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RUI FAUSTO E RITA MARNOTO(COORDENADORES)

TEMPO E CIÊNCIA

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© Rui Fausto e Rita Marnoto/Gradiva — Publicações, L.da

Coordenação e tradução: Rui Fausto e Rita MarnotoRevisão do texto: Ana Isabel SilveiraCapa: fotografia: António OlaioCapa: design gráfico: Armando LopesFotocomposição: GradivaImpressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, L.da

Reservados os direitos para Portugal por:Gradiva — Publicações, L.da

Rua Almeida e Sousa, 21, r/c, esq. — 1399-041 LisboaTelefs. 21 397 40 67/8 — 21 397 13 57 — 21 395 34 70Fax 21 395 34 71 — Email: [email protected]: http://www.gradiva.pt1.a edição: Março de 2006Depósito legal n.o 239 649/2006

Visite-nos na Internethttp://www.gradiva.pt

Editor: Guilherme Valente

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Índice

Prefácio ................................................................................ 7

O princípio e o fim do tempo (Martin Rees) ..................... 15

Astronomia: distância, tempo e ambos (João Fernandes) .... 39A química-física do tempo (Peter Atkins) ........................... 47O tempo da química-física (Luís G. Arnaut) ..................... 67Comentários à conferência «A química-física do tempo»

(José Gaspar Martinho) ................................................... 75

O tempo em biologia (Lewis Wolpert) ............................... 81

O tempo e a filosofia (Desidério Murcho) ......................... 97

Que espécie de ser é que os antropólogos assumem estudar.O exemplo da compreensão do tempo (Maurice Bloch) 111

Uma literatura do tempo: a ficção científica (José ManuelMota) ................................................................................ 145

Comentário ao texto de Maurice Bloch (Luís Reis Torgal) 157Outras versões da realidade? Maurice Bloch e o relativismo

cultural (Robert Rowland) ............................................... 163

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Duplicação e modificação de seres humanos. Factos e fan-tasmas (Bertrand Jordan) ............................................... 177

Modificação genética da espécie humana (Mário Sousa) ..... 193A problemática da clonagem humana (Nuno Grande) ...... 211

Tempo do homem, tempo de Deus (Carlo Carena) ............ 213

O tempo nos Césares de Suetónio (José Luís Lopes Brandão) 233O tempo nas ciências exactas (Lélio Quaresma Lobo) ...... 251

Os autores ............................................................................ 255

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Prefácio

Cíclico ou linear, progressivo ou regressivo, o tempopode ser medido, pensado ou vivido. As suas implicaçõesincidem sobre toda a experiência humana, na sua amplitu-de e na sua complexidade. Como tal, o tempo erige-se emmotivo que percorre, transversalmente, todas as áreas dosaber. Se o conceito tem vindo a ser explorado no âmbitodos mais variados campos do conhecimento, são tambémmuito diversas as doutrinas à luz das quais é actualmenteconsiderado.

A uma reflexão sobre esse tema, numa perspectivainterdisciplinar, foi consagrado o ciclo de colóquios «Tempoe Ciência», integrado no âmbito da programação deCoimbra Capital da Cultura 2003, que contou com a co-laboração do Museu Nacional da Ciência e da Técnica,bem como do Departamento de Química da Faculdade deCiências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. A suaarquitectura organizou-se a partir da integração de umasérie de conferências, proferidas por personalidades derenome internacional, representativas de diferentes domí-

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nios científicos, com comentários elaborados por investi-gadores que trabalham, também eles, nas mais variadasáreas, deixando ainda um espaço aberto para debate, deforma a cruzar campos de saber diversificados e a dinami-zar uma troca de ideias.

O conjunto de textos que se editam traduz os resultadosdaí decorrentes. Neste livro, um conjunto notável de cien-tistas e pensadores fala-nos do tempo, nas suas interrelaçõescom o mundo físico, biológico, social e filosófico.

Num quotidiano vivido ao ritmo dos minutos, dos se-gundos e até das fracções de segundo marcadas pelainstrumentação digital, falar dos ponteiros do relógio pos-sui, cada vez mais, o sabor de uma imagem para uso retó-rico. Graças aos avanços da ciência, sabemos hoje que avida na Terra tem cerca de 3500 milhões de anos e a Terrae o sistema solar mais de 4500 milhões de anos. MartinRees, director do Instituto de Astronomia de Cambridge,presidente da Royal Astronomic Society e do ConselhoConsultivo da Agência Espacial Europeia, leva-nos atravésde uma fantástica viagem pelo cosmos, do alvorecer da suaexistência até aos seus possíveis ocasos. A sua perspectivado tempo cosmológico — a quarta dimensão física —,necessariamente moldada pela sua formação académica,não o impede de, brilhantemente, reflectir também acercadas incidências mais sociológicas do fluir do tempo e dassuas implicações sobre o ambiente e o futuro da humani-dade. Como observa no final do seu texto, «O que vier aacontecer aqui na Terra neste século poderá muito prova-velmente fazer a diferença entre uma quase eternidade cheiade formas de vida cada vez mais complexas e subtis e outracheia de nada, excepto matéria básica».

Na verdade, no plano físico, a invariância temporal sópode ser concebida como abstracção, já que todos os serese todas as coisas avançam, sob o nosso olhar, numa direc-

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PREFÁCIO 9

ção irreversível, suscitando inquietantes questões acercada sua inteligibilidade. Peter Atkins, professor de Químicana Universidade de Oxford e talvez o químico mais lido aonível mundial, graças ao extraordinário impacto dos seuslivros sobre química fundamental e química-física, centrao seu texto na relação estreita, que nos revela, do tempocom a temperatura: entre a seta do tempo e a seta entró-pica, definida na segunda lei da termodinâmica. No seuestilo inconfundível, fala-nos de assuntos elaborados eapresenta-nos algumas das mais famosas bizarrias da mecâ-nica quântica, sem praticamente apresentar uma equação.Analisa ainda os fenómenos da percepção do tempo e daformação e esvanecimento da memória numa perspectivafísico-química, tomando sempre como pano de fundo oinexorável devir do tempo e a sua intrigante seta, que in-siste em apontar exclusivamente do passado para o futuro.

Na sua implacabilidade direccional, o tempo não podedeixar de condicionar também a vida e o seu aparecimen-to, bem como as circunstâncias em que se processa o seudesenvolvimento. Lewis Wolpert, professor de BiologiaAplicada à Medicina no University College de Londres,fala-nos da importância do tempo para a biologia, para aontogenia (o desenvolvimento do indivíduo) e para afilogenia (o desenvolvimento da espécie), também enquan-to condicionador dos comportamentos dos seres vivos, quese manifesta através dos seus ciclos circadianos. De formaapaixonante, descreve-nos o modo como um ser vivo adultose forma a partir de uma única célula, revelando-nos aimportância do tempo para a diferenciação celular, talcomo mais vulgarmente é reconhecido com respeito à di-ferenciação das espécies.

Investigações no domínio do tempo biológico têmvindo a ser acompanhadas, mais recentemente, por pesqui-sas realizadas na área da psicologia cognitiva em torno da

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compreensão do tempo e da relação entre causa e efeitonos recém-nascidos. Sabe-se hoje que as crianças, desdemuito pequenas, possuem um conhecimento provavelmen-te inato de física e de aritmética e, correlativamente, capa-cidades de compreensão temporal. Com base numametodologia que intersecta psicologia cognitiva e antro-pologia, Maurice Bloch elabora uma reflexão de fundoacerca do lugar ocupado pelo tempo nos estudos antro-pológicos. Dessa feita, retoma as pesquisas anteriormenterealizadas acerca do povo nuer para redimensionar os seusresultados à luz dos mais recentes avanços verificados nodomínio da psicologia cognitiva. Daí resultam fundamen-tais pistas de pesquisa para a compreensão da capacidade,detida pelo ser humano, de representar o mundo atravésde uma multiplicidade de níveis que entre si mantêm rela-ções dialécticas.

A crescente importância assumida pelo tempo, seja elepsicológico, macroscópico, dendrocronológico ou históri-co, tem vindo a criar a possibilidade de conhecer estádioscada vez mais remotos da vida e do universo. Esse movi-mento de recuo mantém relações de simetria com um ou-tro, de sinal oposto, ou seja, projectado sobre o futuro.Bertand Jordan, biólogo molecular e geneticista, aborda deforma ampla e envolvente a temática da clonagem, emparticular da clonagem humana, desvendando mitos e fan-tasmas que se foram associando a esta técnica e à engenha-ria genética em geral, mas também factos e implicações denatureza sociológica. Conforme nos diz, o tempo, nestesdomínios do conhecimento, não tem parado de acelerar, eo novo milénio é, certamente, o milénio em que o homemvai desmontar, peça a peça, o seu próprio algoritmo deconstrução. O genoma humano é já hoje integralmenteconhecido, e a sua compreensão funcional, intimamenterelacionada com a nova fronteira da biologia, a proteómica,

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PREFÁCIO 11

avança a ritmo acelerado. Do «embrião à la carte» àdispensabilidade de um dos progenitores, é um admirávelmundo novo que se nos apresenta, quiçá ao alcance donosso próprio tempo...

No entanto, depois de um tão amplo conjunto de inter-venções disciplinares e perspécticas, a pergunta permane-ce: o que é o tempo? Trata-se daquele mesmo interrogativoque já Santo Agostinho se colocava, nas Confissões, o livroque irá encontrar em Husserl um dos seus mais atentosleitores, e cujas páginas ressoarão, juntamente com os es-critos de S. Paulo, naquele Heidegger que coloca o Daseinnuma transcendência originária que é a temporalidade.Partindo das célebres páginas de Santo Agostinho, CarloCarena remonta ao modo como o mito grego representavaCronos, para depois acompanhar as ideias expressas porpoetas, homens da ciência e historiadores do mundo anti-go, de forma a mostrar como a noção de eternidade vaiemergindo, residindo a única possibilidade do processohistórico em Deus. Mas então o tempo faz-se sentimentoe estado de alma, invadindo os territórios do pensamentoapocalíptico e utópico.

A intervenção de Carlo Carena coroa, pois, uma sequên-cia constituída por cinco textos, cada um dos quais é se-guido por comentários, necessariamente mais breves, deautoria de cientistas, todos eles personalidades nacionaisde créditos firmados, que muito enriquecem e ampliam asmensagens contidas nos primeiros: João Fernandes, profes-sor de Astronomia na Universidade de Coimbra, comentao texto de Martin Rees; Luís Arnaut e José Gaspar Marti-nho, professores de Química nas Universidades de Coimbrae Técnica de Lisboa, respectivamente, comentam o textode Peter Atkins; Desidério Murcho, filósofo que actual-mente trabalha no King’s College de Londres, reflecte sobrea importância do tempo na filosofia confrontando-a com

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as ciências experimentais; José Manuel Mota, estudioso daficção científica, e Luís Reis Torgal, historiador, ambosprofessores da Faculdade de Letras da Universidade deCoimbra, e Robert Rowland, professor do ISCTE, estabe-lecem pontes entre as suas áreas de investigação e a antro-pologia; Mário Sousa, médico especialista em Medicina daReprodução Laboratorial e director do Laboratório deBiologia Celular do Instituto Abel Salazar, e Nuno Grande,médico investigador no mesmo instituto e professor jubila-do da Universidade do Porto, comentam o texto de BertranJordan; finalmente, José Luís Brandão, latinista especializa-do em historiografia, professor da Faculdade de Letras daUniversidade de Coimbra, e Lélio Quaresma Lobo, profes-sor de Engenharia Química da Faculdade de Ciências eTecnologia desta mesma universidade, cruzam os seus sabe-res com a leitura do tempo elaborada por Carlo Carena.

Ao passarmos para letra de forma as reflexões decor-rentes dos colóquios «Tempo e Ciência», pretendemos antesde mais dar continuidade a um projecto de aproximaçãoentre as várias áreas do saber, esbatendo fronteiras, deco-dificando linguagens e perscrutando novas vias de inter-secção de conhecimentos. Em segundo lugar, deixar umamarca de natureza mais perene a assinalar o sucesso doscolóquios, que congregaram um número de participantessubstancial e suscitaram grande interesse pela sua temáticajunto de um público com formação muito diversificada,de forma a permitir a muitas outras pessoas, que não tive-ram a fortuna de neles estar presentes, saborear um poucodo seu espírito. Finalmente, deixar abertas algumas pis-tas para que os não especialistas apaixonados pelas ques-tões da ciência e das suas implicações sociais, ambientaise filosóficas, pudessem alcançar um entendimento maisvívido daquilo a que alguém um dia decidiu chamarTEMPO!...

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PREFÁCIO 13

Nesta confluência de programas e objectivos, são devi-dos agradecimentos a todos aqueles que nesta iniciativacolaboraram, a começar pelos participantes nos colóquios,que com tão grande entusiasmo acederam, todos eles, edesde o primeiro momento, a estar presentes. À CoimbraCapital Nacional da Cultura 2003, nas pessoas do seupresidente, Abílio Hernandez Cardoso, e do seu programa-dor das ciências, Paulo Trincão, devemos os nossos agra-decimentos pelo apoio institucional e financeiro que per-mitiram levar a cabo os colóquios que estão na base destelivro, mas também pelo estímulo que sempre souberam dara esta iniciativa. Ao nosso colega e amigo Paulo GamaMota, então director do Museu Nacional da Ciência e daTécnica, agradecemos o esforço e a dedicação, e o compa-nheirismo que nunca olvidou durante a organização doscolóquios. Finalmente uma referência que não poderíamosde deixar de fazer ao excelente trabalho de secretariado daElsa Diogo e à generosidade das nossas colegas SusanaViegas e Sophie Arnaut, que foram também eles essenciaispara que os colóquios «Tempo e Ciência» se tornassem noenorme sucesso que foram, e à Gradiva e ao seu director,Guilherme Valente, pelo apoio que nos concederam desdea primeira hora e que se volta agora a consubstanciar naedição deste livro.

RUI FAUSTO

RITA MARNOTO

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O princípio e o fim do tempo

MARTIN REES

Instituto de Astronomia, Universidade de [email protected]

Introdução

Na nossa vida quotidiana, o tempo é um bem. Ganha-mo-lo ou perdemo-lo; poupamo-lo ou gastamo-lo; dema-siadas vezes, desperdiçamo-lo. Mas, para um físico, otempo é um dos pilares da realidade: a quarta dimensão.Estamos habituados às três dimensões do espaço. São pre-cisos três números para definir uma localização à superfí-cie da Terra: latitude, longitude e altitude. No entanto,para especificar um acontecimento, precisamos de umquarto número — o número que nos diz quando o eventoteve lugar. Existe, contudo, uma diferença crucial entre otempo e as três dimensões espaciais. Podemos mover-nospara a esquerda ou para a direita, para trás ou para afrente, para cima ou para baixo; mas somos sempre trans-portados para a frente no tempo, em direcção ao futuro.As máquinas do tempo, que nos permitem retornar aopassado, são objecto de pura ficção científica.

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16 TEMPO E CIÊNCIA

Os nossos horizontes temporais são, de facto, muito limi-tados. Em geral, as decisões de natureza económica perdemqualquer relevância após cerca de 20 anos, contados a partirda altura em que são tomadas. As operações comerciaisdeixam de valer a pena se não originarem lucros bastantemais cedo que isso, especialmente quando o desgaste é rápi-do. As decisões governamentais quase sempre têm comohorizonte temporal as eleições seguintes. Nesta perspectiva,os debates sobre as alterações climáticas e sobre a destruiçãode lixos radioactivos têm tido pelo menos um mérito: têmdespertado interesse e preocupação sobre como as nossasacções actuais se irão repercutir daqui a alguns séculos, oumesmo milénios. Estas perspectivas temporais estendem-semuito para além dos horizontes da maioria dos planos ela-borados pelo Homem — mas ainda assim são infinitesimaisquando comparadas com a vida futura da própria Terra.

Os meus interesses profissionais centram-se na ciênciada globalidade do cosmos. Estudo o nosso ambiente naperspectiva mais alargada que se pode conceber, o quepode parecer um local de observação incongruente paraanalisar questões práticas terrenas. Contudo, a preocupa-ção com o quase infinito espaço não torna os cosmólogosparticularmente «filosóficos» quando pensam nas questõesdo nosso dia-a-dia, nem os deixam menos interessadospelos problemas com que nos confrontamos aqui na Terra,hoje e amanhã. Uma anedota muito divulgada entre osastrónomos conta que um ouvinte, preocupado, perguntaa um astrónomo no final de uma palestra: «Quanto tempodisse que decorrerá até que o fogo do Sol transforme aTerra num torresmo?» Ao receber a resposta, «seis biliõesde anos», exclama com alívio: «Obrigado, meu Deus!...Pensei que tinha dito seis milhões!»

O que irá acontecer no futuro distante de milhões oubiliões de anos pode parecer-nos absolutamente irrelevante

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O PRINCÍPIO E O FIM DO TEMPO 17

em termos práticos para as nossas vidas. Mas não pensoque o contexto cósmico seja completamente irrelevantepara a forma como sentimos a nossa Terra e para o destinodos seres humanos. De facto, acentua as nossas preocupa-ções relativas às consequências das coisas que acontecemaqui e agora, porque oferece uma visão de quão prodi-gioso o futuro da vida poderá ser.

Escalas de tempo cósmico: o passado

Decorreram cerca de 4,5 mil milhões de anos desde queo Sol se formou, por condensação de uma nuvem cósmica.O proto-Sol estava rodeado por um disco gasoso rede-moinhante. As poeiras existentes nesse disco aglomeraram--se em grupos de rochas que orbitavam em torno do Sol,os quais se foram juntando para formar os planetas. Umdestes tornou-se a nossa Terra — the third rock from theSun1. A jovem Terra foi fustigada por colisões com outroscorpos celestes, alguns tão grandes como os próprios pla-netas. Um desses impactos fez expelir da Terra uma quan-tidade de rocha fundida suficiente para formar a Lua. Ascondições foram-se tornando mais suaves e a Terra arrefe-ceu, e teve início a montagem do cenário necessário ao

1 O autor faz aqui uma referência à comédia televisiva de ficçãocientífica com o título «Third rock from the Sun», de Bonnie e TerryTurner, na qual um grupo de extraterrestres chega à Terra para apren-der os costumes dos homens. Para o fazer, os extraterrestres disfarçam--se de seres humanos, o que lhes concede emoções e necessidades físicasiguais às dos humanos. No entanto, não sabem o que tais coisas signi-ficam e não conhecem as suas limitações e inibições, normais nos sereshumanos. As reacções desinibidas dos extraterrestres perante os maisdiversos acontecimentos geram situações divertidas que são exploradasna série, de grande sucesso internacional. (N. do T.)

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aparecimento da vida primitiva — através de processosque ainda hoje nos intrigam. A biosfera actual da Terra éo resultado de cerca de 4 mil milhões de anos de labor daselecção natural darwiniana.

Ao examinarem as imensas distâncias cosmológicas, osastrónomos podem agora olhar para o passado, para umtempo anterior àquele em que a Terra e o Sol foram for-mados. As fotografias obtidas pelo Telescópio EspacialHubble mostram que cada arco-minuto quadrado no céucontém literalmente centenas de manchas ténues de luz —cada uma delas biliões de vezes mais fracas que qualquerestrela que pode ser vista a olho nu. Mas cada uma delasé uma galáxia inteira, a milhares de anos-luz de distância,que parece tão pequena e ténue devido à enorme distânciaque nos separa dela.

Um intervalo de tempo enorme separa-nos dessas galá-xias remotas. De facto, vemo-las como elas eram na alturaem que se formaram. Nessa altura ainda não se tinham trans-formado nas espirais rodopiantes, como a galáxia Andrómeda(figura 1), que podemos observar nas noites límpidas. Algu-mas dessas galáxias podem ser observadas sob a forma demanchas de gás brilhantes difusas, pois na altura em queemitiram a luz que percepcionamos hoje ainda não tinhamtido tempo de se condensarem para formar estrelas.

Ao olhar para Andrómeda perguntamos por vezes a nósmesmos se poderão existir lá outros seres vivos que nosdevolvam o olhar. Pode ser que sim. No entanto, nas ga-láxias mais remotas que podemos observar, de certeza quenão existem quaisquer seres vivos. As suas estrelas nãotinham ainda tido tempo para produzir os elementos quí-micos. Não possuíam ainda planetas em órbita, nem, cer-tamente, qualquer forma de vida.

Os astrónomos podem de facto observar o passadolongínquo. No caso das épocas mais remotas, quando

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O PRINCÍPIO E O FIM DO TEMPO 19

ainda nenhuma galáxia se tinha formado, as provas daocorrência de um big bang têm vindo a tornar-se cada vezmais fortes. O espaço intergaláctico não é completamentefrio. Está preenchido com radiações de pequena intensida-de cujas energias se situam na região das microndas doespectro da radiação electromagnética. O espectro (distri-buição de energias) correspondente a essas radiações quepreenchem o espaço intergaláctico foi medido, com umaprecisão de uma parte em 10 mil, pelo satélite COBE,Cosmic Background Explorer, lançado pela NASA no dia18 de Novembro de 1989. O espectro medido correspondeprecisamente ao que esperaríamos encontrar actualmente, seconsiderássemos este fundo de radiações como o resíduo da

Figura 1 — A galáxia Andrómeda, a mais próximade todas as grandes galáxias, situada a cerca de2 900 000 anos-luz de distância. A galáxia Andró-meda foi descrita na antiguidade pelo astrónomopersa Abd-al-Rahman Al-Sufi, em 964 d. C., no

seu Livro das Estrelas Fixas

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radiação emitida pelo universo pré-galáctico, quente, densoe opaco. A expansão do Universo arrefeceu e enfraqueceua radiação, e fez aumentar o seu comprimento de onda (asmicrondas têm energias menores — logo comprimentos deonda maiores — que a radiação ultravioleta e visível, porexemplo). Mas, apesar de alterada pela expansão, a ener-gia emitida pelo universo primitivo nos primeiros segundosde existência ainda está à nossa volta — preenche o uni-verso e não pode ir para qualquer outro lugar!

E existe outro «fóssil» dos tempos primitivos que pode-mos observar actualmente: quando o universo se encon-trava comprimido e mais quente que uma estrela, ocorre-ram reacções nucleares. A temperatura do universo atingiuentão valores extremamente altos, mantendo-se assim ape-nas durante os primeiros três minutos após o big bang,mas ainda assim tempo suficiente para converter 23% damatéria em hélio. Esta é precisamente a fracção de hélioque encontramos actualmente no Universo!

Penso que a extrapolação para períodos mais remotos,até à altura em que o universo se tinha expandido duranteapenas alguns segundos (enquanto se dava a formação dohélio), merece ser tomada tão a sério como, por exemplo,a história dos primeiros tempos da nossa Terra contada porgeólogos e paleontólogos. As suas deduções são tão indi-rectas como as que os cosmólogos actualmente podem fazersobre os instantes iniciais do universo (e, na verdade, menosquantitativas). Além disso, poderiam ter sido feitas váriasdescobertas que invalidariam a hipótese do big bang, masque, de facto, nunca puderam ser concretizadas. A teoriado big bang tem vivido perigosamente durante décadas, esobrevivido.

Podemos perguntar a nós mesmos se não será uma pre-sunção absurda reclamar que podemos conhecer qualquercoisa, com qualquer nível de confiança, no domínio da

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O PRINCÍPIO E O FIM DO TEMPO 21

cosmologia. A resposta é: não necessariamente! É a com-plexidade, e não o tamanho, que torna as coisas difíceis decompreender — por exemplo, uma estrela, à luz dacosmologia, é mais simples que uma borboleta à luz dabiologia. No calor feroz de uma estrela, e mais ainda nobig bang, tudo é desmontado nos seus constituintes maissimples. O universo primitivo é de facto muito menosdesafiador e está muito mais ao alcance do nosso conhe-cimento que o mais pequeno dos seres vivos. São os bió-logos — tentando compreender as estruturas organizadasdos seres vivos e os seus padrões maravilhosos — quemenfrenta o maior desafio!

Mas vamos antes olhar brevemente para o futuro, emvez de olharmos para o passado, como adivinhos em vezde caçadores de fósseis.

O nosso futuro cósmico

As enormes escalas temporais do passado evolucionáriofazem hoje parte da nossa cultura comum. No entanto, amaioria das pessoas não tem a menor ideia ou consciênciado nosso futuro longínquo: os seres humanos são, muitasvezes tacitamente, considerados o culminar da evolução.Contudo, o Sol não atingiu ainda a metade do seu tempode existência e o tempo que ainda lhe resta, contado apartir do momento actual, é maior do que o que foi neces-sário para desenvolver a Terra e a vida como actualmenteas conhecemos. Daqui a cerca de 6 mil milhões de anos oSol morrerá, e a Terra desaparecerá com ele. Mais ou menospela mesma altura, a galáxia Andrómeda, que se encontrajá a deslocar-se na nossa direcção, despenhar-se-á de en-contro à nossa própria galáxia, a Via Láctea. Mas será queo universo, como um todo, se continuará a expandir para

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sempre? Ou irá o firmamento inteiro eventualmente colap-sar naquilo que poderíamos designar por big crunch?

A resposta depende do quanto tem a expansão do uni-verso vindo a ser desacelerada pela atracção gravítica quese faz sentir entre todos os corpos. É simples calcular quea expansão pode, eventualmente, ser revertida, se actual-mente existirem, em média, mais de 5 átomos por metrocúbico em todo o universo. Este número não parece muitogrande. No entanto, se todas as galáxias fossem desman-teladas e os átomos resultantes fossem dispersos unifor-memente pelo espaço, atingiríamos um vazio ainda maior— 1 átomo por cada 5 metros cúbicos —, o mesmo queum floco de neve no volume inteiro ocupado pela nossaTerra. Este valor é 25 vezes menor que a «densidade crí-tica», e, numa primeira análise, parece implicar a expan-são perpétua do universo, por uma margem muito larga.Mas as coisas não são assim tão simples. Os astrónomosdescobriram que as galáxias, e mesmo os agrupamentosinteiros de galáxias, ter-se-iam já desmantelado se nãofossem mantidos coesos por uma força gravitacional pro-duzida por 5 vezes mais matéria do que aquela que pode-mos ver — este é o famoso mistério da «matéria negra».O que pode ser então esta «matéria negra»?

É embaraçoso que uma porção tão grande do universonão possa ser explicada. Muitos cosmólogos acreditam quea matéria negra é composta principalmente por partículasexóticas criadas durante o big bang. Se estiverem certos,teremos de elevar a nossa modéstia cósmica a um níveladicional. Estamos habituados à ideia pós-copernicana deque não ocupamos um lugar especial no cosmos. Mas,neste caso, até o «chauvinismo das partículas» temos deabandonar: não somos feitos dos materiais mais abundan-tes no universo. Nós, e as estrelas e as galáxias que vemos,somos apenas vestígios de «sedimento» num cosmos cuja

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estrutura de larga escala é dominada por partículas subs-tancialmente diferentes (e ainda desconhecidas) daquelasque nos são familiares. Testar esta hipótese é talvez o pro-blema número um em toda a ciência cosmológica.

Os cosmólogos designam a razão entre a densidade dematéria actual e a densidade crítica pela letra grega ómega,Ω. Existe de certeza matéria negra suficiente em torno dasgaláxias para fazer Ω = 0,2 (lembremos que a quantidadede matéria que vemos conduz apenas a Ω = 0,04). Até hábem pouco tempo, não podíamos eliminar a possibilidadede a quantidade de matéria negra existente no espaço entreagrupamentos de galáxias poder ser suficiente para tor-nar Ω bastante maior, de tal forma que se tornasse maiorque 1. Mas actualmente há indicações de que, na sua tota-lidade, átomos e matéria negra não contribuem mais doque para Ω = 0,3. As probabilidades favorecem, pois, aexpansão perpétua do universo. As galáxias esbater-se-ãoà medida que as suas estrelas forem morrendo e o seumaterial ficar aprisionado sob a forma de estrelas anãsbrancas, estrelas de neutrões ou buracos negros. Continua-rão a afastar-se umas das outras continuamente, a velocida-des que poderão diminuir, mas nunca anular-se. Além disso,há hoje em dia fortes indicações no sentido da existênciade uma força repulsiva adicional, que se sobrepõe à gravi-dade, à escala cósmica — aquilo a que Einstein chamouconstante cosmológica, ?. A expansão do universo pode,então, de facto acelerar. Se isso acontecer, as previsões sãoas de um universo ainda mais vazio. Todas as galáxiaspara lá do nosso grupo local acelerarão até um valor dedesvio para o vermelho infinito, desaparecendo completa-mente do horizonte visual.

Uma analogia pode servir para compreendermos pro-priamente estes territórios temporais, tanto futuros comopassados. Suponhamos que o ciclo inteiro de vida do nosso

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sistema solar era representado por um caminho atravésdos Estados Unidos em direcção ao Oeste, com início emNova Iorque, que se fazia corresponder ao nascimento doSol a partir de uma nuvem cósmica, e acabando naCalifórnia, que corresponderia ao fim do universo tal comoacima descrito. Para percorrermos este caminho no tempocerto, teríamos de dar um passo cada dois mil anos. Todaa história corresponderia a uns poucos passos. Além disso(e este é o ponto mais importante), estes poucos passosseriam dados antes da metade do percurso: algures, talvez,no Kansas — certamente não o ponto mais alto da via-gem!... Não serão seres humanos quem testemunhará amorte do Sol, daqui a 6 mil milhões de anos, mas criaturastão diferentes de nós como nós das bactérias. Muito antesde o Sol finalmente fazer evaporar a superfície da Terra, ainteligência pós-humana poderá ter-se espalhado para bemlonge do seu planeta original, assumindo formas que pode-rão ver a destruição da nossa Terra como um acontecimentopouco importante ou meramente sentimental, e ainda assimpodendo aspirar a um futuro longo e próspero. O futurocósmico estende-se muito para além da extinção do Sol.O vasto cosmos pode, na verdade, ter um futuro infinitoà sua frente. Nós não podemos prever que papel a vidapoderá eventualmente traçar para ela própria: pode extin-guir-se ou, por outro lado, adquirir tal dominância quepoderá influenciar a totalidade do cosmos.

Este tipo de especulações tem em geral sido deixada aosescritores de ficção científica. Mas os cientistas podem tam-bém fazer algumas tentativas de previsão de ultralongo al-cance. O universo parece destinado a continuar a expandir--se. As reservas de energia, por outro lado, são finitas, e, emprimeira análise, esta limitação parece ser fundamental. Noentanto, tal restrição não é, na realidade, fatal. À medidaque o universo se expande e arrefece, podem ser usados

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quanta de energia cada vez mais baixa (ou, de forma equi-valente, radiação de comprimento de onda cada vez maislongo) para armazenar ou transmitir informação. Tal comouma série infinita pode ter uma soma finita (por exemplo1 + 1/2 + 1/4 + ... = 2), não existe limite para a quantidadede informação que pode ser processada com um gasto deenergia finito. Qualquer forma de vida concebível teria, noentanto, de se manter sempre fria, pensar lentamente, ehibernar por períodos cada vez mais longos.

Os físicos suspeitam actualmente que os átomos nãoexistem para sempre. Consequentemente, estrelas e plane-tas extintos há muito tempo desagregar-se-iam talvez aolongo de um período de um trilião de triliões de triliões deanos. O calor gerado pelo decaimento das partículas fariaas estrelas brilhar, mas tão tenuemente como um aquece-dor doméstico. Pensamentos e memórias só poderiam so-breviver a esta era se armazenados em circuitos complexose campos magnéticos existentes em nuvens de electrões epositrões (isto talvez se pareça com a inteligência extrater-restre ameaçadora que surge em The Black Cloud, o pri-meiro e o mais imaginativo dos romances de ficção cien-tífica de Fred Hoyle, escrito nos anos 50 do século XX).O fim do jogo pode demorar tanto tempo que, para escre-vermos o número de anos que durará, precisaríamos detantos zeros quantos os átomos que existem em todas asgaláxias que podemos ver actualmente. Tal como WoodyAllen disse uma vez, «A eternidade é muito longa, especial-mente mais perto do fim». Se o leitor possuir um tempe-ramento apocalíptico, pode encaminhar-se para um buraconegro — ali pode encontrar uma antecipação do big crunch,criado por um colapso gravitacional local. Deverá esco-lher, de preferência, um dos monstruosos buracos negrosque pesam tanto quanto biliões de estrelas da dimensão doSol — relíquias dos eventos catastróficos que deram ori-

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gem aos quasars — e que se encontram escondidos no cen-tro das galáxias. Estes são tão poderosos que, mesmocaindo na sua direcção, terá algumas horas para uma obser-vação agradável dos acontecimentos, antes de ver o seucorpo partir-se ao meio sob a acção da força da gravidade.Uma atitude mais cautelosa seria manter-se em órbita naperiferia do buraco negro, onde o espaço e o tempo estãotão fortemente distorcidos que os relógios avançam deforma particularmente lenta. Nesse local tão vantajosoestaria a salvo, e poderia mesmo (se o buraco negro esti-vesse a girar rapidamente) sofrer um desvio para o azul eter acesso a uma previsão do futuro do universo exteriorao buraco negro.

Da simplicidade à estrutura complexa

Basta de previsões de longo alcance. Voltemos agora denovo ao início. Às vezes as pessoas surpreendem-se pelofacto de o nosso universo poder ter começado como umabola de fogo quente e amorfa, e poder vir a acabar comoalgo intrincadamente diferenciado. A temperatura agoravaria desde as temperaturas arrasadoras da superfície dasestrelas (e dos seus ainda mais quentes interiores) às tem-peraturas dos céus, apenas 3 graus acima do zero absoluto.Este facto parece contradizer um dos princípios sagradosda física: a segunda lei da termodinâmica. Mas ele é ape-nas o resultado natural do trabalho da gravidade. A gra-vidade torna o Universo em expansão instável relativa-mente ao aumento de estrutura, no sentido em que mesmouma pequena irregularidade inicial pode evoluir para gra-dientes muito complexos na densidade de matéria.

Os teóricos podem actualmente simular a evolução deum «universo virtual» num computador. No início da simu-

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lação são introduzidas pequenas flutuações. Os cálculospodem simular uma caixa contendo milhares de galáxias —suficientemente grande para ser uma amostra razoável donosso universo. A forma como as pequenas irregularidadesiniciais na bola de fogo cósmica evoluem para formargaláxias e agrupamentos de galáxias é em princípio tãoprevisível como as órbitas dos planetas, que são compre-endidas desde o tempo de Newton. Mas, para Newton,algumas características do sistema solar eram um mistério.Porque foram os planetas formados com as suas órbitasquase integralmente no mesmo plano, contornando o Solno mesmo sentido? Esta coplanaridade só agora foi com-preendida: é uma consequência natural da formação dosistema solar a partir de um disco proto-estelar. De facto,os cientistas deslocaram a fronteira do desconhecido doinício do sistema solar até ao primeiro segundo do bigbang. Mas, conceptualmente, não estamos em melhor po-sição do que Newton. Ele tinha de especificar as trajectóriasiniciais de cada planeta; nós deslocámos a cadeia causalmuito para trás, mas ainda não passámos do estágio emque afirmamos que «as coisas são o que são, porque foramo que foram». Os nossos cálculos da estrutura do cosmosexigem que especifiquemos, para um tempo de cerca de1 segundo, um conjunto de números: (i) a velocidade deexpansão do cosmos; (ii) a proporção de átomos vulgares,matéria negra e radiação existentes no universo; (iii) ascaracterísticas das flutuações e (iv) as leis básicas da fí-sica. Qualquer explicação para estes números tem de sesituar não apenas no primeiro segundo, mas na primeirapequena fracção desse segundo. Qual é então a probabi-lidade de empurrar a barreira do desconhecido ainda maispara trás?

A velocidade de expansão cósmica apresenta um misté-rio especial. As duas perspectivas — expansão perpétua ou

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colapso — parecem muito diferentes. Mas o nosso uni-verso está ainda a expandir-se, após 10 mil milhões deanos. Um universo que tivesse colapsado mais cedo nãoteria tido tempo para que as estrelas pudessem evoluir, oumesmo se tivessem formado. Por outro lado, se a expansãose desse muito mais rapidamente, a gravidade teria sidoderrotada pela energia cinética e as nuvens que se vierama transformar em galáxias teriam sido incapazes de secondensarem. Em termos newtonianos, as energias poten-cial e cinética iniciais tiveram se ser muito semelhantesuma à outra. Como foi isso possível? Será que a respostaa esta questão se pode encontrar no universo ultraprimitivo,nos seus instantes iniciais de existência?

Eu sou capaz de seguir o percurso do universo até ao seuprimeiro segundo de existência. A matéria não era mais densaque o ar actualmente; a física convencional experimental éaplicável àquelas condições e isso é validado pela observaçãodas suas consequências previsíveis, tais como a radiação defundo de microndas, a percentagem de hélio no universo,etc. Mas, para a primeira trilionésima parte de segundo,cada partícula existente no universo teria mais energia queaquela que mesmo o mais poderoso acelerador do CERN2

consegue alcançar. Quanto mais extrapolamos em direcçãoao passado, menos suporte temos da investigação experi-mental. Mas muitos cosmólogos suspeitam que a uniformi-

2 CERN é o acrónimo de Conseil Européen pour la RechercheNucléaire (Conselho Europeu para a Investigação Nuclear), a comissãointernacional que lançou as bases que permitiram a construção do maiore mais importante laboratório de altas energias do mundo, cujo nomeoficial é de facto Organisation Européenne pour la Recherche Nucléaire(ou European Organization for Nuclear Research — OrganizaçãoEuropeia para a Investigação Nuclear), embora continue a ser maisconhecido pelo nome, CERN, da comissão que o projectou. (N. do T.)

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dade e a velocidade de expansão são o resultado de umacontecimento notável que terá tido lugar quando o universotinha apenas 10-38 segundos de idade, se encontrava redu-zido a um tamanho 1027 vezes menor que o actual e aquecidopor um factor semelhante. A expansão terá então sofridouma aceleração exponencial, de tal modo que o universoembrionário se teria inflacionado, homogeneizado, e o equi-líbrio entre a gravidade e a energia cinética teria sido esta-belecido. As sementes das galáxias e agrupamentos de galá-xias poderiam ser então apenas pequeníssimas flutuações,formadas enquanto o universo possuía apenas um tama-nho microscópico, por acção da expansão inflacionária.

As inter-relações íntimas entre o cosmos e o mundomicrofísico são ilustradas nas interligações entre os braçosesquerdo e direito de um ouroboros (figura 2). O nossomundo quotidiano é determinado pela química: as proprie-dades dos átomos. As estrelas brilham devido a reacções

Figura 2 — O ouroboros cosmológico

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dos núcleos atómicos. As galáxias podem ser mantidasjuntas pela força da gravidade devida a uma multidão departículas subnucleares. A síntese final que ainda nos esca-pa é a existente entre a gravidade e o micromundo — entreo cosmos e o quântico.

O contexto humano

O próprio Darwin notou que «nenhuma espécie vivatransmitirá as suas características inalteradas a uma des-cendência distante». O notável biólogo Christian de Duve,por seu lado, defendeu que «a árvore da vida pode alcançaro dobro do seu tamanho actual. Isto pode acontecer porcrescimento adicional do ramo humano, mas não tem deser assim forçosamente. Há tempo suficiente para outrosramos brotarem e cresceram, e poderem eventualmentealcançar um nível muito mais elevado do que o que nósocupamos, enquanto o ramo humano definha. [...] O quevirá a acontecer depende de algum modo de nós próprios,visto que possuímos actualmente o poder de influenciardecisivamente o futuro da vida e da humanidade na Terra».

A evolução está a acelerar. Em A Máquina do Tempo,de H. G. Wells, o crononauta aumentou suavemente opasso da sua máquina do tempo em direcção ao futuro: «anoite surgiu como um apagar de luz, e num instante oamanhã chegou». À medida que ele acelerou «o palpitarda noite e dia transformou-se num contínuo cinzento. [...]Viajei, parando sempre e novamente, em grandes etapas demilhares de anos ou mais, sondando o misterioso destinoda Terra. Observando com estranho fascínio o Sol a tor-nar-se maior e desinteressante no lado ocidental do céu, ea vida da velha Terra a desaparecer». Ele encontrou umaera onde a espécie humana se dividiu em duas: os estéreis

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e infantis Eloi, e os brutais Morlocks, que os exploravam.Acaba 30 milhões de anos no futuro, num mundo ondetodas as formas de vida familiares tinham sido extintas.Na história de Wells, são precisos 800 mil anos até que aespécie humana se divida em duas subespécies — um pe-ríodo que concorda com as ideias modernas sobre quantoa humanidade demorou a emergir via selecção natural.Mas, no novo século, as alterações nos corpos humanos enos cérebros não estão reféns do andamento próprio daevolução darwiniana, nem mesmo da propagação selectiva.A engenharia genética e a biotecnologia, se praticadas emlarga escala, podem vir a alterar profundamente a fisiolo-gia e a mentalidade humanas muito mais rapidamente doque previu Wells. As alterações técnicas e ambientais têmvindo a acelerar ao longo da história da humanidade. Umamulher de Neanderthal poderia esperar que os seus filhosvivessem os seus dias de uma forma semelhante à da suaprópria geração, tal como de facto a maioria dos sereshumanos até aos tempos medievais. As alterações progres-sivamente mais importantes no decurso de uma únicageração são uma marca distintiva dos séculos mais recen-tes: algumas tecnologias avançam agora tão depressa quetodos os objectos físicos em que assentam estão ultrapas-sados (destruídos ou doados a museus) em poucos anos.A biotecnologia abre hoje, de modo bastante repentino esem precedentes, uma nova dimensão à mudança. Os fun-damentos biológicos da humanidade, que permaneceramessencialmente inalterados ao longo de toda a história,podem vir a ser alterados em menos de um século. A nossaprópria espécie pode variar e diversificar-se mais rapida-mente que qualquer das suas predecessoras — através demodificações controladas pela inteligência, que não só pelaselecção natural. Nos séculos futuros, os robôs e os seusfabricantes poderão invadir todo o sistema solar. Se os

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seres humanos se juntarão eles próprios a esta diáspora édifícil de prever. Se sim, é provável que as comunidadesque se desenvolvam o façam de tal modo que se tornembastante independentes da Terra. Sem quaisquer restrições,algumas delas hão-de explorar totalmente as possibilida-des das técnicas de manipulação genética e divergir comonovas espécies. As condições físicas diversas — muito dife-rentes em Marte, na cintura de asteróides e nas zonas lon-gínquas do sistema solar, ainda frias — darão um impulsorenovado à diversificação biológica.

A Via Láctea inteira, estendendo-se por cerca de 100 000anos-luz, poderá ser povoada em menos tempo do queaquele que foi necessário para nós evoluirmos a partir dosprimeiros primatas. O futuro distante pode apresentar umavariedade ainda maior de seres vivos do que aquela quetem desempenhado o seu papel em toda a história dabiosfera terrestre. Alguns artefactos criados por nós, e decerta forma nossos descendentes, poderão utilizar a suaprópria inteligência para se desenvolverem mais, na Terraou muito longe dela.

A compreensão da natureza da vida é um desafio-chavepara a ciência — como começou, e se existe para além daTerra (não existe, seguramente, outra questão científicaque eu, pessoalmente, mais gostasse de ver desvendada.)

É possível que venha a ser encontrada vida extraterres-tre — ou mesmo inteligência extraterrestre. O nosso planetapode ser, afinal, um dos muitos milhões de planetas habi-tados. Podemos viver num universo amigo da vida, abun-dantemente cheio de seres vivos. Se for assim, os aconte-cimentos mais significativos da história terrestre, mesmo anossa própria extinção total, dificilmente poderiam ser con-siderados acontecimentos cósmicos. Mas poderemos apren-der o suficiente para concluir que a vida inteligente é rara,ou mesmo que o espaço cósmico infinito é ainda um vazio

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estéril — uma perspectiva actualmente defensável. A bios-fera terrestre pode ser (com bastante plausibilidade) o únicolocal de vida inteligente e consciente em toda a galáxia. Seassim for, o destino da nossa pequena Terra terá um sig-nificado verdadeiramente cósmico — uma importância quereverberaria por toda a «Criação Celestial» de ThomasWright.

As primeiras criaturas aquáticas nadaram para terraseca na era silúrica, há mais de 300 milhões de anos. Po-dem ter parecido bestas pouco impressionantes, mas, setivessem sido destruídas, o potencial de toda a fauna ter-restre continental teria sido posto em causa. Da mesmaforma, o potencial pós-humano é tão imenso que não seriaapenas o mais misantropo de entre nós a encorajar a suanão destruição por actos humanos. Naturalmente, as nos-sas preocupações centram-se mais insistentemente no des-tino da geração actual do que em prognósticos para umfuturo distante. Mas, para mim, e talvez para alguns outros(especialmente para os que não têm credo religioso), estasperspectivas de longo prazo fortalecem o imperativo detratar com carinho este «ponto azul-pálido» no cosmos,sem pôr em causa o futuro da vida a longo prazo.

Este século especial

A figura 3 mostra uma fotografia antiga memorável,legendada originalmente Earthrise (nascer da Terra), quemostra a Terra tal como pode ser vista de uma nave espa-cial que orbita a Lua. O nosso habitat de continentes,oceanos e nuvens mostrou ser um objecto fino e delicado,com uma beleza e vulnerabilidade que contrastam com aagreste e estéril paisagem lunar, onde os astronautas deixa-ram as suas pegadas.

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Só temos estas fotografias com imagens distantes daTerra desde há cerca de 40 anos. Mas o nosso planetaexiste há mais de 100 milhões de vezes esse período. Comoteria um hipotético extraterrestre visto à distância a evo-lução da história terrestre desde o seu início? Durante maisde mil milhões de anos, o oxigénio foi-se acumulando naatmosfera da Terra — uma consequência da vida unicelularinicial. Daí para a frente houve pequenas alterações navegetação e também na forma das massas continentais,devido aos movimentos tectónicos. A cobertura de gelocresceu e declinou: pode mesmo ter havido episódios du-rante os quais toda a superfície da Terra esteve coberta degelo, tornando-a branca quando vista à distância, em vez

Figura 3 — Nascer da Terra. Esta fotografia a cores foi tiradapelo astronauta da missão Apollo 8, William Anders, no dia 24de Dezembro de 1968. A fotografia não estava planeada namissão, pelo que foi obtida num acto estritamente serendípico

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de azul-pálido. As únicas variações abruptas à escala glo-bal foram resultado de grandes impactos com asteróidesou erupções vulcânicas de violência invulgar. Acidentes oca-sionais como estes teriam atirado tantos resíduos para aestratosfera que, durante vários anos, até as poeiras e osaerossóis assentarem de novo, a Terra pareceria cinzento--escura, em vez de azulada, e a luz do Sol não conseguiriapenetrar até à superfície. À parte estes rápidos momentostraumáticos, nada aconteceu bruscamente: espécies novasforam aparecendo sucessivamente, evoluindo e sendo extin-tas, em escalas geológicas de milhões de anos. Mas apenasnum instante da história da Terra — a última milionésimaparte, uns poucos milhares de anos —, os padrões de vege-tação sofreram alterações mais rápidas que até aí. Estamudança assinalou o início da agricultura — a impressãodigital dos seres humanos sobre a Terra, fortalecida pelouso de ferramentas. O ritmo das alterações acelerou àmedida que a população humana cresceu. Então foramperceptíveis transformações diferentes, e estas foram aindamais abruptas. Num período de cinquenta anos — poucomais de uma centésima milionésima parte da idade daTerra —, a quantidade de dióxido de carbono na atmos-fera, a qual ao longo da maior parte da história da Terratinha decrescido lentamente, começou a aumentar deforma anormalmente rápida. O planeta tornou-se umaintensa fonte emissora de ondas de rádio (o produto con-junto de todas as transmissões de rádio, televisão, telemóvele radar). E algo mais aconteceu, sem paralelo nos ante-riores 4,5 mil milhões de anos de existência da Terra: váriosobjectos metálicos — apesar de muito pequenos, pesandoapenas algumas toneladas no máximo — deixaram a su-perfície do planeta e abandonaram completamente abiosfera. Alguns dirigiram-se para órbitas em torno daTerra; outros viajaram até à Lua e outros planetas; uns

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poucos seguiram mesmo uma trajectória que os poderálevar até às profundezas do espaço interestelar, abando-nando o sistema solar para sempre.

Uma raça de extraterrestres cientificamente avançadosque observasse o nosso sistema solar poderia seguramenteprever o destino que a Terra enfrentará daqui a 6 milmilhões de anos, quando o Sol, no seu estertor de morte,se expandir, tornando-se numa estrela gigante vermelha evaporizando tudo o que restar à superfície do nosso pla-neta. Mas poderia ela ter antecipado a ocorrência destesespasmos sem precedentes a menos de metade do tempo devida previsto para a Terra? Estas alterações induzidaspelos seres humanos que, tendo lugar na sua totalidadedurante menos de uma milionésima parte do tempo decor-rido, se deram a um ritmo tão elevado? Se os hipotéticosextraterrestres continuassem a observar a Terra, que ocor-rências poderiam testemunhar nos próximos séculos?Haverá um estrépito final, seguido de silêncio? Ou o pla-neta estabilizará? E espalhar-se-ão alguns dos pequenosobjectos metálicos que são lançados da Terra pelo espaço,descobrindo novos oásis de vida algures no sistema solar,eventualmente estendendo a sua influência — via qualquerespécie de vida exótica, máquinas ou sinais sofisticados —muito para além do sistema solar, criando uma «esferaverde» que invadirá toda a galáxia?

A evolução da biosfera terrestre pôde ser seguida até háalguns milhares de milhões de anos atrás. Sabe-se que ofuturo do nosso universo físico se estenderá por um pe-ríodo muito maior, porventura até ao infinito. Mas, apesardestes horizontes expandidos, tanto para o passado comopara o futuro, uma escala temporal contraiu-se: muitos denós estão menos confiantes que a nossa civilização possasobreviver ao próximo século do que os nossos antepas-sados, que devotadamente iam construindo catedrais que

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sabiam não iriam ser terminadas durante as suas vidas.O que vier a acontecer aqui, na Terra, neste século, poderámuito provavelmente fazer a diferença entre uma quaseeternidade cheia de formas de vida cada vez mais comple-xas e subtis, e outra cheia de nada, excepto matéria básica.

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Astronomia: distância, tempoe ambos

JOÃO FERNANDES

Departamento de Matemática e ObservatórioAstronómico, Universidade de Coimbra

[email protected]

Introdução

A contemplação da abóbada celeste numa qualquernoite de Verão, longe da poeira luminosa das civilizaçõesmodernas, faz surgir um conjunto de sensações cuja descri-ção depende de observador para observador e está muitopara além da «simples» explicação científica. Que o digamos poetas e trovadores ao longo dos tempos. «E lucevan lestelle e olezzava la terra...»1, suspira o herói, esperando amorte traiçoeira... Os astros parecem cravados num gigan-

1 «Brilham as estrelas e escurece a terra...», acto III da Tosca, deG. Puccini.

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tesco planetário, cujo lento movimento aparente de estepara oeste denuncia a rotação da Terra.

Esta calma imensidão esconde, na realidade, um universopleno de acelerações e mutações cíclicas, tais como estrelasque se autodestroem (supernovas) e ajudam a formar novasestrelas. Assim, para lá do que o nosso olhar pode apreender,temos um universo muito pouco calmo e em constante evo-lução. Mas estarão os nossos sentidos preparados para per-cepcionar esta evolução? Em toda a sua globalidade, não.Mas parcialmente, decerto que sim. Por exemplo os movi-mentos orbitais e algumas características intrínsecas dosplanetas do sistema solar; o(s) ciclo(s) de actividade solar;movimentos de estrelas na Galáxia; composição química edimensões de nebulosas; propriedades de estrelas e galáxias;velocidades das galáxias e seus enxames; etc.

Mas o que nos falta então para essa imagem global douniverso? Antes de mais, os nossos olhos são telescópioscom uma capacidade muito limitada de observação. Emprimeiro lugar porque conseguem observar apenas osobjectos mais brilhantes. Assim, em 1610, Galileo Galileipublica o seu livro Sidereus Nuncius e dá a conhecer aomundo que existe um universo muito mais vasto, para ládo que os olhos humanos podem apreender. Com um teles-cópio que não aumentava mais de uma dezena de vezes,dotado de uma lente de poucos centímetros, Galileu mos-tra que as Plêiades têm mais membros do que os avistadosa olho nu e Júpiter tem satélites. Em segundo lugar, osnossos olhos apenas podem detectar uma pequena parte doespectro electromagnético, a radiação no óptico ou visível.Em 1880, William Hershel põe em evidência a radiaçãoinfravermelha. Sucedem-se, em finais do século, a desco-berta das ondas rádio, por Heinrich Hertz, e dos raios X,por Wilhelm Roentgen. Temos assim um outro universopara além do visível.

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ASTRONOMIA: DISTÂNCIA, TEMPO E AMBOS 41

Ao longo dos últimos 400 anos, tem-se tentado corrigiras limitações naturais da vista humana. Por um lado,temos telescópios com uma dezena de metros de diâmetroinstalados na superfície terrestre, como são os casos doVery Large Telescope (Chile) ou dos Twin Keck (EUA). Poroutro lado, alguns telescópios terrestres (como os radio-telescópios) e espaciais têm permitido ver o universo donão visível.

Assim, o conhecimento do universo passa pelo aperfei-çoamento e desenvolvimento tecnológico dos telescópios einstrumentos de captação e análise de imagem. Mas isto éapenas uma parte da história. Por maiores que sejam osnossos telescópios e por mais eficazes que sejam os apare-lhos adjacentes, a astronomia debate-se sempre com esca-las espaciais e temporais na maior parte das vezes muitodiferentes das escalas humanas. É sobre isto que nos ire-mos debruçar nos próximos parágrafos.

Distância

Se excluirmos os casos da análise de meteoritos queatingem a Terra, das rochas lunares trazidas pelos astro-nautas ou do solo marciano recolhido pelos robôs que porlá se passearam, constatamos que os astrónomos não po-dem «tocar» ou manipular os objectos estudados. Antes demais, porque eles estão muito longe. Essa distância é ter-rivelmente limitadora para estudar algumas das proprieda-des intrínsecas dos astros, como por exemplo o seu brilho.Consideremos aqui uma analogia. Uma lâmpada correntecolocada a poucos centímetros da nossa vista parece-nosmuito mais brilhante do que quando colocada a uma dis-tância de vários metros. Da mesma forma, o brilho de umaqualquer estrela, quando observado na Terra, é muitís-

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simas vezes inferior ao seu brilho intrínseco. Dito poroutras palavras, conseguindo medir o brilho de uma estrelana Terra, só poderemos ter acesso aos seu brilho intrínsecose conhecermos a distância que nos separa do astro.

A determinação da distância em astronomia é uma dastarefas observacionais mais árduas que o astrónomo en-frenta. Se as distâncias interplanetárias (dentro do sistemasolar) podem ser determinadas com relativa facilidade, fru-to da análise da dinâmica planetária, já para as distânciasàs estrelas e às galáxias o problema se complica. O únicométodo directo para o determinação da distância faz usodo conceito de paralaxe. A paralaxe de uma estrela é, emboa aproximação, o ângulo entre os vectores imagináriosque unem a Terra à estrela e o Sol à estrela, e resulta domovimento de translação da Terra em torno do Sol. Esteângulo é tanto maior quanto mais próxima estiver a estrelada Terra. Se o conceito parece simples, já a medição daparalaxe se mostra complexa. A estrela mais próxima daTerra, a Proxima Centauri, encontra-se a 278 737 vezes adistância que separa a Terra do Sol — a unidade astronó-mica = 150 000 000 km. Esta estrela tem uma paralaxe de0,00021°! Este valor é próximo da abertura angular de umindivíduo de 1,7 metros visto a quase 500 quilómetros dedistância. Se pensarmos que o valor dado acima é para aestrela mais próxima, quão reduzida não será a paralaxedas outras estrelas. Por isso não espanta que só no séculoXIX tenha sido possível fazer medições de paralaxe deestrelas.

Hoje em dia, a tecnologia mais avançada na determina-ção de paralaxes passa pela observação a partir do espaço.Entre 1986 e 1994, a sonda HIPPARCOS, da Agência Espa-cial Europeia, observou mais de 100 mil estrelas, com oobjectivo, entre outros, de determinar a paralaxe estelar.Houve muitos e bons resultados. No entanto, constatou-se

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que a determinação de paralaxes com uma precisão infe-rior a 10% só era possível nas estrelas mais próximas doSol, o que corresponde às estrelas que se encontram amenos de 100 vezes a distância entre a Terra e a ProximaCentauri. O que se passa é que para distâncias muito gran-des o valor do ângulo de paralaxe é de tal forma reduzidoque a medição se torna muito difícil. Por este motivo, aAgência Espacial Europeia tem já preparado para a pri-meira metade da próxima década o lançamento da sondaespacial GAIA, que terá como objectivo melhorar aperformance da HIPPARCOS.

Fica claro do que em cima se expôs que a distância àsestrelas longínquas e às galáxias não pode ser determi-nada via paralaxe. Existem, naturalmente, outros méto-dos. O universo não pode ficar sem tamanho! No entanto,esses métodos são menos directos e por vezes fazem uso demodelos teóricos. Por essa razão nos abstemos de os abor-dar neste texto. Fica a «moral da história»: conhecer ouniverso implica trazê-lo para perto, pelo conhecimento dadistância.

Tempo

Mas, se a distância é uma dificuldade (por vezes ultra-passável!), as escalas de tempo de evolução dos objectosastronómicos não apresentam problemas menores. A aná-lise química de meteoritos permite inferir que o processode formação do Sol e dos planetas se terá iniciado há quase5 mil milhões de anos. Para além disso, os modernos mode-los teóricos de evolução estelar prevêem que a nossa estrelaviverá ainda outro tanto. Se assumirmos que o estudo dosistema solar, no que concerne as propriedades intrínsecasdos seus constituintes (em particular o Sol), terá começado

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há 100-150 anos atrás, facilmente nos apercebemos deque o nosso conhecimento se reporta a uma ínfima parteda história do sistema solar: Sol, planetas e os demaiscomponentes. À primeira vista, este facto pode parecerincontornável e até desmotivador (mesmo os próximosmilénios de estudo não juntarão mais do que uns«pozinhos» ao tempo de estudo). Mas é só à primeiravista!

Um olhar detalhado sobre a estrela HD 207129 permitea constatação de um facto curioso: a massa e a composiçãoquímica da estrela são muito semelhantes aos valores cor-respondentes para o Sol. No entanto, uma enorme dife-rença separa as duas estrelas: HD 207129 tem uma idadede 40 milhões de anos, contra os 5 mil milhões do Sol.Assim, «olhando» para a jovem estrela pode estar a «ver--se» o Sol na sua infância. De facto, a observação de estre-las em diferentes fases de evolução permite compor o puzzledas várias etapas de vida de uma estrela. Fica depois parao engenho e a inteligência humana construir as ligaçõesentre as diferentes etapas, o que é vulgarmente feito atravésdo uso de modelos teóricos. Este tipo de metodologia per-mite assim colmatar a limitação ao estudo dos objectos astro-nómicos imposta pelas suas enormes escalas temporais.

Ambos: distância e tempo e vice-versa

É comum ver aparecer em livros de divulgação cientí-fica a ideia de que podemos estar, neste momento, a obser-var estrelas que entretanto já se tenham extinguido. Estefacto deve-se ao valor finito da velocidade da luz (enten-dida como radiação electromagnética). Dito por outraspalavras, apesar dos seus quase 300 000 km/s (no vácuo),a luz que transporta a informação que nos permite o estudo

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dos objectos astronómicos demora tempo entre a fonteemissora (o astro) e o observador na Terra (cada um denós, por exemplo). Este tempo é tanto maior quanto maisdistante estiver o objecto: 1 segundo para a Lua, 8 minutospara o Sol, 1 hora para Saturno, 4 anos para a estrelaProxima Centauri, 400 anos para o enxame das Plêiades,2500 anos para o centro na nossa galáxia — a Via Lác-tea —, 2,5 milhões de anos para a galáxia Andrómeda e 13mil milhões de anos para os objectos mais longínquos douniverso, como a galáxia descoberta em 2004 fruto daconjugação das observações do Telescópio Espacial Hubblee do telescópio Keck. Desta forma se estabelece a ligaçãoentre a distância a que os astros se encontram da Terra eo tempo de que necessitamos para os conhecer. Daqui vema conhecida unidade de comprimento usada em astrono-mia, denominada ano-luz. Um ano-luz é o espaço percor-rido pela luz durante um ano, ou seja 300 000 (km/s) ×× (365,25 × 24 × 3600 segundos) ≈ 9,5 biliões de quiló-metros!

Com base nesta realidade, podemos ainda constatar queas fotografias que tiramos hoje dos astros no-los mostramnão como são agora, mas como eram quando emitiram aradiação que agora recebemos. O universo não se compa-dece com observações em tempo real.

Posto isto, fica claro que estudar astronomia é, invaria-velmente, estudar o passado. Mas estudar o passado coma tecnologia do futuro. Muitas vezes, a vontade de conhe-cer o universo tem sido o motor de desenvolvimento tecno-lógico, que depois é aproveitado em outras áreas do conhe-cimento. Sempre assim foi e assim continuará a ser. A bemda ciência e do progresso da humanidade.

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A química-física do tempo

Peter AtkinsUniversidade de Oxford

[email protected]

Espero não ser demasiado ambicioso ao pretender apre-sentar uma diversidade de aspectos relativos ao tempo naperspectiva de um químico, em particular de um químico--físico. A química é muitas vezes designada ciência central,por tratar de problemas que se situam entre as questõesfundamentais do universo, consideradas pela física, e omundo incrivelmente complexo da biologia. Por isso, avisão que o químico tem do tempo pode ser muitoabrangente, indo dos limites das ideias fundamentais dafísica às fronteiras do conhecimento biológico. É tambémessa a minha intenção: tentarei guiar o leitor através dessepercurso, considerando a origem das transformações, apercepção do tempo e a formação/esvanecimento da me-mória. Levarei o leitor através de um mundo bizarro, emostrarei o que realmente vemos quando olhamos um

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pêndulo a balançar, demonstrando que existe um mundopeculiar do tempo, tecnicamente imaginário, mas de factoreal e familiar.

Começarei por falar sobre a origem das transformaçõese um pouco sobre a segunda lei da termodinâmica e adireccionalidade do tempo. Quando ensino a segunda leiaos meus alunos, digo-lhes que nenhuma outra lei cientí-fica contribuiu mais para a libertação do espírito humano.Naturalmente, eles riem-se, incrédulos. Mas eu quero dizerexactamente isso! A segunda lei revela-nos o motor douniverso, a força impulsionadora de todas as transforma-ções. Acho maravilhoso que uma ideia tão simples possaexplicar todos os acontecimentos à nossa volta — do arre-fecer de um café à formação de opiniões, formação/esvanecimento da memória, ou desenvolvimento de com-portamentos nobres ou mais ou menos idiotas. O escritoringlês C. P. Snow, ele próprio inicialmente um químico,chamou a atenção para o facto de que não conhecer asegunda lei da termodinâmica é como nunca ter lido umaobra de Shakespeare.

Estou a partir do princípio de que os leitores não sãocientistas ou, pelo menos, de que nem todos os leitores sãocientistas. Apresentarei, por isso, a segunda lei e as expli-cações que ela oferece para os acontecimentos que nosrodeiam, a formação/esvanecimento da memória, a per-cepção visual e o nosso sentir da passagem do tempo. Fá--lo-ei de forma inteiramente qualitativa.

Na sua forma mais simples, a segunda lei assegura-nosque as coisas tendem a piorar. De uma forma mais exacta,que a matéria e a energia tendem para estados de maiordesordem. Todos sabemos que, se introduzirmos uma pe-quena quantidade de um gás num reservatório vazio, elerapidamente se espalhará de forma a preencher completa-

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mente o reservatório. Este espalhamento é uma conse-quência directa do movimento aleatório das moléculas dogás, que as dispersa rapidamente e ao acaso por todo oespaço disponível. É extremamente improvável que asmoléculas dispersas alguma vez se agrupem num dos can-tos do recipiente. Esta dispersão da matéria é um dos pro-cessos básicos que conduzem o mundo a evoluir num de-terminado sentido e contribuem para a ordem natural dosacontecimentos a que chamamos seta do tempo. Todossabemos também que um bloco de metal aquecido arrefeceespontaneamente até à temperatura ambiente. A nívelatómico, a razão para isso acontecer é simples de identifi-car. Um bloco quente de metal é formado por átomos queestão a vibrar permanentemente em torno da sua posiçãomédia e, quanto mais quente está o bloco, mais vigorosa-mente os átomos vibram. Nas vizinhanças do objecto, quese encontram a uma temperatura mais baixa, os átomostambém estão a vibrar — em termos gerais, a mover-se —,mas de forma não tão vigorosa. Pensemos agora no queacontece na superfície do bloco: os átomos do bloco, vi-brando vigorosamente, empurram os átomos vizinhos domeio exterior, fazendo-os vibrar mais. Estes, por seu turno,empurram os seus vizinhos, e assim sucessivamente. Emresultado disto, a energia dos átomos do bloco que vibra-vam vigorosamente espalha-se por todo o universo. Poroutro lado, é extremamente improvável que, espontanea-mente, a mesma energia alguma vez pudesse ser extraídaao universo e armazenada no bloco original, fazendo comque, de repente, o pudéssemos sentir mais quente. Estadispersão de energia é o segundo dos dois processos bási-cos que ocorrem no universo, e fornece a segunda contri-buição para a seta do tempo.

Devido aos dois processos básicos acima descritos, osacontecimentos têm um sentido definido no tempo. Todos

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os acontecimentos são comandados pela tendência naturalda matéria e da energia para originarem desordem. Estesdois processos são, assim, a força impulsionadora de todasas transformações, o motor do universo. Se quisermos,podemos levar esta ideia um pouco mais longe. Porque, deacordo com Einstein, a energia e a matéria são equivalen-tes, a tendência da matéria para se dispersar não é, afinal,mais que a tendência da energia para se dispersar. Entãoexiste apenas uma tendência fundamental: a forçaimpulsionadora das transformações, a mola desenroladaque direcciona os acontecimentos para a frente no tempo,não é mais do que a tendência para a energia se dispersaroriginando desordem.

Falei de «desordem». Uma medida técnica da desor-dem, definida rigorosamente, é a entropia. É suficiente paraas nossas intenções considerar esta palavra como sinónimode desordem, mas, naturalmente, os cientistas podemexpressá-la precisa e quantitativamente, podem medi-la, epodem observar as variações de entropia que acompanhamqualquer processo. Não preciso de aprofundar este assun-to, excepto para salientar o facto de que os cientistas sa-bem exactamente o que entendem por entropia. Contudo,podemos ir tão longe quanto o necessário para invocar otermo e fornecer uma forma mais técnica de expressar asegunda lei: a entropia aumenta em qualquer transforma-ção espontânea. Ao nosso nível de discurso, esta afirmaçãoé apenas uma versão mais técnica do nosso enunciadooriginal da lei, as coisas tendem a piorar. A seta do tempovoa no sentido do aumento da desordem, no sentido doaumento da entropia.

As coisas não pioram uniformemente. A onda crescentede entropia não se parece com um rio que flui suavemente,mas antes com rápidos turbulentos, que lançam espumapara o ar ao mesmo tempo que a água corre. Enquanto o

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mundo se afunda em desordem, as suas inter-relações re-sultam no aparecimento, aqui e acolá, de ordem. Um actoque gera ordem constitui uma destruição local do caos.

Quando o combustível fóssil é queimado num motor, osátomos de carbono das moléculas dos hidrocarbonetostransformam-se em moléculas de dióxido de carbono edeixam de estar presos uns aos outros numa cadeia parapassarem a estar livres para se dispersar. Ao mesmo tem-po, à medida que as moléculas são queimadas é libertadaenergia, e esta também se dispersa. Assim, a queima de umcombustível ilustra a acção das duas forças impulsionado-ras das transformações, a dispersão de matéria e a disper-são de energia. Contudo, e este é um ponto crucial, a con-figuração do motor é tal que esta dispersão geradora dedesordem não ocorre uniformemente. A forma do motordificulta a tendência para a dispersão, e usa-a para obteralgo útil, tal como a construção de um prédio a partir deuma pilha de tijolos. Localmente, a desordem da pilhaaleatória de tijolos reduz-se e uma estrutura mais organi-zada emerge; a diminuição local de desordem resulta doaumento da desordem do combustível queimado. É a istoque me refiro quando falo em destruição local do caos: emtermos globais (isto é, combustível mais tijolos), há umaumento de desordem, mas localmente (tijolos) verifica-seo seu decréscimo.

Onde quer que vejamos uma estrutura emergir à medi-da que o tempo passa, podemos associá-la a um aumentode desordem noutro local. Quando comemos, o metabolis-mo dos alimentos é equivalente à queima de um combus-tível, e as enzimas do nosso corpo são o equivalente domotor, dificultando a dispersão de matéria e energia. Entreas funções destas enzimas conta-se a construção não deedifícios a partir de tijolos, mas de proteínas a partir deaminoácidos dispersos. Assim, nós crescemos à medida que

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dissipamos. De modo análogo, a actividade química eeléctrica aleatória nos nossos cérebros permite-nos formaruma opinião ou contrair os músculos numa sequênciacoordenada, que nos abre a possibilidade de praticar umacto nobre (ou menos digno...).

A segunda lei tem-nos revelado a essência das transfor-mações e apontado o caminho do futuro: a desordem.Contudo, o futuro não se alcança rapidamente. Existembarreiras que evitam que o mundo colapse num instante eque o futuro nos atinja imediatamente. De facto, o mundogoteja para o futuro, e existe tempo para a beleza e abiosfera emergirem. Uma das maravilhas deste trabalholento da segunda lei é a evolução da biosfera, através daselecção natural.

Qualquer componente da sequência de acontecimentosa que chamamos «percepção», bem como a formação eesvanecimento das memórias responsáveis por darmosconta da passagem do tempo e o nosso fluir inevitável parao futuro, podem ser atribuídos ao labor da segunda lei.Concentremo-nos então no fenómeno da percepção daqueleque é, seguramente, o símbolo mais famoso da passagemdo tempo, o balançar de um pêndulo. Analisemos primeiroo fenómeno da percepção do balançar e depois, em maiordetalhe, o balançar propriamente dito.

O evento inicial que conduz à visão é extremamentesimples. Para o compreendermos, temos de saber que aretina de um olho contém uma molécula chamada 11-cis-retinal, que tem a estrutura e a forma mostradas na fi-gura 4. Qualquer químico sabe que a presença das ligaçõesduplas torna esta molécula estruturalmente rígida, de talmodo que a molécula tem uma forma fixa. A molécula deretinal está ligada a uma proteína. Surge então um fotão,talvez um dos muitos que um nanosegundo antes foram

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reflectidos pelo pêndulo quando este se encontrava numadeterminada posição durante o seu balançar, que é focadopela retina do nosso olho, como parte da imagem globaldo pêndulo. O fotão pode ser comparado com uma pequena«bola de energia»; é absorvido pela molécula de retinal e,em consequência disso, uma das ligações duplas carbono--carbono da molécula quebra-se, transformando-se numaligação simples. Os químicos sabem que uma ligação sim-

Figura 4 — Por absorção de um fotão de luz visível, a molécula de11-cis-retinal isomeriza para a molécula de trans-retinal. No isó-mero cis, os hidrogénios assinalados com a cor vermelha no grá-fico a duas dimensões apresentado estão do mesmo lado da ligaçãodupla formada pelos átomos de carbono 11 e 12. No isómerotrans, os hidrogénios estão de lados opostos da ligação. De facto,neste isómero todas as duplas ligações estão na configuração trans:os hidrogénios ou os hidrogénios e o grupo CH3 estão sempre delados opostos das ligações duplas. Note como o tamanho e forma

da molécula se alteram como resultado da isomerização

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ples funciona como um eixo de rotação, pelo que agorauma das partes da molécula de retinal pode rodar livre-mente em relação à outra. A rotação tem lugar, o excessode energia depositado na molécula excitada pelo fotão dis-persa-se pelas vizinhanças — isto é a segunda lei a desem-penhar o seu papel — e a dupla ligação é reconstruída.Agora a molécula de retinal assume uma nova forma (trans-retinal; figura 4). Esta alteração de forma desencadeia umimpulso através do nervo óptico — examinarei esta ques-tão um pouco mais à frente —, dando origem posterior-mente à percepção de uma imagem no cérebro.

Entretanto, a molécula de retinal tem de retornar à suaforma original, de forma que possamos voltar a ver: se elae todas as outras na retina não voltassem à sua configura-ção inicial, ficaríamos cegos logo após a nossa primeiravisão! No entanto, restaurar a configuração inicial damolécula requer energia. Esta energia não provém da luz,mas do metabolismo dos alimentos, através de uma cadeiade acontecimentos controlada pelas enzimas, cada um dosquais impulsionado pela tendência da energia e da matériapara se dispersarem. Assim, a tendência para um açúcar,por exemplo, reagir com oxigénio e se dispersar sob aforma de pequenas moléculas de dióxido de carbono, aomesmo tempo que a energia resultante da reacção se espa-lha pelas vizinhanças, é aproveitada pela bioquímica dosnossos olhos, e usada para fazer retornar a molécula deretinal à sua configuração inicial, logo que esta estejapronta para actuar de novo. Assim, a segunda lei é não sóresponsável pelo evento primordial da visão, mas tambémdesempenha um papel essencial no processo que asseguraque possamos continuar a ver.

Consideremos agora o sinal produzido ao longo donervo óptico e vejamos como a segunda lei determina a suapropagação. Temos de saber que a fibra nervosa consiste

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numa membrana com iões potássio em elevada concentra-ção no seu interior e iões sódio em grande concentração noseu exterior. Os gradientes de concentração destes iões dãoorigem a uma diferença de potencial eléctrico entre o ex-terior e o interior da membrana. Um impulso nervoso éuma consequência directa da segunda lei a funcionar. Sim-plificarei aqui os acontecimentos reais para salientar deforma mais evidente o papel da segunda lei.

Inicialmente, a membrana é alterada por um eventocomo a ejecção de retinal pela sua proteína, que ocorrequando a molécula de retinal absorve luz e muda de for-ma, tal como descrito anteriormente. Este evento torna,num dado local, a membrana permeável à passagem deiões sódio para o seu interior. Porque é que os iões sódiose dirigem para o interior da membrana? Porque este é osentido natural da transformação (neste caso, o movimentodos iões), de acordo com a segunda lei. Por seu lado, osiões potássio não se podem dispersar para fora da mem-brana, apesar de terem tendência para o fazer, porque sãodemasiado grandes para passarem através dos poros. Estaalteração súbita na distribuição dos iões sódio faz variar opotencial eléctrico ao longo da membrana e altera a com-posição no interior do nervo. Este processo acarreta a alte-ração da membrana num local vizinho (um pouco mais àfrente, se considerarmos o sentido de progressão do impulsonervoso), permitindo então que os iões sódio se desloquempara ali (de acordo com a segunda lei), e fazendo com queo local de alteração do potencial eléctrico e da composiçãose mova ao longo do nervo.

Entretanto, os iões sódio têm de ser de novo deslocadospara o exterior do neurónio, de tal forma que este possavoltar a transmitir impulsos eléctricos e contribuir para aformulação de outro pensamento ou percepção. Recolocaros iões sódio no exterior do neurónio requer energia, que

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uma vez mais é libertada pelo metabolismo dos alimentose redireccionada para este processo particular — o que éo equivalente de construir uma catedral a partir de umapilha aleatória de tijolos — através de uma cadeia de pro-cessos bioquímicos governados por enzimas. Assim, a re-posição das condições que asseguram a capacidade doneurónio transmitir novos impulsos eléctricos é umaconsequência da tendência natural da energia e da matériapara se dispersarem.

Não pretendo reclamar a compreensão do que ocorreno interior dos nossos cérebros, excepto para afirmar queos processos fundamentais que transformam a percepçãovisual numa imagem reconhecível de um pêndulo a balan-çar e que adicionam isto à base de dados de alteraçõesquímicas que designamos por experiência seguem exacta-mente o padrão geral que acabei de descrever. Existe umainterligação entre modificações estruturais, como aquelasque ocorrem no retinal, e impulsos eléctricos, como os queocorrem quando os iões sódio e potássio ajustam as suasconcentrações. Qualquer dessas contribuições para a expe-riência é guiada pela tendência natural da matéria e daenergia para se dispersarem. A nossa percepção de cami-nharmos para o futuro e a nossa impossibilidade de regres-sarmos ao passado não são mais do que a acumulaçãode alterações químicas no cérebro, acopladas a alteraçõesfisiológicas no resto do nosso corpo, e o facto de mergu-lharmos inevitavelmente no futuro é uma manifestação dofacto de que a segunda lei fornece uma explicação do sen-tido natural das transformações.

Prometi que exporia a vida secreta do pêndulo que te-mos imaginado a balançar durante os últimos minutos.Examinámos já a biologia da percepção da passagem dotempo. Agora vamos voltar-nos para a física.

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Que estamos realmente a ver quando um pêndulo ba-lança? Será que não estamos de facto a ver nada? Será queo balançar do pêndulo é apenas uma ilusão? Quero aquidemonstrar que um pêndulo que está a balançar comum período de um segundo é de facto um microscópioextraordinariamente sensível, que permite inspeccionar omundo microscópico dos átomos e que vermos este pên-dulo a balançar é na verdade a percepção de uma quaseinimaginavelmente pequena diferença de energia. Por ou-tras palavras, o balançar de um pêndulo é, surpreendente-mente, uma janela aberta sobre o mundo quântico. Devonotar que em qualquer discussão sobre o tempo é absolu-tamente indispensável que exploremos pelo menos algunsaspectos do mundo quântico, de tal forma que a minhaintenção agora é passar da descrição daquilo que pensa-mos ver como um pêndulo a contar os segundos para aquiloque realmente vemos.

Neste ponto, preciso de referir algumas das peculiari-dades fundamentais da mecânica quântica. Um aspectoessencial da mecânica quântica é o dualismo onda-partí-cula, o facto de um objecto, tal como um electrão ou umpêndulo, se comportar simultaneamente como uma partí-cula e como uma onda. Não se iludam pensando que amecânica quântica é a ciência do muito pequeno: ela é aciência de tudo, dos electrões aos elementos, aos elefantese às galáxias inteiras — apenas podemos, em geral, utilizardescrições mais simples no caso dos objectos grandes. Noentanto, vou usar a mecânica quântica e o dualismo onda--partícula para compreender o balançar de um pêndulo.A segunda coisa que precisamos de saber é que a localiza-ção de uma partícula — o pêndulo — é descrita por umafunção matemática chamada função de onda. Se conhecer-mos a função de onda para a partícula, podemos prever aprobabilidade de a encontrar num dado ponto do espaço,

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calculando o quadrado da sua função de onda. Em algunslocais existe uma grande probabilidade de encontrar apartícula; noutros, existe uma probabilidade muito menor;em alguns locais, nos quais a função de onda se anula, nãoexiste qualquer hipótese de encontrar a partícula. Nãoprecisamos de nos preocupar com o modo como se obtéma função de onda para um sistema particular, como estepêndulo. Existe um procedimento bem estabelecido para ofazer e, de facto, as funções de onda de um pêndulo sãobem conhecidas.

Verifica-se que existem funções de onda apenas paracertos valores de energia, de tal forma que o pêndulo possuiuma hierarquia específica de funções de onda. Os valorespermitidos de energia para o pêndulo diferem uns dosoutros por pequeníssimas quantidades, de modo que, emtermos práticos, o pêndulo pode ser colocado em qualquerenergia que escolhamos. O que quero aqui demonstrar éque aquilo que vemos quando olhamos o pêndulo a balan-çar corresponde a observar directamente a separação entreos seus níveis de energia, fornecidos pela mecânicaquântica. A identidade de um pêndulo é, na verdade, aseparação energética entre os seus níveis quânticos.

Para compreendermos melhor a verdadeira identidadede um relógio de pêndulo, precisamos de conhecer umacaracterística adicional da mecânica quântica, designadapor princípio da sobreposição de estados, ou apenas prin-cípio da sobreposição. Este princípio diz-nos que paraobtermos a função de onda real temos de adicionar todasas funções de onda correspondentes ao conjunto de esta-dos em que o sistema se pode encontrar. Assim, por exem-plo, se temos dúvidas se se pode associar ao sistema afunção de onda A ou a função de onda B, escrevemos afunção de onda real como a soma das funções de onda Ae B. De seguida, calculamos o quadrado da função de onda

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composta, para localizarmos a partícula. Trata-se de umadiferença profunda relativamente à descrição fornecidapela física clássica, onde se adicionam probabilidades. Deacordo com a mecânica quântica, adicionamos funções deonda, e só depois calculamos as probabilidades a partir dafunção de onda composta. A diferença entre os dois pro-cedimentos reside no facto de a função de onda possuirregiões de amplitude positiva e regiões de amplitude nega-tiva; quando duas funções são sobrepostas, interferem umacom a outra, aumentando-se reciprocamente quando osseus máximos se combinam e anulando-se quando ummínimo de uma coincide com um máximo da outra.

Apliquemos agora estes conhecimentos ao nosso pêndu-lo. Se o pusermos em movimento, não podemos estar se-guros de que se lhe pode associar um estado quântico único,e, mesmo que assim fosse, as colisões do pêndulo com asmoléculas de ar acarretariam constantes alterações do seuestado quântico. Assim, a função de onda real do pênduloé uma sobreposição de um número muito grande de fun-ções de onda, cada uma delas correspondente a um estadoquântico diferente e diferindo ligeiramente em energia.Estas funções de onda somam-se então umas às outraspara produzir uma função de onda composta que é zeroem todos os pontos, excepto num intervalo muito pequenode posições onde todos os máximos das funções de ondaparcela coincidem. Contudo, cada uma dessas funções deonda varia com o tempo, e a posição nas quais a suasobreposição se adiciona para dar o pico estreito em quenão se anulam desloca-se um pouco à medida que o tempopassa. Podemos calcular a forma da função de onda totalao longo do tempo, verificando que o pico de nãoanulamento da função balança para trás e para a frente,periodicamente. Quando interpretamos o quadrado destafunção de onda como a probabilidade de encontrarmos o

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pêndulo numa determinada posição, vemos que ela repro-duz o familiar balançar do pêndulo. Assim, ao olharmospara o pêndulo a balançar, estamos na verdade a observara localização do pico de probabilidade associado à funçãode onda total do pêndulo.

É nesta altura que surge o aspecto mais extraordinário.Pode demonstrar-se matematicamente — ou através dasimulação computacional — que a frequência com que opico da função de onda balança para trás e para a frentenão é senão a separação de energia entre níveis quânticosvizinhos, expressos como uma frequência (dividindo aenergia pela constante de Planck, h= 6,6261 × 10−34 Js).Isto é realmente extraordinário: significa que um pênduloa balançar é uma imagem directa da incrivelmente dimi-nuta diferença de energia associada à separação entre esta-dos quânticos. Quando estamos a observar um pêndulo abalançar, estamos a percepcionar directamente a separa-ção de energia entre estados quânticos, e cada período deoscilação do pêndulo é uma manifestação macroscópicadaquela pequeníssima quantidade.

Considerarei agora outro aspecto do tempo que mostraa sua peculiaridade intrínseca e nos fornece uma compre-ensão adicional daquilo que representa. Os químicos inte-ressam-se tanto pela temperatura como pelo tempo. Estãointeressados no tempo no sentido em que as reacções quí-micas decorrem durante um dado período e a velocidadecom que os produtos das reacções são formados é de crucialimportância para a indústria e para a biologia. Por exem-plo, na figura 5 mostra-se um gráfico que indica como aconcentração de três substâncias varia com o tempo. Nareacção considerada, a substância A transforma-se na subs-tância B, e esta na substância C. Podemos ver que a con-centração de B passa por um máximo num instante parti-

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cular, de tal forma que, se estivéssemos numa fábrica ondese pretendesse produzir essa substância, poderíamos saberquando a teríamos produzido na sua concentração má-xima, procedendo então à sua extracção do vaso de reac-ção. Se esperássemos mais tempo teríamos um prejuízo,visto que o rendimento do processo decresceria, por a subs-tância útil, B, se ter transformado mais extensamente noproduto indesejado, C.

Os químicos interessam-se pela temperatura, em grandeparte porque as reacções químicas em geral se dão mais rapi-damente a temperaturas mais elevadas. A maioria das reac-ções químicas tem velocidades que dependem da temperatu-ra de uma forma muito simples, e a mesma lei aplica-se tantoa reacções químicas que ocorrem em tubos de ensaio comoàquelas que nos mantêm vivos. Por exemplo, uma das estra-tégias adoptadas pelo corpo para se defender contra as infec-ções consiste em aumentar a sua temperatura — chamamosa este efeito febre —, porque isto afecta o delicado balanço

Figura 5 — Curvas de variação da concentração aolongo do tempo relativas a duas reacções conse-cutivas A → B → C, para o caso em que as veloci-

dades das duas reacções são idênticas

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entre as velocidades de várias reacções químicas que têmlugar nas bactérias e, em resultado disso, elas morrem.

Porque decidi então falar aqui sobre a temperatura, numcontexto em que o assunto em discussão é o tempo? Faço-oporque existem várias analogias muito peculiares entretemperatura e tempo, e gostaria de dedicar algum tempo aeste assunto.

O fundamento da analogia entre a temperatura e otempo é a semelhança entre a equação de Schrödinger, aequação fundamental da mecânica quântica, e a equaçãopara a energia de uma colecção de partículas que resultada mecânica estatística, o estudo das propriedades térmi-cas de um conjunto numeroso de partículas. A equação deSchrödinger é a seguinte:

tiH

Tudo aquilo que precisamos saber é que H é uma formade exprimir a energia e que i é a raiz quadrada de −1.Voltarei a este ponto mais adiante. A quantidade ∂Ψ/∂tcorresponde à variação da função de onda, Ψ, ao longo dotempo, t. Não precisamos de nos preocupar com os deta-lhes: apenas com a forma geral da equação, e de notar apresença do número imaginário, i.

Se estivesse a fazer mecânica estatística e quisesse calcu-lar a energia, E, de um sistema constituído por muitas par-tículas, a uma temperatura T, usaria a seguinte equação:

Tq

kEq/1

onde q representa uma função matemática designada fun-ção de partição e k é uma constante fundamental conhe-cida por constante de Boltzmann. De novo, tudo aquilo de

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que precisamos aqui é de observar a forma geral destaequação, não de conhecer os seus detalhes.

Uma função de onda contém toda a informação dinâ-mica sobre o sistema; uma função de partição transportatoda a informação termodinâmica sobre o sistema. O pontocrucial é que podemos transformar a equação termodinâ-mica na equação de Schrödinger fazendo a seguinte subs-tituição:

tk

iT

1

Por outras palavras, a temperatura é um tempo imaginá-rio. A consequência prática desta identificação é que as equa-ções que têm vindo a ser desenvolvidas para descrever aalteração dos sistemas no tempo podem ser adaptadas paradar conta dos efeitos de alteração da sua temperatura. Maisinformalmente, podemos pensar no tempo como sendo com-plexo, no sentido de possuir uma componente real e outraimaginária, sendo a componente real o tempo «ordinário» ea parte imaginária (a parte proporcional a i) a temperatura.Os matemáticos representam os números complexos com aforma z = x + iy por um ponto num gráfico com o eixo ho-rizontal designado por re z = x e o eixo vertical por im z = y,de tal modo que podemos representar tempo e temperaturapor um ponto num plano representando o tempo complexoυ = t + i(k/Σ)(1/T), com o tempo real, re υ = t, disposto aolongo do eixo horizontal e o tempo imaginário, im υ = k/ΣT,disposto ao longo do eixo vertical. Assim, em vez de pensar-mos em aquecer ou arrefecer objectos, podemos pensar emdeslocá-los no plano do tempo complexo.

É aparentemente pouco significativo considerar-se a tem-peratura como tempo imaginário, mas isso conduz à se-guinte questão: a expressão termodinâmica para a energia

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é obtida a partir de algumas assunções muito simples— referir-me-ei a elas de seguida — e faz-nos compreendera natureza da temperatura; vimos que ela se parece com aequação de Schrödinger para a evolução de um sistemacom o tempo; será então possível obter a equação deSchrödinger de uma forma análoga e alcançar uma com-preensão mais profunda do significado do tempo?

Até certo ponto, a resposta é afirmativa, mas não pre-tendo atribuir ao que acabei de dizer um significado tãofundamental. Isto pode, no entanto, conduzir a algumasideias. A derivação da equação termodinâmica baseia-seno conceito de ensemble, um número infinito de réplicasimaginárias do sistema real. O comportamento destecorresponde, na verdade, ao comportamento médio datotalidade do ensemble. Com efeito, assumimos que tudoe cada coisa pode acontecer a cada membro do ensemblesujeito a uma série de condições. Uma dessas condições éque cada membro do ensemble tenha a mesma temperatu-ra (para os especialistas, estou a referir-me ao ensemblecanónico). Se agora, por analogia, considerarmos que umsistema dinâmico possui um número infinito de réplicasimaginárias, e que tudo e cada coisa pode acontecer a cadamembro do ensemble sujeito a um conjunto de condições,então deveremos considerar o comportamento dinâmicoreal observado do sistema como sendo o comportamentomédio do ensemble como um todo. Por analogia com ocaso termodinâmico, podemos esperar obter qualquer coisaparecida com a equação de Schrödinger se o constrangi-mento que impusermos for, em vez da temperatura, otempo. Então, talvez tudo o que esse tempo é seja o parâ-metro que todos os membros destas réplicas-sombra douniverso possuem em comum. Tal como no caso termodi-nâmico, talvez não haja regras absolutas de comportamentodinâmico, as quais aparentemente emergem apenas quando

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tomamos a média sobre o comportamento dinâmico detodas as réplicas. Em resumo, o tempo surge-nos aqui comoum parâmetro que traz uma ordem causal aparente a umuniverso evolutivo caótico, não governado.

Tentei apresentar neste texto uma perspectiva do tempode um químico-físico, incluindo algumas analogias extraor-dinárias que permitem estender o conceito de tempo aoplano complexo e reconhecer que a temperatura pode servista como a extensão complexa do tempo. Vimos que osentido natural de viajar para a frente no tempo é conse-quência de dois processos fundamentais simples, a tendên-cia natural para a matéria se dispersar e a tendência natu-ral para a energia se dispersar. Estes processos simples sãosuficientes para dar conta de todas as transformações: sãoa força impulsionadora essencial da transformação, omotor do universo. A nossa percepção da passagem dotempo não é mais do que uma manifestação da formaçãoe do esvanecimento irreversíveis da memória. Finalmente,procurando analogias entre temperatura e tempo, encontrá-mos uma interpretação profunda da natureza da causali-dade, reconhecendo que talvez não haja leis absolutas afuncionar no universo, e que o que percebemos como com-portamento causal, sistemático, organizado, é a médiaestatística de acontecimentos aleatórios interligados pelapropriedade comum que percepcionamos como tempo.

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O tempo da química-física

LUÍS G. ARNAUT

Departamento de Química, Universidade de [email protected]

A química é a ciência que estuda a composição damatéria e as propriedades, interacções e transformaçõesdos elementos e dos compostos que a constituem. Nestecampo muito vasto da ciência, distingue-se a química-físi-ca, como a parte da química que estabelece e desenvolveos princípios usados para explicar e interpretar as observa-ções sobre a composição, as propriedades e as transforma-ções da matéria1. A transformação dos elementos e com-postos envolve necessariamente um critério de mudança eapela ao seu estudo em função da variável tempo. As esca-las temporais em que podem ocorrer as transformaçõesquímicas são extremamente variadas. Entre as transforma-ções mais lentas, encontram-se os processos geológicos, emque os decaimentos radioactivos de elementos mais pesa-dos em elementos mais leves deixam a marca do tempo nasrochas ou em vestígios dos nossos antepassados. Já a cor-

1 P. W. Atkins. Ver bibliografia.

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rosão de alguns metais pode ocorrer durante o tempo devida de um ser humano (80 anos ≅ 2,5 × 109 s). O tempode cozedura dos alimentos é também facilmente mensurávelpor observação visual. O mesmo já não acontece com astransformações que se completam em menos de décimas desegundo, como a precipitação de um sal ou a neutralizaçãode um ácido, pois a vista já não distingue imagens comessa separação temporal. Porém, como veremos maisadiante, há técnicas especiais que permitem resoluções tem-porais muito mais finas e que permitem estudar transfor-mações extremamente rápidas. Muitas das transformaçõesque só podem ser estudadas com recurso a essas técnicassão de extraordinária relevância para a nossa vida. Porexemplo, tal como Atkins enuncia na sua lição, a percepçãode uma imagem é iniciada por um processo ultra-rápidoque ocorre quando um raio de luz atinge os nossos olhose é absorvido por uma molécula chamada retinal. A figura6 ilustra a escala temporal das transformações químicasque actualmente podemos estudar fazendo uso da tecnolo-gia desenvolvida para esse fim.

Figura 6 — Gama de transformações dos elementos e compostosque podem ser medidas experimentalmente. (Adaptado de Ciné-

tica Química, de S. J. Formosinho e L. G. Arnaut)

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A descrição quantitativa das transformações dos ele-mentos e compostos requer a definição de uma grandezaque envolva uma medição da quantidade dos elementos oucompostos que se transformam em função da variável tem-po. A escolha mais simples consiste no registo do númerode espécies que se transformam por unidade de tempo, eque se designa por velocidade de reacção. Por exemplo, nocaso do retinal podemos escrever:

Velocidade de reacção = (variação do númerode moléculas de retinal)/(unidade de tempo)

Os primeiros estudos das velocidades de transformaçãode compostos químicos parecem remontar a 1850, comLudwig Wilhelm, que investigou pela primeira vez a velo-cidade da inversão do açúcar da cana na presença de áci-dos, e formulou a lei matemática do progresso de reacções.Poderá parecer estranho que um factor tão óbvio como éo estudo da variável tempo na «afinidade química» nãotenha surgido mais cedo. Um dos obstáculos a este desen-volvimento estava na ausência de preparação matemáticados químicos da época.

Os trabalhos precursores de Harcourt e Esson, entre1864 e 1868, são um modelo de meticulosidade experi-mental e teórica, que muito contribuíram para o desenvol-vimento inicial do estudo da variável tempo nas transfor-mações químicas. Apesar disso, Harcourt refere a sua faltade preparação matemática e a sua incompreensão de mui-tos dos tratamentos matemáticos dos seus trabalhos cien-tíficos, tratamentos esses devidos ao matemático Esson(professor de Geometria em Oxford). Tais desenvolvimen-tos matemáticos eram suficientemente complexos para nãoserem completamente entendidos por outros matemáticosseus contemporâneos e, por maioria de razão, pelos quími-

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cos da época. Para além das dificuldades matemáticas, estesautores tiveram também de defrontar inúmeras dificulda-des conceptuais e técnicas. O estudo das transformaçõesquímicas requeria reacções relativamente lentas que pudes-sem ser iniciadas e paradas rápida e facilmente. As reacçõesque melhor satisfaziam tais condições experimentais erambastante complicadas. Apesar de Harcourt reconhecer quetais reacções se não davam num único passo, estava longede poder reconhecer todas as suas complexidades. Foi adificuldade em encontrar a simplicidade na observaçãomacroscópica e na correspondente interpretação microscó-pica que atrasou o desenvolvimento desta área do conhe-cimento.

Também os trabalhos de Guldberg e Waage, da mesmaépoca, resultaram da associação de um professor de mate-mática aplicada e de um químico. Guldberg e Waage al-cançaram o conceito de equilíbrio químico através das leisde mecânica clássica: haveria duas forças opostas, umadevido aos reagentes, outra aos produtos, que actuavamdurante a reacção química e que se poderiam equilibrar.Numa analogia da teoria de gravitação, tais forças seriamproporcionais ao produto das massas das diferentes subs-tâncias. Aliás, duas leis foram estabelecidas: uma relativa-mente às massas e outra ao efeito do volume, e só poste-riormente foram condensadas numa única lei, relativa àsconcentrações ou «massas activas».

A formulação de leis que explicassem a variação donúmero de elementos ou compostos com o tempo, as cha-madas leis de velocidade de reacção, deu origem ao queactualmente se designa por cinética química. Com um sé-culo e meio de existência, uma das grandes tarefas dacinética química continua a ser prever as velocidades dasreacções e relacioná-las com a composição da matéria esuas propriedades.

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O nosso conhecimento da composição da matéria muitobeneficiou com a descoberta dos raios X, em 1895, porRoentgen. Nos anos 1910-1930, os raios X começaram aser aplicados ao estudo da composição da matéria e, muitopela mão de Linus Pauling, introduziram a escala das dis-tâncias na estrutura das moléculas, proporcionando umprimeiro entendimento da natureza da ligação química. Deforma análoga, a invenção do maser (em 1954), seguida deperto pela invenção dos laseres (em 1958-1960), rapi-damente encontrou uma utilização privilegiada em ciné-tica química. Já em 1949, Norrish e Porter tinham inven-tado uma técnica de estudo de velocidades rápidas,designada fotólise por relâmpago, que fazia uso de flachesde uma lâmpada de alta potência com uma duração de ummilissegundo. Para a época era um desenvolvimento ex-traordinário, pois permitia iniciar o estudo de uma reacçãomuito mais rapidamente do que pela mistura dos reagentes.A mistura e homogeneização de dois compostos para ini-ciar uma reacção tem sempre um «tempo morto» de al-guns segundos. Uma transformação muito rápida tem tem-po de ocorrer completamente neste intervalo de tempo,pelo que não é possível medir a sua velocidade. A invençãoda fotólise por relâmpago permitiu detectar compostos quese formavam e consumiam muito rapidamente no curso deuma transformação química, demonstrando que muitastransformações ocorrem através de uma sequência de pas-sos de formação e consumo de intermediários da reacção.A utilização de laseres pulsados em vez de flaches de lâm-padas permitiu reduzir substancialmente a duração doflache de luz que inicia a transformação e aumentar dra-maticamente a intensidade dessa luz. Hoje em dia utili-zam-se laseres cujo pulso de luz pode ter uma duração deapenas alguns femtosegundos. Para ter a percepção do queé um femtosegundo (10-15 do segundo), podemos dizer que

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a duração dos pulsos mais curtos dos laseres actuais estãopara o segundo na mesma proporção em que uma horaestá para toda a idade do universo (dez a vinte mil milhõesde anos).

Parece incrível que transformação da matéria possaocorrer num tempo tão curto. Porém, essa é a escala emque se movimentam os átomos. O movimento relativo dosátomos de uma molécula diatómica pode, numa aproxima-ção elementar, ser comparado com o de duas massas uni-das por uma mola elástica. A frequência de vibração ν deuma tal mola depende da sua força de restauro e ocorrepara valores bem característicos. As energias a que ocor-rem as vibrações das moléculas diatómicas estão compre-endidas entre os 300 e os 3000 cm−1 (4 a 40 kJ mol−1), peloque podem ser observadas usando radiação no infraver-melho. Estas energias relacionam-se com as frequências deoscilação (ou vibração) respectivas, segundo a equação dePlanck

E = hv

onde h = 6,626 × 10−34 J s é a constante de Planck. Assim,é possível calcular que uma ligação entre dois átomos numamolécula executa tipicamente 1013 − 1014 oscilações por se-gundo, ou seja, em cada 100 a 10 femtosegundos é execu-tada uma vibração. O objectivo último do estudo da variá-vel tempo em química é obter uma sequência de imagensdo movimento vibracional de uma ligação química no actode se quebrar, para descrever completamente o acto maissimples da transformação da matéria. Note-se que no in-tervalo de tempo de 10 femtosegundos, os átomos de umamolécula diatómica percorrem uma distância relativa deapenas 2x10-12 m, ou seja, dois picómetros. Mais uma vez,para dar uma ideia de escala, o picómetro está para o

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metro assim como o metro está para a distância entreSaturno e o Sol. Ainda assim, estas distâncias podem sermedidas pelas técnicas de raios X convencionais, que fa-zem uso de fontes contínuas de raios X. O grande desafioque a química hoje enfrenta no estudo da variável tempoé o desenvolvimento de fontes de raios X pulsadas, em par-ticular que produzam pulsos de femtosegundos. O fabricode tais raios X pulsados, que é o propósito de muitas equi-pas científicas que trabalham com sincrotrões e plasmasgerados por laseres, levará à criação de uma nova área daquímica, a dinâmica estrutural.

A dinâmica estrutural combinará a resolução espacialatómica dos raios X com a resolução temporal de femtose-gundos dos laseres. A visualização dos movimentos atómi-cos na matéria revolucionará a nossa visão de como fun-ciona a natureza. Um resultado possível do conhecimentodo movimento dos átomos será a capacidade de o manipu-lar, orientando os átomos sobre determinados caminhospreferenciais e levando-os a formarem novas formas dematéria.

Vimos como a cinética química estuda as viagens doselementos e compostos entre formas mais ou menos está-veis, ou energéticas, da matéria. É um percurso com para-gens em inúmeros intermediários, que correspondem acapítulos da história da transformação dos elementos ecompostos. Como explica Atkins na sua lição, o fim dahistória será a dispersão da matéria e da energia. Mas os10 a 20 mil milhões de anos que já passaram e os milharesde milhões de anos que hão-de vir estão repletos de fasci-nantes capítulos de femtosegundos. No insignificante lapsode tempo em que fizemos parte desta viagem, apercebemo-nos já das escalas em que ocorrem os processos de trans-formação da matéria. No futuro poderemos vir a controlar

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esses processos de transformação e determinar grande parteda nossa própria história.

Bibliografia

ATKINS, P. W., e PAULA, J. de (2001), Physical Chemistry, OxfordUniversity Press, 7.a ed.

FORMOSINHO, S. J., e ARNAUT, L. G. (2003), Cinética Química,Imprensa da Universidade de Coimbra.

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Comentários à conferência«A química-física do tempo»

JOSÉ GASPAR MARTINHO

Instituto Superior Técnico, Universidade Técnica de [email protected]

A questão do tempo no contexto da química-física foiapresentada por Peter Atkins, de uma forma muito interes-sante, a partir da segunda lei da termodinâmica. Dirigin-do-se a um público de não cientistas, Atkins enunciou asegunda lei da termodinâmica com a frase: things get worse(as coisas vão piorando). Em seguida foi refinando o enun-ciado, para concluir, baseado em exemplos do dia-a-diacriteriosamente escolhidos, que a segunda lei da termodinâ-mica fornece um sentido para a evolução do universoassente na tendência da matéria e da energia para se espa-lharem, no que é entendido como desordem. A desordemé em seguida, de uma forma suave, associada à funçãotermodinâmica entropia. A introdução do conceito de

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entropia permitiu então a Atkins enunciar de uma formacientífica a segunda lei da termodinâmica: a entropia au-menta em cada processo natural.

Assim, e de acordo com este enunciado, os sistemasisolados (em que não existem trocas de matéria nem deenergia através da fronteira) evoluem para um estado deentropia máxima (equilíbrio), em que deixa de haver varia-ção de entropia. Ao espectador atento surge então a ques-tão de saber se o universo evoluirá ou não para um estadode entropia constante e desordem máxima. O orador nãose debruçou sobre este assunto, certamente porque a res-posta é, ainda hoje, controversa. Basta referir a presençade fortes campos gravíticos no universo para compreenderque a extrapolação da segunda lei da termodinâmica parao universo carece de fundamentação científica. Mesmoassim, podemos imaginar que, num sistema tão complexocomo o universo, a produção de entropia (variação deentropia com o tempo) pode vir a ser nula, por cancela-mento da entropia gerada nos processos onde há aumentoda desordem com aqueles onde a ordem aumenta. Paraque tal seja possível, é necessário que o universo possa serdividido em subsistemas que interajam trocando entre simatéria ou energia. Atkins invocou o funcionamento domotor de combustão para explicar como a desordem ma-terial e energética gerada pela combustão (aumento deentropia) pode ser utilizada para gerar processos (ordena-mento de uma pilha de tijolos) com produção negativa deentropia. O orador terminou esta parte da sua palestracom uma palavra de esperança sobre o futuro, referindoque muitos dos processos ocorrem muito lentamente e quea biosfera evolui por processos que levam à selecção natu-ral das espécies.

A consciência da evolução conduz-nos à noção de tem-po. O símbolo da sua passagem é o movimento oscilatório

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COMENTÁRIOS À CONFERÊNCIA «A QUÍMICA-FÍSICA DO TEMPO» 77

do pêndulo, cuja percepção é feita através da visão. PeterAtkins aproveitou este facto para nos introduzir no mundomaravilhoso da visão. Começou por explicar como a partirda absorção de um fotão de luz visível pelo cromóforo cis-retinal, ligado covalentemente à proteína opsina, se gera osinal químico que depois é transformado, nas células donervo óptico, num sinal eléctrico que é transmitido aocérebro. A absorção do fotão induz a isomerização cis-trans ultra-rápida do cromóforo (ocorre em cerca de 200fs, sendo 1fs = 10−15 s), e a energia de excitação electrónicaé utilizada para gerar outras formas da proteína, com ele-vada energia torsional, e que terminam com a quebra daligação covalente do cromóforo à opsina. É este o processoque inicia a geração do impulso eléctrico na membrana dascélulas do nervo óptico. Atkins explicou, pormenorizada-mente, os mecanismos da visão, e aproveitou para chamara atenção para o facto de muitos dos processos serem regu-lados pela segunda lei da termodinâmica.

Passado este parêntesis, Peter Atkins voltou ao tema daconferência e à explicação do movimento oscilatório dopêndulo. Aqui, recorrendo a um pêndulo improvisado quefez oscilar, interrogou-se sobre se a nossa percepção dofenómeno correspondia a uma realidade ou era pura fic-ção. Deste modo preparou o público para um novo assunto,com elevado grau de abstracção — a mecânica quântica —,que fez surgir a partir da dualidade onda-corpúsculo.A partir deste momento, centrou a sua palestra na descri-ção ondulatória do movimento da bola do pêndulo e dasua localização instantânea. Invocou a necessidade de re-correr à sobreposição de funções de onda para localizar abola do pêndulo e associou o máximo de amplitude daonda soma à sua localização instantânea. Recorrendo aresultados de simulação, explicou, com base na mecânicaquântica, a oscilação do pêndulo de uma forma muito cla-

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ra, que foi seguida pela assistência sem dificuldade. Porfim, realçou a singularidade do oscilador harmónico e iden-tificou a percepção da frequência da oscilação do pêndulocom a frequência do fotão envolvido na transição entreníveis de energia quânticos consecutivos.

Na parte final da sua palestra, Peter Atkins ligou otempo à temperatura, recorrendo, por um lado, à equaçãode Schrödinger dependente do tempo,

dtd

iH ˆ (1)

e, por outro, à relação da mecânica estatística entre aenergia e a função de partição

Tdq

kEq/1 (2)

Como no caso de a função de onda ser uma funçãoprópria do operador hamiltoniano se verifica que

EH (3)

Peter Atkins igualou os segundos membros das equações1 e 2, para obter a relação

tk

iT

1(4)

entre a temperatura e o tempo.Em rigor científico, esta analogia não permite afirmar,

tal como o fez Atkins, que a temperatura é um tempoimaginário! A justificação de que ambas as energias sãomédias, uma sobre vários estados de energias ligeiramente

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COMENTÁRIOS À CONFERÊNCIA «A QUÍMICA-FÍSICA DO TEMPO» 79

diferentes para um dado tempo t (energia quântica) e aoutra sobre diferentes estados com a mesma temperatura,T, do ensemble canónico (energia termodinâmica), apenasjustifica a forma das equações. Relações entre a mecânicaquântica e a termodinâmica dos processos irreversíveisforam já estabelecidas, mas nunca permitiram relacionar atemperatura (grandeza característica de estados de equilí-brio) com o tempo (associado à dinâmica dos processos).No entanto, esta analogia matemática pode ser útil, namedida em que permite usar o formalismo matemático damecânica quântica para tratar assuntos da termodinâmicados processos irreversíveis e vice-versa.

Peter Atkins, de uma forma hábil, pegou no problemado tempo para, de uma maneira clara e muitas vezes entu-siástica, nos conduzir da termodinâmica clássica à mecânicaquântica, passando pela bioquímica e pela espectroscopia.Ao basear a sua palestra na segunda lei da termodinâmica,realçou, tal como Ilya Prigogine na lição que proferiuquando da atribuição do Prémio Nobel da Física, em 1977,a importância desta lei na evolução e fundamentação daciência moderna.

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O tempo em biologia

LEWIS WOLPERT

University College [email protected]

O tempo desempenha um papel fundamental na biolo-gia, em particular na evolução e no desenvolvimento em-briónico. O tempo interpenetra também os nossos genes, enós, tal como a maioria dos animais, possuímos um reló-gio circadiano interno que afecta o nosso comportamento.

Evolução

A vida surgiu há cerca de 3 mil milhões de anos, embo-ra não saibamos ainda como. A célula é, neste sentido, overdadeiro milagre — não no sentido religioso, mas no dofantástico — da evolução. Dispondo da célula, tudo o restosurge com o tempo... No entanto, não se sabe ainda comosurgiu a primeira célula.

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82 TEMPO E CIÊNCIA

O tempo é uma característica fundamental da vida, vistoque um dos seus aspectos essenciais, a replicação celular,ocorre com o passar do tempo. O processo básico que levaà replicação celular consiste, basicamente, no crescimentoe divisão celulares. Ao longo do tempo, todos os compo-nentes da célula crescem e a informação genética contidano seu ADN é duplicada, resultando na divisão celular, naqual uma célula origina duas células filhas. Este processo,conhecido por ciclo celular, envolve uma sequência tempo-ral de eventos, nos quais todos os componentes da célulasão duplicados e posteriormente distribuídos pelas célulasfilhas no momento da divisão. É um processo cuidadosa-mente controlado, havendo pontos de controlo, ao longodo ciclo, que asseguram que todas as etapas requeridas sãocumpridas.

As células isoladas tiveram muito sucesso, sendo porisso difícil explicar os motivos que levaram ao apareci-mento dos organismos multicelulares. Não podemos ter acerteza, mas existe um modelo que propõe que uma mu-tação num organismo unicelular resultou na impossibili-dade de as suas células filhas se separarem após a divisãocelular. Uma colónia de células fracamente agregadaspoderia então ter surgido e, ocasionalmente, ter-se frag-mentado. O acontecimento-chave pode ter-se dado quandoos nutrientes se tornaram escassos e as células isoladasnão foram capazes de sobreviver, enquanto nos agrega-dos celulares a morte de algumas das células forneceuos nutrientes necessários à sobrevivência das restantes.Após mutações subsequentes, uma célula pode ter sidoescolhida para não morrer e ser alimentada pelas outras —o que constitui a origem do ovo. Outro acontecimentofundamental terá sido a restrição da divisão celular emcélulas da colónia, de tal forma que o ovo pudesse darorigem a uma nova colónia, por divisão celular. É sur-

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preendente que ainda hoje as células germinais da esponjacresçam alimentando-se das suas vizinhas, um compor-tamento que se pode, pois, reportar há milhões de anosatrás.

De facto, faz parte da natureza da evolução que nodesenvolvimento embriónico permaneçam marcas danossa ancestralidade longínqua. Ernst Haeckel, em 1868,propôs mesmo que a ontogenia (o desenvolvimento doindivíduo) recapitularia a filogenia (o desenvolvimento daespécie), o que significa que os estágios de desenvolvi-mento embriónico se assemelhariam aos animais adultos apartir dos quais evoluímos. Por exemplo, todos os ver-tebrados, incluindo os seres humanos, passam por umestágio embrionário no qual existem estruturas seme-lhantes às guelras dos peixes. Nós evoluímos de animaissemelhantes a peixes. No entanto, essas estruturas não sãorealmente guelras, mas antes estruturas semelhantes a guel-ras, a partir das quais as guelras se desenvolveram e que,ao longo da evolução, se modificaram para darem origema toda uma panóplia de outras estruturas, tais como osossos do maxilar inferior ou do ouvido médio. São osestágios embriónicos, não os adultos, que são recapitu-lados, visto que os primeiros foram sendo modificadospara poderem dar origem a novas estruturas. Este facto éparticularmente claro no caso da gastrulação, o processopelo qual o embrião realiza uma série de movimentos quelevam à formação do intestino e que fazem com que ascélulas externas do embrião, que darão origem a órgãosinternos como, por exemplo, os músculos, se desloquempara o interior. Todos os embriões animais passam pelafase da gastrulação, e subsistem ainda actualmente se-melhanças neste processo, no caso dos embriões huma-nos, com os que ocorriam nos nossos antepassados lon-gínquos.

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Desenvolvimento

No desenvolvimento embriónico existe uma sequênciaestrita de eventos envolvendo comportamentos celularesespecíficos. O que é que determina esta sequência? Existealgum «relógio» biológico que controla estas acções? Nãoé nada simples responder a estas perguntas. Algumas dassequências são simplesmente como uma sequência de reac-ções químicas, cada evento fazendo terminar o anterior.Outra imagem deste tipo de sequências é a de uma fila depeças de dominó que vão sendo derrubadas sucessivamenteumas pelas outras após o derrube inicial da primeira peçada fila. Não são peças de dominó, mas genes e proteínasque determinam a temporização da maioria dos eventosbiológicos. A essência do desenvolvimento embrionário é ocomportamento celular, e o comportamento das células écondicionado em grande parte pelas proteínas que estaspossuem. O tipo de proteínas que uma dada célula possuié, por sua vez, determinado pelos genes que nela se encon-tram activados, isto é, disponíveis para serem transcritos.Os genes são, em comparação com as proteínas, unidadespassivas e bastante aborrecidas, visto que não fazem nadapara além de armazenar o código necessário para a mon-tagem da sequência de aminoácidos que constituem asproteínas e os códigos de controlo que determinam onde equando o gene deve ser activado para que a proteína quecodifica possa ser efectivamente produzida. As proteínassão os feiticeiros das células e determinam o seu modo defuncionamento. O desenvolvimento celular envolve umarede complexa de interacções entre genes e proteínas.

Um bom exemplo da importância do tempo para odesenvolvimento é a activação de um novo gene no inícioda embriogénese de rã, Xenopus, um organismo muitasvezes utilizado como modelo pelos biólogos. O ovo destes

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animais é de grandes dimensões, possui uma grande gemae contém grandes quantidades de proteínas e de ARN men-sageiro, fabricados no organismo da mãe durante o períodode desenvolvimento do ovo, e que são usados como basepara o fabrico das proteínas codificadas no seu ADN.O ovo divide-se doze vezes, originando 4096 células muitomais pequenas, antes de qualquer novo gene se expressare de qualquer novo ARN mensageiro ser sintetizado.A alteração ocorre cerca de seis horas após a fertilizaçãoe relaciona-se com a quantidade de ADN presente nocitoplasma celular. Assim, se a molécula repressora se ligaao ADN e está presente desde o momento da fertilização,então, após cada divisão, a quantidade total de ADNaumenta e, em cada célula, a concentração do repressordiminui até que, abaixo de um determinado valor, osnovos genes são activados.

Outro exemplo é a capacidade para indução damesoderme no embrião Xenopus. A mesoderme, que origi-na durante a gastrulação órgãos internos como os múscu-los ou os ossos, é especificada num local do embrião porum tecido adjacente que lhe fornece um sinal indutor. Ascélulas receptoras do sinal são capazes de responder aoestímulo por um período de cerca de seis horas, e o sinaldeve ser fornecido durante duas horas — não importa exac-tamente quando, desde que ocorra durante o tempo decompetência das células para responder ao sinal. O meca-nismo subjacente ao período de competência não é conhe-cido, mas constitui um processo básico do desenvolvimentoembrionário.

Existem dois sistemas de desenvolvimento onde se pensaque o tempo é o mecanismo essencial envolvido no apare-cimento de padrões espaciais de diferenciação celular.O primeiro é a formação dos sómitos. Os sómitos são umasérie de blocos de tecido que se desenvolvem sequencial-

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mente ao longo do eixo anteroposterior dos embriões dosvertebrados. Estes blocos formam-se em sequência a cada90 minutos. Os sómitos dão origem à derme, vértebras,costelas e músculos esqueléticos das costas. A questão écomo são especificados estes blocos segmentados. As célu-las que dão origem aos sómitos possuem um relógio inter-no tal que certos genes se expressam em ciclos de 90 mi-nutos. É esta oscilação periódica na expressão dos genesque origina a sequência de sómitos através de mecanismosque não foram ainda compreendidos. Um modelo sugereque a oscilação especifica uma onda sinusoidal que deter-mina as fronteiras dos sómitos. É também possível que otempo esteja envolvido na activação de um conjunto degenes — os genes Hox — que conferem às células do eixoanteroposterior do embrião a sua identidade posicional e,assim, determinam como elas se devem desenvolver. Assituadas na parte dianteira formam, por exemplo, as vér-tebras cervicais, enquanto as mais posteriores originam asvértebras lombares, com costelas. Para isto poder ocorrer,as células têm de saber quantos ciclos de activação dosgenes já tiveram lugar: as células localizadas mais à frentesentiram apenas alguns ciclos, enquanto as localizadas maisatrás sentiram muitos.

O segundo sistema é o desenvolvimento dos membrosdos vertebrados. O desenvolvimento dos membros dosvertebrados pode ser descrito em termos de uma diferen-ciação do seu esboço inicial ao longo de três eixos numsistema cartesiano. Neste caso, consideramos o eixo pró-ximo-distal que vai do corpo às pontas dos dedos. De quemaneira, à medida que o esboço inicial do membro sedesenvolve, são especificados pela ordem correcta, porexemplo, o úmero, depois o rádio e o cúbito, os ossos dopulso e, finalmente, as falanges, que darão origem a ummembro superior completo? Para explicar essa diferencia-

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ção, propusemos um mecanismo temporal em que umgrupo especial de células localizado na ponta do esboço,na região designada por zona de progresso (que é especifi-cada pela zona da ectoderme que se lhe encontra sobreposta,designada crista ectodérmica apical), desempenha um papelcrucial. As células na zona de progresso vão-se multipli-cando e, visto que esta região do embrião possui dimen-sões fixas, as células vão-na abandonando continuamenteà medida que o membro se vai desenvolvendo. Propusemosque estas células são capazes de saber o tempo que passamna zona de progresso e que é isso que lhes indica a suaposição no membro e como se deverão desenvolver. Ascélulas que darão origem ao úmero abandonam mais cedoa zona de progresso, enquanto as que originarão os dedospermanecerão lá mais tempo. As evidências que suportameste modelo não são muito fortes, e ele tem sido criticadopor aqueles que crêem que os padrões básicos estão pre-sentes no esboço desde o início. Contudo, em defesa domodelo temporal podem referir-se os resultados de expe-riências em que se destroem células situadas na zona deprogresso, numa fase inicial de desenvolvimento do esboço.Esta destruição de células leva a que apenas algumas célu-las normais abandonem a zona de progresso nos estágiosiniciais do desenvolvimento, tendo-se verificado que, nes-tas condições, tanto o úmero como o rádio e o cúbito nãose formam. Contudo, como a zona de progresso é recons-truída, observa-se uma evolução normal em estágios maisavançados do desenvolvimento do esboço e as estruturasdistais (pulso e dedos) surgem relativamente normais. Estesresultados podem ser importantes também para a com-preensão do modo como a talidomida provoca anormali-dades na formação dos membros.

Foram já identificados genes que controlam o tempono processo de desenvolvimento na minhoca nemátodo

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Caenorhabditis Elegans. Estes genes controlam o tempo deformação da larva, provavelmente através do controlo daconcentração de alguma substância que decresce com otempo

É uma característica do desenvolvimento embrionário ofacto de as estruturas serem especificadas quando são ain-da muito pequenas, raramente com mais de cem células emqualquer direcção, e é só mais tarde, com o passar dotempo, que elas atingem a forma adulta. As diferentes estru-turas têm os seus próprios programas de crescimento, quepodem ser influenciados por hormonas. O braço humano,por exemplo, quando se forma possui menos de um centí-metro de comprimento e depois cresce durante cerca de 15anos até atingir a forma adulta. E deve salientar-se que,apesar de não haver qualquer ligação entre os dois braçosdurante todo esse período, eles se desenvolvem simulta-neamente e atingem praticamente o mesmo comprimento.Durante todos os anos necessários ao seu desenvolvimentointegral, o crescimento dos braços fica a dever-se à proli-feração das células e secreção da matriz óssea. Como ébem conhecido, nos seres humanos dá-se uma explosão nocrescimento pela altura da adolescência, à volta dos 12anos de idade — mais cedo nas raparigas que nos rapazes.As hormonas estão envolvidas na definição deste tempo,mas o seu mecanismo de acção não é conhecido.

Depois do crescimento vêm a idade adulta e a senes-cência, onde o tempo é de novo tudo. Animais diferentesenvelhecem de forma diferente — um rato torna-se velhono tempo necessário ao nascimento de um elefante, isto é,21 meses. Poucos animais selvagens atingem uma idade emque os sinais do envelhecimento são evidentes, porque emgeral morrem devido a outras causas. Por exemplo, 90%dos ratos selvagens morrem durante o seu primeiro ano devida. Mas é claro que o envelhecimento faz parte do ciclo

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biológico normal. A sua base genética é mais bem com-preendida em termos da teoria do corpo dispensável.Esta teoria sugere que os animais evoluem de forma aoptimizar a disponibilização ao organismo dos meios ne-cessários para prevenir que ele envelheça antes da repro-dução. Consumada a reprodução, a evolução deixa deactuar.

Mas quais as causas do envelhecimento? Em princípio,apenas o desgaste e a destruição estão envolvidos. Algunselefantes morrem de velhos apenas porque perderam osdentes. No entanto, parece existir algum mecanismo geralque leva ao envelhecimento. Quando no laboratório sãomantidos ratos em condições agradáveis, mas com umsuprimento alimentar reduzido a metade do normal, elesvivem cerca de 40-50% mais que os seus vizinhos bemalimentados. O rato mais velho submetido ao regime ali-mentar rico em calorias viveu cerca de mil dias, masalguns ratos submetidos ao regime alimentar restrito atin-giram os 1500 dias de vida. Os regimes alimentares têm deincluir vitaminas e sais minerais, mas não importa se ascalorias fornecidas provêm de açúcares, proteínas ou gor-duras. Um baixo regime calórico elimina a maior parte dasdoenças mais comuns nos animais idosos, como o cancro,a tensão sanguínea elevada e a deterioração das funçõescerebrais. Nos ratos fêmea, a idade a partir da qual ocorrea perda das capacidades reprodutivas passa dos 18 para os30 meses. Por outro lado, se o regime alimentar restrito éretirado e os animais são expostos ao regime alimentarnormal, o processo de envelhecimento parece ser então,curiosamente, efectivamente acelerado.

A minhoca C. Elegans tornou-se um dos modelos favo-ritos dos biólogos do desenvolvimento. Tem um númerofixo de células — exactamente 973 —, e esta foi uma dasrazões que levaram Sydney Brenner, recentemente galar-

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doado com o Prémio Nobel, a escolhê-la como objecto deestudo. Um exemplo extremo de um aumento do tempode vida foi observado para o nemátodo que tem cerca demetade do número de genes que nós temos e normalmentesó vive cerca de 25 dias. Se as minhocas forem colocadassob condições de limitação de alimento e sobrepopulação,então, em vez de se tornarem minhocas adultas passandopor diversos estados larvais, transformam-se num tipoalternativo de larva, conhecida como larva dauer. Estaslarvas nem se alimentam nem se reproduzem, mas, se ascondições melhorarem, transformam-se em adultos epodem reproduzir-se. As larvas dauer, com as suas entedian-tes vidas, podem, contudo, viver mais de 60 dias, isto é,mais do dobro de tempo das minhocas normais.

Porque podem as larvas dauer e os ratos subnutridosviver durante tanto tempo? A chave para esta perguntareside, muito provavelmente, no oxigénio e nos radicaislivres. O oxigénio é necessário às células para a produçãode energia a partir de moléculas derivadas dos alimentos.Esta produção de energia é essencial à vida e ocorre numapequena estrutura da célula chamada mitocôndria. Osradicais livres, que são moléculas extremamente reactivas,são um produto natural deste processo. Os radicais livrespodem danificar as mitocôndrias, levando a uma menorcapacidade da célula para produzir energia, o que é umadas características do envelhecimento. Estes danos provo-cados nas mitocôndrias conduzem à libertação de maisradicais livres, estabelecendo-se assim um processo autoali-mentado que torna as coisas cada vez piores à medida quecada vez menos energia é produzida.

As minhocas vivem apenas cerca de 20 dias. Se o siste-ma reprodutivo destas minhocas for removido, passam aviver quatro vezes mais tempo. Com manipulações genéti-cas suplementares foi possível criar animais que viveram

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mais de 120 dias, isto é, seis vezes mais que o tempo nor-mal de vida das minhocas. Em termos humanos, isto é oequivalente a viver-se cerca de 500 anos!

Há algumas indicações no sentido de que nós, sereshumanos, poderíamos também retardar o envelhecimentoreduzindo o número de calorias que ingerimos. Na ilhajaponesa de Okinawa, existem significativamente mais cen-tenários que em qualquer outra ilha japonesa. As mortespor AVC, doenças de coração e cancro são apenas cerca dedois terços das observadas no Japão como um todo e ataxa de mortalidade para indivíduos com 60 anos de idadeé metade da média nacional. É pouco provável que sejaapenas uma coincidência que a ingestão média de alimen-tos dos adultos na ilha de Okinawa seja, por razões cultu-rais, 20 por cento inferior à média japonesa, e que ascrianças em idade escolar comam menos de dois terços dasquantidades recomendadas no Japão.

Relógios biológicos

Sempre fiquei intrigado com o que determina o tempoque necessitamos de dormir. Sempre dormi muito, e sem-pre acreditei que precisava de o fazer. Também me foisempre muito difícil fazê-lo quando sujeito ao stresse, emespecial quando afectado por jet-lag. Não é claro que otempo esteja inserido no nossos genes, apesar de se encon-trarem relógios biológicos em todas as formas de vida, dasbactérias e minhocas aos seres humanos. Vivemos nummundo com dias e noites e tivemos de nos adaptar a ele.Em média, passamos 20 anos das nossas vidas a dormir.

Este assunto e o tema dos relógios biológicos em geralestão bem descritos num livro recente, Rythms of Life, deRussel Foster e Leon Kreitzman. Houve um avanço signi-

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ficativo na compreensão da natureza molecular dos relógiosbiológicos em resultado da descoberta do gene PER daDrosophila, pelo estudo de mutantes nos quais o temponecessário para emergência da mosca do casulo era distintodo requerido pelas moscas normais. Verificou-se que a pro-teína PER nas moscas adultas possui um ciclo circadianode 24 horas, em que a concentração da proteína atinge umvalor máximo cerca das 8 horas da manhã e se torna quaseindetectável a meio do dia. O ARN mensageiro associadoa esta proteína atinge um máximo de concentração cercade quatro a seis horas mais cedo que a proteína. As mu-tações introduzidas na PER alteram estes ritmos. Por exem-plo, uma mutação levou a um avanço no ciclo de quasecinco horas, enquanto outra conduziu a um igual atraso.

Um modelo antigo simples para explicar este processobaseava-se na ideia de que a proteína PER participava numciclo de auto-regulação (por realimentação negativa), queinibia a sua própria síntese. As proteínas são sintetizadasno citoplasma celular, isto é, fora do núcleo que contém oADN que as codifica. No núcleo, o código da proteína étranscrito do ADN para outro ácido nucleico, o ARN men-sageiro, que abandona posteriormente o núcleo e, nocitoplasma, participa na síntese da proteína. Neste modeloantigo, a ideia-chave era que a própria proteína PER pene-trava no núcleo celular e, em concentrações elevadas, ini-bia a síntese do ARN mensageiro que lhe está associado e,dessa forma, a sua própria síntese. Então a concentraçãoda proteína reduzir-se-ia ao longo do tempo, até atingirum nível tal que induziria a reactivação do gene ligado àsua produção. O processo de síntese era retomado e seriainiciado um novo ciclo.

Este modelo simples é a base do relógio biológico damosca, mas o relógio real é bastante mais complexo, paraque possa ser simultaneamente mais estável e preciso, es-

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tando outras proteínas também envolvidas no processo,para além da PER. Existem proteínas relacionadas com aproteína PER no rato cuja concentração oscila em perío-dos de 24 horas. Nos mamíferos, o relógio está associadoao ciclo diário luz/escuridão por meio de receptores espe-cíficos de luz presentes na retina. Os olhos estão ligados aorelógio biológico dos mamíferos através do cérebro (nú-cleo supraquiasmático), que envia uma variedade de sinaispara as diferentes partes do corpo e assim estabelece, porexemplo, os ciclos dormir/acordar.

Apesar de os diferentes organismos usarem um meca-nismo de auto-regulação controlado por realimentaçãonegativa, os pormenores são distintos em cada caso. Porexemplo, no peixe-zebra, os órgãos não neuronais têm umritmo circadiano que continua a funcionar mesmo quandoo órgão é removido do peixe e colocado em cultura. Esseritmo pode ser alterado usando diferentes tempos de expo-sição dos órgãos em cultura à luz.

Poderão aqueles que atravessam diferentes fusos horá-rios vencer o seu jet-lag ingerindo melatonina? Existemestudos recentes que afirmam que sim, para gáudio daque-les que, como eu, sentem frequentemente o desconfortodesta circunstância. A melatonina é secretada pela glândulapineal (epífise), no cérebro, durante os períodos de escuri-dão, e acerta o relógio principal do nosso corpo, que tam-bém está localizado no cérebro e controla o nosso ritmocircadiano diário. Esta região do cérebro possui cerca de50 mil células nervosas e os seus genes são activados edesactivados de um modo complexo de forma a permitirmedir o tempo. Este relógio pode também controlar a tem-peratura corporal, que é um grau mais alta durante a noiteque durante o dia (após uma noite bem dormida).

Apesar de os nossos relógios funcionarem com ciclos de24 horas, eles podem afectar o nosso comportamento de

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distintas maneiras. Alguns de nós — não eu... — estãoalerta e activos de manhã muito cedo, enquanto outrosfuncionam melhor de noite e se deitam normalmente muitotarde. O historiador Roy Porter escreveu mais de cemlivros durante a sua vida. Quando lhe perguntei comoconseguia fazer isso, disse-me que acordava muito cedoe começava a escrever por volta das 5 da madrugada.Quando lhe perguntei durante quanto tempo escrevia,ficou admirado com a pergunta — certamente durante amaior parte do dia. Ter-lhe-ão os seus genes fornecido umrelógio especial?

Sabe-se que os mais idosos produzem menos melatoninae por isso o seu sono está mais sujeito a perturbações.Mas, se sofrerem uma exposição forte à luz durante o dia,a produção de melatonina aumenta significativamente du-rante a noite e dormem muito bem. Uma perturbação gravedo sono relacionada com a idade avançada pode ocorrercom a doença de Alzheimer, visto que, nestes casos, sepodem perder células nervosas da região cerebral associa-da ao relógio biológico e os ciclos noite/dia dos indivíduosafectados podem estar desfasados de várias horas. Tor-nam-se então activos enquanto quem cuida deles querdormir. De novo, a exposição forte à luz durante o diapode ajudar. Os pacientes com depressão sesonal afectivatêm também padrões de sono perturbados e este estadopode igualmente ser tratado com luz. Muitos trabalhado-res têm empregos que contrariam o seu relógio biológiconatural — o trabalho nocturno é o exemplo óbvio. O seusono pode ser gravemente afectado.

Uma das mais interessantes conclusões acerca dos nos-sos relógios biológicos é que os médicos têm em geral igno-rado os períodos típicos de aparecimento de algumas doen-ças particulares e, como tal, também têm ignorado qual amelhor ocasião para fornecer os medicamentos e o trata-

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mento. A grande incidência de sintomas de asma ocorrecerca das 4 da madrugada e é esta a melhor altura paraefectuar os tratamentos. O risco de ataque cardíaco e AVCé cerca de 40 por cento maior entre as 6 da manhã e omeio-dia. Visto que tais doenças estão associadas a umatensão arterial elevada, parece boa ideia tomar a medica-ção para a reduzir durante a manhã. Outro exemplo é aartrite reumatóide, que é caracterizada por uma maiorsintomatologia durante a manhã, enquanto os sintomas daosteoartrite são piores à tarde e à noite. Esta diferença diá-ria da ocorrência da fase aguda deveria determinar a oca-sião em que seria conveniente proceder ao correspondentetratamento. A gota é mais frequente logo após a meia--noite. Até mesmo no caso do cancro existem sinais queusados na escolha correcta da altura da tomada dos medi-camentos destinados a combater a doença podem tornar otratamento mais eficaz. É um pouco desconcertante cons-tatar também que a morte tem maior probabilidade deocorrer entre as 8 e as 10 da manhã.

Bibliografia

FOSTER, R., e KRETZMAN, L. (2004), Rythms of Life, Profile Books.WOLPERT, L., BEDDINGTON, R., JESSEL, T., LAWRENCE, I.,

MEYEROWITZ, E., e SMITH, J. (2002), Principles of Development,OUP.

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O tempo e a filosofia

DESIDÉRIO MURCHO

King’s College de [email protected]

Apresentam-se nestas páginas três problemas filosófi-cos sobre a natureza do tempo, que se podem formularcom três perguntas: será o tempo real ou ilusório?; comopersistem os particulares no tempo?; o tempo é relativoou absoluto? Antes, porém, esclarecem-se brevementealgumas questões relativas à natureza da filosofia e dametafísica.

Pensa-se por vezes que se deve abandonar o pensa-mento filosófico enquanto não houver métodos científicosapropriados para investigar tais temas. Há nesta perspec-tiva dois aspectos que merecem reflexão. Em primeirolugar, trata-se de uma ideia filosófica e não científica. Istoé, não se poderá provar num laboratório, ou através de umcálculo matemático, que devemos abandonar o pensa-mento filosófico. A filosofia é irrecusável, porque mesmo

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para a recusar é necessário argumentar filosoficamente, oque é auto-refutante. Compare-se com a recusa da astro-logia, que não exige que se argumente astrologicamente; eimagine-se quão ridículo seria um argumento contra aastrologia baseado num mapa astral. Pode-se recusar areflexão filosófica sobre temas particulares, com argumen-tos filosóficos particulares que mostrem que tais temas nãosão susceptíveis de reflexão séria, mas não se pode recusara filosofia em bloco sem usar argumentos filosóficos, o queacarreta uma contradição óbvia. A filosofia é apenas oexercício da capacidade para o pensamento crítico sobrequalquer tema susceptível de ser pensado sistematicamente,mas não susceptível de tratamento científico. E saber quetemas são susceptíveis de ser pensados sistematicamente jáé um problema filosófico.

Em segundo lugar, esta ideia denuncia a incapacidadede compreender a natureza da própria ciência. A ideia falsaé que a ciência é um conjunto de resultados que devemosdominar para depois completar. A realidade, contudo, é muitodiferente. São as perguntas, muitas vezes filosóficas, quepressionam o aparecimento de métodos de resposta — nãosão os métodos de resposta que determinam tudo o que hápara perguntar (apesar de os métodos de resposta nos permi-tirem descobrir novas perguntas e novos tipos de perguntas).Argumentar que uma dada pergunta deve ser abandonada sóporque não temos de momento qualquer método para lheresponder taxativamente é o primeiro passo para o obscu-rantismo (e é surpreendente ver hoje cientistas a usar oargumento que no passado os poderes eclesiásticos usaramcontra eles). Se este tipo de obscurantismo tivesse prevale-cido, não existiria ciência, pois os métodos científicos deresposta foram estimulados pelas perguntas filosóficas maisimportantes, que o obscurantista quer silenciar. Um exem-plo particularmente nítido é a pergunta dos filósofos pré-

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-socráticos pela natureza última das coisas, que motivoumétodos científicos que permitiram descobrir a existênciade moléculas, átomos, electrões e quarks. Declarar tontosos filósofos pré-socráticos porque faziam a pergunta semter métodos experimentais adequados é não compreenderque, sem essa pergunta, nunca os métodos para lhe respon-der teriam sido concebidos.

O reverso da medalha do cientismo é a aplicação acríticade métodos filosóficos ou falsamente filosóficos a campos deestudo inapropriados. Alguém que se ponha a dissertar filo-soficamente sobre a natureza dos electrões, da consciênciaou dos genes sem ter em consideração o conhecimento cien-tífico relevante sobre esses campos de estudo não pode serlevado a sério. Mas daqui, e da reflexão precedente, não sepode inferir que a filosofia é apenas um preâmbulo da ciên-cia. Por um lado, muitos problemas da filosofia não parecemsusceptíveis de um tratamento experimental ou matemático,por maiores desenvolvimentos que a ciência empírica e amatemática possam sofrer. É o que acontece com os proble-mas mais centrais da teoria do conhecimento, da metafísicae da ética, por exemplo. Por outro lado, mesmo naquelasáreas em que as ciências, empíricas ou formais, apresentamresultados importantes, subsistem vários problemas filosófi-cos em aberto. É o que acontece no caso do tempo.

Santo Agostinho (354-430) afirmou que, se ninguémlhe perguntar, sabe o que é o tempo, mas fica sem saberexplicar-se se lho perguntarem. Referir este comentário éum daqueles lugares-comuns que George Orwell (1903-50)nos incita a nunca repetir, porque significam em geral quenão se está a pensar. Efectivamente, nada há de especialem relação ao tempo, neste aspecto, ao contrário do queo comentário de Santo Agostinho pode fazer pensar. Emrelação a muitas noções centrais estamos na situação desabermos usá-las correctamente sem todavia sabermos

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articulá-las e explicá-las de forma sistemática e explícita.É o que acontece com as noções de tempo, espaço, bem,verdade, conhecimento, existência ou arte, entre muitasoutras. Compreender estas noções de forma explícita, arti-culada e sistemática é uma das tarefas centrais da filosofia.Mas não se deve pensar que a ausência de compreensãoexplícita revela a ausência total de compreensão.

Os problemas filosóficos sobre o tempo pertencem àsdisciplinas da metafísica e da filosofia da física. A meta-física é a disciplina filosófica que estuda a natureza últimada realidade, sendo a ontologia (que estuda que categoriasde coisas há) uma província sua. Infelizmente, a palavra«metafísica» foi muito maltratada no século XX pelospositivistas lógicos, que usavam o termo mais ou menoscomo sinónimo de pseudociência ou misticismo; mas ametafísica não é nada disso. Entre os problemas estudadospela metafísica contam-se a natureza do tempo, de que nosocuparemos aqui, a natureza dos universais (qual é a natu-reza da brancura, aquilo que as coisas brancas têm emcomum?), a natureza da modalidade (o que faz uma afir-mação como «a água é H2O» ser necessária?), a naturezada substância (qual é a natureza do que pode ter proprie-dades, mas não pode ser propriedade de coisa alguma?), anatureza da causalidade, etc.1 A metafísica contrasta com

1 Duas boas introduções à metafísica contemporânea, com capítulossobre o tempo, são as seguintes: Metaphysics: A ContemporaryIntroduction, de Michael J. Loux (Londres, Routledge, 2001), e A Surveyof Metaphysics, de Jonathan Lowe (Oxford, Oxford University Press,2002). Das muitas antologias dedicadas à metafísica contemporâneadestaca-se Metaphysics: Contemporary Readings, org. Steven D. Hales(Belmont, Califórnia, Wadsworth, 1999). Uma resposta cabal aocepticismo positivista e kantiano quanto à possibilidade da metafísicaencontra-se em The Possibility of Metaphysics: Substance, Identity, andTime, de Jonathan Lowe (Oxford, Clarendon Press, 1998).

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a epistemologia (teoria do conhecimento), que estuda anatureza do conhecimento, e com a lógica, que estuda ainferência válida. Estas são as três disciplinas centrais dafilosofia no sentido em que todas as outras abordam pro-blemas epistemológicos, metafísicos ou lógicos em áreasdelimitadas.

Tempo e ilusão

O debate moderno sobre a realidade do tempo temorigem nos argumentos defendidos por J. M. E. McTaggart(1866-1925) num famoso ensaio publicado em 19082 .McTaggart defendeu que o tempo é uma ilusão. Para secompreender o seu argumento é necessário distinguir duasformas diferentes de localizar acontecimentos no tempo, aque McTaggart chamou «séries A» e «séries B». Esta ter-minologia não é esclarecedora, pelo que chamaremos«flexionadas» às primeiras e «não flexionadas» às segun-das (poderíamos igualmente chamar-lhes «dinâmicas» e«estáticas», respectivamente). Compreende-se a diferençacontrastando duas formas diferentes de falar do tempo.Afirmar «hoje está a chover em Londres, mas ontem estevecalor» envolve o uso de verbos com flexões temporais(«está» e «esteve»). Mas afirmar algo como «chove emLondres em 29 de Julho de 2004, mas faz calor em 28 deJulho de 2004» não envolve o uso de verbos com flexões

2 «The Unreality of Time», reimpresso na colectânea organizada porRobin Le Poidevin e Murray McBeath, The Philosophy of Time (Oxford,Oxford University Press, 1993). Michael Dummett defendeu as ideiasde McTaggart no ensaio «A Defence of McTaggart’s Proof of theUnreality of Time», reimpresso no seu livro Truth and Other Enigmas(Londres, Duckworth, 1978).

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temporais — pois «chove», neste contexto, é intemporal,como o «é» na expressão «a raiz quadrada de 16 é 4».(Claro que podemos igualmente dizer «Chovia em Londresem 29 de Julho de 2004», caso em que o verbo «chover»surge igualmente com flexão temporal.)

Podemos, pois, localizar acontecimentos no tempo deduas formas diferentes. A primeira envolve o uso de ter-mos como «passado», «presente», «futuro» ou «ontem»,«hoje», «amanhã» ou ainda verbos com flexões verbaisque apontam para o passado, o presente ou o futuro. Estaforma de localizar acontecimentos no tempo chama-seflexionada precisamente porque usa flexões temporais. Asegunda forma de localizar acontecimentos no tempo nãoenvolve flexões verbais, e recorre a datas ou a termos como«antes», «depois» e «simultaneamente» para localizaracontecimentos no tempo.

O primeiro passo do argumento de McTaggart é a de-fesa de que o tempo envolve intrinsecamente a mudança.Esta ideia é bastante plausível. O tempo, poderíamos dizer,não se manifesta numa série discreta de momentosatemporais (como acontece nas fitas dos filmes, que sãoséries de fotografias temporalmente inertes), mas antes namudança contínua e irredutível a uma série de momentosatemporais.

O segundo passo do argumento é que só as formasflexionadas de referência ao tempo permitem exprimiradequadamente a mudança. Esta ideia é também plausível,mas é objecto de disputa. A ideia é que as formas nãoflexionadas de expressão, usando datas, por exemplo, outermos como «antes», «depois» ou «simultaneamente»,podem localizar acontecimentos no tempo, mas não po-dem exprimir a ideia de que esses acontecimentos «fluem»no tempo. Assim, dizer «chove em Londres no dia 29 deJulho de 2004» não dá conta do processo de chover, ao

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passo que «está a chover em Londres» dá conta do pro-cesso de chover.

O terceiro passo do argumento é que as formas flexio-nadas de referir os acontecimentos no tempo implicamcontradições, pelo que não podemos pensar que descrevema realidade — limitam-se a descrever uma certa aparênciaenganadora da realidade. Esta é talvez a ideia menos plau-sível do argumento, mas não é obviamente falsa. A ideia éque, se levarmos as formas flexionadas de expressão asério, devemos aceitar que exprimem verdadeiras proprie-dades dos acontecimentos. Assim, qualquer acontecimentotem três propriedades temporais: ocorrerá, ocorre e ocor-reu. Mas um acontecimento como o assassinato de Ken-nedy, por exemplo, não pode ter as três propriedades: nãopode ser um acontecimento futuro, presente e passado —pois, se Kennedy foi assassinado hoje, não poderá ser assas-sinado amanhã nem pode tê-lo sido ontem, e se foi assas-sinado ontem não poderá ser assassinado hoje nem ama-nhã. Logo, o tempo é em si irreal: uma mera ilusão.

A objecção óbvia a este terceiro passo é dizer que setrata de uma confusão. Um mesmo acontecimento é pre-sente, passado e futuro — mas não ao mesmo tempo, peloque não há qualquer contradição. Um acontecimento comoo assassinato de Kennedy, por exemplo, é passado agora,foi futuro antes de acontecer e foi presente quando acon-teceu. Mas McTaggart tem uma resposta igualmente óbviaa esta objecção: é verdade que o assassinato de Kennedynão é presente e futuro; mas não é menos verdade que foipresente e foi futuro, o que é mais uma vez uma contradi-ção. A resposta a este argumento, por sua vez, é dizer algocomo «o assassinato é futuro numa data e presente noutradata diferente». Mas esta resposta dá razão a McTaggart,pois abandona o tempo flexionado, ao mencionar dataspara localizar o assassinato.

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Resumindo, o argumento de McTaggart pode ser for-mulado do seguinte modo:

1. O tempo envolve mudança.2. Só as formas flexionadas de expressão podem expri-

mir a mudança.3. Mas as formas flexionadas de expressão envolvem

contradições.Logo, o tempo é irreal.

Os filósofos actuais dividem-se entre os que defendemteorias flexionadas e os que defendem teorias não fle-xionadas. Os primeiros aceitam a premissa 2, mas recu-sam 3, procurando mostrar por que razão as formasflexionadas não dão origem a contradições. Os segundosaceitam a premissa 3, mas recusam a 2, procurando mos-trar que podemos exprimir a mudança sem usar formasflexionadas.

Ser e tempo

Um segundo problema filosófico central no que respeitaao tempo é o seguinte: o que é existir no tempo? Umapessoa que existe ao longo de oitenta anos existe só par-cialmente em cada dia da sua vida, ou existe completamenteem cada um dos seus dias de vida? A discussão modernado problema da persistência ao longo do tempo tem origemem David Lewis3 (1941-2001). Este filósofo defende que

3 «Survival and Identity» (1976), reimpresso no seu livro Philoso-phical Papers, vol. 1 (Oxford, Oxford University Press, 1983). O temaé também abordado em The Plurality of Worlds (Oxford, Blackwell,1986).

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um particular só existe parcialmente em cada momento dasua existência; a existência total do particular dá-se aolongo de todo o tempo da sua existência. Assim, umapessoa que vive oitenta anos é uma totalidade com oitentaanos; a cada dia, estamos apenas perante um «segmentotemporal» dessa pessoa, mas não perante a pessoa na suatotalidade. Chama-se «perdurabilismo» a esta perspectiva,que se opõe ao «durabilismo». O durabilismo é a perspec-tiva mais intuitiva segundo a qual os particulares existemcompletamente em cada momento do tempo. Assim, umapessoa vive oitenta anos, mas está totalmente presente emcada momento do tempo: quando falamos com ela estamosa falar realmente com ela, e não com um «segmento tem-poral» dela.

Este debate sobre a natureza da persistência ao longodo tempo relaciona-se com a natureza do próprio tempoporque a perspectiva durabilista é geralmente presentista,ao passo que a perspectiva perdurabilista é geralmenteeternalista. A perspectiva presentista defende que só opresente é real, havendo uma dinâmica temporal óbvia: osparticulares temporais que existem no presente não exis-tem no passado (existiram no passado) e não existem igual-mente no futuro (mas existirão no futuro). Pelo contrário,a perspectiva eternalista entende que toda a existência éigualmente real, incluindo a existência no passado e nofuturo, sendo a aparente dinâmica temporal uma ilusãocomparável à situação de alguém que percorre uma estra-da e pensa que só o pedaço de estrada onde está existe.

O durabilista entende geralmente que o tempo é flexio-nado, ao passo que o perdurabilista entende geralmenteque o tempo não é flexionado. Para um durabilista, não hásegmentos temporais de particulares porque a temporali-dade está inscrita, por assim dizer, no próprio modo deexistência dos particulares, e a temporalidade é essencial-

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mente uma realidade dinâmica, não susceptível de reduçãoa propriedades não dinâmicas. Para um durabilista, os par-ticulares persistem no tempo «deslocando-se» do passadopara o futuro, em toda a sua totalidade. Esta é a perspec-tiva mais intuitiva. Pelo contrário, os perdurabilistas têmuma perspectiva eternalista da temporalidade, que é vistacomo uma realidade essencialmente estática; os particula-res persistem ao longo do tempo porque são totalidadesque habitam vários segmentos diferentes do tempo, domesmo modo que uma pessoa habita vários segmentosdiferentes do espaço (mas não está totalmente presente emnenhum desses segmentos do espaço: num desses segmen-tos tem as mãos, noutro os pés).

Tempo e substância

Um terceiro problema filosófico central no que respeitaao tempo, situando-se este sobretudo na área da filosofiada física, é o seguinte: poderá o tempo existir sem mudança?Que a mudança não pode existir sem tempo é óbvio. Masos absolutistas defendem que o tempo pode existir semmudança: o tempo, defendem, é uma substância (razãopela qual a esta teoria também se chama «substantivismo»),e não um mero resultado da existência de particulares emmudança. Pelo contrário, os relacionistas defendem que otempo não é coisa alguma além da mudança: sem esta, otempo não existiria.

Aristóteles parecia aceitar uma perspectiva relacionistado tempo, mas foi Leibniz (1646-1716) que desenvolveu estateoria, opondo-se a Isaac Newton (1642-1727) e ao seudefensor, Samuel Clarke (1675-1729). Leibniz pensava que ateoria absolutista estava errada porque implicava uma ideiaabsurda: a de que o universo poderia ter sido criado mais

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cedo ou mais tarde do que efectivamente foi. Pelo contrário,pensava Leibniz, o tempo surge com o próprio universo —não é uma substância que já existia antes do universo.Hoje em dia os físicos adoptam esta ideia, de uma formamais ou menos ingénua, defendendo que antes do big bangnão existia tempo. Mas a física contemporânea é compa-tível com o absolutismo, apesar de haver hoje maior ten-dência para aceitar o relacionismo por se pensar que estateoria se acomoda melhor à teoria da relatividade.

O debate contemporâneo deve muito a um influenteartigo de Sydney Shoemaker4 (n. 1931) publicado em 1969e no qual se apresenta uma imaginativa experiência mentalcontra um argumento central a favor do relacionismo. Sucin-tamente, esse argumento é o seguinte: Admita-se, por hipó-tese absurda, que toda a mudança no universo esteve on-tem suspensa durante duas horas. Isso significaria que, naverdade, o dia de ontem teve vinte e seis horas de duração.Mas a hipótese é absurda porque não há qualquer diferen-ça entre a suspensão durante duas horas ou durante milanos: nunca poderemos medir a duração de um tempohipotético se não existir mudança. Logo, não pode existirtempo sem mudança e a tese absolutista está errada.

Este argumento, pelo menos numa versão pouco sofis-ticada, é uma falácia verificacionista: procura estabelecera inexistência de tempo sem mudança com base na ideia deque nunca poderíamos saber da sua existência. Contudo, oargumento pode ser reformulado no sentido de afirmarque o absolutismo implica a existência de fenómenos tem-porais impossíveis de detectar em princípio, o que seriaintroduzir uma hipótese arbitrária: nunca teremos boas

4 «Time Without Change», Journal of Philosophy, 66, 363-381.Reimpresso no seu livro Identity, Cause and Mind: Philosophical Essays(Oxford, Clarendon Press, 2003).

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razões para pensar que existe tempo sem mudança, a menosque tal fenómeno seja em princípio detectável (ainda quena prática não o seja).

É esta versão sofisticada do argumento que a experiênciamental de Shoemaker pretende refutar, mostrando que é pos-sível ter boas razões para aceitar a existência de tempo semmudança ainda que tal coisa seja indetectável em princípio.

Imagine-se que os astrónomos descobriam um dia quede quatro em quatro anos um dado planeta parecia ficartemporalmente suspenso durante um mês. Após esse pe-ríodo, tudo voltava ao normal, mas as pessoas desse pla-neta não notavam que tinham estado em suspensão. Ima-gine-se também que os astrónomos descobriam um segundoplaneta onde o mesmo acontecia, mas de três em três anos.Durante muito tempo os astrónomos da Terra não conse-guiam comunicar com os colegas desses estranhos plane-tas, mas ao fim de um tempo estabelece-se contacto e faz--se uma conferência multiplanetária com representantes dostrês planetas. Para espanto dos astrónomos da Terra, aprimeira pergunta que os colegas dos outros planetas lhesfazem é «por que razão no vosso planeta tudo pára decinco em cinco anos?»

Note-se que, até este momento da experiência mental,não estamos numa situação em que exista uma suspensãoindetectável da mudança, pois a ausência de mudança numdado planeta é detectada nos outros planetas. O que orelacionista defende é que a suspensão (um tempo semmudança) não pode acontecer em todo o universo simul-taneamente. Mas nessa conferência multiplanetária rapi-damente os cientistas têm de chegar a uma conclusão ar-repiante, depois de fazerem os cálculos apropriados: a cadasessenta anos, os três planetas ficam suspensos simultanea-mente. Claro que eles não terão maneira de detectar talsuspensão directamente. Imaginando que juntamente com

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os três planetas todo o universo fica suspenso, está tudo namesma quando a suspensão acaba. Portanto, estamos pe-rante uma situação na qual a suspensão da mudança é emprincípio indetectável, mas em que há boas razões parapensar que ocorre.

A filosofia no nosso tempo

Estes são três dos problemas filosóficos sobre o tempomais discutidos no nosso tempo — há outros igualmentecentrais. As ideias apresentadas são apenas o princípio dadiscussão. A filosofia desenvolveu-se muito nos últimossessenta anos e alguns dos seus problemas são hoje abor-dados com recursos extremamente sofisticados do pontode vista técnico, recorrendo a instrumentos lógicos pode-rosos mas complexos. Contudo, a filosofia mantém a suaidentidade, ocupando-se do estudo racional sistemático deproblemas não susceptíveis de resposta empírica ou mate-mática, mas que não podemos recusar enfrentar sem em-pobrecer a nossa natureza de seres inteligentes.

Como deverá ser evidente nas páginas anteriores, osproblemas apresentados não são actualmente susceptíveisde solução científica; contudo, são problemas reais e impor-tantes sobre aspectos centrais do tempo. A física contem-porânea diz-nos muito sobre a natureza última do tempo,mas não nos diz tudo.

Dada a imensa diversidade e vitalidade da filosofia dehoje, é sempre possível depreciar a filosofia por um ououtro motivo. Assim, pode-se depreciar a filosofia por nãoser suficientemente acessível ao leitor comum, porque, efec-tivamente, a generalidade do trabalho publicado nas melho-res revistas da especialidade exige um domínio profissionalda filosofia (tal como acontece nas revistas académicas de

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física ou musicologia). Mas também se pode depreciar afilosofia por ser demasiado generalista e parecida com«cultura geral», nunca alcançando o profissionalismo e aprecisão das «ciências sérias». Em ambos os casos se co-mete a falácia da supressão de dados, pois a verdade é quehá hoje em filosofia, como na ciência, os dois tipos detrabalhos: os especializados, que têm por destinatários osfilósofos, e os de divulgação, que têm por destinatário ogrande público.

Afirma-se por vezes que a filosofia se distingue de ciên-cias como a física ou a biologia porque não há na filosofiaaquela espécie de progresso que encontramos nessas ciên-cias, um progresso por acumulação de resultados. Isto éparcialmente verdade, mas, como muitas meias-verdades,é mais enganador do que iluminante. É parcialmente ver-dade porque, efectivamente, não há entre os filósofos otipo de consenso que há entre os cientistas quanto a algu-mas teorias fundamentais. Mas é duplamente enganador,pois, por um lado, nas fronteiras da ciência também nãohá consenso entre os cientistas — e é defensável que é aíque está a verdadeira ciência, e não na pilha de resultadosacumulados, e, por outro, essa meia-verdade esconde osconsensos que existem efectivamente entre os filósofos: osfilósofos não concordam relativamente a muitas teoriasque estão em aberto, mas concordam que muitas teoriassão falsas, que muitos argumentos são maus e que muitasformas de compreender e formular os problemas da filoso-fia são enganadoras.

Há por isso razões para pensar que, se a humanidadenão se autodestruir nem regressar à barbárie obscurantis-ta, o clima actual de liberdade de investigação e o imensonúmero actual de filósofos muitíssimo criativos continua-rão a produzir avanços fundamentais na nossa compreen-são dos problemas da filosofia.

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Que espécie de ser é que osantropólogos assumem estudar.

O exemplo da compreensãodo tempo

MAURICE BLOCH

Universidade de [email protected]

A tão difundida ideia de que as ciências sociais, e emparticular a antropologia, pugnam pela libertação da tira-nia da ciência moderna e das luzes da razão, tem tidoefeitos verdadeiramente nefastos, de entre os quais avultao de obscurecer a efectiva contribuição que por essas dis-ciplinas pode ser dada para uma compreensão geral e equi-librada da natureza dos seres humanos. Nesse contexto, ocruzamento de áreas de trabalho diversificadas, como se-jam a biologia da evolução e a antropologia cultural, tor-nou-se quase impossível. As tentativas de intersectar essesdomínios têm vindo a descambar em polémicas cuja natu-

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reza se afigura duvidosa, quando não sombria e ameaça-dora.

Com a presente intervenção, proponho-me reflectir acer-ca das considerações que os antropólogos têm vindo aelaborar em torno do tema do tempo, já que um tal assuntomostra muito bem como aquele receio que os impede deterem em conta pesquisas realizadas no âmbito de certasdisciplinas, como é o caso da psicologia cognitiva, os temlevado a fazer declarações bastante simplistas, impedindo--os de tirar partido, de forma não só mais sóbria, mastambém mais convincente, dos valiosos contributos quepor eles mesmos têm vindo a ser dados para o desenvolvi-mento da matéria.

Quando se referem ao tempo, os cientistas sociais en-tendem, em geral, que o seu papel é defender o humano deuma representação que não o respeita, e cuja responsabi-lidade imputam aos especialistas das ciências da natureza,para quem os seres humanos actuam a partir de respostasque dão a relógios animais, retendo a informação temporalcomo meras câmaras, desprovidas de pensamento, quefotografam factos do mundo exterior, sem os sujeitarem aqualquer tipo de mediação. É muito diferente a forma comoos antropólogos estudam o tempo, ao perspectivarem adiversidade das suas construções históricas e a relação quepor elas é mantida com factores vários, de ordem social,política, económica, filosófica e estética.

Enquanto tal, e de acordo com uma tendência que setem vindo a manifestar, pelo menos, desde inícios do sécu-lo XX, os cientistas sociais entendem que, ao mostrarem ainfluência exercida pelo cultural ou pelo social sobre anossa percepção e sobre a nossa conceptualização do tem-po, poderiam obter uma das mais deliciosas e suculentasvitórias sobre cientistas da natureza e filósofos. As razõesque os movem são bastante óbvias, tendo em conta que um

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QUE ESPÉCIE DE SER É QUE OS ANTROPÓLOGOS ASSUMEM... 113

certo tipo de reflexão acerca do tempo chama à ribaltatodas as grandes questões envolvidas pelas ciências natu-rais e pela filosofia clássica. As modificações drásticas quea física moderna introduziu na física newtoniana, com asua visão do tempo numa dimensão abstracta, uniforme emensurável, só muito dificilmente conseguiram penetrarquer no senso comum, quer no pensamento científico. Naverdade, se o conceito de tempo fosse produto da cultura,as ciências naturais tornar-se-iam subdisciplinas da antro-pologia.

A questão não é apenas científica, mas também política.A história da política europeia do tempo regista aquelemomento em que importantes escritores do iluminismo,como Voltaire, defendem a física newtoniana, já que, apartir do momento em que os seus princípios assentamnuma autoridade universal e natural, ela se poderá erigirnum dos melhores instrumentos na luta contra o obscuran-tismo ditado pela Igreja ou contra o absolutismo monár-quico. O apelo a leis científicas da natureza implicava umaautoridade superior, pondo em causa a legitimidade dassuas pretensões de controlarem assuntos de carácter laico.

Como tal, a fé na ciência ficou intimamente ligada,particularmente em França, à queda do ancien régime, e oracionalismo científico acabou por se associar a mode-los universalistas e liberais da teoria política moderna.Mas, subsequentemente, entre os finais do século XIX e aprimeira metade do século XX, o panorama sofreu grandesalterações. Foram várias as razões em virtude das quaisesse posicionamento político de cariz iluminista e liberalsuscitou um certo mal-estar. Decorriam, na maior partedos casos, de variadíssimas formas de conservadorismoreaccionário, embora também se pudessem encontrarligadas ao radicalismo de novas ideologias. Na sua estra-nheza, esse duplo parentesco alimentou várias tendências

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culturalistas integradas naquele pensamento racionalista euniversalista que tanto influenciou, e foi influenciado, pelaantropologia.

A partir de Durkheim e dos seus seguidores, essa rela-ção torna-se familiar, assunto a que me voltarei a referircom mais detalhe ao longo do presente texto. Mais recen-temente, na sequência dos acontecimentos de 1968 emFrança, desencadeou-se uma reacção libertária contra opensamento iluminista, aparentemente nova. Andou asso-ciada, e por vezes foi assimilada por determinadas formasde marxismo e por determinados filósofos, tais comoFoucault, Derrida e tantos outros que nos seus escritostendiam a considerar em termos relativos, uma vez mais,a velha aliança entre as ciências naturais e a tradição deVoltaire. Mais uma vez, esses filósofos recorreram à antro-pologia, com um entusiasmo que em geral pecava pordeficiências de informação, para confirmarem posiçõesrelacionadas com a variabilidade que afecta os fundamen-tais conceitos de tempo, pessoa e verdade. Os antropólo-gos, pela sua parte, em particular os norte-americanos,acolheram favoravelmente as suas ideias, na medida emque pareciam confirmar, de fora, o que a sua disciplinatinha andado a reivindicar com alguma timidez, é certo, epor razões um tanto diferentes, desde o início do século.Toda essa discussão teve repercussões que em muito ultra-passaram, não raro de forma surpreendente, o âmbito dasciências sociais. É então que a ideia de que os «outros»têm diferentes sistemas de tempo é exposta num livro deDavid Landes que teve uma enorme ressonância, TheWealth and Poverty of Nations. Nas suas páginas, o autorexplica a superioridade da Europa, pondo a tónica no «sen-tido de tempo linear judaico-cristão», por contraste com«outras sociedades» que «concebiam o tempo como cíclico»(Landes 1998, 59).

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Esse cenário mostra bem como são vastas as implica-ções da controvérsia acerca da cognição do tempo. Deter--me-ei, antes de mais, sobre os primeiros estudiosos deantropologia, cuja obra serve afinal de pano de fundo atoda a reflexão crítica que até hoje tem vindo a ser elabo-rada, na medida em que foram eles que lançaram as basesteóricas do conceito de temporalidade. Vou considerar,especificamente, as teorias de um americano, Whorf, e deum francês, Durkheim. Os seus escritos mostram-nos comoambos se sentiam atraídos pelos conservadores antiliberais,de aspirações libertárias, cujo horizonte parece relativizaras ciências duras para maior glória de disciplinas como aantropologia e a sociologia. Tendo em vista esse objectivo,recorriam geralmente a argumentos relacionados com acognição do tempo.

A tradição antropológica americana antiuniversalistaencontra a sua mais explícita formulação nos trabalhos deBenjamin Lee Whorf. Whorf era aluno de Sapir, o qual,por sua vez, tinha sido aluno do fundador dos grandescaminhos da antropologia moderna americana, Boas. Nosúltimos tempos, as raízes intelectuais do pensamento deBoas têm vindo a suscitar grande interesse crítico. Subjazao seu antievolucionismo aquela atitude de reacção, pro-pagada pelo romantismo alemão contra o iluminismo,que era considerado francês, o que levou a que, pelo me-nos na Alemanha, a tónica fosse para o valor das diferen-tes culturas. Servia de contraponto às aspirações universa-listas da ciência. Não é propriamente uma surpresa queesse anti-racionalismo se tivesse tornado, na obra de Whorf,base de uma aliança, tipicamente americana, com ofundamentalismo cristão (vd. a introdução de Carroll aWhorf, 1956).

Whorf era defensor da existência de uma homologiaentre pensamento comum, cultura e linguagem. Apresenta-

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va o argumento segundo o qual línguas diferentes repre-sentam a duração do tempo de modos diferentes, pelo quepessoas que falam línguas com tipologias diferenciadasapreendem o tempo de modos diferentes, já que «os con-ceitos de ‘tempo’ e de ‘assunto’ não são dados substan-cialmente da mesma forma, através da experiência, a todosos homens, dependendo, pois, da natureza da linguagem,ou das linguagens, no seio das quais se desenvolveram»(1964, 158).

É sintomático que Whorf recorra a esse argumento pararelativizar a física newtoniana, na medida em que tudodepende da «intuição», pese embora o facto de considerarque não existem verdadeiras «intuições», que «são frutoda cultura e da linguagem. É onde Newton as foi buscar»(1964, 153). A diferenciação entre várias comunidadeslinguísticas, cada uma das quais possui um sistema concep-tual próprio, processou-se, conforme explica, ao longo dahistória. Em seu entender, encontramos a origem das ideiasde Newton acompanhando a história da língua hebraica,da grega e da latina, sucessivamente. Pelo que diz respeitoà origem da língua e do pensamento dos Hopi, que são,para Whorf, o protótipo do outro, dever-se-ia recuar, damesma feita, à formação do seu passado linguístico e cul-tural, o que é, infelizmente, impossível, porque, como seperdeu, não o podemos «ler» (p. 157).

Mas, na verdade, a comprovação dos efeitos exercidospela linguagem sobre o pensamento processa-se a partir debases extremamente débeis, em particular pelo que toca àquestão do tempo. Trabalhos mais recentes vieram des-mentir a existência de qualquer espécie de ligação profundaentre os tempos e os modos verbais de uma determinadalíngua e o processo de pensamento dos respectivos falan-tes. Por sua vez, as pesquisas elaboradas pelo escasso nú-mero de críticos que consideraram que a sensibilidade podia

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funcionar como argumento a favor das posições de Whorf,não ficaram à altura dos seus grandiosos anseios (Slobin1996)1.

Na Europa foram Émile Durkheim e os seus sequazesda escola de sociologia francesa, geralmente designadosatravés do título da revista em torno da qual se reuniram,Année Sociologique, que se detiveram no tema do tempo.Com o correr dos anos, a política do crítico francês aca-bou por ser dominada pelo intento de reafirmar um mora-lismo tradicionalista, que entendia ter sido perigosamentelesado pelas várias revoluções francesas. Não era apenasDurkheim que assim pensava, mas também outros conser-vadores franceses, apesar de as suas posições se distingui-rem pelo facto de tentar legitimar esse moralismo tradicio-nalista com recurso a instâncias não monárquicas e nãocatólicas.

Nos primórdios do seu percurso intelectual, Durkheimera um filósofo relativamente ortodoxo, muito influencia-do por Kant. Kant tinha defendido que as categoriasaristotélicas de compreensão, a mais importante das quaisé o tempo, deviam ser reconhecidas como tal, ficando paraaquém e para além de um questionamento intencional, porterem a precedência em relação a qualquer outra forma decompreensão, que será sempre menos fundamentada. Es-sas categorias são o «quadro» ou a «estrutura óssea» doconhecimento. Para Kant, na experiência humana indivi-dual nada poderia ser fonte da nossa cognição do tempo,a partir do momento em que, sem um quadro a priori,assente nos mesmos parâmetros, nem um indivíduo podiadar sentido ao que quer que fosse, nem o conhecimentopodia ser partilhado por diversas pessoas. Uma tal posição

1 Ainda há críticos que continuam a sustentar as posições de Whorf,por exemplo, Lucy, 1992. Vd. também Malotki, 1983.

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foi para Durkheim um ponto de partida que apenas acei-tou a título provisório, por discordar da necessidade deuma fonte sobrenatural para uma categoria como a detempo. Pelo contrário, entendia que a sociedade era a fon-te das nossas categorias, embora as criasse através de umprocesso indirecto, uma espécie de ritual um tanto miste-rioso, que garantia a sua natureza categorial enquantoresultado da necessária «ilusão» de não serem feitas pelohomem (Durkheim, 1912).

Será significativo apurar o tipo de dados etnográficosque Durkheim escolheu, no seio de uma determinadapopulação, ao estudar a compreensão categorial do tempo,para os confrontarmos com o modo como a partir de entãomuitos antropólogos têm vindo a tratar esse mesmoassunto, com base em pontos de vista semelhantes, e igual-mente erróneos. Em seu entender, a cognição categorial dotempo mantém íntimas relações com as suas divisões con-vencionais, de que é exemplo a moderna repartição emminutos, dias e estações, num quadro de compreensão queera já o de Aristóteles.

Uma das consequências da diversidade das posições deKant e de Durkheim quanto à concepção do tempo resideno facto de Kant entender que todos os seres humanosapreendiam o tempo do mesmo modo, a partir do momen-to em que todas as categorias tinham uma única fontetranscendental. Pelo seu lado, Durkheim sustentava expli-citamente que as pessoas compreendiam o tempo de ma-neira diferente, dado que o tipo específico de sociedade emque viviam era fonte da cognição do tempo e, existindodiferentes tipos de sociedade, daí decorria que o tempofosse compreendido de várias maneiras. Confirma-o atra-vés da óbvia constatação de que povos diferentes recorrema formas diferentes de medir o tempo. Como tal, podecriticar o transcendentalismo kantiano, ao afirmar que «as

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categorias de compreensão nunca são fixas, pois mudamcom o lugar e o tempo» (1960, 21). Finalmente, numaatitude que, a partir de então, será também a de muitosantropólogos, Durkheim detém-se sobre a ciência (pp. 616,635 e conclusão), que subordina a categorias de com-preensão socialmente reconhecidas, cuja origem é deordem religiosa, o que significa que são dimanadas por umdeterminado tipo de sociedade.

Por consequência, Durkheim, que inicialmente pareciatão distanciado quanto possível dos estudiosos de antropo-logia cultural americanos, acaba por se encontrar, afinal,muito próximo de Whorf pelo que diz respeito a esta ques-tão específica. Apesar de não atribuir um papel-chave aotipo de linguagem falada pelas pessoas, esse elemento nãoé totalmente alheio à sua conceptualização (p. 620). Comotal, ambos acabam por defender que, nos seus grandesfundamentos, a nossa cognição do tempo se encontrasujeita a variações que decorrem de um tipo de conheci-mento que nos foi sendo transmitido, através da história,pelos membros da nossa sociedade, sustentando que essesconhecimentos específicos e, em última instância, arbitrá-rios, parecem à gente comum naturais e fora de questão.Acerca desse ponto essencial, excluem explicitamente, emprimeiro lugar, a possibilidade de que haja alguma coisarelativa ao mundo exterior tal como ele é que exija deter-minados instrumentos de ordem temporal e, em segundolugar, a possibilidade de que haja alguma coisa relativa ànossa natureza biológica, a qual integra obviamente a nossanatureza mental, que determine a compreensão do tempo.Por fim, ambos apresentam a prova da variação culturalcomo uma espécie de demonstração da irrelevância de qual-quer outra possibilidade que não a apresentada.

Ao passar em revista essas teorias da antropologia, nãoé minha intenção ilustrar a mera semelhança que entre si

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mantêm. Mais do que isso, pretendo mostrar que são damesma índole as razões políticas que acompanharam o seuaparecimento, que levaram a que essas ideias imbuíssemtantos dos trabalhos de crítica antropológica que vieram aser posteriormente elaborados, e que envolveram a suarecente recuperação, por parte de uma certa intelectuali-dade. Não é por acaso que os «estudos científicos» são, demomento, a coisa mais sexy que se possa fazer nos depar-tamentos de antropologia americanos, onde o que importaé mostrar a origem social de instrumentos consideradoscategóricos por cientistas estúpidos. Da mesma forma, aíresidem também as razões em virtude das quais certos filó-sofos, que chegaram às mesmas conclusões, ou a conclu-sões parcialmente comuns, se aproximaram dos cientistassociais contemporâneos.

A inesperada confluência em torno de um ponto funda-mental, a cognição do tempo, com base em parâmetros detipo tão diferente, os de Durkheim e de Whorf, significouterem sido muitos os antropólogos que conceberam uma teo-ria que agregava os pontos de vista de ambos, quase semse aperceberem das grandes diferenças que correm entre asua origem e as suas implicações. Assim sendo, é altura deconsiderarmos alguns exemplos que mostram como essainfluência se encontra presente, na actualidade, em estudosde antropologia, ou melhor, de etnografia.

Um dos mais célebres livros da antropologia do séculoXX é, sem dúvida, o estudo que por Evans-Pritchard foiconsagrado aos Nuer of the Sudan (Evans-Pritchard, 1940).Não há dúvida de que bem merece uma tal reputação, poisna verdade a sua influência foi enorme. A meio da obra háum capítulo sobre tempo e espaço, mais especificamente,sobre a «concepção de tempo» dos Nuer, muito influen-ciado por Durkheim, apesar de o seu nome nunca ser ex-plicitamente referido. O desenvolvimento do tema assenta

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em boa parte na ideia de que o modo como os Nuer con-cebem o tempo é determinado pela sua organização social.Esse capítulo segue de perto o ensaio que um colaboradorpróximo de Durkheim, Marcel Mauss, dedicou ao con-ceito de tempo e de espaço dos esquimós (Mauss, 1906).Evans-Pritchard identifica dois tipos de factores que têmuma influência determinante sobre a concepção de tempodos Nuer, um de ordem social, que designa como «estru-tural», e outro a que chama «ecológico»2.

O ecológico compreende, para Evans-Pritchard, a acti-vidade produtiva de pessoas situadas num contexto parti-cular do ambiente natural. Em virtude das cheias anuaisdos rios, provocadas pela chuva intensa, os Nuer têm defazer migrações sazonais. Passam aproximadamente meta-de do ano em sítios baixos, período ao longo do qual sededicam essencialmente ao tratamento do gado. Durante aoutra metade do ano, quando o rio inunda tudo, apenasdeixando a descoberto os montes, refugiam-se nessas zonasmais elevadas e a sua principal actividade é a agricultura.Paradoxalmente, passam a ter um contacto mais próximocom os animais. Esse ritmo de transumância significa,portanto, que as actividades produtivas e o ambiente físicoe social são bastante diversos nos dois períodos, num con-traste que domina a forma como vivem e como falam dasduas épocas do ano. Conforme acontece em tantas outrassituações, essa divisão é ainda acentuada pelo facto decertos rituais se realizarem em determinado momento doano. Assim era também para os camponeses da IdadeMédia, que associavam inevitavelmente o Natal ao pontobaixo do ano agrícola.

Por sua vez, o tempo social, que é o tempo estrutural,nas palavras de Evans-Pritchard, anda igualmente asso-

2 Evans-Pritchard escreve «oecological».

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ciado ao contraste entre a organização demográfica emmomentos diferenciados do ano, dizendo respeito, maisparticularmente, à organização genealógica das famílias.De um ponto de vista individual, as linhagens são muitoparecidas com bonecas russas. De facto, a genealogiadirecta de uma pessoa, como sejam os descendentes dalinha masculina de um homem que é avô, juntamente comas suas esposas, forma o núcleo específico de uma estirpemais ampla, constituída pelos descendentes do tetravô dessemesmo homem. Uma linhagem mais abrangente contémdentro de si outras linhagens mais circunscritas, fazendoparte, todavia, de uma outra linhagem ainda maior, e as-sim sucessivamente. Os antepassados que deram origem aum determinado ramo são mais recentes que os fundado-res de linhagens maiores. Como tal, a proximidade ou adistância dos laços de sangue tem implicações temporais,na medida em que se considera que uma irmã está ligadaa alguém por laços mais recentes no tempo do que umprimo segundo, sendo a relação baseada, no primeiro caso,em eventos ocorridos na geração dos pais e, no segundocaso, na geração dos bisavós.

Evans-Pritchard é levado a concluir que o conceito detempo dos Nuer decorre, em primeiro grau, do seu envol-vimento com o mundo num lugar específico, e, em segundograu, das regras que entre eles presidem à formação degrupos, em função de um espaço e de uma genealogiaparticulares.

São muito convincentes os argumentos que alega paramostrar como tais factores têm grande importância paraos Nuer. Não podem ser propriamente rotulados de cultura,na acepção que a esse conceito é atribuída por um críticocomo Boas, tendo em conta que não se podem separar daactividade prática, encontrando-se mais próximos daquiloque Durkheim tem em mente. Mas o tema implica, inter

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alia, a simples asserção básica, que tanto Whorf comoDurkheim não deixariam de aceitar, de que o tempo não épara os Nuer a mesma coisa que é para «nós», que vive-mos num ambiente diferente, que construímos a nossavida no mundo de um modo diferente, também porquea nossa sociedade se encontra organizada de um mododiferente.

A saber, quais são, segundo Evans-Pritchard, os efeitosexercidos pelos tais factores de ordem estrutural e ecoló-gica sobre a cognição do tempo dos Nuer. A divisão doano é primordialmente dominada pelos ciclos que estipu-lam «os pólos conceptuais do cômputo do tempo» (p. 96).«O calendário é uma relação entre um ciclo de actividadese um ciclo conceptual, que não existem um sem o outro,daí decorrendo o seu significado e a sua função» (p. 100).Por consequência, o tempo ecológico «parece ser, e é,cíclico» (p. 95). Mas há ainda outros ciclos importantespara os Nuer, como o ciclo descrito pelo Sol durante o dia,que é marcado pelas várias tarefas relacionadas com otratamento do gado, o «relógio do gado», conforme lhechama Evans-Pritchard, por sinal com uma certa graça, oucomo os ciclos da Lua, que têm menos importância para osNuer. Não é possível estabelecer uma correlação matemá-tica entre esses ciclos e os ciclos sazonais do ano.

Os vários aspectos implicados na forma como os Nuerfalam da mediação do tempo levaram Evans-Pritchard aconclusões de índole mais geral. O carácter vago dos seuscálculos, bem como a ênfase conferida ao prático e aosocial, significam que, «Embora eu me tenha referido aotempo e a unidades de tempo, os Nuer não têm uma ex-pressão equivalente à de ‘tempo’ na nossa língua, e porisso não podem falar do tempo, no sentido em que nós ofazemos, como sendo algo que se insere na actualidade,que passa, que pode ser desperdiçado, que pode ser apro-

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veitado, e assim sucessivamente. Não creio que alguma veztivessem experimentado a sensação de luta contra o tem-po, ou que alguma vez tivessem sentido necessidade decoordenar as suas actividades com a passagem abstractado tempo, porque os seus pontos de vista incidem tão sósobre tarefas que são desempenhadas sem pressa. Os acon-tecimentos seguem uma ordem lógica, sem que sejam con-trolados por um sistema abstracto, não existindo pontosde referência autónomos com os quais as várias actividadestenham de se articular de modo preciso. Os Nuer sãofelizes» (p. 103).

O estudo dos Nuer, com a clareza e o cuidado postos nasua apresentação, erige-se, pois, em modelo de uma tipo-logia crítica que depois se tornará recorrente em etnografia.Embora o mesmo género de conceptualização possa jorrarde uma considerável variedade de fontes, o seu impacto éindiscutível. Antes de considerar criticamente as manifes-tações específicas dessa tendência geral da antropologia,deter-me-ei sobre um trabalho mais recente, mas igualmenteimportante, realizado por uma antropóloga americana.

Trata-se do conhecido livro de Nancy Munn The Fameof Gawa (1986). Tema central do livro é a demonstraçãode que os habituais processos ligados à vida e à acção, queestá na moda designar como «práticas», definem as cate-gorias através das quais as pessoas organizam os seuspensamentos, a sua linguagem, as suas acções. Munn vêmuito bem que a cognição de espaço e tempo é fundamen-tal para esse processo em contínua definição, que referecom recurso a uma outra palavra que de momento estámuito na moda, «construção». Tem em vista, conformenos diz, o sentimento «intersubjectivo» dos actores, ouseja, a forma «existencial» da compreensão e das emoçõesdo povo de Gawa (p. 268). Apesar de nos explicar que nãopretende separar o aspecto cognitivo de outros aspectos da

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vida, Munn não nega que esse processo de «construção»envolva, no mínimo, o plano mental. No capítulo introdu-tório do livro, ao definir o seu posicionamento teórico,nota que «a questão não se coloca nos simples termos emque Giddens (1981, 30) a apresentou, quando afirma que‘as relações de tempo-espaço são características constituti-vas dos sistemas sociais’. Há a considerar, além disso, queaquelas ‘práticas situadas’ que, para Giddens, constituíamesses sistemas, constroem, elas próprias, diferentes forma-ções de espaço-tempo. Conforme defendi noutra ocasião(Munn, 1983, 280), as práticas sócio-culturais não se con-substanciam apenas no ou através do tempo e do espaço,por (também) constituírem (criarem) o espaço-tempo emque se realizam»3.

Inevitável implicação de uma tal perspectiva é o factode a «rede de sentido» que «constitui a existência humana»(p. 6) ter de ser muito diferente em sítios diferentes domundo, onde se realizam «práticas» diferentes, dado pordescontado que nunca, em sítio nenhum, se poderá depararcom um estádio de fluxo contínuo. Assim deve ser, se aprática cria cognição, e a prática em Gawa é diferente daprática, por exemplo, na Áustria, pelo que a conceptuali-zação, nos dois sítios, tem de ser também ela diferente.Embora tais observações se apliquem claramente à con-ceptualização de «espaço-tempo», dizem respeito em parti-cular ao tempo.

A prova dessa «construção intersubjectiva» através da«prática» no pequeno atol de Gawa constitui a parte maisimportante do livro. O cerimonial do sistema de trocaskula, objecto da famosa descrição de Malinowski para

3 O itálico está no original de Munn. A afirmação é acompanhadapor uma nota de rodapé que não parece alterar, na essência, o seusentido.

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os Trobriand, mas que também tem lugar em Gawa, érelatado com todo o detalhe. Contudo, Munn relaciona osimbolismo kula não só com a magia, mas também comcertas ideias relativas à produção e ao consumo de comida,com o género, com práticas mortuárias e ainda com outrasquestões4. Ao longo das páginas do livro, vai-nos expli-cando muito bem o que o povo de Gawa entende por«fama», e como consegue alcançá-la, quer através das tro-cas kula, quer através de recursos modestos, como seja ahospitalidade. Admite que tudo isso se encontre relacio-nado com a cognição do tempo, em passos como o que sesegue, no qual descreve as formulações lúdicas, em tornodo pedido de reciprocidade e de hospitalidade num futuro,com que se encerram episódios de comensalidade: «Pode-mos aperceber-nos perfeitamente de que está a ser feitauma tentativa de transformar, em sentido positivo, o espa-ço-tempo intersubjectivo, tal como se se tratasse de recep-tores kula em vias de adquirir conchas ou comida que sãolevados a projectar essa experiência de receber em termosde uma futura e recíproca doação» (p. 65).

Aquilo de que está a falar é evidente. Quando as pessoasde Gawa participam em acções e conversas, lembram osmais diversos tempos e lugares. Assim sendo, as aliançasde casamento evocam a distância entre as casas dos espo-sos e as ofertas que vão correndo por esses «caminhos».Quando negoceiam e planificam as trocas kula, as pessoasde Gawa recordam momentos do passado em que os pre-sentes eram levados de um lado para o outro, desejando,ou até imaginando, levar a cabo futuras transacções. Nesse

4 É bizarro que proclame o carácter inovador da relação que seestabelece entre esses tópicos, quando na verdade se trata de um assuntoque tem vindo a ser continuamente referido a propósito dos Argonautasdo Pacífico Ocidental.

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sentido, os tempos e os espaços recordados encontram-seem permanente mudança, de um modo que é ao mesmotempo individual e social, na medida em que as evocaçõesindividuais são muitas vezes partilhadas e organizadas comrecurso a actividades sociais e culturais.

Não tenho qualquer objecção à ideia que assim é apre-sentada, e a forma como é defendida só me inspira admi-ração. É também absolutamente convincente, para mim, oponto de vista de Evans-Pritchard, quando nota que a vidados Nuer é fundamentalmente marcada pelo ritmo das esta-ções do ano, com tudo o que isso implica, e que as relaçõesque mantêm uns com os outros estão muito dependentesdo seu cômputo da duração do tempo que passou desdeque tinham antepassados comuns. Contudo, sou totalmentecéptico em relação à resposta que esse género de etnografiadá aos objectivos fundamentais visados por um Durkheimou por um Whorf, tendo em conta a forma como sãoretomados e reelaborados conceitos, construções e pensa-mentos.

São duas as razões básicas do meu cepticismo. A pri-meira é que ambos os críticos nos fornecem dados queparecem contradizer os princípios em que assenta a suainterpretação da construção social e cultural do tempo, aopasso que a segunda é que os estudos de psicologiacognitiva de que dispomos mostram que seguiram pistaserradas.

Mas regressemos aos Nuer. Evans-Pritchard, a certoponto (p. 222), diz-nos o que acontece quando os vizinhosdinka são capturados e são mais ou menos incorporadosem grupos de descendência nuer. Refere então que «umajovem cativa não é integrada na genealogia, mas as pes-soas dizem, ‘caa lath cungni’, ‘é-lhe dado o direito de rece-ber a riqueza do noivado’. Isso significa que, quando ela secasar ou quando as suas filhas se casarem, os filhos da

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família na qual ela foi criada receberão gado dos irmãos edos tios maternos, e que, em compensação, quando as fi-lhas dessa família se casarem, ela, ou os seus filhos, podemexigir a vaca da tia paterna e da tia materna» (Evans-Prit-chard, 1940, 222). Com certeza que seria impossível pôrem prática um sistema como esse a partir de uma com-preensão cíclica do tempo. A compreensão desse processoimplica uma temporalidade que não parece diferente danossa, de acordo com a qual é evidente que o que aconteceé irreversível. Além disso, os Nuer nunca teriam sido capa-zes de explicar e de representar essas práticas a Evans-Pritchard, se não tivessem conseguido assumir as impli-cações temporais comuns ao produtor e ao receptor dainformação, o que o excerto transcrito, onde ficam conti-das citações directas, bem mostra.

Se retomarmos a questão da fama de Gawa, tambémnos deparamos com a prova clara de que as pessoas da ilhareflectem sobre passado, presente e futuro, do mesmo modoque o fazem os europeus, ou quaisquer outros. Para ilus-trar a sua perspectiva do espaço-tempo, Nancy Munn citaas explicações dadas por um homem de Gawa, em passosde um relato público: «[quando alguém ingere muitacomida,] isso leva a que o seu estômago se dilate, e essapessoa não faz nada senão comer (‘-kam’) e descansar(‘-maisi’, estar deitado/dormir); mas, se damos comida(‘karu’) a outra pessoa, um forasteiro, quando come carnede porco, vegetais ou betle, isso tira-lhe o seu nome(‘buraga-ra’), a sua fama (‘butu-ra’). Os jardins e o kulasão o que faz de alguém um ‘guyaw’. Onde quer que hajajardins, há forasteiros que entram e começam a comer.Dizem então que és um ‘guyaw’. Mais tarde, hão-de voltarpara te dar conchas e colares» (p. 49).

O homem que pronuncia tais palavras refere-se aotempo como uma corrente regular e irreversível, sendo esse

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fluxo a dar clareza à explicação da causalidade. Se comesa tua própria comida num determinado momento, então,daí a algum tempo, hás-de dormir, simplesmente, e, daí aalgum tempo mais, ninguém ficará impressionado. Toda-via, se primeiro produzires alimentos, e depois os deres aosforasteiros, depois ganharás fama, e talvez depois eles esta-beleçam trocas kula contigo, o que implica que, aindadepois, hás-de ser recompensado pelas tuas ofertas.

Assim sendo, a citação mostra bem, antes de mais, queaquilo a que Munn se refere não corresponde de modoalgum a uma cognição de tempo e espaço enquanto prin-cípio organizador, mas antes a uma evocação de tempo eespaço dentro de um quadro previamente construído queé dado como garantido. É esse mesmo quadro que permiteque seja comunicada à pessoa a quem o falante se dirigeuma sequência temporal dotada de sentido. Como aconte-ce com todas as formas da linguagem humana, as pressu-posições que subjazem à expressão pertinente não sãoenunciadas. Somos levados a concluir, através do relato dohomem de Gawa, que sustentar os forasteiros confere famaprecisamente porque, conforme afirma, quem recebe comi-da sabe que, existindo uma relação de causalidade, comoHume também nos teria recordado, a causa deve precedero efeito, no âmbito de um quadro de duração em que otempo é regular. A necessidade de um tal pressuposto paraa compreensão é exactamente o que tanto Kant como,depois, Durkheim, salientaram, ao insistirem sobre o factode que as categorias de compreensão devem ser, antes demais e inquestionavelmente, a priori não negociáveis. Se aconceptualização não existisse previamente, como um qua-dro, o homem de Gawa não poderia dizer nada, pura esimplesmente. É quanto basta para mostrar que as ideiasbásicas de Munn e dos restantes «teóricos práticos» ou«fenomenologistas» que cita, e que não cita, não serão,

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possivelmente, verdadeiras. A conceptualização do temponão pode ser negociada através da prática, nem de ummomento para o outro, nem com maior, nem com menorlentidão. Tem de ocupar um lugar, e é a partir dele queocorre a prática. O homem de Gawa sabe evocar, e evoca,tempos e sítios diferentes, e pode explicar a causalidade,por oposição ao plano de um quadro conceptual não ne-gociado das categorias da compreensão.

Uma perspectiva geral assim dimensionada implica arejeição dos fundamentos subjacentes à posição de NancyMunn. Por muito conhecidos que sejam, o que temos afazer é esquecê-los. Não implica, porém, a rejeição dasposições defendidas por críticos como Durkheim, Whorfou Evans-Pritchard, que poderiam até dizer que estão deacordo comigo, no sentido em que o quadro temporal temde ser dado como garantido, e que, apesar disso, essequadro é fornecido por uma cultura ou uma língua parti-cular, variando em conformidade com a língua ou com acultura em causa. Deve-se tratar o tempo como se fossealgo natural e fora de questão, mas nós, antropólogos rigo-rosos, sabemos que é histórico e cultural.

Chegados a este ponto, todavia, uma outra decorrênciada citação analisada há que nos leva a descartar, da mesmafeita, essa posição mais tradicional. Acontece, muito sim-plesmente que, sendo o texto dito por um homem de Gawa,com benefícios para Nancy Munn, a antropóloga parecenão ter qualquer dificuldade em o compreender, e, mais doque isso, parece perfeitamente segura de que, ao passá-lopara inglês, os seus leitores, entre os quais me incluo, nãoterão dificuldade em perceber o que nele é dito. Sem dúvidaque isso só é possível a partir do momento em que todosnós temos em comum as mesmas categorias de compreen-são. Como o homem de Gawa e eu temos culturas radical-mente diferentes e, pela minha parte, não sei falar a sua

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língua, daí decorre, tão só, que a diferença entre cultu-ras e línguas é irrelevante para o plano da comunicaçãomútua.

A etnografia de Munn e de Evans-Pritchard, longe dedemonstrar as grandiosas asserções de Whorf e Durkheimnos termos em que aspirava fazê-lo, acaba por miná-las.Poderíamos assim encerrar o assunto afirmando que a tesenão foi comprovada, ou que os dados internos mostramque seria possível chegar a uma conclusão diametralmenteoposta. Na verdade, a questão abre-se a outras vias dedesenvolvimento, considerando que, embora os críticos emcausa não nos tenham apresentado provas em contrário,deveríamos ter acolhido com fortes reservas, apesar detudo, as suas posições.

Bastaria ter em conta o que sabemos acerca da concep-tualização do tempo em crianças ainda muito pequenas.Implicitamente, se não explicitamente, todos os críticosacima referidos assumem que as pessoas sabem o que é otempo e a duração enquanto conhecimento adquirido. Sóassim tem sentido dizer que a compreensão do tempodecorre da história, da língua, da cultura, das práticas, daestrutura social ou do que quer que seja. Mas, pelo contrá-rio, algumas investigações recentes mostram que a com-preensão básica do tempo se encontra radicada no serhumano desde o seu nascimento. Por outras palavras, fazparte daquilo que tem vindo a ser designado como núcleodo conhecimento, ou seja, uma característica tão normalcomo ter dez dedos. Sendo assim, afirmar, como Durkheim,Evans-Pritchard, Munn e tantos outros críticos, que, a umnível fundamental, pessoas diferentes têm conceitos detempo completamente diferentes equivale a dizer que per-tencem a espécies diferentes.

A história da psicologia cognitiva é curta, mas, de certoponto de vista, suficientemente longa para ter sofrido uma

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revolução drástica. Até há uns vinte anos, a visão de Piagetdo desenvolvimento da criança dominava o panoramacrítico. De acordo com as suas investigações, a criançaconstruía gradualmente o seu conhecimento do mundo,não partindo senão das suas próprias capacidades paraestruturar a informação de forma cada vez mais complexa.Era apresentada como prova de um tal ponto de vista aaparente impossibilidade de uma criança, mesmo de idademais avançada, realizar um determinado número de tare-fas. Piaget entendia que a compreensão do tempo e a suaorganização em sequências pela criança eram extrema-mente lentas (Piaget, 1969). Contudo, veio a verificar-seque as conclusões a que chegara tinham sido falseadaspelo facto de ter trabalhado com crianças muito pequenas(Friedman, 1990).

Graças à recente aplicação de técnicas inovadoras, pro-vou-se que os recém-nascidos já «sabem» muito. É parti-cularmente relevante que possuam conhecimentos bastantesimples, possivelmente inatos, de física e de aritmética(Bullock e Gelman, 1979; Bower, 1989; Spelke, Philips,Woodward, 1995; Baillargeon, Koovsky, Needham, 1995).Grande parte do trabalho experimental realizado visamostrar a existência de outro género de competências, quenão de ordem exclusivamente temporal, as quais, de ummodo genérico, nem serão as mais importantes. Contudo,fica provado que um recém-nascido ou uma criança muitopequena compreendem claramente que a causa deve prece-der o efeito. Certos movimentos, como, por exemplo, o deuma bola que está a andar por detrás de um painel, orien-tam a previsão do seu aparecimento do outro lado dessemesmo painel. Na verdade, o quadro temporal resultantedos trabalhos recentemente realizados acerca de questõesbásicas de física e de psicologia é tão sólido e evidente quedificilmente poderá ser posto em causa. Parece ser comum

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não só a todos os humanos, mas também, muito provavel-mente, a todos os primatas, e talvez até a outros animais(Church, 1984). Os limites do inato podem ser objecto dediscussão. No entanto, é consensualmente aceite que asbases da compreensão temporal fazem parte de um núcleoduro de conhecimento, cuja existência é comprovada logoa partir do momento em que há condições para o atestar,isto é, muito antes de o efeito de línguas ou culturas espe-cíficas se poder fazer sentir, embora tal não signifique queum conhecimento prístino não possa vir a ser posterior-mente enriquecido e transformado, ou que não haja espaçopara mudanças cognitivas ao longo do processo de desen-volvimento.

É possível demonstrar por via experimental que, àmedida que a criança cresce, a sua compreensão do tempose torna mais elaborada, sem que haja efectivas provas deque a cultura a molde nos seus fundamentos. Com 2 anosde idade é capaz de organizar os acontecimentos emsequências de incidência familiar, e com 4 anos pode ela-borar descrições impressivas de actividades realizadas emfamília (O’Connell, Gerard, 1985; Nelson, 1986). Essa pes-quisa experimental incidiu prevalentemente, embora nãona sua totalidade, sobre a cultura euro-americana. Noentanto, não há razões para pensar que as crianças inte-gradas noutros ambientes culturais não sejam capazes dedominar as sequências nos termos descritos. As própriasobservações que ocasionalmente fiz em sítios remotos deMadagáscar coadunam-se perfeitamente com os dadosapresentados, apesar de as crianças dessa região verbaliza-rem os seus conhecimentos com maior timidez do que amaior parte das crianças a partir de cuja observação foirealizado esse trabalho, que eram americanas.

Quando confrontados com as investigações elaboradasno domínio da psicologia, os princípios defendidos por

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críticos como Durkheim, Whorf, Evans-Pritchard e Munnparecem desenquadrados, se não pura e simplesmente erra-dos. Conforme vimos, apenas se apoiavam em afirmaçõescomo «os seres humanos de culturas diferentes pertencema espécies diferentes», ou pela sugestão, igualmente estra-nha, de que há um estádio no desenvolvimento da criançaem que ela abandona abruptamente o sistema das primei-ras capacidades cognitivas, substituindo-o de imediato porum outro que apreendeu com a cultura.

Não é pois surpreendente a reacção de alguns dos crí-ticos que se encontram familiarizados com a área da psi-cologia, quando rejeitam com desdém o trabalho dos antro-pólogos. Stephen Pinker, utilizando uma expressão quetantas vezes ouvi aos psicólogos da cognição, ao pronun-ciar-se sobre as ideias de Whorf acerca do tempo, atreve--se a dizer que «as anedotas antropológicas acabaram»(1994, 65). Bastante mais circunspectos, Tooby e Cosmidespõem a ridículo o «modelo estandadizado das ciênciassociais» que diz respeito à variação cultural (Tooby, Cosmi-des, 1992). Essas reacções não serão surpreendentes, tendoem conta que a arrogância totalitária e a imprecisão deobjectivos dos cientistas sociais fizeram que os antropó-logos as «merecessem». Se, por um lado, historiadores,antropólogos e outros cientistas sociais, seduzidos por umvocabulário muito na moda e sem conhecerem os avançosda psicologia, resvalaram, sem disso se aperceberem, parao domínio do improvável, por outro lado, esse deslize favo-receu os seus opositores, de entre os quais tantos estudio-sos das ciências naturais que assim tinham motivos paraignorarem, um instante que fosse, o que outras disciplinasmais soft estavam a investigar.

Assim se explica a hostilidade com que o trabalho dosantropólogos começou a ser recebido, numa atitude quenão deixou qualquer tipo de espaço para a compreensão

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do efectivo significado da obra de Durkheim, Whorf,Evans-Pritchard ou Munn, sob argumento de que essescríticos não estavam a falar de absolutamente nada. Seuma tal posição é para mim inconcebível, também nãopoderá deixar de o ser para qualquer pessoa que tenha lidocom atenção os escritos desses críticos e que tenha enten-dido o seu teor. Bem se poderá compreender, pois, a cris-pação suscitada por aquelas reacções. Apesar de eu perce-ber muito bem os seus motivos, as posições dos cientistassociais não podem ser esquecidas, devendo antes erigir-seem motivo para uma reformulação dos objectivos de pes-quisa, de forma a ultrapassar perspectivas desprovidas defundamento, no intento de verificar como é que, no seio deum quadro mais ponderado, é possível compreender a quese estavam a referir os antropólogos, para a partir daítentar fazer uma combinação de tradições científicas dife-renciadas.

Proponho-me pois lançar algumas pistas nesse sentido,no âmbito específico do tema do tempo.

Assim sendo, torna-se necessário antes de mais clarifi-car certas noções prévias. O primeiro passo a ser dado,que é o mais importante, consiste em explicitar o quadroteórico de dois campos que se encontram intimamenterelacionados.

Pode dizer-se que o clássico campo de trabalho da antro-pologia tem na sua base o estudo da forma como níveissuperiores determinam outros que lhes subjazem. O nível1 compreende certas instituições culturais, produto da his-tória e da interacção que se estabelece entre vários povos,de entre as quais se contam o kula, o tratamento do gado,o calendário, narrativas históricas ou míticas, bem comocertos valores, a saber, o parentesco por via paterna, aobtenção da fama, os esforços investidos na produção degrandes quantidades de certas coisas. Esse nível 1 acompa-

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nha e determina o nível 2, que consiste em representaçõesmentais de carácter reflexivo, neste caso acerca do correrdo tempo, das unidades de tempo, do efeito do temposobre as pessoas, sobre a paisagem e sobre o estado domundo. Determina por sua vez o nível 3, uma «teoria dotempo» geral, seja ele cíclico, linear ou social, o qual deter-mina um nível 4, a percepção do mundo, o qual determina,enfim, um nível 5, que diz respeito a inferências e acções.

A «prática», ou a atitude fenomenológica de um críticocomo Munn, parece inverter logo à partida a cadeia cau-sal, na medida em que se parte do princípio de que nasacções reside a origem de tudo, posição que não pode sertomada a sério. Quando os teorizadores da prática procla-mam que a cognição temporal só emerge das acções e sóa partir delas pode ser inferida, estão a misturar problemasimplicados pelo «fazer etnografia», sabendo nós que asafirmações explícitas raramente são um bom meio para sechegar à cognição, com questões de ordem bastante dife-rente, relativas à forma como as pessoas actuam. No últimocaso, é óbvio que as pessoas actuam com base na suacognição e na sua motivação, e não o inverso. O oposto,de que criam a sua compreensão do mundo e os seus dese-jos descobrindo-os nas suas acções, que seriam, por si pró-prias, desprovidas de motivos e realizadas num vácuo, éobviamente ridículo, conforme foi até observado por umcrítico que Munn considera o pai da teoria da prática,Pierre Bourdieu. Munn devia admitir que as convicçõesacerca da comensalidade, o kula ou a procura da fama seinserem num quadro de conhecimentos básicos, que foramcausa das acções observadas, e não vice-versa. Mais doque isso, importa notar que, salvaguarda feita de escassasvariantes que se evaporam ao serem escrutinadas, o mode-lo antropológico considera as asserções reflexivas que seencontram na origem da compreensão temporal e assume

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a existência de uma homologia entre os diferentes níveisacima apresentados, sem entender que um nível superiordetermine, em termos absolutos, os inferiores.

O modelo antiantropológico de Pinker, Tooby, Cosmidese de tantos outros críticos, apresenta-se de imediato, a umprimeiro olhar, como o reverso do que apresentei. O nível1, pedra-de-toque do seu sistema, abrange um núcleo durode cognição, que é inato, sendo produto da evolução dasespécies. Por sua vez, determina o nível 2, pelo que dizrespeito a um sentido geral do tempo, no qual se baseiauma cognição mais elaborada. Este domina o nível 3, dapercepção e inferência, o qual domina o nível 4, das repre-sentações «culturais» e das instituições. Por ter na sua basecapacidades humanas muito abrangentes, implica que acognição, a percepção e a representação assentem em fun-damentos universais, idênticos para todas as pessoas. Astantas provas de ordem antropológica que muito facilmenteporiam em causa todo o edifício são ignoradas, como vimos,com a justificação de se tratar de uma trama obscura.

À primeira vista, os dois modelos não podem parecermais diferentes. Um defende a diversidade cultural, o ou-tro um plano universal. Um baseia a cognição e a percep-ção na cultura e na história, tal como se manifesta atravésde instituições e representações reflexivas/discursivas, ou-tro coloca na sua origem características do cérebro huma-no geneticamente determinadas. Contudo, o que ambas asformulações implicitamente têm em comum é a assunçãode uma unidade ontológica, ou melhor, de uma identidadeque atravessa os vários níveis.

O determinismo entre vários níveis de um sistema ab-soluto não encontra qualquer tipo de justificação. Os doisextremos do sistema são absolutamente diferentes, emborase encontrem intimamente relacionados. Podemos aceitarque, com as suas histórias, os habitantes de Gawa evo-

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quem diversas imagens de tempo e espaço, mais do que ofariam pessoas de outras culturas, e que as suas recorda-ções se modifiquem, de momento para momento, sem de-fender, de forma alguma, que a sua percepção e a suacognição da duração por isso sejam afectadas. Podemosconceber que a prova de processos inferenciais relativos àcausalidade será universal e podemos ainda reconhecer queos Nuer só discursivamente se interessam por um passadomais distante, na medida em que assim se explica a sepa-ração social. Mas não é necessária, de forma alguma, essavisão totalizante, simples resultado de uma mistura confu-sa de diferentes níveis, a designada «construção», a qual é,por vezes, sub-repticiamente introduzida no debate antro-pológico, como já tive ocasião de notar, através daquelastentativas, sejam elas grandiosas ou descaradas, de pôr emcausa representações científicas de grande difusão. Toda-via, logo que nos damos conta de estarmos a trabalharcom coisas diferentes, mas que se encontram intimamenterelacionadas entre si, podemos seguramente notar que osNuer estão mais interessados em falar acerca das estaçõesdo ano do que em medir com precisão os intervalos detempo, ou apercebemo-nos de que as pessoas de Gawa,quando contam uma história ou quando organizam o kula,recorrem a imagens de espaço e de tempo diferentes dasque usam quando estão a fazer o jantar, sem afirmarmosque tais evocações constroem a sua compreensão do tempoe da causalidade.

Talvez o mais infeliz efeito decorrente do facto de nãose considerar que as duas facções em análise estão a falarde coisas diferentes seja a impossibilidade de avançar nodebate crítico acerca da relação que se estabelece entreníveis distintos, o reflexivo e o conceptual. Pelo contrário,o reconhecimento da diferença categorial que entre os doisse estabelece deixa em aberto toda uma área de pesquisa.

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Sob uma perspectiva cognitiva, poderíamos tentar des-cobrir qual é o efeito, se é que existe um efeito, exercidopor formas de organização institucional, valores e asserçõesdiscursivas sobre a cognição. Deveriam servir de guia aesse objectivo os trabalhos que recentemente foram dedi-cados aos efeitos da estrutura da linguagem na cogniçãodo tempo. Através deles, sabemos que, apesar de seremlimitados, dela não se encontram necessariamente ausen-tes. Os efeitos da pressão a que algumas pessoas estiveramsujeitas em períodos do passado, sucessivamente ava-liados, foram estudados em experiências das quais se con-cluiu que têm por mais breves períodos durante os quaisocorreram eventos que tiveram um desfecho positivo, doque períodos ao longo dos quais se passaram coisasaborrecidas (Cahoon, Edmonds, 1980). As pessoas quevivenciam essas situações não modificam a sua concep-tualização do tempo a longo prazo, porque sentem que,«depressa ou devagar, o tempo passa». Contudo, maistarde, de bom grado admitem ter-se enganado, mostrando--se convencidas de que o seu aborrecimento ou a sua im-paciência as influenciaram. A partir do momento em queo sistema social e o sistema cultural geram formas de pres-são e de descontracção, poderemos considerar o signifi-cado que a sua organização tem para a cognição e para apercepção.

Estudos há pouco tempo efectuados acerca da represen-tação metafórica do tempo, pelo que diz respeito a ima-gens espaciais, considerando todas as variações a que es-tão sujeitas de língua para língua, revelam que tambémparecem exercer um certo efeito, ainda que contido, sobreo comportamento e as inferências. Esse tipo de influênciasuscita interessantes questões acerca dos efeitos da culturasobre a maturação do núcleo duro do conhecimento numser que se está a desenvolver, mostrando igualmente como

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esses efeitos são delicados quando comparados com asideias a que foi feita referência no início do presente texto.

Sob um ponto de vista antropológico, contudo, osinterrogativos suscitados pela diferenciação da naturezadas perspectivas em causa são de outra índole. Uma vezque consideramos que os princípios de que partiram Munnou Evans-Pritchard não nos podem dar informações, emtermos directos, acerca da cognição e da percepção nostermos em que pretendiam fazê-lo, podemo então interro-gar-nos acerca do tipo de asserções em causa e da formacomo podem ser relacionadas com a cognição. É sintomá-tico que os antropólogos apenas se coloquem questões,relativas às atitudes intencionais que subjazem a uma afir-mação quando têm de enfrentar asserções de uma bizarriaultrajante, tais como «os gémeos são aves», ou no caso derituais. Normalmente, porém, não se colocam perguntasdesse género com referência a factos que envolvem umalinguagem mais próxima do quotidiano. Ou melhor, ten-tam evitá-las.

Nancy Munn serve-me de novo como exemplo. O seurelato é excepcionalmente consciencioso e analítico, masquando regressamos àquela que é a sua questão central,que diz respeito à relação entre os presentes do kula e oespaço/tempo, deparamo-nos com uma imprecisão típica.Ora nos diz que a iniciação de uma oferta «constrói» [toconstruct] o espaço/tempo, ora nos diz que «transforma»[to transform] o espaço/tempo, como se as duas palavrasfossem equivalentes. Todavia, no inglês corrente, não têmnada a ver uma com a outra. Se de facto quer dizer cons-trói, a argumentação perde sentido pelas razões aponta-das. Se pretende usar «transforma» com maior precisão,então seria necessário que tivéssemos sabido, previamente,o que queria dizer, na medida em que a palavra transformapoderia ter sido utilizada em dois sentidos distintos. Pode-

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ria ter querido significar que a prática do momento trans-forma o espaço/tempo, relativamente à representação pré--existente, como na descabida citação de Giddens. Mas comcerteza que isso não é possível, conforme acima observei,dado que a cognição temporal tem de ser um a priori paraque ocorra uma comunicação plena, na medida em quequalquer asserção tem de assentar num quadro prévio.

Poderia então ter sido atribuído um outro significado atransforma. A palavra teria podido indicar que discurso eacção são uma espécie de negação semiconsciente de umquadro comum e indiscutível. Nesse caso, um presente kuladevia ser entendido como uma acção que diz, «eu sei quetu, meu parceiro, estás longe no espaço e que a distânciaespacial, quer para ti, quer para mim, é um dado de facto,sem termos outra alternativa que não a de o aceitar, em-bora ao dar-te este presente eu vá criar uma relação detroca em virtude da qual, com recurso às nossas institui-ções e ao nosso conhecimento das emoções, poderemosnegar a separação espacial através da criação social». Entãoo kula pode ser visto como algo semelhante à poesia, comouma espécie de metacomentário a uma cognição comum,um desmentido que reconhece o que não pode ser des-mentido.

As implicações cognitivas passam a ser bastante dife-rentes, sem que entrem em conflito, de modo algum, como que sabemos acerca da cognição de espaço e tempo.Nem poderiam nunca ser classificadas como inúteis porPinker e por outros críticos, ou ser postas de lado, por-quanto nos levam a deter-nos sobre a crucial diferençaentre nós e os chimpanzés, aos quais tanto Munn comoPinker, com uma certa graça, negam a capacidade dos sereshumanos para viverem num mundo que representam atra-vés de uma multiplicidade de níveis que entre si mantêmrelações dialécticas.

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Uma literatura do tempo:a ficção científica

JOSÉ MANUEL MOTA

Faculdade de Letras, Universidade de [email protected]

0. Da comunicação de Maurice Bloch recolho estaasserção: «although modern physics has since [Newtoniantheory] dramatically changed the specialist’s understanding,this has hardly had an influence on ordinary thinking ormost science». Isto é, para nós todos, o tempo é... o tempo.O mesmo de sempre (e «sempre» é advérbio de tempo).Mas para «eles» — os físicos, os cientistas da natureza —o tempo (que é, obviamente, também o mesmo que paranós) é ainda outra coisa: algo que se tem de definir: paraNewton, para Einstein, para Heisenberg. Como o foi paraBergson, o que intuiu a separação do tempo de todos ecada um do tempo igual, ou estranho a todos, que «eles»,os cientistas da natureza, definem e medem.

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A célebre frase de Agostinho de Hipona «Que é, porconseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; seo quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei»(383) parece ir ao encontro do que julgo descortinar notexto de Bloch: isto é, que, do mesmo modo que Chomskypropunha um mecanismo cerebral inato para a aquisiçãoda linguagem (o LAD, language acquisition device), tam-bém para a apreensão do tempo há algo de mecanismoinato na nossa espécie. É que esse mecanismo transcendetodas as hipóteses mais ou menos determinísticas de basewhorfiana.

Nessa ordem de ideias, não sendo eu nem físico, nemrelojoeiro, nem filósofo, nem psicólogo, mas tão só profes-sor de literatura, que tenho eu a dizer sobre o tempo?Pouco. Que sabem os estudiosos da literatura (não é porhumildade, é por desconfiança ou desencanto que lhes nãochamo cientistas) do tempo? Divagações sobre tempo ediscurso, tempo da narrativa, tempo dramático? O tempoda poesia, o ritmo? Saberão o mesmo os que os outrostodos: a intuição comum, e umas especiosidades técnicaspara consumo interno. Pouco, portanto.

Não me compete, assim, falar do que não sei. Direi antesda minha experiência como leitor do ramo da literatura aque me dediquei — a ficção científica. Um fenómeno moder-no, nascido no tempo e do tempo em que a ciência, sob aforma de tecnologia, invadiu o quotidiano. Não um géneromaior, muitas vezes uma subliteratura, ou simplesmentelixo cultural, mas, nas suas manifestações mais consegui-das, capaz de transpor a barreira entre «as duas culturas»,a das humanidades e a científico-tecnológica.

Por ser filha da literatura fantástica, e procurar lugarese tempos que não os do real experimentado (e qual a fic-ção que o não faz? — mas isso é outra história), a ficçãocientífica mergulha intensamente nas ondas do tempo.

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Começou por ser a literatura «de antecipação», e acabouliteratura de universos alternativos ou dum futuro distanteque já não é antecipado, isto é, a antecipação, analogiaextrapolativa, deu lugar a uma procura dum espaço-tempooutro: um futuro remoto, um presente (até mesmo umpassado) distorcido, sobre-real, e qualquer deles imagem— metáfora, parábola, alegoria — do real quotidiano doautor. Um homem (e hoje cada vez mais uma mulher) doseu tempo.

1. «Cíclico ou linear, progressivo ou regressivo, otempo» (assim começava o texto da apresentação de«Tempo e Ciência»). E qual é o tempo da literatura deficção científica?

O tempo é sempre circular, pelo menos num sentido:para o descrever temos de contá-lo, medi-lo — e o tempoé medido em círculos (o que chamamos «períodos»): ocírculo percorrido pelo Sol em redor da Terra, todos osdias; pela esfera celeste, todos os anos; por nós represen-tado, analogicamente, no girar dos ponteiros do relógio.

Em Verne, o tempo é também circular. Isto é, as aven-turas nas suas «Viagens Maravilhosas aos Mundos Conhe-cidos e Desconhecidos» são sempre circulares, de retornoao ponto de partida. Le Tour du Monde en Quatre-VingtsJours (1873) é uma volta à Terra (numa luta contra otempo); Kéraban le Têtu (1883) uma viagem à volta domar Negro: a própria viagem à Lua, se é primeiro De laTerre à la Lune (1865), continua-se Autour de la Lune(1869), e os viajantes acabam por regressar à Terra; acircularidade está presente também em Hector Servadac(1877), uma viagem «à roda» do sistema solar1. A viagem

1 O percurso circular, no espaço, equivale aos ciclos desenhados pelamecânica celeste, e é além disso imagem da circulação de bens carac-terística do liberalismo oitocentista (Cf. Angenot, 20).

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no tempo para a frente, sem retorno, é a autêntica narra-tiva antecipatória; à ficção científica chama-se ainda, porvezes, e segundo uma tradição francesa, literatura de an-tecipação.

Mas na obra de Verne a antecipação é pouco futurista:são inventos e maravilhas tecnológicas, extrapolações acurto prazo a partir da ciência da época, resultantes dooptimismo positivista da revolução industrial de oitocen-tos. «Antecipação» no sentido de projecção futurológica(viagem imaginária ao futuro) fê-la Verne com Paris auXX.ème siècle, de 1863 (anterior às suas Viagens Extraordi-nárias), descoberta postumamente, há poucos anos, e publi-cada pela primeira vez em 1994.

Por outro lado, uma das últimas obras do mesmo autor,publicada cinco anos depois da sua morte, é L’ÉternelAdam (1910), uma história passada num futuro distanteonde o mito de Adão e Eva se reencena após uma catás-trofe universal — no caso vertente, um dilúvio. O tempocircular aí tornou-se cíclico, como o tempo do mito (aocontrário do que acontece nas narrativas de viagens circu-lares, em que o fechamento do círculo significava a conclu-são da aventura).

A progénie duma concepção cíclica do tempo, na lite-ratura da fantasia científica, é infinda. Isso acontece pro-vavelmente porque a ficção científica se assume como amitologia do presente, e daí a incorporação das suasfábulas nessa concepção cíclica, mítica, do tempo e dahistória2. Assim, em A Canticle for Leibowitz (1964),

2 Isso está também, talvez, na origem do êxito das teorias jungianasjunto dos fabulistas do género. A sua abertura a misticismos dúbios estáde acordo com aquilo que para muitos desses mesmos fabulistas éinconfessável: que praticam de facto a fantasia, e que a sua fantasia nãoé nada científica.

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Walter M. Miller, Jr dá-nos uma visão judaico-cristã dumretorno cíclico da história que nos leva dum holocaustonuclear, previsível nos anos de guerra fria em que Millerescreve (1955-1960), a uma nova idade média, uma novarenascença — e a um novo apocalipse atómico. Antesdele, a longa epopeia de James Blish Cities in Flight (qua-tro romances, 1950-1962), aproveita a concepção dosciclos das civilizações exposta por Spengler para as aven-turas das suas cidades viajando pelo espaço, e, na elegíacaPavane (colecção de novelas interligadas, 1966-1968),Keith Roberts acaba por rever as histórias duma His-tória alternativa enquanto uma outra História enten-dida ciclicamente, numa ewige Wiederkunft quase nietzs-chiana.

Já Ursula K. Le Guin, no poético romance anarquistaque é The Dispossessed (1974), usa a física do tempo comometáfora do próprio saber (veja-se o texto de Tavormina),e o tempo, se não cíclico, mas «simul-sequencial», é reinter-pretado pelo herói-cientista numa arrojada transcendênciada física quântica e pós-heisenberguiana (referida como«the magnificent incoherences of quantum mechanics withits high technological yelds»). Mas, se o elemento científico(que na ficção científica é sempre pseudo-científico) éousado, já o viver das personagens tem muito de familiar,e o tempo da viagem (a viagem é peregrinação e enrique-cimento interior) é expresso num dístico com a concisão deum haiku: To be whole is to be part:/true voyage is return(76). E comenta-se noutro ponto, recuperando Heraclito:You can go home, the General Temporal Theory asserts, solong as you understand that home is a place where youhave never been (52).

2. Fale-se de tempo e de ficção científica, e acabaremospor falar da primeira obra maior a tratar do tema: TheTime Machine, de H. G. Wells. Aí se abordam vários tem-

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pos, começando pelo próprio tempo relativístico (o livro éde 1895, mas a ideia já andava no ar): «scientific people...know very well that Time is only a kind of Space» (33), dizo Viajante do Tempo, no princípio, ao impingir ao seuauditório os pressupostos retóricos da sua invenção. Ora a«máquina do tempo» — o veículo de viagem temporal —,se a reduzirmos à sua expressão mais simples, aparececomo num passe de mágica; é apenas, usando nós im-propriamente a terminologia de I. A. Richards, o veículodum determinado teor: a discussão sobre o progressohumano, tanto cultural como biológico. Porque o tempomais importante para o autor, tão marcado por Darwin(e o seu discípulo T. H. Huxley), é o tempo biológico daTerra: o tempo ao longo do qual evoluíram as espécies; umtempo meta-histórico, portanto. (Mais tarde Wells veio ainteressar-se pelo tempo histórico, quer enquanto historia-dor, quer enquanto utopista, mas a isso me referirei maisadiante).

O outro tempo determinante no livrinho de Wells é otempo cósmico: é o tempo físico ao longo do qual se ca-minha para o fim. A segunda lei da termodinâmica e amorte do universo pelo calor é uma preocupação centralduma novela escrita na viragem do século XIX para o XX,esse fin-du-siècle que é também um fin-de-race e um fin--du-monde (cf. a leitura de Bergonzi, especialmente o capí-tulo I).

A viagem no tempo é assumida por Wells em todos ossentidos: até no sentido em que viver é viajar no tempo, donascimento até à morte. Outros utilizaram-na para aven-turas mirabolantes, ou para explorar os paradoxos ineren-tes à viagem ao passado que alterará o presente, exercíciosde estilo, jogos literários ou jeux d’esprit como os de RobertHeinlein («All you Zombies», 1959); os «túneis do tempo»,as «patrulhas do tempo» de Poul Anderson (que impedem

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que viajantes no tempo intrometidos atropelem o cursoda história), ou os guerreiros das batalhas temporais doelegante The Big Time (1961), de Fritz Leiber; e os time-slips — saltos entre tempos alternativos, em que no casode Philip K. Dick (Martian Time Slip, 1964), as desconti-nuidades temporais são produto de perturbações men-tais (autismo, esquizofrenia) que reflectem/reagem a ummundo insano (numa linha evocativa da antipsiquiatria deR. D. Laing).

3. Ao jogar com o tempo, ao permitir diferentes linhastemporais que vão permitir mundos alternativos — opçõesdiferentes na história —, a ficção científica abre caminhoà discussão do nosso próprio mundo e abre-se a outrogénero, ou subgénero literário, que alguns (como DarkoSuvin, desde 1973) consideram uma subdivisão da mesmaficção científica: a utopia. Se a utopia é uma contestaçãoda história, a invenção, a proposta dum lugar-outro emque a história correu melhor que aqui, então ao reescrevero lugar da história está também a reescrever, a reinventaro Tempo (demos-lhe, por uma vez, a maiúscula). Se a uto-pia foi muito tempo numa ilha ignota, num vale remoto einacessível, enquanto o mapa do planeta ia sendo extensi-vamente desenhado, chegou-se, no fim do século XIX, àutopia moderna que ou se constrói hipoteticamente noutromundo (como em A Modern Utopia, 1905, de Wells) ou sedesloca para um horizonte de esperança a realizar no tempoque há-de vir. As novas utopias projectam-se no futuro,num tempo linear, unidireccional. Por vezes até, quando aficção utópica se cruza com as convenções tradicionais daficção científica e se permite inventar vários futuros alter-nativos, várias possibilidades de resposta aos problemasdo presente, esse tempo futuro projecta-se pluridireccional-mente em tempos paralelos.

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Citei Wells, obrigatoriamente, ao falar da fantasiosamáquina do tempo; voltei a falar dele, incidentalmente, apropósito do tempo da utopia. Wells soube articular essasduas perspectivas: em A Máquina do Tempo levou o seuViajante até um ponto futuro em que a humanidade haviafruído da felicidade utópica, mas degenerando depois (autopia é histórica, dinâmica, não estática...); em UmaUtopia Moderna a alternativa posta em discussão é umprojecto para a nossa própria história.

4. H. G. Wells é o «pai» da ficção científica do séculoXX; Philip K. Dick, de quem mencionei os tempos e univer-sos alternativos, é dos mais conceituados autores do fimdo mesmo século. Se a preocupação com a construção dautopia, por parte de Wells, o fez abandonar a fantasiacientífica convencional — abandonou, por assim dizer, aarte por amor à causa do planeamento utópico —, em Dicka «planificação temporal» está de todo ausente; utopianele é um vago desejo ou ânsia de algo melhor que acondição presente, que nos é apresentada como um locusinfernalis. O jovem Wells mostrava a contradição insolúvelentre um desejo de ultrapassar as leis cegas da evolução— o desejo de criar a ordem nova, a sociedade mais per-feita (a utopia) — e a inelutável lei cósmica que conduz àmorte do universo. Contra a lei da entropia não há nadaa fazer: toda a resistência é relativa e transitória, condena-da ao fracasso final. Mas há que resistir: «if that is so, itremains for us to live as though it were not so», diz-se nofinal de The Time Machine.

Sessenta anos mais tarde, Philip K. Dick vê na socieda-de de consumo uma ordem sócio-económica produto dumacivilização industrial que é o primeiro catalisador da se-gunda lei da termodinâmica. O bom funcionamento daeconomia, as «vitórias» dos grandes industriais, acele-

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rando a circulação dos bens de consumo, contribuem parao aumento da entropia. O resultado é, na palavra criadapor Dick, kipple:

kipple is useless objects, like junk mail or match-folders[...] when nobody is around, kipple reproduces itself [...]there’s the first law of kipple. Kipple drives out non-kipple[...] no one can win against kipple, except temporarily andmaybe in one spot, like in my apartment [...] the entireuniverse is moving toward a final state of total, absolutekippleization3. (cap. 6)

O que se mantém presente, como em Wells, é a lutacontra o caos, a desagregação, a desordem crescente queo tempo — e a acção dos homens no tempo — provoca,ou acelera. Ao decadentismo das páginas de The TimeMachine responde Dick com a angústia do Memento morinum mundo espectral e alienante. No seu romance TheThree Stigmata of Palmer Eldritch (1964) aparece omesmo optimismo postiço de resistência ao inelutável:«we’re only made out of dust. [...] But even considering[...] we’re not doing too bad. So I personally have faiththat even in this lousy situation we’re faced with we canmake it.» (5)

5. Finalmente: comentando a asserção de Kim S.Robinson de que a ficção científica é um género histórico— no sentido em que a ficção apresentada tem sempre umvínculo histórico implícito a unir o tempo da ficção aonosso próprio presente, John Clute sugere que esta ideia«underline[s] the sense US sf convey[s] of being connectedto the linear, time-bound logic of the Western world»

3 Dick, P. K., Do Androids Dream of Electric Sheep?, cap. 6.

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(Clute, 1993, 314). E voltamos ao princípio: o tempo new-toniano, linear, preside a uma concepção de progresso tec-nológico, também linear, que subjaz à hegemónica filosofiado desenvolvimento económico e social do mundo ociden-tal, ao modo como entendemos o «progresso». Foi nestemundo que surgiu o fenómeno socioliterário a que cha-mamos ficção científica. Felizmente, a literatura guardaalguma liberdade para contestar essa hegemonia: desdereinventar o tempo circular a contestar os caminhos doprogresso — como o fazia já Wells, e como ostensivamenteo fazem, recorrentemente, muitos outros. A mitização doprogresso parece ser o pano de fundo da ficção científica,da literatura de antecipação, mas inventar histórias ondeesse progresso (sempre tecnológico...) apareça nas suas con-sequências mais absurdas e sob a forma dos mais indizíveispesadelos é igualmente produto da mesma ficção cientí-fica. É ver James Ballard cantando ambiguamente nosMyths of the Near Future (1982) as possibilidades ou asperversões da sociedade pós-industrial, ou Martin Amiscom os seus Einstein’s Monsters (1987), filhos de váriascatástrofes (ou o sua Time’s Arrow, 1991, que corre paratrás...), ou John Sladek, que repensa o optimismo robóticode Isaac Asimov nos seus dois Roderick (1980, 1983), ouJohn Updike em Toward the End of Time (1997), ouVonnegut em Timequake (1997)...

P. S. Só faltaria mesmo, para acabar, perguntar a umautor de ficção científica o que é o tempo. Como já men-cionei os melhores autores, vou terminar com um dosmenos cotados: o pulp writer Ray Cummings, que na suanovela The Man Who Mastered Time define o tempo comoele é: what keeps everything from happening at once(citado em Clute, 1993, 1228).

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Bibliografia

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BERGONZI, Bernard (1960), The Early H. G. Wells, Manchester,Manchester University Press.

BLOCH, Maurice, «Que espécie de ser é que os antropólogosassumem estudar. O exemplo da compreensão do tempo»,neste mesmo volume.

CLUTE, John (ed.) (1993), The Encyclopedia of Science Fiction,Londres, Orbit.

DICK, Philip K., The Three Stigmata of Palmer Eldritch, Londres,Panther, 1978.

LE GUIN, Ursula K., The Dispossessed, Londres, Granada, 1975.TAVORMINA, Maria Teresa, «Physics as Metaphor: the General

Temporal Theory in Le Guin’s The Dispossessed», Mosaic,13 (1980).

SANTO AGOSTINHO, Confissões, trad. J. Oliveira Santos e A. Am-brósio de Pina, 2.a ed., Porto, Livraria Apostolado da Im-prensa.

SUVIN, Darko, «Defining the Literary Genre of Utopia: SomeHistorical Semantics, Some Genology, a Proposal and a Plea»,Studies in the Literary Imagination, 6.2 (1973) (depois reim-presso como o terceiro capítulo de Suvin, Metamorphoses ofScience Fiction, New Haven, Londres, Yale University Press,1979).

WELLS, H. G., The Definitive Time Machine, Bloomington eIndianapolis, Indiana University Press, 1987.

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Comentário ao textode Maurice Bloch

LUÍS REIS TORGAL

Faculdade de Letras, Universidade de [email protected]

1. Nesta breve e informal intervenção de comentário aoProf. Bloch (que, na verdade, é mais uma reflexão solta doque um comentário), apenas desejo, em síntese, fazer adefesa da antropologia. Na verdade, a história deve muitoà antropologia, dado que ela nos veio, a nós historiadores,dar uma outra dimensão do tempo.

É certo que desde Heródoto, considerado no ocidente o«pai da história», se tem a noção de que ela é a arte decontar a vida do homem no espaço e no tempo. Hoje diriaque a história tem também o estatuto de ciência ou de«literatura científica», como lhe costumo chamar. Mas nempor isso, até quase aos nossos dias, se teve uma dimensãocorrecta do tempo e do espaço. Por exemplo, o conceito

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vulgar e generalizado de história universal é afinal sobre-tudo um conceito de história universal centrado na expe-riência de tempo e de espaço de quem a vê. Por isso ahistória universal — expressão hoje, felizmente, menos uti-lizada — era sobretudo a «história universal» vista peloolhar europeu.

É preciso viajar — percorrer o espaço — e entrar emcontacto com os homens e as culturas para perceber comoé diversa a noção do tempo. Ainda há dias li um texto dodiário da Zélia Gattai, no qual dizia, ao vir da Bahia pelaprimeira vez à Europa, como ficara impressionada com asestações do ano, que lhe davam uma outra dimensão dotempo, como se tem, quando se muda de lugar, uma outradimensão do espaço, relacionado não apenas com o que sevê, mas até com o que se sente, por exemplo mesmo aonível do olfacto. Os cheiros da África são algo inesquecívelpara quem alguma vez ali viveu.

O tempo está, pois, igualmente relacionado com o maior«nomadismo» ou «sedentarismo» do homem, embora onomadismo dos povos do deserto possa não lhes dar umanoção de tempo muito complexa, visto ser pautado pelasregras de um quotidiano muito uniforme. Contudo, quemnão sai do mesmo sítio tem uma noção de tempo diferentede quem se desloca de um lado para outro, assim como umilhéu poderá ter a noção de tempo diferente de um habi-tante de um grande continente, nomeadamente de um con-tinente em constante ebulição. A leitura é, porém, umaforma de viajar, que pode atenuar o isolamento de certoshomens mais dados ao «sedentarismo». E estas diferençasentre o «sedentário» e o «nómada» vão-se desfazendo hoje,é certo, com a globalização, ou com o conhecimento «si-multâneo» de acontecimentos que se vão verificando nasdiversas partes do mundo, mas em especial com a transfe-rência de produtos e de conhecimentos. Seja como for, há

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COMENTÁRIO AO TEXTO DE MAURICE BLOCH 159

ainda uma reserva de protecção que mantém a «diferença»,dado que o «virtual», apesar de tudo, não se pode sobre-por ao «real».

2. Quando estive em África, na Guiné, em serviço mili-tar, no final dos anos 60, devido à minha formação deaprendiz de história e a uma pouco importante formaçãona área de antropologia (limitada a cadeiras de Etnologia,que eram apenas opções no curso), procurei fazer um es-tudo sobre a etnia balanta, de que ainda guardo muitosapontamentos manuscritos. A minha maior dificuldade eraentender a noção do tempo e a dimensão da morte (a qualsupõe a noção de tempo), que não é a mesma dos paíseseuropeus. E esse meu interesse em realizar um estudo sobreos balantas, em «chão balanta», resultou também daprimeira experiência que tive quando cheguei a Mansoae deparei com a celebração da morte de um «homemgrande», que originou uma grande festa, um batuque desete dias. A morte e a vida não têm entre alguns povosverdadeira separação, nem sequer separação espacial, poisos mortos são enterrados perto dos vivos, comungandocom eles o quotidiano da «tabanca».

Como dizia Pina Cabral, a morte pode ser entendidacomo um reviver. Mas, se assim sucede nas culturas afri-canas e de outros povos situados noutros locais do plane-ta, nas nossas civilizações ocidentais, cheias de «vitalida-de» e mais dramaticamente confrontadas com a ideia damorte, pode igualmente haver uma noção de morte comoum reviver. É o que sucede com o comemorativismo de raizpositivista e com a ideia de que os mortos comandam maisa história do que os vivos.

3. Desejava sintetizar, antes de concluir, que devo, emgrande parte, à minha experiência e aos escassos conheci-mentos de antropologia a minha visão do tempo, que passapela relativização da importância das civilizações ditas

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«desenvolvidas», não recusando, obviamente, os seus valo-res, quando bem utilizados, de que quotidianamente usu-fruo.

Depois destas modestas considerações, ditas e depoisescritas desordenadamente, por assim dizer «ao correr doespírito», proponho que, em história, se olhe a cronologia,a «ciência do tempo», com outro olhar e como uma ciênciacomplexa. Nela não está em causa somente a datação,que inspirou obras clássicas de erudição, sobretudo desdeo século XVII, por exemplo a datação «antes de Cristo»(a. C.)/«depois de Cristo» (d. C.), que é mais recente doque se supõe — como curiosidade, o documento, algopolémico, de criação desta universidade (que veio a ser ade Coimbra), em Lisboa, por D. Dinis, dá-a como funda-da, não em 1290 (data por todos nós conhecida), mas noano de 1328 da «era de César», pois só pelo século XV sepassou a adoptar a «era de Cristo». E por várias vezes nosmovimentos revolucionários de esquerda e de direita sepretendeu utilizar outra datação e outros calendários. É ocaso exemplar da Revolução Francesa, mas também, comoutro sentido, mais simples, sem quebrar com o calendáriocristão, o caso do fascismo.

Nesta visão complexa da cronologia deve todavia salien-tar-se sobretudo o papel da antropologia, que veio trans-formar profundamente a ideia de tempo em história. Porexemplo, só depois dos anos 50 do século XX se quebroua ideia dos «povos sem história», assim pensados, numaconsciência «colonial-ocidental», porque se entendia queeram povos sem escrita e sem a noção de tempo longo.O que se concluiu é que esses povos tinham uma noção«diferente» de tempo, e os acontecimentos eram conserva-dos numa memória oralizada. Os conceitos de conjunturae de estrutura — hoje mais afastadas do modismo, concei-tos que fizeram as delícias da «história nova», mas que

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COMENTÁRIO AO TEXTO DE MAURICE BLOCH 161

permanecem como ideias importantes da epistemologiahistórica — resultam também de outras visões, criadas fun-damentalmente no domínio de outras ciências sociais me-nos «nervosas», como a antropologia e a sociologia. Hoje,apesar do regresso e da apologia, que muitas vezes se faz,da «história política» e da narrativa, não podemos dizerque voltámos à noção simples de uma cronologia«acontecimental». Para além da consciência da complexi-dade dos problemas de tempo, temos a noção relativista deque qualquer cronologia se situa num espaço e num tempopróprios, que funcionam como fundamento e justificaçãoda sua centralidade.

A velha ciência da cronologia é pois outra, bem diferentedaquela de que falavam os antigos... E o mesmo se passacom a mais antiga arte ou ciência da história, que devepreocupar-se constantemente em tornar-se «nova», semmodismos e simplismos, mas com o gosto da interrogaçãoconstante, que passa necessariamente pelo questionamentoda noção de tempo.

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Outras versões da realidade?Maurice Bloch e o relativismo

cultural

ROBERT ROWLAND

Departamento de Antropologia, [email protected]

Segundo um manual de introdução à antropologia bas-tante difundido em Portugal, «o relativismo cultural [...] éuma aquisição da antropologia e o seu significado culturalleva ao respeito por todas as culturas». Segundo o autor,é através da «valorização de todas as variantes culturais»que a antropologia se torna capaz de «superar as discri-minações e os preconceitos» e de combater o etnocen-trismo, definido como «doença cultural que [...] leva,necessariamente, ao preconceito social e cultural» (Ber-nardi, 1978, 45).

Não é difícil compreender a atracção que uma tal pers-pectiva pode exercer sobre os jovens nas sociedades actuais,

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em que as consequências da globalização e a problemáticado multiculturalismo têm vindo cada vez mais a ocupar ocentro das atenções. Para além da atracção pelo exótico,uma preocupação ética com a diversidade cultural e assuas implicações parece encontrar-se frequentemente portrás da escolha de curso feita pelos alunos, que vêm paraa faculdade, muitas vezes, convencidos de que a missão daantropologia, entendida como imperativo moral, é a com-preensão do outro. Cumprir-nos-ia por isso esclarecer logoà partida, nas cadeiras introdutórias dos cursos de antro-pologia, em que medida esse projecto é viável e quais sãoas suas principais implicações epistemológicas. Isto passa-ria pela discussão explícita do modo como, pelo menosdesde a sua institucionalização académica em finais doséculo XIX, a antropologia tem vindo a (re)definir o seuobjecto. O que nem sempre se faz.

Num texto recente, Maurice Bloch (2005) acusa osantropólogos de se terem a tal ponto deixado disper-sar, levados pelo relativismo cultural, por sucessivos temasem moda que a antropologia hoje em dia já não possuinem coerência, nem método, nem objecto definido. A res-posta, segundo Bloch, passaria pela recuperação de umapreocupação simultânea com as características univer-sais do homem (a «natureza humana») e com o modo deorganização de diferentes sistemas socioculturais. Em rela-ção a estes últimos, a «cultura» deveria, no seu entender,ser contextualizada e analisada — numa abordagem quedefine como «funcionalista» — como parte do processoecológico de vida das pessoas em contextos determinados,e não apenas como um sistema autónomo de característi-cas culturais, crenças, símbolos, representações, etc. A dis-cussão da noção de tempo que o autor agora nos propõefaz parte, assim — como, de resto, se indica no própriotítulo — de uma discussão mais ampla sobre a problemá-

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tica do relativismo cultural e sobre o próprio objecto daantropologia.

Se o relativismo cultural que atrai os nossos alunos hojeem dia parece derivar de um imperativo moral, as suasorigens têm pouco a ver com a recusa do etnocentrismo oucom o multiculturalismo. Prendem-se antes com o movi-mento das ideias na Europa de finais do século XIX e emparticular com a trajectória intelectual, e com a influênciana antropologia norte-americana, de Franz Boas. Enquan-to jovem estudante de Geografia na Alemanha, no inícioda década de 1880, Boas fora influenciado pelo idealismoneokantiano dos adversários do darwinismo. A sua insis-tência na primazia do espírito sobre a biologia levou-o,ainda em 1888 (antes mesmo de ter iniciado os seus estu-dos antropológicos), a afirmar que «os dados da etnologiaprovam que não apenas o nosso conhecimento, como asnossas próprias emoções, resultam da forma da nossa vidasocial e da história do povo a que pertencemos» (1966[1888], 636). Muitos dos seus trabalhos, e dos dos seusdiscípulos, inseriam-se explícita ou implicitamente nesteprograma idealista. Demonstrar a variabilidade, de umacultura a outra, de formas de comportamento supostamen-te resultantes das características naturais e biológicas dohomem — como, por exemplo, a vivência da sexualidadee da adolescência, a expressão da agressividade, ou a na-tureza dos papéis masculino e feminino — era uma manei-ra de afirmar, nesses termos, a primazia do espírito e deconstituir a antropologia como ciência da cultura.

Os trabalhos de Boas e dos seus discípulos — bastarárecordar aqui os nomes de Kroeber, Margaret Mead ouRuth Benedict — adquiriram contudo uma ressonânciamais ampla (e ideológica) no âmbito da chamada contro-vérsia nature/nurture, acerca do papel respectivo da biolo-gia e da cultura, ou de factores fisiológicos e ambientais

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na determinação do comportamento humano — desde asexualidade ao aproveitamento escolar (ou ao QI) e à pro-pensão para a delinquência. Neste contexto, o «relati-vismo» passou a estar conotado com uma posição políticaliberal, ou progressista, e com uma ideologia favorável àacção afirmativa do Estado, enquanto uma posição «anti--relativista», que procura explicar essas mesmas diferençasde comportamento através de factores biológicos ou natu-rais, passou a estar associada a uma ideologia políticaconservadora, à recusa do multiculturalismo e à defesa dosvalores «universalistas» do Ocidente1.

Independentemente dessas ressonâncias ideológicas, queno contexto norte-americano têm vindo a alimentar umadisputa interminável e parecem destinadas a contaminar aprópria discussão em antropologia, o relativismo culturallevanta um conjunto de questões teóricas que merecem seraqui brevemente esclarecidas2.

Quando se fala em relativismo cultural está-se a referira variabilidade, entre culturas, de um fenómeno x — e, por

1 A título de exemplo, poder-se-ia referir a publicação regular deartigos contra o «relativismo» numa revista neoconservadora como TheNew Criterion. Cfr. Windschuttle, 2002.

2 Em muitos casos — como, por exemplo, no texto de Bernardicitado no início deste comentário ou em muitas das discussões ideoló-gicas norte-americanas —, o relativismo refere-se, em termos bastanteamplos, à avaliação de culturas ou formas culturalmente específicas decomportamento. O relativismo, neste sentido valorativo, equivale àrecusa de considerar qualquer cultura (por exemplo, a «civilização oci-dental») superior ou modelo para as outras. O locus classicus destaversão do relativismo é o panfleto Race et histoire de Claude Lévi-Strauss (1952), escrito a pedido da UNESCO para combater o precon-ceito racial e cultural. Mas, em última análise, o que está em causa éo carácter culturalmente relativo de valores e categorias éticas e morais.Neste sentido, não há qualquer diferença essencial entre este e orelativismo cognitivo.

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conseguinte, a noção de que esse mesmo x resulta defactores culturalmente específicos. X, neste contexto, podereferir-se a normas, valores e emoções, mas em últimaanálise o que está em jogo são as categorias de pensamentosubjacentes ao fenómeno. Neste sentido, o relativismocultural é antes de mais uma questão cognitiva que, nasúltimas décadas, tem dado origem, sobretudo no contextoda antropologia social britânica, a uma ampla discussãoepistemológica centrada na questão da racionalidade. Faceàs crenças aparentemente irracionais manifestadas poralguns povos, em relação, por exemplo, à magia e à feiti-çaria, argumentou-se que estaríamos não perante formasirracionais de pensamento, mas perante formas alternati-vas de racionalidade3. As proposições que a nós, ociden-tais, apareciam como absurdas ou incompreensíveis read-quiririam assim o seu sentido quando vistas no seu contextoapropriado, que é o sistema de pensamento do povo emquestão. Criticando esta forma radical de relativismo cogni-tivo, Lukes, Hollis e outros argumentaram que a compreen-são do outro e a explicação do seu comportamento pressu-põem que ambos, observador e observado, partilhem umaúnica e mesma racionalidade, porque de outro modo acomunicação de sentido seria impossível. Para resolver oproblema das crenças aparentemente irracionais, Hollispropõe que estas sejam consideradas «crenças rituais»4.Outros, numa perspectiva de análise de tipo holista, pro-

3 A discussão que se segue aplica-se de igual modo ao argumentodesenvolvido por Sapir e Whorf (cfr. infra), segundo o qual as diferen-ças culturais, no que diz respeito à percepção, implicam a existência deversões alternativas da realidade.

4 A dificuldade, neste caso, reside no estabelecimento de um critérioobjectivo para a definição de uma crença como «ritual». Se o critériofor apenas a medida em que o observador/antropólogo a consideraracional, estaremos num beco metodológico sem saída.

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curaram resolver o problema tentando recuperar, não osentido intrínseco que a crença ou acção possam ter parao próprio actor, mas o seu sentido extrínseco ou socioló-gico, definido em termos do contexto em que ocorre e dalógica de funcionamento da sociedade5. Uma vez que acomparação entre sociedades pressupõe a existência deaspectos do seu funcionamento que não sejam cultural-mente específicos, uma análise funcionalista deste tipoacaba por exigir o recurso a uma definição a priori da«essência» de uma sociedade, entendida como definiçãomínima — e nesse sentido, universal — das característicasde toda e qualquer sociedade. A chamada «teoria das ne-cessidades» de Malinowski constitui, deste ponto de vista,uma tentativa simplista, mas bem intencionada, de definirinvariantes funcionais que pudessem balizar uma análisefuncionalista comparativa.

Sem poder aprofundar aqui a discussão, diria apenasque a história da antropologia ao longo do século XX

mostra: (1) que o relativismo cultural, levado até às suasúltimas consequências, põe em causa a comunicaçãointercultural de sentido (e, por conseguinte, a própria pos-sibilidade da antropologia) e (2) que uma análise compa-rativa, mesmo num quadro de relativismo cultural, pressu-põe a definição prévia de características universais (doshomens ou das sociedades, ou — diria eu — do homem--em-sociedade) capazes de garantir a comparabilidade dosfenómenos analisados6.

A questão do tempo, escolhida por Bloch para funda-mentar a sua crítica do relativismo cultural, é, neste con-

5 É o caso de muitos dos estudos sobre a feitiçaria africana efectua-dos após a Segunda Guerra Mundial.

6 Permito-me remeter aqui para a discussão mais ampla da questãoem Wilson, 1974, Hollis e Lukes, 1982, e Rowland, 1987.

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texto, uma questão fulcral. A categoria do tempo, tal comoa do espaço, é constitutiva de qualquer visão do mundo. Sedois povos tivessem concepções diferentes do tempo (oudo espaço), seria a sua própria percepção da realidade queestaria em questão. Poder-se-ia de facto afirmar que viviamem mundos diferentes, em versões diferentes da realidade.Demonstrar a relatividade das concepções de tempo equi-valeria a demonstrar, de maneira iniludível, a primazia dacultura sobre a biologia e a força dos determinismos cul-turais na estruturação da percepção sensorial.

Na antropologia cultural norte-americana, a figura cen-tral nesta discussão foi Benjamin Lee Whorf, aluno dolinguista Edward Sapir. Fiel ao programa de Boas, Sapirenfatizara, durante a década de 1920, o papel da lingua-gem na percepção da realidade, atribuindo-lhe uma funçãoestruturante, quando não constitutiva, da realidade vivi-da7. Durante a década seguinte, e até à sua morte prema-tura, aos 44 anos, em 1941, Whorf debruçou-se em parti-cular sobre o caso dos índios Hopi, argumentando que aprópria estrutura da sua língua, e em particular a ausênciade tempos verbais, impedia a emergência de uma represen-tação do tempo enquanto tal. Segundo Whorf, para umhopi os acontecimentos e os processos eram situados tem-poralmente, ou localizados, principalmente em relação aoutros acontecimentos ou processos naturais, como a po-sição do Sol ou a cor do céu ao amanhecer8. No seu texto,Bloch refere sucintamente as principais conclusões deWhorf. Mas embora reconheça que as suas teses, pelomenos na sua formulação mais matizada, ainda têm defen-

7 Cfr. sobretudo «The Status of Linguistics as a Science», 1958[1929], 69.

8 A maior parte dos trabalhos de Whorf foi publicada apenas apósa sua morte. Cfr. em especial Whorf, 1956.

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sores, reproduz as conclusões dos seus críticos e parececonsiderar que a posição de Whorf é demasiado fundamen-talista para ser objecto de uma discussão mais aprofundada.A sua crítica centra-se sobretudo em dois estudos: a clás-sica monografia de E. E. Evans-Pritchard (1940) sobre osNuer do Sudão meridional, e o estudo mais recente deNancy Munn (1986) sobre a ilha de Gawa na Papua-NovaGuiné9.

Na antropologia social britânica, a figura central nadiscussão é Evans-Pritchard, que, na sua monografia sobreos Nuer (1940), inclui um célebre capítulo intitulado «Es-paço e tempo». Neste, o autor procura demonstrar queentre os Nuer, «em última análise a maioria, talvez todosos conceitos de tempo e espaço são determinados peloambiente físico, mas os valores que [estes conceitos] incor-poram constituem apenas uma de entre várias respostaspossíveis [ao meio ambiente] e dependem também de prin-cípios estruturais, que dizem respeito a uma outra ordemda realidade» (p. 43). Distingue assim entre os «conceitosde tempo que reflectem as relações com o meio ambiente»,a que chama o «tempo ecológico», e os que reflectem asrelações entre grupos na estrutura social, que nomeia comoo «tempo estrutural». Ambos, diz, «se referem a sucessõesde acontecimentos» suficientemente importantes paraserem recordados e relacionados entre si. O tempo ecoló-gico reflecte o ciclo anual das chuvas e da transumânciados Nuer com o seu gado e refere-se ao tempo curto, cons-tituído por ciclos anuais. Os acontecimentos situados no

9 Bloch critica a análise das representações do tempo neste livro, eem particular a noção de que em Gawa o tempo e o espaço são cons-tituídos através de práticas sociais, mas o exemplo não acrescenta muitoà crítica mais geral desenvolvida a propósito de Whorf e Evans-Pritchard.

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tempo longo dizem respeito às mudanças nas relações entregrupos, como fusões e divisões de linhagens ou unidadesterritoriais, e têm como referência a estrutura das relaçõesentre esses grupos e a sua profundidade genealógica. Evans-Pritchard afirma que o tempo estrutural é vivido pelosindivíduos de forma progressiva, mas que pela sua próprianatureza o tempo ecológico parece ser, e é, cíclico. Maisadiante, especifica ainda que, apesar de se ter referido aotempo e a unidades de tempo, os próprios Nuer não pos-suem qualquer palavra equivalente à noção europeia de«tempo». E acrescenta, «os acontecimentos seguem umaordem lógica, mas não são controlados por um sistemaabstracto, não havendo quaisquer pontos de referênciaautónomos aos quais as actividades tenham de se confor-mar com precisão» (p. 103).

Segundo Bloch, a análise das representações do tempoentre os Nuer corresponde a uma tentativa de aplicação daanálise da determinação social do tempo proposta porDurkheim em Les Formes élémentaires de la vie réligieuse(1912). Essa análise, diz ele, é falaciosa, na medida em quepretende concluir, com base no facto, em si banal, de asunidades de medida do tempo serem variáveis de sociedadepara sociedade, que a própria cognição do tempo é social-mente estruturada. Por se basear implicitamente no projectode Durkheim, a análise de Evans-Pritchard encontrar-se-áviciada à partida.

Em relação à análise concreta desenvolvida por Evans-Pritchard, Bloch expõe dois tipos de objecções. Afirma,antes de mais, que o próprio autor apresenta dados quecontradizem o seu argumento. O antropólogo britânicodiria, assim, que a concepção do tempo entre os Nuer eracíclica, e depois falaria de situações que pressupõem airreversibilidade dos acontecimentos e que seriam incom-patíveis com qualquer concepção cíclica do tempo. Ora,

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apesar de Evans-Pritchard afirmar (p. 95) que «o tempoecológico parece ser, e é, cíclico», o contexto torna claroque o tempo ecológico, ou curto, é cíclico apenas namedida exacta em que as «sucessões de acontecimentos»(p. 94) são referenciadas ao ciclo anual das estações, dogado e da transumância. Os acontecimentos não são rever-síveis, os processos a que são referenciados é que se repe-tem. Não me parece possível outra interpretação, até por-que o autor acrescenta, mais tarde, que os Nuer costumamutilizar, para assinalarem acontecimentos ocorridos aolongo de períodos intermédios, de entre um e cinco anos,os termos que significam «o ano anterior ao ano passado,o ano passado, este ano, o ano próximo e o ano depois dopróximo». E acrescenta: «O tempo é para os Nuer umaordenação de acontecimentos muito significativos para umgrupo.» (p. 104-5).

Fica-se de facto com a impressão de que a posição deBloch em relação às análises aqui focadas é, pelo menosem parte, uma objecção de princípio, baseada na recusaliminar do relativismo cultural e das suas implicações. Estaimpressão é reforçada quando se analisa o segundo dosseus argumentos críticos. Segundo Bloch, mesmo que aanálise de Evans-Pritchard — ou a de Nancy Munn — nãofosse contraditória, a sua atitude seria mesmo assim dedesconfiança, porque investigações recentes em psicologiacognitiva demonstraram que «a compreensão básica dotempo se encontra radicada no ser humano desde o seunascimento». Em termos concretos, estas investigaçõesdemonstraram que mesmo as crianças recém-nascidas, oumuito novas possuem a capacidade de perceber que umacausa precede o seu efeito — uma capacidade, de resto,provavelmente partilhada com os primatas e talvez outrosanimais — e que aquelas de até 4 anos são capazes dedescrever sequências impressionantes de acontecimentos e

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actividades que lhes são familiares. Apesar de estas inves-tigações terem sido conduzidas principalmente no contex-to da cultura euro-americana, Bloch considera que não hámotivos para crer que as crianças oriundas de outros con-textos culturais não sejam capazes de lidar com sequênciasde acontecimentos do mesmo género. E conclui: «Quandoconfrontados com as investigações no domínio da psicolo-gia, os princípios defendidos por Durkheim, Whorf, Evans-Pritchard e Munn parecem desenquadrados, se não pura esimplesmente errados.»

Não creio que um conjunto de experiências, efectuadasmaioritariamente num ambiente cultural euro-americanosobre a capacidade das crianças para lidar com sequências deacontecimentos possa invalidar as análises já referidas, quetêm outro âmbito e outro objecto10. Aliás, como acabamosde ver, é o próprio Evans-Pritchard quem insiste no facto deos Nuer viverem o tempo como sucessões (por vezes, nãocompletamente comensuráveis) de acontecimentos significa-tivos, indo ao ponto, quando necessário, de invocar a suces-são de até cinco ciclos anuais para poderem lidar comsequências mais longas ou espaçadas de acontecimentos.

Mas também não me parece que a solução para as di-ficuldades actuais da antropologia11 possa ser procurada

10 Mais adiante, Bloch refere as posições de psicólogos evolucionistascomo Pinker, Tooby e Cosmides, que defendem, contra a antropologiae contra qualquer forma de relativismo, que os processos de cognição,percepção e representação têm uma base biológica resultante do proces-so de evolução e são, por conseguinte, universais e idênticos em toda aespécie humana. Não é claro qual o crédito que Bloch dá a este grupo,que parece representar um consenso minoritário mesmo dentro da psi-cologia cognitiva (cf. Fodor, 2002).

11 Que, como vimos, Bloch atribui às consequências e sequelas dorelativismo cultural, mas que eu talvez considerasse antes uma consequên-cia do culturalismo relativista e da sua recente evolução «pós-moderna».

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numa tentativa de simplesmente combinar as perspectivas— a meu ver, incompatíveis porque mutuamente exclu-sivas no plano dos pressupostos — da antropologia fun-cionalista e da psicologia cognitiva, procurando conciliaro reconhecimento da variabilidade cultural com umapreocupação mais clássica em torno da velha questão da«natureza humana»12. Como tentei sugerir na primeiraparte deste comentário, foram os próprios impassesepistemológicos do relativismo cultural que levaram à ne-cessidade de tentar fundamentar a análise comparativanuma definição a priori da essência, ou natureza, do objectode estudo da antropologia. Dando de barato que esseobjecto seja o «animal político» de Aristóteles, e não ohomem individual ou a sociedade enquanto tal, penso queo caminho a seguir deve passar pela tentativa de estabele-cer um quadro de análise comparativo, fundamentadonuma ontologia do social13, em termos que permitam terem conta, simultaneamente, as dimensões irredutivelmenteindividual e colectiva da existência do homem em socie-dade.

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BLOCH, Maurice, 2005, «Where did anthropology Go? Or theneed for ‘Human Nature’», Public Lecture, London School of

12 Tal como proposto por Bloch neste e no seu outro texto já refe-rido (2005).

13 Cfr., a este respeito, o clássico estudo de Giannotti (1966), que,num outro contexto — o da filosofia marxista —, se debruça precisa-mente sobre este problema.

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Duplicação e modificaçãode seres humanos. Factos

e fantasmas

BERTRAND JORDAN

Universidade de [email protected]

O tempo de pesquisa, em particular o tempo na biolo-gia, sofreu nas últimas décadas uma incrível aceleração.Um dos mais impressionantes aspectos com que a questãonos confronta é o da clonagem1. Puro tema de ficção cien-tífica durante anos e anos, depois do Brave New World deAldous Huxley, publicado em 1932, a «cópia conforme»de mamíferos tornou-se uma realidade, subitamente e con-tra todas as expectativas, com o nascimento de Dolly,anunciado a 27 de Fevereiro de 1997. A partir daí, a cor-rida à clonagem reprodutora de seres humanos acelerou-se

1 Vd. Bibliografia, 1.

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tremendamente e as reivindicações dos três aspirantes de-clarados à sua consecução (o italiano Severino Antinori, oamericano Panos Zavos e o «bispo» de Raël, BrigitteBoisselier, directora da empresa Clonaid) tornaram-se maisprecisas. O mediático anúncio do «primeiro clone huma-no», a 26 de Dezembro de 2002, revelou-se, afinal, umbelo golpe de teatro, mas as tentativas prosseguem.

Os fantasmas da clonagem

A clonagem humana sempre evocou poderosos fantas-mas. Um deles é a ideia de que assim se criaria um «duplo»da pessoa clonada, um indivíduo que em tudo lhe seriasemelhante, e não só no plano físico, como também quan-to a carácter e personalidade. É dessa ilusão que tirampartido os seguidores de Raël, ao prometerem «a imorta-lidade graças à ciência». Esquece-se que a clonagem pro-duz um novo ser, não um adulto, e que esse «gémeo decla-rado no tempo» há-de passar a sua infância e há-de crescernum mundo e em circunstâncias muito diferentes das dooriginal, sendo por isso escassas as hipóteses de que se lheassemelhe completamente. Outra falsa ideia é a da produ-ção em série de seres feitos sob medida, ora soldados deuma extraordinária resistência, ora génios às dúzias. Des-cura-se o facto de que, para produzir uma armada de clo-nes, seria necessária uma armada de mães-incubadoras, semesquecer o necessário «prazo de fabrico» de uns vinte anos...Um momento de reflexão é quanto basta para compreen-dermos que essas duas visões da clonagem têm tanto deilusório quanto de absurdo, apesar de se encontraremomnipresentes nas representações que dela são apresenta-das ao grande público e de dominarem a imaginação dosnossos contemporâneos. Tudo isso mostra bem a influên-

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DUPLICAÇÃO E MODIFICAÇÃO DE SERES HUMANOS 179

cia que sobre nós é exercida pela ideia de «duplo» e pelofabrico de seres humanos ou de humanóides, como a cria-tura de Frankenstein ou o Golem da lenda judaica.

Uma cuidadosa análise não só dos conhecimentos adqui-ridos, mas também dos problemas suscitados pela clonagemanimal, logo nos permite regressar à realidade. A ideia--base é bastante simples. Salvaguardadas raras excepções,todas as células têm em comum o mesmo ADN, os mesmoscromossomas e os mesmos genes, dispondo, pois, de todoum conjunto de informações que permitiu a construção deum organismo. Em princípio, podemos pegar num óvulonão fecundado, com os cromossomas maternos que se espe-raria viessem a ser completados pelos cromossomas pater-nos de um espermatozóide, e eliminar, por aspiração, o seunúcleo. Substituímo-lo por um núcleo tirado de uma célulaproveniente do animal que se quer clonar, contendo doisjogos de cromossomas, como qualquer outra célula nãosexual. Assim se reconstitui um embrião completo. Se tudocorrer bem, começa a desenvolver-se e poderá ser implan-tado no útero de uma fêmea, produzindo um ser genetica-mente idêntico ao que forneceu a célula. O óvulo apenaspermite o crescimento do embrião, sem que contribua comqualquer espécie de elemento genético2.

Os acasos da clonagem animal

Contudo, se a clonagem realizada a partir de célulasanimais adultas está longe de se encontrar totalmente afi-

2 Excepção feita às mitocôndrias, minúsculos órgãos produtores deenergia das células, que contêm um pequeníssimo ADN codificador dealgumas proteínas que são levadas ao embrião através do citoplasma doovo, que é dizer, pela mãe.

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nada, a sua história mostra claramente as muitas dificul-dades que se lhe deparam e que só em pequena parte estãosuperadas. O núcleo de uma célula contém, efectivamente,no seu ADN todos os genes necessários ao crescimento deum embrião, mas, ao longo do processo de desenvolvi-mento de um organismo, uma subtil programação «apaga»alguns deles, ao passo que outros, pelo contrário, passama funcionar no seu pleno. É essa programação (denomina-da epigenética, o que quer dizer que não altera a naturezados genes, intervindo apenas na periferia) que diferenciauma célula nervosa de uma célula do fígado ou de umacélula da pele. Ainda não a sabemos rectificar com segu-rança, de forma a tornar o ADN capaz de dirigir o desen-volvimento de um embrião — donde decorrem o baixorendimento e os acasos que caracterizam, na actualidade,o processo. Embora tenha sido possível clonar umasquantas dúzias de espécies animais (de entre as quais, em2003, o cavalo e o rato), o sucesso científico raramentefica à mão de semear. A obtenção de um novo animalrequer a manipulação de centenas de óvulos e a implanta-ção de dezenas de embriões, sendo que só alguns deles seirão desenvolver in utero. Finalmente, um ou dois deleshão-de vingar, mas o «clonador» não chegou ao fim dosseus males. Alguns desses animais morrem à nascença, oulogo depois de terem nascido, e, dos que sobrevivem, umaboa parte apresenta anomalias mais ou menos graves.

A clonagem feita negócio

Não obstante, conseguiu-se obter animais de aparentenormalidade, e, encorajadas por um tal sucesso, algumasempresas tentam explorar a mina. A primeira ideia éreproduzir, «iguaizinhos», animais de criação com grande

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valor comercial. De facto, a descendência obtida atravésda reprodução normal não possui, geralmente, as mesmascaracterísticas, em virtude do rearranjo dos genes, de ge-ração em geração. Seria necessário efectuar repetidos cru-zamentos, muitas vezes ao longo de décadas, para criaruma nova raça que reunisse todas essas qualidades —admitindo que isso fosse possível. A clonagem, que produzum exemplar geneticamente conforme ao original, deveriaresponder a essa necessidade. O objectivo é, de momento,um pouco teórico, em virtude dos problemas de saúde sus-citados pela maior parte dos clones, apesar de o alcance deresultados mais eficazes ser um importante avanço para aciência. Empresas como a Cyagra (Estados Unidos) desdejá oferecem clonagens de bovinos... com preços de cerca de20 mil euros por unidade.

Também é possível introduzir genes, voluntariamente,em cromossomas de ratos, vacas ou ovelhas. Não é estri-tamente necessário recorrer à clonagem para o fazer, em-bora o processo seja mais eficaz. Depois de ser submetidaa manipulação laboratorial, uma célula que incorporoucorrectamente o gene é utilizada para reconstituir um ani-mal por clonagem, através da sua injecção num óvulo aoqual foi anteriormente tirado o núcleo. Assim foram obti-das vacas que produzem leite com alto teor de caseína(bom para queijo... ), ovelhas portadoras de um gene hu-mano que leva à secreção de um medicamento no leite, ouainda porcos que foram modificados de tal forma que osseus órgãos podem ser implantados no homem sem causarrejeição imediata. Processos como esses encontram-se, nasua maioria, em fase experimental, não havendo certezasno que toca à sua aplicação comercial. Para além dos pro-blemas técnicos que ficam por resolver, a sua aprovaçãopor parte das instâncias reguladoras, e em particular aaceitação desses produtos por parte do consumidor não

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estão garantidas... A produção de medicamentos, domínioem cujo âmbito várias empresas (Infigen, Geron, PPLTherapeutics...) se encontram a trabalhar, é, sem sombrade dúvidas, o sector que tem maiores hipóteses de desen-volvimento nos próximos anos.

Enfim, o último uso da clonagem visa a preservação deespécies em vias de desaparecimento. Uma célula recolhidanum dos últimos exemplares existentes pode ser injectadanum óvulo proveniente de uma espécie próxima, a fim deobter um clone que aumente a população ameaçada. Foi oque se fez com um gaur (uma espécie de búfalo) e com umcorço. A clonagem de um gato, realizada em 2002, fazprever a do cão (que ainda não foi feita), com aberturas aum outro mercado, o dos donos que querem a todo o custo«um novo exemplar» do seu animal favorito. Duas firmas,Lazaron e Genetic Savings and Clone, ocuparam já posi-ções num filão que aparentemente se mostra aliciante,apesar de tudo ser ainda bastante teórico. Enquanto seespera, as empresas fazem-se pagar muitíssimo bem pelodepósito das recolhas que eventualmente virão a permitira realização dessa operação. A ressurreição de espéciesdesaparecidas, das quais só restam animais embalsamadosou cadáveres mais ou menos congelados, é, pelo contrário,quimera absoluta, dado que a clonagem requer células embom estado e um ADN intacto.

Clonar para a cura?

Passemos, pois, à clonagem humana. É fundamental dis-tinguir a clonagem reprodutora (à qual nos temos vindo areferir, para os animais), da que foi baptizada como«clonagem terapêutica». Trata-se, neste último caso, de pro-duzir células destinadas à cura de doentes. A doença de

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Parkinson pode ser tratada através do enxerto de neurónios.Certas tipologias de diabetes podem ser tratadas com célulasdo pâncreas. Mas o uso dessas células — por vezes obtidasa partir de fetos, após uma interrupção da gravidez — levantaevidentes problemas éticos. Além disso, o enxerto é frequen-temente rejeitado pelo doente, na medida em que se trata detecidos estranhos ao seu organismo e reconhecidos como talpelo seu sistema imunitário. Seria, portanto, muito interes-sante conseguir produzir células a partir do próprio doente,pelo menos se a sua afecção não for de ordem genética.

É o que promete a clonagem terapêutica, que começapor criar um embrião humano a partir de um óvulo comum núcleo e de uma célula do doente. O embrião, ao fimde alguns dias, parece uma bola microscópica que contémalgumas centenas de células indiferenciadas, susceptíveisde evoluirem até qualquer dos trezentos tipos de célulaspresentes no corpo humano. O embrião é então separado,e as suas células são cultivadas em laboratório, para seremmultiplicadas. Seguidamente, serão levadas a diferenciar--se, em virtude da adição de factores específicos e da cria-ção das necessárias condições de cultura. O enxerto celularpode então ser praticado sem que haja, em princípio, riscode rejeição, dado que as células são geneticamente idênti-cas às do paciente.

Sublinhe-se que não se trata de um tratamento que estejaa ser actualmente praticado, mas de um processo que seencontra ainda em estudo, cujas etapas foram convalida-das através de experiências efectuadas em animais, namaior parte dos casos, e também no homem. É possívelque com o tempo através dele venha a ser possível tratardoenças degenerativas perante as quais hoje nada há a fazer.Também é possível que a clonagem terapêutica se venha arevelar uma modalidade marginal ou mesmo impraticável.Em todo o caso, suscita fortes reacções. Com efeito, se esse

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procedimento fosse praticado em larga escala, poderia acar-retar um tráfico de óvulos humanos, mercadoria rara, vistoque a mulher, normalmente, apenas produz um por ciclo,podendo produzir dez se for submetida a uma penosaestimulação hormonal. Corre-se igualmente o risco de favo-recer um resvalamento para a clonagem reprodutora, namedida em que, sendo possível obter, muito facilmente,embriões humanos de alguns dias para clonagem, a tentaçãode os deixar crescer um pouco mais, e de depois os implantarnuma mulher, havia de ser mesmo grande... Independente-mente de tais riscos, correntes de opinião há que se opõemfrontalmente a esse processo, na medida em que passa pelacriação de um embrião com o objectivo de o destruir algunsdias volvidos. Mesmo que se trate de um embrião muitoprecoce, isso é inaceitável para quem considera que qualquerembrião é sagrado. A Igreja Católica, que desde 1869 afirmaque a alma está presente na concepção (dantes era precisoesperar seis semanas para um rapaz, treze para uma rapari-ga...), rejeita-o em absoluto.

Quem quer ser clonado?

Vejamos o que se passa com a clonagem humana parareprodução. Apesar de, em termos gerais, merecer conde-nação, conta com alguns defensores. Que procura tem equem a solicita? São essencialmente casais a procuraremclones. Perderam um filho, tantas vezes ainda muito pe-queno, e esperam que a clonagem (a partir de células con-servadas) permita «recriá-lo». Acontece, por vezes, quetenham ultrapassado a idade da procriação, mas, na maiorparte dos casos, o seu desejo é, confrontados com a injus-tiça da sua perda, ressuscitarem, de algum modo, o bebédesaparecido ou pelo menos reproduzirem o exacto arranjo

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dos genes que eram os seus. Outros são casais que nãopodem ter filhos por um dos seus membros, ou ambos,serem estéreis, por se tratar de uniões de homossexuais quenão aceitam recorrer à adopção, ou, se é o homem que estána origem do problema, que não admitem a inseminaçãoartificial através de um dador. Querem um filho que sejadeles, sem a intervenção de um terceiro, que tenha os seusgenes. Querem a clonagem na mira de que o seu filho sejagémeo genético do «pai» ou da «mãe».

Eva, «primeiro clone humano», nascido a 26 de Dezem-bro de 2002, conforme anunciado pelos seguidores de Raël,era apresentada como sendo o clone de uma mulher cujomarido era estéril. Essa notícia, que hoje sabemos ser falsa,apresenta um caso imaginário que, segundo Raël, SeverinoAntinori ou Panos Zavos, se revê em milhares de pedidos.Esses pedidos assentam numa falsa ideia, a da importânciapreponderante dos genes, que determinariam a aparência, ascapacidades e mesmo o carácter de cada um de nós. Daíadvém a esperança de recriar o filho perdido ou a repugnân-cia em educar um bebé com genes «estrangeiros», o que éilusório, na medida em que as circunstâncias do nascimento,juntamente com os primeiros anos de vida, desempenhamum papel essencial na formação da personalidade. O am-biente em que é gerado um clone «de substituição» ou umacriança gémea dos seus pais, ambos produto de anos deesforços e de tratamentos caros, seria, aliás, muito poucopropício a um desenvolvimento psicológico harmonioso...

Depois do flop do falso anúncio do «primeiro clonehumano», feito pelo grupo de Raël, a perspectiva da clona-gem reprodutora humana tornou-se mais remota. Aliás,dados recentes indicam que as hipóteses de sucesso nohomem são ainda mais reduzidas do que nos animais.Porém, há que desconfiar. Por vezes, as impossibilidadestécnicas são provisórias, sendo vários os laboratórios que

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participam oficialmente na corrida, sem contar com todosos que, muito possivelmente, trabalham na sombra. Alémdisso, o recente sucesso alcançado por um grupo de sul--coreanos que conseguiu, no início de 2004, obter váriasdúzias de embriões humanos clonados (destinados a clona-gem terapêutica) mostra que as «impossibilidades» técni-cas são muitas vezes bastante provisórias. Como tal, estepequeno compasso de espera bem poderia ser aproveitadopara reflectir calmamente sobre as implicações da clonagemreprodutora humana e, de uma forma mais abrangente,para considerar as possíveis intervenções sobre o nossopatrimónio genético.

A procriação humana já assistiu a duas grandes revira-voltas, a pílula e a fecundação in vitro. O aparecimento demétodos de contracepção eficazes, há apenas quarentaanos, permitiu separar a sexualidade da reprodução. Fo-ram consideráveis as consequências dessa inovação recentesobre a demografia de várias nações, sobre o estatutoeconómico e social da mulher e sobre a evolução de insti-tuições milenares como o casamento. Vinte anos depois, atécnica in vitro permitiu a fecundação sem acto sexual,baralhando um pouco os pontos de referência da família edo casal. A clonagem, por sua vez, acabaria por dissociarcompletamente o facto de se ter um filho de qualquer con-tacto entre homem e mulher, entre óvulo e espermatozóide.Da procriação (até aqui, um filho, embora tivesse os genesdos pais, era uma combinação única e imprevisível dealelos3, uma criação nova, mesmo no caso da fecundação

3 A diversidade genética da espécie humana faz com que, apesar determos os mesmos genes dispostos da mesma maneira nos nossoscromossomas, existam pequenas diferenças entre as «versões» dessesgenes em diferentes indivíduos. Daí decorre a diversidade morfológicados humanos. Essas diferentes versões chamam-se alelos.

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in vitro), passou-se à reprodução do idêntico (unicamenteao nível genético, não o esqueçamos). A imprevisibilidadeda criança seria assim negada, essa mesma incerteza que éum elemento fundador da sua liberdade, do seu direito anão ser o que os pais dela esperam. Na violência que assimse exerce sobre um ser que há-de nascer, reside, para mim,o motivo essencial, no plano dos princípios, da recusa daclonagem reprodutora humana.

Para além da clonagem

Todavia, o impacto concreto dessa transformação capi-tal seria limitado. A contracepção é praticada, em nume-rosos países, pela maioria da população, mas a fecundaçãoin vitro, nas nações ricas, apenas incide sobre 1% dos nas-cimentos, proporção significativa, mas baixa. Os eventuaisinteressados na clonagem, a supor que o processo virá aestar um dia tecnicamente afinado, legalmente aprovado,e que será socialmente aceite, seriam ainda menos. Casaisestéreis ou homossexuais que querem ter, a todo o custo,um filho que com eles seja geneticamente aparentado, paisobcecados em recriar o filho que perderam quando eramuito pequeno... não se trata de uma procura de massas.Os pequenos Hitler de The Boys from Brazil4 ou as arma-das de clones idênticos do filme Star Wars II entram (feliz-mente) no domínio dos fantasmas. Contudo, a aceitaçãoda clonagem, mesmo enquanto procedimento de excepção,seria muito perigosa em virtude dos espaços deixados emaberto a uma modificação genética do ser humano.

O melhoramento genético do homem poderia respon-der a uma questão bem mais vasta. O tema está a começar

4 Vd. Bibliografia, 2.

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a ser abertamente debatido além-Atlântico, conforme otestemunha o recente livro de Gregory Stock5. Estaria emcausa uma espécie de terapia genética germinal, destinadanão a tratar de um embrião, mas a conferir-lhe — graçasà junção de um gene ou mesmo de um cromossoma suple-mentar — características «desejáveis», tais como resistên-cia a infecções, tamanho, aspecto físico. A panóplia degenes cujos alelos se sabe exercerem um efeito mensurávelsobre determinadas características é já significativa e tendea aumentar. O salto poderá parecer desmesurado e a pers-pectiva irrealista, mas o certo é que alguns elementos desseprocesso de melhoramento já foram determinados.

Embrião à la carte

Refiro-me ao diagnóstico pré-implantatório (DPI),efectuado depois de uma fecundação in vitro e ao caso dedoenças genéticas graves. Permite analisar uma ou dezcélulas de cada embrião, a fim de determinar quais delasnão são portadoras de afecção, pelo que podem ser im-plantadas no útero da mãe. Esse processo, absolutamentelegítimo em tais casos, também poderia ser utilizado porum casal «normal» que quisesse escolher o «melhor» em-brião de entre uma dúzia deles, resultantes de uma fecun-dação in vitro. É precisamente por isso que a sua introdu-ção foi objecto de tantas reservas. O DPI continua a serexcepcional (alguns milhares de diagnósticos, actualmente,no mundo inteiro), mas as dificuldades técnicas que suscitatêm vindo a diminuir e a gama de genes disponíveis paraanálise continua a aumentar. É evidente que é uma tenta-ção, para um casal, seleccionar desse modo a sua descen-

5 Vd. Bibliografia, 3.

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dência... Certas clínicas particulares nos Estados Unidosjá propõem a escolha do sexo (baptizada, de momento,como family balancing) através desse processo. Podemosaté imaginar que dentro de algum tempo essas possibili-dades levem ao recurso à fecundação in vitro por parte deprogenitores perfeitamente capazes de se reproduziremsem assistência médica. Ao contrário do que acontececom a clonagem, é bem aceite. Quem não aspira a dar omelhor aos seus filhos? A adopção dessas práticas, pelomenos em sociedades prósperas, poderia, portanto, tornar--se um fenómeno de massas. A concepção «à antiga», im-plicando o encontro fortuito de um óvulo e de um esper-matozóide que não foram seleccionados, viria então a serum joguito desactualizado e um pouco irresponsável — talcomo o parto em casa, normalíssimo ainda há não muitosanos.

Da escolha ao melhoramento

A etapa seguinte é a passagem da escolha (afinal pas-siva) do «melhor» embrião para a sua modificação comobjectivos de melhoramento genético. A transição pode serfacilitada pela clonagem, de um duplo ponto de vista,técnico e ideológico. A transgénese pratica-se com maiorfacilidade em células de cultura do que em embriões.Poder-se-ia efectuar a modificação genética em culturas decélulas provenientes de um embrião e, então, depois daobtenção e do controlo da célula transformada, produzir,através da clonagem a partir dela realizada, o embriãodestinado a ser reimplantado. Através desse método, jápraticado em animais, a clonagem torna-se um meio decontrolar o bom processamento da modificação genética,uma técnica essencial para que esse tipo de intervenção

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seja possível na prática. No plano ideológico, esse novodesenvolvimento da engenharia, aplicado ao homem, aca-baria por beneficiar do clima permissivo necessariamentecriado por uma aceitação — forçada que seja — da clona-gem humana.

Deixar correr, proibir ou controlar?

Assim posta, a questão não pode deixar de inspirarhorror à quase totalidade dos nossos contemporâneos.Devemos arrumá-la com um anátema definitivo e irrevogá-vel, considerando que é contrária à natureza humana e quea nossa espécie nunca deverá, mas mesmo nunca, recorrerà clonagem? Evocar tais possibilidades não corresponderáa conceber, desde já, um crime contra a humanidade, con-forme se ouve dizer por aqui e por além?

Em meu entender, uma posição tão categórica não estáde acordo com uma abordagem materialista e racionalistado mundo. Apenas poderia ter como fundamento uma visãoreligiosa do homem e do universo ou a ilusão de umanatureza essencialmente boa, na qual não teríamos sequero direito de tocar. Na verdade, a nossa espécie surgiu há100 mil anos (Homo sapiens sapiens, homem de Cro-Mag-non), a escrita existe há 5 ou 6 mil anos, as civilizaçõesdesenvolvem-se há outros tantos e, ao longo desse lapsotemporal, nunca deixámos de modificar a natureza... E aobservação das mudanças ocorridas meio século depois dadescoberta da estrutura do ADN aconselha a maior pru-dência nas previsões. Quando, em 1953, a estrutura doADN foi descoberta, quem teria previsto que cinquentaanos mais tarde havíamos de conseguir ler os 3 milhões deletras que constituem o património genético humano?Quem teria acreditado que, na década de 70, havíamos de

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poder começar a modificar a herança de bactérias, plantase animais? E quem poderá prever o que será feito da nossaespécie dentro de cinquenta, cem ou mil anos, ou se, daquiaté lá, não se irá autodestruir, num desastre bélico ou eco-lógico?

Como tal, não se trata de fazer ou de aceitar o que querque seja, sendo eu firme partidário de uma proibição glo-bal da clonagem reprodutora humana e, mais do queisso, da necessidade de operar um controlo social efectivosobre a globalidade do sector. Talvez as nossas concep-ções da clonagem ou da intervenção genética tenham deevoluir, mas essa evolução deverá ser regulamentada,amplamente discutida, e as suas consequências deverãoser avaliadas — em vez de serem entregues às mãos deum mercado onde a única coisa que conta é a existênciade uma procura solvente. Para ser eficaz, um tal enqua-dramento deve ter em vista objectivos claros, definidoscom precisão, que envolvam a sociedade no seu todo, enão apenas alguns especialistas. Só assim poderemos aspi-rar ao domínio de uma eventual intervenção na nossa pró-pria evolução, em vez de a deixar à mercê de um mercadoda «procriática» que se pareça, cada vez mais, com umaverdadeira selva...

Bibliografia

JORDAN, Bertrand, Les marchands de clones, Editions du Seuil,Paris, 2003.

LEVIN, Ira, The Boys from Brazil, Michael Joseph Ltd., Londres,1976.

STOCK, Gregory, Redesigning Humans. Our Inevitable GeneticFuture, Houghton Mifflin C., Boston, 2002.

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Webgrafia

http://www.genetics-and-society.org/Sítio geral sobre genética, mas que trata também da clonagem.

Bastante completo e objectivo.

http://www.roslin.ac.uk/Sítio do Institut Roslin, onde foi clonada Dolly. Completo e

pormenorizado quanto à clonagem animal, boa perspectivacrítica acerca das questões suscitadas pela clonagem humana.

http://www.reproductivecloning.net/Sítio proclonagem, que dá acesso a numerosas informações (mais

ou menos fiáveis).

http://www.advancedcell.com/Sítio da empresa Advanced Cell Genetics, que realizou, em 2002,

a primeira clonagem (terapêutica) humana.

http://www.cyagra.com/Filial, para clonagem de bovinos, da empresa Advanced Cell

Genetics.

http://www.savingsandclone.com/Empresa de clonagem de cães e gatos.

http://www.clonaid.com/Filial do grupo de Raël, que diz ter feito (até hoje sem provas)

cinco clones humanos.

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Modificação genéticada espécie humana

MÁRIO SOUSA

Laboratório de Biologia Celular, Instituto de CiênciasBiomédicas Abel Salazar, Universidade do Porto

[email protected]

A fecundação inicia-se quando as membranas doespermatozóide e do ovócito se fundem (na fecundaçãoespontânea ou na fecundação in vitro) ou quando oespermatozóide é microinjectado no interior do ovócito1,2.A fecundação desencadeia a activação do ovócito, que secaracteriza por uma sucessão temporal de etapas: (a) defe-sa contra a entrada de novos espermatozóides; (b) activaçãodo metabolismo celular e da absorção de nutrientes; (c)formação dos pronúcleos feminino e masculino3,4.

Quando se formam os dois pronúcleos (8 a 12 horasapós a fecundação), o embrião denomina-se zigoto. Ospronúcleos migram para o centro da célula, justapõem-se

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e perdem os seus invólucros nucleares, permitindo a misturaentre os cromossomas haplóides maternos (23,X) e pater-nos (23,X ou 23,Y). Reposto o número diplóide de cromos-somas (46,XX ou 46,XY), o zigoto inicia divisões mitóticassucessivas. Às 48 h, a clivagem embrionária origina umembrião com 2-4 células (ou blastómeros). Ao 3.o dia, oembrião apresenta 6-12 blastómeros, e ao 4.o dia as divi-sões mitóticas dão origem a um embrião com cerca de 64blastómeros (mórula). A fecundação e o desenvolvimentoembrionário até à fase de mórula ocorrem naturalmentenos oviductos (ou trompas de Falópio). Ao 5.o dia, já nacavidade uterina, a mórula transforma-se num blastocisto.Neste processo, os blastómeros mais superficiais diferen-ciam-se numa monocamada de células alongadas que reco-bre a face interna da zona pelúcida (a ZP é uma camadaglicoproteica que reveste o ovócito) e forma a trofecto-derme (TF). Os blastómeros mais internos acumulam-senum dos pólos, dando origem ao epiblasto (EP). A trofec-toderme inicia então um transporte de água e de nutrientespara o interior do embrião, dando origem a uma grandecavidade líquida, a cavidade blastocélica (CB). Ao 6.o dia,a TF digere focalmente a zona pelúcida e a pressão líquidada CB expulsa o embrião para o exterior através desse ori-fício (eclosão). Fora do seu invólucro, a TF adere ao endo-métrio (adesão) e penetra o epitélio até inserir o embrião notecido conjuntivo uterino (implantação). Aí, a TF segrega ahormona bhCG e origina a placenta, a CB transforma-se nacavidade amniótica e o EP dá origem ao feto (figura 7). Apósa implantação, o EP diferencia-se em três principais tecidosembrionários: ectoderme, mesoderme e endoderme, os quaisestão na origem de todos os órgãos fetais3,4.

Os blastómeros do embrião com 8-12 células são célu-las estaminais totipotentes: com capacidade de divisão ili-mitada, sem senescência nem diferenciação, e potenciali-

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dade para originar de novo um embrião. No blastocisto, oEP contém células estaminais pluripotentes: com capacida-de de divisão ilimitada, sem senescência nem diferencia-ção, e potencialidade de originar os diferentes tecidosembrionários (mas não um embrião). As células dos trêsprincipais tecidos embrionários (ectoderme, mesoderme eendoderme) possuem características estaminais multipo-tentes, retendo apenas a capacidade de gerarem as diferen-tes células de órgãos específicos.

Um embrião não é a simples soma de um espermato-zóide com um ovócito, mas uma célula distinta com ummecanismo novo, intrínseco e autónomo que, na ausênciade patologia, culmina num desenvolvimento embrionário efetal normal3,5,7. No entanto, o embrião pré-implantação

Figura 7 — Desenvolvimento embrionário pré-implantação. (A)Folículo. Ovócito (O), células foliculares (CF). (B) Ovócito des-pido das células foliculares. Zona pelúcida (ZP), primeiro glóbulopolar (1GP), cromossomas (*). (C) Zigoto. Segundo glóbulo polar(2GP), pronúcleos feminino (F) e masculino (M). (D) Embrião de2 blastómeros (as setas apontam para os núcleos). (E) Embriãode 4 células. (F) Embrião de 8 células. (G) Embrião de 12 células.(H) Mórula. (I) Blastocisto. Trofectoderme (TF), cavidadeblastocélica (CB), epiblasto (EP). (J) Eclosão (as setas apontampara o orifício na ZP). (K) Blastocisto eclodido. Imagens aomicroscópio invertido tiradas sob consentimento no Centro de

Genética da Reprodução Professor Alberto Barros, Porto

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não é um indivíduo (ser) nem um ser humano4. Nesta fase,o embrião não funciona como unidade já que cadablastómero apresenta um ciclo celular relativamente inde-pendente dos outros (figura 8)3,7, a separação dos blastó-meros em pequenos grupos permite criar de novo vários

Figura 8 — Imagens de microscopia confocal7. (A) A fecundaçãodesencadeia uma onda de libertação de cálcio que se inicia nolocal de fusão entre os gâmetas. Esta onda activa o ovócito,repetindo-se ciclicamente e de modo autónomo ao longo de todoo desenvolvimento embrionário. Embriões de (B) 2 e (C) 4 célu-las. As ondas de cálcio nos blastómeros diferem na intensidadee no tempo. Estas ondas correspondem à linguagem dos embriões,podendo assinalar a sua viabilidade ou degenerescência. A con-centração do cálcio vai de um mínimo (azul) a um máximo (ver-melho) relativo. Os números referem-se ao tempo em segundos

entre as imagens

embriões (figura 9) e a remoção de uma parte dos blastó-meros não impede o desenvolvimento dos restantes8,9.

O embrião pré-implantação também não possui umapotencialidade elevada de originar um novo ser humano,já que cerca de 75%-80% dos embriões pré-implantaçãoapresentam anomalias genéticas graves8 que ou impedem a

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sua implantação ou desencadeiam o seu abortamento es-pontâneo precoce (figura 10).

Por outro lado, para além dos gâmetas, várias célulastêm a potencialidade de gerar embriões. De facto, pode-seartificialmente gerar um embrião com potencialidade deoriginar um novo ser humano, sem recurso aespermatozóide, quer por manipulação química do ovócito(partenogénese com diploidização), quer por transferêncianuclear somática (clonagem reprodutiva)10.

Figura 9 — Partição embrionária. 1,2. Abertura da zona pelúcida(ZP) utilizando uma substância ácida. 3-5. Pelo orifício, aspira--se o ovócito (O) para se obterem ZP vazias. 6. Fecundação invitro com os gâmetas de animais seleccionados. 7,8. Cultura eobtenção de zigotos (7) e depois embriões com 8-12 células (8).9-11. Aos embriões remove-se a ZP com uma protease (9,10),separando-se depois os blastómeros em meio sem cálcio (11). 12-14. Transferência de 4 blastómeros para dentro de cada ZP vazia.15. Após cultura, os blastómeros dividem-se e reformam um

novo embrião geneticamente igual ao embrião original (8)

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A potencialidade de um embrião também carece de umdeterminismo contextual, ou seja, o embrião poderá originarum novo ser humano se implantar e desenvolver normalmente.

Apesar de ser apenas uma potencialidade, todo o em-brião humano resultante de fecundação deve ser protegido,não devendo ser criado para fins de transplante ou investi-gação. No entanto, se ao embrião é atribuído um estatutolegal, então o seu destino deve ser dirigido pelos progeni-tores. Quando um indivíduo menor de idade falece, com-pete aos pais autorizar a recolha de órgãos para transplan-te. Do mesmo modo, também os progenitores dos eventuaisembriões excedentários oriundos de ciclos de tratamentodevem ter a liberdade de, não desejando a sua criopreserva-ção, os doar para transplante e investigação, oferecendo àhumanidade a oportunidade de salvar vidas, em vez desimplesmente os deixar morrer sem fim benévolo.

Figura 10 — (A) Embrião de elevada qualidade morfológica eexcelente desenvolvimento (9 blastómeros sem fragmentação aodia 3). (B) Porém, a análise genética do embrião mostrou ano-malias cromossómicas em todos os blastómeros (aneuploidia). Secada blastómero fosse normal (diplóide), deveria apresentar umsinal vermelho (cromossoma Y), um sinal amarelo (cromossomaX), dois sinais laranja (dois cromossomas 16) e dois sinais rosa

(dois cromossomas 18)

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Desde há muitos anos que em veterinária se produzemanimais com recurso à clonagem de células embrionárias(blastómeros, epiblasto) e fetais (figura 11). A clonagem

Figura 11 — Clonagem embrionária, fetal e somática adulta. (A)Preparação de citoplastos. 1,2. Abertura da ZP utilizando umasubstância ácida. 3-5. Enucleação. O ovócito não rompe porqueé colocado numa solução que despolimeriza os microfilamentossubmembranares. Pelo orifício da ZP aspira-se o 1.o glóbulopolar e uma pequena parte do citoplasma que lhe fica subjacente.Esta porção de citoplasma contém os cromossomas do ovócito.Parando a aspiração e retraindo a micropipeta, destaca-se o cito-plasma aspirado. Deste modo, obtém-se um ovócito sem mate-rial genético (citoplasto, 6) e uma pequena porção de citoplasmacom os cromossomas do ovócito (nucleoplasto, 7). (B) Isolamentode células a clonar. 8. Blastómeros totipotentes de um embriãocom 8-12 células. 9. Células pluripotentes do epiblasto de umblastocisto. 10. Células somáticas fetais multipotentes. 11,12.

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embrionária é mais eficiente do que a partição embrioná-ria (figura 9), pelo que é preferencialmente utilizada quandose tem um animal com características genéticas que se dese-jam preservar. Para isso, por fecundação in vitro, obtêm-seembriões a partir dos gâmetas desses animais seleccionados.A esses embriões remove-se a ZP e separam-se os blastó-meros (de embriões com 8-12 células) ou as células do EP(de blastocistos). De seguida removem-se os cromossomas(enucleação) de ovócitos dadores, recolhidos de animais demenor interesse, para assim se produzirem citoplastos(ovócitos sem material genético).

Finalmente, efectua-se uma electrofusão entre uma cé-lula embrionária e um citoplasto, de modo que dentro doovócito sem material genético passa a estar o conjuntodiplóide de cromossomas da célula que se deseja clonar(transferência nuclear). Após a fusão, o citoplasto éactivado farmacologicamente para simular as ondas decálcio da fecundação (activação). Espera-se então que ocor-ra a reprogramação genética do ADN e que o citoplasto sedivida para originar um novo embrião. Ou seja, de umembrião original podem-se produzir, por clonagem das suascélulas, múltiplos embriões geneticamente iguais ao em-brião original. Estes embriões são depois criopreservadospara poderem ser transportados e vendidos no mercado.Depois de descongelados são transferidos para o útero deanimais fêmeas portadores, que darão à luz animais com

Células somáticas adultas, foliculares (11) e fibroblastos (12).(C) Transferência nuclear. 13-15. Colocação da célula a clonarno espaço perivitelino, através do orifício da ZP, em contactocom a membrana do citoplasto. 16. Electrofusão. 17. Activaçãofarmacológica. 18. Formação de embrião clonado após cultura e

reprogramação do ADN transferido

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aquelas características excepcionais. Esta tecnologia émuito eficiente e não origina animais doentes, pois o ma-terial genético é oriundo de células embrionáriastotipotentes (blastómeros) ou pluripotentes (epiblasto). Nocaso das células fetais, como são mais diferenciadas, aclonagem é menos eficiente.

Até ao sucesso da ovelha Dolly, e apesar de inúmerastentativas, não se conseguiam clonar células somáticasadultas, removidas de tecidos de seres vivos ou mortos. Sóse conseguiu ultrapassar este problema quando se desco-briu que, antes da electrofusão, as células somáticas adul-tas tinham de ser cultivadas durante 5-7 dias em meio decultura pobre em nutrientes de modo a obrigar a célula adiminuir o seu metabolismo e a parar a replicação do seuADN (fase G0). A eficiência pode ser aumentada utilizan-do a técnica da reclonagem (clonagem embrionária a par-tir dos blastómeros ou do epiblasto de embriões resultan-tes da clonagem de células somáticas adultas). Mesmoassim, a clonagem somática adulta é muito ineficiente,sendo realizada por tentativa e erro até que uma das trans-ferências nucleares resulte num embrião (taxa de formaçãode blastocistos = 17%). No entanto, na maioria dos casos,os blastocistos não conseguem implantar (taxa de implan-tação ≤ 1%). Para além deste problema, quando ocorreimplantação, a maioria dos fetos morre in utero por apre-sentar anomalias da placenta e dos órgãos. Dos animaisque nascem, a maioria morre pouco depois por dificulda-des respiratórias. Finalmente, dos animais sobreviventes,praticamente todos acabam por desenvolver variadas doen-ças (obesidade, artrite, diabetes, tumores malignos, enve-lhecimento precoce, longevidade descontrolada, déficesimunológicos). Por exemplo, foi preciso criar e transferircerca de mil embriões somáticos de ovelha até um conse-guir originar a Dolly. Actualmente, esta taxa baixou para

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1/500, 1/300 ou mesmo 1/100, consoante os laboratóriose as espécies animais. A baixa eficiência da técnica e asanomalias encontradas são devidas à incapacidade do cito-plasto em actuar eficientemente sobre o material genéticoda célula somática para o tornar totipotente. Esta incapa-cidade resulta do facto de o material genético de uma célulasomática adulta possuir alterações que, ao contrário dascélulas embrionárias, o tornam diferenciado e mortal11-13.

Nos animais, a clonagem somática adulta é vista comoa melhor técnica para se obterem cópias genéticas de umanimal com características excepcionais. De facto, naclonagem embrionária, em que os embriões originais deri-vam da fecundação in vitro, o material genético dosblastómeros não corresponde ao do animal que se desejaclonar por haver mistura com os cromossomas do outrogâmeta utilizado.

Na clonagem somática adulta, os veterinários tambémpodem alterar ou introduzir novos genes no material gené-tico das células somáticas a clonar. Deste modo, os em-briões apresentarão esse novo gene em todas as suas célu-las, e esse gene também estará presente em todas as célulasdo animal que nascer. Por este método podem-se produziranimais com novas características: resistentes a ambientesextremos (estepes, desertos) para ajudar as populaçõeslocais; maior produção de leite ou carne; produção de leitemodificado (alergénico, para crianças com alergia ao lei-te), com suplementos vitamínicos ou com vacinas (paraajudar a alimentar e a defender crianças em situações depobreza); secreção de medicamentos no leite, tornando asua produção mais barata (insulina, factor de crescimento,factores da coagulação para hemofílicos, etc.). Por outrolado, como o porco tem órgãos com anatomia parecidacom a humana, os porcos obtidos por clonagem poderãovir a servir como dadores de órgãos para transplante pro-

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visório (enquanto se aguarda por um dador compatível),uma vez que o porco clonado levará um gene especial queevitará a rejeição dos seus órgãos pelos seres humanos.Esta técnica também está a ser aplicada para preservarespécies animais em extinção.

As células somáticas adultas mais usadas na clonagemreprodutiva animal são as células foliculares e osfibroblastos. As células foliculares já se encontram em faseG0, pelo que podem ser de imediato utilizadas. Para alémdisso, como são pequenas, podem ser microinjectadas nocitoplasto, tornando desnecessária a electrofusão. No en-tanto, apenas os fibroblastos permitem a modificação ge-nética da célula antes de esta ser clonada, uma vez quesobrevivem muito bem em cultura prolongada e mantêm acapacidade de divisão celular. As células foliculares, comosão de origem feminina, apenas geram animais clonadosfêmeas. Já os fibroblastos permitem obter animais clonadosde ambos os sexos (figura 11).

Alternativamente, pode-se clonar um animal com recur-so à activação partenogenética, mas neste caso apenas sepoderão clonar animais fêmeas (figura 12). Os ovócitossão ovulados em metafase II da meiose e a segunda divisãomeiótica só ocorre com a fecundação, havendo entãoextrusão do segundo glóbulo polar e formação do pro-núcleo feminino haplóide. Como o ovócito maduro é umacélula excitável3-5, pode ser activado farmacologicamentesem haver fecundação (activação partenogenética). Se, apósa activação, o ovócito for incubado numa solução comagentes químicos que impeçam a extrusão do segundo gló-bulo polar, forma-se um pronúcleo diplóide (diploidização).Esta célula, activada partenogeneticamente e diploidizada,pode então dividir-se e originar um embrião partenogené-tico. Porém, a presença de 46 cromossomas todos da linhafeminina origina anomalias genéticas que impedem o bom

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desenvolvimento embrionário, a implantação, oucondicionam anomalias fetais graves (com abortamento) eneoplasias malignas da placenta.

Na clonagem reprodutiva humana, o objectivo é criarum embrião somático construído por transferência nucleardo material genético de uma célula somática adulta, remo-vida de um tecido ou órgão de uma pessoa viva ou morta,para um citoplasto. Este embrião destina-se a ser transfe-rido para o útero de uma mulher de modo a que implantee origine um feto humano, que seria um clone genético deum ser vivo pré-existente. Esta aplicação foi primariamen-te pensada para os casais inférteis com ausência de gâmetase que não desejam utilizar gâmetas de dador. Não resultan-do da mistura da informação genética materna e paterna,não se trata de reprodução, mas de criar uma cópia de umdos dois progenitores. Por isso, existe neste processo umaperda da diversidade entre os indivíduos. A existência deindivíduos com a mesma identidade, iguais no aspecto

Figura 12 — Partenogénese. (A) Ovócito maduro com zonapelúcida (ZP), 1.o glóbulo polar (1GP) no espaço perivitelino, ea região dos cromossomas (*). (B) Activação partenogenéticaseguida de diploidização (ausência de extrusão do 2.o glóbulopolar) com formação de um pronúcleo diplóide (seta). (C) Divi-são da célula activada partenogeneticamente e diploidizada, com

formação de um embrião partenogenético

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externo (incluindo impressões digitais) e na constituiçãogenética (incluindo grupos sanguíneos, grupos dehistocompatibilidade, tendências e capacidades) pode, noentanto, não ser total, caso ocorram modificações espon-tâneas durante a reprogramação nuclear embrionária, du-rante a interacção materno-fetal, e devido aos factoreseducacionais e de relação com os outros indivíduos. Estascondicionantes podem não ser relevantes se a técnica ficarrestrita ao pequeno número de pessoas com aquele tipograve de infertilidade. Tem-se considerado a aplicação daclonagem somática reprodutiva aos seres humanos comoviolação das disposições éticas que regulam a experimen-tação clínica humana, por se desconhecer o mecanismo deacção da técnica e por os testes animais indicarem ris-cos elevados de anomalias. Do mesmo modo, enquanto atécnica se revelar inadequada, também não devem ser apli-cados para transplante os tecidos diferenciados de célu-las embrionárias estaminais do epiblasto removidas de em-briões obtidos por clonagem somática adulta terapêuticaou por partenogénese com diploidização.

A tecnologia da clonagem somática reprodutiva huma-na tem sido solicitada como método de obtenção de umdescendente com fins para além dos reprodutivos: (a) indi-víduos que pensam que o novo ente, apresentando as mes-mas capacidades e tendências, poderá dirigir melhor osseus negócios ou oligarquias; (b) indivíduos que, temendouma futura doença, desejam ter nesse novo ente uma fontepara possíveis transplantes; (c) indivíduos que entrevêemno novo ente a possibilidade de se manterem imortais notempo (prolongamento da sua vida, da sua personalidade,das suas capacidades); (d) indivíduos que, não aceitando aperda de entes queridos, tentam desse modo uma espéciede ressuscitação (recuperar um filho, a esposa ou os paisfalecidos, mas também os ídolos, como Jesus, Hitler, Elvis

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Presley, etc.); (e) indivíduos que, na ausência de dadorcompatível para transplante, tentam encontrar no clone deum filho gravemente doente a possível cura deste último.Por a técnica actual da clonagem somática reprodutivahumana implicar uma gestação normal de 9 meses e o bebénecessitar na mesma de crescer pelo menos 18 anos atéatingir a vida adulta, este tipo de clonagem não tem qual-quer interesse nem é aplicável à formação de exércitos ouescravos desumanizados.

No momento em que a clonagem somática reprodutivaseja uma metodologia eficaz e segura, poderá tambémpermitir a construção de uma espécie humana genetica-mente melhorada. Neste procedimento, seriam cultivadascélulas somáticas adultas para as perpetuarmos e assimpodermos modificar o seu genoma. Nesta manipulaçãogenética, modificar-se-iam diversos genes de modo que acélula passasse a conter determinadas características favo-ráveis que correspondessem a um ser humano mais saudá-vel (sem propensão para doenças), intelectualmente maisdesenvolvido e imortal. Esta célula seria então clonada deforma a poder-se gerar um novo ser humano com aquelascaracterísticas genéticas. Devido a estas alteraçõesgenómicas, o problema da perda da diversidade entre in-divíduos poderia já não ser um problema.

A evolução social levou à permissão da interrupçãovoluntária da gravidez (IVG), ao diagnóstico pré-natal(DPN) e ao diagnóstico genético pré-implantação (DGPI),apesar de estes não terem como indicação a correcção deum defeito, mas terminar com a vida de um feto ou em-brião. No entanto, enquanto o DPN obriga a IVG, o DGPIactua sobre o embrião antes da implantação, tendo comoobjectivos impedir a transmissão de doenças genéticas gra-ves, impedir os abortamentos de repetição ou ajudar asalvar a vida de um irmão doente11.

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No entanto, um dia a sociedade poderá também incluirnas indicações do DGPI a selecção de embriões para evitaro envelhecimento, o cancro (já em curso), as doenças res-piratórias, cardiovasculares, neurológicas, imunológicas,endócrinas e outras. Isto sucederá à medida que a genéticafor descobrindo que genes controlam essas doenças. Tam-bém acabará por incluir a possibilidade de seleccionar osdescendentes de modo a possibilitar uma não rejeição deenxerto em caso de necessidade de transplantes (já emcurso). E finalmente incluirá a selecção de característicasvantajosas, como a longevidade, a beleza, a estatura, osexo e as capacidades físicas, emocionais, técnicas e deinteligência14.

Sendo a espécie humana um produto do domíniotecnológico sobre a natureza, o que inclui os artefactos queusamos todos os dias e não aceitaríamos deixar de possuir,como a distribuição de água e comida, roupas, casas, sis-temas de tratamento de esgotos e lixos, frigoríficos, edu-cação, prevenção das doenças (vacinas) e assistência mé-dica (consultas, medicamentos, próteses, cirurgias), écorrecto admitir que em última instância atingiremos afase de nos transformarmos numa espécie melhor por acçãotecnológica. Por outro lado, o sistema democrático permi-te que este modo de vida possa ser uma opção e não umaobrigação.

Teoricamente, se a tecnologia permitir aqueles avanços,os direitos humanos que exigem o acesso igual de todos àsaúde obrigará a que as novas tecnologias se apliquem atodos sem discriminação económica e que, em caso contrá-rio, ninguém delas deva beneficiar. Porém, na prática, omaior poder económico já permite o acesso a melhorescuidados de saúde.

Talvez, em vez de seleccionar, devêssemos aceitar, com-preender e investigar para corrigir, tal como fazemos com

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os vivos. Nessa sociedade eutópica, não haveria IVG, DPNnem DGPI, e as famílias com crianças doentes possuiriamum apoio social de excelência. No entanto, nem todospensam assim, pelo que aceito se deva autorizar estas técnicas.

Em relação às indicações extra do DGPI14, tecnicamen-te não se colocam obstáculos. Em primeiro lugar, toda adoença é um mal não desejado, pelo que não seria justa adiscriminação. Segundo, porque as famílias são de ummodo geral muito coesivas, pelo que o desenho de fami-liares compatíveis para permitir a disponibilidade de trans-plantes não será coercivo. Terceiro, porque as escolhasvantajosas não são dependentes de saúde, e o acesso pelosmais ricos aos bens de maior valor já há muito que é umarealidade aceite. Quarto, não devemos ter medo de abrir aera da manipulação do genoma humano, uma vez quepoderá vir a ser essencial em termos de garantir a evoluçãoe a sobrevivência da espécie. Quinto, desta manipulaçãonão se espera uma perda da diversidade populacional.E, finalmente, não devemos esquecer que o mais impor-tante é a democracia, a possibilidade de escolher livre-mente, desde que sem provocar mal a terceiros.

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A problemática da clonagemhumana

NUNO GRANDE

Laboratório de Biologia Celular, Instituto de CiênciasBiomédicas Abel Salazar, Universidade do Porto

[email protected]

A problemática da clonagem humana, particularmentecom fins reprodutivos, assumiu uma importância crescenteapós a clonagem animal realizada na Inglaterra. A especula-ção desenvolvida à volta desta possibilidade insere-se nalógica publicitária dos aspectos comerciais que se afigurairresponsável e imoral. Assim se estabeleceu a necessidade depromover a aprovação de um projecto internacional de regu-lamentação da clonagem reprodutiva que a França e a Alema-nha implementaram. Os Estados Unidos também legalizaramesta estratégia, incluindo a clonagem terapêutica, adiando oprojecto de regulamentação, previsto para 2003.

Desde há quarenta anos que se realiza a separação dasexualidade da reprodução, pelos instrumentos de contracep-ção autorizados e divulgados. Há vinte anos que se praticaa procriação sem acto sexual pelas técnicas de fecundação in

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vitro. A possibilidade de uma clonagem humana, especial-mente a reprodutiva, está ainda muito longínqua. Devemosdiscutir todas as implicações que resultam da possibilidadede vir a conseguir-se a dissociação da criança do homem eda mulher dos respectivos gâmetas. Será a reprodução semprocriação, com possibilidade de intervir sobre o patrimó-nio genético. Desaparece o ser único e imprevisível, pelomenos no que se refere ao genótipo, razão que justifica arecusa da clonagem reprodutiva.

É possível que a clonagem reprodutiva, quando forpossível, não se torne uma prática frequente. De facto,mesmo nos países mais desenvolvidos do mundo moderno,a fecundação in vitro, por exemplo, só se pratica em 1%dos nascimentos. Será um processo muito complexo apli-cável em casais homossexuais ou com infertilidade. Apossibilidade de um diagnóstico genético, após fecundaçãoin vitro na fase de implantação no útero do embrião res-pectivo, é um processo já realizado em famílias com pos-sibilidade de doenças genéticas. Este método permiteseleccionar embriões para serem implantados no úteromaterno ou de aluguer. Deu origem a uma intensa estraté-gia comercial que urge regulamentar, pois permite a utili-zação de embriões para objectivos exclusivos de satisfaçãopessoal ou do casal, pondo em risco a evolução natural eespontânea da espécie humana. Na verdade, estas técnicaspodes tornar-se facilmente, quando mal utilizadas, méto-dos de condicionamento genético do comportamento hu-mano, com tudo o que tal facto significa.

Se assim acontecer, a engenharia genética pode tornar--se uma poderosa arma com objectivos atentatórios da digni-dade da espécie humana. É urgente uma legislação universalque permita a utilização dos avanços científicos relaciona-dos com a clonagem terapêutica e reprodutiva afwite edefendida por todos os povos e por todas as culturas.

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Tempo do homem, tempode Deus

CARLO CARENA

[email protected]

«Que é, pois, o tempo? Quem o poderá explicar facilmentee com brevidade? Quem poderá apreendê-lo, mesmo com opensamento, para proferir uma palavra acerca dele? [...]O que é, pois, o tempo? Se ninguém mo pergunta, sei o queé; mas, se quero explicá-lo a quem mo pergunta, não sei.»

Nestas famosas palavras do décimo primeiro livro dasConfissões de Santo Agostinho1 está bem patente a angús-

1 Confessiones, 11.14.17, Santo Agostinho, Confissões, tradução enotas de Arnaldo Espírito Santo, João Barto e Maria Cristina de Cas-tro-Maia de Sousa Pimentel, introdução de Manuel Barbosa da CostaFreitas, notas de âmbito filosófico de Manuel Bentura da Costa Freitase José Maria Silva Reis, edição bilingue, Lisboa, Imprensa Nacional,Casa da Moeda, 2000, pp. 566-567.

Encontrando-se o texto citado traduzido em português, será trans-crito a partir dessa versão, que assinalamos. Caso contrário, procede--se à sua tradução. (N. dos T.)

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tia metafísica e existencial do homem, colocado peranteo seu próprio tempo pessoal, entre um passado e um fu-turo que, como continua a considerar o santo filósofo,não existem, visto que um já não existe, ao passo que ooutro ainda não existe. Por sua vez, o presente, se fossesempre presente, deixaria de ser tempo, para passar a sereternidade. E, pelo contrário, se para ser tempo se tivessede traduzir em passado, como podíamos dizer que tambémele existe? É aquilo a que Berdjaev chamou2 «uma terrívellaceração», em virtude da qual o tempo se transforma numfantasma e num «ponto abstracto desprovido de reali-dade». As três partes que o constituem, passado, presentee futuro, devoram-se umas às outras, fazendo desapare-cer qualquer tipo de realidade e qualquer tipo de ser. Notempo, manifesta-se «um princípio malévolo, mortíferoe destruidor».

É exactamente isso que conta o mito grego, ao repre-sentar Cronos, que destrói os seus filhos. Nos nossos dias,numa lição intitulada «Perfil de Clio»3, Iosif Brodskijobserva precisamente que o historiador, mais ou menosconscientemente, se encontra como que paralisado entredois vazios, o passado acerca do qual reflecte e aquelefuturo para que trabalha, razão pela qual é dupla a noçãode não existente.

Contudo, rebate Agostinho, o dilema prevalece, poisum tempo estável deixaria de ser tempo — passaria a sereternidade. Mas há Alguém que o é, que é estável, ou seja,eterno, e, como tal, criador do tempo. Tempo do homeme tempo, ou melhor, eternidade, de Deus.

2 N. Berdjaev, Il senso della storia (1925), trad. it. P. Modesto,Milão, Jaca Books, 1971, pp. 63 e segs.

3 I. Broskij, Profilo di Clio, ed. de A. Cattaneo, Milão, Adelphi,2003.

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Essa página da obra de Santo Agostinho, majestosa edramática, apresenta um problema que envolveu desde sem-pre filósofos e mitógrafos, na tentativa de escavar e derepresentar as aporias que nela afloram. Dramático para oindivíduo, o problema do tempo não o é menos para ahistória. Já os primeiros gregos, teólogos e poetas, por umlado, procuram determinar um ponto fixo no fluxo quenos arrasta, e, por outro lado, descobrir as regras a que seencontra vinculado, ou então atribuir-lhas. Tocou particu-larmente a imaginação e a experiência dos Gregos a con-templação dos movimentos regulares dos astros, a repeti-ção das estações, a sucessão das idades do homem. ComFerécides de Siro, que remonta ao século VII, e a partir dele,foi dada primazia àquele ponto imóvel, necessário à pró-pria percepção do movimento, que Ferécides identifica emZeus e em Ctónia, o Céu e a Terra — «Zeus e Cronossempre existiram, e Ctónia»4.

Mas em torno deles, por baixo dos seus pés, tudo correinfinitamente através de ciclos que se repetem, quer aolongo daqueles tempos, extremamente dilatados, das ida-des do mundo, na sua ininterrupta formação e na suaininterrupta dissolução, quer através das épocas que sesucedem dentro de cada ciclo, em contínua extinção e re-novação, para dar de novo ao homem, conforme explicaGiorgio de Santillana, no Mulino di Amleto5, «a renovadaforça para continuar a viver, apesar de uma realidade semsentido».

4 Fr. 1 (Die Fragmente der Vorsokratiker, fixação do texto grego etradução em alemão de Hermann Diels, 6.a ed. actualizada por WaltherKranz, Berlim, Weidmannsche Verlagsbuchhandlung, 1952, 3 vv.).

5 Giorgio de Santillana/Hertha von Dechend, Il mulino di Amleto,a cura di Alessandro Passi, Milão, Adelphi, 2003, ed. revista eactualizada, p. 389.

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Quando dos mitógrafos se passa para os filósofos, nomajestoso poema físico de Empédocles, o movimento cíclicotorna-se uma lei física e metafísica6:

Não acabam nunca, esses elementos, que continuamentese transformam uns nos outros, ora juntando-se todos num,em harmonia, ora seguindo percursos discordantes, levadospelos desafios do ódio. E como são sempre mais quando sedesfazem, encontram-se em permanente devir. A sua eternavida não é estável, nem acabam nunca, modificando-se con-tinuamente...

«Juntos, princípio e fim são uma circunferência», dirá,por sua vez, Heraclito (fr. 103). Havia também nesse es-quema uma ideia de perfeição que atraía a mente grega.Como dizia Pitágoras7, «a forma mais bela dos sólidos é aesfera e das figuras planas é a circunferência». E haviaainda a sua consciência pessimista da labilidade de todasas coisas, que culmina no poema de Parménides. Comonos explicou Plutarco8, a natureza dos seres mortais nãoexiste, é apenas agregação e dissolução de coisas mistura-das, aquilo a que os homens chamam natureza. Oposto aesse devir é o ser, imóvel e eterno, o ser oposto ao mutávelfenoménico (phainesthai, mostro-me, apareço, sou aparên-cia, que passa a Platão).

Para os Gregos, tudo o que existe aparece enquantosujeito a uma sorte que é semelhante — afirmou-oAnaximandro9. Mostra-se, então, como um grande ciclo

6 Fr. 4 (Poema fisico e lustrale, ed. de Carlo Gallavotti, Milão,Fondazione Valla, Mondadori, 1977).

7 Diógenes de Laércio, 8.35.8 Moralia adversus Coloten, 10.1111F.9 Fr. 1.12.B1 (Diels/Kranz).

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universal, quer no estoicismo antigo, quer no novo, dizen-do-nos Eusébio10 que

Os estóicos mais antigos pensavam que tudo acabava eméter, mais precisamente, que depois de ciclos temporais de lon-ga duração, tudo acabava no fogo eterno. [...] Os estóicos, defacto, consideram que toda a substância se transforma no fogoespermático e que a partir deste se reconstrói, de novo, o cos-mos, tal como era anteriormente. Aqueles que concebem umaordem imutável do universo instituem, da mesma feita, perío-dos, em cujo âmbito tudo é representado de modo semelhante.

Bem poderemos compreender que estes conceitos fasci-nassem os poetas e inquietassem os historiadores. Tambémnos nossos dias fascinaram escritores como Borges, que numcapítulo da sua Historia de la eternidad, intitulado «Tempocircular», sugere vários modos de interpretar essa teoria eenumera diversos autores que a cultivaram, de Heraclito aPoe, de Bacon a Condorcet, de Vico a Schopenhauer.

O primeiro de entre os poetas a dar-lhe asas é Hesíodo.Zeus, o Olímpico, na Teogonia11, vence seu pai, Cronos,que tinha devorado os outros filhos, com receio de serdestronado pelos mortais. Contudo, como se pode ver emErga, Os Trabalhos e os Dias, foi com ele que arrancou amarcha da história dos mortais.

Hesíodo, o inaugurador literário dessa teoria fundamen-tal, conta, naquele seu poema, como ao tempo do reino celestede Cronos viveu feliz a primeira idade de mortais. Viveucomo os próprios deuses, sem preocupações, sem tristezas,

10 Crisipo, fr. 596 (2.184) (Stoicorum veterum fragmenta, collegitIoannes ab Arnim, ed. stereotypa 1903-05, 1924, Stutgardiae, Teubner,1978-79, 4 vv.).

11 73.

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sem envelhecer, numa eterna e alegre juventude, sem ter detrabalhar os campos, em paz e abundância. Os homensdessa primeira e feliz idade morreram por vontade de Zeus,e a seguir vieram os de uma segunda idade, já inferior, ada prata, que tinham uma longa infância e uma breveadolescência. Foi igualmente exterminada por Zeus, poisdesprezava as divindades do Olimpo e o seu culto. O deuscriou então uma terceira idade, a do bronze, de homensmortais, guerreiros, de coração duro, fortes e temíveis, queacabou por sua própria vontade no Hades. Melhor e maisjusta, a quarta idade, de heróis e semideuses, precedeu anossa. Foi a dos combatentes de Tebas e de Tróia, onde todoseles morreram, tendo sido levados por Zeus para as Ilhas dosBem-aventurados. O poeta, tal como nós, vive na infeliz idadedo ferro, que é de trabalhos e misérias, também ela destinadaa ser destruída pelo rebento de Cronos, quando chegar a talponto de degradação que nem os filhos tratem dos pais, eprevaleça a força e a injustiça, o malévolo e o mentiroso.

Séculos volvidos, um outro poeta há-de encontrar notempo uma mesma lei de decadência e de dissolução. To-davia, epicurista como é, deduzi-la-á não da moral, mas dafísica. No final do segundo livro do De rerum natura,Lucrécio explica que os elementos do cosmos se formam,se distribuem e depois se esgotam. Mediante uma aborda-gem que, a partir dele, conforme veremos, irá ser retoma-da, Lucrécio, com uma sensação precoce, mais tarde con-firmada por outros autores, continua deste modo12:

Pouco a pouco, a idade despedaça a força plena, levandoao declínio. Já que, quanto maior e mais vasto é um corpo,

12 De rerum natura, 2. 1131-1135, 1139-1141, 1144 e segs., 1150-1152, 1173 e segs. Lucrécio também escreveu, no quinto livro do po-ema, uma história da civilização.

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quando deixa de se desenvolver, tantos mais sémenesgerminais produz e espalha, por onde quer que seja, em todasas direcções. [...] Na verdade, as coisas morrem quando, es-gotadas pela corrente, todas sucumbem aos impulsos exte-riores, pois na velhice o alimento começa a faltar. [...] Assim,também as muralhas do vasto mundo, tomadas de assalto,hão-de desabar, como ruínas putrefactas. [...] A nossa idadeestá perdida, a terra exausta mal produz seres fracos, essamesma terra que outrora gerou de tudo e criou no seu seioanimais com corpos possantes. [...] Todas as coisas se vãogradualmente arruinando e caminham para a morte,desgastadas pelo grande espaço de tempo.

São ideias que permanecem no horizonte das mentali-dades e que se encontram na base de toda uma concepçãode tempo e de história onde não entram medidas ou metas,por serem iguais e infinitos, no pleno da sua força e naexaustão das suas energias, sempre novos e sempre antigos.

Essa dinâmica «heracliteia» reflectir-se-á na concepçãoque Políbio partilha da dinâmica circular (anakyklosis) dosEstados, única lei objectiva e geral que aquele cientista dorealismo da história expõe e aplica. No quarto capítulo dosexto livro, delineia as três tipologias possíveis para aconstituição de um Estado, de resto já apontadas por Pla-tão, ou seja, monarquia, aristocracia e democracia. Cadauma delas, ao ser instaurada por essa ordem, sofre umainvolução ou uma degenerescência, que determina a res-pectiva queda e a sua substituição pela idade sucessiva,também ela destinada a ter a mesma sorte. É aquilo a quePolíbio chama um processo de «nascimento, desenvolvi-mento e decadência natural», a saber, «desenvolvimento,florescimento, decadência e fim». Capta-o claramente, noseu todo, a história da constituição romana e os seus «pro-cessos naturais», que a levaram à perfeição, ao eximi-la

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dos processos involutivos e do destino catastrófico quecoube a outras, já que nela se fundem as três formas degoverno clássicas.

A ideia de crescimento e decadência transfere-se para adinâmica dos Estados e da história da fisiologia do ser huma-no. Surge à transparência, em Roma, no prefácio de TitoLívio13 ao Ab urbe condita, quando o historiador se propõeapresentar setecentos anos da sua nação, explicando que

Pouco extensa nos seus primórdios, Roma cresceu tantoque é com dificuldade que actualmente assume a sua grandeza.[...] Veja-se só como as forças vivas de um povo, outrora tãopoderosas, se destroem a si próprias. [...] Observe-se dura-mente como dantes se vivia, que costumes eram seguidos,graças a que homens e através de que meios, tanto em épocasde paz como de guerra, nasceu e cresceu o nosso império.E considere-se, então, como, em virtude do gradual desleixoda disciplina, os hábitos se foram alterando, degradando-secada vez mais, a ponto de entrarem em derrocada, tanto que,nestes tempos, já não podemos suportar nem os nossos víciosnem os seus remédios.

Mas é, de sobremaneira, num outro proémio, o doepítome de Lívio que foi elaborado por Lúcio Aneu Floro,que essa ideia ganha corpo, ao ser exposta de modo maisexacto e detalhado, para a partir daí granjear enormesucesso. Eis o seu texto14:

Se se imaginasse o povo romano como um só homem e seconsiderasse toda a sua vida, início, crescimento, chegada àflor da juventude e, depois, envelhecimento, contar-se-iamquatro fases nesse processo. A primeira idade foi aquela em

13 Præf. 4. e 9.14 1.Præf.2.

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que governaram reis e durou quatrocentos e cinquenta anos,ao longo dos quais se combateu à volta da própria cidadecontra os povos vizinhos. Corresponderá à infância. A suces-siva estende-se do consulado de Bruto e Colatino ao de ÁpioCláudio e de Marco Fúlvio, e abrange duzentos e cinquentaanos, nos quais se subjuga a Itália. Esse foi o período maisturbulento, para homens e combatentes, pelo que se podedizer o da adolescência. Nos sucessivos duzentos anos, atéCésar Augusto, houve paz no mundo. Corresponde à própriajuventude do império e, digamos, à sua vigorosa maturidade.Seguidamente, desde César Augusto até aos nossos tempos,correram menos anos, ao longo dos quais, por incapacidadedos Césares, quase se envelheceu e definhou15.

Por uma curiosa coincidência, também nas páginas ini-ciais da parte que chegou até nós dos Rerum gestarum libri,de Amiano Marcelino, se lê este passo, onde ressoa Floro16:

No tempo em que Roma começou a ganhar luz para omundo, destinada a viver, até que o género humano exista,

15 A ideia de decadência, e até de fim do próprio tempo, é, como seviu, uma constante em muitos desses autores, logo a partir de Hesíodo.Também no décimo quarto capítulo do apócrifo do Livro de Esdras,mais ou menos contemporâneo de Floro, se lê que «o mundo perdeu asua juventude e os tempos começam a envelhecer. De facto, a idadeencontra-se dividida em doze partes, tendo já passado a nona e metadeda décima. Restam, pois, duas, para além de metade da décima parte».

16 14.6.3. Um fugaz aceno ao mesmo assunto encontra-se tambémna vida de Caro, da Historia augusta, 1.2: «Entretanto a república, aolongo dos tempos, ora animada, ora despedaçada por diversas agita-ções, sujeita à mudança, entre algumas tempestades e momentos deprosperidade, bem passou por tudo aquilo por que pode passar a con-dição humana, na pessoa de um só homem, mas, depois de tantosmales, sobreveio finalmente uma felicidade estável e duradoura». En-contram-se referências análogas em escritores cristãos, como Tertuliano,Cipriano e Ambrósio.

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para crescer sempre mais, a Virtude e a Fortuna, que costu-mam discordar entre elas, fizeram um pacto de paz eterna,pois, se uma delas faltasse ao acordo, Roma não teria alcan-çado o seu verdadeiro ápice. Aquele povo, desde a infânciaao fim da meninice, ciclo com cerca de trezentos anos, lutouem redor das suas muralhas. Chegado à idade adulta, depoisde muitas guerras terríveis, atravessou os Alpes e o Mar. Comjuventude e com vigor, trouxe louros e triunfos de toda aparte do imenso mundo. E agora, ao inclinar-se para a velhice,quando deve vitórias, tantas vezes, apenas ao seu nome, rumaa uma fase mais tranquila da vida.

Esse é mais um motivo para retomarmos os estóicos.De facto, segundo Lactâncio17, também Séneca pai ou, maisprovavelmente, Séneca filho, tinha aplicado o ciclo bioló-gico humano à história de Roma, considerando a infânciacom o pai Rómulo, a puerícia com os outros reis, a ado-lescência entre a república e as guerras cartaginesas, ajuventude desde então até ao início das guerras civis,quando começa a velhice. Depois de ter perdido a liber-dade, atravessa então, de novo, uma outra infância e umaoutra velhice.

Para o homem, a corrupção está na natureza e nas suasleis; para os povos, está na moral. Mas a inclinação natu-ral para a perfeição absoluta continua a manifestar-se dequando em vez. De modo mais tangível, no Corpushermeticum, onde se lê18:

Assim são criadas todas as coisas. Aos imortais é conce-dida eterna duração. Nutre as partes imortais do mundo aascensão da luz até às alturas, a qual se difunde a partir dolado voltado para o céu. Pelo contrário, a luz dirigida para

17 Divinæ institutiones, 7.15.14-16.18 14.8 s.

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baixo, que ilumina a cavidade das águas da terra e do ar,criando e transformando, dá energia e anima o movimentodos seres que vivem nessas partes do mundo. Como umaespiral [figura também ela perfeita, à semelhança da circun-ferência, mas dinâmica e que se pode propagar infinitamen-te], metamorfoseia e transforma cada coisa noutra. [...] Aduração de cada corpo é mudança, sem dissolução para oscorpos imortais, com dissolução para os mortais.

No Asclepios19, conta-se como os homens, um dia, dei-xarão de amar este mundo, que é o melhor mundo possívelenquanto gloriosa e inimitável obra de Deus, preferirão asténebras à luz, a morte à vida, desprezarão a religião eapreciarão a impiedade. Então os deuses ir-se-ão embora eficarão só os espíritos malvados, que hão-de levar os ho-mens a imiscuírem-se em guerras e rapinas e «em quantoé contrário à natureza da alma». Terra, mar e céu ficarãodevastados, e essa será «a velhice do mundo, impiedade,desordem, irracionalidade de todas as coisas». Então Deusintervirá, destruirá o mal e restituirá ao mundo o seu as-pecto prístino. Será um renascimento, imposto pelo fluxocronológico, enquanto reconstrução de todas as coisas boase restabelecimento santíssimo e religiosíssimo da próprianatureza.

Aliás, a malvadez desse fluxo encontra-se já presente naargumentação de Agostinho acerca da ‘irrealidade’ do tem-po, um monstro que se devora a si próprio.

Assim sendo, a história existe mesmo? Alguma vezexistiu uma história? A única realidade de tempo que exis-tiu e que existe é a eternidade e a única possibilidade deprocesso histórico reside em Deus, que é imóvel. É Deusque a história toma por referência, a qual por ele foi criada,

19 25 s.

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dele decorre, dele se afasta, a ele regressa. É essa a pedraangular da filosofia (ou teologia) agostiniana da história,frontalmente contraposta, na sua realidade e com as suasperspectivas, às concepções clássicas.

A história desenrola-se pois fora de Deus, fora da eterni-dade, no tempo, que nasce simultaneamente para a criatura.Mas, estranha a Deus, e contudo vinda de Deus, a criaturanão se pode aproximar dele, mesmo quando a sua liberdade,desejada pelo Criador, que não pode senão criar uma coisacompleta e perfeita, dele a afasta, submetendo-a a outrosdesígnios, ao longo daquele segmento que corre entre doismomentos eternos. Fazer historiografia não é mais do quedescobrir este processo, sob aparências e «distorções».

Na Cidade de Deus, Agostinho analisa, acima de tudo,a história antiga, à luz de uma perspectiva crítica que anulatodos os lugares comuns, todos os ciclos, todas asabsolutizações de momento, todos os conceitos da moral,mas sobretudo aquela autonomia de acordo com a qual ahistória humana não era, se não repetição de si mesma,contínua renovação do passado. Os que inventaram a fá-bula dos «círculos», nela ficaram enredados, pois «igno-ram quando começaram e quando devem acabar o génerohumano e a nossa condição mortal»20.

Trata-se de uma concepção «velha» da história, velhacomo tudo o que pertence ao velho mundo recusado porS. Paulo, ao passo que, de outro modo, à luz de uma visãotranscendente tudo se ilumina, tudo se compreende e, oque é mais, tudo adquire um significado. Esse significadoé fornecido, acima de tudo, pela Bíblia. A Bíblia contém e

20 De civitate Dei, 12.15, Santo Agostinho, A Cidade de Deus,tradução, prefácio, nota biográfica e transcrições de J. Dias Pereira,Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, v. 2, p. 1115. Vd. tam-bém o tom derisório que caracteriza o décimo oitavo capítulo.

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é origem de uma história sacra, ou seja, o projecto histó-rico de Deus, a salvação do homem que livremente descaiuno pecado. A verdadeira «economia» da história é a eco-nomia da salvação. Ver a história como história sagrada éver a obra de Deus, a obra feita por Deus.

O fulgor dessa perspectiva vem do início daquele livrosagrado, que conta como Deus criou o mundo — e, por-tanto, o tempo. Também Agostinho recorre, na verdade,ao antigo esquema das idades do mundo e da história,semelhantes às da vida humana, mas com o objectivo dedividir uma história «sacra». Só então, e a partir daí, oaplica à história universal, que, por sua vez, ganha signi-ficado na medida em que o seu percurso se projecta sobreesse esquema, definido pela história sacra21.

Quais sejam as seis idades «bíblicas», lê-se em váriospassos dos escritos agostinianos, embora nem sempre demodo unívoco. Pensamento que se traduzirá, de forma maissublime, na obra Genesis contra Manichæos22:

Vejo, na verdade, ao longo de todo o texto [do Genesis]das Sagradas Escrituras, serem designadas e distintas, porassim dizer, seis idades de labor, pelo que é de esperar que asétima seja de repouso. [...] De facto, os primórdios do génerohumano, quando começou a fruir desta luz, bem se podemassociar àquele primeiro dia em que Deus a criou. Esta idade

21 Cf. R. Markus, Sæculum, History and Society in the Theology ofSt Augustine, Cambridge, Nova Iorque, Cambridge University Press,1970, 1988, p. 17 e segs.

22 1.23.35 e segs. E também Contra Faustum 12.8 e Qæstiones inHeptateuchum 7.49.26, ao passo que, no final das Confessiones, é pre-valentemente o significado «espiritual» dos dias da Criação a ser focado.Também em Civitas Dei 16.43 se encontra uma referência em paraleloàs idades do homem, mas ainda numa projecção que desdobra o esquemabíblico. Quanto às eras, cf. 22.30, último capítulo desta obra.

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é como que a infância do século universal, [...] pois o homem,logo que nasce e sai para a luz, vive a sua primeira idade queé a infância. Vai de Adão até Noé, abrangendo dez gerações.Na noite do seu último dia, deu-se o dilúvio, e também sobrea nossa infância se estende o esquecimento, como se de umdilúvio se tratasse. Depois do tempo de Noé, começa namanhã seguinte a segunda idade, semelhante à meninice, quese estende até Abraão ao longo de mais dez gerações. [...] Ànoite, gera-se a confusão das línguas entre aqueles que cons-truíam uma torre. [...] Mas nem esta segunda idade gerou opovo de Deus, que a meninice não é capaz de gerar. Então,a manhã começa com Abraão e surge a terceira idade, que écomo a adolescência. [...] Esta idade pode gerar o povo deDeus, pois a terceira idade, a da adolescência, já pode terfilhos. [...] Propaga-se por catorze gerações, de Abraão aDavid. A sua noite está nos pecados do povo, que descuravaos mandamentos de Deus, tendo durado até ao pior dos reis,Saul. Numa nova manhã foi o reinado de David, uma idadesemelhante à juventude. De facto, entre todas as idades, pre-domina a juventude, [...] pelo que se presta a ser comparadacom o quarto dia, no qual foram criados os astros dofirmamento. [...] A sua noite chegou com os pecados dos reis,em virtude dos quais aquele povo mereceu o cárcere e aescravidão. Fez-se manhã com o êxodo para a Babilónia, quecom aquela prisão o povo ficou, docemente, em peregrinoócio. Esta idade, que se estende até à vinda de Nosso SenhorJesus Cristo, é a quinta, ou seja, o declínio da juventude paraa velhice. Apesar de não ser ainda a velhice, também já nãocorresponde à juventude. [...] É, para o povo hebraico, dedeclínio e fragmentação, em virtude da força com que ohomem jovem envelhece. Bem se pode comparar com o quintodia, no qual foram criados os animais da água e as aves docéu, já que os homens começaram a viver na terra e no mar,a ter poiso incerto e instável, como as aves quando voam. [...]Desse dia, ou seja, dessa idade, a noite é a multiplicação dospecados do povo hebraico, cego a ponto de não reconhecerJesus Cristo.

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E eis que prossegue até ao momento culminante, verda-deira meta de todo um laborioso caminho. Assim o alcança,com o esplendor da luz e da glória e com pleno ardor daalma, no final do comentário, Genesis contra Manichæos23:

De manhã faz-se a pregação do Evangelho por NossoSenhor Jesus Cristo e, terminado o quinto dia, começa osexto, em que surge a velhice do homem senil. Nessa idade,é violentamente esmagado o reino da carne e o templo édestruído. [...] Contudo, nela [...] há-de nascer o homem novo,que vive espiritualmente. [...] Quando a noite dessa idadeestiver para chegar, que oxalá não nos encontre, se é queainda não chegou, dela diz o Senhor: Pensas que quando viero Filho do homem encontrará fé na terra? E depois daquelanoite há-de amanhecer, quando o próprio Senhor chegar noesplendor. Então, repousarão com Cristo, de todas as suasobras, aqueles a quem foi dito: Sejam perfeitos, como o vossoPai que está nos céus. [...] Depois de tais obras, de facto,espera-se o repouso do sétimo dia, que não tem noite.

É sob essa mesma luz que, na Cidade de Deus, serádelineada e representada toda a parábola histórica. Com a«corrida do tempo», toma forma o que não é mais do quea «peregrinação» dos justos até à meta estável da eternamorada, embora em intersecção, nas suas contingências,com as investidas de povos sequiosos de poder terreno. OSanto percorre todos os acontecimentos paralelos, desdeos progenitores de Abel e Caim, por aí fora, através daseras bíblicas e pagãs, entre reinos e impérios, glórias eignomínias, com a Bíblia numa mão, é certo, mas Varrãoe Tito Lívio noutra, avançando, olhar atento e punho fir-me, ao longo de duas linhas que ora procedem paralela-mente, ora se intersectam, ao longo dos séculos. Eis as

23 1.23.40 e segs.

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palavras mais nobres e mais famosas desse complexo deideias24:

Dois amores fizeram as duas cidades: o amor de si até aodesprezo de Deus — a terrestre; o amor de Deus até ao des-prezo de si — a celeste.

Aquela glorifica-se em si própria — esta no Senhor;aquela solicita dos homens a glória — a maior glória

desta consiste em ter Deus como testemunha da sua consciên-cia; [...]

aquela nos seus príncipes ou nas nações que subjuga, edominada pela paixão de dominar — nesta servem mutua-mente na caridade: os chefes dirigindo, os súbditos obedecendo;

aquela ama a sua própria força nos seus potentados —esta diz ao seu Deus:

Amar-te-ei, Senhor, minha fortaleza;por isso, naquela, os sábios vivem como ao homem apraz

ao procurarem os bens do corpo, ou da alma, ou dos dois.[...]

— mas nesta só há uma sabedoria no homem: a piedadeque presta ao verdadeiro Deus o culto que lhe é devido e queespera, como recompensa na sociedade dos santos.

Escreve-o o Santo, quando os Visigodos tomam de as-salto as muralhas de Hipona e o velho Império se desfazsob os golpes de povos que têm uma história de frescadata. Eram tempos em que mais facilmente se tinha aquelasensação de esgotamento e de fim a que Lucrécio tinhadado voz há quatro séculos, em pleno florescimento dacivilização antiga. Como tal, faz-se mais forte a necessida-de de mudança, de uma palingénese semelhante à sonhadapelo Virgílio da quarta écloga, em anos, se não em séculos,igualmente carregados.

24 De civitate Dei, 14.28, trad. port. pp. 1319-1320.

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TEMPO DO HOMEM, TEMPO DE DEUS 229

Esse panorama em muito supera o plano da filosofia,para se tornar sentimento e estado de alma, invadindo osterritórios do pensamento apocalíptico e utópico. Se — con-siderando apenas algumas etapas significativas — Gregóriode Tours, na sua Historia Francorum, começa por percorrertodo o caminho do homem (sob a óptica ocidental, natural-mente), desde a criação de Adão e Eva até às vicissitudes dosHebreus e depois dos Romanos, até chegar ao verdadeiroinício da história do seu povo; se o teólogo Tomás de Aquinoesquissa25 extraordinárias definições de tempo e de eternida-de, num movimento que começa e que acaba sem nunca sernem o mesmo, nem total; se o místico e vidente JoaquimFlora, no Enchiridion super Apocalypsim, inspirado emEzequiel, desenha uma «árvore da história»26 que reparte oAntigo Testamento numa roda dividida em cinco faixas, asquais compreendem uma história principal, que é longa (des-de as origens do mundo até Esdras), e quatro quadros maisbreves (Job, Tobias, Judite, Ester), encontrando o númeroquatro correspondente nos quatro Evangelhos, como se fos-sem «quase rodas no meio de outras rodas»; se no século XVII

o problema da história absorve o Pascal de Les pensées, parase concluir, luminosamente, com as profecias, em cujas pala-vras, uma por uma, e em cujas ideias, tudo encontra signi-ficado, pois graças à sua aplicação pode-se explicar o que, deoutro modo, continuaria a parecer mesquinho e sem sentido;é mesmo então que Bossuet fornece, no Discours sur l’histoireuniverselle, a mais completa, a mais elaborada e a maiseloquente explicação da história de Deus:

Recordai-vos, Monsenhor — escreve no último capítuloda obra —, que esta longa concatenação de causas específicas,que fazem e desfazem os impérios, depende das ordens secretas

25 Summa theologica, Ia. Xa. 1.4.26 Enchiridion, 1.

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da divina Providência. Deus detém, do mais elevado dos céus,as rédeas de todos os reinos. Tem todos os corações nas suasmãos, ora dominando as suas paixões, ora soltando as suasrédeas, o que confunde todo o género humano. Quer fazerconquistadores? Põe o terror a marchar à frente deles e inspira--lhes, a eles próprios e aos seus soldados, um ardor invencível.Quer fazer legisladores? Envia-lhes o seu espírito de sensatez ede previdência, fá-los sabedores dos males que ameaçam osEstados e manda-os construir as bases do bem público. [...]Deus aplica, por este meio, os seus temíveis juízos, de acordocom as regras da sua sempre infalível justiça. É ele quem pre-para os efeitos, a partir das causas mais remotas. [...] Assimreina Deus sobre todos os povos. Deixemos de falar de acasoe de fortuna. [...] O que o parece ser sob a nossa óptica incerta,é um desenho que se encontra organizado através de uma visãomais alta, ou seja, através daquela visão eterna que encerratodas as causas e todos os efeitos numa mesma ordem. Dessemodo, tudo concorre para o mesmo fim.

Quando, sucessivamente, nasce o historicismo de sinaloposto, a sensibilidade romântica encontra no destino dohomem na história um extraordinário motivo sentimental,que transforma uma ciência em drama poético. Tal comoacontecera, conforme já vimos, no poeta antigo do Dererum natura.

Comparem-se, a esse propósito, duas obras, o primeirolivro do De varietate fortunæ de Poggio Bracciolini e oscapítulos 4 e 5 do quinto livro do Génie du christianisme,de Chateaubriand.

O humanista do século XV começa aquele seu tratadocom um redondo elogio da história e dos seus méritos,enquanto única depositária da memória e mestre de vida:

A história deve ser considerada de grande utilidade paraos mortais. [...] Graças a ela, as palavras e as acções dos

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TEMPO DO HOMEM, TEMPO DE DEUS 231

antigos não ficam sepultadas no esquecimento, sendo, emboa parte, transmitidas até aos nossos dias. Só ela pode serdefinida guardiã diligente e memória segura do passado.

O escritor deteve-se muitas vezes em companhia de umamigo no fórum romano e

Perante a grandeza dos edifícios, perante a vastidão dasruínas da antiga cidade, perante a imensa destruição de umimpério tão grande, admirámos a deslumbrante e lamentávelinconstância da fortuna.

Recordam Mário exilado, também ele sentado entre osvestígios de uma Cartago destruída, a meditar sobre a suasorte e sobre a sorte da potente rival de Roma. Mas trata-seapenas de um passo. Logo a seguir, depois de as duas cidadesterem sido comparadas e depois de ter sido afirmada a inultra-passável grandeza da segunda, começam a discorrer sobrearqueologia e a dissertar sobre os temas filosóficos do tratado.

Não são essas as opções de Chateaubriand, que, ao passarem revista vários tipos de sugestão estética, naquela sua «apo-logia do cristianismo», envolve as ruínas num halo que aseleva a categorias do sublime e do pitoresco, o qual vive detodo o passado que nelas se encerra e que, tal como elas,desabou, perdendo o colorido. Por sua vez, no Itinéraire deParis à Jérusalem27, ao contemplar Atenas, o inquieto Renétinha falado da «impressionante mobilidade das coisas hu-manas» face ao imóvel cenário da natureza. Também ele, porduas ocasiões28, coloca o seu Mário perante uma Cartagodestruída, qual duplo emblema da sorte. De facto, nadamelhor do que as ruínas pode encerrar dentro de si o suco da

27 Itinéraire de Paris à Jérusalem, I.28 Ib., VII, e Essai sur les révolutions, 2.5, nota.

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história humana. Alojam-na e «contam-na». Falam, umas, aspagãs, de sangue, de injustiças e de violências, e outras, ascristãs, de uma história pacífica, «ou, no máximo, do miste-rioso sofrimento do Filho do homem».

Como se faz então a história, como é concebida, quesignificado encerra dentro de si? Com certeza que ahistoriografia antiga e humanista, conforme também oreconhece Chateaubriand, conta com uma maior grandezade homens e de eventos, e repete29,

Nela se vê crescer o homem e o seu pensamento, primeirocriança, depois possuído pelas paixões da juventude, forte esensato na maturidade, frágil e arruinado na velhice. O Estadosegue o homem, passando do governo monárquico oupaternalista ao republicano e caindo no despotismo com a idadeda decrepitude. [...] Por essa razão, os povos modernos nãooferecem ao historiador esse conjunto de lições que fazem dahistória antiga um todo completo e um quadro acabado.

Mas sem significado. Por isso, acrescenta Chateau-briand, refazendo-se a Bossuet30:

Conhecerá melhor os homens quem tiver meditado demo-radamente sobre os desígnios da Providência. [...] Os desígniosdos reis, o desprezo das cidades, as vias iníquas e tortuosas dapolítica, os tumultos do coração causados pelo fio secreto daspaixões, as inquietações que por vezes se apoderam dos povos,as passagens de poder do monarca para o súbdito, do nobrepara o plebeu, do rico para o pobre. Todas essas forças conti-nuarão a parecer-vos sem explicação, se não tiverdes seguido,por assim dizer, os conselhos do Altíssimo. [...] Ponhamos,pois, a eternidade no fundo da história dos tempos.

29 Génie du christianisme, 3.3.2.30 Ib., 3.3.1.

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O tempo nos Césaresde Suetónio

JOSÉ LUÍS LOPES BRANDÃO

Faculdade de Letras, Universidade de [email protected]

Na sequência da análise que Carlo Carena faz de algunsautores gregos e latinos, não será despropositado incluirnesta colectânea uma reflexão sobre o tempo no registo deacontecimentos históricos numa altura em que já decorriaum século sobre a morte de Augusto e sobre a conclusãode Ab Vrbe condita, de Tito Lívio. Uma leitura das Vidasdos Césares, de Suetónio, permite-nos diagnosticar as mu-danças de perspectiva, devidas à consolidação do regimeimperial, e as particularidades da biografia política emconfronto com a historiografia.

Ao adaptar a biografia às vidas dos imperadores,Suetónio apresenta-se como um produto do seu tempo, namedida em que denota os novos rumos da história política.Porque os tempos são outros, os Annales — género tradi-

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cionalmente consagrado ao registo dos feitos políticos deRoma —, baseados na rotação anual dos cônsules, já nãose adequam ao período de governação. A eleição dosmagistrados, essencial durante a República, perde signifi-cado perante a aclamação do princeps, que se mantém nopoder por um tempo que só o fatum pode determinar.Além disso, há que contar com a tendência para a sucessãodinástica. O senador Tácito escreve Annales; a biografiareserva-a para Agrícola, pertencente à oposição senatorial.Suetónio, cavaleiro e funcionário imperial, faz correspondera história recente de Roma a unidades de tempo consti-tuídas pela vida de cada imperador e, numa escala maior,pelas dinastias. Por isso, o biógrafo situa com precisão onascimento e a morte do príncipe (rubricas habituais dabiografia), mas mostra-se vago, ou mesmo desrespeitadorda cronologia, na narração dos acontecimentos e realiza-ções de cada principado.

O próprio Tácito admite que, devido às mudançaspolíticas, a historiografia se vê obrigada a enveredar pornovos rumos. Queixa-se de que, por ignorância ou poralheamento dos cidadãos em relação às decisões políti-cas, por adulação ou por ódio aos chefes, não se fazemregistos para a posteridade (Hist. 1.1). Além disso, numimpério pacificado, unificado e não expansionista, a faltade matéria nobre da antiga historiografia (guerras, des-truição de cidades, destituição de reis, lutas sociais) levaos historiadores a tratar assuntos não gloriosos (Ann.4.32.33), que eram objecto da biografia, então um gé-nero menor.

Plutarco escreveu Vidas de oito imperadores, de Augustoa Vitélio, de que só restam as de Galba e Otão; Tácitocomeça pela ascensão de Tibério. Ao começar por JúlioCésar, Suetónio põe a tónica na mudança de regime e nasua verdadeira natureza. O conquistador da Gália aceita

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O TEMPO NOS «CÉSARES» DE SUETÓNIO 235

honras desmesuradas: consulados contínuos, a ditadurapara toda a vida, a prefeitura dos costumes, o praenomende Imperator, culto divino (Jul. 76.1) — uma concentraçãoexcessiva de poderes, inaceitável para a mentalidade roma-na, que conduzirá aos Idos de Março, mas que corresponde,no essencial, às prerrogativas dos futuros césares. Octávioadoptará habilmente o título de princeps, politicamentemais correcto, mas Suetónio evita tal designação, para secentrar no facto de a República não ter sido restaurada(Aug. 28.1). O biógrafo, no entanto, não censura Augustopor conservar para si o poder e aceita o novo regime comoalgo de incontornável, uma nova ordem (nouus status) paragoverno do mundo (Aug. 28.2).

A tarefa do biógrafo é verificar o modo como cadaCésar se adequa ao modelo ideal e cumpre a sua tarefa. Etal abordagem é possível mediante a avaliação das quali-dades do carácter. Por isso, enquanto o historiador Tácitoopera uma oposição moralista entre a virtude do passadoe a decadência do presente, o biógrafo estabelece o con-fronto entre boas e más acções do imperador — agrupadassob a designação de vícios e virtudes —, ou entre impera-dores bons e maus.

Como consequência do interesse pelas qualidades docarácter, a cronologia tem, para o biógrafo, um papel se-cundário. Suetónio serve-se dela sobretudo antes da ascen-são ao Império e no relato da morte. Usa-a também comométodo útil para fazer resumos de acções ou acontecimen-tos que não considera de particular relevância para a carac-terização do biografado. Na introdução às Vidas1 encon-traríamos talvez as linhas gerais do plano de trabalho,

1 Perdeu-se a dedicatória a Septício Claro (de que nos dá notíciaJoão Lido, de Mag. 2.6), bem como os primeiros capítulos da Vida deCésar.

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mas no texto sobrevivente há referências à organizaçãoque Suetónio pretende dar ao material recolhido das fon-tes. Na Vida de Augusto é explicitada a distinção entrerelato cronológico e análise por rubricas:

Proposita uitae eius uelut summa, partes singillatim nequeper tempora sed per species exsequar, quo distinctiusdemonstrari cognoscique possint (Aug. 9.1).

«Apresentado que foi uma espécie de resumo da sua vida,vou agora prosseguir com os vários aspectos, um por um,não pela ordem cronológica, mas através de rubricas, paraque se possa tornar mais evidente quer a exposição, quer acompreensão.»

Sugere-se que, para a descrição do carácter do biogra-fado, o método por rubricas (species) é preferível à narra-tiva cronológica (per tempora), pois permite concentrarmaior quantidade de informação sobre a pessoa do impe-rador.

Assim, pode o biógrafo fazer o tratamento individuali-zado das qualidades de um imperador, como é o caso dosvícios de Tibério (Tib. 42.1). A referência aos uitia desteimperador é pretexto para introduzir uma série de speciesque irão ser analisadas individualmente (singillatim).Quando as species se multiplicam, este tipo de exposiçãopode tornar-se demasiado longo. Nesse caso, é precisoseleccionar as que melhor sirvam de exempla para deter-minado aspecto: Singillatim crudeliter facta eius exsequilongum est; genera, uelut exemplaria saeuitiae, enumeraresat erit (Tib. 61.2) («Analisar, um por um, os seus actos decrueldade tornar-se-ia longo; será suficiente enumerar, atítulo de exemplo, os tipos de violências»).

Este método, explicitado na Vida de Augusto, já eraclaro na vida de César. Depois da «súmula ordenada» dos

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feitos (Jul. 34.1), feita através de uma narrativa veloz,adopta-se outra forma de exposição (Jul. 44.4):

Talia agentem atque meditantem mors praeuenit. De quaprius quam dicam, ea quae ad formam et habitum et cultumet mores, nec minus quae ad ciuilia et bellica eius studiapertineant, non alienum erit summatim exponere.

«Realizava e projectava ele tais acções quando a morte osurpreendeu. Antes de falar desta, não será inoportuno exporaqui, em traços gerais, o que à sua figura e ao vestuário e àapresentação e aos costumes e, não menos, o que às suasocupações civis e militares disser respeito.»

A partir daqui, o relato apresenta-se sistematizado porrubricas: predomina a descrição. É resumidamente queSuetónio apresenta os grandes acontecimentos, que são oobjecto tradicional da história, com a qual o biógrafo nãopretende competir. Por conseguinte, a guerra da Gália,apesar da sua importância na vida de César, vem conden-sada em um parágrafo (Jul. 25.1), ao passo que Plutarco,adoptando um método diferente, se alonga (Caes., 18-27).Mas é singillatim que se analisam as virtudes militares (Jul.57-67), para explicar a devoção dos soldados (Jul. 68) e aautoridade inquestionável do general (Jul. 69-70).

Como a cronologia é posta em segundo lugar ou sacri-ficada, os acontecimentos podem sair da sua ordem tem-poral para se distribuírem pelas várias rubricas. Mesmo osgrandes feitos históricos se tornam, muitas vezes, depen-dentes das species e são arrancados do seu contexto, parafuncionarem apenas como exempla. Enquanto Tácito (Ann.16.21ss) apresenta um relato minucioso das causas ecircunstâncias da morte de Trásea Peto, Suetónio men-ciona-a apenas entre as execuções sob pretextos fúteis,retirando-a do contexto da oposição estóica (Nero 37.1).

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Para o biógrafo, o que está em causa não é explorar aconjuntura histórico-política — do máximo interesse paraum historiador —, mas fazer uma abordagem ética: nestecaso, demonstrar até onde ia a crueldade de Nero.

A subordinação da cronologia à dimensão moral levaSuetónio a colocar a morte de Agripina antes da forma-ção do trio amoroso que se gerou entre Nero, Popeia Sabinae Otão (Otho 3), para assim tornar o último cúmplicedo matricídio. Segundo Tácito (Ann. 14.1-2), a ligaçãode Nero com Popeia é anterior à morte de Agripina, queterá acontecido quando Otão já estava na Lusitânia.Ao estabelecer a ligação de Otão aos crimes de Nero,Suetónio acentua, por contraste, a espantosa mudança, pelaqual este efémero imperador do ano 69 d. C. obteve, nofinal da vida, uma espécie de redenção moral e política(Otho 12.2).

Por vezes, dentro das species existe uma cronologiarelativa, o que implica, em termos narrativos, uma série deanalepses para tratar os tópicos ab initio. Mas, como oethos prevalece sobre o tempo, Suetónio segue de preferên-cia a gradatio dos exempla, dos menos para os mais signi-ficativos, segundo o âmbito da rubrica em questão. Muitasvezes, sugere-se mesmo que uma progressão cronológicaequivale à evolução do biografado no sentido dos víciosmais graves (no caso dos maus imperadores), ou emdirecção às virtudes (no caso dos bons imperadores).O casamento farsesco com Doríforo (Nero 29), em queNero fez de mulher — facto que Tácito (Ann. 15.37.4)coloca imediatamente antes do incêndio de 64 —, teráacontecido antes do casamento com o eunuco Esporo,ocorrido por altura da vigem à Grécia, em 66 (Nero 28.2).No entanto, Suetónio, de acordo com a mentalidade ro-mana, coloca no cúmulo da degradação o acto passivo doimperador, que chega a imitar os gemidos das virgens ao

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serem forçadas. Do mesmo modo, no cúmulo das cruelda-des de Nero aparece o incêndio de 64 d.C., apesar de esteprincipado ainda durar mais quatro anos (Nero, 38). Assimse cria uma cronologia fictícia, de acordo com os objectivoscaracterológicos do biógrafo.

Na governação de Calígula (Cal. 22.1) e na de Nero(Nero 19.3) sugere-se uma mudança radical. Contudo, adivisão da Vida de Calígula entre acções do princeps eacções do monstrum é mais o resultado da técnica biográ-fica do que um dado histórico ou de uma evolução crono-lógica. Apesar de os historiadores concordarem que houveuma mudança no governo de Calígula, na primeira parteda biografia narram-se também acontecimentos que per-tencem já a uma fase avançada do governo: a construçãoda ponte de Baias (Cal. 19) data do ano 39, ao passo quea morte da sua avó Antónia, narrada na segunda parte(Cal. 23.2), ocorre mais de quatro meses antes da doençado imperador (normalmente situada em finais de 37), acon-tecimento que muitos vêem como o ponto de viragem desteprincipado.

Quanto a Nero, acontece que por vezes os mesmosfactos são fraccionados para ilustrar a parte boa e a partemá, conforme são vistos numa ou noutra perspectiva. Neromostra-se modelo de piedade filial no elogio fúnebre deCláudio (Nero 9), mas à frente aparece como cúmplice damorte do antecessor (Nero 33.1); demonstra pietas pelofacto de passear de liteira com a mãe em público (Nero 9),mas verificamos, mais tarde, que as manchas na roupadenunciam práticas incestuosas com Agripina durante osreferidos passeios (Nero 28.2); a espectacular recepção emRoma e a coroação de Tiridates da Arménia (Nero 13)revela-se, afinal, uma extravagância ruinosa (Nero 30.2).

Ao apresentar a gradação da avareza de Tibério,Suetónio introduz a tendência para a rapina (Tib. 49.1).

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Mas a ordem dos exemplos aduzidos não corresponde àevolução cronológica sugerida. Depois de dizer que Tibérioforçou ao suicídio o abastado Gneu Lêntulo, que fez con-denar Lépida para agradar a Quirínio, homem rico e semherdeiros, que explorou particulares e cidades nas provín-cias, Suetónio apresenta, no cúmulo da gradação, a espo-liação e morte de Vonones, rei dos Partos, refugiado, comgrandes riquezas, em Antioquia (Tib. 49.2.), facto que, narealidade, é anterior aos outros. Segundo Tácito (Ann.2.68), Vonones foi assassinado em 19 d.C., Gneu Lêntulofoi morto em 25 d. C. (Ann. 4.44.1) e Lépida, descendentede Sula e Pompeio, foi condenada em 20 d. C. (Ann.3.23.1). O biógrafo coloca a morte de Vonones no cúmuloda gradação devido ao escândalo: era um rei, estava comoque sob a protecção dos Romanos (quasi in fidem p. R.) efoi objecto de perfidia.

De modo semelhante, ao sugerir uma evolução crono-lógica na governação de Domiciano, o biógrafo leva oleitor a pensar que as medidas positivas apresentadas acon-tecem na primeira fase do governo, mas tal não correspondeà verdade histórica. Com efeito, Suetónio situa nesta fasea punição da vestal Cornélia e dos seus cúmplices (Dom.8.4), acontecimento que na realidade teve lugar num mo-mento adiantado deste principado.

Ao optar por uma ordenação de acordo com a gravida-de moral, o biógrafo estabelece uma espécie de progressãoem vista de um desenlace: o telos para onde o encadea-mento das rubricas parece apontar. Nos bons imperadores,as virtudes, ao aparecerem em último lugar, deixam preva-lecer uma imagem positiva; nos imperadores maus, tendea ocorrer o movimento inverso: os piores vícios, exemplifi-cados com acções e ditos que provocam horror, são deixa-dos para o fim, de forma a provocarem uma imagem derepulsa. Assim, a estrutura das Vidas apresenta-se cons-

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truída em gradatio ou clímax que culmina no momento daplenitude do biografado, isto é, a morte, lugar da revela-ção derradeira do ethos.

A abordagem ética dos acontecimentos acarreta porvezes o tratamento em conjunto de acontecimentos quesucederam em momentos diversos. Suetónio situa, porexemplo, o sonho de César, em que violava a própria mãe(Jul.7.2), na mesma altura em que chora, junto à estátuade Alexandre em Gades (Jul.7.1), pelo facto não ter feitonada de grandioso tendo a idade em que o macedónio jádominava o mundo — anedotas que em Plutarco (Caes.11.5 e 32.9) figuram em momentos diferentes e sem ligaçãoentre si. Em virtude do tratamento per species, relatam-se deuma só vez os destinos das duas Júlias, a filha e a neta deAugusto, e ainda o de Agripa Póstumo. Tal contribui paraacentuar a imagem de um pai infeliz, vítima da má Fortuna,que lhe frustrou a alegria e a esperança na descendência ena disciplina da sua casa (Aug. 65), pois que, além de lhearrebatar Gaio e Lúcio, o marcava com um flagelo maisterrível que a morte: a infâmia na própria família.

Outras vezes, pelo contrário, separa-se informação quedevia aparecer junta, para a apresentar no momento emque terá maior efeito na caracterização da personagem.Por exemplo, a perseguição de Nero aos cristãos, queSuetónio aprova, é colocada na primeira parte da Vida(Nero 16.2), sem qualquer conexão com o incêndio de 64,cuja responsabilidade é unicamente imputada ao impera-dor (Nero 38), ao passo que em Tácito (Ann. 15.44.3-8)os cristãos são cruelmente castigados como culpados dodesastre. A narrativa da revolta do exército da Germâniaé repartida entre a Vida de Galba (Gal. 16.2) e a de Vitélio(Vit. 8.1), pelo que se apresenta em cada Vida o que dizexclusivamente respeito ao biografado: no primeiro caso,a rejeição do imperador eleito na Hispânia; no segundo, a

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aclamação burlesca do imperador favorito deste exército.Separa-se a informação do favorecimento de MétioPompusiano, dotado de um horóscopo que lhe prognosti-cava o império, para que ele se lembrasse da mercê (Ves.15), da que se refere à sua execução por ordem de Domi-ciano (Dom. 10.3), notícias que já deviam circular emconjunto, tal como as apresenta Díon Cássio (67.12.2-4):a primeira parte é usada para encarecer a clementia deVespasiano e a segunda para acentuar a saeuitia de Domi-ciano.

Apesar de o tempo não ser determinante na organiza-ção interna das Vidas, o biógrafo preocupa-se em apresen-tar com rigor a data do nascimento e da morte, bem comoo período de duração da vida dos imperadores. Mas otempo passa a ter uma dimensão religiosa quando é ritmadopor presságios. Através destes, o passado cumpre-se nopresente e o presente permite a previsão do futuro. Daí aimportância atribuída à arte divinatória. Os próprios prín-cipes são considerados bons ou maus segundo o créditoque dão aos presságios. Tais fenómenos são associados aosmomentos fulcrais da vida, em que a cronologia tem defacto importância para o biógrafo: sobretudo o nasci-mento, a chegada ao trono imperial e a morte, mas tam-bém o momento da assunção da toga viril, do primeiroconsulado ou outros marcos relevantes das Vidas. Nestesentido, tempo e destino aparecem como correlativos. Naprocura de indícios, valorizam-se determinadas coincidên-cias de calendário: é considerado como presságio do futuroo facto de Galba ter exercido o consulado entre o do paide Nero e o do pai de Otão, tal como ele mesmo sucedeudepois a Nero no poder e foi substituído por Otão (Gal.6.1). Dizer que Cláudio nasceu em Lugduno no mesmo diaem que, pela primeira vez, foi dedicada a Augusto uma ara

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naquela cidade (Cl. 2.1) é um processo de datação, porreferência a um acontecimento histórico, que engrandeceCláudio. Também o nascimento de Tito é situado três diasantes das calendas do insignis annus da morte de Calígula(Tit.1)2: assim Suetónio encarece a substituição do mons-trum por um homem considerado «amor e delícias dogénero humano». Além disso, Tito toma Jerusalém no diado aniversário da filha (Tit. 5.2). Mais significativas setornam as coincidências na Vida de Nero: recebe a notíciada revolta da Gália no mesmo dia em que, anos atrás,mandara assassinar a mãe (Nero 40.4); e morre no mesmodia em que outrora Octávia (a esposa) fora morta por suaordem (Nero 57.1).

Os imperadores são entidades situadas no tempo e inte-gram-se numa sucessão previamente determinada, por vezeshá séculos. As listas de prodígios relacionam-se com duassituações opostas: a ascensão ao governo do império e aperda do poder. Imperadores como Augusto, Galba ou Ves-pasiano, segundo os presságios apresentados, estão hámuito tempo fadados para a sua missão (Aug. 93.1 e segs;Gal. 9.2; Ves. 4.5.). Estes representam o início de três ciclosdiferentes na história de Roma Imperial. A chegada de taisimperadores aparece como a realização daqueles pressá-gios, indicando que o tempo se cumpriu. A repetição defenómenos reforça a ideia de predeterminação de um acon-tecimento. Os presságios preanunciam o facto, e o factoconfirma os presságios, numa espécie de círculo vicioso.Depois de se realizarem, presságios e facto são interpreta-dos em conjunto.

2 Mas a cronologia é forçada, e contraditória em relação ao queSuetónio diz mais à frente. Na verdade, Calígula foi morto a 24 deJaneiro de 41 d. C. e Tito nascera a 30 de Dezembro, mas de 39 (comosugere a informação de Tit. 11).

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A concepção e nascimento do fundador do principadosão acompanhados de diversos sinais do futuro poder, numaperspectiva messiânica. Um prodígio ocorrido em Romapressagiava o advento de um rei para o povo romano (Aug.94.4); o momento da concepção é, tal como o de Alexan-dre Magno (Plutarco, Alex. 2.6-3.2), marcado pela inter-venção divina de Apolo, através da união de Ácia comuma serpente (Aug. 94.4); a hora do parto, segundo opitagórico P. Nigídio, especialista em astrologia, pressagiaum dominus terrarum, facto confirmado pelos sacerdotestrácios, que, ao derramarem vinho sobre os altares, numbosque consagrado a Baco (Liber Pater), obtiveram cha-mas tão altas como só acontecera com o macedónio (Aug.94.5.). Esta predestinação é confirmada por muitos outrosprodígios: na infância (Aug. 94.6-9), na altura em queenverga a toga viril (94.10), no regresso de Apolónia, parareclamar a herança de César, e no primeiro consulado (Aug.95) — momentos fulcrais da vida que pressupunham aconsulta dos auspícios.

Também associados a Vespasiano, fundador da dinastiaflávia, surgem variados prodígios ligados ao nascimento(Ves. 5); ao tempo em que era edil (Ves. 5.3); à altura daviagem à Acaia, no séquito de Nero (Ves. 5.5); à sua mis-são na Judeia (Ves.5.6); aos últimos dias de Nero; ao se-gundo consulado de Galba; à batalha de Betríaco, entre ospartidários de Otão e de Vitélio (Ves. 5.7). São incluídosprodígios que aconteceram às refeições, significativos pelaimportância dos banquetes sacrificiais (Ves. 5.4). Estãopresentes os símbolos do carvalho e da águia e váriospresságios orientais. A luta pelo poder é acompanhada denovos prodígios, desta vez em Alexandria (Ves. 7.1), e deactividade taumatúrgica — cura de um coxo e de um cego(Ves. 7. 2-3) — que insere o advento de Vespasiano numaperspectiva messiânica.

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Os presságios do império são também numerosos naVida de Galba e fazem dele um predestinado desde crian-ça: o poder é-lhe anunciado pelo próprio fundador doprincipado (Gal. 4.1). Mas os sinais tornam-se mais preci-sos: indicam que só chegará ao trono numa idade avança-da, constatação que leva Tibério a não o considerar comoum possível rival (Gal. 4.1. Cf. Díon Cássio, 57.19.4). Umdia em que o avô de Galba fazia um sacrifício, o facto deuma águia (símbolo de Júpiter) lhe ter arrebatado das mãosas entranhas da vítima e as ter levado para um carvalho(árvore sagrada a Júpiter) carregado de glandes foi inter-pretado como sinal de que o poder soberano seria dado àsua família, mas numa época tardia. O gracejo do avô,incrédulo perante tal vaticínio — ‘sane’ inquit ‘cum mulapeperit’ (‘pela certa — disse ele — quando uma mula tiverparido’) —, transforma-se em novo presságio, confirmadopelo parto de uma mula, na altura da preparação da revoltacontra Nero (Gal. 4.2. Cf. Díon Cássio, 54.1.3). Nestaperspectiva, a chegada de Galba ao poder equipara-se àrealização de um adynaton, tarefa que só os deuses podemlevar a cabo.

Augusto, Galba e Vesapasiano apresentam-se comofundadores de dinastias, embora o segundo tenha falhado.Mas também Tibério (Tib. 14), Cláudio (Cl. 7), Otão (Otho4.1) e Tito (Tit. 5.1-2) são favorecidos por presságios quelhes asseguram o império.

Outra série de presságios anuncia a morte dos impera-dores e tal elenco está presente em todos sem excepção.Mas onde a contagem decrescente do tempo, marcada porpresságios, se torna mais dramática é nos relatos das mor-tes violentas. Os Idos de Março tornam-se uma data simbó-lica, notabilizada pela morte de César, em 44 a. C. A apro-ximação daquele dia é sugerida com notações temporaiscada vez mais precisas, à medida que o momento se apro-

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xima. Incluem-se fenómenos passados poucos meses antes(Jul. 81.1), nos dias anteriores aos Idos (81.2), na véspera(Jul. 81.3) e no próprio dia. As circunstâncias que poderiamalterar os decurso dos acontecimentos (César está tentadoa ficar em casa; no caminho, alguém lhe entrega um bilhetea revelar a conjura; antes de entrar na sala da reunião dosenado, o sacrifício tem resultados desfavoráveis) são ultra-passadas pela necessidade de o destino se cumprir. Irónicoé o facto de César troçar de Espurina, que o havia preca-vido contra o fatídico dia. Perante a acusação de impostura,«pois os idos de Março aí estavam sem nenhum perigopara ele», o adivinho respondeu «que tinham realmentechegado, mas não tinham passado» (Jul. 81.4).

A lista dos prodígios anunciadores da morte de Calígulainclui fenómenos semelhantes aos da de César, em queestão presentes quer Júpiter, quer o simbolismo dos Idos deMarço e do nome Cássio (um dos principais cesaricidas).A lista começa com prodígios anteriores, sem indicação detempo, mas vagamente situáveis no ano 40 d. C. (Calígulafoi morto a 24 de Janeiro de 41), para depois se centrar navéspera e no próprio dia do assassínio (Cal. 57).

Logo que Galba atinge o poder, os prodígios começamimediatamente a anunciar o seu fim (Gal. 18.1ss), comosugerem as notações temporais que os introduzem. Pro-dígios funestos acontecem durante a viagem para Roma,à sua entrada na cidade e vão-se acumulando até ao úl-timo dia.

A morte de Domiciano torna-se dramática precisamen-te porque o imperador, ao conhecer a data e a hora damorte, por informação dos astrólogos (Chaldaei) e dopróprio pai, Vespasiano (Dom.14.1), vive os últimos mo-mentos na ansiedade e no terror (Dom. 14.2.). Por isso, acontagem do tempo é fulcral no relato desta morte, anun-ciada por uma série de presságios, ocorridos durante oito

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meses e no primeiro de Janeiro do último ano (Dom. 15.2).São integrados no relato fundamentos de astrologia, colo-cados na boca do imperador, na véspera da morte: adproximos affirmauit ‘fore ut sequenti die luna se in aquariocruentaret factumque aliquod existeret, de quo loquerenturhomines per terrarum orbem’ (Dom. 16.1). («Asseverouaos que estavam próximos que ‘aconteceria no dia seguinteque a Lua se cobriria de sangue no signo de Aquário eocorreria algo de que todos os homens falariam por todoo mundo.») Como o imperador temia a hora quinta, osconjurados têm de recorrer ao dolo: quando Domicianopergunta as horas, dizem-lhe que é a sexta. O imperador,que julga passado o momento crítico, afasta os presentese recebe sozinho o assassino (Dom. 16.2). A contagem dotempo, cruzada com os vários sinais que se sucedem, ex-pressa a finitude humana e a trágica incapacidade de lutarcontra o destino.

Além de atribuir significado ao tempo de vida de cadaimperador, o biógrafo considera significativo o tempo dasdinastias. Suetónio, que crê numa intervenção divina nahistória, sugere claramente que a família júlio-cláudia pros-perou e caiu por vontade dos deuses, expressa em signaeuidentissima (Gal. 1.1). Recuando ao momento da fusãodos Júlios com os Cláudios (através do casamento deAugusto e Lívia), Suetónio introduz a história da afortuna-da galinha branca, que uma águia — ave associada amiúdeao poder supremo — deixou cair no regaço de Lívia. A ga-linha tornou-se a matriarca de uma longa prole, e o ramode louro, que a ave trazia no bico, floresceu até se tornara fonte dos louros para o triunfo dos césares (episódiotambém relatado em Plínio, Nat. 15.136-137). Diz o bió-grafo, não sem exagero (como se deduz do confronto comPlínio, Nat. 15.137), que, por altura da morte de cadaimperador, murchavam as pernadas que ele tinha plantado

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e no ano da morte de Nero todo o bosque secou e todasas galinhas morreram. Outros prodígios de significadoevidente são aduzidos: o templo dos césares foi atingidopor um raio, caíram as cabeças de todas a estátuas e oceptro foi arrebatado das mãos de Augusto.

Em continuidade com o início da Vida de Galba, Suetó-nio no começo da de Vespasiano, faz o ponto da situção:à prolongada incerteza, causada pelos sucessivos golpes deestado de três príncipes (Galba, Otão Vitélio), sucede-se,finalmente, a estabilidade (firmitas) oferecida pela famíliaflávia (Ves. 1.1). O início da Vida de Vespasiano sugere(pela oposição de diu, «longo tempo», e tandem, «final-mente») o tempo psicológico de dezoito longos meses deguerra civil, entre a morte de Nero (em Junho de 68) e ade Vitélio (Dezembro de 69). Onde Galba falhou, Vespa-siano foi eficaz. Às pretensões de nobreza dos três impera-dores anteriores o biógrafo opõe o contributo efectivo destanova família, que, apesar da origem humilde, recebe oreconhecimento do estado. Mas o biógrafo antecipa, desdelogo, o desenlace final: o castigo que Domiciano merecerápelas suas cupiditas e saeuitia. Este conjunto de Vidas é,assim, determinado por uma contingência no tempo, depoisconfirmada por presságios, acompanhada, num planoparalelo, de degeneração moral.

A Vida de Vespasiano termina com o papel do fatum naconsolidação da dinastia (Ves. 25). A crença nas prediçõesastrológicas faz com que Vespasiano se considere a salvodas constantes conspirações, ao ponto de ter a ousadia deafirmar no senado que aut filios sibi successuros autneminem («ou os filhos lhe sucederiam ou ninguém»).Neste contexto, se introduz um sonho do imperador, emque este via no seu átrio uma balança: num dos pratos,Cláudio e Nero, e no outro, ele próprio e os filhos. Talsonho revela-se verdadeiro, uma vez que uns e outros gover-

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naram por igual tempo (Ves. 25). Mas, ao delimitar o tempode governo dos Flávios, o sonho traz também implícita adata do fim da dinastia, e é o próprio fundador, Vespasiano,que, indirectamente, o anuncia. A conjugação do fatum edo tempo contribui para a tensão que se adensa no finaldeste ciclo de Vidas. Além disso, constatamos que, no finalda Vida de Domiciano, como o loureiro que secara peloocaso de Nero (Gal. 1), também a árvore que se reergueraquando Vespasiano era um cidadão privado (um cipreste:Ves. 5.4) se abateu subitamente (Dom. 15.2); e, como otemplo dos Césares Júlio-Cláudios (Gal. 1), também o tem-plo dos Flávios é atingido por um raio (Dom. 15.2). MasNero e Domiciano não representam apenas a queda deduas dinastias: são também o último grau da degradaçãomoral destas famílias.

Portanto, se, por um lado, a cronologia interna dasVidas é preterida em favor de uma análise do carácter, poroutro, há uma preocupação com o enquadramento dosimperadores na história sagrada de Roma. O tempo degovernação de cada um corresponde, no novo regime, àunidade anteriormente constituída pelo ano republicano.Como o ano romano, a Vida do imperador é pautada porpresságios que assinalam os principais momentos. Já oshistoriadores romanos, na linha dos registos dos pontífi-ces, incluíam nos seus annales listas de sinais prodigiosos.No entanto, em Suetónio, mais do que o favor ou desfavordos deuses para com determinadas empresas em particular,os prodígios servem para indicar o curso inevitável dahistória: o advento ou a queda de um príncipe, mas tam-bém o tempo da dinastia, igualmente assinalado por indi-cações de carácter divinatório. O futuro é predeterminadoe previsível de acordo com determinados sinais. Mas, se aascensão ao trono é, como diz Tito (Tit. 9.1), um dom dofatum, a queda parece ser também, em grande parte, conse-

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quência da má actuação dos príncipes, como sugerem asVidas de Calígula, Nero, Galba, Vitélio e Domiciano. Nestesentido, a conduta moral caminha num plano paralelo aodos presságios. Tal perspectiva moralizante possibilita umfim optimista para as Vidas dos Césares (Dom.23.2):

Ipsum etiam Domitianum ferunt somniasse gibbam sibipone ceruicem auream enatam, pro certoque habuissebeatiorem post se laetioremque portendi rei publicae statum,sicut sane breui euenit abstinentia et moderationeinsequentium principum.

«Contam que o próprio Domiciano sonhou que uma gibade ouro lhe nascera por detrás da nuca, e teve como certo queprognosticava, para depois dele, um estado mais feliz e maispróspero, tal como efectivamente aconteceu em breve, graçasao carácter desinteressado e moderado dos príncipes que selhe seguiram.»

O anunciado período de felicidade é operado e confir-mado através da superioridade moral dos principes seguin-tes, cuja actuação se pauta pela moderatio, no que respeitaà aceitação de honras e ao uso da repressão, e abstinentia,sobretudo no tocante aos bens dos súbditos. Nem podiaser de outro modo: aqueles (Trajano e Adriano) são osimperadores à sombra dos quais Suetónio faz carreira...até cair em desgraça3, por volta de 122 d. C.

3 Cf. Historia Augusta, Hadr. 11.3.

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O tempo nas ciências exactas

LÉLIO QUARESMA LOBO

Departamento de Engenharia Química,Universidade de Coimbra

Há dois meses os organizadores deste colóquio — con-cretamente a Doutora Rita Marnoto — insistiram de talforma na minha presença aqui, como comentador de umaintervenção, que acabei por anuir. Pediram-me um comen-tário de 5 ou 10 minutos. Pensei que, qualquer que fosseo tom da intervenção do palestrante, eu sempre poderiaespecular sobre o Universo: o que hoje nos chega porobservação do firmamento, como ruína do efectivo Uni-verso actual, que (ainda) não conseguimos detectar.

Sentaram-me aqui, entre nomes notáveis da cultura, coma obrigação de dar do tempo um ponto de vista do lado daciência. Seria uma tarefa ciclópica, incomensurável com osmeus conhecimentos e com o limitado tempo de que dispo-nho, apesar da minha já provecta experiência de vida cien-tífica. Para não vos desiludir direi, à partida, que me sinto

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aqui, neste lugar, por um erro de casting. Aliás, um duploerro. primeiro, pelo que já disse. segundo, porque a ciênciaa que me tenho dedicado há mais de trinta anos — atermodinâmica — tem uma particularidade que não reco-mendaria a minha presença neste painel: é que o tempo éuma variável completamente irrelevante em termodinâmicaclássica. quero dizer: não intervém nunca no seu forma-lismo.

Talvez por isto Einstein tenha afirmado (em 1949) que«a termodinâmica é a única teoria física de conteúdo uni-versal a respeito da qual estou convencido de que [...]nunca será ultrapassada». Esta afirmação é particularmentesignificativa se pensarmos que a Einstein se deve a identifi-cação quantitativa do tempo com a 4ª dimensão, consubs-tanciada no quadrivector espaço-tempo da teoria da rela-tividade. teríamos aqui vasto campo de intervenção parateóricos. E eu sou um experimentalista e engenheiro, maisfamiliarizado com o tempo material, que se mede nos labo-ratórios e nas fábricas, do que com o tempo transcendental,especulativo, de que Carlo Carena nos falou.

Correndo o risco de me afastar demasiadamente daexcelente intervenção que acabamos de ouvir, centrarei omeu brevíssimo comentário em duas facetas mais materiaisdessa grandeza inexorável a que chamamos tempo.

Do ponto de vista das ciências experimentais, o pro-blema do tempo, como variável acessível aos nossos senti-dos, revela-se em dois aspectos concretos: o problema daescala de medida e o problema da precisão das medições,deixando de lado o aspecto filosófico que devém da inter-rogação humana sobre a natureza do tempo. Começandopelo problema da escala, dir-se-ia que deste ponto de vistao tempo não difere de qualquer outra grandeza: a escaladeve estar — tem que estar — adaptada aos fenómenosque se querem observar: desde o tempo astronómico (em

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milhares de milhões de anos) ao tempo associado à Físicadas partículas subatómicas (que é da ordem dos fentose-gundos, ou inferior), passando pelo tempo geológico (mi-lhões ou centenas de milhão de anos) e, naturalmente, pelaescala temporal comum nos nossos laboratórios e observa-ções na física, na química, na biologia e outras ciênciasexactas fundamentais: as mais prosaicas horas, minutos,segundos e seus múltiplos ou fracções mais imediatas. Jánisto podem detectar-se diferenças importantes relativa-mente aos tempos medidos com referência à escala da vidaque, em regra, é a que interessa em ciências humanas. Há,portanto, uma escala de tempo apropriada à investigaçãode cada fenómeno particular. Definida essa escala adequa-da à investigação sistemática de cada fenómeno, põe-se oproblema da precisão das observações e, consequentemente,o da instrumentação a utilizar. Neste domínio, o desenvol-vimento da Electrónica veio viabilizar observações muitomais precisas que as anteriores e, mais que isso, a desco-berta de novos fenómenos até então insuspeitados, dandoorigem a novos ramos da ciência, a novas tecnologias e,também, a novos produtos e comodidades. o desejo hu-mano de conhecer os detalhes do tempo conduziu, assim,à compreensão de detalhes do Mundo. Ou vice-versa.

É talvez neste ponto que convirá (poderá) ser estabele-cida uma ponte, um contacto, entre o tempo concreto e otempo filosófico como produtos da Razão do Homem,desenhados e desenvolvidos por ele próprio, para sua satis-fação intelectual e material. Porém, a mim, falta-me o enge-nho para arquitectar a síntese, talvez virtual, mas necessá-ria, entre ambos: entre o tempo dell´uomo e o tempo di Dio.

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Os autores

SIR MARTIN REES — Professor-investigador da Royal Society.Pioneiro das pesquisas acerca dos processos físicos queconduzem à formação dos buracos negros, a ele sedevem avanços fundamentais na compreensão das radia-ções cósmicas, dos quasars, das explosões de raios gamae da formação das galáxias. Foi professor de Astronomiae Filosofia Experimental na Universidade de Cambridge,director do Instituto de Astronomia de Cambridge, pre-sidente da Royal Astronomic Society e presidente doConselho Consultivo da Agência Espacial Europeia. Re-conhecido pelo seu estímulo à internacionalização daciência, continua a desenvolver intensa actividade nosdomínios da física e da cosmologia.

JOÃO FERNANDES — Professor da Faculdade de Ciências eTecnologia da Universidade de Coimbra e astrónomono Observatório Astronómico da mesma universidade.Doutorou-se em Astronomia na Universidade de Paris.Os seus interesses científicos centram-se no estudo daevolução das estrelas do tipo do Sol, assunto a que

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dedicou vários artigos. Tem igualmente desenvolvidotrabalho no domínio da divulgação científica em gerale da astronomia em particular.

PETER ATKINS — Professor de Química na Universidade deOxford e membro do Lincoln College. Desenvolve in-vestigação sobre química teórica, em particular nos do-mínios da ressonância magnética e das propriedadeselectromagnéticas das moléculas, revelando sempre pro-fundos interesses de natureza filosófica. Os seus escri-tos recobrem âmbitos que vão desde o livro de divulga-ção à obra de especialização científica ou ao manualescolar. O entusiasmo que transmite nas suas apresen-tações é indissociável do cuidado que põe no grafismodos seus trabalhos e da sua capacidade de comuni-cação.

LUÍS G. ARNAUT — Professor de Química na Universidadede Coimbra. Os seus interesses científicos centram-sena cinética química, domínio científico em que se es-tuda a evolução dos sistemas químicos ao longo dotempo. Nesta área, tem vindo a desenvolver diversosmodelos interpretativos teóricos de aplicabilidade ge-neralizada, tendo particular interesse no estudo doefeito da luz ou da acção de enzimas sobre a velocidadedas reacções químicas. É co-autor de um livro sobrecinética química e de dezenas de artigos científicossobre este tema.

JOSÉ GASPAR MARTINHO — Professor de Química do Institu-to Superior Técnico da Universidade Técnica de Lisboa.Doutorou-se em 1982 no IST, e realizou um pós-dou-toramento na Universidade de Toronto, Canadá, em1985-1986. Publicou numerosos artigos científicos na

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OS AUTORES 257

área da química-física (espectroscopia UV-Vis, cinética,polímeros e colóides). Lecciona no Instituto SuperiorTécnico disciplinas das licenciaturas em Química, Enge-nharia Química e Engenharia Biológica e ainda cursosde pós-graduação nas áreas científicas da sua especia-lidade.

LEWIS WOLPERT — Professor de Biologia Aplicada à Medi-cina no University College de Londres. As suas pesqui-sas incidem sobre os mecanismos implicados pelo de-senvolvimento do embrião. É membro da Royal Societye da Royal Society of Literature. Em 1990 foi distingui-do com um CBE. Bem conhecido como apresentador deprogramas radiofónicos e televisivos de divulgação cien-tífica, foi também presidente do Committee for thePublic Understanding of Science.

DESIDÉRIO MURCHO — Prepara o seu doutoramento noKing’s College de Londres e é autor de alguns livros,entre os quais se destacam Essencialismo Naturalizado:Aspectos da Metafísica da Modalidade (Angelus Novus,2002) e O Lugar da Lógica na Filosofia (Plátano, 2003).Tem-se dedicado não apenas à investigação, mas tam-bém à divulgação e ao ensino da filosofia, sendo co--autor de manuais para o ensino secundário.

MAURICE BLOCH — Antropólogo social, professor daLondon School of Economics and Political Science. Faztrabalho de campo em Madagáscar. Nas suas inúmeraspublicações, conjuga de maneira singular uma reflexãoetnográfica e teórica, nomeadamente através de pesqui-sas em torno das noções de ideologia e de poder, nocampo da psicologia cognitiva, incidindo sobre os te-mas do ritual, do tempo e da linguagem.

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LUÍS REIS TORGAL — Professor da Faculdade de Letras daUniversidade de Coimbra, membro do Instituto de His-tória e Teoria das Ideias, coordenador científico doCentro de Estudos Interdisciplinares do Século XX daUniversidade de Coimbra (CEIS20), membro de váriassociedades científicas e consultor do Serviço de Ciênciada Fundação Calouste Gulbenkian. Dedica-se sobretu-do a temas de história contemporânea, nomeadamentedo século XX, no âmbito da Primeira República e doEstado Novo. O seu último livro publicado é uma bio-grafia de António José de Almeida (António José deAlmeida e a República), que obteve o Prémio de Histó-ria Contemporânea atribuído pela Academia Portuguesada História.

ROBERT ROWLAND — É desde 1979 professor convidado deAntropologia no ISCTE (Lisboa). Entre 1987 e 1995 foititular da cátedra de História Social Europeia no Insti-tuto Universitário Europeu, em Florença. Os seus traba-lhos, quase sempre situados na fronteira entre a antro-pologia e a história, ocupam-se de questões relacionadascom a história da família e a demografia histórica, osprocessos de feitiçaria na Europa moderna, a inquisição,com as relações entre a imigração, a formação da socie-dade brasileira e a metodologia das ciências sociais.

JOSÉ MANUEL MOTA — Professor da Faculdade de Letras daUniversidade de Coimbra. Doutorou-se com uma tesesobre a fantasia científica de Philip K. Dick. Os seusinteresses académicos actuais centram-se na obra deH. G. Wells e na utopia enquanto género literário. Tempublicado numerosos artigos sobre Dick, Ursula LeGuin, H. G. Wells, e a relação entre ficção científica epós-modernismo.

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OS AUTORES 259

BERTRAND JORDAN — Biólogo molecular, trabalhou sobrenumerosos temas de genética e de genómica, publicoucerca de cento e cinquenta artigos científicos, mais decem artigos de divulgação e nove livros que dizem res-peito à genética, ao genoma e à sociedade, três dosquais editados em português: Viagem ao redor doGenoma (Sociedade Brasileira de Genética, 1996), OsImpostores da Genética (Lisboa, Terramar, 2003), OEspetáculo da Evolução (Rio de Janeiro, Jorge Zahar,2005). Criou, em 2000, a Génopole de Marseille-Nice,é membro do EMBO e de HUGO e consultor de váriasempresas de biotecnologia.

NUNO GRANDE — Professor jubilado da Universidade doPorto, da qual foi vice-reitor, é médico e investigador.Figura emblemática do Instituto de Ciências BiomédicasAbel Salazar (ICBAS-UP), é também membro da Asso-ciação Europeia de Educação Médica.

MÁRIO DE SOUSA — Médico especialista em medicina dareprodução laboratorial pelo American Hospital of Paris,professor catedrático e director do Laboratório de Biolo-gia Celular do ICBAS-UP, director científico do Centrode Genética da Reprodução Professor Alberto Barros,director científico do Serviço de Genética da FMUP,director científico da Unidade de RMA do Departamentode Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Académico deAlicante e responsável pelo diagnóstico anatomo-pato-lógico ultrastrutural de tecido germinativo para a Europae África do Sul. É responsável pelo desenvolvimento epela aplicação de numerosas técnicas relacionadas comcélulas estaminais. Faz parte da comissão editorial dasrevistas Human Reproduction, Mícron, Revista Iberoa-mericana de Fertilidad y Reproducción Humana.

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260 TEMPO E CIÊNCIA

CARLO CARENA — Depois de ter sido professor em váriosliceus e na Universidade de Turim, trabalhou na redac-ção e na direcção da Einaudi, tendo organizado e tra-duzido numerosas edições italianas de clássicos antigose modernos, como sejam as obras de Virgílio, As Confis-sões e A Cidade de Deus, de Santo Agostinho, O Elogioda Loucura e o Lamento da Paz, de Erasmo de Roterdãoe Os Pensamentos, de Blaise Pascal. Grande especialistano pensamento de Santo Agostinho, segue uma meto-dologia crítica que privilegia a dimensão temporal daescrita. É presidente do Premio Internazionale Monseliceper la Traduzione letteraria e scientifica.

JOSÉ LUÍS BRANDÃO — Professor do Instituto de EstudosClássicos da Faculdade de Letras da Universidade deCoimbra, tem desenvolvido pesquisas sobre os epigra-mas de Marcial, integrando a equipa que os traduziuem português, o romance latino e, no âmbito do douto-ramento, a biografia suetoniana. Além de estudos vários,de carácter didáctico e científico, publicou «Da quodamem», amor e amargor na poesia de Marcial (1998).Desenvolve também trabalho teórico e prático na áreado teatro greco-latino. Integra a equipa de pesquisasobre representações de teatro clássico em Portugal, daqual já resultaram três publicações, e é membro funda-dor do grupo Thíasos, no qual tem participado comoactor e encenador.

LÉLIO QUARESMA LOBO — Engenheiro químico e presidentedos Conselhos Científico e Directivo da Faculdade deCiências e Tecnologia da Universidade de Coimbra,exercendo a sua actividade docente no Departamentode Engenharia Química. Doutorou-se na Universidadede Oxford. A sua actividade de investigação centra-se

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OS AUTORES 261

fundamentalmente nas áreas da termodinâmica quími-ca, tendo sido fundador e presidente do Centro de In-vestigação em Engenharia dos Processos Químicos edos Produtos da Floresta. Foi também fundador e émembro efectivo da Academia de Engenharia. Exerceu,entre outros cargos públicos, os de presidente dos Ins-titutos Politécnicos de Leiria e de Coimbra.

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42. VIAGEM ÀS ESTRELASRobert Jastrow

43. MALICORNEHubert Reeves

44. INFINITO EM TODASAS DIRECÇÕESFreeman J. Dyson

45. O ÁTOMO ASSOMBRADOP. C. W. Davies/J. R. Brown

46. MATÉRIA PENSANTEJean-Pierre Changeux/AlainConnes

47. A NATUREZAREENCONTRADAJean-Marie Pelt

48. O CAMINHO QUE NENHUMHOMEM TRILHOUCarl Sagan/Richard Turco

49. O SORRISO DO FLAMINGOStephen Jay Gould

50. EM BUSCA DA UNIFICAÇÃOAbdus Salam/Paul Dirac//Werner Heisenberg

51. OBJECTOS FRACTAISBenoît Mandelbrot

52. A QUARTA DIMENSÃORudy Rucker

53. DEUS JOGA AOS DADOS?Ian Stewart

54. OS PRÓXIMOS CEM ANOSJonathan Weiner

55. IDEIAS E INFORMAÇÃOArno Penzias

56. UMA NOVA CONCEPÇÃODA TERRASeiya Uyeda

57. HOMENS E ROBOTSHans Moravec

58. A MATEMÁTICAE O IMPREVISTOIvar Ekeland

59. SUBTIL É O SENHORAbraham Pais

60. FLATLAND — O PAÍS PLANOEdwin A. Abbott

61. FEYNMAN — A NATUREZADO GÉNIOJames Gleick

22. NOS BASTIDORESDA CIÊNCIASebastião J. Formosinho

23. VIDAFrancis Crick

24. SUPERFORÇAPaul Davies

25. QED — A ESTRANHA TEORIADA LUZ E DA MATÉRIARichard P. Feynman

26. A ESPUMA DA TERRAClaude Allègre

27. BREVE HISTÓRIA DO TEMPOStephen W. Hawking

28. O JOGOManfred Eigen/Ruthild Winkler

29. EINSTEIN TINHA RAZÃO?Clifford M. Will

30. PARA UMA NOVA CIÊNCIASteven Rose/Lisa Appignanesi

31. A MÃO ESQUERDADA CRIAÇÃOJonh D. Barrow/Joseph Silk

32. O GENE EGOÍSTARichard Dawkins

33. HISTÓRIA CONCISADAS MATEMÁTICASDirk J. Struik

34. CIÊNCIA, ORDEME CRIATIVIDADEDavid Bohm/F. David Peat

35. O QUE É UMA LEI FÍSICARichard P. Feynman

36. QUANDO AS GALINHASTIVEREM DENTESStephen Jay Gould

37. «NEM SEMPRE A BRINCAR,SR. FEYNMAN!»Richard P. Feynman

38. CAOS — A CONSTRUÇÃODE UMA NOVA CIÊNCIAJames Gleick

39. SIMETRIA PERFEITAHeinz R. Pagels

40. ENTRE O TEMPOE A ETERNIDADEIlya Prigogine/Isabelle Stengers

41. OS SONHOS DA RAZÃOHeinz R. Pagels

1. O JOGO DOS POSSÍVEISFrançois Jacob

2. UM POUCO MAIS DE AZULH. Reeves

3. O NASCIMENTO DO HOMEMRobert Clarke

4. A PRODIGIOSA AVENTURADAS PLANTASJean-Marie Pelt/Jean-Pierre Cuny

5. COSMOSCarl Sagan

6. A MEDUSA E O CARACOLLewis Thomas

7. O MACACO, A ÁFRICAE O HOMEMYves Coppens

8. OS DRAGÕES DO ÉDENCarl Sagan

9. UM MUNDO IMAGINADOJune Goodfield

10. O CÓDIGO CÓSMICOHeinz R. Pagels

11. CIÊNCIA: CURIOSIDADEE MALDIÇÃOJorge Dias de Deus

12. O POLEGAR DO PANDAStephen Jay Gould

13. A HORA DODESLUMBRAMENTOH. Reeves

14. A NOVA ALIANÇAIlya Prigogine/Isabelle Stengers

15. PONTES PARA O INFINITOMichael Guillen

16. O FOGO DE PROMETEUCharles Lumsden/Edward O.Wilson

17. O CÉREBRO DE BROCACarl Sagan

18. ORIGENSRobert Shapiro

19. A DUPLA HÉLICEJames Watson

20. OS TRÊS PRIMEIROSMINUTOSSteven Weinberg

21. «ESTÁ A BRINCAR, SR.FEYNMAN!»Richard P. Feynman

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62. COMIDA INTELIGENTEJean-Marie Bourre

63. O FIM DA FÍSICAStephen Hawking

64. UNIVERSO, COMPUTADORESE TUDO O RESTOCarlos Fiolhais

65. OS HOMENSAndré Langaney

66. OS PROBLEMASDA BIOLOGIAJohn Maynard Smith

67. A CRIAÇÃO DO UNIVERSOFang Li Zhi/Li Shu Xian

68. A MÁQUINA MÁGICAA. K. Dewdney

69. O MELHOR DE FEYNMANOrganização de Laurie M. Browne John S. Rigden

70. ÚLTIMAS NOTÍCIASDO COSMOSHubert Reeves

71. A VIDA É BELAStephen Jay Gould

72. OS PROBLEMASDA MATEMÁTICAIan Stewart

73. POEIRAS DE ESTRELASHubert Reeves

74. A PALAVRA DAS COISASPierre Laszlo

75. A EXPERIÊNCIAMATEMÁTICAPhilip J. Davis/Reuben Hersh

76. EINSTEIN VIVEU AQUIAbraham Pais

77. SOMBRAS DEANTEPASSADOSESQUECIDOSCarl Sagan/Ann Druyan

78. O PRIMEIRO SEGUNDOHubert Reeves

79. A COMUNIDADE VIRTUALHoward Rheingold

80. UM MODO DE SERJoão Lobo Antunes

81. SONHOS DE UMA TEORIAFINALSteven Weinberg

82. A MAIS BELA HISTÓRIADO MUNDOHubert Reeves/Joël de Rosnay//Yves Coppens/DominiqueSimonnet

83. O SÉCULO DOS QUANTAJoão Varela

84. O FIM DAS CERTEZASIlya Prigogine

85. A PRIMEIRA IDADEDA CIÊNCIAAntónio Manuel Baptista

86. O QUARK E O JAGUARMurray Gell-Mann

87. A DIVERSIDADE DA VIDAEdward O. Wilson

88. A LIÇÃO ESQUECIDADE FEYNMANDavid L. Goodstein/JudithR. Goodstein

89. ORDEM OCULTAJohn H. Holland

90. UM MUNDO INFESTADODE DEMÓNIOSCarl Sagan

91. O RATINHO, A MOSCAE O HOMEMFrançois Jacob

92. O ÚLTIMO TEOREMADE FERMATAmir D. Aczel

93. A MENTE VIRTUALRoger Penrose

94. SOBRE O FERRONOS ESPINAFRESJean-François Bouvet (org.)

95. BILIÕES E BILIÕESCarl Sagan

96. CINCO EQUAÇÕES QUEMUDARAM O MUNDOMichael Guillen

97. A CIÊNCIA NO GRANDETEATRO DO MUNDOAntónio Manuel Baptista

98. CONCEITOS FUNDAMENTAISDA MATEMÁTICABento de Jesus Caraça

99. O MUNDO DENTRODO MUNDOJohn D. Barrow

100. A CULTURA CIENTÍFICAE OS SEUS INIMIGOSO LEGADO DE EINSTEINGerald Holton

101. VIAGENS NO ESPAÇO-TEMPOJorge Dias de Deus

102. IMPOSTURAS INTELECTUAISAlan Sokal/Jean Bricmont

103. O ESTRANHO CASO DO GATODA SR.a HUDSONColin Bruce

104. AVES, MARAVILHOSAS AVESHubert Reeves

105. O HOMEM QUE SÓ GOSTAVADE NÚMEROSPaul Hoffman

106. DECOMPONDO O ARCO-ÍRISRichard Dawkins

107. FULL HOUSEStephen Jay Gould

108. O UNIVERSO ELEGANTEBrian Greene

109. GÖDEL, ESCHER, BACHDouglas R. Hofstadter

110. O SIGNIFICADO DE TUDORichard P. Feynman

111. GENOMAMatt Ridley

112. ZEROCharles Seife

113. O MISTÉRIO DO BILHETEDE IDENTIDADE E OUTRASHISTÓRIASJorge Buescu

114. E = MC2

David Bodanis

115. AS LIGAÇÕES CÓSMICASCarl Sagan

116. O DISCURSO PÓS-MODERNOCONTRA A CIÊNCIAAntónio Manuel Baptista

117. O NOSSO HABITAT CÓSMICOMartin Rees

118. OS GÉNIOS DA CIÊNCIAAbraham Pais

119. NOVE IDEIAS MALUCASEM CIÊNCIARobert Ehrlich

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120. A COISA MAIS PRECIOSAQUE TEMOSCarlos Fiolhais

121. FEITICEIROS E CIENTISTASGeorges Charpak/Henri Broch

122. A ESPÉCIE DAS ORIGENSAntónio Amorim

123. COMO CONSTRUIR UMAMÁQUINA DO TEMPOPaul Davies

124. O GRANDE, O PEQUENOE A MENTE HUMANARoger Penrose

125. COMO RESOLVERPROBLEMASG. Polya

126. DA FALSIFICAÇÃO DEEUROS AOS PEQUENOSMUNDOSJorge Buescu

127. MAIS RÁPIDO QUE A LUZJoão Magueijo

128. O SIGNIFICADODA RELATIVIDADEAlbert Einstein

129. FRONTEIRAS DA CIÊNCIARui Fausto, Carlos Fiolhais,João Queiró (coords.)

130. DA CRÍTICA DA CIÊNCIAÀ NEGAÇÃO DA CIÊNCIAJorge Dias de Deus

131. CONVERSAS COMUM MATEMÁTICOGregory J. Chaitin

132. Y: A DESCENDÊNCIADO HOMEMSteve Jones

133. CRÍTICA DA RAZÃO AUSENTEAntónio Manuel Baptista

134. TEIAS MATEMÁTICASMaria Paula S. Oliveira (coord.)

135. A RAINHA DE COPASMatt Ridley

136. COMO RESPIRAMOS ASTRONAUTASManuel Paiva

137. O CÓDIGO SECRETOMargarida Telo da Gama (coord.)

138. OS RELÓGIOS DE EINSTEINE OS MAPAS DE POINCARÉPeter Galison

139. O COSMOS DE EINSTEINMichio Kaku

140. O ANNUS MIRABILLISDE EINSTEINJohn Stachel

141. DESPERTAR PARA A CIÊNCIAT. Lago, A. Coutinho, J. Calado,C. Fiolhais, F. Barriga, J. Buescu,A. Quintanilha, C. Fonseca, C.Salema, J. L. Antunes e J. Caraça

142. EINSTEIN... ALBERT EINSTEINJorge Dias de Deus e Teresa Peña

143. UM POUCO DE CIÊNCIAPARA TODOSClaude Allègre

144. O GÉNIO DA GARRAFAJoe Schwarcz

145. CURIOSIDADE APAIXONADACarlos Fiolhais

146. O LIVRO DAS ESCOLHASCÓSMICASOrfeu Bertolami

147. FLATTERLAND — O PAÍSAINDA MAIS PLANOIan Stewart

148. A IDADE NÃO PERDOA?Luis Bigotte de Almeida

149. TEMPO E CIÊNCIARui Fausto e Rita Marnoto(coords.)