo propriamente urbanístico36, já é uma prática secular. Paola Jacques (2006) perfaz todo

um histórico da instrumentalização de um tipo singular de movimento no espaço: as

errâncias37 como experiência urbana, ou uma “arte de se perder nas cidades”, que seria uma

forma não objetiva, mais aberta ao campo sensível para a investigação de facetas profundas e

menos óbvias da cidade. Daí resulta sua defesa de um “devir errante do urbanista”, uma

espécie de “estado de corpo errante” do pesquisador das cidades como forma de escapar às

36 A exceção talvez esteja nos estudos desenvolvidos no início dos anos 1960 por Kevin Lynch – ideia de “mapas mentais” – e Gordon Cullen – ideia de “visão serial” e “análise sequencial” – que inseriram no campo urbanístico as preocupações com a percepção do espaço urbano. Os autores consideravam que seus métodos não apenas possibilitavam a leitura e interpretação de aspectos compositivos, identitários e estruturantes da forma urbana, como poderiam ser utilizados como suporte aos projetistas e planejadores para melhorar a qualidade ambiental dos espaços urbanos. Cf. LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1997. E CULLEN, Gordon. Paisagem Urbana. São Paulo: Martins Fontes, 1993. 37 Num “pequeno histórico das errâncias” a autora associa práticas de errância de artistas, escritores ou pensadores a momentos da história do urbanismo, desde seu surgimento como campo disciplinar na modernidade. O primeiro momento seria, assim, o das flanêries, a partir do flâneur de Baudelaire, revisitado por Benjamin , que experimentava o processo de modernização de Paris de meados ao fim do Século XIX; O segundo momento seria o das deambulações dadaístas e surrealistas entre as décadas de 1910 e 1930, contemporâneas ao início do movimento moderno em arquitetura e aos primeiros CIAMs; O terceiro seria o das derivas situacionistas entre as décadas de 1950-60, que já se colocavam como forte crítica aos postulados do urbanismo funcionalista dos CIAMs. No Brasil a autora faz associações a esses três momentos com as experiências de alguma maneira próximas, ainda que singulares, de João do Rio, Flávio de Carvalho e Hélio Oiticica, respectivamente. Cf. JACQUES, 2006.

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representações, aos planos, modelos, diagnósticos, a favor das práticas, ações, experiências,

ou seja, do contato com a alteridade urbana no âmbito do cotidiano.

A autora identifica três propriedades recorrentes à prática de “errar” na cidade: o se

deixar perder, a lentidão e a corporeidade.

[...] A preocupação do errante estaria mais na desorientação, sobretudo em deixar seus condicionamentos urbanos, uma vez que toda a educação do urbanismo está voltada para a questão do se orientar, ou seja, o contrário mesmo do ‘se perder’.

[...] A lentidão do errante não se refere a uma temporalidade absoluta e objetiva, mas sim relativa e subjetiva, ou seja, significa uma outra forma de apreensão e percepção do espaço urbano. [...] Neste sentido, a errância poderia se dar por meios rápidos de circulação, mas esta continuaria sendo lenta.

[...] E por fim, a própria corporeidade destes e, sobretudo, a relação, ou contaminação, entre seu próprio corpo físico e o corpo da cidade [...]. Esta incorporação acontece na maior parte das vezes quando se está perdido e em movimento lento. (JACQUES, 2006, p. 121-123)

Num caminho complementar, Careri (2003), que também realiza um percurso pela

história da arte38, desenvolve uma argumentação em torno das possibilidades da prática do

caminhar como ferramenta estética de “leitura” e “escritura” do território. O autor defende

que se busque uma expansão do campo da arquitetura em direção ao percurso39, pala ação do

caminhar como ferramenta de análise e intervenção no espaço. O termo percurso, neste caso,

carrega um triplo sentido pois “se refere ao mesmo tempo ao ato de atravessar (o percurso

como ação de andar), à linha que atravessa o espaço (o percurso como objeto arquitetônico) e

ao relato do espaço atravessado (o percurso como estrutura narrativa)” (p.25). Careri chama a

atenção para que arquitetos se impliquem também em experiências e proposições no campo

dos significados, e não apenas na construção de objetos e formas. O objetivo, segundo ele “é

indicar o caminhar como instrumento estético capaz de descrever e modificar aqueles espaços

metropolitanos que muitas vezes apresentam uma natureza que ainda está por compreender e

preencher-se de significados mais do que ser projetado e preenchido de coisas” (p.27).

As cartografias de campo deste trabalho, que acontecem nas ruas de Salvador e Brasília,

são tentativas de experimentação dessas ferramentas, onde se compreende a trajetória do

38 Segundo Gilles A. Tiberghien, em sua introdução ao livro, Francesco Careri realiza uma investigação que de algum modo enraíza as atividades do grupo Stalker (do qual o autor faz parte) no passado, construindo sua genealogia. Careri tenta assim identificar, nos primórdios da humanidade, dos povos nômades do neolítico, o gesto “arquitetônico” de fincar um menhir (uma enorme pedra verticalizada) como demarcação de pontos no percurso como um gesto simbólico sobre a paisagem. Passando por Dadá, os surrealistas e experiências situacionistas, o autor investiga a experiência estética de artistas (Tony Smith, Carl Andre, Richard Long, Robert Smithson, entre outros) em espaços suburbanos, vazios, descampados – a chamada Land Art –, distanciando-se de algum modo da experiência propriamente urbana da metrópole. Cf. CARERI, 2003. 39 No livro bilíngue, os termos utilizados foram “recorrido” em espanhol e “path” em inglês que podem também ter traduções como caminho , trilha, trajeto, trajetória.

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pesquisador tanto como percurso de leitura e escritura do/no espaço assim como um

investimento em diferentes operações sensoriais e corporais, que envolveram a busca por uma

“lentidão subjetiva” e também variações entre um deixar-se levar e verdadeiras

“perseguições” a situações ou sujeitos. Pode-se dizer que em certos casos, há uma experiência

próxima à deriva situacionista enquanto “técnica de passagem rápida por ambiências

variadas” (SITUACIONISTA, 2003, p. 65) visando à caracterização de estados de rua variados e

a compreensão dos fatores espaço-temporais, humanos e materiais que circunstancialmente,

no tempo das coexistências, os produzem.

Essas experimentações em movimento, entretanto, não foram realizadas apenas pelo

caminhar, mas também pedalando sobre uma bicicleta. E é importante salientar que o

caminhar e o pedalar não são experiências de modo algum similares. Sendo o caminhar

universalmente compartilhado, podemos dizer que o pedalar, nesse contexto, envolve toda

uma temporalidade própria, adaptações corporais aos obstáculos do trânsito, assim como um

arranjo sempre tentativo e esforçado para criar um estado de atenção e engajamento corporal,

que não está apenas ocupado em manter-se a salvo e em equilíbrio, mas também expandir-se à

experiência investigativa e às reflexões em ato.

Cada uma dessas experiências – caminhar ou pedalar – proporciona suas formas de

liberdade, mas também limitações, assim como alcances variados de percepção e contato com

o ambiente e os “outros”. Elas ainda variam junto com os condicionantes da forma urbana,

isto é, o desenho da cidade, o que faz com que a experiência de caminhar em Salvador seja

completamente distinta de caminhar em Brasília, assim como pedalar em cada uma dessas

cidades40. Poderíamos nos arriscar a dizer inclusive que há quase como inversões nessas

formas de liberdade e limites. Brasília leva a pensar que uma errância sobre bicicleta seja

talvez mais proveitosa: as longas distâncias entre acontecimentos urbanos fazem do tempo da

bicicleta um aliado mais poderoso que o cansativo e monótono caminhar. Já em Salvador, o

tempo da bicicleta parece perder muito do que a oportuna vagarosidade do caminhar consegue

aproveitar, dada sua contiguidade formal que se reflete numa quantidade de situações urbanas

cotidianas que se sobrepõe e se misturam.

40 É claro que cada cidades abriga em si mesma ambiências completamente distintas, mas isso não impede que se perceba, em escala mais ampla, um certo “comum” que liga essas ambiências, envolvendo fatores também imateriais como uma historicidade, modos de uso desse espaço culturalizados pela população ou mesmo fatores climáticos.

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Cartografia como percurso

Experimentar o movimento como ferramenta e com a lente da cidade nômade acoplada

ao corpo traz então o desafio da cartografia de espaços-tempos da cidade ao nível do chão.

Como cartografar o movimento? Esta torna-se uma questão-chave. Deleuze (1985), ao

comentar as teses de Bergson sobre o movimento nos fornece algumas pistas quando fala que

o movimento não pode ser confundido com o espaço percorrido. Ele explica que o espaço

percorrido é passado enquanto o movimento é presente: o ato de percorrer.

Não se pode reconstituir o movimento através de posições no espaço ou de instantes no tempo, isto é, através de "cortes" imóveis... Essa reconstituição só pode ser feita acrescentando-se às posições ou aos instantes a ideia abstrata de uma sucessão, de um tempo mecânico, homogêneo, universal e decalcado do espaço, o mesmo para todos os movimentos. E então, de ambas as maneiras, perde-se o movimento. De um lado, por mais infinitamente que se tente aproximar dois instantes ou duas posições, o movimento se fará sempre no intervalo entre os dois, logo, às nossas costas. De outro, por mais que se tente dividir e subdividir o tempo, o movimento se fará sempre numa duração concreta.(p. 06).

Seguindo a argumentação de Deleuze, parece perder sentido a busca pela reprodução de

um movimento, enquanto espaço percorrido, de forma fiel. Sendo a possibilidade de sua

reconstituição desde já inviabilizada, um caminho, que se afasta da reprodução, parece ser o

da criação de sempre novos movimentos que se desdobram de um primeiro e de um segundo,

e.... Novos movimentos que criam novos espaços percorridos por cada receptor desta

cartografia. Podemos pensar, assim como sugere Rolnik (2006), a cartografia, não como a

produção de “mapas – representações de um todo estático – mas como um movimento que

acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem”

(p.12). A autora invoca o cartógrafo a acionar seu “corpo vibrátil”,

capaz de apreender a alteridade em sua condição de campo de forças vivas que nos afetam e se fazem presentes em nosso corpo sob a forma de sensações. [...]O exercício desta capacidade está desvinculado da história do sujeito e da linguagem. Com ela, o outro é uma presença que se integra à nossa textura sensível, tornando-se assim parte de nós mesmos. Dissolvem-se aqui as figuras de sujeito e objeto, e com elas aquilo que separa o corpo do mundo. (ibid.)

Este cartógrafo, segundo a autora, seria uma espécie de antropófago, capaz de absorver

matérias de qualquer procedência. “O que lhe servir para criar matérias de expressão e criar

sentido para ele é bem vindo”. É neste sentido em que se colocou anteriormente a ideia de

perseguição. O cartógrafo em movimento nas ruas trata de perseguir avidamente qualquer

vetor de expressão que provoque seu “corpo vibrátil”, isto é, todo o tipo de situação, ou de

práticas de espacialização de sujeitos (ambulantes) que sensibilizam as questões que o movem

(os desvios pelo movimento, os estados de rua). Se em um momento várias situações o

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provocam ao mesmo tempo, é seu corpo vibrátil que decidirá o que seguir. Desta forma, o

cartógrafo não “se perde” pela falta de objetivos, mas por perseguir um objetivo muito

singular e distinto dos fluxos comuns de circulação da cidade, o que faz com que nessas horas

as referências de localização pouco importem. Neste tipo de prática cartográfica, o seguir

distancia-se do reproduzir, como os distinguem Deleuze e Guattari (1997):

Reproduzir implica a permanência de um ponto de vista fixo, exterior ao reproduzido: ver fluir, estando na margem. Mas seguir é outra coisa. Somos de fato forçados a seguir quando estamos à procura de singularidades de uma matéria ou, de preferência, de um material, e não tentando descobrir uma forma; [...] quando paramos de contemplar o escoamento de um fluxo laminar com direção determinada, e somos arrastados por um fluxo turbilhonar; quando nos engajamos na variação contínua das variáveis, em vez de extrair delas constantes.” (p. 40)

Pode-se pensar também que esta ferramenta cartográfica, que segue singularidades; que

visa experimentar, apoiada numa lente nômade, um saber-fazer (um pensamento na

experiência), não distingue campo, teoria e método. Ao contrário, compreende-os como

profundamente imbricados (será possível separá-los no ato de sua feitura?). Uma cartografia

que se apresenta, portanto, como percurso: uma só palavra que abriga vários significados.

Trata-se, portanto, sempre de operações: operações práticas; operações teorizantes, que em

determinados momentos se confundem, ambas se efetivando numa mesma experiência

etnológica. Certeau sugere uma prática de pesquisa que não distingua essas esferas, mas que

realize passagens de uma a outra, operações fluídas de contaminação onde uma arte de fazer

do cotidiano desdobre-se numa arte de fazer teoria. Ele identifica assim um procedimento em

dois gestos:

O primeiro gesto destaca certas práticas num tecido indefinido, de maneira a tratá-las como uma população a parte, formando um todo coerente, mas estranho no lugar onde se produz a teoria. [...] O segundo gesto inverte ou põe do avesso a unidade assim obtida por isolamento. De obscura, tácita, distante, ela se muda no elemento que esclarece a teoria e sustenta o discurso. (CERTEAU, 2009, p. 124)

Certeau coloca Foucault e Bourdieu, com as suas diferenças, lado a lado enquanto

praticantes dessa arte de fazer, na medida em que encontra nos procedimentos de ambos “a

mesma manobra quando transformam práticas isoladas como afásicas e secretas na peça-

mestra da teoria, quando fazem dessa população noturna o espelho onde brilha o elemento

decisivo de seu discurso explicativo.” Este movimento leva Certeau a defender que a teoria

produzida deve pertencer aos procedimentos que aborda.

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Narratividade

Recorremos então à ideia de narrativa, que associada às ferramentas da cartografia,

mostra-se como possibilidade que pode dar conta das relações espaço-tempo do percurso

como buscado aqui: criação de movimentos, implicação intensiva do cartógrafo, ou

simplesmente um modo de contar que se pretende coerente com o modo de fazer proposto. A

esse modo de contar chamamos narrativas cartográficas. Sua elaboração não se descola da

experiência; começa a elaborar-se já em movimento nas ruas, mas sua trajetória prossegue

incluindo elementos da teoria, detalhes apenas percebidos ao se reviver a memória e os

registros de campo. Como descreve Rolnik (2006), seria algo como “um roteiro, inventado ao

mesmo tempo em que os territórios, as pontes e as passagens que foram sendo percorridas. Ao

mesmo tempo em que as personagens fictícias mais que reais. Ao mesmo tempo” (p. 231).

É com esta ferramenta que se pretende articular operações teorizantes e operações

práticas, ao exercitar também na escritura uma “arte de dizer” que partilharia procedimentos

daquela arte de fazer nas ruas, da lente nômade e do movimento como ferramenta. Na

narrativa se aplicam também arte-manhas e abre-se espaço para desvios múltiplos. Neste

ponto, assume-se a entrada em campo da ficção. É Michel de Certeau, quem mais uma vez,

nos ajuda a articular estas operações. O autor propõe a narrativa como procedimento

escritural: “um discurso em histórias. A narrativização das práticas seria uma ‘maneira de

fazer’ textual, com seus procedimentos e táticas próprios” (CERTEAU, 2009, p. 141; grifo meu).

Na narração não se trata mais de abordar uma realidade (uma operação técnica, etc.) com a maior proximidade possível e fazer do texto aceitável, legítimo, pelo “real” que exibe. Ao contrário, a história narrada cria um espaço de ficção. Ela se afasta do real – ou melhor, ela finge escapar às circunstâncias presentes [...] e precisamente desta maneira, mais que descrever um golpe, ela o realiza. [...] Ela mesma é um ato de andar na “corda-bamba”, um gesto equilibrista em que participam a circunstância (lugar e tempo) e o próprio locutor, uma maneira de saber como manipular, arranjar e colocar uma fala pelo deslocamento de um conjunto, em suma ‘uma questão de tato’. (p. 142)

Esta diferença no modo de fazer associa-se à intenção que há por trás da narrativa.

“Intenção” e “fazer” se atualizam reciprocamente sem deixar de devotar ao receptor seu papel

nessa construção. Não o subestimam e assim permitem-se jogar com a certeza de que ele

também fará seus próprios desvios:

Existe com certeza um conteúdo da narração, mas ele pertence também à arte de dar um golpe: ele é um desvio com a finalidade de aproveitar uma ocasião e modificar um equilíbrio tomando-o de surpresa. [...] É preciso entender um sentido outro do que o que se diz. O discurso produz então efeitos, não objetos. É narração, não descrição. É uma arte de dizer. (ibid; p. 142)

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Mesmo que se assuma uma abertura para a ficção, ainda assim, é preciso levar em

consideração uma certa “política da narratividade” (BARROS e PASSOS, 2010) que diz

respeito a um ethos da pesquisa, uma tomada de posição nessa narrativa, que deve colocar-se

em relação às políticas em jogo no contexto mais amplo da pesquisa (políticas urbanas,

políticas sociais, políticas de subjetivação, que colocam em disputa os variados sujeitos, seus

interesses e as formas de utilização do espaço das ruas). É neste sentido em que a produção de

narrativas se coloca não apenas como “problema teórico mas também como problema

político” (ibid; p. 151).

Para enriquecer o pensamento sobre os desafios que levantam essas questões-

articulações entre ficção / ética / estética / política da narratividade destacamos a seguir a

introdução de uma narração-depoimento intitulada “Experiência Estamira”, produzida por

Fábio Araújo sobre o documentário Estamira de Marcos Prado (2005) e publicada no site do

filme.

Há muito tempo eu aprendi a indignidade de falar dos outros, ou pelo os outros. Sendo assim, pretendo que essa fala não seja uma fala que incida sobre um objeto que seria a Estamira. [...] Se assim fizesse eu estaria buscando um ponto exterior ao complexo Estamira.

Por outro lado, também não busco um ponto interior a Estamira que falaria de sua verdade mais intima, já que esse ponto corresponde unicamente à vivência da pessoa Estamira. O que ela vive, o que ela experimenta guardará sempre uma diferença, diferença essa que é praticamente irreconciliável com a nossa vivência da pessoa Estamira, ou seja, com a forma como experimentamos Estamira.

Bem, se não intento falar nem do exterior, nem do interior de Estamira, é por que quero fazer de mim uma caixa de ressonância, que capte e amplie isso que vou denominar A EXPERIÊNCIA ESTAMIRA: experiência cósmica que já não diz respeito a um sujeito determinado e sim a uma subjetividade qualquer. Sendo assim quero me colocar lado a lado de Estamira, caminhar junto, acompanhando e sendo acompanhado, afetando e sendo afetado, fazendo de mim também uma experiência limite, que me force para além de mim mesmo. E se me proponho a caminhar junto a Estamira, não é da forma como um casal caminha: de mãos dadas pela rua, cada um reivindicando para si, o outro. Mas sim como caminham os bandos selvagens, as matilhas nômades, como brincam as crianças. (ARAÚJO, 2011)

O filme tem como personagem principal uma mulher de 63 anos, Estamira, que sofre de

distúrbios mentais e trabalha e vive no aterro sanitário de Jardim Gramacho no Rio de

Janeiro41. Mas o depoimento não pretende falar dela, e sim de uma experiência subjetiva que

o filme proporciona, e particularmente proporcionou ao autor. Entendendo-se não como

reprodutor, mas como uma “caixa de ressonância”, atravessada pelos afetos desencadeados

pelo filme, o autor transmuta-os, amplifica-os e projeta agora outros afetos, produzindo novos

41 Esta descrição baseia-se na sinopse do filme disponível no site http://www.estamira.com.br/.

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movimentos, por meio de um modo de realizar sua narrativa. Em suas palavras introdutórias o

autor expõe algumas das preocupações que permeiam o processo de narratividade e aponta

uma postura ética para o narrador-cartógrafo.

É de maneira muito próxima que tentamos praticar esta operação de cartografar e narrar

as experiências de campo, especialmente aquelas em que se realizam atravessamentos com

sujeitos ambulantes, seja nas perseguições ou nos acoplamentos, que se na realidade

aconteceram de forma quase sempre conjugada, é a ficcionalização narrativa que os

distinguirá se assim parecer mais oportuno para os efeitos que almeja produzir.

O espaço-tempo dos outros: acoplamentos, variações de posição

É necessário então que se revise posições: de que lugar de poder fala o cartógrafo?

Quais as relações possíveis de se estabelecer entre um sujeito-pesquisador e um sujeito-outro,

sem que se recorra à tradicional relação sujeito observador/objeto observado? Enfim, como se

aproximar dos outros? Este é para Certeau um problema político da pesquisa sobre as

chamadas “culturas populares”. O autor se pergunta quais são as bases que fundamentam

declaramos esta “arte diferente”? E de onde (de que outro lugar) efetuamos sua análise? É

neste sentido em que o autor sugere recorrer aos próprios procedimentos dessa arte. “As

ressurgências das práticas ‘populares’ na modernidade industrial e científica mostram os

caminhos que poderiam ser assumidos por uma transformação do nosso objeto de estudo e do

lugar de onde o estudamos” (CERTEAU, 2009, p. 82).

Não à toa Certeau fala de arte. O campo da arte parece ter feito este movimento com

pelo menos um século de antecedência às ciências sociais. Parece ser neste caminho em que

Marshal Berman (1987) retoma as angústias de um Baudelaire perdido em meio às grandes

transformações urbanas de Paris na segunda metade do século XIX, processos que apontavam

os primórdios da experiência da modernidade nas grandes cidades ocidentais42. Neste

contexto ainda nebuloso, movediço, mas ao mesmo tempo estimulante, o poeta descobriu uma

nova arte de viver na experiência do homem comum nas ruas da metrópole. Num de seus

poemas, ele explica isso por meio de uma metáfora: a “Perda do halo” (o próprio título do

poema), defendendo que este deveria ser o novo caminho dos artistas modernos. Na narrativa,

o poeta em meio aos sobressaltos no trânsito (este novo fenômeno urbano) perde seu halo, a

aura de pureza do artista, que cai em meio ao lodaçal de macadame43 do bulevar. Na sarjeta, o

42 A experiência de rua de Baudelaire recuperada por Walter Benjamin, Marshal Berman (entre outros) será explorada ainda no capítulo 5 “A rua como potência”. 43 Macadame era o tipo de pavimentação escolhida por Napoleão III para as ruas de Paris. “Os pavimentos de macadame, fonte de particular orgulho para o Imperador – que jamais andou a pé –, eram poeirentos nos meses

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artista descobre a maravilha de ser um anônimo, um qualquer, sem que lhe reconheçam a

patente, e ali pretende ficar.

Um dos paradoxos da modernidade, como Baudelaire a vê aqui, é que seus poetas se tornarão mais profundamente e autenticamente poéticos quanto mais se tornarem homens comuns. (...) Seus movimentos bruscos, aquelas súbitas curvas e guinadas, cruciais para a sobrevivência cotidiana nas ruas da cidade, vêm a ser igualmente fontes de poder criativo. (p.155)

Tornar-se um homem comum e sentir o mundo como homem das ruas, em meio à

multidão, era para Baudelaire uma busca por sensações autênticas, mas também um meio de

aproximar-se do outro, de conhecer e entrar em contato com modos de ver, de sentir, distintos

e impensáveis de um ponto de vista isolado; experiências de vida de homens e mulheres que

viviam cotidianamente os altos e baixos da nova vida urbana moderna. Esse encontro do

artista – tornado “homem comum” – com o outro das ruas, era a tal ponto vital que tinha para

ele o sentido de uma ligação profunda. Baudelaire defendia que “Sua paixão e sua profissão

de fé são tornar-se unha e carne com a multidão – épouser La foule (casar-se com a multidão).

[...] Ele [o artista] deve ‘expressar ao mesmo tempo a atitude e os gestos dos seres vivos,

sejam solenes ou grotescos, e sua luminosa explosão no espaço’” (BAUDELAIRE apud

BERMAN, 1987, p. 141).

Berman aponta ainda que o verbo épouser, utilizado por Baudelaire como a ligação

entre o artista e o outro pode ser entendido tanto no sentido mais óbvio do “casar-se” quanto

no de envolver-se sensualmente (p. 142). Aqui a expressão adquire um sentido ainda mais

interessante já que qualifica essa conexão como um envolvimento profundo, mas que

independe da temporalidade, como indicaria erroneamente o tempo longo do casamento. O

tempo intensivo se sobrepõe ao extensivo, e o “sensualmente” pode remeter a todo tipo de

artimanhas, posições e linguagens corporais, assim como trocas de afetos que envolvem o

processo de seduzir e deixar-se seduzir.

Este tipo de procedimento sugerido por Baudelaire encontra reverberação no

pensamento de Foucault. Esta relação de proximidade que se estabelece do artista com o

homem comum, tendo como meio a rua, está muito próxima da que Foucault (1998) sugere

como uma das possibilidades da prática genealógica, que se construiria a partir do encontro do

saber erudito com o saber popular. Assim ele esboça uma definição:

Chamemos provisoriamente genealogia o acoplamento do conhecimento com as memórias locais, que permite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização deste saber nas

secos de verão e ficavam enlameados com a chuva e a neve. (...) Haussmann, que conseguiu sabotar os planos imperiais de revestir toda a cidade com ele, dizia que esse tipo de superfície exigia dos parisienses ou ter uma carruagem ou caminhar sobre pernas de pau”. (BERMAN, 1987, p. 153-154)

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táticas atuais. (...) trata-se de ativar saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia depurá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência detida por alguns. (p. 171; grifo nosso)

A escolha da palavra acoplamento como modo de realização desta conexão indica que

não se trata nem de uma absorção do conhecimento popular pelo erudito, nem de uma fusão

que criaria um terceiro saber, mas no sentido de que os dois saberes se encontram para

realizar algo conjuntamente. No caso de Foucault, o objetivo é questionar e confrontar os

efeitos de um poder centralizador, geralmente ligado a alguma instituição com “pretensões

englobantes” que legitimam com o discurso científico seu poder sobre a sociedade. Aqui, o

acoplamento do pesquisador com o sujeito das ruas pode ser visto como uma ferramenta para

questionar um saber urbanístico englobante e o poder de instituições que legitimam suas

ações (políticas urbanas, planejamentos) sobre este saber.

Ao mesmo tempo, o procedimento sugerido por Baudelaire, liberto de seu sentido

literal, pode apontar um modo de realizar esse acoplamento, algo como deixar-se seduzir pelo

universo do outro, mas também seduzir com seu posicionamento ético-político; subjetividades

se atravessando e se modificando. Baudrillard (1981) amplia os sentidos dessa prática,

descrevendo a sedução enquanto um artifício intensivo que opera relativizando as verdades,

de onde resulta sua inadequação aos discursos pragmáticos. Ele assim descreve como ela

ameaça os saberes estabelecidos:

A sedução, nunca é da ordem da natureza, mas daquela do artifício [...] dos signos e rituais. Por isso todos os grandes sistemas de produção e interpretação não cessaram de excluí-la do campo conceitual – afortunadamente para ela, pois desde o exterior, desde o fundo deste desamparo continua a assombrá-los e ameaçá-los com o colapso. [...] Para todas as ortodoxias segue sendo o malefício e o artifício, uma magia negra desviante de todas as verdades, uma exaltação dos usos maliciosos dos signos, uma conspiração dos signos. Todo discurso está ameaçado por esta repentina reversibilidade [...] Por isso todas as disciplinas que têm por axioma a coerência e a finalidade de seu discurso, não podem senão conjurá-la. (p. 9-10)

O recurso ao acoplamento e à sedução converte esses atos em procedimentos práticos

que não deixam de ser uma crítica ao saber urbanístico, especialmente aos métodos com

pretensões científicas, sejam eles baseados em dados numéricos, sejam métodos de campo

engessados ou demasiado pragmáticos, mas que geralmente anulam o pesquisador, que aborda

seu objeto sob um ponto de vista “neutro”. O acoplamento e a sedução, ao contrário, sugerem

um investimento do pesquisador junto ao campo de investigação, que implica correr riscos e

assumir todas as dinâmicas de poder ali envolvidas e, por isso mesmo, também a necessidade

de construir uma postura ética e política.

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Desta forma, quando a cartografia de campo aproxima-se dos sujeitos-outros das ruas, busca assim variadas possibilidades de relação, e em certas passagens do percurso o próprio pesquisador confunde-se com o praticante. “Subindo, descendo e girando em torno dessas práticas algo escapa sem cessar, que não pode ser dito nem ‘ensinado’, mas deve ser ‘praticado’” (CERTEAU, 2009, p. 140). Nada próximo da artificialidade de uma tentativa de tornar-se o outro para conhecê-lo, mas num caminho inverso, por justamente experimentar a rua cotidianamente e no tempo lento, compartilhar espaços e práticas com o outro, interessar-se por ele e utilizar essa experiência compartilhada como vantagem. Em outras palavras, não seria um objeto de pesquisa distante que leva o pesquisador a aproximar-se e experimentar suas práticas, mas por já estar próximo e experimentar práticas semelhantes, buscar um aprofundamento investigativo.

Essa realidade etnológica, é inútil agora ir procurá-la [...] no princípio dos tempos. Ela se instala no nosso sistema [...] ou ao lado, ou talvez mesmo dentro de nossas cidades [...] e mais perto ainda (‘o inconsciente’). Mas por mais perto que esteja o seu conteúdo, sua forma ‘etnológica’ subsiste. (ibid. p. 126)

Com o cuidado de manter consigo esta postura “etnológica”, o cartógrafo sabe que não deixa de ser também um praticante construtor deste espaço: as ruas centrais são também seu espaço cotidiano. Produz-se com isso, em algumas situações narradas uma inversão da prática da observação participante44 para a de um “participador-observante” quando o cartógrafo não apenas pode reconhecer pedaços de si no outro, como apresentar-se em determinadas passagens como um outro de si mesmo, um interlocutor prático das próprias teorias que pretende desenvolver. Não é o caso de dirimir diferenças que existem entre o cartógrafo e os variados sujeitos ambulantes das ruas – que incluem não apenas aquelas diferenças sociais e culturais, mas as próprias razões de estarem ali –, o que indicariam a não-necessidade da interlocução, mas de se pensar que por estas flutuações subjetivas, inúmeros contatos cotidianos, contágios de práticas e afetos, algo do outro torne-se visível e experimentável pelo pesquisador através de gestos e práticas não-discursivas, experiências compartilhadas ou similares.

Assim se constitui a aposta metodológica deste trabalho, que pode ser visto como um movimento ou percurso que cruza cidades, suas ruas, a teoria e os conceitos, encontra no caminho aliados, realiza seus desvios nos métodos e busca um movimento cartográfico próprio, ancorado nas experiências urbanas, mas que se permite descolar do tempo cronológico e remontar as temporalidades vividas num outro percurso escritural sob a forma de narrativas cartográficas. 44 A observação participante é um método de pesquisa desenvolvida no campo da Antropologia. Constitui uma das ferramentas da prática etnografia, que sugere que o etnógrafo não se insira no contexto como simples observador que buscaria em última instância ter sua presença ignorada, mas que se envolva e participe das atividades do grupo pesquisado, assumindo, contudo, sua posição de estrangeiro. Cf. VALLADARES, 2007.

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... desvio ...

Após experimentar a intensidade do estado de rua no centro de Salvador, o cartógrafo quer

agora investigar os agenciamentos possíveis entre este estado e a sarjeta. Percebendo indícios de

uma diferença entre ruas de pedestres e ruas com trânsito de veículos, e um tipo de espacialização

diretamente relacionada à presença da sarjeta nas ruas comuns, o cartógrafo direciona neste momento

o foco da lente nômade para este espaço de limites imprecisos. Para isso, começa a observar a prática

de sujeitos ambulantes que tiram partido deste espaço. Aquele estado de rua estaria presente nos

movimentos desses sujeitos? Que relação pode ser estabelecida entre o estado de rua, a sarjeta e os

sujeitos ambulantes? Buscando uma aproximação o cartógrafo começa a segui-los.

NARRATIVA CARTOGRÁFICA #2Salvador: seguindo sujeitos ambulantes

>> #2.1 Teodoro

Ele caminha apressado com uma marcha firme. Aproveita-se da linha azul desenhada nos cantos do

asfalto que vai da praça castro Alves até o Campo Grande*.

*A linha foi impressa ali para organizar uma

função que só existe 5 dias ao ano. Nos outros

360 dias ela permanece, tatuada neste trecho da

cidade, marcando seu asfalto com um conteúdo

do qual ela (a cidade) parece depender cada vez

mais, ou que setores poderosos da industria

cultural local querem fazer seus habitantes

acreditar. Independentemente, ela está lá

para que ninguém se esqueça. Durante 5 dias

extraordinários, esta linha tem a função de guiar

os “cordeiros” dos trios elétricos de carnaval. A

linha azul é o limite dos blocos, que dali não

podem passar para não fechar completamente a

passagem – o que constituiria uma privatização

completa do espaço de circulação. Ao invés

disso, sobram 50 centímetros de asfalto, mais

a calçada, o que dá uma média de dois metros e

meio para cada lado para o livre ir e vir daqueles

que não compraram passes de entrada para o

carnaval espetacular. Nos outros dias do ano,

dias ordinários, a linha confunde quem não

conhece seu significado, ou é simplesmente

ignorada pelos que conhecem. E ela mesma

acaba conquistando novos significados.

Alguns ciclistas por exemplo a atualizam como

ciclofaixa.

Não é possível saber se este homem pensa

que ela o protege, e por isso tenta manter sua

trajetória no interior de seus limites, ou se

ele simplesmente caminha por ali, e é apenas

coincidência a linha contornar seu trajeto. Em

todo caso ele está firme em sua marcha e os

carros e ônibus parecem manter distância ao

ultrapassá-lo neste trecho. O homem usa tênis

resistentes, bermuda e uma camisa amarela.

Empurra à sua frente um suporte de ferro sobre

duas rodas. Uma adaptação de um carrinho

comum de transporte de materiais pesados, ao

qual soldou aos braços originais dois tubos de

ferro que deixam seus apoios mais cumpridos e

permitem empurrá-lo ou puxá-lo com as mãos

sobre os ombros. Isto aumenta sua alavanca e

faz com que o corpo carregue menos peso do

que as rodas; uma condição mais confortável

para a duração do trabalho que vem pela frente.

Na base próxima às rodas adaptou também à

estrutura original um conjunto de peças de

madeira que dão mais profundidade à sua

base e permitem carregar um volume maior

de objetos. No fundo da estrutura, ainda vazia,

estão um varal de roupas, lonas plásticas e

algumas cordas, que juntos podem servir para

amarrar e dar firmeza ao conjunto de sacos

cheios carregados já no fim da noite.

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O homem sai da invasão onde mora, em algum lugar da Calçada, passa pelo Comércio e

sobe a Contorno até atingir o fim da Carlos Gomes onde encontra a linha azul. Seu destino

é Canela, Graça, Barra e Vitória, bairros onde procura chegar antes do fim da tarde, e pegar

o processo de disposição dos lixos dos prédios na rua.

Na medida em que se aproxima desses bairros – que produzem um lixo valioso e

em grande quantidade – começa a cruzar com outros como ele: alguns com carrinhos

parecidos; outros com veículos melhores (verdadeiras carroças com amplo espaço para

o carregamento); outros empurram um carrinho de supermercado; Alguns levam apenas

sacos plásticos enormes. O tipo de dispositivo de transporte condiciona o material catado.

Os carrinhos maiores permitem o transporte de papelão – que chega a conformar imensas

pilhas no fim do dia. Os dispositivos intermediários e os sacos costumam ser utilizados por

aqueles que se concentram em latinhas de alumínio e recipientes plásticos (frascos de água

sanitária, detergente, potes de iogurte, garrafas pet). Mas todos caminham, empurram ou

carregam seus veículos de carga pela sarjeta, geralmente entre o fluxo de veículos e uma

fileira de carros estacionados. Pequenos obstáculos à fluidez do trânsito.

Alguns catadores se conhecem, se cruzam quase todos os dias, mas no momento da

catação eles praticamente não se falam. É um trabalho barulhento, mas silencioso, onde

está cada um por si. Disputam os pontos de coleta, tentam chegar sempre antes dos outros,

e quando chegam num tonel ele é seu. O trabalho da catação é uma competição como

qualquer outro, mas ainda há lixo reciclável e não organizado o suficiente para todos que

dele tiram alguma renda nas ruas de Salvador. Algumas caçambas estão permanentemente

ali, na sarjeta, entre alguns carros. Outras entram e saem dos edifícios, cheias de lixo, em

horários determinados todos os dias. Os catadores sabem exatamente que horários são

esses e organizam seu trajeto em função disso. Alguns são mais organizados e saem antes,

como este homem, já com um trajeto em mente e equipamento preparado para carregar um

volume e peso suficientes para lhe garantir uma renda média mensal estável – na medida do

possível. Outros não têm família, dormem nas ruas e “estão no crack”. A catação neste caso

costuma ser bem menos organizada, e grande parte do dinheiro é consumida pela droga.

Este homem vai atrás de ruas mais internas, residenciais, onde não há trânsito, conhece

os porteiros, e de alguma maneira construiu um território de trabalho. Mas não deixa

de disputar espaço também nas ruas principais, mais complicadas pelo trânsito e pela

competição, como a Rua da Graça e o Corredor da Vitória. Estas têm sempre a presença

de catadores ao longo de todo o dia, mesmo que só de passagem com seus carrinhos

pelos bordos da pista. No entanto, em determinados horários eles estão por toda parte;

geralmente momentos antes do caminhão da Limpurb passar recolhendo o lixo. Nestes

poucos momentos, pela intensidade de uma presença coletiva, estes homens e suas

microtrajetórias pontuais e invisíveis saem parcialmente da escuridão para borrar esses

espaços luminosos com a opacidade de seus gestos. Carrinhos das mais variadas formas,

tamanhos e materiais – expressão de uma tecnologia da precariedade – espalham-se em

diversos pontos da rua; seus corpos, mais ou menos castigados, se distribuem ao redor de

tonéis e pilhas de lixo; Ouve-se por toda parte o barulho de objetos metálicos e plásticos

sendo jogados ao chão, onde se espalham junto ao odor do lixo orgânico ao qual estão

misturados. Toda esta atmosfera que toma o Corredor da Vitória três vezes por semana – a

intimidade desses homens com o lixo, seu movimento veloz e silencioso, mas barulhento;

os sacos de lixo rasgados e o odor de chorume que se espalha pela calçada e escorre para

o asfalto – é a sarjeta, se expandindo, crescendo e contaminando este território luminoso

de arranha-céus e carros importados.

Panorama do percurso do sujeito ambulante. Montagem sobre

foto aérea (fonte:google earth)

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>> #2.2 Ramiro

Ele carrega um tabuleiro de madeira com potes de doce. Equilibra-o com os dedos

abertos de uma das mãos um pouco acima dos ombros. Como resultado, seu corpo se

desloca a partir da cintura, apontando uma tangente à linha original da coluna na direção

oposta à do tabuleiro, chegando a um rearranjo corporal que o permita caminhar com a

pilha de doces. De chinelo, bermuda vermelha, camisa regata azul e chapéu de palha ele

caminha tranquilamente pela sarjeta na Av. Sete, na mão da pista. Neste ponto não há carros

estacionados e a calçada tem dois metros – menos um, subtraído pelos camelôs encostados

na empena lateral do Mosteiro de São Bento. Ele prefere, como outros, caminhar pelo

asfalto mais macio da sarjeta. Neste momento ele parece se equilibrar sobre a linha azul

pintada no chão, enquanto passa no meio de uma senhora gorda que puxa vagarosamente

um carrinho pela contramão, do lado de dentro da pista, e uma outra senhora que caminha

entre o fim da calçada e um camelô. Ele segue em direção a três pessoas, que também estão

na contramão. A mulher joga o corpo pra dentro da sarjeta e dois homens jogam os seus

para dentro da pista, enquanto ele mantém sua reta. Logo à frente vem um homem sozinho

a seu encontro, firme sobre a linha azul, e é ele quem desvia: pisa no meio-fio e volta pra

sarjeta desviando também de um poste no limite da calçada que, junto com a mesa do

camelô encostada à parede do mosteiro, praticamente bloqueiam a calçada, oficializando

neste ponto a sarjeta como passagem de pedestres. O camelô reforça a barreira, sentado

num banquinho de plástico atrás do poste no limite da calçada. Uma mulher de pele negra

e vestido vermelho vem logo atrás, descendo a calçada e penetrando o asfalto, por onde

resolve seguir. A rua se inclina em declive e a gravidade age, emprestando aos corpos

uma inércia que deixa o movimento mais leve, com passos mais longos, mas pisadas

mais fortes. Agora é o tronco robusto de uma árvore ocupando quase toda a calçada

que faz duas mulheres que sobem a rua bifurcarem suas trajetórias, uma por dentro da

calçada e outra pelo asfalto. O homem com o tabuleiro e coluna enviesada continua pelo

asfalto, e a mulher de vestido vermelho, que agora balança de um lado ao outro no ritmo

de suas pernas, parece seguir sua trajetória. O declive aumenta e as passadas ganham

uma cadência. Um grupo de pedestres vem atravessando na faixa e eles atravessam seu

movimento, perfurando a massa e ganhando velocidade. O fim do mosteiro culmina com

uma rua transversal à avenida. A calçada se alarga no próximo quarteirão de edifícios, e

uma sequência mais densa de camelôs segue a perder de vista, enquanto uma fileira de

Então o caminhão da Limpurb passa, marcando o fim do trabalho nesta rua, neste

dia. Alguns dão o trabalho por terminado; outros seguem para outras ruas. De uma rua

residencial a outra o catador precisa por vezes cruzar uma avenida, um canteiro central,

subir e descer guias altas. De carrinho já pesado, retira duas tábuas de madeira que carrega

amarradas ao fundo do dispositivo e constrói com elas duas pequenas rampas, do asfalto

ao nível da calçada. Passa com as rodinhas do carrinho, depois amarra novamente as tábuas

e segue seu rumo. Ao fim da noite, já de carrinho cheio, inicia sua longa e lenta trajetória

de retorno para casa. Cruza no caminho com vários catadores. Estão no mesmo movimento.

Nessas horas da madrugada não há mais pista nem calçada: a rua é só sarjeta.

Na tarde do dia seguinte, o caminhão que vem da usina de reciclagem que fica pra lá de

Valéria o encontra em algum lugar da Calçada depois de um telefonema. A enorme pilha

compactada e cuidadosamente amarrada no carrinho – material de três a cinco dias de

coleta – é pesada na hora e lhe rende algum dinheiro. Um ciclo se fecha. O homem segue

dali, pelo Comércio, rumo à Contorno, que lhe levará à cidade alta e sua linha azul, para

uma nova noite de trabalho.

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carros estacionados ocupa a sarjeta. O homem e a mulher se juntam a um grupo de

pessoas que caminham ao lado da fileira de carros, expandindo a sarjeta neste ponto

para o meio da pista. Uma faixa inteira é tomada e o fluxo de veículos, com isso,

também se concentra e fica mais lento. Enquanto isso, a calçada se adensa de gente

entre os camelôs e os carros estacionados, em meio ao som de um vendedor que

anuncia em auto-falante as maravilhas do óleo de babaçu para dor nas pernas e dor

na coluna. Entre um carro e outro um pedestre escapa da calçada para a pista. Depois

outro, como se a calçada, de tão cheia, transbordasse por estas fissuras da barreira

de carros. Adiante, um intervalo se abre na fileira de carros; o homem e a mulher

parecem se direcionar rumo à calçada, mas um grupo maior de pedestres surge

sem deixar espaço e faz suas trajetórias se deslocarem rumo à pista novamente, já

ao lado de uma nova sequência de carros. Neste momento o homem desacelera; a

mulher se aproveita e toma à frente para depois de dois carros, numa nova abertura,

conseguir penetrar à calçada. Ele agora vai atrás, descendo a ladeira e carregando

seu tabuleiro entre as mesas dos camelôs e uma linha de pedestres que sobem pelo

canto da calçada limitada pela parede de carros. Ela pára subitamente para ver um

conjunto de talheres, ele desvia pela esquerda; troca o tabuleiro de braço e o corpo

agora se inclina para o outro lado. Neste momento um carro embica repentinamente

sobre a calçada para estacionar. Seu corpo, levado pela gravidade, apenas desvia

para a direita e o braço solto balança mais aberto para equilibrar. Três meninas

subindo lado a lado sugerem uma barreira à sua frente e ele desvia agora à esquerda

pelo limite da calçada, levantando o tabuleiro entre o muro-humano e um carro, mas

isso o leva de encontro a um casal, que o faz desviar mais uma vez, apenas para

continuar num ziguezague dinâmico, mas quase natural. Uma corrente de vento de

repente o atravessa: um momento sem pedestres, sem carro, sem camelô. O corpo

não pára, segue no seu gingado, mas a cabeça se ergue e olha o visual, agora livre,

que se abre nesta tarde de segunda-feira ensolarada para o mar da Baía de Todos os

Santos. Logo à frente a Praça Castro Alves se apresenta, dividindo o declive do aclive

que o levará ao Pelourinho, onde venderá seus doces.a

>> #2.3 Anastácia

Hoje ela caminha festeira, dançando com os braços estendidos com se estivesse

num desfile da Marquês de Sapucaí. Atravessa o Corredor da Vitória de um lado a

outro numa trajetória errática como se não se importasse com os carros. É início de

noite e o trânsito lento favorece sua performance. Seu caminhar dançante se limita

ao asfalto, parecendo ignorar os limites de uma mão e outra. Nunca pisa na calçada.

Todos a estão observando e ela sabe muito bem disso. Seus olhos brilham deslumb-

rados e eufóricos. Esse é seu momento de glória. Distribui beijos na banca de jornal,

rebola para os motoristas de taxi que a provocam; em resposta, balança a cabeça,

aponta o queixo para o alto e canta para os céus, rodando duas vezes com os braços

abertos, no que vai parar no meio de uma pista. O carro logo atrás buzina. Parado

pelo congestionamento, ela vai faceira até sua janela constrangê-lo na frente de toda

a rua enquanto ele sobe o vidro. O motorista agora finge que não é com ele, apenas

para ouvi-la gritar debochada pequenas provocações. A faixa que envolve sua cabeça

hoje é verde e amarela e ela segue cantando dona da rua, desafiando qualquer um.

Recebe assobios e novas provocações de um guardador de carros. Mais uma vez

empina o nariz e gira desfilando de braços abertos; gesto alucinado que desacelera

o dominó de carros de um lado a outro da pista.

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Hoje ela caminha apressada, camiseta verde, bermuda jeans e chinelo. Caminha

pela sarjeta, na contramão de uma das pistas no Corredor da Vitória. Mesmo apres-

sado, o caminhar carrega um rebolado forçado e duro. É meio de tarde, uma mão

segura a bolsa de pano, e o braço livre balança com força pra frente e pra trás acom-

panhando o ritmo dos passos com todos os dedos da mão esticados. Caminha ap-

enas pelo asfalto, falando sozinha e com olhar nervoso. Uma mulher bem vestida, de

óculos escuros, atravessa a rua e abre a porta de seu carro estacionado na trajetória

da sarjeta dela. Ela se desperta, estica o braço livre e apressa o passo, chamando:

- ô lôra, lôraa, me dê uma ajuda pra comprar um lanche pra mim. A mulher abre a

bolsa e lhe dá algum dinheiro. Ela agradece e segue. Apressa o passo novamente e

mergulha no seu transe. A faixa que envolve sua cabeça hoje é azul. Continua seu

caminho entre os carros falando sozinha, em linha reta.

Hoje ela segue aflita pelos cantos e manca de um pé, que está enfaixado. Mesmo

assim caminha pela sarjeta, na mão dos carros. É cedo e ela passa mostrando o pé e

pedindo dinheiro ao grupo de pessoas paradas num ponto de ônibus no Corredor da

vitória. Uma pessoa dá algumas moedas. Caminhando lentamente segue até a banca

de jornais arrastando o pé, e depois até a banca de frutas, sempre pela sarjeta, ped-

indo dinheiro a quem pareça ter. O pano que envolve sua cabeça hoje é verde e seu

olhar é angustiado. Segue mancando de chinelos, sem rebolar.

Hoje ela segue tranqüila, passos leves, expressão dócil e quase serena. Caminha

pela sarjeta na mesma mão da pista, os braços soltos e um leve cantarolar chamam

alguma atenção dos passantes. É meio dia e ela caminha com um rebolado largo

pela Av. Euclides da Cunha. Sobe a calçada e, gesticulando, educadamente pede

dinheiro a uma senhora. Recebe. Continua seu caminho, atravessa a rua rebolando

e se dirige ao caixa da padaria, onde uma mulher está pagando sua conta e pede a

ela também um dinheiro. Recebe. Volta feliz para a rua, e segue suavemente por sua

sarjeta. Dois homens uniformizados parados à porta de um prédio olham pra ela e a

provocam com palavras e gestos; ela apruma seu rebolado e assopra beijos aos dois,

empinando depois o queixo para o alto e cantarola mais forte. Um pouco adiante

se debruça ao vidro de um carro aberto, onde uma mulher espera alguém: - Lôra,

me dê uma ajuda pra comprar um sanduíche. E Recebe. O pano que se enrola sobre

sua cabeça hoje é prateado com pontos brilhantes. Segue entre os carros na mão da

pista, no seu passo dançante a cantar.

Hoje ela passa pendurada à porta de um ônibus com o corpo pendente e um

braço esticado, cantando alto. O porteiro e o guardador de carro gritam uma provo-

cação; mais à frente o povo da banca de revistas faz o mesmo; Uma senhora grita:

desce daí, menina, você vai se machucar. Ela apenas dá tchau e distribui beijos. O

pano da cabeça é amarelo e a expressão jocosa. Lá na frente ela salta e já aborda

uma mulher loira saindo de um carro.

Hoje cruzo com um homem parecido com ela, feições tristes e olhar amargo e

sem luz. Não há pano na cabeça e ele anda na calçada, mirando em nada e fechado

em si mesmo. Hoje ela é ele.

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pausa reflexiva: sobre os usos da sarjeta

Desde que aportou na cidade e começou a perambular por suas ruas, uma das primeiras características

que chamou a atenção do cartógrafo foi uma inter-relacionada combinação entre caixas de rua delgadas,

calçadas muitos estreitas, carros estacionados sobre as calçadas – às vezes obstruindo completamente a

passagem, sem nenhum pudor – e em contrapartida, pedestres caminhando na pista em meio aos carros;

isto não apenas em vias locais, como também em ruas e avenidas de tráfego intenso.

Um certo choque inicial levava o cartógrafo, por influência de sua cultura urbana prévia, a indignar-se

com esta situação (o que parcialmente permanece, especialmente com relação aos automóveis que obstruem

a passagem nas calçadas), sentimento este que o tempo do cotidiano foi atenuando ao que passou assim,

não apenas a aceitar esta situação, como a adaptar-se a ela. Se inicialmente o cartógrafo-pedestre tentava

permanecer na calçada, comprimindo-se entre automóveis intrusos, troncos de árvore largos, camelôs,

olhando sempre para o chão para não torcer o pé em buracos, ou pisar em fezes de cachorro, aos poucos

começou a imitar os soteropolitanos e caminhar também pelos bordos da pista. Esta experiência lhe

remeteu diretamente à sua familiar experiência de pedalar por esse mesmo espaço. O cartógrafo percebeu

que, mesmo em velocidades diferentes, esta tarefa, tanto quanto pedalar, exigia um estado de atenção

dos sentidos, agora liberados da preocupação com os perigos do chão, para os acontecimentos ao redor,

especialmente aos automóveis e ônibus em movimento. E Isto implicava, tanto quanto o pedalar, uma

mudança de postura: uma certa imposição de presença, algo como deixar o corpo expressar que não apenas

está ali e precisa ser visto, como reivindica respeito e legitimidade naquele espaço. Alterou-se também sua

relação com os pedestres quando pedalava por este espaço que, de intrusos, passaram a ser respeitados.

Pouco a pouco a compreensão deste tipo de arranjo, ou modus operandi da relação dos habitantes da

cidade com seus espaços de circulação passou a interessar cada vez mais o cartógrafo. Esta que podemos

chamar de uma cultura da sarjeta – pois culturalizou-se – parece ser uma das facetas mais fortes dos

usos cotidianos das ruas da capital baiana. Esta zona de limites imprecisos, localizada entre a calçada

e a pista, mas que é também um pedaço de cada um deles, e a partir da qual automóveis ocupam as

calçadas e pedestres ocupam a pista, revela-se essencial para o funcionamento da cidade como ela é. Em

outras palavras: uma certa “promiscuidade” saudável dos soteropolitanos com o espaço da sarjeta parece

ser fundamental para tornar a coexistência entre velocidades e modos de usar as ruas viável diante das

limitações de espaço ou precariedade de seus caminhos.

A sarjeta, por não constituir uma zona de direitos – não possui o estatuto da calçada ou o código de

trânsito da pista -, configura-se como campo de disputa permanente; todos podem reivindicar um uso para

ela. Assim, os motoristas, de posse de seus veículos (mais fortes), diante da falta de espaço para seu volume

cada vez maior nas ruas, acreditam que têm o direito de estacionar onde bem entendem já que não há

estacionamento adequado quando precisam. Os pedestre, em contrapartida, diante da precariedade de suas

calçadas e das barreiras de automóveis estacionados e outros obstáculos, acreditam que têm o direito de

caminhar onde bem entendem, inclusive no meio da rua, fazendo com que, em determinados momentos, filas

de automóveis esperem sua passagem. Além de pedestres e veículos, ainda aproveitam-se desta condição

todas aquelas atividades que não são de circulação, como camelôs e suas barracas, moradores de rua; ou

que a circulação está associada a outra atividade como ambulantes com seus carrinhos ou personalidades

excêntricas; ou ainda apenas uma circulação mais lenta e alternativa como a dos bicicleteiros e skatistas.

A sarjeta como espaço de uso parece estar presente sempre que nas ruas há circulação de veículos e

pedestres. Assim, podemos pensar que se nas ruas de pedestres no centro, tomadas por camelôs, há um

intenso estado de rua, mas não há sarjeta, nas outras ruas onde coexistem diferentes modos de circulação,

é pela sarjeta que podem se instaurar estados de rua; justo quando os espaços da calçada ou da pista

deixam de ser apropriados apenas para a circulação e passam a abrigar outros tipos de atividade. É então

de acordo com a intensidade dessas atividades que o espaço plástico da sarjeta se expande ou se contrái.

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Podemos pensar também especificamente na relação entre a sarjeta e as atividades itinerantes de sujeitos

ambulantes. Se nas proximidades de um ponto nodal de transporte, como vimos no centro, o volume de

pessoas já é extremamente concentrado, as atividades marginais que se inserem ali são majoritariamente

de comércio veloz e barato. A itinerância neste caso é desnecessária e nem há espaço para ela. Por outro

lado, parece ser essa itinerância, de sujeitos ambulantes variados, que carrega um pouco daquele estado

de rua consigo, em vetores rizomáticos pela cidade, nos bairros, nas ruas residenciais e de comércio local,

e contribui para instaurá-lo por onde passam, mesmo onde o fluxo de automóveis é mais intenso. Ou seja,

é pela expansão do espaço da sarjeta, que alguns sujeitos ambulantes ativam um estado de rua por onde

passam.

É desta forma que a sarjeta converte-se no espaço através do qual se infiltram, mesmo nos territórios mais

luminosos, aquelas atividades marginais e mais opacas, ou apenas mais lentas, construindo rugosidades

humanas que promovem desacelerações nos fluxos da aceleração contemporânea. É neste espaço, não

exclusivo a nenhum modal ou função, que essas diferentes formas de ocupar o espaço, em suas velocidades

variadas, colidem, instaurando uma esfera política no cotidiano das ruas.

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4. Movimento como desvio

Microdispositivos sem legitimidade discursiva, técnicas estranhas às luzes[...]

Michel de Certeau, A invenção do cotidiano

Sujeitos ambulantes

Até aqui foram exploradas as possibilidades contidas na ideia e na prática do movimento

como ferramenta para buscar outros modos de ver e de fazer pesquisa no campo urbanístico.

Quando essas ferramentas foram direcionadas para a cidade, não foi difícil encontrar modos

próximos de instrumentalização do movimento nas práticas urbanas cotidianas de

determinados sujeitos. Com isso, as ruas, espaços de movimento, mas também de expressão

do cotidiano, demonstraram ser um rico campo de observação e experimentação dos usos do

movimento como prática desviante. Ao nível do chão da cidade, encontram-se indivíduos

cujas práticas carregam um tipo de conhecimento específico, dotado de um potencial de

ressignificação e reconfiguração dos territórios estabelecidos (GUIDI, 2008). As práticas

desses sujeitos e as relações que estabelecem com os espaços e as múltiplas forças que o

atravessam são ainda um campo aberto e pouco explorado por urbanistas e demais

investigadores do urbano.

Na busca de aliados para esta exploração cartográfica deparamo-nos com um grupo

heterogêneo de indivíduos que na rua espacializam atividades variadas, mas que carregam em

comum o fato de realizarem suas atividades em movimento, como catadores, vendedores

ambulantes, moradores de rua, “bicicleteiros”45, “loucos”. Indivíduos apresentados aqui por

arquétipos comuns, mas que a partir do contato com o cartógrafo revelam suas singularidades.

Chamemos este grupo de sujeitos ambulantes: indivíduos que trabalham, habitam,

sobrevivem, se expressam ou simplesmente se deslocam pelas ruas instrumentalizando o

movimento para o desvio de dispositivos de repressão, padronização, captura ou segregação

45 Por “bicicleteiros” refiro-me ao ciclista comum, que desloca-se por bicicleta em seu cotidiano disputando espaço nas ruas com automóveis, ônibus e motos; diferente do ciclista “atleta” ou “de fim de semana” que busca ciclovias, parques e orlas para treinar ou fazer esporte. É claro que não há uma distinção precisa entre “categorias” de ciclistas. Assim, o ciclista atleta pode também ser bicicleteiro, mas nem todo bicicleteiro é atleta. Se a figura do ciclista está associado a um imaginário atlético dos aficcionados pelo esporte e pelo veículo – o que faz com que pessoas não-atletas ou sem aptidão para os esportes sintam-se distantes desta realidade – o bicicleteiro é o ciclista – preguiçoso, amador, desengonçado e inconsequente – que qualquer um pode ser. Grande parte dos bicicleteiros das grande cidades são indivíduos de renda baixa, com bicicletas simples, que utilizam este veículo como alternativa ao caro e ineficiente transporte público. Talvez parte deles desejem um automóvel. Cresce também o número de bicicleteiros de renda média e alta, que escolhem a bicicleta como meio de transporte, mesmo possuindo ou podendo adquirir um automóvel, defendendo a legitimidade deste modo alternativo de deslocamento.

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pelas vias hegemônicas dos espaços, tempos e subjetividades. Pode ser válido recorrer aqui à

noção de sujeito como proposta por Agamben (2009):

Sujeito seria o que resulta do corpo-a-corpo, da relação entre os homens e os dispositivos. Não há dispositivo sem processo de subjetivação. Sujeito teria então um duplo significado: de uma parte, é o que leva um indivíduo a ligar-se e a assumir uma individualidade, uma singularidade; mas também significa, sujeitamento a um poder externo. (p. 40-41)

Num sentido complementar, Ribeiro (2010) aponta para a necessidade de se

complexificar leituras conservadoras e moralistas a respeito das práticas urbanas a partir da

ideia do “sujeito corporificado”, envolvido em jogos onde estão implicados “a fala e o gesto, a

acomodação e a insubordinação, a manipulação de classificações sociais e a ação que se

desenvolve nas fronteiras entre o visível e o invisível” (p. 31).

O sujeito corporificado, ao desafiar controles da experiência urbana e a burocratização da existência, alcança o direito à definição de sua forma de aparecer e acontecer. [...] Esse sujeito transforma-se em acontecimento, onde e quando são esperados o seu silêncio e o apagamento de sua individualidade. (p. 32)

Movimentando-se entre singularidade e sujeitamento, visibilidade e invisibilidade, os

usos ambulantes das ruas parecem desviar em algum grau o significado sedentário do solo

urbano enquanto propriedade, atualizando-o enquanto suporte para atividades múltiplas46.

Tais atividades, vistas em conjunto, mas compreendidas em sua heterogeneidade, configuram

uma fina camada (imperceptível para alguns olhares demasiadamente encapsulados) que não é

exterior, nem paralela aos usos consensuais da cidade, mas infiltra-se nesses, dotada de uma

mobilidade e artimanhas próprias, em movimentos oportunistas de entrada e saída. Suas

práticas marginais constituem assim alternativas, seja por que são de fato ilegais ou porque

não obedecem a princípios morais sedimentados na sociedade, mas que resistem a pressões e

repressões por meio de embates e conflitos, ou simplesmente desviam, tornam-se invisíveis, e

assim lutam pelo direito de existir.

A espacialização desse recorte ambulante da cidade, diferentemente de outras situações

usualmente interpretadas como informais, como as favelas ou agrupamentos de camelôs47,

não envolve tanto a ideia de construção de um lugar, de um espaço diferenciado, mas de

territorialidades. Estas são facilitadas, geralmente, por um componente técnico, ou “uma 46 Se consideramos o atual grau de dominação da circulação automotiva sobre o espaço das ruas, os automóveis particulares convertem-se em “lotes em movimento” acarretando uma privatização das ruas e subtração de espaço à esfera pública, o que fortalece ainda mais a ideia de uso do solo como propriedade privada. 47 “Camelô” é a denominação popular do comércio informal de rua em várias cidades do Brasil: aquelas bancas, geralmente desmontáveis, que constituem ponto fixo (ainda que carregado de provisoriedade) e que majoritariamente apresentam-se em agrupamentos nos locais de grande circulação de pedestres. Apesar de seu caráter fixo e de “ponto”, são chamados também de comércio ambulante. Os vendedores ambulantes mencionados aqui são de fato ambulantes. Não constituem pontos, mas percursos.

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tecnicidade que enfrenta engenhos da ação dominante” (RIBEIRO, 2010), mesmo que de

forma precária. São Artefatos desmontáveis e transportáveis, como suportes, barracas ou

veículos que possibilitam tanto o deslocamento quanto o desenvolvimento de suas atividades,

expressões de uma singular política de habitabilidade (entendendo a ideia de habitar num

sentido ampliado) dos espaços públicos, e mais especificamente da rua. Um instrumental

flexível, criado para enfrentar barreiras e normas, ocupar os espaços vazios ou aqueles de

tráfego intenso. Estes sujeitos apropriam-se da infraestrutura da cidade de formas muitas

vezes inesperadas, produzindo territorialidades em constante transformação, mas subtraídas

ao planejamento urbano pelas políticas de Estado (Talvez por que este só consiga operar sobre

aquilo que pode incorporar sob sua lógica). Deslocar-se, ocupar, transportar, esconder-se,

desviar, chamar atenção, fugir, selecionar, vender, são algumas das ações que articulam esses

territórios moventes.

Para a política de subjetivação dominante, trata-se de reduzir a urgência e a

inventividade dos atos desses sujeitos a apenas mais uma das camadas do chamado “caos

urbano”, de modo que suas trajetórias acabam por somar-se ao imenso substrato de um corpo

social (quase) invisível para a cidade sedentária. Mas estas mesmas trajetórias são também

simultaneamente produtoras de uma fluida constelação de forças que, agindo conforme uma

micropolítica do cotidiano, transformam e subvertem a seu favor aspectos objetivos e

subjetivos da paisagem da cidade nômade.

Seria possível vislumbrar a partir de seus atos outros devires para a cidade, diferentes

daquele produzido pelos luminosos informes publicitários e perspectivas à olho-de-pássaro de

projetos de renovação urbana? Certamente um devir-favela não seria difícil de imaginar; mas

por que não um devir-nômade ou um devir-rua? Guatarri (1992) chama atenção para o

potencial transformador das situações aparentemente caóticas e estranhas ao habitual: A experimentação social visa espécies particulares de “atratores estranhos”, comparáveis aos da física dos processos caóticos. Uma ordem objetiva “mutante” pode nascer do caos atual de nossas cidades e também uma nova poesia, uma nova arte de viver. Essa “lógica do caos” pede que se examinem bem as situações em sua singularidade. Trata-se de entrar em processos de re-singularização[...]. (p. 175)

Lentidão como cultura menor

Sujeitos ambulantes parecem estabelecer uma relação muito particular entre tempo,

movimento e espaço que seria interessante explorar. Eles são antes de tudo lentos, mas não há

nenhuma proximidade com um sedentarismo aqui. Trata-se de uma lentidão relativa: a fala

rápida do camelô e a agilidade das manobras de vendedores ambulantes não estão com a

velocidade, mas com a lentidão; o “homem lento” (SANTOS, 2008) nas ruas cada vez mais

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congestionadas, pode ser mais rápido que um automóvel; Bicicleteiros e motociclistas, por

sua esbeltez e velocidade potencial maior que a dos pedestres acabam saindo-se melhor, mas

difere entre os dois o tipo de engajamento corporal na ação – tração humana dos primeiros,

tração mecânica dos segundo. Mesmo cada vez mais devagar (ou quase parando), é o

automóvel, assim como a motocicleta (esta ainda rápida), e todo o conteúdo simbólico que os

envolvem que remetem à ideia de velocidade e aceleração.

Assim, é preciso estabelecer algumas distinções. A lentidão para Milton Santos não se

opõe à rapidez, mas à “vertigem” da aceleração contemporânea (p. 28). Disto resulta que ela

não seria uma qualidade da ação nos tempos racionalizados dos fluxos econômico-simbólicos

globalizados (apesar de relacionar-se com eles). Ao contrário, remeteria a temporalidades

outras, mais ligadas à riqueza da experiência eminentemente corporal de um movimento

heterogêneo que tece relações menos mediatizadas com o espaço. A vertigem, por sua vez,

seria a experiência nos tempos da aceleração, tempo métrico do imaginário técnico-científico

do progresso e da velocidade. Uma experiência extensiva mais do que intensiva, com níveis

de mediação (mais capsulares) onde os corpos (mais adormecidos) deslocam-se na velocidade

mecânica e da tecnologia da informação.

Milton Santos (2008) defende que na lentidão dos pobres, habitando os espaços opacos

das cidades, existe uma riqueza que levaria a uma inversão da ideia de que os ricos, detentores

da velocidade, seriam os fortes. Para o geógrafo, os “homens lentos”, por experimentarem a

cidade, aparentemente de forma menos encapsulada, com menor mediação, “acabam sendo

mais velozes na descoberta do mundo” (p.80).

Creio que na cidade, na grande cidade atual, tudo se dê ao contrário. A força é dos “lentos” e

não dos que detêm a velocidade [...]. Os que, na cidade, têm mobilidade – e podem percorrê-la e

esquadrinhá-la – acabam por ver pouco da Cidade e do Mundo. Sua comunhão com as imagens,

frequentemente pré-fabricadas, é sua perdição. [...] Os homens lentos, por seu turno, para quem

essas imagens são miragens, não podem, por muito tempo, estar em fase com esse imaginário

perverso e acabam descobrindo as fabulações. (SANTOS, ibid, p. 80)

O autor prossegue, defendendo que

Para os [...] pobres de um modo geral, o espaço “inorgânico” é um aliado da ação, a começar

pela ação de pensar; enquanto a classe média e os ricos são envolvidos pelas próprias teias que,

para seu conforto, ajudaram a tecer: as teias de uma racionalidade invasora de todos os arcanos

da vida, essas regulamentações, esses caminhos marcados [...] (p. 81)

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No entanto, as políticas de subjetivação mercantis vêm conquistando novos territórios,

penetrando os espaços opacos e já não distinguem mais classes. Não se pode mais dizer que a

“comunhão com as imagens” seja privilégio dos que têm poder financeiro. Às vezes a força

de modelização é até mais cruel com os homens lentos de Santos que acabam sujeitando-se

mais facilmente à alienação das imagens e à escravidão do crédito para alcançar também a

modernidade prometida. Talvez seja preciso, na atual complexidade dos processos

contemporâneos, desvincular os homens lentos de uma estratificação econômica e pensar a

lentidão como prática de uma cultura menor48; enquanto processo de singularização em meio

à dispositivos de sujeição generalizantes. A lentidão estaria associada a uma forma de relação

com a cidade, que articula os espaços numa temporalidade que não se alinha à racionalidade

dos fluxos capsulares. Milton Santos já fornece curtas pistas rumo a este entendimento:

A chegada incessante de migrantes à cidade aumenta a variedade de sujeitos [...]. A temporalidade introjetada que acompanha o migrante contrapõe-se à temporalidade que, no lugar novo, quer abrigar-se no sujeito. Instala-se assim um choque de orientações, obrigando a uma nova busca de interpretações (p. 81)

Seria o caso de pensar numa coexistência de vetores na economia dos desejos. Não é o

caso de dissolver diferenças entre estratos sociais mas de se pensar que entre uns e outros, na

elaboração de suas subjetividades há processos de sujeição e de singularização. No âmbito das

questões investigadas aqui, poderíamos dizer que uns sujeitam-se à experiência da rua,

encapsulando-se mentalmente sem possibilidade de concretizar seu desejo de encapsular-se

materialmente. Outros singularizam esta experiência, realizando-se ali e negam a aceitar os

exageros da culturalização do medo e da violência que apontam um refúgio seguro numa vida

capsular. Esses fluxos desejantes os atravessam mas não encontram onde “grudar”. Outros

ainda têm possibilidade de adquirir um automóvel, ou dois, comprar uma casa ou apartamento

num condomínio auto-suficiente, adotam um estilo de vida em variados níveis de

encapsulamento e assim acreditam se realizar. E ainda há aqueles em que esses desejos se

alternam, mudam com um trauma e retornam no cotidiano.

Neste sentido, sujeitos ambulantes com sua lentidão têm antes de tudo uma pulsão

desviante. Desviam de objetos e de fluxos, de dispositivos objetivos, mas também subjetivos e

ao contrário de uma velocidade movida à tecnologia, engajam-se em movimentos apoiados

por técnicas alternativas, geralmente segundo a lógica da gambiarra. Com isso, encontram

48 Aqui preferimos utilizar o termo “menor” ao invés de “popular”, que está por demais associado às expressões regionais e vernáculas, sendo inclusive alvo de políticas públicas específicas. A ideia de menor aqui não se refere a uma questão de escala (ainda que às vezes também se aplique), mas aproxima-se do sentido colocado por Deleuze e Guattari quando falam de uma literatura menor: “Uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior” (DELEUZE e GUATTARI, 1977, p. 25).

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uma autonomia relativa para criar suas próprias entradas e saídas no jogo de forças do espaço

urbano.

Desvio de trajetória e desvio de função

Pensemos então: Sujeitos ambulantes realizam suas atividades em movimento. Este

movimento é qualificado numa temporalidade que não é a da velocidade, mas da lentidão.

Esta lentidão no movimento é instrumento para o desvio. Mas desvio de quê e o que podemos

entender por desvio?

Dissemos anteriormente49 que se trata de dispositivos que orientam, capturam,

determinam, interceptam, modelam gestos, condutas, opiniões e discursos. Sem dúvida, não é

possível apontar um “inimigo”, o que nos leva a pensar em escalas variadas de desvio: desvio

da separação entre circular e realizar outras atividades (ao mesmo tempo), assim como desvio

dos modos de circular largamente disseminados; desvio de um emprego formal ou do

desemprego; desvio de fiscalização ou repressão por desenvolver uma atividade não

formalizada ou mal vista; desvio da noção de propriedade privada do solo para habitação ou

negócio; desvio de padrões e de consensos; desvio de obstáculos concretos.

É preciso ter claro, entretanto que, mesmo desviando de alguns dispositivos, estes

indivíduos permanecem sujeitados a outros e ainda ligam-se a novos: como (no caso de

catadores de recicláveis e vendedores ambulantes) atravessadores, fornecedores e

compradores do “circuito inferior” da economia (SANTOS, 2004); o imaginário estabelecido

sobre uma espécie de “estado de direito” do automóvel sobre o espaço das ruas; ou os

próprios artefatos técnicos que utilizam para facilitar suas atividades que lhes determinam

também limites.

Podemos falar então, para o caso dos sujeitos ambulantes, em duas modalidades mais

frequentes de desvio, pelo que pôde ser observado em campo: o desvio de trajetória e o

desvio de função. O primeiro mais relacionado ao próprio movimento e o segundo ao campo

dos significados, ainda que ambos estejam profundamente interligados.

• Desvio de trajetória:

Esta modalidade de desvio, ação no âmbito do próprio percurso, está ligada a uma

temporalidade que Santos (2008) e Certeau (2009), em contextos diferentes, relacionaram ao

eixo das sucessões, ou a um tempo diacrônico, distinto do que o primeiro chama do eixo das

coexistências e do tempo sincrônico. De Certeau fala de um tipo de trajetória que articula uma

sequência de posições no espaço, mas que só pode ser produzida por operações, 49 Ver nota 16 no tópico “usos opacos em espaços luminosos” do capítulo 1.

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performances, o que implica “uma prática indissociável de momentos singulares e ocasiões”

(p. 93). Ainda assim, podemos falar de diferentes durações, desde um tempo longo – uma

trajetória de vida que se desvia num determinado momento ou que segue desviando de

determinações mais amplas – a um tempo curto – a trajetória de um dia, ou aquela percorrida

pelas ruas principais de um bairro, onde se desvia de objetos, de olhares e julgamentos, ou de

um modo entendido como “o certo” de realizá-la. Alguns sujeitos ambulantes parecem optar

pela vida nas ruas como um desvio de trajetória de vida, e seus desvios no tempo “curto”

seriam apenas consequência daquele desvio mais profundo; outros estão ali desviando em

curtas trajetórias cotidianas apenas como opção econômica ou como opção por um modo de

circular.

Este tipo de desvio parece configurar-se também como uma forma de esquiva de

determinações do mercado e da lógica de circulação nas ruas. A ideia de esquiva, geralmente

associada a uma espécie de reflexo ou movimento instintivo, mas desenvolvida enquanto

“arte” no jogo de capoeira, pode nos ajudar a entender melhor a ação do desvio por suas

semelhanças e diferenças. Assim Fonseca (2009) descreve a esquiva:

[A esquiva] representa dentro deste vasto repertório [de movimentos da capoeira], um movimento de defesa, mas uma defesa situada num intermezzo entre defender-se e preparar-se para o próximo ataque. [...] Alguns mestres da capoeira associam este movimento à ideia de receber o golpe, curvar-se a ele e não ir contra ou enfrentá-lo de imediato; uma espécie de estratégia de luta, já que em determinados momentos já não é mais possível atacar, o que resta é assimilar aquela informação e a partir dela abrir novas possibilidades de negociação e jogo. (p. 30; grifos nossos)

O desvio e a esquiva parecem então remeter à resposta de um corpo a uma força

externa. Compartilham também o princípio de um movimento que, a partir de um

determinado impedimento ou constrangimento, não oferece resistência confrontando-o

frontalmente, mas olha ao redor, buscando abrir novas frentes de possibilidades ao praticante.

Talvez a diferença esteja na relação destes movimentos com o espaço. Se a esquiva elabora-se

na dinâmica da luta (em forma de jogo) pela ocupação de um mesmo espaço, por meio de um

vai e vem entre ataque e defesa, o desvio, por mais que possa apresentar-se também como

uma defesa que já é ataque, realiza-se num vetor que segue, não pára e não volta ao espaço

anteriormente ocupado, ao menos não na mesma trajetória.

O desvio está sempre ligado à ideia de caminho, percurso, trajeto que pode ser realizado

por um objeto ou por pessoas, mas que, por uma intenção ou por força das circunstâncias,

muda de direção, seja de forma abrupta ou suave. Se há um mapa sobre o qual foi traçado um

trajeto a ser reproduzido, ou um espaço por onde delimitou-se o percurso que um fluxo deve

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seguir, o desvio é imprevisível a quem os pré-determinou; pode acontecer a qualquer

momento (tempo) e em qualquer ponto (espaço). É antes de tudo desobediência e

reivindicação de libertação daquele que o realiza a uma ordem imposta. Mas também pode ser

realizado, mesmo por aqueles que nunca tiveram a intenção de sair do caminho, em nome do

instinto de sobrevivência, quando algo que ameaça a própria vida surge à frente.

• Desvio de função:

Este tipo de desvio relaciona-se aos objetos e espaços e especialmente aos usos

previstos e aqueles diversos que se faz com eles, atualizando-os. Kasper (2006), ao investigar

a ação de “habitar a rua” aponta o protagonismo da prática do desvio de função, uma operação

“pela qual o uso previsto para os lugares, objetos, e até as instituições, é subvertido” (p. 14).

Os situacionistas50 eram determinados defensores desta modalidade de desvio e

explicavam, por exemplo, que a natureza de suas práticas consistia não na produção de

objetos e obras mas em seus usos desviantes: “não pode haver pintura ou música situacionista,

mas um uso situacionista desses recursos” (SITUACIONISTA, 2003, p. 66). Num boletim

Situacionista, Kotányi e Vaneigem defendiam um programa de trabalho à luz do desvio no

urbanismo:

O exercício elementar da teoria do urbanismo unitário51 será a transcrição de toda mentira teórica do urbanismo, desviado no intuito de desalienar: a cada instante temos de nos defender da epopeia dos trovadores do condicionamento, temos de inverter-lhes os ritmos. (KOTÁNYI e VANEGEIM, 2003, p. 141; grifo meu)

Neste caso, contra os condicionamentos promovidos por um urbanismo totalizador, os

situacionistas, sem qualquer credencial, conferem a si mesmos (e a qualquer um) o direito de

fazer um outro tipo de urbanismo sobre aquele que se impõe sobre a vida dos cidadãos,

desviando e invertendo suas determinações.

Guy Debord, o principal teórico dos Situacionistas, oferece-nos em seu “Sociedade do

Espetáculo” uma definição simples e clara do tipo de desvio que se busca aqui fazer emergir

como ato de potência. Para ele, “o desvio é o contrário da citação” (1997, p. 134), ou seja, não

50 Sobre os situacionistas ver nota 12 no capitulo 1. 51 A ideia de Urbanismo Unitário surge como uma crítica clara ao urbanismo funcionalista da Carta de Atenas, que separava a cidade por funções, mas também à separação dos saberes e à exclusividade da construção da cidade por um saber especializado. Numa de suas definições, os Situacionistas descrevem o Urbanismo Unitário como a “teoria do emprego conjunto de artes e técnicas que concorrem para a construção integral de um ambiente em ligação dinâmica com experiências de comportamento”. (Internacional Situacionista nº 1, 2003, p. 65)

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se trata de reproduzir ou utilizar algo pré-produzido a fim de legitimar uma autoridade, ou

uma condição autoral que reforça a ideia de propriedade, mas de apropriar-se como quiser,

piratear, ressignificar. No mesmo caminho, o autor prossegue: “O desvio é a linguagem fluida

da anti-ideologia. Ele aparece na comunicação sem garantir nada por si mesmo e

definitivamente” (p. 134). Debord defende ainda que o desvio é aquele que desmente toda

autonomia durável, “ação que perturba e varre toda ordem existente” e lembra que não há

existência por si mesma e que esta apenas se conhece pela ação histórica e suas sucessivas

correções.

Ambas as modalidades de desvio aqui descritas, o desvio de trajetória e o desvio de

função, carregam em comum a ideia de ação e de uso, seja do espaço, do tempo ou de objetos,

e a negação da propriedade e da ordem estabelecida. O desvio reivindica da propriedade sua

contínua abertura à apropriação pelo uso; das funções e ideias, a contínua possibilidade de

atualização; dos condicionamentos, a possibilidade de variações e inversões; das rotas pré-

determinadas, a possibilidade de fuga.

Arte-manhas e táticas

Os praticantes de desvios parecem desenvolver um conhecimento específico que se

ganha na própria experiência. Aprende-se na tentativa e no risco. Detienne e Vernant (apud

Certeau, 2009) associam este tipo de conhecimento ao que os gregos chamavam de métis, as

“astúcias da inteligência” 52:

[...] uma forma de inteligência sempre mergulhada numa prática onde se combinam faro, sagacidade, conhecimento antecipado, flexibilidade intelectual, a ‘finta’, desenvoltura, atenção vigilante, senso de oportunidade, habilidades diversas, uma experiência longamente adquirida. (ibid, p.145) A métis, este saber-fazer envolvido na prática do desvio, estabelece relação com três

elementos fundamentais, segundo De Certeau: a ocasião, os disfarces e uma paradoxal

invisibilidade.

De um lado, a métis conta com o ‘momento oportuno’ (o kairós) e o aproveita: é uma prática temporal. De outro, multiplica as máscaras e metáforas: é uma prática de dissolução do lugar próprio. Enfim, desaparece no seu próprio ato, como que perdida no que faz, sem espelho para representá-la; não tem imagem própria. [...]

Nas práticas ambulantes, o movimento é a ferramenta que conecta esses três elementos.

É o movimento que faz surgirem as oportunidades (clientes, objetos de valor, passagens

proveitosas, pequenos ganhos, relações afetivas), assim como é ele que contribui muitas vezes

52 DÉTIENNE, Marcel; VERNANT, Jean-Pierre. Les ruses de l’intelligence. La métis des Grecs. Paris: Flammarion, 1974.

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para a dissolução do próprio, geralmente associado, na lógica sedentária, à fixação. “A métis

aponta para um tempo acumulado, que lhe é favorável, contra uma composição de lugar, que

lhe é desfavorável” (p. 146). Além disso, sua realização na lentidão e no espaço liminar da

sarjeta produz uma ação perdida num tempo outro e num espaço intermediário de definições

imprecisas, que escapa ao alcance da velocidade motorizada ou mesmo à circulação

funcionalizada dos pedestres, ganhando aí sua invisibilidade.

A configuração de um próprio, mesmo que em condições ilegais ou semilegais como a

dos camelôs tem implicações mais complexas na cadeia institucional-mercadológica.

Adentra-se no campo da lei, do uso e do valor do solo, das regulamentações e normas técnicas

que de maneira geral, exigem um capital inacessível a grande parte da população, o que

inviabiliza essas práticas pelas vias legais. Com isso, a fixação num ponto (um próprio) como

fazem os camelôs estará sujeita a fiscalizações contínuas, pagamentos de propinas à corrupção

estatal, submissão a redes de poder e controle de territórios por máfias locais, etc. que

colocam esta atividade num patamar de exigência de capital já elevado, constituindo uma

posição intermediária entre um comércio fixo legalizado e um comércio ambulante (de fato).

Emergem aí as arte-manhas desses sujeitos ambulantes que desviam desses dispositivos

com seu saber-fazer que sabe aproveitar as ocasiões, lançar mão de disfarces e quando

necessário ganhar certa invisibilidade. É por isso que para De Certeau elas envolvem um

princípio de economia: “com o mínimo de força, obter o máximo de efeito” (ibid, p.145). Este

conjunto de atributos caracterizariam o que Certeau resume sob o nome de astúcias (do

francês “ruses”), e que preferimos chamar aqui de arte-manhas no sentido de uma técnica que

não pode ser reproduzida e por isso aciona tanto a criação (arte) quanto um conhecimento

corporal (manha), para enfatizar a etimologia da palavra original “artimanha” que remete

também a uma certa malícia.

Essas arte-manhas, através de seus modos de agir muito peculiares, têm a capacidade de

tirar proveito “das falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder

proprietário” (CERTEAU, 2009, p. 95). Estes sujeitos da ação anônimos alteram e produzem

espaços, ainda que com outra potência e outro modo de operar, apontando a extensão deste

domínio para além dos saberes e poderes de planejadores. De Certeau, com seu conhecido

modelo de distinção entre táticas e estratégias, nos oferece uma ferramenta oportuna para

pensar a distinção entre dois modos de operar e suas relações com o espaço.

Ainda que se mantenham dependentes das possibilidades oferecidas pelas circunstâncias, essas táticas desviacionistas não obedecem à lei do lugar, já que não são definidas ou identificadas por ele. Não são mais localizáveis que as estratégias tecnocráticas que visam criar lugares segundo modelos abstratos. Mas o que as distinguem diz respeito ao mesmo tempo aos tipos de

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operações e ao papel do espaço: estratégias são capazes de produzir, tabular e impor esses espaços, enquanto as táticas podem apenas usar, manipular e subverter esses espaços. (p. 92).

Segundo De Certeau, o que caracteriza a estratégia é a postulação de um lugar próprio, a

reivindicação de uma autonomia, uma base onde se capitaliza vantagens conquistadas, de

onde se gerencia relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças. Para o autor, este

modo de operar é o gesto típico da modernidade científica, política e militar. A tática, por

outro lado “não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é

imposto [...]. Opera golpe por golpe, lance por lance [...]. Este não-lugar lhe permite sem

dúvida mobilidade, mas numa docilidade aos azares do tempo” (p. 94-95).

Se for possível identificar um tipo de natureza comum à multiplicidade de operações

desenvolvidas pelas arte-manhas de sujeitos ambulantes, esta estaria sem dúvida mais

próxima à tática do que às estratégias (ainda que em determinados momentos elas possam se

mesclar). Suas trajetórias marginais atravessando o espaço das ruas, confrontando a

velocidade e os padrões hegemônicos de uso dos espaços da cidade, podem ser vistas como

uma série de operações táticas que desviam as funções e significados das ruas, muitas vezes

subvertendo os modos esperados ou coletivamente aceitos de utilização desses espaços. É

neste sentido que interessa aqui, muito mais do que mapear essas trajetórias ou esses usos –

que resultaria num inquérito quantitativo – investigar seus modos de operar, os conflitos que

deflagram e arranjos que se desdobram a partir daí; os estados de rua que ajudam a promover

e a potência de seus efeitos para a cidade.

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A EXPERIÊNCIA DA RUA [PARTE II]

A rua não é viagem.

Anônimo53

As investigações assim destinadas a se levar a cabo sobre a disposição dos elementos do meio urbano, em relação íntima com as sensações que provocam, não querem ser apresentadas senão como hipóteses audazes que convém corrigir constantemente à luz da experiência, através da crítica e da autocrítica.

Guy Debord, Introdução a uma crítica da geografia urbana

A primeira parte do trabalho explorou variadas possibilidades que a ideia ou prática de

movimento como desvio, proporciona a sujeitos ambulantes na cidade e como ela pode ser

também instrumentalizada no campo urbanístico ou das pesquisas urbanas. O urbanista

deslocou-se de seu lugar, tradicionalmente oculto, e se transfigurou na figura de um

cartógrafo que experimenta uma lente nômade de apreensão da cidade e o próprio movimento

como ferramenta para seus desvios metodológicos. O cartógrafo saiu então às ruas de

Salvador buscando explorar os estados de rua que poderia encontrar ali e suas

particularidades. Nessa exploração deparou-se com os usos do espaço da sarjeta nesta cidade

e as disputas que ali acontecem entre lentidão e aceleração, que apontam para um exercício

político ao nível da rua.

Esta segunda parte dedica-se à rua como experiência, ou seja, pelas possibilidades que

este espaço oferece às práticas urbanas, mas também entendido como campo de forças, onde

trajetórias heterogêneas que carregam diferentes temporalidades se cruzam, coexistem e

colidem, evidenciando ali dinâmicas de poder que se são reflexos de dinâmicas globais sobre

as cidade, são também expressões das singularidades locais, onde entram no jogo

especificidades do espaço urbano e práticas culturais “menores” presentes em cada cidade.

Esta espécie de choque – produto e produtor – de diferenças parece se exacerbar nas ruas

centrais, onde é possível ver as tensões e contradições que se estabelecem entre as

determinações de mercado, os ideários do urbanismo e as práticas sociais. Trata-se da

possibilidade de justaposições, entrelaçamentos, contaminações que abrem nesse espaço um

horizonte político que a peculiaridade da rua, não tanto como forma, mas como experiência

social espacializada parece abrigar. Assim, são as particularidades dessa experiência-rua, que

carrega uma diferença à difusa ideia de espaço público, que pretendemos investigar nesta

parte do trabalho. 53 Pichação vista num viaduto na região portuária do Rio de Janeiro, ao lado de escritos do profeta Gentileza.

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A citação inicial de Debord é tomada como uma ressalva importante para lembrar que,

considerando o caráter mutável das dinâmicas urbanas, não se trata aqui da tentativa de

elaborar uma teoria geral da rua e, tampouco de buscar uma definição de sua natureza

primeira. Buscamos apoio na perspectiva genealógica de Foucault (1998), que prefere escutar

a história a acreditar na metafísica. Ainda assim, parece ser possível destacar alguns sentidos

recorrentes nessa experiência e que diferem de outros tipos de experiência na cidade; olhar

para aquilo que fica em meio à mutabilidade do movimento nas ruas, mesmo que seja

justamente seu próprio caráter de impermanência.

O primeiro capítulo procede a uma investigação sobre a constituição histórica de uma

potência própria da rua, intensificada no processo de modernização das cidades a partir de

meados do século XIX. Buscamos aqui, com o apoio da literatura e da teoria que remetem à

experiência da rua, levantar algumas das características que conferem especificidade a essa

potência.

O segundo capítulo mostra a relação que o urbanismo, desde seu surgimento como

campo disciplinar, estabeleceu com a rua. Procuramos demonstrar como diferentes contextos

históricos manifestaram diferentes conceitos de rua que refletiam preocupações quanto a

qualidades desejáveis para esse espaço, geralmente segundo interesses hegemônicos, mas

também como reflexo do debate crítico no campo.

O terceiro capítulo constitui a tentativa de levar do campo da experiência ao campo dos

conceitos as noções de estado de rua e espaço da sarjeta investigadas nas cartografias de

campo. Associando reflexões instigadas pelo percurso cartográfico com referências teóricas

tentamos explorar diferentes aspectos de cada uma dessas noções, assim como pensar os

fatores e circunstâncias necessários para instaurá-los e construí-los.

O quarto e último capítulo busca traçar as características e condições de possibilidades

para a realização de uma política da rua. Entende-se que esta é uma prática inerente à

condição urbana, mas que um conjunto de dispositivos de poder atua de forma constante e

permanentemente renovada para deslegitimar. Neste sentido, a busca por este exercício

político, que transparece ao longo de toda a investigação, encontra neste capítulo alguns

subsídios teóricos, constituindo-se como a defesa e aquilo que o trabalho tem por objetivo

potencializar.

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... desvio ...

Brasília: indícios da sarjeta

Após a experiência nas ruas de salvador - que caminhou lado a lado com a construção de sua ferramenta

de pesquisa - o cartógrafo volta a Brasília para continuar sua investigação, agora nas ruas da cidade moderna.

O distanciamento que conquistou e a própria experiência nas ruas de Salvador transformaram o modo como

o cartógrafo se relaciona novamente com aqueles espaços e territórios anteriormente conhecidos. É possível

que essa desterritorialização associada às novas ferramentas elaboradas permita encontrar situações e

descobrir aspectos da experiência ao chão da cidade que não seriam possíveis acessar em sua condição

anterior, territorializada e repleta de vícios do cotidiano.

Já nos primeiros percursos pelas conhecidas ruas da cidade o cartógrafo-bicicleteiro sente um

estranhamento, expresso na relação do corpo-bicicleta com o ambiente. Se em Salvador as formas das ruas

pareciam comprimir num espaço denso um conjunto heterogêneo de trajetórias urbanas, o que gerava

sobreposições e interferências entre usos variados do espaço, em Brasília as circunstâncias são muito

distintas. No lugar de ruas constituídas na escala humana, experimentamos pistas largas na escala do

automóvel, todas com pelo menos duas faixas por sentido, e ao seu redor gramados arborizados com

edifícios destacados entre si e elevados do chão. Uma sensação de horizontalidade e de linearidade, que se

reflete na velocidade não apenas dos carros, mas também de ciclistas e até dos pedestres. Exacerba-se a

pressa, já que o espaço não promove atritos e barreiras ao movimento.

Mas se a rua como espaço antropológico está convencionalmente associada à forma tradicional da

caixa de rua com seus usos lindeiros, acessados por calçadas, que por sua vez delimitam o leito por onde

os veículos circulam, onde esse espaço (antropológico) pode acontecer em Brasília? Se ele não acontece,

podemos atestar desde já que Brasília não é cidade e fazer coro às críticas rasas e mistificadas que apontam

para a cidade de lugares distantes ou a partir de passagens rápidas e direcionadas tendencialmente a esta

percepção1. Mas apostando que ele exista, em que espaço poderá se materializar? Ou, mais especificamente,

onde e como podem se instaurar estados de rua em Brasília?

Se não há uma forma que limite esta experiência é possível que ela possa acontecer em qualquer lugar,

nas vias, nos gramados, embaixo de pilotis, em passagens subterrâneas. Dissolveu-se por todos os lados.

O que não significa que basta sair de um meio capsular para se deparar com ela. Pelo contrário, sem

concentração, como o cartógrafo experimentou nas ruas de pedestres no centro de salvador, o estado de

rua tende a se esmaecer, e se não há um espaço da sarjeta por onde ele se infiltre – como acontecia nas ruas

comuns de bairros centrais de Salvador –, fica mais difícil encontrá-lo. Ou ele, por obra do acaso, atravessa

o seu caminho, ou você o produz, ou é preciso procurar.

Experimentando novamente a demasiada funcionalização dos espaços da cidade e o predomínio da

aceleração automotiva nos espaços de circulação, o cartógrafo-bicicleteiro tem dificuldade para encontrar

estados de rua. A busca de aliados ou interlocutores parece ser mais importante agora do que em Salvador

e é esta a estratégia que o cartógrafo decide utilizar. Deixa de observar situações e passa a procurar sujeitos

ambulantes que, se em Salvador estavam por toda parte, em Brasília encontram-se em trajetórias dispersas

na extensão das distâncias.

1 Ver por exemplo o trabalho do antropólogo estadunidense HOUSTON, James. A cidade Modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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>> Seu Edvaldo

Um senhor estava sentado numa cadeira de praia ao lado da rede. Elogiei a escolha do local, a rede, a

sombra e a brisa. Noto em volta de uma das árvores um carrinho de mercado, quatro recipientes plásticos

grandes, baldes e alguns produtos de limpeza. Seu Edvaldo trabalha neste ponto há 36 anos lavando carros,

tapetes e sofás. Os moradores e porteiros o conhecem, por isso sente-se seguro ali. Natural de Pernambuco,

depois de tentar a sorte em São Paulo, chegou em Brasília e trabalhou como porteiro naquela mesma quadra.

Nas horas vagas lavava carros. Logo percebeu que ganharia mais dinheiro se pudesse dedicar todo o seu

tempo à lavagem de carros. “Por isso, larguei o emprego e me mudei pra rua”, diz o lavador. “Empregado

ganha muito mal... Se você gosta de trabalhar, o trabalho na rua é mais vantagem”. Trabalhando de segunda

a sábado consegue arrecadar de 1500 a 2000 reais por mês.

Tecnicidade: O carrinho é para encher os tonéis de água nas bicas dos prédios. Guarda seu material em

um quartinho cedido pelo condomínio de um dos prédios. Dessa forma, apenas o carrinho fica acorrentado

à árvore. Possui um aspirador de pó que fica exposto na passagem dos carros. Isso atrai os motoristas em

busca de uma “lavagem diferenciada”. Quando um carro sai da vaga à frente ele puxa 3 baldes e coloca-os

expostos na rua, no limite da vaga, pra reservar a sombra. Quando pergunto de onde vem a energia do

aspirador ele me aponta o caminho dos fios que seguem uma trilha remendada até a banca de jornal, do

outro lado da pista.

Pergunto se há vantagem em Brasília. Ele diz que aqui é mais fácil. Em São Paulo não é fácil montar um

ponto na rua. Tem muita concorrência, falta espaço. “Aqui tem muito espaço e qualquer um que queira

trabalhar firme pode montar um ponto como esse”, diz.

Seu Edvaldo não desvia pelo movimento. É, ao contrário, bem fixo e seu território, construído e

enraizado pelo tempo da duração, se afirma pela solidariedade que recebe. Seu ponto não tem, mas emula

a propriedade do solo e esta se legitima pelo tipo de serviço que oferece. Seu trabalho está associado ao

objeto-carro e por isso sua presença ali é oportuna para um modo de vida capsular. Assim, sua prática não

tem nada de conflitiva. Colocando-se a serviço das hegemonias, não colide com a aceleração, pelo contrário,

se coloca como subproduto. Mesmo assim, dá indícios da sarjeta em Brasília. Se em Salvador esse espaço

liminar se constrói entre as calçadas e a pista, em Brasília ela parece ter conquistado amplas possibilidades

nos extensos gramados cortados por caminhos de concreto ou trilhas de terra. Perde com isso sua força

micropolítica que reside na disputa por espaço. Em Brasília há espaço de sarjeta para todo mundo.

O cartógrafo percebe que no excesso de espaço a sarjeta em si não é mais suficiente para instaurar

estados de rua, já que nem sempre haverá colisão. Parece necessário então aguçar o foco da lente nômade

para encontrar sujeitos que de fato desviem pelo movimento. Talvez eles mostrem as operações através

das quais estados de rua podem ganhar corpo em Brasília. Deixando-se levar pelo movimento o cartógrafo

pedala sem rumo. Perde-se na amplidão do espaço em busca de algum sinal que provoque seu “corpo

vibrátil”.

Após algumas tentativas de aproximação a sujeitos mal-suscedidas, pedalando mais um pouco o

cartógrafo avista uma rede pendurada sob a sombra de duas árvores na entrada de uma quadra residencial.

A situação chama sua atenção e ele resolve investigar.

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>> O percurso

1. PADARIA

Zé do pife retira seu instrumento da sacola, assume a postura de tocador e começa a tocar enquanto

caminhamos em direção a uma quadra. Antes, paramos numa padaria na comercial, onde seu Zé costuma

sempre passar. A música de seu pífano chega antes, vai crescendo aos poucos e mudando a atmosfera do

lugar. Ele vem vindo lentamente, e chega logo depois. Pára no meio da padaria e continua a tocar, enquanto

alguns funcionários e clientes olham e outros continuam seus trabalhos. A música termina e o tocador

recebe aplausos. Um funcionário fala pra seu Zé que tem uma funcionária nova da Paraíba. Ele se empolga e

diz que é a terra de seu pai. Pergunta o nome da moça e inicia um conjunto de rimas em “repente” a partir

de seu nome. ‘Ô Clênia tu és bonita, quero crescer ao teu lado, domingo eu sonhei contigo, nos campos

verdes bordado, na palma da sua mão, nasceu um pé de saudade, ê gado ê...’. A moça se encanta e os

colegas param pra escutar. O mestre segue rimando e fala agora das outras moças, elas se avexam, e todos

riem. ‘Ê gado ê....’, e mais aplausos. Vem o cafezinho, como sempre cortesia da casa. Seu Zé proseia um

pouquinho e se despede, tem que trabalhar.

NARRATIVA CARTOGRÁFICA #3Brasília: A lentidão de Zé do Pife

Encontro Zé do Pife na rodoviária de Brasília. Um senhor baixo, de pele parda e bigode grisalho vestido

de chapéu, óculos escuros e botina preta. Carrega uma sacola de lona à tira-colo. A rodoviária, como

sempre, está lotada de gente. Tomamos um cafezinho na Dôra, onde todo mundo o conhece. Esse cafezinho

ali, cumprimentando seus conhecidos e jogando uma rápida conversa fora faz parte de seu ritual. O café,

como sempre é cortesia. E ele, como sempre dá uma palhinha. Tira um pífano da sacola e começa a tocar.

Rapidamente se junta uma pequena multidão ao seu redor. Seu Zé agradece e se desculpa, mas agora

tem que trabalhar. Caminhando de Dôra até o ponto, vejo o quanto Zé do Pife é conhecido ali, no coração

popular de Brasília, sendo chamado e cumprimentado o tempo todo. Pegamos um ônibus e saltamos na W3

Norte, na altura da 307, um ponto central a essa Asa.

Sobre a dinâmica do acoplamento (um parêntese): Zé do Pife é nome artístico deste sujeito ambulante. E meu

acoplamento a ele transformou-se, por pequenas intervenções do artista sobre as minhas ações, num mini-

documentário (amador, é claro) sobre o mestre pifeiro. Desde o início ele passou a guiar não apenas o caminho, mas

a forma como eu deveria fazer os registros. Eu achei justo. Se ele aceitou que eu caminhasse junto a ele e respondia

generosamente a minhas questões, eu aceitei também ser guiado pelo mestre e fui me adaptando à sua regência:

Você não pode fazer pergunta difícil. Começa perguntando, ‘seu Zé, o senhor toca tão bem, o seu pife é tão

afinado, como foi que o senhor aprendeu a tocar?’ e eu vou falar que aprendi sozinho. Me pergunta ‘de onde vem

o pife, ou melhor, quem inventou o pife’, e eu vou falar que foram os índios. A padaria é aquela ali. Você me faz as

perguntas embaixo daquela árvore, eu apresento a música e começo a tocar aqui, vou caminhando e entro na padaria

tocando, você pode vir me acompanhando aqui do lado. Você só está me filmando por trás. Você pode ir ali pra frente

pra pegar eu chegando.

É claro que de tempos em tempos, entre uma música e outra, enquanto caminhávamos, eu inseria algumas

questões, e a própria direção de Zé do Pife sobre o (agora) documentário sobre seu trabalho já me mostrava algo de

sua personalidade e modo de agir.

Percurso de acoplamento com Zé do Pife. Montagem sobre desenho de Lúcio Costa e foto aérea (fonte:google

earth)

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2. TRAVESSIA DAS QUADRAS

Saímos do comércio e iniciamos a caminhada pelas quadras residenciais.

Zé do Pife volta a tocar e segue caminhando lentamente. O som raro do

instrumento ecoa pelas fachadas dos blocos e vai mostrando seus efeitos:

uma criança aparece para olhar da janela no primeiro andar, mais à frente,

logo acima, outra. Enquanto percorre as quadras é isso o que vai acontecendo,

as janelas dos prédios vão ganhando vida. Zé do Pife já está acostumado.

Óia: aí tá tudo dentro de casa assistindo televisão. Se eu começar a

tocar o pife há de aparecer uma pessoa ou duas aí ó, me olhando, e

com curiosidade né. ‘Quê que tá passando na rua?’. Muita gente acha

coisa bonita o pife. [...]

Enquanto isso a vida no térreo também vai sendo afetada: pedestres,

pessoas sentadas, conversando, crianças e porteiros nos pilotis e jardins.

Zé do Pife vai passando por baixo dos prédios, caminhando pelas calçadas e

pelas pistas, atravessa uma quadra e segue em direção a outra.

Sua linguagem corporal é toda peculiar. Enquanto toca o pife e caminha,

seu caminhar é lento e leve. Jogando uma perna de cada vez para frente,

os pés quase não se descolam do chão e, como que independentes, vão

tateando suavemente a superfície antes de assumir cada pisada, já que

a posição da cabeça não permite olhar o chão enquanto toca. O ombro

esquerdo se eleva para segurar as alças da sacola de lona que carrega os

pífanos, enquanto o direito se abaixa seguindo a ligeira inclinação do tronco

e da cabeça que exigem a postura do tocador. Em determinados momentos,

quando sente que atraiu a atenção de alguém, pára de andar: joga o tronco

pra trás e pra frente e dança apenas com os braços e o pife, depois inicia um

xaxado girando em torno do próprio eixo. Se a pessoa ou grupo de pessoas

foi fisgado, ele pára de tocar e inicia um repente ou toada: aponta o dedo pro

céu e com uma mão gesticula o fraseado da música, fazendo movimentos

ondulados enquanto canta ou declama, numa expressividade teatral.

O pifeiro pára em frente a uma banca de revistas, larga o pife e na mesma

melodia continua com a voz: ‘o tocador quer beber, o tocador quer beber,

dê uma bicada a ele que ele tando bêbo toca pra valer. Dê uma bicada a ele

que ele tando bêbo toca pra valer, o tocador quer beber...’. Ao fim pergunta

se tem cafezinho.

3. NO COMÉRCIO

Seguimos na andança, proseando. Seu Zé recupera o fôlego e começa uma

música antes de chegar numa outra comercial. Da calçada sobe um bloco de

lojas tocando, ao que surge uma voz que vem de traz: – ô do pife! Seu Zé se

vira, vê um homem parado e sorrindo. Volta tocando e ao lado do homem

faz seu xaxado com os pés, larga o pife e continua a melodia, cantando:

‘Vem morena pros meus braços, vem morena vem dançar...’. O homem está

interessado no instrumento. Seu Zé começa a retirá-los da sacola. Tem esse

aqui, que é flauta transversal, que tá 50. E esses aqui são os pífanos, tem

vários tamanhos, várias tonalidades e vários preços. Esse pequeno tá de 12,

mas é próprio pra criança. Aí tem esse de 15, 20, 25, tem de 30 e de 40. Se

você me compra um eu testo pra você e te ensino o básico pra você continuar

depois sozinho. O homem compra um dos pifes e recebe uma rápida aula do

mestre pifeiro. Ele se despede do homem e segue tocando.

corporeidade do tocadorcorporeidade do tocador

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4. QUADRA CHIQUE

Chegamos numa quadra mais valorizada, com prédios luxuosos e carros estacionados por todos os lados

para onde se olha. Com exceção de alguns carros importados que passam esporadicamente, não há sinal de

vida humana no local. A música de Zé do pife parece ficar mais alta e ecoar com mais força por esta quadra-

fantasma revestida de granito e blindex. Sua música, lentidão e corporeidade contrastam fortemente com

a frieza rígida do espaço. O tocador então larga o pife e canta versos no meio da pista de entrada e saída

de uma garagem como que investindo seus movimentos em direção a um prédio. Por alguns momentos ele

parece desafiar para o debate em versos o totem à sua frente onde se inscreve o nome do edifício: Chopin.

O mestre pifeiro não sabe ler, mas o embate de signos ali vai além da palavra escrita: é a colisão entre uma

cultura erudita e uma cultura popular; o cânone e o vernáculo. Música e arquitetura se dissolvem em signos

para um lado e para outro: Chopin, granito e vidro; Zé do pife, taboca e lona. Por alguns minutos, tocando

e cantando versos de uma composição que remete a Brasília e à sua própria história passada, o tocador

instaura neste lugar seu devir-rua preenchendo-o de vida e estória. Sua interação acontece com alguns

carros-cápsula de vidros fumê, edifícios e uma única voz fraca e distante de um interlocutor que não se sabe

de onde vem.

5. W3 NORTE

Saímos da dureza monótona da quadra chique e nos dirigimos à W3 Norte. Na Avenida o impacto do

pife se reduz, absorvido pelo som do tráfego de veículos. O tocador caminha sob a marquise dos blocos, à

frente do comércio, em suas calçadas despovoadas, passando por lojas esvaziadas e olhares de indiferença

dos vendedores inertes à porta.

Percebo o quanto Zé do pife busca incessantemente interação e como falta gente para isso. Entre as

poucas que estão ali, grande parte mostra-se indiferente ou finge ignorar sua presença, seja nos comércios

elitizados, nos pilotis de edifícios residenciais ou ali, caminhando pelo comércio mais popular da W3. Seu

Zé está sempre buscando cativar as pessoas, apontando seu pife para elas, à espera da mínima abertura

para fazer uma pequena apresentação onde além de tocar, dança, canta e declama versos. Talvez algumas

pessoas pensem que ele quer receber algum trocado, quando na realidade ele está “fazendo a propaganda”

de seu produto.

[...]se eu colocar tudo aqui dentro e eu sair só com uns três ou quatro na mão assim, sem tocar, o

povo imagina que é um bocado de peça de madeira ou outra coisa qualquer. Então eu tenho que tocar

que é pra o público, o povo saber que isso é trabalho meu, é fabricação minha [...] e eu tenho que

fazer minha propaganda tocando, caminhando. Porque senão ninguém vai me conhecer né.

Assim, é claro que ele quer vender pifes, mas também “levar alegria para o povo”. E muitas pessoas são

tocadas de formas variadas por sua passagem. “Já fiz muita gente chorar”, diz o tocador.

Zé do pife chega então com sua música num ponto de ônibus cheio. Pára em meio às pessoas e começa

sua dança enquanto toca. Algumas pessoas se envolvem e quando o pife pára, seguem os aplausos. Zé do

pife agradece e vai até a banquinha ao lado do ponto. Cumprimenta o vendedor, seu conhecido, e pede

aquele cafezinho. O homem diz que nunca mais o viu por ali. Seu Zé diz que anda ocupado na oficina que dá

na UnB e com o grupo de meninas que ele ensinou a tocar e que montaram um grupo com ele, “Zé do Pife e

as Juvelinas”. “O povo anda dizendo agora por aí que eu tô famoso, aí eu fico com medo de andar e o povo

vir me assaltar achando que eu tenho dinheiro”. “Então o senhor não precisa mais andar”, diz o homem.

Não, precisar eu preciso, sabe rapaz. Eu tô correndo atrás, tô juntando uns trocadinhos pra ver se eu

compro pelo menos um lote pra depois ir construindo um barraquinho lá dentro pra sair do aluguel.

Porque aluguel é coisa triste, você paga o aluguel hoje e hoje mesmo você já fica devendo, e então eu

tenho que lutar, eu tenho que trabalhar, porque se eu parar fica pior. Fica pior.

Zé do pife termina o café e a prosa. Seu ônibus passa e o leva por hoje, de volta para a rodoviária, onde

pega o metrô para sua casa.

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>> Trabalho com pife

“Esse é o meu trabalho”

Seu Zé não é apenas um vendedor ambulante. Isto seria reduzir toda a carga sim-

bólica que sua presença emana nos espaços por onde passa, além do significado que

sua prática tem para si mesmo. Se evito enquadrá-lo num rótulo, é porque ele é também

um artista andarilho, mestre de cultura popular, músico, contador de estórias, artesão-

luthier, fabricante, vendedor e professor de pífano. “Esse é meu trabalho”, frase tantas

vezes repetida, junto a “porque é um dom que Deus me deu”, aponta para uma mescla

indissociável entre produzir pifes, tocar, vender, ensinar, “alegrar o povo” e manter a

tradição do pife viva. A confiança nesse dom e o investimento emocional e intensivo na

sua prática transformam o ganhar dinheiro em conseqüência.

Quando eu cheguei aqui em Brasília não tinha [pífano]. Era difícil você ver uma

pessoa numa quadra, num colégio, na escola de música, na UnB, no centro, ali na

rodoviária, e hoje em dia vez em quando eu vejo um tom dum pife, mas por quê?

Porque eu ensinei as pessoas, e muita gente me compra o pife, e tanto eu ensino

nas oficinas como eu ensino assim, no meio das quadras. Por exemplo, uma pes-

soa me compra um pife agora, [diz] – ‘tarde’! e vai se embora; e eu digo, péra

lá, não vai não que eu vou te ensinar. Vou te dar a explicação que eu nunca tive

né. Aí eu explico tudinho, por exemplo, eu ensino a “Asa branca”, “A volta da asa

branca” e às vezes sai aprendendo a tocar pelo menos um pouquinho, pelo menos

aquele som sair limpo pra ir ficando mais fácil pra ele ir aprendendo depois.

>> Sobre afetos e territorialidade [ou cafezinhos e janelas]

“Eu ando por isso aí tudim, então o povo todo já me conhece”

O percurso de Zé do Pife, que não é sempre o mesmo, passa sempre pelos mesmos

pontos. Padarias, bancas de revista e banquinhas de comida na rua formam uma rede

de lugares e pessoas conhecidas. Isso é importante para Zé do Pife não apenas pelo

ser afetuoso e carismático que é, e que busca sempre um retorno – ter amigos por es-

sas quadra “tudim”. É também uma maneira de sentir algum domínio sobre o espaço

ou a sensação de uma retaguarda composta por laços de solidariedade que o deixam

mais seguro. Esses laços são fortalecidos principalmente na prática do cafezinho – na

rodoviária, na padaria, na banca de revistas, na banquinha de comida na W3 – e na prosa

que vem junto.

O meu trabalho é tranquilo. Eu desvio pelos lugares que sempre o público me con-

hece, que eu já tenho aquele conhecimento, então muita gente às vezes até fala ‘o

senhor nunca mais andou por aqui’. Eu não tenho assim, dificuldade ou ter medo

de ir por um canto ou por outro.

Zé do Pife constrói também uma relação peculiar com as janelas dos blocos, de

afetos à distância. O som de seu pife vai chegando baixinho, penetrando suavemente o

lugar e quando um se dá conta ele já se instalou e preencheu o espaço de uma quadra

inteira sem que se saiba de onde veio. As janelas vão sendo assim ocupadas de curiosos.

Alguns apenas observam, outros o chamam para comprar um pífano ou apenas falar

algo.

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>> Lentidão

“por que eu ando bem devagarinho, né”.

A lentidão talvez seja a característica mais ubíqua da prática deste sujeito ambulante. Ela, em princípio,

é necessária ao seu trabalho: Caminha devagar porque toca o pife, mas sua vagareza é também uma tática

para não perder um comprador, que às vezes está distante, ou no alto de um apartamento, ou ainda sendo

seduzido pela música antes de pensar em comprar um pífano. A lentidão dá tempo ao cliente.

Num outro nível, não apenas o tocador é lento, como se dá melhor em lugares onde a lentidão impera

mais que a aceleração.

Inclusive dentro das quadras é melhor pra mim que nesses cantos assim, que tem mais gente, que

é mais agitado. No Pátio Brasil, Conjunto Nacional, na Torre, na galeria3 , não sei se é porque tem

gente demais, sei lá, o povo não escuta porque tá tudo correndo, na correria pra ir pros seus tra-

balhos; outros tá largando trabalho, tá cansado pra ir pegar sua condução pra chegar em casa pra

descansar. Nas quadras pra mim é assim mais tranqüilo e o povo gosta mais; e você vê que muita

gente ‘suvêia’, muita gente grita por mim, muita gente fica tirando foto [...]

É por isso que mesmo mais vazias, as quadras são melhores para seu trabalho do que o centro, onde tem

mais gente(mas é também mais acelerado). Por se tratar de área residencial, por encontrar as pessoas num

ritmo mais lento, num território de sedimentação e não de trânsito, inclusive pela presença de crianças – um

dos alvos do seu trabalho (naquele sentido ampliado do termo) –, é mais fácil interagir e vender pifes.

Sua lentidão atravessa também a de outros homens lentos, que em conjunto tecem uma camada que

costura a cidade num ritmo que fortalece suas redes de afetos e solidariedades pelos caminhos.

Aí uma mulher lá no meio do prédio – Ei! Peraí um minutinho. Aí ela

pegou essa camisa aqui, enrolou, colocou num saco e jogou pra mim.

Eu olhei, vi que era uma camisa, mas nem abri. Quando eu chego em

casa, foi que eu olho e tava escrito aqui ó: [eu leio] tocador de pífano.

E esse desenho. Foi por isso que eu resolvi vir com ela. Esse é o meu

trabalho.

Um morador que já esteve muitas vezes lá, do lado de cima, relata ao

cartógrafo a memória dessa experiência*.* Não consigo me lembrar de quando comecei a ouvir seu Zé

do Pife. Mas o som de seu pife foi presença quase certa em tardes

ou manhãs em que passei em casa, num apartamento na Asa

Norte. O engraçado é que por muito tempo nunca vi o tocador,

nem sabia que produzia e vendia pifes. Era apenas som, música

de tom folclórico e textura agreste que chegava tomando conta da

quadra. Para mim era um tocador, com pinta de sábio que fazia

isso para alegrar as crianças. Pois quando chegava e entoava seu

pife, caía sobre a paisagem moderna e concreta de minha quadra

um véu místico digno dos contos fantásticos de Ariano Suassuna.

Foram raras as vezes que avistei sua figura, sempre distante, já

que parecia nunca passar embaixo de minha janela. Também eu,

não corria para a janela curioso, pois costumava me contentar

em apenas escutar aquele som que chegava distante, tornava-se

forte e ia aos poucos esmaecendo até desaparecer.

Agora, do lado de cá, aqui embaixo,

acoplado à lentidão ambulante de Zé do

pife, o cartógrafo se coloca no lugar desse

morador, daqueles que aparecem na janela

e também daquela maioria que não aparece,

mas que ele tem certeza, foi tocada de al-

guma forma pela passagem do tocador.

E assim, entre o caminhar e o estacionar,

afetando com sua música ou seu carisma

pessoas próximas ou distantes, Zé do pife

constrói uma territorialidade.

3 Zé do Pife refere-se aqui a dois Shoppings localizados na região central, à Torre de TV que fica no Eixo Monumental e à Galeria dos Estados, uma galeria subterrânea com comércio popular que liga o Setor Comercial Sul ao Setor Bancário Sul, onde após a implantação do metrô recebeu também uma estação. Todos esses são lugares de muita movimentação.

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Diagrama de territorialidade: lentidão e afetos a partir da prática ambulante

Sempre eu me encontro com esse povo assim, às vezes eu vou atravessar de um canto pra outro ou

eu tô parado igual nós tâmo aqui e eles vai e se encostam. Às vezes um carroceiro, uma pessoa, e me

acompanha, vem conversar comigo. Diz, ‘eu venho duma banquinha ali’, ou ‘eu trabalho por aqui

vendendo uma toalhinha de mesa’, essas coisas, e vai e me cerca, manda eu tocar e eu pergunto se tá

bonito. Diz, ‘tá bonito demais’. Então aquela palhinha que eu dou, se eu ficar mais de 15, 20 minutos,

vai se juntando umas pessoas e de vez em quando tem 20, 30 pessoas ao redor de mim. É porque eu

não paro, eu tenho que caminhar.

Um terceiro nível – talvez aquele onde resida sua potência micropolítica – é o da produção de lentidão

que sua prática acarreta. A atmosfera criada pela passagem da música que seu Zé toca, de certa forma, ativa

um imaginário do sertão, que contém em si a lentidão, levando quem se deixa embalar para uma velocidade

subjetiva mais lenta, onde tudo acontece mais devagar. É uma intervenção sutil, mas que gera suas micro-

interferências numa metrópole como Brasília, onde a velocidade do carro está por toda parte. A lentidão de

Zé do pife desafia assim, de alguma forma, a velocidade da cidade, desacelerando as pessoas, é claro, nas

circunstâncias em que isso é possível. Nas zonas onde predomina a aceleração o tocador nem se arrisca,

[...] mas quando tem um momento que não tem muito trânsito, eles matam a velocidade pra pas-

sar devagarinho, pra poder escutar a musica que eu tô tocando. eles acham o que eu faço muito

bonito, e como é bonito né. Eu que toco eu acho bonito, imagina os outros que não tocam. Tem horas

e ocasião que eles só não passam bem devagarinho pra móde escutar o que eu tô fazendo por causa

que às vezes tá em velocidade, uns tá em trabalho e não pode atrasar, outros xingam e tal. Mas a

maioria se pudesse andar bem devagarinho e escutar o que eu tô fazendo [...] que aquilo até relaxa

os nervos né, porque vê uma coisa que é até difícil.

>> O pife e o caminhar

“Que nem você me perguntou se é melhor eu parado, fixo, ou andando. Caminhando eu acho melhor”.

Zé do pife já experimentou montar uma banca, num ponto fixo, pra tentar vender pifes no centro, na

Galeria dos Estados. Tocava enquanto as pessoas passavam e deixava seus pífanos expostos no chão. Mas

não se adaptou a esse formato, seja porque ele não foi eficiente em termos de venda, ou porque o próprio

Zé do pife sente a necessidade de caminhar, ou pelos dois motivos somados.

Se eu tiver num canto fixo lá, quem olha assim não me conhece. Às vezes até gente que não anda por

ali pra ver onde eu tô estacionado [...]. Gosto mais de tá andando, e eu andando assim, muita gente

me conhece e me procura.

O caminhar surge então como modo de buscar os outros. O tocador prefere construir uma territoriali-

dade que atravessa lugares onde são os outros que têm atividades fixas e ser conhecido como aquele que

chega trazendo a música, “a alegria pro povo”. A sensação do som do pife em movimento, chegando de

longe, de surpresa, ajuda no encantamento das pessoas. Parece mesmo que é o próprio objeto-pife que

está profundamente ligado à ação de caminhar: mais do que as pessoas irem até o pife, é o pife que vai até

as pessoas.

Perguntado se o pife tem relação com o caminhar, seu Zé responde: “Tem, tem... Ih, e como tem! Foi uma

boa pergunta que você me fez”. E “não é porque fica mais bonito não” – responde Zé do pife –, chegar cam-

inhando como um trovador, como pensava o cartógrafo. “É mesmo um trabalho, que quando tem pra fazer

tem que ser caminhado mesmo”. E isso remete também à própria história pessoal de seu Zé, que se liga à

tradição das bandas de pife no interior de Pernambuco. Quando criança, Zé do Pife se encantava com as

bandas de pife que apareciam na casa de seu pai em São José do Egito, sua cidade-natal. E ele próprio mais

crescido, depois de ter aprendido a tocar, fez parte de uma banda de pife com o irmão, montada pelo avô.

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Pausa reflexiva: lentidão como colisão

No acoplamento junto a Zé do Pife o cartógrafo precisou afinar sua lente nômade de experimentação.

Foi preciso deixar-se seduzir pela lentidão para perceber em que sentido opera o desvio deste sujeito

ambulante. Pois se há alguma coisa da qual Zé do pife desvie, ela não diz respeito a dispositivos de

opressão como a polícia e órgãos de fiscalização – muito embora haja um componente comercial (sem

mediação de impostos e registros) em seu trabalho –, mas à cultura da velocidade, do próprio processo

de modernização demolidora, da aceleração extensiva que o meio técnico-científico impõe sobre a vida

coletiva. Mesmo o significado da palavra trabalho tem para Zé do Pife uma profundidade muito diferente do

trabalho moderno. Seu Zé luta assim com sua lentidão contra o avanço do tempo hegemônico, globalizado,

que varre a memória de um povo.

Sem ler ou escrever, a memória é o bem mais precioso de Zé do pife. Como aponta De Certeau (2009),

a memória de praticantes ordinários tem um papel fundamental na construção de um tempo outro, tempo

da ocasião, indissociável das operações num espaço. Nas práticas destes sujeitos, que carregam consigo

uma cultura menor, “[...] sua memória continua escondida (não tem lugar que se possa precisar), até o

instante em que se revela, no “momento oportuno”, de maneira ainda temporal embora contrária ao ato

de se refugiar na duração. O resplendor da memória brilha na ocasião” (p. 146). Ao contrário de um tempo

extensivo que se expressa na duração, a força do tempo da ocasião reside na concentração, no instante.

Esse tempo oportuno surge então como ferramenta para o desvio, pois não se trata mais da construção

de oposições mas de distorções que levam à justaposições de temporalidades, que por sua vez levam à

construção de espacialidades conflitantes, mas coexistentes.

Vâmo supôr, aqui é um apovoadozinho, bem pequenininho né. Amanhã

nós vâmo pra Riacho de Cima, que é onde eu nasci e me criei, lá na minha

cidade São José do Egito. Em Riacho de Cima nós vâmo andando em todos

os sítios. Aí se junta, àquela santa, num ‘andôr’. São quatro varas assim,

duas pessoas atrás e duas na frente, a santa no meio, a banda de pífano

atrás e aquela multidão de gente acompanhando igual nós tâmo andando

aqui. E então, muita gente faz promessa lá, que nem o Piti do pife fez uma

promessa pra gente fazer uma caminhada da Vila do Tigre à Solidão; de

pé. E ele disse: ‘vâmo deixá pra quando tiver uma semana de lua clara, que

vai sair meia noite, que é longa a viagem’. E a gente saiu da Vila do Tigre,

travessêmo a cidade de Itabira e entrêmo na estrada de Solidão. Nós saímo

meia noite da Vila do tigre, viêmo chegar em Solidão cinco horas da manhã.

Tudo de pé.

É assim que os caminhos percorridos por seu Zé, marcados em seu corpo, em

seu modo de estar no mundo, se misturam à prática ambulante de Zé do Pife na

cidade, onde a experiência urbana e sertaneja se misturam, rua e trilha, devir-rua,

devir-sertão, instaurados no estado de rua de Zé do Pife nas vias de Brasília.

Eu tenho minha profissão. Foi o dom que deus me deu; eu aprendi sozinho.

Então, se eu ficasse em casa, ninguém ia me conhecer. Como é que o povo,

o público vai me conhecer sem eu caminhar. Eu tocando, caminhando pelos

caminho, nas estradas, que seja dentro do mato no centro da caatinga,

naquelas veredas, nos caminhozinho estreito... duma casa pra outra

é aqueles caminhozinho lá dentro da caatinga. Então, se eu não fizer o

meu trabalho, ninguém vai me conhecer. Aí eu tenho que mostrar o meu

trabalho. O QUE EU SOU. o que eu sou. Não é?

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Desta forma, em sua invisibilidade, a memória é o combustível de uma prática de tempo que carrega

consigo uma força para distorcer relações estabelecidas e com isso instaurar em espaços de propriedade,

espaços de uso, de afeto, que obedecem a outras leis.

A memória mediatiza transformações espaciais. Segundo o modo do “momento oportuno” (kairós),

ela produz uma ruptura instauradora. Sua estranheza torna possível uma transgressão da lei do

lugar. Saindo de seus insondáveis e móveis segredos, um “golpe” modifica a ordem local. [...] Essa

mudança tem como condição os recursos invisíveis de um tempo que obedece a outras leis e que,

por surpresa, furta alguma coisa à distribuição proprietária do espaço. (ibid, p.149)

É neste sentido em que podemos pensar a lentidão de Zé do pife como colisão. Colisão que sabota a

velocidade racionalizada da cidade planejada com a lentidão instauradora de outros espaços através de

uma prática cujos meios são a música e os afetos. Em Brasília sua colisão acontece então num duplo viés:

por um lado, com a rigidez dos espaços funcionalizados e repetitivos; por outro, com a velocidade – que

não é exclusiva à cidade Moderna, mas que seus espaços ajudam a promover com eficiência dificilmente

encontrada na mesma escala.

A colisão simbólica de Zé do Pife com uma superquadra de Brasília é, assim, travosa e esquisita. Reboliça

na frequência do agudo suas estruturas enrijecidas. Isto porque é, ao mesmo tempo, monumentalizada pela

caixa de ressonância modernista. É possível então que seu Zé do Pife tenha descoberto uma nova função

para o urbanismo modernista: seu potencial acústico. Se São Paulo, por onde andou quase 20 anos, com

muito mais gente na rua, tocando em forrós e até programas de auditório4 , não lhe rendeu o que queria, ele

encontrou seu lugar justo em Brasília, em seus percursos pelo centro, e especialmente pelas Superquadras.

Na quadra ele sentiu que seu som e sua presença tornam-se mais grandiosos do que numa rua movimentada

em meio a um corredor de edifícios altos. A diluição da rua, o silêncio da cidade-jardim, a densidade sem

distância do chão de edifícios de até seis pavimentos (para que a mãe pudesse chamar o filho da janela,

dizia Lúcio Costa), o formato horizontal e a forma de organização desses edifícios criando enormes caixas

acústicas, favoreceram o trabalho – no sentido ampliado que ele tem aqui – do mestre pifeiro.

O estado de rua da prática de Zé do pife é esse movimento de lançar no espaço e no tempo da lentidão a

memória de todas as ruas e caminhos que o tocador percorreu, gravados em seu corpo gasto, pelo caminhar

bem devagarinho ao som de seu pife ecoando e se amplificando pelas quadras de Brasília. É a colisão afetiva5

que este seu lento atravessamento por um lugar estabelecido proporciona, um suave estranhamento, que

gera esse estado de rua misturado a um estado sertão – estado banda de pife andarilha que passa de casa

em casa na novena de São João – infiltrando-se e contaminando a modernidade urbana da Brasília.

4 Na vida adulta, após trabalhar em canavial, em usina de cana-de-açucar, como empregado em Recife, e cidades na Bahia, seu Zé foi para São Paulo em 1973 e trabalhou em empresas de construção. Em momentos de desemprego passou a ir nos bambuzais no setor de chácaras, colhia varas e começou o trabalho que continua até hoje. Caminhava pelas ruas do centro tocando e vendendo pifes, depois começou a tocar em forrós conhecidos e chegou a participar dos programas do Silvio Santos, Raul Gil e Chacrinha. Sobre a mudança entre as cidades ele diz: “Brasília é melhor, porque ela é mais espaçosa, é mais arejado, não é muito agitado. Eu andei muito em São Paulo. Lá é muito agitado demais, é carro, é gente, é demais. E aqui não, aqui é tranqüilo e o povo aqui gosta mais do meu trabalho. Já fiz muita gente chorar”.

5 “O afecto é a descarga rápida da emoção, o revide, ao passo que o sentimento é uma emoção sempre deslocada, retardada, resistente. Os afectos são projéteis, tanto quanto armas, ao passo que os sentimentos são introceptivos como as ferramentas.” (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 79)

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5. A rua como potência A via de acesso ao presente tem necessariamente a forma de uma arqueologia que não regride, no entanto, a um passado remoto, mas a tudo aquilo que no presente não podemos em nenhum caso viver e, restando não vivido, é incessantemente relançado para a origem, sem jamais poder alcançá-la.

Agamben, O que é o contemporâneo

O percurso que se segue assume a forma de uma arqueologia que retorna ao século XIX

para entender como os elementos que desencadearam a modernidade das cidades a partir da

dinamização do processo de industrialização, liberaram também os ingredientes necessários

para alimentar essa pulsão urbana característica que é a experiência da rua. Parece que o

espaço da rua abriga fenômenos que só podem ocorrer ali e, por isso, conferem especificidade

a essa experiência. É possível então que estas particularidades, que inserem na rua uma esfera

política, singularizem a rua enquanto potência por si só, com características próprias e em

certo sentido, independentes da ideia mais ampla de espaço público, apesar de também o sê-

lo.

Poderíamos inicialmente olhar essa potência por meio de duas perspectivas que no

fundo estão profundamente imbricadas. Uma delas é a das dinâmicas sociais no e com o

espaço da rua. A outra aconteceria no campo subjetivo, entendendo que essa experiência é

também algo que os indivíduos desejam, ou que ao menos parte da coletividade urbana (uma

parte cada vez menor, é verdade) não pode renunciar; e operando no campo dos desejos, se

caracteriza enquanto devir54; um devir-rua.

O procedimento arqueológico tem, portanto, o objetivo de compreender como esta

potência foi se conformando historicamente e destacar algumas de suas características. Em

todo caso, parafraseando Massey (2008) trata-se de “um debate para o reconhecimento de

características particulares de espaço e por uma política que possa ser sensível a elas” (p.37).

Buscaremos na literatura que remete ao século XIX e início do XX, insumos para a

caracterização desta potência e os modos como ela pode se transfigurar em facetas de um

estado de rua. Sucedeu-se como uma “garimpagem” em textos bastante conhecidos a procura

de trechos que ao mesmo tempo fornecessem pistas, elementos, descrições ou conceitos que

54 “O devir não é história; hoje ainda a história designa somente o conjunto de condições, por mais recentes que sejam, das quais nos desviamos para um devir, isto é, para criarmos algo de novo”. (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 125). “Os fluxos de desejo procedem por afetos e devires, independentemente do fato de que possam ser ou não rebatidos sobre pessoas, sobre imagens, sobre identificações. Assim um indivíduo etiquetado antropologicamente como masculino, pode ser atravessado por devires múltiplos e, aparentemente, contraditórios: devir-feminino que coexiste como um devir-criança, um devir-animal, um devir-invisível, etc.” (GUATTARI e ROLNIK, 2008, p. 382)

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pudessem ajudar a construir essa caracterização e também indicassem o devido contexto

histórico da emergência dessas possibilidades.

Impermanências em um território instável

Na virada do século XIX para o XX um jovem carioca chamado Paulo Barreto em seus

vinte e poucos anos não cansaria de caminhar pelas ruas de sua cidade, que costumava chamar

de “Cosmópolis”. Ao mesmo tempo fascinado e chocado com a diversidade de tipos humanos

e situações sociais que encontrava em seus trajetos, o jovem escritor seria responsável por

ricos registros do fervilhar desse período de intensas transformações pelas quais passava a

cidade do Rio de Janeiro no despertar de sua modernidade. Sob o pseudônimo de João do Rio,

escreveu por muitos anos artigos e crônicas em jornais da época e publicou entre outros, o

livro A alma encantadora das ruas [1908]. Assim ele explica o motivo que o impulsionou a

escrever uma crônica que se chamava simplesmente “A rua”: “Abri o primeiro, abri o

segundo, abri dez, vinte enciclopédias, (...) A rua era para eles apenas um alinhado de

fachadas por onde se anda nas povoações. Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator de

vida das cidades, a rua tem alma!” (RIO, 2007, p. 26).

Recorremos a João do Rio como ponto de partida desta arqueologia não porque ele

tenha sido o primeiro a escrever sobre a rua, mas por fazer isso objetivamente, tomando a rua

não apenas como palco da vida social, mas por considerá-la ao mesmo tempo enquanto objeto

e sujeito. “Considerei a rua um ser vivo, tão poderoso que consegue modificar o homem

insensivelmente e fazê-lo o seu perpétuo escravo delirante”(p.45), dizia ele ao final do texto55.

Em sua ode à rua, João do Rio faz um passeio, um tanto à vontade em sua prosa, onde

expõe e defende de forma passional, inúmeros aspectos, para ele fundamentais, da rua. Um

deles, talvez o mais evidente, é o caráter nivelador da rua. “Há suor humano no seu

calçamento. (...) A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais igualitária,

a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas” (p. 26), diz ele, indicando a

possibilidade de se ver, como que tatuada na materialidade da rua, a história do trabalho dos

homens, da exploração e a evolução da geografia dos poderes na cidade. A rua é vista aqui

como superfície de inscrição dos acontecimentos, como um “corpo inteiramente marcado de

história” (FOUCAULT, 1998, p. 22).

55 Além disso, João do Rio retrata a rua num momento crucial da história da cidade do Rio de Janeiro, quando um tipo de cidade que já havia sido colônia e império, maturava suas primeiras configurações enquanto capital da república apoiada por uma radical reforma urbana levada a cabo por Pereira Passos. Esse choque entre a cidade secular e a intervenção de um urbanismo progressista é um acontecimento que caracteriza, (não apenas no Brasil, como veremos mais à frente), os primórdios da modernidade urbana e que seguirá reverberando em outras cidades e ressurgindo sob novas roupagens até os dias de hoje.

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João do Rio ressalta também o que poderíamos chamar de uma força desestabilizadora

das ruas. Os imaginários, as certezas, os desejos, as palavras estarão ali expostos a

interferências inesperadas e por isso passíveis às possibilidades de transformação.

A rua é a transformadora das línguas. [...] A rua continua, matando substantivos, transformando a significação dos termos, impondo aos dicionários as palavras que inventa [...].

Desde os mais tenros anos ela resume para o homem todos os ideais, os mais confusos, os mais antagônicos, os mais estranhos, desde a noção de liberdade e de difamação [...] até a aspiração de dinheiro, de alegria e de amor, ideias particulares. [...] A rua é a nossa própria existência. [...], nela mudam as ideias e as convicções, nela surgem as dores e os desgostos [...]. (RIO, 2007, p. 26, 39)

Parece então que a condição pública da rua se refere menos à construção de um

“comum” que permanece do que às impermanências produzidas nos atravessamentos entre

fluxos heterogêneos da cidade. Além disso, não apenas a rua desestabiliza como ela própria

constitui-se enquanto território instável: “Olhai o mapa das cidades modernas. De século em

século a transformação é quase radical. As ruas são perecíveis como os homens.” (p.45).

Enquanto território instável e, em certo grau efêmero, a rua parece atrair subjetividades que

também se encontram em circunstâncias instáveis; todas aquelas figuras deslocadas,

excêntricas e marginais, sujeitos em estados de miséria mental e econômica, nômades,

excluídos ou provisoriamente desincorporados das cadeias produtivas. Por sua condição de

território público, ao mesmo tempo em que atrai, ela também torna-se aliada das práticas

marginalizadas, convertendo-se em abrigo de todo tipo de exterioridade. “Os desgraçados não

se sentem de todo sem o auxílio dos deuses enquanto diante dos seus olhos uma rua abre para

outra rua. A rua é generosa. O crime; o delírio, a miséria não os denuncia ela” (p.26).

O sujeito da rua e a rua como sujeito: um devir-rua?

O que João do Rio chama de “alma da rua”, pode certamente numa perspectiva do

imanente56 ser traduzido como um estado de rua que vibra em maior, menor ou nenhuma

intensidade pelas ruas de uma cidade. Neste sentido, é importante apontar que um aspecto

crucial da visão de João do Rio, e que falta geralmente aos urbanistas, é que em nenhum

momento trata-se de descrições do inorgânico, das formas de “pedra”, o que Deleuze e

Guattari (1997) chamariam de uma abordagem extensiva, métrica; mas de sua dimensão

intensiva, de ocupação pela “carne”57. As ruas de João do Rio, antes de apresentarem alguma

função, abrigam aspectos absolutamente humanos. Isso porque, no modo de sentir do poeta, é

56 Em oposição ao transcendente. 57 Faço aqui uma alusão ao título do livro de Richard Sennett (1997) “Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental”.

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impossível dissociar o espaço da rua dos usos que os sujeitos na rua fazem dele58, ou seja,

para João do Rio, a rua é experiência.

Com o acúmulo temporal, usos muito recorrentes acabam por “viciar” os espaços de

uma rua, assim como o pé deforma lentamente o sapato ao longo do uso. Por outro lado, ruas

nas quais o acúmulo de usos apresenta características muito fortes, ou “muita personalidade”

(para falar como João do Rio), tendem a realizar o processo inverso e também moldar

indivíduos. Assim, o cronista comenta que “nas grandes cidades a rua passa a criar o seu tipo,

a plasmar o moral dos seus habitantes, a inocular-lhes misteriosamente gostos, costumes,

hábitos, modos e opiniões políticas” (RIO, 2007, p. 36). Essa capacidade indica a existência

na rua de uma potência para criar tipos característicos, como vemos na descrição que segue:

A rua faz as celebridades e as revoltas, a rua criou um tipo universal, tipo que vive cada aspecto urbano, em cada detalhe, em cada praça, tipo diabólico que tem dos gnomos e dos silfos das florestas, tipo proteiforme, feito de risos e lágrimas, de patifarias e de crimes irresponsáveis, de abandono e de inédita filosofia, tipo esquisito e ambíguo com saltos de felino e risos de navalha, o pródigo de uma criança mais sabida e cética que os velhos de setenta invernos, mas cuja ingenuidade é perpétua, voz que dá o apelido fatal aos potentados e nunca teve preocupações, criatura que pede como se fosse natural pedir, aclama sem interesse, e pode rir, francamente, depois de ter conhecido todos os males da cidade, poeira d`ouro que se faz lama e torna a ser poeira. (p.27)

Considerando a reciprocidade da relação entre a rua e os usos sociais, tal potência não

estaria exatamente na rua, mas nas possibilidades que existem ali para experiências

peculiares. Ela se produziria então no campo da subjetividade, que encontra na rua um meio

de expressão. Trata-se de uma multiplicidade tão volátil, camaleônica, movediça, que no

momento em que se pensou tê-la interpretado, esta já mudou seu aspecto. Aquela infinidade

de adjetivos elaborados por João do Rio podem ser vistos então como facetas de uma pulsão

humana singular que as cidades parecem engendrar; e qualquer dessas facetas que estejam

pedindo passagem pelas camadas da subjetividade, parece só conseguir ganhar corpo no

território existencial59 que se instaura no encontro do sujeito com a rua. A essa potência

poderíamos chamar um devir-rua.

58 Demonstrando uma antecipação à reflexões sobre o espaço que só ganhariam expressão a partir da segunda metade do século XX, com a influência das ciências sociais e da filosofia sobre as “ciências do espaço”. Mas que, ainda assim, até hoje ainda encontram resistência no campo da arquitetura e do urbanismo. 59 “A noção de território é entendida aqui num sentido muito amplo, que ultrapassa o uso que dela fazem a etologia e a etnologia. Os seres existentes se organizam segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente ‘em casa’. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto dos projetos e das representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos.” (GUATTARI e ROLNIK, 2008, p. 388)

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Trata-se de uma potência da Rua enquanto conteúdo simbólico-afetivo que envolve um

emaranhado de feixes subjetivos relacionados às ideias de libertação de estruturas morais,

familiares e religiosas; assim como à adrenalina que envolve desejos de perigo,

marginalidade, sexualidade, vagabundagem; a busca de estados alterados de consciência com

o uso de drogas ou mesmo, para os “loucos”, a expressão de suas esquizofrenias e sociopatias.

Um devir-rua que provavelmente nasce e se intensifica paralelamente ao próprio processo de

urbanização e que se vê irromper em sujeitos urbanos os mais variados, entre eles,

ambulantes, prostituídos, moradores de rua, malandros, ladrões, típicos sujeitos das ruas, mas

também em poetas, artistas e crianças. Por isso é possível ver este devir presente nas flâneries

de Baudelaire e João do Rio, mas também de inúmeros escritores, assim como nas

deambulações dadaístas e surrealistas ou nas derivas situacionistas60.

Encontro com a alteridade radical

Com meio século de antecedência, o jovem Friedrich Engels com apenas 24 anos

publicava A Situação da Classe trabalhadora na Inglaterra [1845], onde ao longo de 21

meses, percorreu as ruas dos centros e dos bairros operários das principais cidades inglesas

com o objetivo de registrar em detalhes o modo de vida a que eram sujeitados os proletários

em conseqüência do selvagem processo de urbanização pós-revolução industrial. O inchaço

das grandes cidades em decorrência da busca por trabalho na indústria levou ao aparecimento

dos bairros operários, que se desenvolviam sobre antigos bairros num processo de

aglomeração extremamente densificada. Assim Engels descreveu um desses bairros no centro

de Londres:

Temos em primeiro lugar, Londres e, em Londres, St. Guiles, onde se irão construir algumas largas avenidas e que vai ser assim destruído. St. Guiles está situado no meio da zona mais povoada da cidade, rodeada de ruas largas e iluminadas, onde se afadiga a burguesia londrina, e perto de Oxford Street, Regent Street, Trafalgar Square e Strand. É um aglomerado de casas com três e quatro andares, construídas ao acaso, com ruas estreitas, tortuosas e escuras, onde reina quase tanta animação como nas ruas principais que atravessam a cidade, só que aqui se vêem apenas indivíduos pertencentes à classe operária. O mercado é na rua: cestos de legumes e de frutas, naturalmente todos de má qualidade e dificilmente comestíveis, reduzem ainda mais o espaço nos passeios, deles se exalando, como das tendas dos peixeiros, um cheiro asfixiante. [...] Mas isso nada é comparado com as casas dos pátios e vielas onde se tem acesso por passagens cobertas e em que a imundície e a vetustez ultrapassam tudo quanto se possa imaginar. Não se vê por assim dizer, um único vidro intacto, as paredes estão manchadas, os caixilhos das portas e janelas quebrados ou desengonçados, as portas, quando as há, são feitas de velhas tábuas pregadas. [...] Por toda a parte, montes de detritos e de cinzas e águas sujas lançadas diante das portas, acabam por formar charcos nauseabundos. Aí vivem os mais pobres,

60 Sobre a flânerie, as deambulações e derivas ver o “pequeno histórico das errâncias urbanas” em: JACQUES, 2006, pp. 128-135.

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os trabalhadores mais mal pagos, juntamente com os ladrões, os escroques e as vítimas da prostituição. (ENGELS, 1975, p. 48; grifo meu)

A narrativa de Engels deixa entrever um julgo claro, no qual o universo do outro é visto

quase como algo exótico, até mesmo bárbaro, colocado assim num lugar de carência a partir

da posição do burguês, tomada como referência de civilidade. Descrever aquela situação desta

forma tinha também um sentido político, como se imagina, para o co-autor do “Manifesto

Comunista”. O que parece importante perceber é que o quadro traçado por Engels demonstra

o clima de repulsa e indignação geral que se instaurava entre a classe-média61 inglesa diante

daquelas circunstâncias62. A segunda metade daquele século seria marcada pelas mudanças

sociais, políticas e urbanas provenientes de tal estado de ebulição e a rua teria um papel

importante nessas estratégias.

Esta configuração de Londres e outras cidades industriais inglesas, a partir da

emergência dos bairros operários, encontrava um contexto similar em Paris. Assim como

Engels alertava que aquela situação urbana estava com os dias contados pela construção de

largas avenidas, a resposta dos poderes de Paris seguiria o mesmo caminho, mas de forma

ainda mais radical pela escala de sua intervenção que modificaria completamente a face da

cidade. Trata-se da reforma promovida pelo Barão Haussmann, então prefeito da cidade sob a

tutela de Napoleão III, que colocou abaixo bairros inteiros e criou um ícone da modernidade

nas cidades ocidentais: o Bulevar. Marshal Berman (1987) comenta o impacto urbano e

político que teve a invenção do Bulevar em Paris:

O novo bulevar parisiense foi a mais espetacular inovação urbana do século XIX, decisivo ponto de partida para a modernização da cidade tradicional. (...) Napoleão e Haussmann conceberam as novas vias e artérias como um sistema circulatório urbano. Tais imagens, lugar-comum hoje, eram altamente revolucionárias para a vida urbana do século XIX. Os novos bulevares permitiram ao tráfico fluir pelo centro da cidade e mover-se em linha reta, de um extremo a outro – um empreendimento quixotesco e virtualmente inimaginável até então. Além disso, eles eliminariam as habitações miseráveis e abririam “espaços livres” em meio a camadas de escuridão e apertado congestionamento. Estimulariam uma tremenda expansão de negócios locais, em todos os níveis, e ajudariam a custear imensas demolições municipais, indenizações e novas construções. Pacificariam as massas, empregando dezenas de milhares de trabalhadores – o que às vezes chegou a um quarto da mão-de-obra disponível na cidade – em obras públicas de longo prazo, as quais por sua vez gerariam milhares de novos empregos no setor privado. Por fim, criariam longos e largos corredores através dos quais as tropas de artilharia poderiam mover-se eficazmente contra futuras barricadas e insurreições. (BERMAN, 1987, p. 145)

61 Engels utiliza o termo middle class no sentido que tinha para os ingleses, como ele explica: “esta expressão designa, tal como a palavra francesa bourgeoisie, a classe detentora [do poder] e, muito especialmente, a classe detentora distinta da chamada aristocracia”. (ENGELS, 1975, p. 13) 62 O crescente número de relatórios policiais e médicos e os crimes e mortes – muitas tendo como causa a fome e as doenças que se proliferavam pelas péssimas qualidades de alimentação e higiene – relatados nos jornais, eram o indicativo do estado de tensão em que essas metrópoles europeias viviam em meados do século XIX.

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No meio desse processo estava Baudelaire, cujos versos e prosas enxergaram muito

além das simples mudanças físicas pelas quais passava Paris. Antes de tudo, ele mergulhava

nas contradições com as quais o homem moderno era confrontado no bojo desse intenso

processo de transformações63. A reforma de Haussmann (entre as décadas de 1850 e 1870) foi

também inspiradora daquela promovida por Pereira Passos no Rio de Janeiro na primeira

década do século XX. Como bem apontou Jacques (2006), as similaridades entre Haussmann

e Pereira Passos podem ser levadas para o campo literário, no papel que desempenharam

Baudelaire e João do Rio64 frente às reformas urbanas de Paris e do Rio de Janeiro. Ambos,

cada um ao seu modo, mas com forte influência de suas próprias experiências urbanas, tentam

dar conta das transformação nos modos de vida de suas cidades frente ao impacto da

modernização, tendo como ponto de convergência a experiência das ruas.

No entanto, se em João do Rio e Engels a ênfase está ainda no elemento secular, suas

ruas, tipos humanos e dinâmicas sociais que eclodiam em cidades cuja estrutura urbana já

dava sinais de saturação diante de um acelerado crescimento demográfico associado aos

processos de modernização, em Baudelaire são as novas dinâmicas urbanas que surgiram a

partir do bulevar parisiense a matéria-prima para sua poesia. Esses dois pontos de vista podem

ser vistos como as faces da mesma moeda, sendo uma face seu lado obscuro, “gasto”, que

deve ficar para trás e a outra, aquele lado iluminado, “polido” e cheio de novidades que se

quer ostentar e que muitas vezes é confundido com a única face da modernidade. O que

Berman (1987) chama atenção em Baudelaire é para a lucidez que há por trás de suas

angústias ao perceber desde aquele momento que, se o lado do progresso se esforça para

obliterar o secular, este permanecerá sempre em seu encalço, encontrando brechas para

também gozar as novidades. Seria justamente esse paradoxo a condição primordial da vida

moderna. Assim, o que Haussman talvez não esperasse é que o bulevar não conseguiria

acabar com a rua proletária que, mesmo não existindo mais na morfologia de seus espaços se

faria cada vez mais presente através das figuras e hábitos “indecorosos” dos seus antigos

moradores infiltrados nos novos espaços.

Para explicar esse fato, Berman recorre a um poema do Spleen de Paris de Baudelaire

chamado “Os olhos dos Pobres”, no qual um casal de apaixonados desfrutava o terraço de um

63 Importantes intelectuais da primeira metade do século XX como Benjamin, Kracauer, Bloch e Lukács, viram nesse momento do século XIX, especialmente em Paris, os princípios da modernidade na experiência da metrópole, da cultura de massa e também do nazi-fascismo (MACHADO, 2006). Benjamin, especialmente, viu em Baudelaire a figura que melhor compreendeu e retratou este momento. 64 João do Rio, que além de flâneur era um literato, foi leitor de Baudelaire sendo, inclusive, como Baudelaire, tradutor de Edgar Allan Poe, uma das principais influências de ambos. Sobre o flâneur de Baudelaire e Poe falaremos mais a frente.

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café na esquina de um novo bulevar que “já exibia orgulhoso seus infinitos esplendores”,

mesmo estando “ainda atulhado de detritos” (as ruínas dos antigos bairros operários). Eis que

uma família de pobres pára em frente a eles e admira silenciosamente a cena. Tal

constrangimento gera no casal reações diferenciadas: enquanto o homem sente vergonha por

tomar parte daquela ostentação e nutre pela família alguma solidariedade, a mulher sente-se

incomodada com seus “olhos esbugalhados” e pede para que o gerente os afaste. Essa

diferença gera então uma dissensão irreconciliável entre o casal. Para Berman, o bulevar “os

força a reagir politicamente”, mas reflete que “talvez a maior divisão não se dê entre o

narrador e sua amante, mas dentro do próprio homem” (p. 150), indicando como as

contradições da cidade moderna tendem a penetrar a subjetividade que se deixa atravessar

pela rua. Como comenta o autor, a sutileza do poema está em colocar em evidência

justamente o elemento que se pretendia fazer desaparecer na nova configuração urbana e

social do bulevar: “A família em farrapos [...] sai de trás dos detritos, pára e se coloca no

centro da cena. O problema não é que eles sejam famintos ou pedintes. O problema é que eles

simplesmente não irão embora. Eles também querem um lugar sob a luz” (p. 148).

Chega-se então à pista fundamental sobre o principio de uma questão urbana que já não

seria mais nem de higienismo, nem de embelezamento, mas do crescente contato entre classes

ou, num sentido mais amplo, o contato com uma alteridade radical, enquanto uma das

características marcantes da experiência da rua nas metrópoles modernas; precisamente o

fator que tornou as ruas mais públicas e políticas e que, ironicamente, foi o salto

modernizador das primeiras grandes intervenções urbanísticas que fez emergir.

Pondo abaixo as velhas e miseráveis habitações medievais, Haussmann, de maneira involuntária rompeu a crosta do mundo até então hermeticamente selado da tradicional pobreza urbana. Os bulevares, abrindo formidáveis buracos nos bairros pobres, permitiram aos pobres caminhar através desses mesmos buracos, afastando-se de suas vizinhanças arruinadas, para descobrir, pela primeira vez em suas vidas como era o resto da cidade e como era a outra espécie de vida que aí existia. E, à medida que veem, eles também são vistos: visão e epifania fluem nos dois sentidos. [...] O brilho ilumina os detritos e ilumina as vidas sombrias das pessoas a expensas das quais as luzes brilhantes resplandecem. [...] Os bulevares de Haussmann transformaram o exótico no imediato; a miséria que foi um dia mistério é agora um fato. [...] A presença dos pobres lança uma sombra inexorável sobre a cidade iluminada. (BERMAN, 1987, p. 148)

Tal fato se tornará, a partir de então, a grande panaceia oculta à qual as forças da cultura

hegemônica e o urbanismo progressista tratariam de perseguir ao longo do século XX e que,

poderíamos dizer, se transfigura no atual modo de vida capsular em suas facetas visíveis e

invisíveis, cuja influência sobre as dinâmicas sociais e os espaços das grandes metrópoles é

cada vez maior.

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A multidão como mergulho no escuro

“A multidão é o véu através do qual a cidade costumeira acena ao flâneur enquanto

fantasmagoria”, dizia Benjamin (1991, p. 39). No seu conto O homem da multidão, Edgar

Alan Poe mostra um homem às voltas com um ser intrigante ao qual decide perseguir em

meio ao labirinto das ruas de Londres e sua multidão de corpos anônimos. Depois de uma

cansativa e cíclica jornada em um trajeto que se mostra interminável, ele percebe que o sujeito

perambulante não buscava destino algum, mas que se alimentava, de alguma maneira, das

próprias multidões. “Este velho – disse finalmente – é o tipo e o gênio do crime profundo.

Recusa-se a estar só. É este o homem da multidão” (POE, 1999). Poe, que exerceu grande

influência sobre Baudelaire, é também citado por Benjamin em seu ensaio sobre Paris para

explicitar como a experiência da multidão pode se constituir diferentemente nas ruas de

Londres e Paris. Provavelmente por seu poderio econômico, que levou a uma escalada de

urbanização nunca antes vista, foi em Londres que a multidão surgiu como fenômeno urbano

moderno de dimensões assustadoras devido ao encontro da explosão demográfica com a

configuração extremamente “orgânica” de suas ruas. A dimensão do impacto que um sujeito

do século XIX sentia ao se deparar com a multidão londrina é vista pela descrição de Engels:

Quando se calcorreou durante alguns dias o lajeado das ruas principais, quando se abriu dificilmente caminho através da multidão, por entre as filas compactas de veículos, quando se visitaram os bairros miseráveis desta metrópole, só então se começa a notar que estes londrinos sacrificaram as melhores qualidades da sua natureza humana para levar a cabo todos os milagres da civilização de que a cidade regurgita [...]. A multidão que cobre as ruas tem já em si qualquer coisa de repugnante, que revolta a natureza humana. [...] Ninguém se lembra de conceder ao outro um olhar que seja. Esta indiferença brutal, este isolamento insensível de cada indivíduo no seio dos seus interesses particulares, são tanto mais repugnantes e ofensivos quanto maior é o número de indivíduos confinados num espaço reduzido. [...]A desagregação da humanidade em mônadas, cada uma com um determinado princípio e um determinado fim, esse mundo dos átomos, é aqui levado ao extremo. (ENGELS, 1975, p. 44-45)

Não foi à toa que Benjamin atribuiu tanto a Poe quanto a Engels, “as primeiras

contribuições para a fisionomia da multidão” (BENJAMIN, 1991, p. 39). Sem dúvida, a

multidão exerceu um fascínio sobre Baudelaire, mas foi o flâneur de Poe que a experimentou

com maior intensidade. Por isso Benjamin vê emergir em Poe um outro lado da experiência

da multidão. Para ele, o flâneur de Poe inverte a posição de detetive que encarna o flâneur dos

bulevares e passagens de Paris. Em condição diferente daquela dos largos e iluminados

espaços urbanos da nova Paris, em Londres o flâneur mergulha na sufocante multidão e esta

tanto lhe oferece um esconderijo por meio do anonimato, quanto opera sobre ele um estado de

desassossego por um crime que talvez não tenha cometido. É a impressão de que “um homem

se torna tanto mais suspeito quanto mais difícil seja encontrá-lo” (p. 76). Assim, Benjamin

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percebe que “para Poe, o flâneur é, sobretudo, alguém que não se sente seguro em sua própria

sociedade. Por isso é que ele procura a multidão. [...] Uma multidão infinda, em que ninguém

é bem nítido e claro para o outro e ninguém é completamente indevassável para o outro” (p.

76-77; grifo meu).

O flâneur desliza, portanto, entre o nítido e o indevassável, o refúgio e a inquietação.

Seguindo esta direção poderíamos fazer uma correlação direta entre a prática do flâneur e o

contemporâneo. Não o contemporâneo do nosso tempo, mas a experiência do contemporâneo

que se pode ter em todas as épocas. Isto porque ele se sente impelido na busca de algo que ele

não sabe bem o que é, mas que sem dúvida tem algo a ver com a compreensão do seu tempo,

seu zeitgeist. Seria interessante para o que interessa aqui, pensar então por que o campo de

pesquisa do flâneur seja justamente a rua. Giorgio Agamben propõe uma interessante visão

sobre o que seja a experiência do contemporâneo, e que pode dar boas pistas nesta direção.

Em seu ensaio “O que é o contemporâneo?” o filósofo evoca as “Considerações

intempestivas” de Nietzsche:

Intempestiva esta consideração o é porque procura compreender como um mal, um inconveniente e um defeito algo do qual a época justamente se orgulha, isto é, sua cultura histórica, porque eu penso que somos todos devorados pela febre da história e deveremos ao menos disso nos dar conta. (NIETZSCHE apud AGAMBEN, 2009, p. 58)

Para Agamben, este que seria um acerto de contas do filósofo com seu tempo, diz do

contemporâneo como uma necessária desconexão e dissociação em relação ao presente. “É

verdadeiramente contemporâneo aquele que não coincide perfeitamente com seu tempo” e é

“através desse deslocamento e desse anacronismo que ele é capaz, mais do que os outros, de

perceber e apreender o seu tempo” (AGAMBEN, 2009, p.58).

Neste sentido, o “não sentir-se seguro em sua própria sociedade” de que fala Benjamin,

não pode ser confundido com o raso discurso da insegurança que domina as sociedades

urbanas atuais. Essa insegurança é antes um recurso a que o flâneur se vale por não

compactuar com grande parte do que sua própria sociedade acredita e manifesta

coletivamente. Por isso ele desconfia do que lhe chega e mergulha num constante estado de

incerteza. Neste contexto, é na experiência da rua que, ao desenvolver-se enquanto território

instável, o flâneur vai penetrar e cultivar esse estado, e que lhe proporcionará como poucos

ambientes a experiência do contemporâneo.

Outro aspecto dessa definição que Agamben propõe é que o olhar do contemporâneo

não mira as luzes, mas o escuro de seu tempo. Ele afirma que “contemporâneo é, justamente,

aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas

do presente”. E sem que essa experiência seja uma forma de passividade ou privação (a

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anulação da visão) mas, ao contrário, um tipo de percepção específica – ele cita o exemplo

das células periféricas (as off-cells) da retina ativadas no escuro –, é necessário que se

desenvolva uma “habilidade particular” capaz de “neutralizar as luzes que provêm da época

para descobrir as suas trevas, o seu escuro especial, que não é, no entanto, separável daquelas

luzes”65 (p. 63).

É possível então que para o flâneur que vai buscar sua intempestividade nas ruas, a

experiência da multidão seja uma forma de “mergulho no escuro”, onde em meio a uma

massa de “outros”, que de tão numerosos tornam-se um borrão, a marcha descontínua dessa

miríade de trajetórias em descompassadas intensidades ajam como filtros de sombras, que de

tempos em tempos deixam passar as luzes; e nessa inextricável dança de corpos, luzes e

sombras, o flâneur, exposto aos feixes que o atravessam, possa vislumbrar as forças que

disputam e desenham o seu próprio tempo.

A rua como campo de criação

A rua moderna, por proporcionar a possibilidade de mergulho no escuro da época

converte-se pois no campo fundamental para a criação artística, e este parece ser um segredo

que as vanguardas sempre conheceram.

Um Dickens se queixaria de que, ao viajar para longe de Londres, sempre de novo lhe fazia falta o ruído da rua, que havia se tornado indispensável para ele produzir. ‘Não posso dizer o quanto me fazem falta as ruas [...], é como se elas fornecessem algo ao meu cérebro do qual ele não pode prescindir para poder trabalhar. [...] minhas personagens parecem querer ficar quietas se não têm uma multidão ao seu redor.’ (BENJAMIN, 1991, p. 77)

A angústia sempre foi uma sensação que motivou a criação artística, e a imersão no fluxo

contínuo e revolto das ruas surge como uma maneira de intensificar essa sensação. Soma-se a

isso o turbilhão de estímulos sob a forma de fricções, surpresas e imprevistos que podem

operar como faíscas para a criação de novas ideias.

A rua moderna impõe também aos sujeitos urbanos novos tipos de constrangimentos

que atuam como forças que os levam a elaborar artifícios e astúcias para desviar de perigos

reais. O tráfego, cada vez mais intenso de veículos – desde aqueles movidos à tração animal,

passando pelo bonde até o automóvel –, foi e continua sendo o elemento constrangedor

primordial das ruas, seja enquanto obstáculo físico, como apartação simbólica, ou ditador de

temporalidades. Berman (1987, p. 153) comenta que se os bulevares de Paris foram

65 Seria possível tecer uma relação desta reflexão de Agamben com as ideias de opacidade e luminosidade desenvolvidas por Milton Santos. Pensaríamos assim que investigar as opacidades em suas tensões com os espaços luminosos seria uma forma de mergulhar nos enigmas do contemporâneo. Ver capítulo 1, especialmente o item “usos opacos em espaços luminosos”.

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projetados originalmente para dar maior fluidez ao tráfego, este avolumou-se tão rapidamente

que passou a dominar completamente aquele espaço, espalhando-se do bulevar para as vias

secundárias, impondo seu ritmo ao tempo das pessoas, de onde se inicia a conhecida sensação

de caos urbano. Contemporâneo que era, Baudelaire via surgir a partir dessa dinâmica entre os

sujeitos e o tráfego respostas criativas para superar obstáculos que, de acordo com Berman,

tornaram-se também práticas de libertação:

O homem na rua moderna, lançado nesse turbilhão, se vê remetido aos seus próprios recursos – frequentemente recursos que ignorava possuir – e forçado a explorá-los de maneira desesperada, a fim de sobreviver. Para atravessar o caos, ele precisa estar em sintonia, precisa adaptar-se aos movimentos do caos, precisa aprender não apenas a pôr-se a salvo dele, mas a estar sempre um passo adiante. Precisa desenvolver sua habilidade em matéria de sobressaltos e movimentos bruscos, em viradas e guinadas súbitas, abruptas e irregulares – e não apenas com as pernas e o corpo, mas também com a mente e a sensibilidade. Baudelaire mostra como a vida na cidade moderna força cada um a realizar esses novos movimentos; mas mostra também como, assim procedendo, a cidade moderna desencadeia novas formas de liberdade. Um homem que saiba mover-se dentro, ao redor e através do tráfego pode ir a qualquer parte, ao longo de qualquer dos infinitos corredores urbanos onde o próprio tráfego se move livremente. Essa mobilidade abre um enorme leque de experiências e atividades para as massas urbanas. (p. 154-155; grifo meu)

Assim, a rua torna-se terreno vasto para a criação tanto no campo subjetivo, pelo

mergulho virtual no plano das sensações obscuras, como no campo objetivo, pela atenção

criativa frente à atualidade de seus constrangimentos; e não apenas para o artista como

também para o homem comum, o praticante ordinário (CERTEAU, 2009) das cidades,

especialmente aqueles sujeitos tomados por um devir-rua66. De fato, essa liberdade parece ser

experimentada, em algum grau, por todo tipo de sujeito que se coloque de forma marginal nas

ruas. Mesmo com suas atividades indesejadas ou ilegais sendo oprimidas pelos usos

permitidos e hegemônicos, eles parecem ser os mais seguros nesse ambiente. Talvez,

justamente porque, sem o amparo da lei ou do capital, eles contem apenas consigo mesmos, o

que os leva a desenvolver macetes e conhecer como ninguém os segredos da rua. Assim, em

estados de rua instaurados, geralmente quando os dispositivos de controle do Estado (como a

66 Como exemplo dessa forma de liberdade proporcionada pela dinâmica das ruas, podemos citar a prática dos bicicleteiros que enfrentam o trânsito das grandes cidades com uma postura corajosa e insolente. Nestas situações esses sujeitos são tomados por uma adrenalina que os leva a desenvolver um estado de atenção necessário para realizar manobras agudas, rápidos desvios, construindo um corpo-bicicleta que toma decisões imediatas de cambaleadas corporais, brecadas e perigosas passagens por entre veículos maiores e em movimento. O desenvolvimento dessas astúcias, ou arte-manhas leva, sem dúvida, ao estado de liberdade que indicava Baudelaire, fruto de uma certa “marginalidade heróica” e de um engajamento corporal e mental singulares mas que, paradoxalmente, seja apenas possível experimentar na disputa pelo espaço das ruas com os veículos motorizados. O que nos leva a pensar que a segregação de ciclistas em ciclovias e espaços próprios, sem constrangimentos, que não exijam deles aquela atenção frente a pressões que surgem de todos os lados, elimine essa qualidade da experiência da rua.

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polícia) estão ausentes para garantir o poder do capital, as forças da cidade parecem se

rearranjar sob uma outra cartografia de poder, na qual trajetórias menores e opacas ganham

força e espaço. São nesses intervalos , que podem acontecer nas mais variadas freqüências e

durações, que as arte-manhas de sujeitos marginais invertem dinâmicas de poder

aparentemente estabelecidas na cidade sedentária, demonstrando a impossibilidade de se

governar completamente o urbano e evidenciando uma potência própria da rua.

Da potência ao ato, ou do devir ao estado de rua

Na tentativa de investigar as características que conferem especificidade à experiência

da rua, a literatura, a teoria literária e a filosofia, surgiram como campos privilegiados para a

visualização das singularidades deste espaço enquanto experiência de vida, individual e

coletiva, em seus aspectos mais sensíveis e intensivos. A opção por uma abordagem da rua

como experiência mostrou também que a caracterização da rua enquanto espaço urbano

singular, não poderia dissociar-se de seus sujeitos, cujas trajetórias constroem e são

construídas (n)aquele espaço. É do caráter dessa relação que pode emergir ou não um estado

de rua. Assim, o devir-rua pode ser visto como um estado de rua carregado pelos sujeitos,

que podem instaurá-lo a partir de suas práticas espaciais. Ao passo que o estado de rua seria

a expressão ou realização desse devir, ou a passagem da potência ao ato.

Podemos dizer que, com todas as mudanças políticas, culturais e tecnológicas ocorridas

de meados do século XIX aos dias de hoje, de alguma forma, determinadas particularidades

dessa experiência seguiram resistindo, em certos momentos se escondendo para mais tarde

reaparecer; em todo caso, desviando ou confrontando abertamente as determinações

modeladoras de todo tipo de poder hegemônico sobre a produção do espaço e dos modos de

vida urbanos. Parece ser a presença desse elemento secular que faz perdurar a potência da rua.

A partir daqui, é compreensível que a história das cidades no século XX possa ser contada sob

o prisma dos esforços dos poderes hegemônicos em apagar ou controlar esse elemento a fim

de neutralizar sua potência. Trata-se de toda uma evolução das estratégias de governabilidade

para destituí-la de suas possibilidades políticas, que busca deslegitimar a instauração de

estados de rua enquanto possibilidade da colisão e da coexistência dessa potência com os

poderes estabelecidos da cidade.

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6. Entra em cena o Urbanismo: a rua como modelo

O esforço de todos os poderes estabelecidos, desde as experiências da revolução francesa, para ampliar os meios de manter a ordem na rua culmina afinal com a supressão da rua.

Guy Debord, Sociedade do espetáculo

O processo de industrialização capitalista parece demandar a constituição das

metrópoles. Como investigou Lefebvre (1991), industrialização e urbanização são processos

que andam juntos, se complementam e dependem um do outro. Seria possível pensar, ainda,

que se foi a economia capitalista que criou a cidade grande, talvez tenha sido o desejo humano

o responsável pelo urbano. Na distinção proposta por Lefebvre, o urbano não seria a cidade

enquanto resultado material, mas as práticas que não deixam de percorrê-la e de enchê-la de

percursos, caminhos e trilhas, a “obra perpétua dos habitantes, que são por sua vez móveis e

mobilizados por e para essa obra” (LEFEBVRE apud DELGADO, 2007, p. 11). Assim, toda a

potência da rua, proveniente da confluência de desejos do conjunto heterogêneo de indivíduos

urbanos não deixa de ser também consequência da sujeição à vida na metrópole imposta pela

dinâmica capitalista. Coube ao urbanismo, para além de suas justificativas funcionais, dar

conta desse paradoxo. Pois parece ser justamente o devir-rua da cidade, aquilo que o

urbanismo progressista67 luta para evitar desde sua invenção no século XIX pelos poderes

estabelecidos, como afirmou Debord.

Ora, mas a negação da rua não seria a negação da própria cidade? Surge então outro

paradoxo que caracterizará a relação do urbanismo com a rua. Afinal, se na escala da cidade a

arquitetura se ocupa, grosso modo, das massas (suas edificações), o urbanismo se propõe a

planejar e desenhar, entre outras coisas, o sistema de vazios que conecta e organiza o conjunto

dessas massas, ou seja, suas ruas. No entanto, o objetivo do urbanismo é, muitas vezes68,

67 Como comenta Jacques (2006), a denominação urbanismo moderno parece ser um pleonasmo já que ele surge de fato enquanto campo técnico-disciplinar com particularidades próprias na segunda metade do século XIX em resposta à congestão das cidades industriais e, como vimos no capítulo anterior, essa é uma das dinâmicas que caracteriza a modernidade das cidades. Choay (1998) propõe a conhecida distinção desta vertente como “progressista”, tendo como principal antagonista a chamada vertente “culturalista”. Ainda que tal reducionismo corra o risco de associar sob a insígnia de uma unidade expressões que não são necessariamente consensuais, ou ainda suprimir expressões “menores” ou “marginais” que tenham ocorrido no intermezzo dessas polaridades, utilizo esta denominação com a salvaguarda de que o próprio recurso aos “modelos” pelo urbanismo será o tema e alvo da crítica ao longo deste capítulo. 68 O grifo em “muitas vezes” indica que nem sempre é o caso, ainda que valha para o urbanismo progressista que predominou nos campos teórico e prático até a década de 60, mas que ainda demonstra seu poder na influência e recepção que possui nos dias de hoje. No entanto, outras vertentes e até mesmo, dissensões no interior do próprio ideário progressista do movimento moderno, questionaram essa visão, desde o autoritarismo dos planos

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tentar impor uma ordem, uma organização, e definir estratégias de controle justamente a esse

ambiente que tem como características fundamentais a desordem e a ingovernabilidade,

fatores decisivos para a experiência da vida urbana. O que está em jogo nessa batalha é todo

aquele conjunto de características descritas no capítulo anterior como atributos que conferem

especificidade à experiência da rua e que constituem sua potência; potência esta que pode, de

tempos em tempos, irromper de maneira poderosa, quando uma multidão toma as ruas movida

por um devir-revolucionário comum. Não foi à toa que em seus esforços pessoais pela difusão

do urbanismo funcionalista, Le Corbusier chegou a proclamar a “morte da rua”69, justificando

tal radicalidade nas últimas palavras de seu manifesto Por uma arquitetura [1923] –

“arquitetura ou revolução. A revolução pode ser evitada” (CORBUSIER, 1981). Se a rua do

século XIX carrega consigo o germe das revoltas – o qual nem o Bulevar foi capaz de

dissolver –, caberia à nova arquitetura moderna “matá-la” a favor de uma cidade inteiramente

nova e destinada ao pleno desenvolvimento de uma outra ordem social, sem que fosse

necessário passar pela revolução socialista.

Tomando como mote a aversão de Le Corbusier à rua tradicional, ou como ele

denominava – “rua-corredor” –, este capítulo dedica-se à investigação das relações entre o

urbanismo e a rua sob a forma de um panorama do entendimento da rua “enquanto conceito”

pelo urbanismo em diferentes circunstâncias históricas70. O objetivo é tentar identificar os

momentos de ruptura em que um novo modelo de rua, apoiado em novas propriedades

desejáveis, emergiu71 como resposta à cartografia das forças em disputa pelo espaço da cidade

e dos debates no campo do urbanismo. Foram assim identificados quatro momentos em que se

pôde associar a emergência de um novo “modelo” de rua que, ao ser aplicado, revelava suas

formas de opressão ou suas limitações diante da experiência cotidiana. Os quatro modelos

serão apresentados a seguir em sequência cronológica de aparecimento.

idealizados e da abstração funcionalista, à denúncia de seus efeitos nocivos às possibilidades de associação humana e invenção de modos de vida, como veremos. 69 Em um artigo publicado no jornal sindicalista francês L’Intransigeant em 1929 (HOUSTON, 1993, p. 326). 70 É preciso esclarecer que esta rápida periodização refere-se ao recorte aqui proposto, o qual coincide com a emergência da modernidade das cidades ocidentais e de suas ruas e que é também a emergência do próprio urbanismo. No entanto modelos de cidade e de rua foram elaborados em diversos momentos históricos, como no Falanstério de Charles Fourier e os “socialistas utópicos”, ou os modelos português e espanhol para o traçado de suas cidades coloniais e muito antes disso a quadrícula de Hipodamo de Mileto (500 a.C) para as cidades gregas, para citar apenas alguns exemplos dentre inúmeros que certamente um percurso mais amplo pela história das cidades poderia apontar. 71 “A emergência é portanto a entrada em cena das forças; é sua interrupção, o salto pelo qual elas passam dos bastidores para o teatro, cada uma com seu vigor e sua própria juventude” (FOUCAULT, 1998, p. 24).

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O bulevar72

Contra a rua anárquica, insalubre e revoltosa do século XIX, surge o urbanismo

racionalista que, tomando como objetivos fundamentais o higienismo e o embelezamento,

buscava também o controle e a ordem nas ruas; não apenas a sua violência comum, mas a

ação revolucionária que explodia em focos por toda a Europa. A este momento pertence a

reforma de Haussmann em Paris, mas também o plano Cerdà para Barcelona73 (elaborado em

1855). Aqui encontra-se também o plano de Pereira Passos para o Rio de Janeiro e de JJ.

Seabra para Salvador, ambos com franca influência Haussmanniana (PINHEIRO74, 2002 apud

JACQUES, 2006).

É possível identificar como modelo de rua desta fase o Bulevar que, nem sempre com

este nome, caracterizava as longas avenidas dotadas de papel estruturante para a circulação e

aeração da cidade; geralmente em linha reta e de largura generosa (algumas chegam a 60

metros), o bulevar apresentava separação entre calçada e leito carroçável, sendo suas calçadas

largas, com arborização, iluminação pública e sistema subterrâneo de drenagem de águas

pluviais, esgoto e abastecimento de água. No âmbito das dinâmicas sociais, ao contrário do

que buscava Haussmann, a configuração do bulevar acabou por desencadear a reunião

daquelas “explosivas forças materiais e humanas” (BERMAN, 1987, p. 159), até então

apartadas pela fragmentada configuração da cidade industrial, medieval ou colonial,

colocando lado a lado pobres e ricos e assim, trazendo à tona as contradições da sociedade

capitalista. Nesta crescente tensão, não foi também capaz de impedir as barricadas, que

ressurgiram mais fortes do que nunca na Comuna de Paris em 1871.

72 Como o papel do bulevar na cidade do século XIX já foi explorado no item “Encontro com a alteridade radical” do Capítulo anterior será apresentada aqui uma breve síntese. 73 Plano de expansão da cidade elaborado após a derrubada de suas muralhas em 1854. Vale mencionar que Hildefonso Cerdà formou-se “engenheiro de caminhos” e trabalhou na construção de estradas antes de dedicar-se aos planos de expansão das cidades de Barcelona e Madri – um indicativo interessante dessa gênese do urbanismo progressista. Em 1867 publicou sua Teoria Geral da Urbanização, onde sistematizou, pela primeira vez, os pontos fundamentais dessa disciplina-técnica que nascia, utilizando pela primeira vez o termo urbanização para designar a ação sobre a urbe. 74 PINHEIRO, Eloísa Petti. Europa, França e Bahia, difusão e adaptação de modelos urbanos. Salvador:EDUFBA, 2002.

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A autopista

O século XX viu surgir a resposta a essa situação com o advento da autopista, a forma

mais objetiva de manter separadas as forças que se encontraram nas ruas do século XIX75. A

autopista surgiria a partir de uma virada de ponto de vista sobre o caos criado pelo trânsito já

no largo Bulevar. Se para Baudelaire a condição da nascente vida moderna incluía tanto

aqueles que estavam determinados a fugir do lodaçal de macadame quanto aqueles que, como

ele, assumiam os riscos de “se sujar” no bulevar76, Le Corbusier apresentaria um terceiro

ponto de vista: a perspectiva do trânsito (BERMAN, 1987, p. 161). Já na abertura de seu livro

“Urbanismo” de 1925 ele fazia um apelo ao poder do automóvel, relatando o impacto que

sentiu no bulevar no retorno das férias dos parisienses:

Nesse dia 1º de outubro de 1924, no Champs-Élysées, assiste-se ao acontecimento, ao renascimento titânico dessa coisa nova, cujo ímpeto fora quebrado por três meses de férias: o trânsito. Carros e mais carros, muito rápido! Recebemos energia, seríamos tomados pelo entusiasmo, pela alegria (...) a alegra da força (...); estar no meio da força, do poder. Participamos desse poder, fazemos parte dessa sociedade cuja aurora está nascendo. (...) Sua força é como que uma torrente engrossada pelas tempestades: uma fúria destrutiva. A cidade se esmigalha, a cidade já não pode subsistir, a cidade já não convém. A cidade está velha demais. A torrente não tem leito. (CORBUSIER, 1992, p. 8-9)

Para Le Corbusier, o leito da rua tradicional, mesmo o espaçoso Bulevar, já não tinha

mais capacidade para abrigar a fúria desse novo poder – o trânsito. As ruas eram para ele

caóticas e conflituosas, e o trânsito, considerado por seus contemporâneos como o grande

problema urbano, era na visão de Le Corbusier a solução. A experiência moderna de

Baudelaire, vista como a incorporação dos movimentos bruscos e sobressaltos no cotidiano do

caminhante na rua, em conflito com o trânsito, passaria a ser a experiência de poder e

velocidade no interior do automóvel (BERMAN, 1987, p. 161). Mas para isso, uma nova cidade

moderna deveria surgir, e com ela o fim da “rua-corredor” e de seus cafés como “mofos a

corroer as calçadas”, dizia Le Corbusier.

As fábricas entregam carros; cada qual quer ter seu carro para fazer as coisas depressa, pois é preciso fazer depressa. A rua de quatrocentos anos atrás subsiste, mas já não tem significado para nós. [...] UMA PICARETADA: Poema de Edgar Poe? Não. Uma picada catastrófica nessa rua milenar que já não rima com nada. A rua é uma máquina de circular; é uma fábrica cujas ferramentas devem realizar a circulação. (CORBUSIER, 1992, p. 118-124; grifo meu)

75 É claro que, ao longo do século passado, se desenvolveu além deste, outros dispositivos para esfriar a revolta dos explorados, camuflar as desigualdades e mitigar os conflitos urbanos. 76 Sobre o macadame e a sarjeta no bulevar parisiense ver “O espaço-tempo dos outros: acoplamentos, variações de posição” no capítulo 3.

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Num elogio da máquina e com base num pensamento racional, , da geometria e da

“linha reta”77, Le Corbusier e os arquitetos dos CIAMs78 formulariam na Carta de Atenas o

modelo para a nova cidade Moderna – racional e funcional –, a cidade das 4 funções: Habitar,

trabalhar, recrear-se e circular. Esta última seria resolvida por um conjunto hierárquico de vias

cuja única função seria garantir a organização e a fluidez do fluxo de veículos para ligar de

modo eficiente os setores que abrigariam as outras funções urbanas. No lugar das ruas

constituídas – com edificações geminadas, comércio, residências, pedestres e veículos no

mesmo espaço –, a autopista, onde dificilmente se encontraria aquele estado de rua que

comporta a instabilidade, a alteridade e o conflito.

Brasília e Chandigarh, na índia, foram as únicas cidades inteiramente construídas

segundo esses preceitos. Mas seus princípios foram aplicados de forma mais ou menos fiel em

inúmeros trechos de cidades, especialmente na reconstrução do pós-guerra na Europa. Mas

foram os subúrbios o verdadeiro palco de inúmeras experimentações destes princípios, tanto

na arquitetura das habitações – ligadas ao conceito de “habitação mínima” e de produção em

série –, como no desenho urbano de seus conjuntos. Priorizava-se aqui a dispersão das massas

construídas em meio ao verde vasto, um espaço coletivo de constituições imprecisas e cuja

principal característica era a dissolução da escala humana.

Não se trata, no entanto, apenas da configuração desses núcleos suburbanos, mas de

todo um modelo antiurbano do qual a suburbanização é tributária e cuja influência da Carta de

Atenas é tão forte quanto a do Movimento das Cidades Jardins inglesas de Ebenezer Howard

no início do século XX. Tal modelo, que tem na autopista seu símbolo máximo e no

automóvel uma necessidade vital, foi a marca do desenvolvimento das cidades estadunidenses

no século XX, não deixando, no entanto, de se propagar mesmo que parcialmente por cidades

europeias e em todos os continentes, inclusive no Brasil.

O processo de transição para este modelo apoia-se no advento do automóvel e sua

popularização. Não sendo mais as distâncias um problema, as classes média e alta abdicariam

da proximidade do ambiente de trabalho em nome de maior conforto, segurança e

exclusividade. Autopistas garantiriam a boa fluidez do trânsito entre o subúrbio habitacional,

77 “o homem caminha em linha reta porque tem um objetivo: sabe aonde vai.(...) A mula ziguezagueia, vagueia um pouco, cabeça oca e distraída (...), empenha-se o menos possível” (CORBUSIER, 1992, p. 5) 78 Os Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, que ocorreram de 1928 a 1956, que definiam os principais temas, a sistematização e difusão dos princípios da arquitetura e urbanismos modernos e que refletiram em sua estrutura interna a cartografia política do Movimento Moderno ao longo de seus anos de duração. Sobre uma visão crítica e política dos CIAMs ver BARONE, Ana Cláudia Castilho, Team 10: Arquitetura como crítica. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2002.

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idílico, ao trabalho no centro de negócios. Ao longo desse trajeto, ilhas de comércio e serviço

rodeadas de bolsões de estacionamentos. Surge aí o shopping, como templo do consumo com

suas ruas artificiais climatizadas e controladas. Paralelamente, tem início um processo de

desvalorização imobiliária da rua tradicional, e de popularização (também chamada de

decadência pela ideologia dominante) – das atividades, produtos e serviços ali inseridos. Esta

imagem de decadência decorre talvez do processo de progressivo enfraquecimento das

“luzes” que o século XIX havia lançado sobre essas ruas. Com a substituição das atividades

que ali prosperaram, isto é, o deslocamento das forças econômicas dessas ruas para as

margens das autopistas, as forças do Estado também redirecionaram seu foco, implicando

num rarefação dos investimentos em manutenção e atualização de equipamentos públicos,

calçadas, mobiliário urbano e segurança pública79.

Este modelo, descrito aqui de maneira esquemática, encontra sua materialização sob as

formas mais diversificadas de adaptação às exigências locais, mas pode com todas as suas

variações ser considerado o modelo da “anticidade” (DELGADO, 2007), pois se baseia em

configuração socioespacial que desativa as qualidades que tipificavam tanto a cidade como

morfologia, quanto o urbano com estilo de vida. Delgado explicita os efeitos nocivos da

persistência e, em alguns casos, hegemonia deste modelo antiurbano para a experiência

política da cidade:

O que se opõe à cidade continua sendo as morfologias residenciais segregadas e repetitivas que vemos se alastrar nas periferias metropolitanas ou os “atratores ilhados” consagrados à prática desconflitiva do consumo e do ócio, que funcionam como colossais máquinas de simplificar e sossegar a agitação que é consubstancial a qualquer definição do urbano. (p. 60)

Com isso, podemos compreender porque a transição da rua-bulevar para a autopista adequou-

se perfeitamente às necessidades do desenvolvimento da cidade capitalista, tanto em termos

de ampliação do consumo quanto de neutralização de elementos que pudessem desencadear

interferências nos seus modos de produção e distribuição, seja num nível macro como nas

pequenas dinâmicas cotidianas. A autopista pode ser vista então como a rua, destituída de

toda a sua potência.

79 Milton Santos (2004) chamaria as forças que se deslocaram de “circuito superior” da economia e aquelas que se apropriaram das ruas tradicionais, configurando-se como comércio popular ou informal, de “circuito inferior”, demonstrando que nos países subdesenvolvidos este último assume um papel fundamental na a adaptação da economia urbana capitalista ao contexto de desigualdade social desses países.

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A rua de bairro

A partir de meados da década de 1950, inicia-se um período de revisão crítica do

Movimento Moderno, tendo como principal alvo o urbanismo funcionalista da Carta de

Atenas que havia ganhado força a partir das reconstruções do pós-guerra. O modelo de rua

que emerge deste período é a rua de bairro, considerando que no calor das mais fervorosas

críticas, tenha-se ido buscar aquilo que seria o mais completo oposto da rodovia. Não o

retorno ao monumental bulevar; mas a simplicidade da rua mais comum, com suas relações de

vizinhança, seu comércio popular, sua estética “kitch”. Como não se trata de um Movimento

como no período anterior, mas de um conjunto de respostas críticas que foram surgindo em

diferentes circunstâncias, a rua de bairro não aparece efetivamente como um modelo, mas

simboliza como que um objetivo comum que se pode apreender de parte das formulações

críticas deste período.

Foram os arquitetos do Team 1080 os primeiros a manifestar uma crítica mais

contundente ao funcionalismo abstrato já nos próprios CIAMs. Em sua nona edição, ocorrida

em Aix-en-Provence em 1953, esses jovens arquitetos, alguns participando de seu primeiro

CIAM, reconheceram sua afinidade por compartilharem a sensação de que ‘a vida escorria

por entre a malha das quatro funções’ (OCKMAN, 1993, p. 181). Já no ano seguinte, num

encontro particular lançaram o Manifesto Doorn no qual, além de criticar o urbanismo da

Carta de Atenas como produtor de towns81 onde as possibilidades de associações humanas

eram dificilmente expressas, apontavam suas principais preocupações, entre elas a noção de

habitat como uma indissociável relação entre a casa e a constituição de uma comunidade; e a

questão da escala, sugerindo uma redefinição do urbanismo enquanto “comunidades em graus

variados de complexidade”82. Assim, eles propuseram substituir as quatro categorias

80 Grupo de jovens arquitetos que participaram dos CIAMs no pós-guerra e compartilhavam uma visão crítica ao funcionalismo abstrato do movimento moderno e à própria rigidez organizacional do congresso. Organizaram o 10º CIAM em Dubrovnik, em 1956 (de onde se origina o nome do grupo), no qual os principais expoentes da 1ª geração não compareceram e, em 1959 em Otterlo, declararam o fim do CIAM. Configurou-se como grupo aberto e rotativo, cujos encontros se caracterizaram pela ênfase na apresentação e discussão de projetos de seus participantes. Seu núcleo era composto por Jaap Bakema, Georges Candilis, Giancarlo De Carlo, Aldo van Eyck, Alison and Peter Smithson, Shadrach Woods, Ralph Erskine, ao qual juntaram-se em momentos variados diversos arquitetos. As reuniões do grupo começaram em 1954, em Doorn, e seguiram em intervalos variáveis até início da década de 1980. Cf. BARONE (op. cit.) e www.cronologiadourbanismo.ufba.br/. 81 A palavra “town” em inglês designa um intermediário entre a cidade e a vila. Refere-se também àquelas cidades que se desenvolveram em torno de uma atividade predominante. 82 Trechos do Manifesto Doorn [1954] como publicado em OCKMAN, 2003, p. 183.

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funcionais por uma hierarquia dos modos de associação humana: a casa, a rua, o bairro e a

cidade83.

Nos anos 1960, uma série de publicações causou grande repercussão no campo teórico,

cumprindo um papel fundamental para o aprofundamento crítico que decretou de vez a

falência dos paradigmas dos CIAMs. Sem dúvida, a mais influente dessas formulações e que

direcionou mais ainda o foco para as qualidades da rua de bairro apareceu em 1961 com o

livro de Jane Jacobs (2000), Morte e vida das grandes cidades, onde a autora acusava o

modelo funcionalista do planejamento urbano de ser o grande responsável pela diminuição da

vitalidade e também da decadência econômica de distritos, ou mesmo cidades inteiras

estadunidenses84.

Jacobs, que era jornalista, não desenhou, mas elencou uma série de atributos que deveria

possuir as ruas para garantir essas qualidades. O bairro, por exemplo, deveria atender a mais

de uma função principal; de preferência, a mais de duas, de modo a garantir chegadas, saídas

e permanências de pessoas em horários distintos, o que incluía lojas, bares e restaurantes que

ficassem abertos à noite. As quadras deveriam ser curtas, aumentando o número de ruas e de

oportunidades de virar esquinas; e as calçadas, contínuas e largas o suficiente para abrigar

formas variadas de apropriação – como a das crianças – para além da simples circulação de

pedestres. Lotes menores levariam a um maior número de edifícios e possibilidades de

combinação de idades e tipologias, conferindo à rua uma necessária historicidade além de

favorecer a heterogeneidade de moradores e uma densidade razoavelmente alta. Ela indicava

ainda, que os edifícios que ladeiam a rua deveriam sempre orientar suas fachadas principais

em sua direção e com o máximo de aberturas, possibilitando assim, em conjunto com essa

combinação de fatores favoráveis, a ativação dos “olhos da rua” e a construção gradual, a

partir de inúmeros pequenos contatos públicos casuais, de uma rede de respeito e confiança

que resultariam na identidade pública da rua85.

83 A questão da identificação, tanto no sentido de orientar-se como no de estabelecer vínculos com o espaço, também foi um traço marcante no grupo. Dois de seus mais reconhecidos membros, o casal inglês Alison e Peter Smithson, para ilustrar suas ideias, inseriram em suas grades do CIAM imagens do fotógrafo Nigel Henderson de crianças brincando nas ruas de bairros populares de Londres. Segundo eles, “a ruazinha estreita da favela funciona muito bem exatamente onde fracassa com frequência o redesenvolvimento espaçoso” (apud FRAMPTON, 1997, p. 330). 84 Além do livro de Jacobs, outras publicações faziam à sua maneira a crítica à arquitetura e urbanismo modernos, apontando novas formas de projetar e planejar num caminho que valorizava a experiência da cidade real, da metrópole historicamente construída e de alguma forma contribuíram para valorização da rua comum. Talvez os trabalhos mais importantes nesse sentido tenham sido, em ordem cronológica, os de Kevin Lynch: the image of the city [1960]; Christopher Alexander: ‘A city is not a tree’ in Architectural Forum, vol. 122[1965]; Robert Venturi: Complexity and Contradiction in Architecture [1966]; e Aldo Rossi: L'architettura della città [1966]; 85 Cf. JACOBS (2000), especialmente os capítulos 2 e 3.

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As décadas de 1970 e 1980, viram surgir um alargamento da produção acadêmica sobre

a cidade, especialmente o surgimento de uma espécie de subdisciplina do urbanismo, o

“desenho urbano”86, e com ele uma proliferação de manuais e catálogos de referências de

espaços e projetos exemplares. Com o planejamento totalizante em descrédito, grande parte

dessa produção debruçou-se sobre as áreas habitacionais, onde passaram a ocorrer inúmeras

experimentações em escala menor para o desenho de quarteirões, ruas e cul-de-sacs.

Paralelamente, ganha força a ideia de um urbanismo participativo, que já esboçava-se nas

práticas do Team 10, especialmente as do italiano Giancarlo de Carlo, que defendia e

experimentava a participação de moradores nos projetos habitacionais. Nos Estados Unidos

esta corrente ficou conhecida como advocacy planning.

No Brasil, o principal expoente desta geração foi o arquiteto e antropólogo Carlos

Nelson Ferreira dos Santos que, com forte influência dos escritos de Jacobs, criticava tanto o

urbanismo “progressista” como o “culturalista” (na acepção de Choay) em defesa da cidade,

do urbano e sua construção processual e cotidiana pelos habitantes. Carlos Nelson, que se

considerava um “antropoteto”, teve um importante papel na urbanização da favela de Brás de

Pina, considerada a primeira realização do gênero no Brasil, elaborando em conjunto com

colegas do curso de arquitetura e junto às associações de moradores da favela um plano

urbanístico como forma de pressionar o governo do Estado a retroceder no processo de

remoção dos moradores que já havia se iniciado87.

Posteriormente, descreve no livro Quando a rua vira casa (SANTOS e VOGEL, 1985),

suas experiências no Bairro do Catumbi, que passava por um processo de desagregação

espacial e social em decorrência de um projeto de renovação para a área em que se localizava,

que incluía, entre outras ações, a passagem de uma via expressa sobre trecho do bairro, o que

implicaria a desapropriação de extensas áreas. Já em meio a este processo, Carlos Nelson e

sua equipe, por meio de pesquisa etnográfica, descrevem a rede de relações sociais que

estabelecia o vínculo de confiança entre os moradores e suas formas de identificação com o

próprio espaço do bairro e suas ruas. Demonstravam, assim, empiricamente, algumas das 86 O desenho urbano adquiriu status de campo particular do conhecimento especialmente a partir das teorias de Gordon Cullen: The concise townscape [1961], dos já citados Kevin Lynch, Jane Jacobs, Christopher Alexander, Aldo Rossi, e posteriormente de Oscar Newman: Defensible Spaces [1972], Colin Rowe: Collage city [1978], Rob Krier: Urban Space [1979] e Bill Hillier e Julienne Hanson: The social logic of space [1984], para citar apenas os mais influentes. 87 Mesmo com um primeiro grupo de famílias removidas, o então prefeito do Rio de Janeiro, Negrão de Lima, “Pressionado por técnicos progressistas e pela organização comunitária da favela, [...] levou adiante a reurbanização de Brás de Pina. Em 1968 contratou Carlos Nelson e seus amigos, agora Grupo Quadra Arquitetos Associados Ltda., para uma acessória na execução do plano urbanístico e habitacional de Brás de Pina com o qual vinham trabalhando desde 1964. Os trabalhos de urbanização de Brás de Pina começaram, finalmente, em 1969, e sua execução durou um ano e meio (ABRAHÃO, 2008, p. 113-114).

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teses de Jacobs, mas também suas, sobre as relações dos usos tradicionais e mistos com a

segurança social das ruas, os conflitos cotidianos como constituintes de uma política da rua e

a imbricação entre forma e usos sociais do espaço como aspectos que, em sua dinâmica,

conduziam a uma maior ou menor vitalidade da rua e do bairro88. Finalmente, é importante ter

em mente que este foi um período marcado pela proliferação dos conjuntos habitacionais e

pela intervenção Estatal na questão habitacional. Desde o fim da segunda-guerra mundial, os

conjuntos habitacionais modernistas foram amplamente difundidos na Europa e Estados

Unidos89, mas rapidamente mostraram sinais de deterioração, concentrando altos índices de

criminalidade e vandalismo. Tornaram-se, a partir de então alvo de crescentes críticas, o que

justifica que grande parte do debate urbanístico tenha girado em torno da questão

habitacional, o que conduziu o foco deste período para a rua de bairro.

A rua de pedestres

O último modelo de rua dessa genealogia é a rua exclusiva para pedestres. De certa

forma, como a rua de bairro, não deixa de ser também uma resposta aos processos

econômicos e urbanos associados ao modelo da autopista. Se a questão habitacional

concentrou as atenções no período do pós-guerra, os centros das grandes cidades, que

passavam por um intenso processo de deterioração, seriam objeto de preocupação cada vez

maior de governantes e urbanistas já a partir da década de 196090. De um lado a proliferação

irrestrita da mobilidade por automóvel torna-os cada vez mais congestionados e

problemáticos, e de outro, o deslocamento das forças econômicas para novas centralidades,

mais próximas aos novos bairros das classes média e alta, modifica profundamente seu

significado simbólico para a cidade com um todo.

88 Vale lembrar ainda que em 1988, Carlos Nelson também faria o seu “manual” de desenho urbano no livro A cidade como um jogo de Cartas88. Livro composto de duas partes: na primeira textos teóricos e críticos; e na segunda, um manual – com linguagem simples e visualmente atraente com vistas à popularização do urbanismo nas escolas de primeiro grau – que poderia ser uma referência para a elaboração dos planos para 6 novos municípios recentemente constituídos no Estado de Roraima. A justificativa nas palavras do autor: “Se se trata de ensinar a alguém como deve ser uma cidade e como se pode controlá-la, o público ideal são as crianças na escola. Em primeiro lugar, pela relativa ausência de preconceitos e abertura para o aprendizado. Em segundo lugar, pelo seu poder de “contaminar” os mais velhos, no ambiente doméstico. Por último, porque delas dependerão, de qualquer forma, as possibilidades de prática e cidadania em Roraima” (SANTOS, 1988, p. 18). 89 E no Brasil pela política habitacional do BNH, a partir de 1964, data de sua criação. 90 Na realidade, é preciso ter em mente que desde os CIAMs do pós-guerra – mas ganhando a devida expressão no VIII CIAM [Hoddesdon, 1951], com o tema “The hearth of the city” – os planejadores já se preocupavam com a situação do “coração da cidade”. José Luis Sert e Siegfried Giedion, talvez os membros mais influentes naquele período do CIAM, defendiam a criação de novos “corações” onde os caminhos de pedestres e veículos fossem autônomos e espaços cívicos e de encontros fossem apropriados à escala da associação humana. Sobre a discussão sobre os centros no VIII CIAM e as idéias de José Luis Sert e Siegfried Giedion Cf. ABRAHÃO, 2008, pp. 80-89.

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Aos poucos os centros tornaram-se alvo de variadas tentativas para reverter esse quadro

e a pedestrianização de algumas de suas ruas tornou-se uma prática recorrente. A ideia é de

que a limitação da circulação do automóvel particular a algumas ruas, tornando outras

exclusivas para a circulação pedestre, associada ao investimento em transporte público e de

massa, seria uma maneira de desbloquear aquela congestão e permitir que os fluxos se

dinamizassem, especialmente os de capital, redirecionando o caráter desses centros para o

turismo histórico e polo de lazer e cultura para a população.

É especialmente a partir da década de 1970 que estas ideias ganham fôlego diante das

mudanças econômicas e culturais no âmbito global e do papel que os processos de

requalificação dos centros poderiam desempenhar a favor da atração de capital para as

cidades. É neste momento que o planejamento urbano “vira do avesso” (HALL, 1995). Em

meio à crise do petróleo, a regulação do solo ligada ao Estado de bem estar social fica

totalmente desacreditada e a crítica conservadora responsabiliza a política urbana pela

degradação das áreas urbanas centrais (ARANTES, 2000). Ao mesmo tempo, ao longo da

década de 1960, toda uma cultura reprimida passou a questionar o conservadorismo e

preconceitos enraizados numa visão de mundo burguesa dominante. O ano de 1968 viu

eclodir a força dessa cultura antagônica sob a forma dos movimentos de gênero, a luta pelos

direitos civis dos negros nos Estados Unidos, a contracultura, a greve geral dos estudantes e

trabalhadores na França e protestos contra as ditaduras no Brasil e América Latina. Tudo

indicava que a classe operária não era mais a protagonista na luta contra o estado de coisas.

Arantes relembra o diagnóstico promulgado por Daniel Bell em As contradições culturais do

capitalismo [1976] que alertava que o risco maior que o sistema corria era o de

“ingovernabilidade”, devido a uma “cultura adversária” solta nas ruas.

Neste contexto, segundo a autora, as cidades passaram a ser vistas como “máquinas de

produzir riqueza”, uma resposta a favor do crescimento econômico a qualquer custo, onde

caberia ao planejamento urbano a função de “azeitar a máquina” (p. 21). É nesse momento

que os papeis do planejador e do empreendedor começam a se confundir, e os projetos para os

centros assumem seu caráter estratégico. Formulados a partir das chamadas parcerias

“público-privadas” eles convertem-se num conjunto de intervenções remodeladoras do espaço

e dos imaginários com vistas à capitalização da cultura, da história mas também da

“etnicidade” e do “sabor”do lugar . Esta seria a resposta ao perigo daquela cultura antagônica

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solta nas ruas, que de adversária passa a parceira na composição de um esquema maior a favor

da cidade, da democracia, da geração emprego, renda, etc91.

Este processo é parte do chamado cultural turn, momento em que, como define

Jameson (2000) a cultura torna-se tão coextensiva à vida social em geral que o cultural e o

econômico já significavam a mesma coisa. No âmbito do urbanismo, Arantes (2000) aponta

que esta virada compõe-se de dois turnos, onde o primeiro configura-se como um retorno à

cidade real, às práticas do lugar, à valorização do genius locci – momento onde se enquadra a

rua de bairro –, ao passo que num segundo turno, o “lugar” e as expressões culturais

“menores” tornam-se imagens passíveis de consumo e incorporação pelo planejamento

estratégico na gestão urbana.

É o que Ribeiro (2006) chama de “acumulação primitiva do capital simbólico”, ação

que se torna cada vez mais intrínseca aos engendramentos entre capital e cidade. O modelo da

rua de pedestres torna-se, neste contexto, mais um instrumento para essa visão gerencial que

incorpora a vida espontânea do lugar e a converte em espetáculo sob a forma de um simulacro

das práticas sociais e da memória coletiva, devidamente selecionadas em função do potencial

para atrair e fazer circular o capital. Isto implica não apenas a interferência direta do

planejamento “na leitura do espaço herdado e no imaginário urbano” (p. 41) como também a

deslegitimação e repressão nas áreas “requalificadas” da presença popular que não se

enquadra nos padrões de um mercado globalizado. Trata-se não mais do genius locci, mas do

que Ribeiro, resgatando uma expressão de Milton Santos, chamou de “psicoesfera”. Esta seria

a interferência da “tecnoesfera” – os sistemas de engenharia que modificam as bases técnicas

das atividades econômicas e da ação social – sobre a construção dos sentidos do lugar, o que,

na prática, resulta na “apropriação privada de acúmulos simbólicos criados ao longo da

historia desses lugares” (p. 43). A rua de pedestres, quando associada aos projetos de

requalificação dos centros tradicionais, pode ser o exemplo sintético da obliteração do

“espírito do lugar” pela psicoesfera espetacularizada.

A sarjeta como vírus

A identificação desses quatro modelos teve por objetivo investigar, a partir de

agrupamentos em recortes temporais sucessivos, de que maneira as mudanças no debate

urbanístico, suas críticas e proposições para questões urbanas e sociais, se refletiram em

modelos de rua, com novas qualidades desejáveis em função da emergência de novos

91 Cf. VAINER, Carlos. “Pátria, empresa, mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico urbano”. In: ARANTES, MARICATO, VAINER (2000).

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contextos culturais e políticos; uma espécie de caminhada pela história do urbanismo através

da rua, ou das visões que este elaborou sobre a rua. Evidentemente, outros elementos dessa

história foram excluídos de modo que se mantivesse o foco nas maneiras com que cada

modelo buscou exercer, cada qual a seu modo, algum tipo de controle sobre a experiência

urbana e no papel do saber urbanístico como dispositivo de poder, seja a favor dos processos

econômicos hegemônicos, seja com vistas a uma sociedade idealizada que nunca se realizaria.

É preciso ressaltar também que esses modelos, ainda que apresentados em seqüência

cronológica de aparecimento, quase nunca se sobrepuseram mas, aplicados em espaços

diferenciados, foram se acumulando e hoje coexistem nas cidades contemporâneas sob as

formas mais puras ou mestiças, geralmente em proporções desequilibradas em cada cidade,

simbolizando exatamente o que o urbano representa: a colisão, a contaminação, o conflito e a

disputa por hegemonia.

Se for possível sintetizar os objetivos e falhas de cada um deles, diríamos que o bulevar

tenta ordenar o caos da cidade industrial, mas acaba por ativar o conflito político na rua,

permitindo a coexistência no mesmo espaço de uma alteridade radical; a autopista tenta

otimizar as funções urbanas e dar velocidade aos deslocamentos, mas favorece a segregação

sócioespacial e o esvaziamento da vida pública; a rua de bairro tenta recriar a comunidade

perdida sem perceber que “o declínio do homem público” (SENNETT, 1998) tem raízes

muito mais profundas do que uma morfologia mais conveniente poderia reverter; e a rua de

pedestres tenta recriar uma atmosfera do século XIX na escala e no tempo do pedestre, mas o

faz sob a forma de um simulacro cenográfico onde práticas urbanas conflitivas não têm

permissão para entra ou que se caracteriza pela “produção de centros históricos dos quais a

história é a primeira a ser expulsa” (DELGADO, 2007, p. 59). Em contrapartida, várias das

questões-alvo dessas respostas urbanísticas permaneceram e se intensificaram nos dias de

hoje: o automóvel continua sendo um problema incompatível com a dinâmica de crescimento

das cidades; o espírito de vizinhança é cada vez mais escasso diante da interiorização das

esferas da vida social; e a desigualdade econômica as diferenças nos modos de ver e usar o

espaço continuam produzindo alteridade, dos bulevares às ruas de pedestres.

Seria interessante destacar também que além desses modelos de rua, outras práticas

mais recentes de intervenção urbanística têm contribuído para a diluição das circunstâncias

capazes de dar vazão às potências características das ruas. Além da persistência na

fragmentação das atividades urbanas em espaços cada vez mais especializados, há também

um crescente investimento no estriamento e segregação dos próprios fluxos de circulação em

espaços funcionalizados e autônomos. Lembremos, por exemplo, a difusão dos chamados

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BRTs92, que rasgam as avenidas principais e parecem ganhar força não apenas porque

otimizam o transporte, mas principalmente porque desafogam o trânsito, liberando espaço

para o automóvel.93

No intermezzo entre a calçada dos pedestres e a pista dos veículos que, como vimos,

traduziram-se em modelos puristas, idealizados ou opressores da experiência urbana

espontânea, encontra-se a experiência da sarjeta. Esta não poderia estar associada a um

modelo, mas talvez à imagem de um vírus sob a qual vislumbraríamos as práticas marginais,

mais opacas, ou simplesmente mais lentas, ao mesmo tempo escapando, penetrando e se

proliferando pelas porosidades existentes naquele ponto de encontro das práticas do

planejamento com as práticas do cotidiano que ganham corpo nas ruas. Nos termos da

genealogia de Foucault (1998), a sarjeta simbolizaria a própria “anti-ciência” que mobiliza

aquele saber local, não legitimado, para questionar os efeitos do saber científico do urbanismo

enquanto dispositivo de poder sobre a experiência da rua. Sobre o projeto destas “genealogias

desordenadas e fragmentárias”, Foucault diz que devem transfigurar-se em táticas que, a partir

da discursividade local, ativariam e libertariam da sujeição os saberes históricos, menores,

tornando-os capazes de oposição e luta contra a coerção de um discurso teórico, unitário,

formal, científico (p. 171-172).

O vírus da sarjeta seria então a camada do cotidiano, das práticas do lugar, que penetra

qualquer tipo de rua. É a anti-ciência que invade o modelo para desafiar suas pretensões de

controle. A sarjeta, enquanto intermezzo, de contornos imprecisos, simboliza o componente

desestabilizador das ruas que abriga tudo o que está fora-do-script e que fará com que os usos

e significados com origens e objetivos distintos entrem em conflito. Simboliza, por fim, o

poder local reivindicando sua ingovernabilidade diante dos poderes-saberes hegemônicos e

autonomia para que a rua invente e opere sua própria política.

92 Sigla para Bus Rapid Transit, sistema de ônibus articulados em corredores exclusivos segregados e estações de embarque com pagamento prévio à entrada no ônibus, inspirados no modelo do “ligeirinho” de Curitiba. 93 A implantação desse tipo de sistema geralmente envolve o remodelamento de ruas e avenidas pela inserção de barreiras, muitas vezes intransponíveis aos pedestres que desejam cruzá-las transversalmente, independentemente de passarelas elevadas ou subterrâneas. Além disso, estimula e intensifica um tipo de experiência urbana baseada na velocidade e no encapsulamento; na ideia de que a rua é lugar de passagem e que esta deve ser cada vez mais rápida e “indolor” de modo que os choques e as possibilidades de desestabilização característicos da experiência da rua possam ser evitados. A vida urbana, neste caso, deve acontecer em locais apropriados e previamente programados, sem espaço para o acaso, desvios, ou surpresas. Num caminho similar, grupos ciclísticos reivindicam a construção de ciclovias exclusivas, sem perceber que estão enfatizando o domínio do automóvel e abdicando de seu direito sobre a via pública. Mais uma vez, segregação no lugar do compartilhamento.

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... desvio ...

Em Brasília, é carnaval. Em momentos diferentes uma figura na cidade chama a atenção do cartógrafo.

Primeiro contato: de dentro de um carro a percorrer o “eixinho” um objeto se destaca em meio ao verde;

parada na beira da pista, uma bicicleta diferente, cores extravagantes, elementos acoplados... passou.

Segundo contato: de dentro de um restaurante, observando a rua, o cartógrafo vê passar um homem de

bicicleta. Reconhece, era aquela mesma bicicleta. Curioso, observa-o parar ao longe. A bicicleta carregando

alguns sacos, parada, e o homem a vasculhar um container de lixo.

Acabado o carnaval, o cartógrafo-bicicleteiro decide procurar pelo sujeito. Percorre de bicicleta algumas

comerciais e não o encontra. Lembra-se então do ponto do eixinho onde o viu a primeira vez. Pedala até lá

e para sua surpresa já avista de longe a bicicleta extravagante.

NARRATIVA CARTOGRÁFICA #4Brasília: Um pirata do asfalto

>> A bicicleta

Sob a sombra de uma árvore, um homem lê um livro, deitado sobre uma base de concreto coberta

com papelão. A bicicleta ao lado; alguns objetos pelo chão. A tranqüilidade do homem, que parece gozar

deliberadamente a escala bucólica da cidade (algo que os brasilienses fazem cada vez menos), contrasta

com a velocidade nervosa do fluxo de carros que passa ao lado, na via expressa que os moradores da cidade

apelidaram de eixinho.

A bicicleta tem cores chocantes, um baú na frente, um grande

bagageiro atrás, caixas nas laterais, um painel cheio de botões, luzes,

desenhos, ferramentas e no quadro, uma placa de madeira onde

se inscreve: “pirata do asfalto”. Assim é como ela era no momento

daquele encontro. Antes teve outras formas, cores, apetrechos

e nomes. Hoje já não é mais assim e não pára de mudar. E não

porque seja apenas um veículo que o Pirata do Asfalto necessite

constantemente aperfeiçoar. Suas transformações não são apenas

de ordem funcional, mas também estética e afetiva. Confundem-se

com a própria personalidade do condutor. A bicicleta carrega assim,

um sentido de obra, sempre inacabada.

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O Pirata é um artesão-bricolador. As adições à carcaça original são desenvolvidas a partir de elementos

encontrados no lixo: placas, grades, caixas, papéis coloridos, fios elétricos, leds de brinquedos.“Você não

imagina o que dá pra encontrar ali”. Mas o sentido desta obra apenas se completa no uso, em movimento. Se

catar recicláveis na cidade pode ser uma competição entre o crescente numero de indivíduos que encontra

neste trabalho sua fonte de renda, esses incrementos tornam a bicicleta, ou o corpo-bicicleta do Pirata do

asfalto extremamente eficiente nas operações de catar, empilhar, amarrar, equilibrar e deslocar sacos com

latinhas e outros materiais recicláveis.

>> habitar

Este sujeito vive na rua, num habitar fragmentado. Chama seus dois principais pontos de “meu dormitório

e minha área de estar”, distantes 200 metros um do outro. O dormitório é um abrigo montado todas as

noites utilizando um ponto de ônibus e a bicicleta como suportes. Alguns pertences ficam guardados na

copa de uma árvore próxima. Lá também fica escondido um reboque que se acopla à bicicleta nos finais de

semana, quando consegue catar maior quantidade de latinhas.

A área de estar é aquela onde o encontrei. É onde cozinha, lê um livro, trabalha em seu álbum, onde

guarda fotos, ilustrações, escritos e recortes de publicações encontradas no lixo. É também onde faz a

manutenção da bicicleta ou tira um cochilo. Fica por lá durante o dia quando decide não trabalhar.

Os dois pontos estão associados a uma movimentação contínua de 2 postos de gasolina e há uma

adequação entre os fluxos de cada local e suas atividades. Pela noite dorme numa via local, residencial, com

pouca movimentação, silenciosa, mas muitas janelas abertas e ouvidos capazes de se assustar com qualquer

barulho mais estranho, além da presença de porteiros e vigias, o que lhe dá segurança. Mas permanecer

ali durante o dia, com moradores caminhando ou passando de carro em velocidade baixa, pode incomodar

aquele padrão classe A: “não posso passar o dia lá porque suja a área”. Daí a importância de desaparecer

qualquer vestígio de seu abrigo durante o dia.

Por outro lado, o ponto de estar acontece ao lado do fluxo intenso, porém indistinto de uma via arterial.

Aos milhares de automóveis que passam ali, sua presença mal é notada. Mas um ato de violência não

passaria despercebido: “aqui tem uma coisa: testemunha”. É tanto carro, que o barulho que pode inicialmente

incomodar, transforma-se em pouco tempo num zumbido de freqüência quase regular. Ao mesmo tempo,

o tráfego de pedestres ali é rarefeito, deixando-o sossegado.

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Para limpeza pessoal e outras

atividades domésticas, o Pirata se vira com

o que a cidade oferece. Lava roupa no Lago

Paranoá. Utiliza os banheiros públicos com

chuveiro do Parque da Cidade. Estabelece,

também, relações que o ajudam: há um

posto de gasolina próximo a cada um de

seus pontos principais, onde a amizade

com frentistas permite que utilize o

banheiro ou que guardem sua barraca.

Além disso, sempre que está em sua “área

de estar” ganha uma quentinha do “prédio

de militar” que fica logo ao lado, que chega

do quartel para alimentar os funcionários

do edifício.

Com essa rotina “doméstica” espacialmente fragmentada, o Pirata difere de seus companheiros

carroceiros, que costumam trabalhar em família e montar acampamentos com barracos em grandes lotes

vazios e áreas públicas ocupadas pelo cerrado, sendo constantemente alvo de remoções violentas pelo

Siv-solo1 . Habitando a cidade de forma singular, este sujeito ambulante borra os limites das idéias de

propriedade, invasão e apropriação do espaço público. Qual a diferença de seu modo de habitar para o de

seus colegas de profissão? A resposta parece estar nos usos do movimento e do tempo na apropriação dos

espaços. Sua habitação não se configura como invasão apenas porque não pretende definir um território

exclusivo. O território existe, mas não se descola de seu corpo e se instaura apenas quando este está

presente. O solo é sempre suporte, nunca se configurando como propriedade ou suas réplicas simbólicas

(mesmo que ilegais).

No caso das ocupações de catadores no cerrado, se define um território de propriedade da família ou do

grupo, ainda que este já nasça com os dias contados. No caso do Pirata, mesmo que todos os dias pontos

específicos da cidade sirvam às mesmas atividades, elas têm duração efêmera e o território se dissolve assim

que a atividade termina. Quando ele não está num ponto, qualquer outro indivíduo pode fazer usos diversos

do mesmo local. Dessa forma, a política de habitabilidade do pirata consiste em profanar a propriedade e os

territórios sedentários com os usos do movimento e do tempo sobre o espaço, sobrepondo a essas noções

as de suporte e de territorialidade.

>> Trabalho ambulante

O trabalho ambulante da catação, especialmente de latinhas (o alumínio é o “ouro branco” dos recicláveis),

exige um ajuste de rotina muito peculiar à rotina dos outros habitantes da cidade para garantir uma boa

eficiência que leve a uma renda razoável. Na quinta-feira pós-carnaval o pirata se dava uns dias de descanso

já que estava com um lucro acima de sua renda semanal regular. O Carnaval é o “13º” dos catadores

de latinhas. Assim, em seu auto-proclamado recesso aproveitava para descansar, ler um livro, pintar de

vermelho o novo aro de aço comprado com o dinheiro extra para reforçar a cargueira.

Já em circunstâncias ordinárias sua semana começa na quarta-feira pela noite, quando as pessoas

começam a sair para beber. Até domingo o percurso se concentra pelas ruas comerciais do Plano Piloto,

onde ficam os bares; e segunda-feira é o dia de buscar nos blocos (residenciais) das superquadras, quando

se acumula o lixo do fim de semana. Terça-feira “é meu domingo”, diz o Pirata, “que também é filho-de-

Deus” e nesse dia não trabalha.

1 Sistema Integrado de Vigilância do Solo. Órgão do Governo do Distrito Federal que age como polícia do solo em ações truculentas e repressivas a ocupações provisórias de catadores e moradores de rua, ou a ocupações de movimentos sociais ligados à habitação. Seus serviços, no entanto não se prestam aos casos de grilagem de áreas públicas ou ocupações ilegais da orla do Lago por empreendimentos privados.

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Estamos no seu ponto de dormir, às 04 h da manhã, quando começa seu

percurso. A barraca é desmontada em poucos minutos e guardada com os

colegas do posto. O Pirata segue pelas comercias mais próximas parando

em cada container de lixo. É um trabalho rápido e ritmado: o que interessa

vai sendo jogado no chão. A prioridade é das latinhas, que são depois

pisadas e jogadas no baú frontal. Outros elementos de valor comercial

(papelão, fios elétricos cujo cobre é derretido e vendido) ou pessoal (como

revistas e materiais que possam ser reutilizados) são separados em outros

compartimentos. A dinâmica se repete em cada parada e quando o baú se

enche entra em cena o bagageiro com seus sacos, paus e amarras. Os sacos

são volumosos e resistentes e seguem sendo preenchidos a cada esvaziada

do baú.

Descemos a tesourinha e seguimos. Em certo momento depois que o dia

amanheceu o pirata pára na padaria de sempre onde toma um cafezinho

e come um pão com ovo. Segue ziguezagueando o desenho repetitivo

das ruas do plano-piloto passando por todas as comerciais, como que

costurando uma das asas do avião (ver montagem p. 116a). Outro saco

passa a ser preenchido. Eles vão sendo amarrados nos suportes feitos de

cabos de vassoura e empilhados. Nos fins de semana, quando há muito

material, um varal de roupa se desdobra do bagageiro original, duplicando

a base de sustentação para suportar um volume maior.

Estamos percorrendo o lado leste do Eixo Rodoviário rumo ao fim de

uma Asa, ao longo das chamadas 200 e 400 que ficam em nível mais

baixo. O ciclo é facilitado pela topografia: Chegando ao fim da Asa o Pirata

cruza o Eixão2 subindo ali outra tesourinha e aproveitando que neste

ponto o desnível é mais ameno (todo ciclista sabe disso. Provavelmente os

motoristas não percebam). Isso é importante considerando uma bicicleta

carregada de peso. No lado de cima, lado oeste do Eixão, percorremos o

sentido inverso, costurando as comerciais das 100 e 300 segundo o mesmo

desenho rumo ao ponto de partida.

Quando está em movimento, o Pirata comporta-se de maneira curiosa e

sua relação com o trânsito vai mudando gradualmente. Sua velocidade vai

decrescendo na medida em que a bicicleta vai ganhando peso e volume.

Esses dois efeitos levam a maior lentidão e esta demanda maior equilíbrio.

Quando fica muito cheia, aquela bicicleta que já é estranha, torna-se mais

ainda, onde mal se vê o ciclista em meio aos sacos de material empilhados.

Lento, um tanto desengonçado e visivelmente instável, o corpo-bicicleta

em seu estado avolumado transforma-se num objeto peculiar, mas

paradoxalmente mais seguro no trânsito, pois ganha visibilidade e passa a

figurar como um corpo estranho ameaçador aos automóveis, que buscam

assim evitar aproximações.

Ao longo do percurso percebo que o Pirata do asfalto é um personagem

conhecido, especialmente dos trabalhadores das comerciais e porteiros de

prédios, que o vêem cotidianamente e esses afetos são cativados, sobretudo,

pelo curioso artefato tecnológico que é seu veículo.

2 Nome popular do Eixo Rodoviário, aquele que segue longitudinalmente ao centro das Asas Sul e Norte e que cruza o Eixo monumental (o corpo do avião).

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Ciclo de trabalho ambulante sobre as vias planejadas de Brasília. Montagem sobre desenho de Lúcio Costa

e foto aérea atual.

Um ciclo se fecha começando onde terminou no fim da manhã com 8 a 10 Kg de material. Todas as

comerciais de uma “asa” inteira foram percorridas. De carrinho cheio segue até um edifício no anexo da

esplanada, ponto onde fica um dos atravessadores que compram os recicláveis de catadores. De bicicleta

vazia, sobe para o ponto de estar, almoça o “marmitex” e repete o circuito, desta vez fazendo um ciclo e

meio para chegar ao fim da tarde no fim da Asa Norte, onde vende o material coletado a outro atravessador,

uma oficina. A rotina, quase monástica, se repete nos dias de trabalho usual, cujo percurso diário atinge

quase 40 quilômetros.

Quando a latinha era R$ 2,70/Kg havia bastante concorrência entre catadores. Agora, depois das medidas

de repressão do último governo a concorrência diminuiu muito. Às vezes o Pirata não encontra com um

só catador num dia inteiro. Ele explica que na Asa Sul os comércios são territórios apropriados por grupos

diferentes de catadores e já teve até morte; mas na Asa Norte não existe isso, o lixo é de quem chega

primeiro. Esse é um dos motivos para iniciar o trabalho tão cedo (4h): “Quando o dia amanhece eu já estou

com meus sacos cheios.”A eficiência desta rotina mostra-se então completamente atrelada a seu modo de

habitar.

veja bem, eu ganho bem aqui, mas é porque no final de semana eu começo 4hs da

manhã. Se eu morar no entorno, não tem como eu chegar aqui 4hs da manhã. Desse

jeito dá pra ganhar um dinheiro bom, mas o horário de trabalhar é complicado. Se

eu venho do entorno, pego o primeiro ônibus 6hs da manhã, dependendo da cidade,

pra chegar aqui 7:30, 8hs da manhã, aí eu não pego mais nada. Em vez de ganhar

50, 60 reais por dia, vou ganhar 20, 30 reais. Por isso é melhor guarda dinheiro e

ficar por aqui mesmo.

O trabalho de catação lhe garante uma renda entre R$ 200 e 250,00 por semana. Possui uma conta na

Caixa Econômica, do tipo conta social, que é possível abrir apenas com a carteira de identidade. “A única

coisa que ajuda o pessoal na rua, pois dinheiro na mão vai embora rapidinho”.

>> Na rua

Viver na rua, neste caso, trata-se de uma escolha, da opção por um modo de vida, e não uma condição

imposta por fatores externos, mas o pirata não esconde suas dificuldades. Há 18 anos foi espancado, na

única ocasião em que foi assaltado [ ele me mostra suas cicatrizes]. Passou também pelo constrangimento

de uma “captura” e “aprisionamento” forçados pelo Centro de Triagem de Migrantes de Campo Grande, o

CETREMI (ou “cê treme”). Lá passou um mês realizando trabalho de limpeza urbana, com seus documentos e

pertences confiscados, até que a quantidade de trabalho realizado fosse considerada “suficiente” para pagar

sua passagem de volta a seu Estado. “Quem pratica triagem de gente e obriga a trabalho forçado, senão os

nazistas?” Pergunta indignado. Nas últimas chuvas pegou uma pneumonia pela umidade que vinha do chão,

atravessando as camadas de papelão onde dorme. Experimentou o tratamento diferenciado (para pior) dado

a moradores de rua, classificados como “andarilhos”, no serviço público de saúde. É preciso ter esperteza,

não dar motivos para ser perseguido, aprender “macetes” para viver na rua. Envelhecer na rua é “caixão”,

com saúde e independência é possível, mas não é pra qualquer um.

Desde que saiu de casa, o Pirata passou por 9 estados, do Rio Grande do Sul a Rondônia. Sobreviveu

fazendo artesanato e trabalhando com material reciclado, sempre dormindo na rua.

Você aprende a viver na rua. Não mexer com droga. Isso aí é coisa que derruba o

cara na rua rapidinho. Às vezes eu tô dormindo ali e me aparece algum lá. Tem um

garçom de um restaurante dessa comercial aí que começou a fumar maconha lá

no ponto onde eu durmo, e eu já falei pra aqueles policiais ali do exército: eu não

mexo com isso. Moro na rua, mas não mexo com isso. [...] O cara vai ter que sair

daí. Os caras, os PMs do exército, falaram: pode deixar que nós vamos correr com

esse cara daí rapidinho. Pronto, me livrei de mais um já. Você aprende.

HABITAR

+

TRABALHO

TÁTICA

MICROPOLÍTICA

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O Pirata opera aí uma manipulação astuciosa da polícia a seu favor. O conflito é trabalhado de forma

indireta, visando evitar que seu ponto seja ocupado com usos que atraiam dispositivos de repressão e que

sua imagem possa ser associada a esses usos. Para isso ele não poderia acessar qualquer policial, mas

aqueles que já cativou, que o conhecem. Se sua posição social enquanto morador de rua torna qualquer

conflito direto um risco à manutenção de seus pequenos ganhos, aciona-se a astúcia que as operações táticas

exigem, jogando com o poder, sem possuí-lo, num território que não é seu. Se a polícia é geralmente uma

ameaça a sujeitos da rua, construir então afecções com alguns deles como forma de proteção e possibilitar

um uso oportuno desse poder exterior. “A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar

com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha. [...] a tática é movimento

dentro do campo de visão do inimigo e no espaço por ele controlado; [...] a engenhosidade do fraco para

tirar partido do forte, que desemboca na politização das práticas cotidianas”, nos fala Michel de Certeau

(2009, p. 44; 94).

Outro tipo de conflito se dá na relação contraditória que o Pirata tem com seus colegas e concorrentes,

os carroceiros, com os quais evita disputar território. Em Brasília, experimentou vários pontos até encontrar

os atuais. Chegou a dormir no cerrado próximo ao lago, e gostava, mas saiu de lá em busca de outro ponto

quando carroceiros começaram a ocupar a mesma área. Diz que a maioria é “criminoso, fugitivo da Bahia”,

e seu instinto o mandou manter distância. Mesmo assim, mantém relações de troca monetária com alguns

deles: “tem um aí que compra minhas placas de computador (encontradas no lixo) que tem dois homicídios

na Bahia.”

Por meio de sua visão é possível entender um pouco do corpo-a-corpo entre esses sujeitos e os

dispositivos de repressão do Estado. Houve um aumento substancial de carroceiros3 em Brasília

nos últimos 10 anos, conseqüência natural do crescimento da cidade e sua força centrípeta de

atração de indivíduos e famílias em busca de possibilidades de renda. O número cada vez maior de

carroceiros nas ruas, entretanto, passou a incomodar a vista dos moradores e, principalmente, a

atrapalhar o trânsito, o que levou o governo local a formular Lei Distrital que proíbe a circulação de

carroças na cidade. Placas “anti-carroça” apareceram nas comerciais e na esplanada dos ministérios,

principais pontos de coleta de latinhas e papel, respectivamente.

Às vésperas do aniversário de 50 anos da cidade o governo em exercício promoveu uma verdadeira

“limpeza social” no Plano Piloto, intensificando a fiscalização sobre a circulação de carroceiros

juntamente com a derrubada de suas ocupações clandestinas no cerrado. Além disso, também as

cooperativas de catadores, apoiadas pelo governo anterior, foram paulatinamente abandonadas por

aquele governo4 .

O Pirata conta que com suas carroças proibidas de circular, juntamente com outros obstáculos

a essa prática promovidos pelo governo, vários catadores voltaram para seus Estados e alguns

migraram para a bicicleta, mas mesmo assim a repressão persiste. Entre os poucos catadores que

adotaram a bicicleta, houve problemas com as autoridades. Aquelas muito velhas passaram a ser

interceptadas, confiscadas e levadas para depósitos. Aplica-se a esses novos ciclistas-catadores a

regulamentação exigida no CTB (Código de Trânsito Brasileiro) para o uso da bicicleta – espelho

retrovisor, refletores, etc. –, fiscalização que não se vê aplicada a outros tipos de ciclistas. O pirata

chegou a ser abordado, mas sua bicicleta é nova e tem todos os equipamentos de segurança. “O

pessoal da SEOPS5 passa e até buzina pra mim, porque já tomaram conhecimento.” Os carroceiros

foram, assim, paulatinamente sumindo das vistas por um período. Tornaram-se menos visíveis, mas

continuaram a circular, desviando da fiscalização pela noite e nos finais de semana.

3 A grande maioria dos catadores de recicláveis em Brasília trabalhava com carroças guiadas por cavalos. Uma maneira de vencer as grandes distâncias apoiando-se na disponibilidade de espaço, inclusive na largura generosa de suas vias. 4 Estas informações foram levantadas no início de 2010, período do Governo Arruda, o qual renunciou em meio às denúncias da operação “Caixa de Pandora”, escândalo de corrupção que ficou conhecido na grande mídia como “mensalão do DEM”.5 Secretaria de Estado da Ordem Pública e Social e de Controle Interno do DF.

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>> A importância dos micro-territórios: o acoplamento a um artefato tecnológico-afetivo

“Rapaz, tem 18 anos que eu saí do Paraná. Já rodei tudo...”

[Você saiu de bicicleta de lá?]

“só rodo de bicicleta. Pra qualquer lugar. Já tive umas 40 bicicletas”.

A relação afetiva do Pirata com a bicicleta apresenta-se de modo muito forte. Nesta desterritorialização,

estar com a bicicleta é não estar sozinho, sem território algum, situação que pode levar o indivíduo a loucura.

Essas pistas sugerem que a construção de um território material, mesmo que de pequenas dimensões como um

veículo-abrigo, parece ajudar o sujeito em processo de desterritorialização a não perder completamente suas

referências. Lembro do filme “Andarilho” de Cao Guimarães (2006), particularmente da cena em que os trajetos

de dois andarilhos se cruzam na beira de uma BR. Um deles carrega um artefato/veículo/abrigo que parece

enraizá-lo de alguma maneira frente ao perigo da desterritorialização total da qual o outro parece padecer.

O cultivo do afeto pela bicicleta revela-se como um enraizamento antigo a esse micro-território, que dá ao

Pirata uma espécie de chão e lhe garante alguma estabilidade (física e emocional) sobre a fugacidade do asfalto

passando, todo o resto ficando para trás.

Aí eu fui de bicicleta, porque de ônibus você não conhece. [de ônibus você vê tudo pela

janela né?] - e rápido. Tem um lago bonito lá; de bicicleta você pára, dá uma pescada,

assa um peixe (risos de quem mostra um tesouro escondido). [é outra velocidade

mesmo]. - é outra história...

>> Movimento e nomadismo

“para o nômade é a própria desterritorialização que constitui sua relação com a terra, por isso ele se

reterritorializa na própria desterritorialização”(Deleuze e Guattari, 1997,p. 53).

Tento compreender essa necessidade de estar sempre em movimento. Por que viver na rua? Qual seria o

combustível que o move? A resposta parece ser simplesmente a opção por um modo de vida e uma aversão

à condição de empregado. É claro que existem elementos biográficos que levaram a essas escolhas; traumas

determinantes para um desvio inicial. Mas hoje isso já não importa e sim a atualidade de seus atos. Uma

outra pergunta seria então, por que não? Que experiência de rua o pirata nos ajuda a conhecer? O que ela nos

revela e em que aspectos nos provoca? Este sujeito considera-se livre e numa condição muito melhor que um

trabalhador assalariado, que segundo ele, “vive para trabalhar”, e me dá como exemplo os empregados do

posto de gasolina, que ganham menos do que ele e têm mais despesas com transporte e moradia.

Olha, eu penso assim, em um dia parar. Eu tô com 36 anos, hora que bater nos 40

anos eu vou criar raiz, mas por enquanto... [sem raiz]. nada de arrumar casa, pagar

luz, pagar água, pagar nada. Por enquanto é só...deixa pra lá o teto, o teto tá aqui

ó, pra você pisar em cima. Na hora que bater os 40 anos eu começo a sossegar.

Com suas despesas mínimas o Pirata está economizando para seu “projeto de sossego” aos 40 anos, quando

pretende adquirir uma terra onde possa plantar e sobreviver de forma independente. Pensa em cidades como

Cuiabá ou Palmas, onde a terra ainda é barata. Quando era jovem isso nem passaria por sua cabeça; nada

poderia prendê-lo. Mas “não dá pra envelhecer na rua”.

Um aparente paradoxo entre o desejo de liberdade que o impulsiona a uma vida nômade e este projeto

de vida sedentária mostra um sujeito atravessado por intensidades de exterioridade aos padrões sociais e

culturais hegemônicos, mas também pelos mais elementais processos de subjetivação capitalista.

Assim, o nômade só existe enquanto potência, um impulso, um desejo que vai e vem; o andarilho liga-se à

figura como vista pelos outros. Resulta da construção de um personagem, que possui uma ética e uma estética

próprias; mas o sujeito ambulante é impuro: nômade e sedentário, personagem e ser humano, desviante e

capturado.

LENTIDÃO

SOLO COMO

SUPORTE

Frames do filme Andarilho (GUIMARÃES, 2006)

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>> Micropolítica e territorialidade

A constituição de sua territorialidade passa por uma série de procedimentos e parece estar diretamente

relacionada à construção de um personagem e dos usos que faz da bicicleta. Entre inúmeras relações que

estabelece vemos operar sua micropolítica.

[o que o levou a escolher esse ponto?]

Eu sou conhecido aí. [Mas tem algo a ver com o fato de ser uma quadra de militar?]

Isso não, é porque é tranqüilo. Esse lugar aqui mesmo, você pode passar o dia

inteiro aqui e você não vê um maconheiro. Se você for ali perto do HRAN, tem aquela

turma da rodoviária, ali é mais perigoso. Mais lá pra baixo já não é perigoso. Então

você tem que saber escolher o local que vai. Agora, quando eu tô trabalhando, em

cima da bicicleta, eu vou tranqüilo pra todo lado porque você não pára. Às

vezes eu passo lá, tem três ou quatro vagabundos.......e aê cara, beleza?! Beleza.

E sigo.

[Quando você não está com a bicicleta onde ela fica?]

Lá no posto. Eu sou conhecido ali. Tô sempre conversando com o pessoal, me

envolvendo com eles... sabe como é, quando você é morador de rua tem sempre

aquela desconfiança de que é bandido. Mas aí eles tomaram conhecimento, viram

que eu não mexo com nada. Aí a própria PM que faz a rota ali, peguei conhecimento

com eles também.

Seja com os funcionários do posto ou porteiros que o ajudam; usuários de drogas e carroceiros, que

atraem dispositivos de repressão, com os quais evita aproximações; a polícia e fiscais da Secretaria de

Ordem Pública, com os quais já teve problemas e por hora não o incomodam porque o conheceram; trata-

se de se envolver ou não se envolver, “pegar conhecimento”.... E aqui a bicicleta é uma peça fundamental.

Numa primeira instância, apenas colocar-se em movimento se transforma num instrumento de segurança

e liberdade. Se a escolha dos pontos de parada é cuidadosamente estudada e ponderada, quando está

em movimento com a bicicleta sente-se empoderado e capaz de cruzar territórios considerados perigosos

em outras circunstâncias. Numa segunda instância, a bicicleta é a aliada do pirata do asfalto nos seus

movimentos de desterritorialização – da família, da terra natal, do aluguel, da condição de empregado.

Mas na construção de sua territorialidade na cidade a bicicleta assume ainda um outro papel fundamental.

Sua contínua modificação confunde-se com a construção de um personagem, excêntrico, que parece só

existir neste acoplamento do sujeito à bicicleta, a partir de onde se formaria o agenciamento Pirata do

asfalto. O Pirata é, assim, indissociável da bicicleta; “somos dois em um”, ele confirma. Mas este é um

agenciamento que muda com os desejos do sujeito. Já foi “Camaleão” e antes “Vagamundo”. Personagens

sempre tatuados em seus turnos na bicicleta, que como um palimpsesto guarda as camadas desse

processo de transformação. Sendo metade deste corpo ambulante, a bicicleta funciona como um plano

de consistência sobre o qual o território existencial singular deste sujeito pode se realizar. Resulta desta

construção um potencial para a ressignificação do estigma do morador de rua, carregado de preconceitos

e medos no imaginário comum. Os estereótipos de bandido, marginal, delinqüente, louco, são dissolvidos

pela curiosidade e admiração geradas por aquela figura diferente. É a bicicleta que inicialmente conquista

afetos para que depois o indivíduo F. se mostre com sua calma, eloqüência e honestidade.

A imagem de um andarilho solitário desfaz-se então pouco a pouco quando se percebe que seu modo

de vida só é possível pela construção de uma rede de solidariedade. Com isso, a linha de força de sua

territorialidade - que remeteria a uma trajetória atomizada de resistência - mostra-se capilarizada na forma

de um emaranhado de relações com indivíduos e instituições, ativadas em sua movimentação cotidiana,

por meio de táticas que instrumentalizam um conjunto de afetos a seu favor. Um segundo agenciamento

se forma então pela construção simbólica de um bando, quando se soma a essa rede que o protege, seus

livros, um álbum de escritos, recortes e desenhos, pelo qual tem grande apego, e a própria bicicleta. O

pirata está sempre acompanhado.

TERRITORIALIDADE

DESVIO PELO

MOVIMENTO

AFETOS

SOLIDARIEDADE

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Pausa reflexiva: Movimento como desvio

No seu acoplamento ao Pirata do Asfalto o cartógrafo vê o exercício efetivo de uma política da rua, em

sua dimensão eminentemente micropolítica, pelos imaginários que desconstrói e reelabora, os afetos que

mobiliza, aos quais associa-se o jogo-de-cintura para esconder, camuflar, desviar sempre que necessário,

ou para manipular dispositivos de poder a favor de um modo de vida singular. O resultado concreto desta

dinâmica é a possibilidade de um “morador de rua” e “catador de lixo”, com dignidade e inventividade, co-

habitar com territórios sedentários o solo de uma das áreas mais nobres da cidade de Brasília.

Mesmo quando a macropolítica se impõe de forma avassaladora sobre os nós afetivos de sua

territorialidade – por exemplo, na ocasião da ordem de governo para “limpar” a cidade em seu aniversário

de 50 anos –, seu modo de vida está preparado para desviar. A flexibilidade de seu habitar que nunca se

deixa enraizar, associada “aos macetes que se aprende na rua” ou à astúcia necessária para as operações

táticas no território do outro (CERTEAU, 2009), encontra nos usos do movimento o instrumento para desviar

de dispositivo de repressão. Sem que se dissolva aquela territorialidade cotidiana do trabalho da catação,

uma pequena desterritorialização acontece com o ponto de dormir: a cada dia, ao longo de seu trajeto, o

pirata escolhe um ponto diferente para pernoitar, geralmente na copa de árvores bem protegidas. Com suas

cordas a bicicleta é içada, e assim segue, até que a fiscalização se enfraqueça.

O movimento pode ser visto aqui como instrumento para desvios em três escalas. A primeira é a do corpo,

enquanto corpo ambulante e em linha de fuga (neste caso, há 18 anos). Corpo que não pára de desviar

dos padrões sedentários do emprego, aluguel, família – estatutos da subjetividade coletiva capitalística –,

movido por uma busca, ou afirmação, de “corpo livre” que toma as rédeas do próprio desvio depois que

acidentes biográficos desviaram sua trajetória de vida abrindo caminho a esse devir.

A segunda escala é a do habitar: uma constelação formada pela movimentação entre pontos de dormir,

de estar, de lavar roupa, de banhar-se. O desvio da tectônica da casa é também o desvio de dispositivos

anti-invasão que vasculham barracos escondidos nos cerrados intersticiais da cidade. A sua permanência no

Plano Piloto, onde “o lixo vale ouro”, é assim garantida, otimizando seu trabalho e renda.

Por fim, a escala que engloba toda sua territorialidade, ao viver à margem da propriedade e do

consumismo, ambos profanados por usos outros. O consumo é minimizado pela reciclagem; o solo urbano

é apropriado como suporte para renda e habitação. Em movimento, o tempo teria mais “valor de uso”, e o

ambulante faz dos usos temporários do espaço seu desvio, sejam domésticos, de trabalho, criação ou ócio

já que dispositivos de fiscalização e captura urbanos parecem atuar melhor no controle dos usos fixos do

espaço. A pulverizada sarjeta de Brasília - que pode estar por toda parte, em qualquer vazio - torna-se aliada

deste movimento, fornecendo tanto a invisibilidade quanto a visibilidade quando necessária.

Se em Brasília – onde os espaços de circulação foram pensados já enquanto vias – dificilmente se encontra

um espaço como a rua tradicional, ainda assim, quando se experimenta uma circulação em outra velocidade

– a do tempo lento – e menos encapsulada como é a do automóvel, é possível encontrar situações que

acabam por constituir um estado de rua. Estas situações inserem nas vias modernas os usos não-previstos

e, portanto, excêntricos ao planejamento, produzidos por táticas oportunistas que infiltram na função

original de circulação, diversas outras atividades tributárias não de uma racionalidade científico-econômica,

mas do improviso e da criação, da lentidão, dos desvios e do próprio desejo social pela experiência da rua.

Em Brasília, a rua apresenta-se mais claramente como resistência tanto em acontecimentos efêmeros e

imprevistos de toda ordem, como na corpografia (JACQUES, 2007) dos sujeitos ordinários - ambulantes,

marginais, vagabundos. As ruas por onde o ambulante passou em outros tempos, inscritas em seu corpo,

emergem em seus gestos e no modo como se relaciona com aqueles que compõem sua rede de solidariedade

para impregnar o espaço e transformá-lo. Sujeitos anônimos e ordinários que enfrentam, mesmo que por

fugas, desvios e camuflagens, a normatização, as hegemonias ou o próprio peso do desenho tombado do

“velho Lúcio”, que juntos apontam em uníssono para a saída destes desviantes pela porta dos fundos da

cidade.

“Enquanto me deixarem quieto na minha eu vou tocando

tranqüilo. Se um dia a sociedade quiser me transformar

em bandido mesmo, e eu resolver me transformar em

bandido, aí é guerra total. [...] Que esse estilo de vida vai

acabar, vai. Daqui a 5, 10 anos você não vive mais assim;

a reciclagem dessa forma vai acabar.... Com a mudança

do clima, as matérias-primas cada vez mais caras, os

materiais recicláveis não vão mais para o lixo. As pessoas

vão aprender a selecionar; os prédios, órgãos, bancos, vão

repassar os recicláveis diretamente para cooperativas. Aí

na rua você vai ser dependente dos outros...”

Diagrama de territorialidade: movimento como desvio e micropolítica a partir da prática ambulante

“na contramão da sociedade; na contramão do consumo” (Pirata do Asfalto)

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7. O estado de rua e o espaço da sarjeta

Quando então, muitas vezes ao amanhecer, eu me detinha em algum portal, já me enredara sem saída nos laços do asfalto da rua, e não eram as mãos mais limpas que me libertavam.

Walter Benjamin, Rua de mão única

O que faz de uma rua, Rua

Dois importantes pesquisadores brasileiros dedicaram seus esforços à caracterização das

especificidades da rua brasileira. Um deles, Roberto da Matta, no campo da antropologia

urbana e o outro, Carlos Nelson Ferreira dos Santos, nas interseções e possibilidades de

colaboração deste campo com o urbanismo. É claro que em nenhum dos casos tratou-se de

uma abordagem funcionalista, mas de entender a rua como fenômeno urbano e social que

abriga possibilidades que vão além da simples circulação. Para eles, a rua só é Rua se permite

a existência de dinâmicas sociais variadas, quando ela pode tornar-se espaço de trocas, de

permanência ou até “virar casa”.

Roberto da Matta (1997), em seu livro “A casa e a rua”, propõe o desafio de pensar os

papéis desses dois espaços no âmbito de um imaginário cultural comum à sociedade urbana

brasileira. Para isso, eleva-os à condição de “categorias sociológicas”, onde são

compreendidos enquanto esferas da ação social com as quais a sociedade identifica códigos,

posturas e leis próprias e que mantêm entre si, mais do que uma oposição, uma relação

dinâmica. A rua, neste nível, simboliza o mundo das relações contratuais que regem o

convívio e a interação daqueles que não têm outros laços de união além da sua igualdade

enquanto cidadãos. Esfera da impessoalidade, lugar dos indivíduos anônimos e desgarrados e

domínio público por excelência, a rua é o lugar onde se dão as relações formais, expostas e

visíveis, mediadas pela lei e pelo dinheiro. A casa, por outro lado, representa o domínio da

“pessoalização” e das obrigações mútuas que regem este mundo de pessoas. Encontra-se

assim, no âmbito das relações informais, familiares e de amizade, regidas pelas regras da

moral.

Casa e rua estão caracterizadas neste contexto num plano simbólico, de modo a facilitar

a compreensão do autor de determinados aspectos culturais da sociedade brasileira. Carlos

Nelson Ferreira dos Santos (1985) dirá que a oposição dessas esferas relacionais não

apresenta tal rigidez esquemática. Dirá também que, “na realidade, o universo da rua

comporta relações de substância, domínio de intimidade e informalidade, lugares mais ou

menos familiares, onde as relações contratuais, a impessoalidade, as formalidades e o valor-

dinheiro se relativizam ou são parcialmente suspensos” (p. 70). Por isso, importaria,

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sobretudo, utilizar esta caracterização para ajudar a identificar exatamente os usos do espaço

social que fogem a esta regra, especialmente quando estas categorias se embaralham a partir

dos usos e modos de apropriação dos espaços. Da Matta, entretanto, não deixa de ressaltar

uma particularidade fundamental da rua: é que desimpedida da lei da moral que rege a casa, a

rua torna-se um lugar capaz de abrigar todo tipo de atividades marginal, assim como permitir

a coexistência social entre diferentes convertendo-se, com isso, em espaço primordial para os

conflitos urbanos.

É na rua que devem viver os malandros, meliantes, pilantras e os marginais em geral – ainda que esses mesmos personagens em casa possam ser seres humanos decentes ou mesmo bons pais de família. A rua é local de individualização, de luta e de malandragem [...], contexto onde não se aplicam as constelações de valores da casa. O que equivale a abrir mão de um controle social rígido que de certo modo garante a pacificação dos ânimos , aproximando-nos assim do conflito aberto. Por isso, é próprio do espaço da rua, a contradição, que na casa não se admite. (DAMATTA, 1997, p. 55)

Ao associar a rua ao conflito e à contradição, Da Matta enfatiza a condição pública

deste espaço e, num plano subjacente, suas possibilidades políticas. No entanto, se ele fala a

partir da esfera simbólica, não seria preciso dizer que esta característica não se apresentará

incondicionalmente em qualquer espaço de rua. Mas poderíamos nos perguntar, quais seriam

as condições para que estas possibilidades políticas se realizem? No mínimo seria preciso uma

confluência entre aspectos físicos e simbólicos, revertidos nas relações entre espaço e uso,

incluindo-se aí a variável tempo. Assim, estas condições provavelmente nunca seriam da

ordem da permanência, mas se formariam em determinados momentos, ou situações em que a

rua adquire um estado, produzido pelo uso do espaço, onde há uma abertura a práticas,

dinâmicas sociais e produção de significados variados.

Esta formulação decorre de uma noção de espaço que só pode ser entendido através do

uso dado pela apropriação social. É segundo esse viés que no livro “Quando a rua vira casa”

Santos e Vogel (1985), a partir de uma pesquisa etnográfica realizada nas ruas do Bairro do

Catumbi no Rio de Janeiro, relatam um conjunto de situações sobre as quais desenvolvem

formulações teóricas no âmbito da antropologia urbana e do urbanismo, assim como reforçam

as críticas às práticas urbanísticas funcionalistas em curso naquele momento. Segundo eles,

“os significados que um determinado suporte material (esquina, calçada, quintal, rua, etc.)

pode assumir, resultam da sua conjugação com uma atividade e mudam de acordo com ela.

Assim como a rua é a forma de utilizá-la, o espaço é o uso que permite” (p.48). A partir desta

perspectiva relacional, em que espaço e uso estão intrinsecamente engendrados e, portanto, se

constroem mutuamente, parece que sempre haverá a possibilidade de ressignificação dos

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espaços, mesmo daquele considerados frios, desumanos ou “sem alma”, pela invenção de

novos usos que se conferem a eles, sejam estes coletivos ou individuais. Os autores

desconstroem assim o dilema “forma versus conteúdo”:

As atividades como que “escolhem” seus espaços, apropriando-se deles, conformando-os, e sendo conformadas de volta. [...] Existem conjugações de espaços e atividades em que os primeiros não são apenas formas que abrigam um conteúdo eventual na medida em que contribuem para a sua realização. Da mesma maneira, o que acontece em um local não constitui somente a essência que, vertida num receptáculo vazio, toma a sua forma, pois contribui decisivamente para moldar e qualificar os ambientes. Em resumo, diríamos que um espaço é sempre o espaço de alguma coisa, assim como as coisas só podem ter lugar em algum espaço. O problema da adequação de forma e conteúdo se revela uma falsa questão. (p.49)

Dessa forma, para que na rua se desenvolvam as possibilidades políticas inerentes à sua

condição pública seria preciso levar em conta, em primeiro lugar, a interferência mútua entre

o espaço e as atividades que nele se desenvolvem, ou ainda pensar o próprio espaço como

resultado de um cruzamento de trajetórias (CERTEAU, 2009; MASSEY, 2009) num

determinado terreno94. A colisão entre essas trajetórias levariam a uma coexistência no tempo

sincrônico de atividades variadas e uma sobreposição de modos de usar e de significados

atribuídos ao espaço. Se inserimos nesta conjugação de fatores o aspecto da temporalidade,

onde essas relações estão em movimento, num processo constante de transformação, nos

aproximamos então da idéia de um estado de rua, que pode estar presente com certa

constância em determinadas ruas, mas que também pode se instaurar, mesmo que

momentaneamente, dada uma confluência de circunstâncias, até mesmo naquelas vias cujo

propósito original e rotineiro é apenas servir aos fluxos que ligam lugares outros da cidade.

Como construir um estado de Rua?

Considerando a hipótese de que a experiência da rua encerra uma série de

particularidades para além de sua genérica condição de espaço público, a noção de estado de

rua surge para evitar qualquer tipo de submissão a um estatuto jurídico, a uma legislação

urbanística ou categorização, mas pelo contrário, apontar que é necessário que se reúna um

conjunto de fatores que não são de forma alguma fixáveis para que essa singular experiência

urbana aconteça. A palavra “estado” traz a ideia de condição provisória, efêmera e variável

para a experiência da rua, que se desvincula, assim, também de possíveis determinações

morfológicas, ainda que elas exerçam sua influência. Ao mesmo tempo, atribui às práticas

humanas sua importância fundamental.

94 Sobre relações entre espaço, tempo e trajetórias ver no capítulo 2 o ítem “trajetórias: temporalidades no espaço”.

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Poderíamos falar então em uma série de articulações possíveis a partir das ações e

relações ativadas pelas práticas humanas espacializadas na rua que singularizam essa

experiência em termos de sensações e sentidos: seja enquanto modo de acionar o contato com

o outro ou de ser atravessado por uma alteridade; pelos processos de ocupação do espaço, que

implicam firmar, disputar ou ceder posição; ou como resultado das relações dinâmicas entre

movimentos, usos e práticas de linguagem e comunicação. Torna-se assim, mais evidente

como estes termos não poderiam estar condicionados a uma relação unívoca com uma ou

outra morfologia. Um exemplo simples está no fato de que o próprio imaginário formal sobre

a rua não é tão forte nas subjetividades de pessoas que nasceram e viveram em Brasília,

cidade cujo desenho urbano desfigurou, sob a égide da Carta de Atenas, a morfologia

tradicional da “rua-corredor” e, mesmo assim, esse tipo de experiência pode ali ocorrer – esta

é uma das hipóteses deste trabalho – ainda que sob circunstâncias muito peculiares.

A relação de interdependência desta experiência com as práticas humanas também

indica uma necessária condição de efemeridade, podendo, por exemplo, num mesmo espaço

urbano aparecer e desaparecer ou, o que parece mais provável, variar em gradações de

intensidade a depender da temporalidade – os dias, horários, condições atmosféricas (qual é a

experiência da rua em meio a uma tempestade?) – e tão ou mais importante do que isso, do

grau de disponibilidade subjetiva com que cada indivíduo se expõe a ela. Neste caso, apesar

de que, por meio de sua própria potência, um estado de rua possa tomar de assalto um sujeito

que não esperasse por ele, contam, e muito, as formas de mediação entre o corpo e os

elementos do ambiente que o envolve95.

Na realidade, dado a próprio horizonte aberto que a experiência da rua pode abarcar, um

estado de rua implica necessariamente uma multiplicidade heterogênea de possibilidades.

Assim, falaríamos de estados de rua: estado jogo das crianças, estado casa de moradores de

rua, estado sedutor dos profissionais do sexo, estado dionisíaco do carnaval, estado de sítio

das repressões estatais, estado revolucionário das mobilizações políticas, estado boca-de-

urna das eleições, etc.

Além de uma quase infinidade de possibilidades que qualificariam variantes deste

estado, é possível pensar também em diferenças de natureza. Assim, há aqueles estados de rua

resultantes de atividades fixas existentes nas edificações que constituem uma rua ou no

95 Inclui-se aqui uma infinidade de possibilidades, que vão da mediação mínima da roupa ou dos óculos escuros, passando pelos dispositivos tecnológicos que desviam os sentidos dos estímulos externos como aparelhos celulares e “mp3 players”, os veículos (bicicletas, automóveis, motos, ônibus, etc.) que proporcionam diferentes velocidades de percepção e modos de exposição do corpo, chegando aos estados mentais (em alguns casos a intensidade de uma torrente de pensamentos pode ser suficiente para isolar um indivíduo do ambiente externo).

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próprio espaço externo da rua (como camelôs) que, em funcionamento por períodos

continuados e em frequência regular, costumam caracterizar determinadas ruas com um tipo

de atmosfera razoavelmente constante ou previsível. Há também aquele estado desencadeado

por imprevistos, situações que se instauram a partir de determinada conjuntura enquanto

surpresa, ou acontecimentos extraordinários que ocupam espaço de forma não usual e derivam

de fatores como a oportunidade e o acaso. E ainda, numa esfera menos objetiva, haveria

também estados de rua presentes na subjetividade de sujeitos (entre eles os sujeitos

ambulantes) enquanto fator incorporado – um devir-rua – carregado por estes em suas

trajetórias urbanas96. Na espacialização de suas práticas, estes sujeitos teriam a capacidade de

instaurar, ou contribuir para intensificar um estado de rua nos momentos em que interagem

com outros sujeitos e com a arquitetura da cidade.

Com isso, encontramos estados de rua de natureza das constâncias, dos acontecimentos

e dos estados incorporados, mas também nas conjugações e interferências entre essas

variações. De maneira geral, diríamos que uma dessas situações ou o encontro entre elas

proporciona as condições favoráveis para a passagem de trajetórias e intensidades urbanas

heterogêneas nas ruas, instaurando ali a possibilidade de uma micropolítica urbana nos

espaços de movimento, ou simplesmente uma política da rua.

Mas se um estado de rua se constitui como multiplicidade heterogênea, podendo se

expressar segundo estados variados, é preciso enfatizar que este trabalho concentra-se na

investigação de uma de suas expressões específicas por acreditar haver nela toda uma

importância política para a experiência cotidiana da cidade. E o que a caracteriza é

simplesmente a colisão com a alteridade, ou a impossibilidade de atravessar o espaço da rua

sem ter de enfrentar o outro. Esta colisão ou enfrentamento pode acontecer de variadas

maneiras e em diferentes escalas de impacto ou de significado nos corpos envolvidos. Pode,

por exemplo, acontecer apenas por vias sonoras ou visuais (dispositivos de venda, pregações,

mendicâncias, loucuras ou excentricidades, etc.) quando um “outro” interpela um receptor

discursivamente ou interfere em seu campo visual, gerando constrangimentos que desviam

atenção para si. Mas os que mais interessam aqui são aqueles que se configuram como disputa

de posições no espaço: pedestres, automóveis, ciclistas, ambulantes, catadores, camelôs,

flanelinhas, moradores de rua, atravessando uns o caminho dos outros, sendo embarreirados

96 Este estado enquanto fator incorporado poderia ser lido como uma corpografia, no sentido descrito por Jacques (2007): “corpografia seria um tipo de cartografia realizada pelo e no corpo, ou seja, a memória urbana inscrita no corpo, o registro de sua experiência da cidade, uma espécie de grafia urbana, da própria cidade vivida, no corpo de quem a experimenta.”

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por um lado, desviando por outro, ganhando espaço aqui, perdendo ali, ocupando o espaço

que o outro precisa ou reivindica para si ou para outro uso.

Este estado de rua instaura-se ou é intensificado com a presença de atividades

imprevistas, indesejadas, ou marginais aos padrões dominante de uso e significado dos

espaços urbanos, produzindo situações conflituosas que acabam sobrepondo às leis de

trânsito, de uso e ocupação do solo, ou mesmo da moral e dos bons costumes (burgueses),

regras outras, permanentemente redefinidas por arranjos provisórios e acordos tácitos que

ativam o exercício de uma política ao nível do chão da cidade. Nessas circunstâncias

emergem também a constituição de territórios de resistência e formas renovadas de

solidariedade na cidade, formando como que uma camada de relações opacas entre o visível e

o invisível que apontam outros devires para a cidade além daqueles elaborados pela ideologia

de mercado que lucra com mercadorias capsulares como promessas de proteção contra os

perigos da vida urbana.

Tem, portanto, um papel fundamental nos dias atuais pois é justo aquilo que, constituído

no cotidiano dos habitantes (não recupera, pois nunca se perdeu, mas) mantém alguma esfera

política no espaço público das cidades, algo que as investidas estratégicas elaboradas na

aliança entre Estado e capital financeiro, com o apoio da grande mídia, visam cada vez mais

reduzir. Por meio de interferências, pequenas desestabilizações, usos desviados, este estado

gera obstáculos à fluidez da aceleração contemporânea, à racionalidade demolidora e suas

pretensões de homogeneização e controle total que alimenta os planejamentos funcionalistas,

às operações urbanas espetacularizadas, e aos consensos geridos pelas determinações das

redes financeiras globalizadas.

À aceleração contemporânea interessa um novo tipo de rua e de espaços públicos, inspirados em modelos importados, onde cada coisa tem seu lugar específico para acontecer, tudo muito bem organizado e controlado. A pista desimpedida para os automóveis, o corredor desimpedido dos ônibus, a ciclovia desimpedida das bicicletas e a calçada desimpedida dos pedestres. Qualquer outra atividade deve ocorrer nos cheios, propriedade privada do solo à mercê das valorizações e desvalorizações do mercado imobiliário. Tudo aquilo que não se enquadra em nenhum desses lugares, parece deslegitimar-se automaticamente, expondo-se então à ação de todo tipo de estratégia de criminalização, de onde resulta captura ou segregação. Este estado de rua, ao contrário, constituído sobre a própria ingovernabilidade do urbano é o que promove a rugosidade necessária para que a cidade seja ainda plástica e não se enrijeça, para que o sentido da vida coletiva não seja apenas o desenvolvimento econômico e a acumulação de capital, mas também a experiência urbana por ela mesma com suas ambiguidades, conflitos e encontros com o inesperado.

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Uma alegoria da rua por ela mesma

Diagrama: três experiências de rua

O desenho da seção de uma rua tradicional pode funcionar como alegoria para o que

podemos considerar três tipos de experiência de rua. Considerando, esquematicamente, a rua

como uma canaleta cujas laterais são compostas pelas fachadas das edificações, três

elementos podem ser destacados: ao centro, a pista onde circulam os veículos; nos dois lados

da pista, as calçadas por onde circulam os pedestres; e entre a calçada e a pista, a sarjeta, por

onde escoa a água das chuvas. Esses três elementos podem simbolizar tipos diferenciados de

experiências de rua possíveis na cidade. Dois deles, potencializados, podem ser vistos como

modelos, como a autopista e a rua de pedestres, expostos no capítulo 6.

A pista de rolamento representa a rua como experiência no automóvel, encapsulada,

estéril, mas eficiente, veloz, funcional e segura. No interior do automóvel, a relação do

motorista com a cidade passa a ser mediada por vidros e pela velocidade, que prende sua

atenção ao trânsito. Com isso, tanto a percepção da cidade quanto as possibilidades de contato

com o outro são drasticamente reduzidas. O modelo da autopista é a rua convertida em via

cuja única função é ligar um ponto A a um ponto B da cidade.

A calçada representa a rua como experiência do pedestre, da lentidão característica do

caminhar. Em seu engajamento corporal o pedestre acessa aspectos das ambiências urbanas

próprios àquela velocidade, assim como estabelece relações com a cidade na escala de seu

corpo, entra em contato com o cosmos – expondo-se aos fenômenos da atmosfera

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(temperatura, ventos, chuva, etc.) – e com a terra, sentindo a topografia da cidade alem, é

claro, de estar em contato direto com o outro. A essa rua pertence também a experiência do

transporte coletivo (ônibus, metrôs, etc.), o qual só funciona com o complemento da

experiência das calçadas. A exacerbação desta experiência é a rua exclusiva à circulação de

pedestres, sem carros. A rua de pedestres, se aberta à apropriação por usos flexíveis, opacos e

conflituosos, pode levar à instauração de um intenso estado de rua, algo como um devir-feira

da rua, como visto em alguns becos repletos de camelôs no centro de Salvador97. Mas pode

também, se planejada segundo um modelo inserido nas estratégias ditas de “revitalização”,

substituir o cotidiano pelo museu ao ar livre. Este modelo é aquele que geralmente está

inserido em áreas históricas voltadas ao turismo cultural, onde os usos homogeneizados e

dispositivos de controle envolvidos numa atmosfera cenográfica acabam atuando como

modeladores e mediadores da experiência, tornando-a menos espontânea e diversificada e

reduzindo as possibilidades de conflito.

A sarjeta figura como uma terceira possibilidade de experiência. Objetivamente, ela apresenta-se como um pequeno relevo, de limites imprecisos, variando em termos de largura e profundidade, que segue por todo o comprimento da rua entre a calçada e a pista de rolamento. É para onde se direcionam as águas das chuvas para por ali escoar, carregando consigo toda a sujeira acumulada, tanto nas calçadas quanto na pista, até a boca-de-lobo mais próxima. É por isso que é na sarjeta onde se cai sem querer, se tropeça, se enfia o pé na lama (ou na “jaca”). É possível que a partir dessas situações é que ela tenha sido associada nas expressões populares ao significado simbólico de situação de degradação social, de decadência, vergonha ou indigência – “cair na sarjeta”, “rolar na sarjeta”, “viver na sarjeta”.

Por isso mesmo, ao contrário dos outros dois elementos, a sarjeta não poderia e nem teria vocação para converter-se num modelo pois não se impõe a sarjeta; ela brota na superfície das ruas pelas práticas e necessidades dos habitantes de uma cidade. Mesmo em sua materialidade ela não se constrói, mas resulta como sobra das camadas de pavimentação que foram se sobrepondo. Em Salvador, muitas têm no fundo os antigos paralelepípedos que revestiam o “leito carroçável”, hoje encoberto na pista por infinitas capas de asfalto. Nesta convergência de aspectos materiais e simbólicos, a permanência da sarjeta nas ruas pode ser associada ao tempo da memória, onde a ruína de seus antigos paralelepípedos ainda resistentes, dê testemunho de outros tempos, justo ao lado das capas de pavimentação asfáltica que dá passagem ao tempo da aceleração, da modernização amnésica que se autolegitima e a tudo se impõe. Talvez estejam guardadas ali, nas suas rugosidades os segredos da rua, que teriam suas impressões apagadas se na rua só existisse a calçada e a pista de rolamento.

97 Ver Narrativa Cartográfica #1_Salvador: deriva pelo centro.

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É a partir deste elemento secular, esquecido, mas que perdura nas ruas desde que se

resolveu separar a circulação de veículos e pedestres, que ganha corpo a experiência da

sarjeta, onde parecem se refugiar os estados de rua frente aos avanços dos processos urbanos

hegemônicos sobre a rua– funcionalização dos espaços, vigilância, capsularização,

homogeneização dos usos, etc. – que parecem ter como objetivo comum sua morte social.

Esta experiência acontece a partir do memento em que a sarjeta converte-se em espaço:

quando pedestres saem das calçadas, automóveis saem da pista, por onde passa o carrinho do

vendedor ambulante e a carroça de catadores de lixo, onde circulam os bicicleteiros e

skatistas, onde o camelô monta sua barraca. É através da sarjeta que constroem inicialmente

seu espaço as atividades não previstas, marginais, improvisadas de todo tipo de sujeitos

ambulantes que carregam consigo um estado de rua incorporado para, a partir dali, invadir a

pista dos veículos e a calçada dos pedestres. É por isso que este é também um espaço elástico,

que se expande e se retrai, que se movimenta junto a esses usos, constituindo-os e sendo

construído por eles. Diferentemente de outros espaços, que geralmente se produzem

circunscritos por limites, a sarjeta só se converte em espaço pela explosão de um limite, a

partir do uso que se faz dele e esta parece ser a característica que marca a singularidade desse

espaço liminar.

Se tomamos como referência esses três elementos sequencialmente expostos – a pista, a calçada e a sarjeta – a experiência de circulação nas ruas parece ocorrer num sentido decrescente de eficiência, mas crescente em termos de atritos e choques, ou graus de contato com o ambiente urbano e a alteridade, configurando qualidades variadas de movimento. Se num primeiro momento, a sarjeta pode parecer muito mais próxima à experiência da calçada, sua presença infiltrada na experiência da pista adquire importância fundamental para a contestação da hegemonia do automóvel sobre o espaço da rua. Com isso, defender a legitimidade do espaço da sarjeta não se fundamenta numa irrealizável e paradoxal possibilidade de que ela possa tornar-se um modelo de circulação, mas em valorizá-la nas suas dinâmicas de infiltrações e disputas por espaço com as outras experiências de rua; como elemento urbano politicamente necessário para a instauração de estados de rua.

A partir daqui é possível recorrer a dois conceitos com os quais o espaço da sarjeta parece encontrar correspondência: o “liso” e o “rugoso”.

A sarjeta como espaço rugoso

A sarjeta pode ser pensada inicialmente como espaço rugoso. O conceito de rugosidade

foi proposto por Milton Santos como uma das categorias analíticas para se pensar o espaço.

Assim ele a descreve:

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Chamemos rugosidade ao que fica do passado como forma, espaço construído, paisagem, o que resta do processo de supressão, acumulação, superposição, com que as coisas se substituem e acumulam em todos os lugares. As rugosidades se apresentam como formas isoladas ou como arranjos. É dessa forma que elas são uma parte desse espaço-fator. Ainda que sem tradução imediata, as rugosidades nos trazem os restos de divisões do trabalho já passadas [...] os restos dos tipos de capital utilizados e suas combinações técnicas e sociais com o trabalho. (SANTOS, 2006, p. 92)

As rugosidades ajudam a pensar sobre “como os resíduos do passado podem ser um

obstáculo à difusão do novo” ou como esta coexistência anacrônica exige a elaboração de

arranjos que permitam suas ações simultâneas (ibid, p. 25). Com isso, Santos percebe que por

meio de suas rugosidades, o meio ambiente construído impõe limitações aos avanços da

racionalização ou às exigências impostas pela “ação global das forças mundializadoras do

mercado”, às quais o Estado se empenha em responder, criando espaços mais fluidos à sua

passagem (SANTOS, 2008, p. 74). O geógrafo recorre ainda a uma ideia equivalente – a de

“reverse salient” – para corroborar sua argumentação. “reverse salient são anomalias técnicas

ou organizacionais que resultam da elaboração desigual ou da evolução desigual de um

conjunto e de tal maneira que, quando uma parcela progride, uma outra se atrasa” (JOERGES,

1988 apud SANTOS, ibid., p. 25).

Ora essas características parecem muito próximas ao que podemos encontrar no espaço

da sarjeta: acumulações, superposições, resíduos, anomalias organizacionais, resultantes de

processos econômicos e sociais que produzem diferenciações flagrantes. Essas diferenças se

revelam na dinâmica dos processos atuais, e a sarjeta parece ser um espaço onde algumas

dessas expressões ocorrem, deflagrando processos de rugosidade nas ruas: os atualizados e os

atrasados; acelerados e lentos; espaços de circulação e de “viração”. Condição que evidencia

o campo de tensões que faz das ruas lugar de disputa e de conflitos, que levam

invariavelmente à produção de arranjos e acordos tácitos, sempre provisórios, muitas vezes

apenas na duração necessária para fazer coexistir práticas irredutíveis a uma partilha

consensual do espaço.

No entanto, para aplicar a ideia de rugosidade ao espaço da sarjeta, seria preciso flexibilizar o atrelamento desta categoria analítica ao “passado como forma construída”, ao espaço herdado como paisagem, e especialmente a características que se referem apenas a objetos fixos. Estendendo seu campo de operações, deveríamos incluir em seu conjunto de fatores também a produção no tempo presente de objetos efêmeros e os próprios movimentos de lentidão98 (noção também desenvolvida pelo geógrafo), que de alguma forma configuram-

98 Sobre a lentidão, noção também desenvolvida por Milton Santos ver o item “Lentidão como cultura menor” no capítulo 4.

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se também como resíduos ou atrasos que não acompanharam a vertente hegemônica do progresso. Enquanto portadoras de uma temporalidade outra, ainda que na sincronia do tempo atual, determinadas práticas que ganham corpo no espaço da sarjeta também promovem obstáculos e desacelerações, assim como a partir daí desencadeiam conflitos. Podemos pensar então que as operações de alargamento dos limites entre a pista e a calçada, que seriam a própria construção do espaço da sarjeta por sujeitos ambulantes em seus tempos da lentidão apontam para a construção de um espaço rugoso aos tempos da aceleração.

A sarjeta como espaço liso

A sarjeta pode ser compreendida também como um espaço liso. Este conceito

desenvolvido por Deleuze e Guattari (1997), evoca um espaço construído por aquelas

potências nômades de exterioridade às práticas e pensamentos de Estado e seus análogos99. O

espaço liso configura assim um campo heterogêneo de operações, “espaço de pequenas ações

de contato, táctil ou manual, mais do que visual”, habitado por multiplicidades que “ocupam o

espaço sem medi-lo e que só se pode explorar avançando progressivamente” (p. 38). Na

sarjeta é preciso estar atento às interferências, aproveitar as oportunidades para conquistar

espaço passo a passo, mas sempre preparado para se deparar com obstáculos ao movimento já

que sua des-função abre caminho para usos tão variados quanto conflitantes.

Sendo o espaço da sarjeta na esfera das aparências mais rugoso do que liso, é importante

pensar que se trata menos da analogia a um tipo de superfície do que à qualidade das

operações que permite realizar ou que o constituem. Por isso, para os autores “liso não quer

dizer homogêneo; ao contrário, é um espaço amorfo, informal” (p. 182). Eles oferecem o

exemplo do patchwork que se desenvolve a partir de “uma coleção amorfa de pedaços

justapostos, cuja junção pode ser feita de infinitas maneiras” (ibid.).

Um espaço liso difere assim, de um espaço estriado, ligado a uma natureza

dimensional, métrica e extensiva, cuja função é subordinar os fluxos a condutos, organizar o

movimento, regular sua velocidade e impor que se vá de um ponto a outro. Este tipo de

espaço parece coincidir com a experiência das ruas como vias, funcionalizadas no uso da

circulação e especialmente como organização hierarquizada pela aceleração que privilegia a

quantidade de capital que a trajetória de um corpo carrega ou faz circular. Assim, vemos de

um lado a abertura continuada de faixas viárias para o automóvel, e de outro a opressão ou

limitação dos outros modos de circulação em calçadas, ciclovias ou corredores de ônibus de

dimensões restritas.

99 Ver capítulo 2 “Cidade nômade: movimento como lente”.

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Mas o liso e o estriado não constituem entre si uma oposição simples já que raramente se apresentam de forma autônoma. Pelo contrário, estão sempre em relação de tensão ou de transformação. Assim, mesmo que se marque uma diferença de natureza, eles só existem pelas misturas que os engendram. Deleuze e Guattari se perguntam: “É um espaço liso que é capturado, envolvido por um espaço estriado ou é um espaço estriado que se dissolve num espaço liso, que permite que se desenvolva um espaço liso?” (p. 180). Se a sarjeta pode ser pensada como espaço liso, é porque ela estará sempre em relação a um espaço estriado – de fluxos homogêneos e controlados de circulação –, ou melhor, estará sempre entre dois espaços estriados.

Mas ‘entre’ significa igualmente que o espaço liso é controlado por esses dois lados que o limitam, que se opõem a seu desenvolvimento, e lhe determinam, tanto quanto possível, uma função de comunicação, ou, ao contrário, que ele se volta contra eles,corroendo [...] por um lado, propagando-se sobre [...] outro, afirmando uma força não comunicante ou de desvio, como uma cunha que se introduz. (p. 57; grifo original)

Desta forma, devemos pensar a sarjeta como um espaço em constante tensão e em movimento de fazer-se e se desfazer. Neste sentido, incluímos o “entre” também no âmbito dos processos temporais de transformação, ou seja, um uso estriado que desvia para um espaço liso e é novamente capturado: estriado – liso – estriado. Assim, mais do que pensar a sarjeta como espaço liso, seria melhor pensá-la como um limiar de atravessamentos, onde as colisões e transformações entre o liso e o estriado podem acontecer. Esta percepção é afinal para onde se direciona o pensamento de Deleuze e Guattari:

O que nos interessa são as passagens e as combinações, nas operações de estriagem, de alisamento. Como o espaço é constantemente estriado sob a coação de forças que nele se exercem; mas como ele desenvolve outras forças e secreta novos espaços lisos através da estriagem. Mesmo a cidade mais estriada secreta espaços lisos: habitar a cidade como nômade [...]. Às vezes bastam movimentos de velocidade ou de lentidão, para recriar um espaço liso. Evidentemente, os espaços lisos por si só não são liberadores. Mas é neles que a luta muda, se desloca, e que a vida reconstitui seus desafios, afronta novos obstáculos, inventa novos andamentos, modifica os adversários. Jamais acreditar que um espaço liso basta para nos salvar. (p. 214)

Nesta direção pensaríamos então que a sarjeta pode se expandir como espaço pela prática de um ou alguns sujeitos, enquanto um modo de estar no espaço estriado (da pista ou da calçada) como se este fosse liso, subvertendo suas regras, determinações, funções ou limites. Mas também a partir das colisões, mistura de usos e velocidades que constroem um espaço de conflito, disputa e negociação. Mesmo assim, seja operando como espaço liso, ou na tensão entre o liso e o estriado, a construção de um espaço da sarjeta por si só não será suficiente para garantir um exercício político ao nível da rua. Mas é ele que estabelecerá as

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condições para que se instaure um estado de rua propício às colisões entre trajetórias heterogêneas, a partir de onde a política da rua possa florescer.

Se liso e rugoso parecem contraditórios num primeiro momento, mostram-se afinal

como conceitos complementares no entendimento do espaço da sarjeta. Em determinada

passagem Deleuze e Guattari refletiam que se a cidade seria o espaço estriado por excelência,

ela também geraria seus espaços lisos. É no momento em que levam seus conceitos para a

materialidade da cidade que os filósofos sugerem o que podemos identificar como uma

aproximação entre as noções de liso e rugoso. A cidade libera espaços lisos, que já não são os da organização mundial, mas os de um revide que combina o liso com o esburacado, voltando-se contra a cidade: imensas favelas móveis, temporárias, de nômades e trogloditas, restos de metal e tecido [...] Força condensada, potencialidade de um revide? (p. 188) As hordas de catadores silenciosos que ocupam as ruas de bairros nobres momentos

antes e simultaneamente à passagem do caminhão de lixo, com seus carrinhos, carroças,

imensos sacos plásticos abotoados de latinhas – toda essa tecnologia da gambiarra que

permite o rendimento de seu trabalho – seriam expressões dessas “favelas móveis”; assim

como as barracas retráteis dos camelôs e os carrinhos dos vendedores ambulantes nos bordos

das calçadas e das pistas nas ruas centrais; a audácia lenta e astuciosa de bicicleteiros

disputando seu espaço marginal com automóveis nas pistas; ou os vestígios de um dormitório

feito de panos e papelão, corpos ensacados e adormecidos, mimetizados com a foligem

carbônica de uma fachada-cega: nômades na potência, ambulantes nos modos de vida.

São esses usos desviados dos espaços estriados da cidade que, como as favelas,

primeiramente alisam, dissolvem as estrias, envergam o esquadro, para depois esburacar e

remodelar a superfície das ruas com rugosidades. Mas se são essas práticas um “revide”, se a

construção desse espaço da sarjeta nas ruas “se volta contra a cidade”, não é contra toda a

cidade, mas um tipo de cidade – a cidade-modelo, cidade-imagem – que as dimensões do

marketing urbano elaboram e vendem; não a cidade heterogênea, que resulta das dinâmicas

próprias do urbano, com as ambiguidades e desequilíbrios que a vida coletiva sujeitada às

determinações de mercado, mas também singularizada na própria diferença engendra em seus

movimentos de transformação. A sarjeta não passa de um desses resultados, a cada momento

materializada sob formas diferentes em sua elasticidade própria, que se sobrepõe à rua-

modelo para instaurar na colisão de trajetórias ambulantes e capsulares, nas variações de

movimento – velocidade, desaceleração e paradas –, uma dimensão de luta, disputa e política.

Constrói-se aí um estado de rua.

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8. A política da rua O confronto com estranhos é uma aventura, de desfecho incerto [...]. Apresenta aquela dose de

fascínio que caracteriza as ruas, lugares do que é estranho.

Carlos Nelson Ferreira dos Santos e Arno Vogel, Quando a rua vira casa

Polis ou urbis

A ideia de um estado de rua, que seja ao mesmo tempo o gerador e o resultado de uma

potência própria à experiência urbana da rua, carrega consigo um sentido político. Este não

diz respeito à política partidária ou de Estado – uma macropolítica –, mas a uma política ao

nível do espaço urbano, uma política da rua. Poderíamos pensar ainda na diferença que pode

existir entre uma política da rua, ou seja, aquela que é parte integrante da experiência da rua, e

uma política na rua, ou aquela que já existe em outras esferas e vai para a rua. Talvez essa

diferença, fundamental para o que se pretende investigar aqui, seja melhor expressa se

associarmos a primeira à ideia de urbis e a segunda à ideia de polis.

A palavra polis – como se sabe, este era o nome que os gregos davam à suas cidades –

simboliza o encontro entre cidade e política. Este encontro, no entanto, carrega o que

podemos chamar de um sentido clássico, tanto no que diz respeito a uma época, ou a uma

determinada maneira com que a historiografia se refere ao período da Grécia antiga, quanto

no que se costuma entender como um significado clássico ou puro, da política. Idealmente, a

historiografia tradicional confere ao espaço da ágora a função de abrigo do exercício político,

onde se constituía um espaço público, cercado por edifícios com função pública, onde aquela

sociedade se reunia para construir um comum, uma esfera pública e política. Entretanto, tal

visão não apenas costuma esquecer que esse exercício político não era permitido a todos –

mulheres e escravos eram excluídos –, quanto delimita apenas ao espaço da ágora sua

realização. À ágora cabia então a constituição de uma esfera pública, enquanto em toda uma

cidade que se desenvolvia ao redor dela, dominaria a esfera privada. Até hoje, quando se fala

em espaço público, ainda perdura em determinados meios uma imagem que remete a esta

ágora grega idealizada.

A noção de urbis, diferentemente, remete à esfera urbana, isto é, ao modo de vida que se

desenvolve nas cidades. Lefebvre explica isso em termos da distinção entre cidade e urbano.

A cidade é entendida enquanto obra, ou seja, o resultado material construído pela vida urbana,

que tem seu “valor de uso”, mas que pelas dinâmicas capitalistas, ganha também um “valor de

troca”, de onde decorre a conversão de objetos e do próprio solo em propriedade. Já o urbano

refere-se às dinâmicas humanas que se dão de forma simultânea em termos do encontro e da

reunião dos elementos da vida social, incluídas todas as contradições, desigualdades, e os

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processos que atribuem significados socioculturais à sua organização espacial, como a

formação de centralidades e periferias (LEFEBVRE, 2008). Assim, se na sociedade grega a

polis seria a cidade construída materialmente, a urbis seria a vida que a animava, constituída

em ambas as esferas, pública e privada.

É possível pensar que no decorrer dos processos históricos que têm levado ao uma

modelização da vida urbana segundo uma lógica cada vez mais interiorizada ou capsular, a

esfera pública esteja sendo paulatinamente subtraída dos espaços públicos das cidades. Neste

caminho, relacionado à visão da cidade como pólis, estaria ocorrendo um processo de

despolitização desses espaço a partir da tendência em se imaginar (ou desejar) uma associação

unívoca dos espaços públicos à uma prática política no sentido clássico (veremos mais adiante

que esta noção precisa ser atualizada). Seguindo esta linha de pensamento chegaríamos então

à ideia de que o urbano estaria sendo reduzido à dinâmicas estritamente privadas, o que

mesmo apresentando-se como tendência em alguns aspectos da vida social, não pode ser

generalizado a toda a complexidade da vida urbana.

Talvez esta confusão seja consequência da crescente dissolução das fronteiras entre

esfera pública e privada, onde os sujeitos urbanos se veem cada vez mais imersos numa zona

de indistinção. Alguns exemplos emblemáticos são o fato de que mesmo no ambiente mais

privado do interior de suas casas, indivíduos estão conectados por dispositivos tecnológicos

(as “telas”) a um tipo limitado de esfera pública (a internet seria o exemplo máximo); ao

passo que no espaço público das ruas podem estar, em graus variados, ensimesmados em

cápsulas privadas (no sentido material e imaterial do termo). Estes seriam apenas exemplos

óbvios de uma dinâmica mais complexa e sutil. O que Sennett (1998) mostrou é que as

relações públicas passaram historicamente a ser compreendidas e efetivadas em termos

privados, mas não que a esfera pública tenha deixado de existir100.

A mudança parece estar no fato de que a esfera pública vem sendo praticada de outras

formas e adquirindo novos significados, muito distintos daquele modelo clássico. Um dos

significados mais evidentes é que ela passou a ser confundida com a esfera de governo – o

chamado “poder público” –, como se este fosse seu único operador, e daí a tendência em se

imaginar que a política tenha sido carregada junto com ela para o interior do aparelho de

Estado. Em termos de significação, de imaginário coletivo dominante, parece ser exatamente

o que aconteceu, mas isso não implica que ela tenha deixado de ser praticada no urbano, em

suas mais complexas e moleculares formas de expressão.

100 O título de seu livro é “O declínio do homem público” e não da esfera pública Ver o aprofundamento desta discussão no item “A face invisível: tempo real, espetáculo e individualização” do capítulo 1.

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Foucault, já nos últimos anos de sua vida resolve se ocupar da questão da

“governamentalidade”, ou sobre as relações entre governo, dispositivos de segurança, e

população. Não interessa aqui aprofundar essa questão, mas atentar para o que o filósofo

chamou de uma mudança do Antigo Regime (“Ancien Régime”) que imperou até o século

XVIII – no qual a dominação de governantes se dava sobre um território por meio de um

poder de direito, soberano e transcendental, ao qual se submetiam os governados –, para o

Estado moderno, que não se define mais (apenas) pelo domínio de um território, uma

superfície ocupada, mas pela administração de uma população por meio de técnicas de

governamentalidade operadas por uma série de dispositivos (FOUCAULT, 1998).

Seguindo a trilha de Foucault, Agamben (2010) sugere considerar a metrópole como

aquilo em que se transforma a cidade no momento dessa passagem da forma de governo de

um território para o governo dos homens, ou de um poder territorial para um “biopoder”. Ela

pode ser vista, assim, como um “dispositivo, ou o conjunto de dispositivos que toma o lugar

da cidade” quando o poder adquire uma “configuração mais complexa, isto é, quando

pretende passar através da própria natureza dos governados e que, portanto, implica a

liberdade destes”, onde se pode observar também a mudança de um poder transcendente para

um poder imanente. Esta passagem, segundo Agamben, teria sido responsável por acabar de

vez com o modelo da polis, onde a política clássica tem lugar no espaço público, e conduzir a

uma nova espacialização típica da metrópole, onde se dá um processo de des-politização

(AGAMBEN, 2010). Se sobre a cidade como polis sobrepõe-se a metrópole despolitizada, seria

o caso de investir esforços não na tentativa de recuperação daquele antigo modelo, mas na

compreensão das novas relações de força e dinâmicas sociais características da atual

configuração da metrópole. Que esfera pública e que exercício político seriam possíveis então

na urbis contemporânea?

Ingovernabilidade

De maneira bem simples poderíamos pensar que alguma forma de exercício político

sempre existiu ao nível do chão das cidades, seja nos termos do contraditório espaço público

da polis ou mesmo antes disso. Atualmente, com todas as transformações que levaram à

constituição da metrópole e sua atual indistinção entre esfera pública e privada, um tipo de

política (sem dúvida distinta daquela clássica) continua a ser feita neste nível, na superfície da

cidade, que não seria mais a política da polis, mas a política da urbis. O que Foucault e

Agamben ajudam a perceber é que ela apenas foi deslegitimada pelos dispositivos da

governamentalidade, que visam reduzir o exercício político legítimo a uma esfera de governo,

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mais especificamente de Estado, afim de garantir a manutenção das estruturas de poder

vigentes. Neste sentido, é muito claro o paradoxo da expressão “política urbana” que, ao

contrário do que a expressão indica, não se faz na urbis, na esfera urbana, mas no interior e

através do Estado, definindo estratégias e métodos de administração do urbano por meio de

dispositivos de poder entre os quais o saber urbanístico.

Isso explica a tradicional tensão que existe entre o Estado e as forças da rua, ou entre os

micropoderes do urbano e os macropoderes de governo. Podemos recorrer a Deleuze e

Guattari (1997), e distinguir estas forças segundo os modos de uma “máquina de guerra” de

exterioridade e de um “aparato de estado” que atua apenas sobre o que é capaz de interiorizar

segundo sua própria lógica. Mas isso não significa que esta tensão se realize sob a forma

polarizada da rua contra o Estado, até porque segundo os autores trata-se de naturezas

distintas101. Esta tensão se desenvolveria antes no âmbito das tentativas das políticas de

Estado em manter o controle sobre as forças da rua, especialmente pelo seu modo de agir que

se configura como “captura” e “interiorização”, já que encontra na rua expressões irredutíveis

a seus modelos e cuja potência pode, em certos casos, colocar em xeque suas formas de

governo. Com isso, entende-se por que a manutenção do domínio da esfera pública (e da

política) pelo Estado não apenas demanda o uso de dispositivos de subjetivação destinados a

deslegitimar o exercício político na rua – a mídia de massa tem se mostrado uma aliada

histórica neste sentido –, como também passa necessariamente pela instrumentalização do

urbanismo e do planejamento urbano de modo a controlar ou neutralizar a potência própria

que existe na experiência da rua102.

Considerando que uma das características dessa potência da rua é sua condição de

território instável103, uma das tarefas do Estado soberano é tentar manter, em meio a essa

instabilidade, algum equilíbrio por meio do predomínio da função circulatória e a garantia de

sua fluidez a partir das leis de trânsito, mas também da regulamentação de seus usos fixos. O

que implica também uma fiscalização contínua dessa ordem de modo a prevenir que um 101 “Quanto à máquina de guerra em si mesma, parece efetivamente irredutível ao aparelho de Estado, exterior à sua soberania, anterior a seu direito: ela vem de outra parte. [...] Seria antes como uma multiplicidade pura e sem medida, a malta, irrupção do efêmero e potência da metamorfose. Desata o liame como trai o pacto. Faz valer o furor contra a medida, uma celeridade contra a gravidade, um segredo contra o público, uma potência contra a soberania [...] Sob todos os aspectos, a máquina de gerra é de uma outra espécie, de uma outra natureza, de uma outra origem que o aparelho de Estado”. (p. 12-13; grifo dos autores)

“O Estado ele mesmo sempre esteve em relação com um fora, e não é pensável independentemente dessa relação. A lei do Estado não é a do Tudo ou Nada (sociedades com Estado ou sociedades contra o Estado), mas a do interior e do exterior. O Estado é a soberania. No entanto, a soberania só reina sobre aquilo que ela é capaz de interiorizar, de apropriar-se localmente”. (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 23) 102 Ver capítulo 6. 103 Ver. Capítulo 2.

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acontecimento disruptivo nesse fluxo habitual possa concentrar outras pulsões urbanas que,

atingindo um estado de massa crítica, sejam capazes de produzir abalos no sistema geral da

cidade e, mais precisamente, em suas estruturas de poder. Delgado (2007) desenvolve esse

tema ao investigar a relação do Estado com as mobilizações que ganham corpo nas ruas,

tecendo correlações entre as formas governamentais de lidar com o fenômeno e os níveis de

democracia efetivamente instaurados num determinado contexto. Segundo o autor, nos

regimes que se supõem democráticos

as instâncias de governo sabem ceder seu monopólio administrativo sobre o espaço público – interpretado neste caso não como espaço acessível a todos, mas como espaço de titularidade pública – a setores sociais em conflito, de maneira que estes possam fazer usufruto pacífico e com finalidades de índole expressiva, para dirimir em público todo tipo de desacordos com os distintos poderes políticos, sociais ou econômicos.

Já onde não existem condições democráticas, continua o autor,

O Estado impede todo manejo não consentido do espaço público, na medida em que atribui a si a exclusividade de seu controle prático e simbólico e interpreta como uma usurpação toda utilização não controlada deste espaço. É nesse caso que o poder político pode abandonar qualquer escrúpulo no momento de demonstrar suas seculares tendências antiurbanas, consequência de uma desconfiança frontal frente ao espaço urbano, território cronicamente incontrolável de modo pleno. (DELGADO, 2007, p. 164; grifo meu)

Neste sentido, parece que a relação do Estado com a rua, ou os níveis de tensão que se

evidenciam nesta relação, podem servir como termômetro para demonstração do nível de

democracia efetiva existente num determinado sistema político, para além do campo

discursivo. Esta tensão relaciona-se ao fato de que o espaço urbano encerra uma ameaça em

potencial às estruturas de poder posto que carrega um componente de ingovernabilidade. Esta

apresenta-se não apenas sob a forma de uma irredutibilidade passiva, mas também ativa, na

medida em que as ruas e as possibilidades que oferecem para a mobilização social convertem-

se também em território de controle e cobrança da representação dos interesses dos cidadãos

pelo Estado. Com isso, independentemente dos níveis de democracia instaurado, o Estado

tenderá sempre a despotencializar o exercício político na rua. Delgado completa:

Por sua suspeita diante da rua como espaço aberto – que alcança aqui sua explicitação mais óbvia –, os sistemas políticos centralizados tendem a convencer seus administrados de que a via pública deve servir apenas para que indivíduos ou grupos reduzidos possam ir de um sítio a outro para fins práticos ou trabalhem para mantê-la em bom estado – polícias, funcionários públicos, etc. –, e apenas excepcionalmente para que participem em mobilizações coletivas patrocinadas ou consentidas oficialmente. Qualquer outro usufruto da rua é sistematicamente compreendido como perigoso e suscetível a estreita fiscalização e, eventualmentem a proibição ou dissolução violenta. (Ibid, p. 165)

Para retomar então a distinção proposta no início deste capítulo, poderíamos associar

este fenômeno coletivo que Delgado chama de mobilização, ao exercício daquela “política na

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rua”. Esta se configura, seja com características festivas ou de motim, sob as formas de

manifestações, passeatas, marchas, organizadas previamente. Aqui a política é significada em

“ato político” e a rua é escolhida estrategicamente em função da visibilidade, do impacto no

sistema de circulação da cidade, etc.; A rua é palco da mobilização social. Isto significa, em

algum sentido, uma aproximação da visão da cidade como polis, no sentido de que constitui a

reivindicação de uma voz política ao nível do chão da cidade capaz de negociar com os

poderes do Estado e suas decisões de governo. Delgado lembra que a luta democrática é

também “a luta pelo direito a falar em voz alta e para que todos escutem” (DELGADO, 2007, p.

177). Trata-se d’A conquista da palavra, que segundo o autor, não à toa é o título do livro de

Michel de Certeau dedicado ao Maio de 68 na França. Inclui-se aqui também um sentido

também tradicional de esfera pública que, nos termos de Sennett (1998), deve

necessariamente descolar-se dos laços pessoais da comunidade para realizar-se sob a forma de

relações de impessoalidade, que não impedem, mas qualificam a reunião de indivíduos

desconhecidos em torno de uma afinidade eletiva, ou um objetivo comum.

Todavia, este não é o único tipo de exercício político encontrado nas ruas. É possível

vislumbrar uma outra forma, ainda mais atrelada à noção de um estado de rua e que talvez,

dada a extensão dos efeitos promovidos pelo modo de vida capsular, seja cada vez mais difícil

de se perceber, especialmente para aqueles indivíduos cuja experiência de rua ocorre

majoritariamente mediada pela cápsula automotiva. Esta seria a política da rua, ou o exercício

político intrínseco às próprias dinâmicas cotidianas do urbano; aquela prática que permaneceu

ao nível da rua e adaptou-se às mudanças nas formas como se entrelaçaram as esferas pública

e privada na metrópole contemporânea. Se a política na rua ainda consegue negociar seu

reconhecimento em formas de governo mais democráticas, a política da rua é aquela que foi

completamente deslegitimada pelos dispositivos de governo e atua num regime de

invisibilidade, o que aponta que seu exercício seja eminentemente micropolítico.

É segundo os termos dessa política que se estabelecem as formas de coexistência,

conflito e rearranjos que se dão no cotidiano das relações humanas nos e com os espaços e

significados das ruas e espaços públicos urbanos de maneira geral. Com isso, podemos pensar

que se a política na rua surge em espasmos eventuais, abalos extraordinários em meio a um

relativo equilíbrio (instável) no andamento da cidade, a política da rua está presente em todo

momento de forma molecular e ordinária, inclusive quando acontecem as mobilizações na

rua, o que não significa que ela seja menos importante. É nesse âmbito que estão atuando os

modos de subjetivação, refletidos na forma como diferentes maneiras de ver entram em

conflito no encontro da heterogeneidade urbana nas ruas.

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Disputar espaço no comum

Para melhor qualificar o funcionamento desta forma política e compreender seu papel

fundamental para a transformação do urbano, podemos recorrer às contribuições de Jacques

Rancière, segundo o qual a política se instaura no momento em que simplesmente opomos um

mundo comum a outro, ou no momento em que se realiza a “partilha do sensível”. Assim ele

explica essa expressão:

Denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha. (RANCIÈRE, 2005a, p. 15)

O “comum” (grifado várias vezes pelo autor) parece ser o elemento central desta ideia.

Ele pode ser entendido como o resultado da negociação entre indivíduos, mas também como a

própria esfera dessa negociação a respeito do que se vê, do que se diz e do que se faz. Parece

também que o que Rancière chama de sensível é o próprio encontro dos sentidos com o

mundo, em seu duplo movimento de processamento e produção da realidade. Com isso,

podemos pensar que se o particular, ou o singular, seriam o resultado da realização deste

movimento individualmente, o comum só seria possível quando vários desses movimentos se

encontram.

No entanto, essa divisão não é tão simples, já que dificilmente um movimento sensível

individual possa ocorrer sem interferências externas, especialmente na cada vez mais

abrangente zona de indistinção entre universo público e privado em que navegam os sujeitos

contemporâneos. Parece importante também apontar que a subjetividade há muito tempo já

não é vista segundo a imagem de um receptáculo vazio e individual a ser preenchido, mas em

termos de produção continuada, atravessamentos múltiplos, contraditórios, que produzem

sedimentações coletivas e individuais (GUATTARI, 1992; GUATTARI e ROLNIK, 2008).

Assim, se a produção de subjetividade se faz também na recepção sensível da experiência

cotidiana na cidade, a rua apresenta um duplo papel: por um lado como campo de experiência

sensível coletiva, onde quanto menos encapsulada for essa experiência, ou menores os níveis

de mediação entre indivíduos e ambiente, maiores as possibilidades de atravessamentos por

produções locais, mais opacas e singulares, que possam fazer frente àquelas produções

globais e homogêneas, modeladas por todo tipo de dispositivo mercadológico; por outro lado,

pode ser vista como território pulsante em que o próprio espaço é constantemente atualizado

enquanto o comum dos habitantes de uma mesma cidade. Existem aí, portanto, por mais

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desviadas de seus sentidos habituais, práticas eminentemente públicas e invariavelmente

políticas. Mas há ainda outro aspecto dessa partilha mencionado por Rancière que carrega

implicações fundamentais:

O cidadão, diz Aristóteles, é quem toma parte no fato de governar e ser governado. Mas uma outra forma de partilha precede esse tomar parte: aquela que determina os que tomam parte. O animal falante, diz Aristóteles, é um animal político. Mas o escravo, se compreende a linguagem, não a ‘possui’. [...] A partilha do sensível faz ver quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce. Assim, ter esta ou aquela ‘ocupação’ define competências ou incompetências para o comum. Define o fato de ser ou não visível num espaço comum, dotado de uma palavra comum, etc. (RANCIÈRE, 2005a, p. 16; grifo do autor)

Sob esse ponto de vista, parece compreensível que, a partir do momento em que os

dispositivos de poder subtraem as formas de exercício político (legitimadas) do espaço

público com vistas a garantir um certo controle sobre essa partilha anterior – aquela que

define quem pode fazer parte do comum e seus níveis de visibilidade –, tenha se instaurado

um vácuo na rua em que resíduos de esfera pública e política convivem com aqueles à quem,

na partilha, não foi permitido tomar parte do comum. Se aos escravos não era permitido o

usufruto do comum no espaço público da polis, aos “escravos modernos” – ou aqueles a que

não se pode conferir status de cidadãos – resta buscar nesse vácuo cinzento da rua as sobras

que ali restaram do comum. São estes sujeitos que habitam na rua uma zona liminar, que

poderiam ser associados ao que Agamben chama de homo sacer104, vivendo entre a vida nua e

a vida política.

É possível pensar então que, ao contrário dos escravos, que eram completamente

anulados enquanto sujeitos políticos, os sujeitos liminares encontrados nas ruas, espacializam

suas práticas, suas formas de habitabilidade, em níveis variados de visibilidade e interferência

no comum e é justamente a política (não da polis, mas da urbis) que resiste ao nível da rua

que os permite fazê-lo. Com isso, se o exercício desta política da rua dependa da instauração

de um estado de rua (que não seria possível se o modo de vida capsular dominasse todas as

esferas da vida urbana), apresenta-se de maneira ainda mais forte a ideia de que estes sujeitos

carregam consigo, como qualidade incorporada, este estado de rua, já que eles, mais do que

ninguém, precisam agarrar-se com todas as forças à política que reside ali para evitar que se

dissolvam em pura “vida nua”. E assim, se a sociedade capsular e os inúmeros dispositivos de

poder da metrópole se esforçam para acabar com a potência política da rua, estes sujeitos, por

sua vez, carregam consigo uma força molecular capaz de penetrar os espaços “amnésicos” e 104 Figura obscura do direito romano arcaico, o Homo sacer é aquele que se pode matar sem cometer homicídio. Sua condição política é de uma exclusão inclusiva. Nem zoé, vida natural; nem Bíos, vida politicamente qualificada. (AGAMBEN, 2004)

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despolitizados, convertidos em puro fluxo de velocidade homogênea, e instaurar ali, através

de suas práticas desviantes, um estado de rua. Considerando o encontro com a alteridade

como uma das características fundamentais da experiência da rua, estes sujeitos liminares

ocupam, sem dúvida, seu aspecto mais radical.

Alteridade, conflito e dissenso

A alteridade seria essa característica inerente ao modo de vida urbano, diferença

geradora das circunstâncias sociais que nos espaços urbanos ativaria a política da rua. Este

exercício político renova-se assim, cotidiana e permanentemente nos contatos mais ordinários

com o “outro” na cidade. Carlos Nelson e Arno Vogel (1985) ressaltam a função de

estranhamento que esta categoria – o “outro” – carrega, tanto em sua forma mais radical,

como simplesmente considerando-o como “aquele com quem mantemos relações sociais”.

Sua presença nas ruas é a grande responsável pela possibilidade de surpresas e do encontro

com o inesperado, e deste contato decorreriam aspectos relacionados à socialização e à

segurança. Os autores destacam estes dois aspectos como inerentes ao contato na medida em

que, por um lado, a questão da segurança relaciona-se ao fato de que o contato sempre carrega

consigo a possibilidade do conflito e, de outro, a socialização “o torna possível e o reproduz”

(p. 83).

A diversidade, defendida por Jane Jacobs (2000), como o principal aspecto a ser

cultivado nas cidades, seria responsável pelos atributos urbanos que garantem “naturalmente”

alguma segurança no contato com o outro. “Muitos olhos e muitas mediações permitem

incorporar os estranhos sem custos sociais excessivos”, diz ela (apud SANTOS e VOGEL,

1985). Ao mesmo tempo é preciso tomar cuidado com os sentidos com que a apologia da

diversidade vem sendo aplicada, pois ela tende a confundir-se com noções como as de

“multiculturalismo” que, incorporadas à “lógica cultural do capitalismo tardio” (JAMESON,

2000), revelam-se ferramentas de manutenção do status quo, ou formas de camuflagem e

mitigação de conflitos.

É claro que existem inúmeras formas de conflito, inclusive aquelas que incorrem num

vetor de violência e destruição. E este é um dos riscos que, não tão raro nos dias atuais, a

experiência da rua apresenta. Mas aí já não se trata mais de política, ou então se revela como

reflexo da deslegitimação da política da rua a ponto de seus praticantes, não reconhecendo sua

capacidade de exercê-la, recorrerem à violência. Neste caso, abandonar a rua – apoiando-se

no argumento da violência – como induzem os processos de subjetivação que apontam para o

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consumo do modo de vida capsular, não se configura como solução, e o esvaziamento social

que isto acarreta faz aumentar ainda mais a possibilidade de violência.

Os tipos de conflito que têm importância aqui são aqueles realizados dentro da esfera

política, cujas expressões carregam a possibilidade de gerar transformações subjetivas e

espaciais a partir da constituição de dissensos. Como refletem Carlos Nelson e Arno Vogel, o

conflito é dimensão crucial no processo de apropriação do espaço.

Sua existência [do conflito] não deve surpreender, pois difícil seria imaginar qualquer processo de apropriação de um bem coletivo sem dissensões e discordâncias. Sem choques resultantes da própria dinâmica do sistema. Os espaços não vêm acompanhados de manual de instrução para sua utilização. Ou melhor, nem sempre, o que significa que, às vezes, é o caso. [...] Para além das leis escritas e instituídas, que regem a sociedade, está um direito cujas normas são permanentemente discutidas e negociadas. A comunidade convive com o dissenso. (SANTOS e VOGEL, 1985, p. 106)

Os autores apontam que são as dinâmicas naturalmente dissensuais existentes nas práticas

espaciais as responsáveis por alimentar e renovar a esfera política que ali existe. Neste ponto,

é interessante notar o distanciamento que esta forma de política começa a tomar daquela outra

exercida e elevada ao âmbito de governo, na qual é cada vez mais predominante a ideia ou

necessidade de se formarem consensos, incluindo-se aí a prática do planejamento urbano.

Parece importante então explorar os sentidos políticos das noções de conflito, consenso e

dissenso. Mais uma vez recorremos à Rancière que aponta o papel estratégico do consenso

para a manutenção dos poderes estabelecidos:

O consenso é bem mais do que aquilo a que o assimilamos habitualmente, a saber, um acordo global dos partidos de governo e de oposição sobre os grandes interesses comuns ou um estilo de governo que privilegia a discussão e a negociação. É um modo de simbolização da comunidade que visa excluir aquilo que é o próprio cerne da política: o dissenso. [...] O consenso tende a transformar todo conflito político em problema que compete a um saber de especialista ou a uma técnica de governo. Ele tende a exaurir a invenção política das situações dissensuais. (RANCIÈRE, 2005b)

Assim, se no âmbito das práticas políticas elevadas à esfera de governo vemos o

predomínio da produção de consensos – política que é também estendida aos processos de

subjetivação dominantes efetivados pela força de capilaridade dos veículos midiáticos –, no

âmbito da política da rua, parece que o conflito ocorre como um evento totalmente

espontâneo, que costuma associar-se mais aos dissensos do que aos consensos. Aqui

poderíamos visualizar a formação de vetores de força: no primeiro caso uma força

concentrada que se bifurca em alguns vetores seguindo um fluxo de cima para baixo; e no

segundo caso, um conjunto heterogêneo de forças pulverizadas que encontrando-se por meio

do conflito podem produzir dissensos que se concentram em alguns vetores de baixo para

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cima, podendo direcionar-se inclusive rumo às estruturas de poder. Fica óbvio que em algum

momento estas formas políticas se encontram. Seria então o caso de pensar como a política da

rua pode potencializar-se a fim de que seja possível experimentar com maior frequência outro

tipo de exercício político além da dominante política do consenso.

Se o conflito pode ser considerado o elemento central desta outra forma política, seria

preciso que, no recorte aqui proposto, antes de mais nada que exista um estado de rua para

que ele possa ocorrer no espaço urbano. Na heterogeneidade das práticas instauradoras de um

estado de rua, o encontro com a diferença seria o estopim para o acontecimento do conflito.

Antes que se possa atribuir a ele qualquer função, o conflito pode ser pensado como a própria

expressão do encontro das diferenças. Sua finalidade não pode ser objetivada em termos de

encaminhamento de divergências a algum tipo de unidade, ou à resolução de tensões entre

elementos contrastantes, mas em última instância para a produção de mais diferença. A ideia

da polarização do conflito em duas faces antagônicas só poderia ser produzida em condições

“in vitro”, o que não corresponde à experiência do espaço urbano que é, ao contrário, povoada

pela multiplicidade. Há sim, variações de intensidade, de tensão e calmaria, em meio à

instabilidade típica das ruas, onde o imprevisível pode acontecer a qualquer momento.

Seria possível talvez identificar, em meio às quase infinitas variedades de conflito, dois

tipos importantes de conflitos que ocorrem nas ruas. Um deles seria aquele mais concreto

relacionado àquela máxima da física que diz que “dois corpos não podem ocupar o mesmo

lugar no espaço”. Este tipo de conflito relaciona-se então a ação e movimento, disputa por

território e por posição no espaço a partir do encontro de práticas e usos do espaço diferentes

em que uma trajetória passa a interferir no campo espaço-temporal de outra. Um exemplo

simples é aquele que se dá na coexistência entre automóveis, pedestres, ônibus, bicicletas e

outros veículos de tração humana (carroças de catadores, carrinhos que vendem alimentos,

etc.), que frequentemente entram em conflito na disputa por espaço. A sarjeta das ruas

tradicionais apresenta-se aqui como espaço de fronteiras imprecisas onde esta dinâmica ocorre

de forma mais intensa.

Outro tipo de conflito, que pode estar associado ao primeiro, seria aquele que se instaura

a partir de situações onde uma singularidade diferencial, ou estranha (marginal, louca,

excêntrica, ilegal, anormal, depravada, incivilizada, etc.), atravessa o campo de observação ou

de domínio territorial de sujeitos cujas formas de ver e de fazer estão alinhadas com os

processos hegemônicos e que, a partir daí, acionam o consenso como instrumento de poder

para exercer sobre aquela singularidade seu microfascismo. É claro que o ponto de vista pode

ser invertido, quando o elemento singular, em situação favorável (p. ex. ausência de

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dispositivos de controle), provoca o confronto intencionalmente. Em todo o caso não são dois

elementos, mas um contra “muitos”, ou a diferença contra o consenso. Muitas vezes esse é um

conflito que não assume a forma de confronto direto, mas desencadeia incômodos,

questionamentos e relativizações de imaginários estabelecidos.

O conflito e o dissenso podem ser vistos como complementares e estão intimamente

ligados. Ambos fazem parte da política da rua, mas é importante pensar que nem sempre o

conflito levará ao dissenso. Algumas situações muito comuns presenciadas nas cartografias de

campo deste trabalho podem servir como exemplo deste fato: um camelô em conflito com o

“rapa”, uma bicicleta em conflito com um automóvel em movimento, moradores de rua que

na Praça da Piedade (Salvador) utilizam o chafariz para tomar banho e lavar roupas, quando

são interpelados por policiais. Se estes sujeitos “menores” sentem-se transgressores,

realizando uma prática ilegal ou ocupando um espaço ao qual não têm direito ou onde não

poderiam estar, mesmo em conflito, eles estarão de acordo com seus opressores.

A partir daqui podemos pensar que se o conflito está mais ligado ao campo da ação, o

dissenso está mais ligado ao da significação e teria, por isso, mais força para disputar as

partilhas dos espaços-tempos da cidade com os poderes dominantes. O conflito, por outro

lado, além de geralmente ser o gerador do dissenso, carrega toda uma potência de criação,

onde no encontro de diferenças que gera mais diferença, são produzidas novidades, novas

possibilidades de vida, novos espaços e significados; elementos, portanto, para o movimento

de transformação da vida urbana. A potência do dissenso, mais próxima aos processos de

subjetivação, estaria nas possibilidades de descriminalização dos conflitos105, o que significa,

em outras palavras, a profanação da própria política, ou daquela política que foi sacralizada ao

âmbito de governo pelos dispositivos de poder e cuja contraparte é a deslegitimação ou

criminalização da política exercida no comum das relações cotidianas, a política da rua.

Neste sentido, nos aproximamos de Agamben (2007) para quem “a profanação do

improfanável é a tarefa política da geração que vem” (p. 79). Segundo o autor, profanar é

restituir ao uso comum dos homens aquilo que lhes foi retirado pela sacralização. E se a

operação que sacraliza tem a ver com o exercício do poder, a profanação deve então desativar

(ou desviar) os dispositivos de poder para devolver ao uso comum os espaços que lhes foram

confiscados. Isso vale para a política sacralizada ao âmbito de governo, mas também para o

105 Estas reflexões quanto às diferenças e potências próprias ao conflito e ao dissenso foram disparadas no âmbito do evento CORPOCIDADE : debates em estética urbana 2 cujo tema era “conflito e dissenso no espaço público” realizado em Salvador (2010); mais especificamente no Grupo de Trabalho sobre “política” do qual participei junto à Cibele Rizek, Fernando Ferraz, Cacá Fonseca, Thaís Portela, Thiago de Araújo Costa entre outros. Algumas informações interessantes encontram-se no site da plataforma Corpocidade: www.corpocidade.dan.ufba.br.

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próprio espaço comum das ruas, sacralizado ao usufruto da sociedade capsular para a

finalidade da velocidade de sua circulação homogênea. Por isso Agamben aponta a urgência

em intervir e penetrar nos processos de subjetivação a fim de desativar seus dispositivos

modeladores das formas de vida e, com isso, “levar à luz aquele ingovernável que é ao mesmo

tempo o início e o ponto de fuga de toda política” (2009, p. 51). Os conflitos e dissensos que

surgem na política da rua podem aqui assumir um papel fundamental.

Como Potencializar a política da rua?

Considerando que a rua já carrega consigo um componente de ingovernabilidade, seria importante, no âmbito deste trabalho, pensar como os desvios pelo movimento podem atuar no sentido de potencializar a política da rua, ou ainda, como isto poderia ser intensificado por outras práticas.

Algumas das ações que parecem agir neste sentido são aquelas que promovem a sabotagem da velocidade a favor do movimento106, ou seja, são capazes de subverter a produção indiscriminada de vias amnésicas pela infiltração ali de estados de rua. Os sujeitos ambulantes, ocupando as ruas pela sarjeta, inserindo ali usos flexíveis e não-previstos que, muitas vezes, desaceleram os fluxos hegemônicos e ativam relações sociais com o espaço e outros sujeitos, sem dúvida agem neste sentido. No entanto, por mais que uma rua seja ocupada por estes usos, a velocidade ainda pode predominar se a capsularização em automóveis e dos usos lindeiros for demasiado intensa, o que manteria estas práticas ainda na invisibilidade. Além da ocupação das ruas com práticas mais lentas, a intensificação desta ideia por outras práticas trabalharia no sentido de penetrar os processos de subjetivação, desviar especialmente daqueles dispositivos discursivos e imagéticos que “matam” a rua e disputar com eles o território da “cidade subjetiva” (GUATTARI, 1992), criando ruídos e inversão de sentidos nos fluxos midiáticos que produzem o desejo de consumo de velocidade e racionalidade, mostrando, ao contrário, a riqueza a ser (re)descoberta na experiência do movimento intensivo.

Este caminho se complementa pela investigação de formas de profanação do significado

do solo como propriedade e da própria política elevada à esfera de governo por modos de

fazer em movimento. Procedimentos como o dos sujeitos ambulantes, com suas táticas e 106 Parece importante aqui reforçar a diferença entre movimento e velocidade. Esta última liga-se a uma experiência quantitativa do tempo – tempo de deslocamento dos fluxos de pessoas e informação – e assim, mais próxima à sociedade capsular. Ainda que os carros passem hoje a maior parte do tempo parados no trânsito, sua condição, além de encapsulada, pertence ao imaginário da velocidade e da aceleração, constituindo uma experiência extensiva (quilômetros rodados, litros de gasolina). O movimento, ao contrário, associa-se à experiência qualitativa do tempo, uma experiência intensiva. Associado à política da rua, o movimento é instrumentalizado tanto para o desvio das práticas dominantes e dos dispositivos de poder (incluindo aqueles mais objetivos como a polícia), quanto para a instauração de estados de rua, possibilitadores do conflito e do dissenso, do novo e do porvir.

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arte-manhas de trabalho, sobrevivência ou deslocamento, parecem ter a capacidade de

promover redistribuições e desvios, mesmo que provisórios, dos espaços proprietários. Outras

práticas criativas poderiam valer-se das vantagens da associação do movimento ao “tempo

oportuno” (CERTEAU, 2009) para buscar restituir ao uso comum a esfera pública e os espaços

públicos das cidades, cada vez mais sacralizados à esfera da imagem publicitária, da indústria

do medo, e das duvidosas parcerias público-privadas.

Por fim, seria importante pensar meios de fazer a passagem do conflito ao dissenso.

Compreendendo o dissenso como produção de subjetividade, são inúmeros os campos de ação

que se abrem neste sentido. Desde ações voltadas à legitimação de práticas menores e

marginalizadas até a própria explicitação de conflitos107, seja por meio da contaminação de

imaginários quanto na negociação da “partilha do sensível” com as variadas forças da cidade.

O que significa, em outros termos, agir naquele ponto de encontro entre a política da rua, a

política na rua e a política de governo, ou seja no próprio limiar entre micro e macropolítica.

Neste sentido, pensando que a ação no limiar apresenta-se como movimento de vetores

de força que apontam de um extremo a outro, a potencialização da política da rua parece estar

menos no vetor que aponta da micro à macropolítica – o movimento habitual de sequestro da

política do cotidiano pelas esferas partidárias e de governo – e mais naquele que aponta da

macro à micropolítica, isto é, uma retomada , ou “profanação”, da política elevada à esfera de

governo para a esfera do urbano. Ou seja, quando se aponta a mira menos aos promotores dos

consensos (Estado, capital financeiro, grande mídia) e mais aos habitantes da cidade, cidadãos

comuns – que se sujeitam, mas também reproduzem essa cultura – os quais compartilham no

cotidiano uma condição urbana cada vez mais precária no âmbito das três ecologias – do meio

ambiente, das relações sociais e da subjetividade humana (GUATTARI, 1990). Movimento

este, que se tiver sucesso, inevitavelmente terá consequências macropolíticas – tanto no que

diz respeito aos processos de escolha de representantes, quanto na cobrança de sua

representação, bem como na reivindicação (e autoconstrução) civil de uma radicalização da

democracia participativa.

107 Aqui um acoplamento entre os campos do urbanismo e arte – sobretudo o cinema, o vídeo, a fotografia, as intervenções e performances urbanas – parece bem frutífero, especialmente entre os modos de ver do primeiro (apreensão crítica da cidade) e os modos de fazer do segundo. É o que indica Jacques (2010) quando diz que “algumas experiências artísticas contemporâneas no ou sobre o espaço urbano podem vir a ser bons detonadores”. A autora propõe pensar “micropoderes sensíveis como possibilidade de ação crítica [...]questionadora dos consensos estabelecidos ou ainda como [...] forma de ação dissensual que possibilitaria a explicitação dos conflitos escondidos, do campo de forças que está por trás da cidade-logotipo-imagem espetacular.” (p. 115-116)

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Considerações Finais No decorrer do percurso realizado, procurou-se explorar variadas possibilidades da

operação que chamamos de movimento como desvio. Na macroescala do percurso o

movimento foi resultante da tentativa de escapar a vetores de sedimentação no próprio campo

disciplinar urbanístico, mas procurou também sua autonomia criadora. Nesta tensão entre

revide e busca produziu-se um desvio. Na microescala do percurso, as práticas e experiências

agenciaram com a teoria o procedimento metodológico, um modo de fazer, construído ao

longo do trabalho e experimentado como uma cartografia de trajetórias e práticas de espaço-

tempo que desviam pelo movimento. A tentativa de conjugar estas escalas resultou na busca

de um modo particular de contar, as narrativas cartográficas, que mais do que descrever ou

representar a experiência visaram produzir efeitos.

A rua surgiu com toda a sua potência enquanto campo aberto, tanto para a investigação

quanto para a construção de todo tipo de desvio. O pesquisador transfigurado em cartógrafo

buscou sentir e atuar junto às forças conflitantes que se cruzam e constroem a multiplicidade

de sentidos da experiência da rua, algumas com a potência do capital e da propriedade, outras

com a potência das artimanhas e dos usos desviados que, em seus atravessamentos mútuos, ao

mesmo tempo em que tentam “matar” a rua também a fazem pulsar com mais força.

A experiência de rua encontrada pelo cartógrafo foi a rua de contramão, que coabita o

espaço das ruas na cidade e no pensamento urbanístico com as vias de “mão única” – dos

processos de dominação – ou de “mão dupla” – que reduz a experiência a binaridades

antagônicas. A rua de contramão pode ser vista também como operação teórico-prática para o

desvio daquelas “ruas sem saída” da crítica pessimista, onde parece se estagnar o discurso do

urbanismo “em fim de linha”. Essa experiência, ao contrário do que se poderia pensar, é de

fácil acesso, bastando apenas que se experimente a cidade com o corpo, ao nível do chão. Esta

é talvez a melhor forma para que nos libertemos das armadilhas das visões, discursos e

imaginários que se produzem à distância, nas visões macro, que reduzem a complexidade da

vida coletiva à mapas, categorias e leituras planificadas e estanques.

A investigação mostrou que, se por um lado, algumas das ruas experimentadas estão

incluídas em territórios esquadrinhados pela cartografia tradicional (caracterização

socioeconômica, demografia, estudos censitários, etc.) segundo usos e significados ligados

apenas à propriedade do solo, sendo representadas como áreas homogêneas de concentração

de renda, por outro lado, os usos “opacos” destes lugares vistos através das práticas de

sujeitos ambulantes (e tantos outros) não apenas desvia destes padrões de significação como

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algumas vezes produz inversões incompatíveis com a leitura da cidade sedentária. Assim, a

cidade nômade, enquanto modo de ver e experimentar a cidade, mostra que a rua em sua

ingovernabilidade, onde quer que esteja localizada, encerra a possibilidade de construção de

territórios moventes relativamente autônomos em relação aos padrões dos usos legitimados,

planejados e fixos do contexto onde se inserem.

Nestas circunstâncias, instauradas no tempo da ação, onde os espaços proprietários são

parcialmente suspensos e as arte-manhas dos sujeitos ambulantes ganham força, a cultura

hegemônica é obrigada a lidar com a diferença. A “partilha do sensível” (RANCIÈRE, 2005a)

se realiza por meio de pequenos acordos, concessões, vistas-grossas, solidariedades,

“jeitinhos”, rearranjos, mesmo que provisórios, que caracterizam a política da rua. É neste

nível que a cidade nômade mostra que seus espaços-tempos são abertos, em construção,

transformando-se na ação das trajetórias de seus habitantes. Sob esta condição política,

ativada pela instauração de um estado de rua, é possível que o confronto, não apenas direto,

mas também de perspectivas e imaginários, engendre novos arranjos nos usos do espaço.

Estes podem ser eternamente conflituosos, mas é precisamente do conflito que pode emergir o

novo e a possibilidade de transformação dos sistemas de relações e dos significados impressos

no espaço da rua; do que pode ser feito, de quem pode fazer, e do que pertence a quem ou a

todos.

Foi possível perceber também que o estado de rua permite construir e é, por sua vez,

construído por uma circulação de afetos que abre caminho para a formação de redes de

solidariedade nas ruas. Isto se apresentou de modo muito evidente nas narrativas

cartográficas: nas relações que Anastácia estabelecia com outros sujeitos da rua em Salvador,

assim como nas territorialidades de Zé do Pife e do Pirata do Asfalto em Brasília. Esta rede de

afetos parece surgir como ferramenta necessária à realização das operações de desvio em

território sob a ação de dispositivos que vão de encontro às práticas. Percebemos assim, como

não apenas a invisibilidade, ou camuflagem, mas também a construção de personagens

singulares pode ser uma tática eficaz para a manutenção e fortalecimento de modos de vida

desviantes. Neste sentido, parafraseio Milton Santos para afirmar que as práticas de sujeitos

ambulantes e de outros praticantes ordinários do espaço das ruas

desarticulam o mundo objetivamente articulado não apenas no agravamento da produção da

feiura mas também da beleza. [...] Nosso esforço deve ser o de buscar entender os mecanismos

dessa nova solidariedade fundada nos tempos da metrópole, que desafia a perversidade

difundida pelos tempos rápidos da competitividade. (SANTOS, 2008, p. 82)

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As cidades percorridas mostraram como essas dinâmicas podem se transfigurar na medida em que mudam os contextos espaciais e as práticas culturais. E talvez seja importante também pensar como o mergulho numa experiência de trânsito entre duas cidades pode também ser considerado um procedimento metodológico relevante. É preciso dizer que se foi a experimentação do tempo lento nas vias de Brasília que levou à construção da noção de estado de rua, foi a experimentação do tempo lento em Salvador que levou à descoberta do espaço da sarjeta. No caso de Brasília, esta descoberta emergiu de uma ausência: a rua faz tanta falta que o desejo de experimentá-la me levou a encontrá-la no corpo de alguns sujeitos; No caso de Salvador, a descoberta brotou da reelaboração do olhar sobre uma presença marcante que me atravessava e que eu experimentava todos os dias. Mas, curiosamente, foi na distância deslocada da experiência, pensando nas ruas de uma cidade a partir da experiência da outra que estas ideias tomaram forma. Uma cidade, portanto, contaminou a outra a partir da experiência gravada no corpo de um cartógrafo desterritorializado.

A partir daí procurou-se investigar como cada uma dessas noções modificava suas formas de expressão na singularidade de cada cidade. Brasília aparece oportunamente por ter seus espaços urbanos extremamente funcionalizados, sendo os de circulação separados em tramas autônomas enquanto vias de veículos ou passeios de pedestres (COSTA, 1991). A rua constituída praticamente não é encontrada. Nesta cidade, é a justaposição de atividades, acontecimentos imprevistos ou usos marginais sobre as funções originais e planejadas dos espaços urbanos, que acabam produzindo um estado de rua. Geralmente carregado por sujeitos ambulantes, o estado de rua em Brasília caracteriza-se mais fortemente enquanto resistência.

Salvador, seja por sua historicidade profunda108, por suas características culturais geralmente associadas à (polêmica) ideia de “baianidade”109, ou por seu alto índice de pobreza do qual resulta a busca de alternativas pelo “se virar” na rua – tudo isso acontecendo em ruas apertadas, com calçadas estreitas e precárias – abriga uma pulsante vida de rua expressa em intensos estados de rua, que encontram no espaço da sarjeta a possibilidade de arranjos flexíveis em meio à conflituosa disputa entre usos do espaço.

Se a sarjeta existe em Brasília, é sob uma forma muito diferente daquela de salvador. Poderíamos inclusive pensar que talvez uma das coisas que o urbanismo funcionalista tentou 108 Especialmente na região do centro antigo em que as ruas não apenas têm a escala humana como são ruas centenárias, o que encerra uma sobreposição de estratos de temporalidades diacrônicas que vão da presença do arcaico – como o morar na rua ou ruínas seculares que abrigam usos igualmente arcaicos (habitação sem luz, água ou esgoto) – ao contemporâneo-tecnológico (lojas de eletroeletrônicos e shopping-centers). 109 Sobre esta polêmica Washington Drummond diz tratar-se de uma “fantasmagoria” construída sobre um imaginário da década de 1940-50 e convertida em turismo espetacular a partir da década de 1970, que ao mesmo tempo em que assola os imaginários atuais já não encontra equivalente no dia-a-dia. Ver depoimento de Washington Drummond em “A bahia tem um jeito?” in:Revista Muito #92 de 03/01/2010 pp. 26-27. Disponível em: http://issuu.com/revistamuito/docs/_92

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“matar” não foi a rua de forma geral, mas sobretudo aqueles elementos que produziam desacelerações, atritos e conflitos à experiência de circulação da rua, ou seja, todos os elementos que constroem o espaço da sarjeta. Então diremos que ela não existe no “plano”, mas vimos que o componente humano, ao “profanar” o plano, carregou a sarjeta para lá. Em Brasília, a rua não estando comprimida entre fachadas de edifícios transborda para seus espaços verdes, vazios, intersticiais, e a sarjeta se mistura então com o cerrado e com a infraestrutura rodoviária. A diferença é que, construindo-se na invisibilidade, ela não confronta o modo de vida capsular.

Se desta forma, ela acomoda então com mais tranquilidade modos de vida desviantes – que a consideram, neste sentido, vantajosa – também dissipa-se o conflito que surge na colisão entre diferenças no meio urbano. Sem as rugosidades da sarjeta, Brasília permite o pleno domínio da “aceleração” sobre seus espaços de racionalidade, e os estados de rua surgem neste contexto como pequenos meteoritos de plasticidade cruzando uma atmosfera de rigidez. Salvador, por sua vez, abriga rugosidades tão intensas nas ruas de seu centro antigo que os processos de modernização demandaram a construção de um novo vetor de centralidade econômica, deslocado geograficamente do centro antigo para dar passagem aos fluxos da aceleração, onde os estados de rua, ao contrário da vitalidade pulsante encontrada no centro, foram aniquilados por espaços rodoviários completamente amnésicos, genéricos e arquiteturas capsulares, tornando-se muito mais raros e precarizados do que aqueles encontrados em Brasília.

Certamente um aprofundamento da investigação em outras ruas e focalizando outras situações trariam novos elementos à discussão. A escolha das ruas centrais sob a perspectiva das operações espaciais de sujeitos ambulantes nestas duas cidades foi importante para levantar questões e limites às práticas urbanísticas a partir de situações que alteram os significados e imaginários sedimentados sobre esses espaços. Vimos como mesmo os espaços mais luminosos, rígidos e controlados podem ser infiltrados por práticas opacas, plásticas e desviantes; como a relação entre lentidão e aceleração ativa uma esfera política; como o solo como propriedade converte-se em suporte da ação no tempo oportuno; ou mesmo que a rua pode existir também enquanto devir, carregada em corpos tão marcados pela experiência e pelo desejo de rua que podem instaurá-la a partir de suas práticas espaciais.

Uma ampliação da investigação a outras ruas, localizadas também em periferias e bairros populares, provavelmente enriqueceria a caracterização da noção de estado de rua, assim como seria possível buscar um leque de variados estados de rua além do que foi o alvo desta pesquisa. Adentrar por exemplo no âmbito das mobilizações de rua seria uma maneira de pensar as passagens de uma política na rua a uma política da rua e os agenciamentos que se formam nestes contextos entre micro e macropolítica. Formas de ocupação coletiva das

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ruas como as “massas críticas” e mobilizações com temas e formatos renovados110 que ganham força ao fim desta primeira década do século, parecem atuar num limiar entre uma desgastada forma-protesto que se assume como carência direcionada ao Estado e a de uma potência micropolítica que apela menos à contestação do que ao contágio, a partir de interferências em diversas escalas dos fluxos da cidade, de seus espaços e subjetividades coletivas.

Por fim, a investigação realizada também visa contribuir ao debate sobre as atuais políticas de mobilidade. Neste sentido, a posição deste trabalho não é “deixar tudo como está”, mas defender que em qualquer intervenção pontual ou sistêmica nos espaços de circulação se leve em conta a existência da política da rua, o que implicaria numa aposta atenta à capacidade de auto-organização ativada na colisão entre trajetórias heterogêneas no mesmo espaço. Uma cidade em que um modelo de mobilidade baseado na hegemonia do automóvel foi substituído por um modelo em que os espaços públicos foram “fatiados” em espaços exclusivos e isolados por modo de circulação, associados a “choques de ordem”111 onde se tenta enquadrar ou mesmo excluir atividades flexíveis (populares, ambulantes, marginais), pode ser uma cidade de fluidez mas é igualmente uma cidade onde a esfera política foi sequestrada do cotidiano.

Já há pesquisas nesta direção que apontam para os processos de apaziguamento e redução dos conflitos por um “alisamento” generalizado dos espaços públicos – cada vez mais assépticos – de cidades europeias112. Estes processos começam a ser criticados pela percepção de que, na medida em que se busca isolar (para proteger?) os diferentes modos de circulação, eliminando todo tipo de obstáculo, produz-se também um empobrecimento das ambiências urbanas e das dinâmicas sociais que ali podem ocorrer. Baudelaire já apontava no século XIX

110 As massas críticas já acontecem em mais de 80 cidades brasileiras, onde receberam o nome de “bicicletada”. Caracterizam-se como reunião de bicicleteiros que se encontram para pedalar juntos num mesmo percurso em atmosfera festiva onde se constrói uma massa crítica que não para, mas desacelera o trânsito para defender que a bicicleta também é trânsito. Ver www.bicicletada.org. Podemos citar outras mobilizações como o movimento “Democracia real ya!” que tomou as praças das principais cidades espanholas em Maio de 2011, e as marchas “da Maconha”, da “Liberdade” e das “Vadias”, que levaram para as ruas temas até então marginais ao debate político onde se reuniram pessoas que não tinham ligação com partidos, sindicatos ou movimentos sociais formalizados. 111 Choque de Ordem é o nome da operação realizado no Rio de Janeiro pela Secretaria de Ordem Pública cujo objetivo seria ordenar a cidade. Entre as diversas frentes da operação estão a retirada forçada de moradores de rua de bairros nobres, controle, repressão e padronização de camelôs, comércio ambulante e barracas de praia e mais recentemente remodelação de espaços coletivos e limitação de práticas culturais de algumas favelas. 112 Entre elas a pesquisa “A assepsia dos ambientes pedestres no século XXI: entre passividade e plasticidade do corpo em movimento” sob a direção de Rachel Thomas. Em atividades realizadas com portadores de deficiência visual, a pesquisa percebeu que esses novos espaços, ao contrário do que se imagina, tornaram a circulação dessas pessoas mais difíceis na medida em que os obstáculos funcionam como marcações de trajetos e referências de localização enquanto o alisamento generalizado (num sentido diferente da noção de “espaço liso” desenvolvida por Deleuze e Guattari) produz um sentido inverso de perda de referências e de pontos de identificação que singularizam espaços e ajudam a distinguir lugares e ambiências variadas. Mais informações em http://www.caminharnacidade.ufba.br/.

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para a importância dos obstáculos nos espaços urbanos da metrópole para o surgimento de respostas criativas no cotidiano dos habitantes e como isso produziu novas práticas e formas de liberdade113 (BERMAN, 1987).

No atual processo de desenvolvimento brasileiro, suas metrópoles parecem empenhar-se numa panaceia cega para adequar-se a padrões internacionais em vista de sua penetração na rota dos megaeventos mundiais. A direção atual parece ser a de ignorar características de nossa cultura urbana – entre elas todas aquelas atividades flexíveis, menores e marginalizadas que se infiltram nos fluxos de circulação – e seguir importando modelos que já mostram seus danos à vida urbana em outros contextos. Mesmo assim, parece ser quase inevitável que sobre qualquer modificação dos espaços públicos das grandes cidades que ignore essas características, a sarjeta encontrará suas formas de infiltração, sabotando as pretensões de organização e desacelerando as velocidades que se pretende fazer fluir. Não seria possível pensar outra política urbana, que se construa no bojo dessa cultura da transgressão, da “ginga”114 e do “jeitinho”?

Seria preciso antes um deslocamento das atuais formas de colonização do pensamento para entender que estas singularidades culturais possuem qualidades para a vida coletiva. Ativar nossa reconhecida prática antropofágica para incorporar contribuições externas, sem deixar de pensá-las criticamente e aclimatá-las a cada realidade local. Neste sentido, no lugar da especialização e segregação de espaços, pensaríamos em flexibilidade e coexistência; ao invés de definir todas as regras, deixar que parte seja construída pelos próprios indivíduos no encontro de suas ações em movimento, como de fato já acontece. Ao invés esquadrinhar em espaços de propriedade toda a cidade, inclusive seus espaços de circulação, permitir que alguns espaços, não sendo propriedade de ninguém, sejam apenas suporte para apropriações variadas. Siegfried Kracauer já dizia que “o valor das cidades se mede pela quantidade de lugares que elas deixam para a improvisação”115 (apud OLIVIERI, p. 8).

Certamente este é um desafio que se coloca, mas buscar formas de fazê-lo surge como um horizonte a ser explorado. Há 20 anos Milton Santos (2008) falava de não se perder de vista a “flexibilidade tropical” que torna nossas cidades menos cruéis e mais possíveis, especialmente aos tempos da lentidão. É exatamente disso que se trata. No lugar de criar barreiras e segregações, deixar pontes para a coexistência.

113 Ver capítulo 5 “A rua como potência”. 114 Cf. JACQUES, Paola Berenstein. Estética da Ginga: a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001. 115 Cf. KRACAUER, Siegfried. Rues de Berlin et d’ailleurs. Paris: Gallimard, 1995.

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Lista de Figuras p.11: Diagrama “Movimento como ferramenta”, esquematiza a relação entre a experiência de campo (empírica) e a elaboração das narrativas cartográficas. Fonte: autor, 2011.

p. 26a: Intervenção sobre foto de satélite que indica a localização geográfica da deriva realizada, tema da narrativa cartográfica #1. Fonte: Google Earth, 2011. Abaixo, stills de vídeo realizado ao longo da deriva. Fonte: autor, 2011.

p. 26: Fotos de usos da sarjeta ao longo da Rua Direita da Piedade. À esquerda, carrinhos movidos à tração humana estacionados na sarjeta. À direita, catador de resíduos sólidos expandindo o espaço da sarjeta. Fonte: autor, 2011.

p. 27a: À direita, sobre fundo branco, still e fotos de vendedores ambulantes e camelódromo na Av. Joana Angélica. Sobre fundo preto, stills de vídeo realizado ao longo da deriva, imediações da estação da Lapa. Fonte: autor, 2011.

p. 27: Fotos de acesso e interior da estação da Lapa. Fonte: autor, 2011.

p. 28a: Stills de vídeo realizado ao longo da deriva; acima e no meio, ruas de pedestres ocupadas por camelôs entre Av. Joana Angélica e Largo de São Pedro. Abaixo, Largo de São Pedro. Fonte: autor, 2011.

p. 56a: À esquerda, intervenção sobre foto de satélite indicando localização dos bairros e ruas mencionados no percurso do catador, tema da narrativa cartográfica #2.1. Fonte: Google Earth, 2011. À direita, stills de vídeo que mostram a relação do sujeito ambulante com a sarjeta e a linha azul presente na Av. Sete de Setembro. Fonte: autor, 2011.

p. 57a: Stills de vídeo de “perseguição” ao vendedor ambulante, tema da narrativa cartográfica #2.2. Fonte: autor, 2011.

p. 58a: Idem.

p. 60a: Panorama da heterogeneidade de sujeitos ambulantes, seus veículos e artefatos transportáveis e flexíveis e usos da sarjeta nas ruas centrais de Salvador. Fonte: autor, 2009-2011.

p. 76a: A sarjeta em Brasília. Fotos da ocupação de Seu Edvaldo, um lavador de carros, em área verde próxima à entrada de uma superquadra em Brasília. Fonte: autor, 2010.

p. 77a: Percurso realizado no acoplamento do cartógrafo ao Zé do Pife em Brasília. Montagem sobre desenho de Lúcio Costa e foto de satélite. Fonte: Google e Google Earth, 2011.

p. 77: Stills do vídeo realizado ao longo do percurso. Zé do Pife interagindo com funcionárias da Padaria. Fonte: autor, 2010.

p. 78a: Stills do vídeo realizado ao longo do percurso com Zé do Pife. À direita e acima, travessia das quadras residenciais; logo abaixo, destacado, parada na banca de revistas; à esquerda e abaixo, sequência de percurso pelos comércios locais. Ao centro,. Fonte: autor, 2010.

p. 78: Acima, still do vídeo onde Zé do Pife comenta sobre o impacto de seu Pife sobre os moradores dos blocos. Ao centro, recorte de foto mostrando a corporeidade do tocador. Abaixo, Still do vídeo onde seu Zé vende um pife. Fonte: autor, 2010.

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p. 79: Stills do vídeo realizado ao longo do percurso. Acima, interação de Zé do Pife com quadra chique. Ao centro e abaixo, Zé do pife caminha e toca ao longo do comércio da Av. W3 Norte. Fonte: autor, 2010.

p. 81: Still do vídeo, detalhe do desenho do tocador de pífano na camiseta que seu Zé ganhou de presente de uma moradora desconhecida. Fonte: autor, 2010.

p. 82a: Diagrama de territorialidade de Zé do Pife: escalas de lentidão e afetos instrumentalizados pela prática ambulante. Fonte: desenhos do autor e recorte de mapa do sertão ilustrado por Poti para edição original de Grande Sertão Veredas de João Guimarães Rosa.

p. 83: Stills do vídeo onde Zé do pife fala das caminhadas em sua cidade natal enquanto caminha por Brasília. Fonte: autor, 2010.

p. 112: Fotos da bicicleta do Pirata do Asfalto. Fonte: autor, 2010.

p. 113a: Acima, intervenção sobre foto onde são apontadas algumas das bricolagens realizadas pelo Pirata na bicicleta e suas funções. Fonte: autor, 2010; ao centro, stills de vídeo mostram a montagem da barraca-dormitório. Fonte: Alan Schvarsberg, 2011. Abaixo, desenho esquemático da “área de estar” do Pirata. Fonte: autor, 2010.

p. 113: Desenho esquemático do “dormitório” do Pirata. Fonte: autor, 2010.

p. 114: Foto do Pirata do Asfalto tomando banho em chafariz em frente ao Palácio do Buriti, sede do Governo do Distrito Federal. Fonte: Pirata do Asfalto, data desconhecida.

p. 115a: Stills de vídeo acompanhando percurso de trabalho de Zé do Pife com ênfase no impacto físico e visual do corpo-bicicleta no trânsito da cidade. Fonte: Alan Schvarsberg, 2011.

p. 115: Idem.

p. 116a: Mapa síntese do ciclo de trabalho de Zé do pife nas vias planejadas de Brasília. Montagem sobre desenho de Lúcio Costa e foto de satélite. Fonte: Google e Google Earth, 2011.

p. 117a: No alto, à direita, foto de placa “proibido circular com carroças” em Brasília. Fonte: Google, 2010. Abaixo, reportagem do DFTV sobre a proibição da circulação das carroças de catadores nas ruas do Distrito Federal. É possível perceber com clareza o autoritarismo do governo local e os dispositivos de repressão utilizados como forma de criminalização e exclusão desses sujeitos marginalizados do acesso à renda e moradia. Fonte: www.globo.com/dftv.

p. 118a: Stills do filme “Andarilho” de Cao Guimarães, 2006.

p. 120a: Acima, diagrama de territorialidade: movimento como desvio e micropolítica a partir da prática ambulante. Fonte: autor, 2010. Abaixo, foto do Pirata na contramão da sociedade. Fonte: Pirata do Asfalto, data desconhecida.

p. 127: Diagrama das três experiências de rua, destacando o caráter liminar da experiência da sarjeta como espaço que explode os limites entre os usos da calçada e os usos da pista. Fonte: autor, 2011.