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Rui Resende

THIAGO UM HERÓI MEDIEVAL

Fotos de figurantes da Feira Medieval de Castro Marim

decorrida em Agosto de 2010

Edição do autor

Lisboa, 2010

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FICHA TÉCNICA

Titulo: THIAGO UM HERÓI MEDIEVAL

Autor e Editor: R. RESENDE

Capa: POSTAL ILUSTRADO DE L. & L.

Composição e Coordenação: R. RESENDE E S. SPINDOLA

Revisão de texto: S. SPINDOLA

Execução: GRAFICA COPIDOURO

Tiragem: 30 EXEMPLARES

ISBN: 978-989-97112-0-4

Depósito Legal: 320779/10

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O SENHOR DE PORCEL

I

No camarote da praça pública, repleta de gente, o senhor de

Porcel discutia qual a sentença que deveria ditar naquele dia cinzento

de São Thiago, em 1472.

O largo, de terra barrenta, encontrava-se repleto de locais que

faziam-se ouvir aos brados e comentavam o julgamento, aproveitando

a oportunidade para comprarem víveres numa feira improvisada de

tendas constituída expressamente para a ocasião.

- A morte na fogueira constituiria um castigo exemplar para esta

bruxa.

O conde coçou a barbicha e ajeitou o bigode antes de replicar na

sua voz pausada a dom Maximiano.

- Hoje não condenarei ninguém à morte, nasceu-me finalmente

um filho varão. Chamar-se-á Thiago em honra do padroeiro da aldeia,

porém a feiticeira deverá abandonar a povoação para sempre.

Dom Maximiano apertou o punho da espada cheio de cólera, mas

o conde ignorou a atitude e levantou-se apontando para a feiticeira

Molina, que jazia de joelhos à sua frente presa com correntes,

escoltada por guardas de longas lança, briosos e de elevada estatura.

- Soltem as grilhetas, condeno-te ao desterro. Vai em paz, mas

que a partir desta data que não te veja mais.

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Lançando algumas moedas de prata aos pés da bruxa o nobre

sentou-se satisfeito enquanto o povo o aclamava contente, tanto o

conde justo e bom como a feiticeira sempre caridosa com os mais

desafortunados. Ambos haviam ganho um lugar no coração da

populaça e a razão daquele tribunal popular prendia-se com uma

denúncia de um esbirro de dom Maximiano que a acusava de ter

envenenado uma camponesa com mesinhas e bruxarias.

A pobre mulher levantou-se com dificuldade e recolheu as

moedas colocando-as num bolso da longa saia preta e entre soluços

respondeu ao fidalgo.

- Obrigado, meu senhor. Para tua desgraça não me verás mais,

mas a tua acção bondosa será premiada num futuro distante.

Dom Maximiano não se dava por derrotado e insistia na sua

aversão em relação à feiticeira.

- Fazeis mal em não a lançar às chamas. Esta mulher permanecerá

certamente na aldeia.

O conde ignorou as palavras do comandante do seu grupo de

soldados e colocou a sua mão grossa no ombro do seu auxiliar.

- Acalmai o vosso ódio e vinde a um banquete oferecido a toda a

aldeia em honra do meu filho. Esta tarde javalis no espeto e vinho

serão distribuídos gratuitamente e mandei vir da cidade da Guarda um

grupo de ciganos que tocarão e dançarão para nós.

A multidão dispersou pela praça salpicada de vendedores,

saltimbancos e monges do mosteiro próximo. Com dificuldade o

conde, amparado por dois jovens e seguido do séquito dirigiu-se para

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uma tenda no centro da praça aonde as bandeiras desfraldadas com as

armas do nobre, dançavam ao vento.

A feiticeira Molina desapareceu rapidamente e já não ouviu o

galope de alguns cavaleiros a entrarem no largo, a principiarem a

chacinar os camponeses e os guardas do nobre.

Sobre os gritos dos feridos a voz de dom Maximiano elevava-se

no clamor, o ódio espelhava-se no rosto quando com a pesada espada

rompeu a população e encarou o conde.

- Hoje a tua alma vogará no inferno para sempre.

O bravo nobre enfrentou-o de pé. Com um tremor a espada luzia

ao defrontar o traidor, porém os anos não perdoavam e pouco a pouco

as forças faltaram-lhe quando mais precisou delas. Com um grito

estridente, dom Maximiano trespassou o peito do aristocrata e o corpo

ensanguentado do governante da aldeia caiu-lhe aos pés perante o

regozijo dos assaltantes.

- A partir de hoje ditarei a minha lei e todos me obedecerão. O

conde preparou-nos uma festa aproveitem-na e vamos saquear o

palácio.

Como lobos os energúmenos percorriam as ruelas da aldeia

pilhando-a, destruindo tudo à sua passagem matando os indefesos

aldeões que ousavam enfrentá-los.

Montando um cavalo alazão, dom Maximiano procurava de lar

em lar os fiéis ao conde e as suas mãos tingidas de sangue pareciam

insaciáveis de vidas inocentes.

- Para o palácio.

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- Seguido de numeroso grupo de cavaleiros bateu os poucos

defensores do antigo senhor de Porcel revitalizando o furor com a

procura infrutífera.

- Procurem o filho do fidalgo.

Apesar de percorrerem sala a sala, o bebé parecia haver-se

evaporado como que por algum acto de magia.

- Molina.

Com asco o cavaleiro soletrava as palavras e as mãos crispadas

agarravam a espada enquanto nas faces rubras os dois olhos negros

pareciam afundar-se.

- Maldita bruxa.

A procura vã enfurecia-o e ao ver os esforços frustrados

principiou a destruir o antigo salão do aristocrata, mas acalmou por

fim. Era uma estranha imagem, um incêndio contra o céu negro

elevando-se na povoação, que uma pequena caravana de saltimbancos

observava quando deixou a vila.

- Não se preocupe dom Maximiano, mesmo que a criança

sobreviva e reivindique um dia, os direitos do conde, jamais poderá

provar de quem descende.

- Enganas-te, toda a descendência da família nasce com uma

mancha nas costas.

Uma gargalhada ressoou no salão e o esbirro do usurpador

acalmou o comparsa.

- Para voltar o filho do conde precisará de muitos homens

armados e não será uma bruxa a fornecer-lhe.

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Satisfeito o hipócrita começou a encher os copos dos

companheiros com o vinho da adega do nobre enquanto mantinha o

saque ao paço. Ébrio batia nos criados com uma verga.

- A partir de hoje governarei esta vila como me apetecer e

prometo que quem me apoiar será bem recompensado.

Um novo amanhecer descobriu a vila de Porcel manchada pelo

generoso sangue do conde e as trevas no céu pareciam traduzir o que ia

na alma dos habitantes da povoação.

II

Vinte anos haviam decorrido desde o drama de Porcel. O ancião

de longos cabelos brancos, que deitado aguardava serenamente a

morte, narrava os acontecimentos a um jovem robusto que de lágrimas

nos olhos o escutava com atenção.

- O teu pai morreu e o destino quis que tu viesses para minha

casa. Bendita a hora em que te acolhi e à tua benfeitora.

As mãos gélidas do decano apertavam as do rapaz, sendo a cena

atentamente observada por uma mulher de olhos lacrimejantes e

longos cabelos pretos que contrastavam com o xaile branco e reluzente

caído sobre os ombros.

- Hoje a minha alma partirá para junto do Senhor, porém deixo-te

uma herança preciosa, não em riqueza, mas sim em saber. Tu és o filho

que nunca tive, amo-te como se fosses meu descendente.

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As paredes húmidas do quarto brilhavam à luz de uma vela de

cera acesa sobre o móvel, desvendando sombras que emprestavam

figuras irreais à cena. O som das palavras esvaziava-se e o homem

continuou ignorando os soluços do moço.

- Nunca desprezes os teus conhecimentos de medicina aprendidos

ao longo dos anos comigo e os segredos de feitiçaria ensinados por

Molina. Eles fazem de ti um homem temível e poderoso.

A voz do velho médico do rei enfraquecia à medida que falava

com o jovem, mas as mãos continuavam a apertar fortemente as do

mancebo.

- Promete-me nunca agarrares uma arma contra o Bem.

Com a cabeça do ancião no colo, Thiago sofria ao ver aquele que

ele tanto amava morrer, exalando um último suspiro, e apenas os

braços caridosos de Molina conseguiram retirá-lo do quarto para uma

pequena sala bem mais alegre.

- Meu filho, vivestes com saltimbancos, que não eram da tua

estirpe, porém ensinaram-te os seus segredos até ao momento de vires

para esta casa aonde completas-te a tua educação. Chegou o dia de eu

regressar, de voltar disfarçada à aldeia aonde nasci, não o tendo feito

antes porque não queria que o nosso bem-fazente morresse sem

ninguém à cabeceira. Apesar de a minha vida correr perigo em Porcel,

foi nesse lugar que me abençoou pela primeira vez a luz do dia.

Dirigindo-se para uma janela Thiago olhou para a rua ouvindo

com atenção a velha feiticeira.

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- O nosso benfeitor deixou-nos uma pequena herança, ficarei

apenas com uma pequena parte para comprar um casebre, o resto será

para ti. Conheço-te bem, sei que em breve partirás também daqui.

- Sim, sempre desejei viajar, percorrer o mundo, cruzar oceanos,

conhecer o local aonde o Sol nasce, beijar a terra que lhe serve de

leito.

- O teu sangue arde como o do conde.

- Esse título pertence-me.

Silenciosamente a mulher retirou-se deixando o jovem

observando o povo anónimo na ruela suja. Marinheiros carregavam

barris, casais passavam enlevados e uma vendedora gritava para um

rapaz que corria desenfreado para não ser apanhado por uma moça

bonita.

De súbito a donzela escorregou e dois homens corpulentos que

saiam de uma taberna troçaram da jovem, que sem cerimónias, lançou

uma pedra da calçada certeira à cabeça do rufia provocando-lhe pronta

reacção.

Sem possibilidades de fuga, apenas a rápida intervenção de

Thiago chamando a atenção do indivíduo evitou que ele se dirigisse

para a adolescente.

Saltando pela janela, o jovem enfrentou de mãos vazias os dois

ébrios armados de punhais perante um pequeno aglomerado de passan-

tes aterrados. Uma barreira de fogo serviu de muralha aos intentos

ameaçadores dos canalhas que perante tão estranho fenómeno fugiram

apavorados.

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Sem de inicio compreender o que se passava Thiago sentiu um

rubor quando a moça o beijou na face. Ao longe, na entrada da viela

ainda viu Molina afastar-se e desaparecer no meio da multidão. Com

um sorriso o jovem inquiriu.

- Quer que a leve a casa?

- Se desejar conhecer o meu irmão e jantar connosco. Ele parte

amanhã para Itália e é bom ter amigos corajosos quando se vive

metade da vida sozinha.

De braço dado atravessaram velhas ruelas pejadas de aventureiros

e mercadores até chegarem a uma casinha simples e acolhedora. Um

rosto enegrecido pelo Sol acolheu-os e o sorriso franco do irmão de

Ângela imediatamente cativou Thiago

A refeição decorreu sem incidentes e alegre, como a atmosfera da

noite apresentava-se cálida e convidativa, acabaram por se sentar num

pequeno pátio a conversar.

- Amanhã parto para Itália. Deseja acompanhar-me? O capitão

procura marinheiros valentes e ousados que se saibam bater caso os

muçulmanos nos ataquem.

- Gostaria de o acompanhar, mas não gosto da carreira de armas.

As feições do navegante traíram espanto ao ouvir a revelação do

hóspede.

- Como defendeu a minha irmã?

- Imprudentemente fiz frente a dois brigões não levando armas.

Confuso, Rodolfo deixou Thiago continuar a explicação enquanto

afastava um mosquito que lhe rondava um braço.

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- Salvou-me uma feiticeira que interpôs entre nós e os malfeitores

uma barreira de fogo.

Soltando uma gargalhada o homem fixou a irmã, contudo ao vê-la

com as faces sérias, aquiescendo com a cabeça deixou de rir e

perguntou.

- Sabe magia?

- Um pouco, porém raramente utilizo os meus poderes.

- Qual a sua profissão?

- Auxiliava o médico do rei.

Um assobio de assombro saiu dos lábios do interlocutor.

- Conhece a corte?

- Fui poucas vezes ao palácio real.

- Amanhã apresentá-lo-ei ao capitão e talvez venha comigo para

Itália. Nunca se sabe quando precisaremos de um amigo de bruxas no

barco.

Soltando uma risada Rodolfo, o irmão de Ângela, regressou a

casa deixando os dois jovens enamorados sozinhos no pátio.

- Um dia regressarei para te levar para sempre daqui.

- Aguardarei por ti.

Um longo beijo banhado pelo luar uniu os dois namorados, os

lábios juntavam-se selando-se um compromisso indissolúvel. Os dois

amantes nem ouviam os acordes de uma guitarra que saiam de uma

velha casa de pasto, onde dedos habilidosos soltavam calcando nas

cordas.

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III

O dia rompera claro e o capitão percorria com a vista o horizonte

servindo-se da mão direita como pala.

- Não me agrada a calmaria!

Um marinheiro tisnado pelo Sol respondeu ao superior soltando

um grunhido e apontou para um minúsculo ponto negro.

- Um barco. Prepara os homens e dá mais velocidade.

Sem replicar, o mulato prontificou-se a cumprir as ordens

soltando todas as velas da embarcação. Passados alguns instantes a

tripulação reunia-se a contemplar o ponto negro que gradualmente

aumentava.

Uma análise breve ao astrolábio linear bastou a Rodolfo para se

inteirar das horas.

- São sete e meia. Parece-me um navio de grande tonelagem.

Agarra as armas e luta como um leão se o barco pertencer aos

muçulmanos.

Thiago sentiu o sangue percorrer-lhe as faces. Nunca entrara em

nenhuma batalha naval e sabia da sorte que o esperava se caísse em

mãos dos sarracenos.

O grito do capitão para os artilheiros confirmou os seus piores

receios. Uma aparente desordem instalou-se no convés e os soldados

arrastavam as armas de maior calibre.

- Piratas.

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O aventureiro apertou com a mão o punho da espada sentindo

com este gesto um pouco de falsa segurança. A azáfama da tripulação

intensificou-se rolando os barris de pólvora para junto dos canhões que

atordoavam os ares.

Um cheiro a pólvora espalhou-se no ar e pequenas gotas de chuva

salpicavam os corpos suavizando os efeitos do calor mediterrânico. O

barco cristão carregado de mercadorias era presa fácil, ficando

rapidamente ao alcance dos discípulos de Alá, que como demónios

abordaram a embarcação espalhando-se numa larga frente e a peleja

ganhou novo vigor. O comandante gritava desesperado enquanto

lutava corpo a corpo com um corsário.

- Não os deixem saltar.

Desesperados os cristãos faziam esforços sobre-humanos

batendo-se valentemente para conter aquela avalanche humana,

contudo pouco habituados a combater sucumbiam ao numero do

adversário. Lado a lado Thiago e Rodolfo batiam-se com ardor, porém

esgotados acabaram por cair nas mãos dos inimigos que os prenderam

e reuniram aos demais companheiros.

Depois de saquearem as mercadorias os seguidores do profeta

afundaram o navio seguindo rumo a Argel, cidade costeira no norte de

África.

Acorrentados os prisioneiros pareciam um rebanho de ovelhas,

acossados por uma alcateia de lobos e os seus olhos revelavam a

apreensão que os tomara. O irmão de Ângela lamentava a desdita e

com um sorriso triste relatou os próximos passos dos inimigos.

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- Quando chegarmos a Argel seremos brindados com uma argola

na orelha que é o símbolo dos escravos.

- Possivelmente não nos separam.

- Iremos ser vendidos com abexins, arménios e outros cristãos.

- Não sabemos o nosso futuro.

- Com sorte vender-nos-ão para o trabalho de campo. Lamento

agora a minha ideia de te convidar.

Uma chicotada obrigou-os a calarem-se, um colosso negro

apresentou-lhes um punho ameaçador acompanhando o gesto com uma

torrente de palavras estranhas.

Balançando pela acção das ondas o barco deslizava para sul

esvaziando-se as esperanças de salvação, até que uma linha surgiu no

horizonte e uivos de alegria chegaram aos ouvidos dos melancólicos

cativos.

- Amanhã seremos negociados no mercado como escravos.

IV

Desde muito cedo que Argel despertara para o bulício habitual

com mercadores transportando-se em burros generosamente ajaezados

a cruzarem-se com carregadores esmagados por caixotes nas estreitas

ruas da cidade muçulmana. Nos bazares os clientes berravam junto às

dakkas com os lojistas, e não raro os vigilantes acompanhados por cães

intervinham nas contendas para findar as discussões.

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Escassas dezenas de metros adiante, o mercado enchera-se de

uma multidão ansiosa por observar os produtos do dia como camelos,

gatos, escravos e flores para decoração.

Valendo-se da voz grossa o apregoador berrava as virtudes de dez

escravos sem defeitos que vendia a um preço razoável porque não

poderia estar naquele local no dia seguinte. Uma mulher núbia

argumentava que o elevado preço pedido era incomportável para o seu

senhor e se ele não baixasse o custo dos servos em doze moedas

regressaria sem a mercadoria. O diálogo manteve-se aceso por longos

minutos, contudo pouco a pouco a conversa amenizou-se findando o

negócio proveitoso para ambas as partes.

Munidos de chicotes e armados com sabres os homens que

acompanhavam a negra Fátima reuniram os escravos e colocaram-lhes

algemas, retirando-lhes as pesadas correntes que prendiam os pés dos

desafortunados.

Uma penosa marcha principiava para Thiago, Rodolfo e os

companheiros, presos em fila indiana por uma longa corda no pescoço,

contudo todos se alegraram de não os separem e a saída da metrópole

pareceu-lhes uma bênção para o espírito.

Durante três intermináveis semanas o grupo percorreu a areia do

deserto, a fadiga não lhes quebrava as forças devido aos cuidados dos

guardas a que não era estranho o aparecimento duma especial afeição

entre Fátima e Rodolfo.

Ao fim de vinte dias de marcha surgiu um pequeno grupo de

casas brancas dominadas por uma maior que ladeava um pátio

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contendo um enorme tanque. Encaminharam-se para uma porta

habilmente decorada de pregos e ferros, entrando para o pátio meio

ocupado por uma cisterna de água cristalina, tendo ao lado um

pequeno lago aonde nadavam calmamente peixinhos vermelhos

ornamentando o local.

Depois de saciarem a sede entraram na casa dominante e

atravessaram duas divisões antes de pararem junto a uma porta, aonde

os esperava um criado ricamente trajado que os convidou a entrar.

Sentado num poufe castanho e de pele de camelo, aguardava-os um

velho de olhos negros, vestimenta alva, turbante na cabeça e longas

barbas brancas encaracoladas que cumprimentou Fátima juntando as

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mãos analisando cuidadosamente o grupo recém-chegado com ar

aprovador.

- Realizas sempre boas compras pois eles nem parecem terem

feito uma viagem longa.

A serva que se mantivera desde que entrara junto a uma das

paredes da divisão respondeu respeitosamente curvando ligeiramente a

cabeça.

- Obrigado meu amo pelas generosas palavras.

- Seis escravos cristãos trabalharão no cultivo apascentando os

camelos e cabras, um servirá o meu filho, e os outros três ajudar-te-ão

nas lides domésticas.

Um jovem entrou na sala sem se anunciar e com uma vénia

cumprimentou o dono da casa. O turbante ricamente decorado e as

maneiras resolutas revelavam ascendência senhorial.

- Pai, como sabes, eu preciso de um criado e como sei que

compraram dez escravos…

- Escolhe aquele que pretendes.

Decidido e sem pestanejar o moço apontou para Rodolfo. Acto

contínuo a núbia lançou-se aos pés do jovem com lágrimas a

escorrerem-lhe pelos olhos.

- Meu senhor, esse não.

Surpreendido Muhammad Haldun, o filho do dono da casa,

hesitou na acção a empreender, mas anuiu ao pedido da servente.

- Não sei a razão porque agis assim.

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A bela negra não retirava os olhos do chão aos soluços enquanto

os restantes se mantinham em silêncio. Por fim o mancebo agarrou

numa das mãos da moça e levantou-a com um sorriso.

- Não prefiro nenhum em especial e se Fátima deseja este cativo

para a acompanhar não irei contra o seu pedido expresso.

Amparado por um criado o ancião levantou-se encaminhando-se

para o filho vestido com uma camisa e calções de pano branco bordado

com fio de ouro, colocando uma das mãos sobre o ombro.

- Belo gesto Muhammad Haldun, digno da tua estirpe.

- Fátima tornou-se para mim como uma irmã, não irei fazer

experiências médicas num escravo que lhe roubou o coração.

Envergonhada por desvendar a paixão aos seus senhores, Fátima

soluçava baixinho e inconscientemente abraçou Muhammad Haldun

quando este a beijou suavemente na testa.

Inspeccionando de novo o grupo de escravos o velho apontou

para Thiago exclamando com autoridade.

- Retirem as algemas a este escravo.

Os guardas prontamente obedeceram à ordem, e libertos os

pulsos, Thiago friccionou-os para restabelecer a circulação.

- Armem-no com um sabre. Ele acompanhará o meu filho.

Batendo palmas voltou para o local aonde se sentara

anteriormente enquanto todos se retiravam da sala.

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V

Escoltado por Thiago e dois guardas, Muhammad Haldun saiu da

casa paterna dirigindo-se para as montanhas a caminho da sua casa. Os

cavalos rapidamente devoravam quilómetros de areia subindo ravinas

íngremes, pequenos animais receosos afastavam-se dos cavaleiros e

raros arbustos quebravam a monotonia da paisagem.

Durante dois dias o pequeno grupo caminhou sem contratempos e

ao findar o segundo dia algo despertou as atenções de um dos guardas.

- Senhor, pareceu-me ver um dromedário.

Nesse momento uma flecha acertou no ombro do homem e, acto

contínuo, todos se abrigaram numa cova fruto da erosão do vento do

deserto. Aos gritos duas dezenas de berberes cercavam os quatro

homens que de imediato se aperceberam da sua situação dramática.

Muhammad Haldun deitado na areia colocou o turbante de forma a lhe

tapar o nariz e a boca desvendando apenas os olhos, apontou o fuzil

para os atacantes e exclamou.

- Não nos resta outra alternativa a não ser combater o melhor que

soubermos.

Resolvidos a venderem cara a vida, viram com horror os

assaltantes apontarem para ele um pequeno canhão.

- Senhor, se nos rendermos talvez nos poupem as vidas e depois

os possamos iludir.

Muhammad Haldun não respondeu a Thiago, contudo saiu do

abrigo de braços levantados. Passados poucos minutos os bandidos

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aprisionavam-nos transportando os cativos para uma imensa gruta,

iluminada por dezenas de tochas, que lhes servia de esconderijo.

Um árabe de feições de águia, sentado num pequeno tapete, tendo

um colosso negro de pé por atrás, recebeu-os e os gestos decididos

indicavam ser o chefe do bando. Dezenas de comparsas rodeavam o

grupo, deitando por vezes impropérios aos desafortunados.

- Sou Ibn Maqdisi, a partir deste momento as vossas vidas

pertencem-me.

- Clamo-me Muhammad Haldun e o meu pai pode dar-te um

valioso resgate se me libertares.

O foragido sorriu, com um gesto da cabeça negou a proposta

enquanto, que com a ponta de um punhal ia fazendo arabescos do chão

arenoso da caverna.

- Prefiro que entres para o meu grupo, Muhammad Haldun, se me

obedeceres serás rico, se não, morrerás.

- Escolho a morte.

O gigante negro que até ao momento se mantivera imóvel por trás

do cabecilha dirigiu-se ameaçador para o cativo, contudo o chefe

deteve-o.

- Não lhe faças mal.

Retirando o punhal do chão, Ibn Maqdisi passou o dedo pela

lâmina da arma e de seguida cravou-a no chão do antro com furor.

Thiago avançou para ele e perante a admiração dos fora da lei falou-

lhe árabe.

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- Ibn Maqdisi, a tua palavra como a de todos os berberes é

sagrada. Lanço-te um desafio.

O mouro elevou o olhar para o interlocutor e as feições duras

amedrontavam aqueles que as contemplavam.

- Pareces cristão, como sabes a minha língua?

- Meu pai era doutor, tinha um criado sarraceno que o ajudou a

traduzir tratados e livros médicos árabes. A medicina muçulmana está

tão avançada como a cristã.

- Muito bem, qual a tua proposta?

- Desejo um duelo entre mim e um dos teus homens escolhido

como o mais valente. Caso eu ganhe deixas-nos seguir em paz, se pelo

contrário o teu escolhido vencer, pertencerei ao teu grupo.

O bandoleiro soltou uma gargalhada que ecoou na gruta, e

exclamações a zombar o desafio nasciam por todo o lado. A multidão

gritava o seu apoio à ideia e Ibn Maqdisi acabou por fazer um pequeno

gesto com a cabeça dando o seu acordo.

- Não tendes hipótese. Se Omar, o negro que está atrás de mim

ganhar o duelo, juntar-se-ão ao meu bando, se ele perder poderão sair

em liberdade.

Muhammad Haldun fitava Thiago atónito, mas concordou com o

desafio. De imediato foi traçada uma linha na terra em forma de um

círculo que definia a área aonde os combatentes iriam pelejar. O

foragido definiu as regras da refrega.

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- Os dois combaterão dentro do espaço da circunferência

desenhada na terra, o primeiro que lançar o adversário para fora dela

será o vencedor. Que arma escolhes para o combate cristão?

- O teu punhal.

- És audaz, serás um bom elemento do meu grupo, espero que

Omar não te fira muito para poderes depois lutar com fulgor ao meu

lado.

- Não serei derrotado pois a mão de Deus está do nosso lado.

O sarraceno não respondeu lançando o punhal para dentro do

círculo, mas Thiago não o apanhou, deixando-se permanecer imóvel de

pé dentro da circunferência.

Aos urros o colosso negro entrou no terreno de combate sendo

saudado pela multidão aos gritos. Sem entender porque Thiago não

agarrava o punhal foi avançando lentamente para o adversário com a

cimitarra descaída tentando adivinhar o que o oponente iria fazer.

Passados instantes o espanto espalhava-se no rosto dos

circundantes, o punhal como munido por uma mão invisível subia e

rodava no ar sem ninguém a segurá-lo. Diversas expressões de

assombro assomavam no meio da turba e o temor tomava conta dos

bandoleiros.

- Alá protege-os!

- Ele é mágico.

- Será um novo profeta?

O punhal subira até ao tecto da gruta, e depois de gerar a

admiração geral, voltava a descer. Trémulo de terror Omar acabou por

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sair do círculo e deitou-se por terra colocando a testa no pavimento,

enquanto os elementos do bando assustados voltavam-se para Ibn

Maqdisi, esperando a reacção do chefe, que num acesso de fúria

atirava terra com a sandália para cima das costas do petrificado negro.

Uma barreira de fogo obrigou-o a recuar, fazendo-o cair de costas no

chão, enquanto alguns elementos da populaça começavam a prostrar-se

por terra.

Thiago agarrou no punhal e dirigiu-se para o salteador que ainda

deitado colocou o braço a tapar os olhos pensando que o cristão o iria

matar, porém o jovem puxou-o para cima ajudando-o a levantar-se e

entregou-lhe de seguida a arma. Mais sereno, Ibn Maqdisi voltou a

sentar-se no tapete aonde estivera antes do combate e inquiriu.

- Quem és tu? És um novo profeta, iremos seguir-te para onde nos

mandares.

- Não sou profeta e quero que deixes a vida de salteador.

- Roubamos para sobreviver, a maioria do meu bando são pessoas

que viviam pacificamente, mas os elevados impostos fizeram com que

lhes confiscassem as casas e campos, deixando-os na miséria. Somos

uma turba imensa, apesar de mal armada.

- O dey de Argel carrega-vos com impostos?

- Não, o cobrador de impostos dele, que tem um exército

particular e maltrata as gentes que não lhe pagam as pesadas taxas que

ele solicita.

- Agora desejo que nos libertes.

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- Assim farei, dar-vos-ei um salvo-conduto, nunca hesites em

procurar-me quando precisares de mim, és um homem justo e bom,

lamento não quereres ficar connosco.

Thiago e os companheiros montaram nos cavalos, que entretanto

lhes entregaram, e saíram do local a galope, embrenhando-se

novamente no deserto até chegarem já de noite a um pequeno oásis

aonde deixaram as montadas a beber num pequeno lago.

Depois acenderam uma fogueira com gravetos e envolveram-se

em mantas para dormirem, todavia Muhammad Holdun não tirava os

olhos do português.

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- Thiago, irei falar com o meu pai para que te liberte, devo-te a

vida.

Sentado sobre uma pedra a olhar para o fogo e sentindo a frescura

da noite o cristão demorou alguns segundos a responder.

- Nada me deves e ainda não é hora de deixar de ser cativo. Esse

momento chegará, a minha liberdade será no mesmo momento da dos

meus companheiros que vieram comigo no barco.

O muçulmano calou-se. Aconchegando a manta contra o corpo

voltou-se para adormecer. A chama da fogueira transformou-se em

cinzas e passado um tempo todos dormiam ao relento sob um céu

estrelado e uma Lua reluzente.

VI.

Durante cinco meses Thiago serviu fielmente na casa de

Muhammad Haldun, e pouco a pouco a amizade enraizou-se. Apesar

da estima do amigo, o português passava longas horas em meditação,

cheio de saudades, os momentos passados com Ângela faziam-no

suspirar e o coração enchia-se de nostalgia.

Uma tarde o maometano chamou o companheiro e apresentou-lhe

uma lista de bens necessários ao quotidiano.

- Parte amanhã para Argel, tenta arranjar-me estes produtos no

mercado, e cuidado com os ladrões que abundam nos bazares.

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Thiago recebeu a lista e guardou-a entalando o papel no shall, um

cinto de pano apertado na cintura.

- Serás acompanhado por dois homens e que a paz de Alá te

guarde.

- Regressarei o mais cedo possível.

Muhammad Haldun bateu palmas despedindo o companheiro

ficando a observar Thiago vestido como um autêntico mouro.

No dia seguinte bem cedo, os viajantes partiram e após uma

jornada calma avistaram o casario da cidade desenhando-se no

horizonte sem nuvens.

Acotovelando-se com o povo, entraram numa ruela comprida

aonde as lojas mais ricas estavam dotadas de pequenos alpendres. Num

ruído ensurdecedor, aqui e além os comerciantes sentados em esteiras

com as pernas dobradas conversavam e negociavam indiferentes ao

calor tórrido.

Ferreiros, trabalhando ao ar livre em forjas improvisadas, faziam

saltar milhares de faíscas tomando o metal a forma de inúmeros

objectos como alfaias para a agricultura, ornamentações e utensílios

para as habitações. A multidão começou a afastar-se quando som de

guizos e de ferraduras a baterem no chão de pedra começou a

aproximar-se. Curiosos, os três homens, acercaram-se para verem

passar o personagem que de forma tão pouco discreta anunciava a sua

passagem.

Inesperadamente uma negra ao tentar passar a correr em frente da

comitiva tropeçou numa pedra e estatelou-se na calçada sendo

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prontamente socorrida por um servo que apesar dos esforços

desesperados não a conseguiu erguer de imediato. Dois soldados que

iam em frente do séquito aproximaram-se, um deles começou a

chicotear o par provocando a reacção do escravo, sendo prontamente

neutralizado pelos restantes guardas e apenas a voz de um árabe

montando um belo cavalo branco, ricamente ajaezado, evitou correr

sangue na calçada. Entretanto a negra Fátima erguia-se e lamentava a

situação crítica de Rodolfo.

O dey de Argel, chefe supremo da cidade, que comandava o

grupo, bem-disposto dirigiu-se para ela sob o olhar atento da multidão.

- Posso mandar matar o teu companheiro pois ousou defrontar os

meus guardas.

Pálida a moça tremia ao ver os janizaros, puxarem os cabelos de

Rodolfo provocando-lhe queixumes de dor.

- Eu intercedo no julgamento!

O dey de Argel voltou a cabeça colérico para ver quem ousava

entrar no diálogo sem cerimónias, mas os olhos abriram-se de espanto

ao ver uma galinha a falar e a encaminhar-se para ele. Estupefactos, os

circundantes olhavam para aquela intrometida que parecia não notar a

atenção de que era alvo.

- Por eu ser uma galinha não implica que eu não possa defender o

rapaz.

Amedrontado o dirigente mouro observava espantado o animal,

enquanto a populaça envolvente se chegava mais perto para ver o

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fenómeno resultando de seguida uma imensa confusão que os jovens

aproveitaram para escapar do local.

Passados instantes penas da galinha voavam em todas as

direcções e os “vigilantes” acompanhados por cães usavam bastões

para conter a confusão.

Thiago e os acompanhantes correram atrás dos amigos e passado

pouco tempo paravam para conversar. Fátima abraçou carinhosamente

o cristão.

- A tua intervenção não podia ser mais oportuna, lamento

perderes a galinha.

- Não te preocupes, compro outra.

- Nós viemos comprar alfaias a Argel e mantimentos. Por pouco

matavam-nos.

- No entanto o destino juntou-nos uma vez mais. Cuidado com os

maus encontros como o anterior.

- O pai de Muhammad adoeceu gravemente, avisa o filho quando

regressares para ele ir junto do leito. O nosso amo libertou-nos, apenas

quando ele falecer abandonaremos a casa.

Entretidos a conversar não viram algumas dezenas de janizaros,

os turcos que constituem a guarda pessoal do dey, rodeá-los.

Apanhados de surpresa sentiram uma sensação desagradável quando o

chefe supremo de Argel, no alto do seu corcel branco e gracejando lhes

perguntou.

- Continuamos o nosso julgamento? Agora desejam uma ovelha

ou um asno como vosso defensor?

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VII

As urbes costeiras do norte de África aliciam o estrangeiro

sensibilizando-o para o ambiente que transparece, como se o visitante

incauto se visse subitamente num dos contos das “Mil e uma noites”.

Os raios de Sol atravessam um céu sem nuvens e os telhados

rasos das habitações apresentam uma brancura sem igual, que

contrasta com o vermelho acastanhado da paisagem e o cinzento das

sombras. O mar azul do Mediterrâneo fornece um colorido misterioso,

as ondas alvas e frágeis banhando suavemente montículos dourados de

areia, rivalizam em colorido com o branco das habitações.

Palmeiras e tamareiras esperneiam-se pelo infinito, e em qualquer

mesquita um muezzin chama os crentes às orações do alto de um

minarete, um bedéi conversa com um vendedor de kilims, belos

tapetes bordados em paragens longínquas.

Os comerciantes interrompem por vezes as azáfamas habituais,

voltados para Meca cumprindo o ofício da oração sentados nos

calcanhares e baixando a cabeça tocando com ela no solo.

Sem oferecerem resistência os novos prisioneiros do dey

seguiram para o palácio de Jenina, residência oficial do senhor de

Argel, e enquanto Fátima e Rodolfo eram guardados numa cela

especial, Thiago e os dois companheiros foram conduzidos a um

subterrâneo imundo, com infiltrações de água, dividido em pequenas

celas de grossas grades nas janelas.

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A noite chegou e o silêncio envolveu a cidade, estrelas brilhantes

no céu sem nuvens cintilavam, anunciando uma noite calma.

Um guarda segurando uma travessa com peixe seco, cebolas e

pão, entrou na cela colocando o jantar sobre uma mesinha de madeira

ruída pelo caruncho. De barbicha e cabeça rapada, aonde boiava um

fez, o islamita vestia de negro e o bigode cortado no centro fazia

lembrar os de um gato.

- A tua mulher ainda se encontra doente?

O chaveiro maometano esfregou os olhos, incrédulo parecia que

as noites mal dormidas o faziam ter alucinações, o peixinho na

travessa interrogava-o sobre a doença da esposa que o preocupava

tanto. Acercou-se da mesa e duvidou se o cansaço não lhe estava a

pregar partidas até que sentiu uma forte dor na nuca e caiu

inconsciente no chão.

Thiago com a perna de um banco acertara em cheio na cabeça do

muslim e acompanhado pelos outros prisioneiros escapuliu-se pelos

corredores sem resistência.

O alarme soou tardiamente, quando o homem ainda quase

inconsciente foi apresentado ao dey, o cristão percorria as ruelas

populosas de Argel. Furioso por o acordarem a uma hora inoportuna o

chefe dos muçulmanos da cidade inquiriu o trémulo guardião prostrado

à sua frente.

- Como fugiu o cristão?

Acariciando ainda a nuca dorida pela pancada o guarda explicou

as estranhas circunstancias da fuga.

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- Meu amo, eu ando preocupado em virtude da minha esposa ter

adoecido a semana passada. Esta noite ao entrar na cela com o jantar, o

peixe na travessa perguntou-me como estava a saúde dela.

Os acompanhantes do dey como em coro começaram a rir-se,

observando incrédulos o desgraçado, porém o comandante de Argel

manteve-se sério, retirou algumas moedas de prata de uma bolsa e

lançou-as para junto do vigia.

- Se apanhares os prisioneiros vivos recebes o dobro dessas

moedas.

Despedindo todos os que se encontravam no salão, o dey voltou

para o quarto não conseguindo adormecer, pois temia fazer mal a um

mago tão poderoso e desejava a permanência dele em Argel. No dia

seguinte iria pedir aos outros prisioneiros para lhe trazerem o cristão

para uma missão melindrosa.

VIII

A morte do pai de Muhammad Haldun abalara muito o jovem

islamita que com relutância acedera em acompanhar Thiago ao palácio

do dey de Argel.

A recepção discreta dispensada aos dois amigos culminou com

um pedido estranho do chefe muçulmano.

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- Os meus espiões detectaram uma conspiração para me afastar

do poder, e segundo tudo leva a crer, parece ser o angariador de

impostos o responsável pela conjuração. Preciso da vossa ajuda.

- Porque não o prende?

- Sem ele tomar uma iniciativa será difícil. Ele goza do apoio de

alguns dos corsários, enquanto não se opuser frontalmente receio que

ao prende-lo acabe numa guerra civil.

Um barulho ensurdecedor chegou-lhes aos ouvidos, a porta da

sala abriu-se, repentinamente o angariador de impostos à frente de um

numeroso grupo de apaziguados irrompeu na sala. A pronta

intervenção de um pequeno grupo de janizaros proporcionou a fuga

dos três homens por uma porta secreta do palácio de Jenina, e passados

alguns momentos cavalgavam para fora da cidade seguindo o dey.

Decorridas algumas horas, o desolado chefe supremo de Argel,

seguido de Thiago e Muhammad Haldun chegava a uma fortaleza que

se mantivera fiel ao muçulmano. Desmontando os corcéis entraram

numa sala sobriamente mobilada, aonde nas duas varandas se podiam

ver dois canhões voltados para o mar.

- Para reconquistar o trono preciso de dinheiro e homens. Deixei

os meus bens em Argel, vai ser difícil reaver o trono sem a ajuda de

mercenários pois aqui tenho poucos soldados fiéis.

- Meu senhor, todos te estimam.

- Os corsários são hábeis lutadores e com o angariador de

impostos a chefiar os meus súbitos a cidade sofrerá muitas injustiças.

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Uma ideia relampejou na mente de Thiago, perante surpresa

geral, e sem dizer uma palavra saiu do forte a galope. Alguns dias se

passaram, mas numa tarde o português regressou ao convívio dos

amigos.

- Dey, um numeroso grupo de homens espera as tuas ordens para

marchar sobre Argel.

O sarraceno saiu da sala para o exterior. Em frente da fortificação

várias centenas de berberes vestidos de negro, com espingardas e

cimitarras ameaçadoras acolheu-o aos gritos.

Ibn Maqdisi o foragido, saiu do grupo, desmontou o belo cavalo e

dirigindo-se ao líder da cidade disse.

- Durante muitos anos pilhámos porque devido aos elevados

impostos obrigaram-nos a abandonar as nossas terras e famílias.

O dey de Argel colocou a mão sobre o ombro do fora da lei e

murmurou.

- Tardiamente observo as injustiças.

- Meu amo, uma só palavra tua e todo este imenso povo está

disposto a morrer por ti. Hoje mesmo, se quiseres poderei juntar

milhares de camponeses e lavradores dispostos a combater o

usurpador. O teu inimigo também é o nosso.

- Dentro de uma semana regressarei ao meu palácio. Que Alah

vos ajude na tarefa de angariar mais combatentes e seja misericordioso

convosco. A vossa lealdade será recompensada.

O Sol escondia-se no horizonte e os guerreiros dispersaram aos

gritos pelas montanhas que ficaram iluminadas pela luz das tochas.

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IX

Em Argel, os rebeldes festejavam ainda a subida ao poder do

angariador de impostos, hidromel trazido clandestinamente do norte da

Europa, corria pelas canecas dos corsários e ciganas agitavam-se

dançando ao som de músicas frenéticas.

Foliões ouviam “mudahhik” contarem anedotas, grupelhos

assistiam a lutas de galos treinados especialmente para estas alturas

festivas, e em alguns becos jovens de olhos esbugalhados eram

espectadores atentos de marionetas enquanto comiam guloseimas.

A praça principal estava engalanada com bandeiras, criados

assavam cabras em brasas para insaciáveis apreciadores de carne. Os

animais previamente sangrados por judeus, como manda a doutrina

muçulmana, tostavam nos gigantescos espetos.

O angariador de impostos, rodeado de apaziguados, saíra do

palácio de Janina e num largo contemplava os saltimbancos mandados

vir expressamente do Cairo para a festa em honra da sua tomada de

posse.

O ruído do aço das cimitarras soou num bazar próximo, como

demónios, os berberes e alguns janizaros travavam uma sanguinária

peleja com os corsários. Habituados a não terem de suportar longos

combates em terra, os apoiantes do antigo servidor do dey em breve

tentavam se refugiar nos barcos, contudo os rais, ou chefes supremos

dos navios, impediam a sua entrada e acabavam por ser aprisionados

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Regressado ao palácio, já controlando a situação, estando o

usurpador com correntes, o chefe dos crentes reconduzido ao poder

chamou os amigos disposto a recompensar todo o apoio prestado

durante a odisseia.

- Ibn Maqdisi percorrerá os campos, analisará a situação dos

camponeses e devolverá as terras, aqueles que tiveram de sair delas

por não terem podido pagar os pesados impostos.

Satisfeito com a nova tarefa o antigo foragido agradeceu,

ofereceu uma indumentária berbere a Thiago, saindo depois do salão

acompanhado de numerosa comitiva. O dey chamou em seguida

Muhammad Haldun e segurando num anel ofereceu-o ao vassalo

perante ruidosa aclamação.

- Serás o novo angariador de impostos, quem me teme, temer-te-

á, e quem me respeita, respeitar-te-á.

Comovido abraçou o amigo voltando-se finalmente para os dois

cristãos.

- Lamento a vossa partida, contudo sei do vosso desejo de

regressarem ao reino de Portugal. Mandei tripular um barco e

representarão a minha nação junto da vossa pátria.

- Não seremos atacados pelos corsários?

- Não. Os corsários não são piratas, pilham sob o pavilhão de

Argel os barcos dos nossos inimigos. Os rais, tomaram o meu partido e

são de inteira confiança.

Despedindo todos, o dey ofereceu a Thiago e Rodolfo inúmeras

preciosidades como prova de gratidão, colocou seis janizaros como

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guarda pessoal deles, mas para os dois a maior jóia esperava-os em

Lisboa. Nessa noite não dormiram e Thiago lembrava-se ainda do

beijo trocado à porta da casa de Ângela.

X

El rey D. Afonso V, foi um dos monarcas portugueses com maior

reinado na História de Portugal. Teve o cognome de “O Africano”

pelas conquistas que fez no norte de África, nomeadamente as tomadas

dos fortes e das cidades de Alcácer Ceguer, Anafé, Arzila, Tanger e

Larache.

Foi um rei batalhador, tendo inclusive no final do seu reinado,

Portugal sido invadido pelos monarcas espanhóis sendo derrotado por

aqueles, que mais tarde se chamariam de “Os Reis Católicos”, na

batalha de Toro.

Quando recebeu Thiago, tinha sido batido pelos castelhanos e

aragoneses há pouco tempo, por isso ansiava por concórdia e qualquer

tratado de paz era sempre bem-vindo.

A viagem de Argel para Lisboa tinha sido rápida, com ventos

favoráveis, contudo os barcos na altura tinham de estar de quarentena

no porto de desembarque, em virtude da peste. Naqueles séculos esta

doença era um enorme flagelo, não havia remédios eficazes, a forma

mais comum de a evitar era deixarem preventivamente os marinheiros

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nos barcos, durante um certo período de tempo para terem a certeza de

que não eram portadores da enfermidade.

O monarca era um indivíduo corpulento, de longas barbas e

depressivo, o que veio a originar poucos anos depois a entrega do

trono, ainda antes da sua morte, ao seu herdeiro e futuro rei Dom

JoãoII.

Sua majestade honrou os visitantes recebendo-os no salão real,

privilégio concedido aos raros diplomatas das nações poderosas que

lhe apresentavam as credenciais. Thiago, entrou no aposento vestido

com o traje berbere que Ibn Maqdisi lhe oferecera, com a pele

queimada pelo Sol tórrido do deserto estava irreconhecível e dois

janizaros ladeavam-no fazendo-lhe a guarda.

- Sois o novo embaixador de Argel?

- Sim, Alteza Real.

O rei estava de costas para os recém-chegados quando tinham

entrado no compartimento, olhando uma pintura exposta na parede,

contudo ao ouvir falar correctamente português voltou-se curioso e

admirou aquele forasteiro altivo que com garbo o encarava.

- Ouvi dizer que sois um poderoso feiticeiro, serias queimado

vivo se fossem outras as circunstâncias, por feitiçaria, mas tratando-se

de um diplomata de uma nação amiga, terás a minha protecção.

- Obrigado meu rei.

- Que contrapartidas pretendes para assinares o tratado? Sei que

és livre de colocares todas as alíneas no acordo que pretendes, o teu

dey tem enorme confiança em ti.

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- Não haverá cláusulas, apenas o respeito e a amizade entre as

duas nações.

- Sois hábil, a negociar. A minha vida aproxima-se do fim, já me

esforço a andar, quero que o tratado seja célere na assinatura.

O rei sentou-se no trono e encostou-se para trás olhando com

interesse para os três homens à sua frente. Thiago retorquiu sorrindo.

- Vossa majestade devia ter feito o que lhe disse o médico que

faleceu, andar menos na montada e mais a pé.

O monarca pareceu ser atingido por um raio, imediatamente os

guardas secundaram-no, porém ele mandou-os afastarem com um

sinal.

- Além de feiticeiro és vidente. Gostaria que vivesses aqui no

paço, serias ricamente recompensado.

- Obrigado meu rei, mas já tenho uma pequena habitação aonde

pretendo viver. Não sou adivinho, várias vezes ouvi essa

recomendação ao meu pai quando ele aqui vinha.

O soberano levantou-se do trono e devagar caminhou para o novo

embaixador de Argel tentando o reconhecer. Depois com um sorriso e

num sussurro interrogou.

- Thiago?

- Sim, meu rei.

Dom Afonso V correu então a abraçar o jovem efusivamente,

depois puxou-o para junto do trono indo pessoalmente buscar uma

cadeira para o moço se sentar ao seu lado.

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- Lamento a morte do teu pai. Mandei indagar aonde te

encontravas contudo tinhas desaparecido misteriosamente.

- Foram muitas as aventuras depois disso.

- Quero saber todas. É uma ordem real. Serás tu a fazer o tratado,

conheço bem a tua honradez, apenas colocarei o selo real.

- Obrigado, majestade.

- Quero recompensar-te. Esse tratado para mim é muito

importante.

- Vou aceitar a vossa oferta, pretendo prender um bandido que se

apossou do poder em Porcel depois de assassinar barbaramente várias

pessoas.

- Vais ficar com uma guarda que te irá acompanhar para essa

missão, dar-te-ei um salvo-conduto, nesse documento também ordeno

para que sejam cumpridos todos os teus desejos. Quem levantar a

espada contra ti será o mesmo que ousar defrontar-me.

Dom Afonso V ainda escutou atento algumas das façanhas dos

aventureiros e continuou a insistir com eles para residirem com ele,

mas as saudades do lar e de Ângela, superiorizaram-se à honra de sua

alteza real.

XI

A velha casinha de Ângela mantinha a singeleza de outrora e a

rapariga recebeu os jovens de modo comovente. As faces radiantes

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mantinham a frescura do passado e o corpo gracioso não sofrera a

erosão do tempo, continuando com a vivacidade de um gamo.

- Ângela, amanhã eu partirei para Porcel na minha última missão.

Rodolfo pousou a mão no ombro do amigo e exclamou na sua

voz calma e jovial.

- Encontras a felicidade nesta casa, sabes se Molina, a tua mãe

adoptiva, ainda vive?

- Não sei. Dom Maximiano ocupa um lugar usurpado com

derramamento de sangue inocente.

- Acalmai o vosso ódio, não vos posso reter. Fátima e Ângela

manter-se-ão nesta casa até ao vosso regresso.

- Partirei apenas acompanhado pelos meus janizaros e pela

custódia real.

Todas as tentativas de Rodolfo para que Thiago permanecesse

resultaram vãs e os meios de persuasão das mulheres ficaram sem

resposta por parte do filho do conde de Porcel.

No dia seguinte o jovem partiu para a aldeia natal com o

propósito de reaver o património da família pilhado por Dom

Maximiano e castigar o culpado pelo acto. A jornada decorreu sem

problemas e a bela paisagem de Porcel irreconhecível para o jovem

deslumbrou-o pela subtileza do colorido.

Sem temor por andar vestido como berbere, deixou os guardas

numa estalagem e resolveu vaguear por aqueles pinhais sozinho

deixando a montada escolher o itinerário. Uma velha camponesa de

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roupas negras como carvão, andrajosa e de pele marcada pelo tempo

interrompeu os pensamentos do jovem.

- Moço, compras um coelho acabado de abater?

Um sobressalto invadiu-o quando reconheceu Molina, quebrada

pela idade estendendo o coelho pardo na sua direcção. As faces magras

da mulher reflectiam a fome por que passara nos últimos anos, e os

braços frágeis, certamente sobrecarregados pelos trabalhos pesados do

campo, haviam escurecido com o Sol e com a chuva.

- Ofereço-te seis moedas de prata para me deixares pernoitar na

tua casa.

- Viajante, és meu hóspede, não quero o vosso dinheiro para

dormires no meu casebre.

- Insisto em pagar as seis moedas.

Sem reconhecer o rapaz, Molina aceitou guardar o dinheiro num

bolso, agarrou no pau aonde se apoiava começando a dirigir-se para o

lar seguida do cavaleiro que entretanto desmontara levando o cavalo

pelas rédeas.

A tarde caia, um pequeno cão recebeu-os abanando a cauda

satisfeito, as ovelhas remexiam-se e uma cabra esforçava-se por comer

uma erva renitente em sair da terra.

O casebre, humilde e acolhedor possuía como mobiliário uma

cama com cobertores várias vezes remendados, uma mesa de madeira

e duas cadeiras torturadas pelo caruncho. Uma lareira acesa servia de

lugar para aquecer uma panela enegrecida pelos toros e gravetos

queimados.

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- Retira o turbante e aquece-te ao lume. Apesar de seres infiel,

para mim continuas uma criatura de Cristo, quero o teu bem-estar na

minha casa.

Thiago obedeceu e puxou de um pequeno banco de pinho com

três pernas para junto do fogo da lareira.

- Em cima da mesa está uma boa aguardente e copos, bebe

enquanto preparo o coelho para o nosso jantar.

- Gosto do coelho com batatas.

A velhota informou com mágoa apontando ao mesmo tempo para

um saco.

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- As batatas deste saco pertencem ao senhor de Porcel. Ele

aguarda um nobre de Lisboa, um amigo do rei e lançou novos

impostos em géneros para o receber ricamente.

- Não imaginas a alegria que dom Maximiano vai ter ao receber o

tal amigo de sua alteza real.

Depois de gracejar, o moço levantou-se do assento, agarrou no

saco, retirou uma dúzia de batatas e colocou-as no turbante dando-as

de seguida à idosa.

- Não temas, ele louvará a tua gentileza para comigo.

Receosa, Molina aceitou as batatas deitando-as na panela do

jantar aonde o coelho e os legumes já ferviam. Um cheiro agradável

alastrou na sala recompensando a anfitriã pelo esmero com que se

esforçava na confecção da refeição.

O barulho súbito de galope sobressaltou-a, a porta abriu-se

violentamente com um pontapé dando passagem a dois esbirros de

Dom Maximiano.

Um acolhimento inesperado sob a forma de uma vassoura voando

sozinha recebeu-os, e os homens fugiram espantados perante o terror

de Molina. A mulher à janela observava os guardas aterrorizados

fugirem a correr enquanto Thiago continuava calmamente a beber o

cálice de aguardente.

- Senhor, dom Maximiano virá furioso quando lhe relatarem o

que aconteceu e a forma como acolhemos os seus homens. Vós

fizestes bruxaria.

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- Não gosto de ser interrompido enquanto como e nada receeis

boa mulher. Espero que ele regresse tão depressa como fugiram os

seus acólitos.

A noite alastrou e Thiago recordou os tempos passados na

companhia da velha feiticeira e do médico do rei. Os acontecimentos

passavam-se incrivelmente rápidos e a hora do castigo soara.

XII

O som das ferraduras de cavalos a baterem no pavimento acordou

os dois, e fortes batidas na porta quebraram a monotonia do alvorecer.

Um homem robusto de longa barba branca assomou primeiro à janela e

depois dando passos largos entrou sem cerimonias no casebre.

- Bruxa, serás queimada viva pelo teu acto.

Dois guardas avançaram prendendo Molina cumprindo as ordens

de dom Maximiano.

- Soltem a mulher.

Thiago enfrentou o assassino e a voz poderosa impressionou o

nobre pela altivez do tom.

- Quem sois vós para contrariares as minhas ordens?

- O enviado do rei.

Os esbirros recuaram ao verem o selo real num documento nas

mãos do jovem soltando de imediato Molina que se refugiou

prudentemente a um canto.

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- Esta mulher negou-se a pagar o contributo e fez um acto de

bruxaria.

- Não, quem correu com os teus soldados fui eu, queres ser tu a

acusar-me de um acto de feitiçaria? Ela alojou um enviado do rei, os

teus apaziguados invadiram a casa durante o meu descanso.

Ninguém ousara enfrentar o nobre, e este pela primeira vez sentiu

medo ao ver o intrépido representante do monarca que ditava a lei

naquele momento. Thiago ordenou, colocando a mão na bainha da

espada.

- Abandonemos a casa e deixemos Molina com os seus afazeres.

Logo virão trazer-lhe roupas pois será minha convidada de honra no

jantar.

Saindo de casa ouviram o som de trombetas e viram chegar a

coluna dos guardas reais encabeçada pelos seis janizaros que

procuravam Thiago. Ao verem os soldados de dom Maximiano

imediatamente cercaram-nos, apontaram-lhes os mosquetes,

desarmaram-nos, e deixaram-nos presos num moinho gasto pelo

tempo.

Thiago montou a cavalo, acompanhado do traidor partiu à

desfilada com a guarda atrás em direcção ao palácio. Grupos de

camponeses davam passagem aos cavaleiros, com as colheitas no auge,

todos os braços ajudavam nas tarefas.

- Belos campos.

- Os meus domínios estendem-se até estas terras.

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- Mentes. Estes campos pertencem ao filho do conde a quem

usurpastes o poder assassinando-o de forma vil bem como a restante

família.

Reconhecendo Thiago e cheio de furor, o facínora desembainhou

a espada avançando contra o moço que se desviou do golpe atirando o

adversário ao chão. Um camponês que estava perto ao ver caído o

causador de tantas desgraças não hesitou e trespassou-o com uma

forquilha.

Gritando vivas a Thiago o povo pretendeu ajudar expulsar os

últimos lacaios de dom Maximiano, no entanto não foi necessário o

apoio, porque sem o chefe, resolveram prudentemente fugir para outras

localidades

Algumas semanas depois Ângela visitou a vila e ainda hoje na

praça principal, uma lápide recorda o casamento dos dois apaixonados.

Quanto a Molina, nunca mais quis abandonar o casebre,

ofereceram-lhe um burrinho e todas as semanas lhe é enviada lenha e

mantimentos. Diz o povo, que em noites de Lua cheia a podem ver

buscando alecrim, salva e arruda nos campos, para afastar os maus

olhares e manter a paz na vila.

FIM

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EM TERRAS DO LEVANTE

I

As estrelas cintilantes salpicavam graciosamente o firmamento

imenso como se um antigo gigante, num acesso de furor, houvesse

partido uma bola de fogo espalhando-a pelo céu em inúmeras

partículas. A Lua desenhava um riacho de luz no mar e algumas

nuvens negras surgiam fantasmagóricas tapando por vezes o luar

naquela zona do Mediterrâneo.

Um pequeno veleiro com a bandeira portuguesa acelerou o

andamento em direcção a um grandioso djonk, ferozmente armado de

canhões e hasteando o terrível pavilhão de Argel.

Os marinheiros muçulmanos com perícia saltaram para o veleiro

cristão prestando homenagem aos dois europeus, que de sorriso nos

lábios, rapidamente subiram por uma escada de corda para o barco

mouro.

- Que a paz de Alá vos siga!

Um árabe com a pele queimada pelo Sol quente de África saudou

os homens convidando-os a penetrarem numa sala ricamente

ornamentada de tapetes de Damasco e jóias da Pérsia.

- Thiago e Rodolfo, o meu coração transborda de alegria ao estar

de novo na vossa presença.

- Sentimos o mesmo, a felicidade de reencontrar um irmão.

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Abdul Hauqal bateu palmas e um criado entrou com um cesto

cheio de frutas deliciosas depositando as tâmaras e laranjas no tapete,

saindo de seguida deixando os antigos companheiros sozinhos.

- Meus amigos, o apelo que vos dirigi reveste-se do maior

segredo, poucas pessoas sabem da sua razão e significado.

- Dey, tens chefiado sabiamente os teus súbitos, só temos

recebido da tua parte manifestações de estima, conta-nos o teu

problema para podermos ajudar-te.

- Vou ser breve. Durante os últimos três anos os inimigos dos

nossos povos moldaram uma conspiração diabólica e desejam uma

guerra entre as nossas nações.

- Como podemos contrariar os seus planos.

O chefe supremo de Argel não respondeu de imediato a Rodolfo,

pensativo deixou que o fumo do cachimbo de cobre se filtrasse na água

antes de continuar a falar.

- Há muitos anos, horas antes da conquista de Meca pelo profeta

Maomé, uma estrela surgiu no firmamento e encaminhou-se para a

cidade sagrada.

- Um meteorito?

- O profeta interpretou o fenómeno como um sinal de Alá, e ao

findar a batalha um crente achou no meio da areia uma pedra

incandescente que foi levada para a mesquita, sendo durante muitos

anos visitada por gerações de muçulmanos. Uma noite roubaram-na

sendo acusado do furto um dos muitos judeus que viviam na cidade,

contudo jamais a voltaram a encontrar.

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- Qual a relação entre a pedra e o solicitares a nossa presença?

- Segundo maometanos escorraçados de Tequilla, uma povoação

perto de Sevilha, um nobre castelhano comprou a pedra a um

proprietário de terras. Necessito que me acompanhem para a tentar

reaver.

- Desejas a nossa ida ao reino de Castela para recuperar a pedra?

- Sim. O nobre, dono da mesma, isolou-se do mundo e será muito

difícil receber alguém.

- E se depois de a nossa ida o meteorito permanecer em Tequilla?

- Rebentará a guerra. A comunidade árabe organizará um

exército invadindo o reino de Castela.

- Quanto tempo nós temos para reaver esse talismã sagrado?

Abdul Hauqel contou com a ajuda dos dedos e respondeu sério.

- Duas semanas.

- Devemos então partir o mais cedo possível, o tempo é escasso

para esse empreendimento.

- Irei convosco. Os meus cidadãos ainda falam das partidas de

Thiago.

Gracejando Abdul Hauqal recusou os pedidos dos cristãos para

ele continuar na sua cidade quando iniciassem a perigosa estadia em

solo do Levante. A curiosidade de Abdul Hauqel vencia a prudência e

a temeridade derrotava a precaução.

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II

Desde cedo que um movimento desusado em Tequilla anunciava

o dia do mercado. Vendedores de lã, artesãos e peixeiras gritavam as

virtudes dos seus produtos a clientes ciosos das suas moedas.

Perto do cais recheado de botes, o chão arenoso da praça do

mercado cobria-se de pó das serrações de madeira, de naturais da

localidade, de foliões de longínquas paragens e algumas crianças sujas

perseguiam cães esqueléticos cobertos de insectos.

Sobre a muralha do porto os três amigos observavam o

movimento da feira e a azáfama dos pescadores estendendo as redes

para o dia seguinte as lançarem ao mar.

Gritos de angústia despertaram-nos do lazer ao observarem uma

pequena multidão em agitação no centro do mercado. Rápidos,

dirigiram-se para o aglomerado e com horror viram uma mulher

andrajosa presa a um poste sob o Sol tórrido.

Thiago agarrou no ombro de um navegante que observava a cena

com indiferença questionando-o.

- Porque amarraram esta mulher?

- Roubou ovos.

- Qual vai ser o castigo?

O velho marinheiro olhou primeiro espantado por o forasteiro

não saber as penalizações da terra e depois satisfeito com o aspecto do

rapaz respondeu com ares de sabedoria.

- Cem chicotadas!

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- A pobre mulher morrerá com um número tão elevado. Uma

penalização desumana para uma pequena infracção.

O embarcadiço encolheu os ombros continuando a admirar a

velhota que tentava soltar as cordas que a mantinham presa. Escapando

aos guardas, o dey procurou ajudar a mulher, contudo um chicote

estalou e ele voltou-se para ver uma mulher montada a cavalo, vestida

de negro, de faces belas e ameaçadoras.

- Sai da frente.

Abdul Hauqel permaneceu entre a velhota e a amazona,

começando os curiosos a afastarem-se receosos.

- Sai da frente para eu bater nessa ladra.

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O mouro, impávido não arredou e a opositora furiosa dançou o

chicote no ar chicoteando com violência o árabe ferindo-o na cara.

Sereno o muçulmano de início manteve-se mudo e depois falou

pausadamente pela primeira vez.

- Não matarás esta mulher enquanto eu viver.

Receosos os espectadores da cena olhavam para os dois

intervenientes do diálogo formando partidos. O cavalo da amazona

esgatanhou na terra e em seguida ao sentir as esporas da dona no

ventre partiu à desfilada saindo do largo.

Pálida, a velhota deixou Abdul Hauqel desatar as cordas que lhe

roíam os pulsos e beijou as mãos do benfeitor.

- Senhor, desafiastes uma feiticeira terrível. Brígida não te

perdoará teres desobedecido às suas ordens em público.

Sem prestar atenção às palavras da anciã, Abdul Hauqal seguiu

com os amigos para fora do mercado. Uma taberna convidativa

lembrou-lhes que a hora do almoço tinha chegado. Um ruidoso grupo

bebia na taberna ouvindo um cigano de lenço na cabeça, que

acompanhado por um bandolim cantava um amor perdido algures

numa estrada.

- Quais os vossos planos para descobrirmos a pedra?

Rodolfo inquiriu os companheiros chamando em seguida o

criado para os servir.

- Devemos procurar alguém que nos informe. Perguntaremos aos

habitantes da terra.

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- Não podemos cair em ciladas, se alguma vez nos perdermos o

local de reencontro será nesta taberna.

Um indivíduo de fartos bigodes ouviu a conversa e sentou-se sem

cerimónia à mesa dos três amigos.

- Procuram algo?

- Sim, uma pedra que para nós tem muito valor, uma pedra negra

roubada por judeus e tudo indica encontrar-se nesta vila.

O homem sorriu satisfeito e pediu uma cerveja ao taberneiro.

- Eu sei aonde ela se encontra.

Entusiasmados assaltaram o desconhecido com interrogações

sobre o novo dono do amuleto religioso.

- Precisaremos de ter cuidado, o dono da pedra não sabe do seu

real valor. Cautelosamente poderemos fechar o negócio.

Combinado novo encontro com o estranho, receberam a morada

de um mercador que morava num forte e com discrição abandonaram a

casa de pasto dirigindo-se para a rua apreciando a noite cálida.

III

Uma fogueira ardia no descampado a alguns metros da estrada

poeirenta apinhada de jumentos e peregrinos que em grupos

palmilhavam os quilómetros em silêncio, uma turba humana imensa de

mendigos andrajosos, camponeses de vestimentas rudes, feirantes

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carregando ruidosos utensílios, todos aspirando tantos objectivos como

o número das suas almas.

A tarde descia suave no horizonte, uma fita alaranjada prometia

novo dia de calor sem vento como se Deus penitenciasse já os crentes

preparando-os para o advento dos misticismos.

Thiago colocou a panela sobre as chamas e removeu o conteúdo

dos recipientes com uma colher de pau provando em seguida.

- Delicioso. O carvão aviva o paladar.

Os companheiros não responderam entretidos a avistar um

monge com um capuz que lhe encobria os olhos e se aproximava do

grupo.

- Posso descansar na vossa companhia?

Sem aguardar uma resposta, o clérigo sentou-se numa pedra

descalçando as sandálias de couro sujas e suadas. Rodolfo ofereceu ao

recém-chegado um prato de sopa convidando-o a chegar-se ao grupo.

- Repousa amigo. Um bom jantar reforçará as energias para a tua

missão.

- Podemos seguir juntos em peregrinação. As vicissitudes da vida

são inúmeras, os livros sagrados apelam à penitência e à pobreza,

porém nunca senti vocação para eremita.

- Procuramos a concórdia sob a forma de uma pedra. Ao alcançá-

la evitamos derramamento inútil de sangue inocente.

- Venturosos aqueles que buscam a paz.

Interessado pela missão dos companheiros o monge fazia

diversas perguntas tentando ajudar aqueles que de forma generosa o

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acolhiam no acampamento. Subitamente, o pequeno grupo de pessoas

desviou o olhar observando receosa uma dezena de cavaleiros no

horizonte.

.- Soldados castelhanos.

Thiago de pé, protegendo os olhos, transmitia aos companheiros

o grito de alerta. Indiferente, o religioso esclareceu.

- Andam à procura de pessoal para o exército real. Se descobrem

um condenado enviam-no como remador, os vagabundos que caiem

sob a sua alçada são obrigados a seguirem como expedicionários e são

os primeiros da linha da frente das batalhas, se recuam são abatidos

pelos que vêm atrás.

- Não os receias bom monge?

- Não me metem medo. Temor é uma palavra inacessível ao

vocabulário do meu passeio divino.

Ao constatar a presença dos quatro o comandante dos militares

caminhou na direcção deles parando a escassos metros.

- Estão presos. Em nome do rei devem seguir-nos até à aldeia de

Circe para um interrogatório.

A majestosa figura do clérigo levantou-se. Perdido entre os

companheiros e os tropas, as palavras brotaram gélidas da boca

imóvel.

- Nunca seremos detidos, segue em paz e que Deus te

acompanhe.

Furioso, o comandante da soldadesca esporeou a barriga do

cavalo que soltou um relincho de dor partindo à desfilada. Ao chegar

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perto do monge desembainhou a espada e num golpe violento atingiu a

cabeça do adversário com tal rudeza que perdeu o equilíbrio caindo

por terra. Um murmúrio de receio envolveu o séquito ao contemplarem

a vítima. O golpe da arma rasgara parte do capuz que descaíra pondo à

vista uma cabeça de pedra.

- Maldito demónio.

Recuperando a espada o castelhano aproximou-se amedrontado

para junto da figura de granito aonde antes estivera o religiosos até

surgir nova metamorfose, um gigantesco urso negro tomou forma

encarando o comandante, que em pânico saltou para a montada

fugindo atrás dos aterrorizados acólitos.

O dey de Argel procurou o urso que desaparecera deixando no

local uma rosa branca sobre o hábito do monge caído sobre a terra.

- Brígida. Certamente foi ela quem vestia o hábito do monge

procurando acompanhar-nos, mas a aparição imprevista dos soldados

desmanchou-lhe o plano.

- Terrível o poder dos seus feitiços.

Rodolfo enxergava a nuvem negra no horizonte resultante da

cavalgada dos fugitivos. Ninguém se atreveria a os perseguir depois da

narração do caso, a não ser a Inquisição, a odiosa mão sangrenta do

monarca para confiscar bens para os paupérrimos baús reais. Acendeu

uma tocha na fogueira para o ajudar na tarefa de dar de beber aos

animais. A Lua já se distinguia na abóbada celeste como uma alva

boca risonha no azul claro do firmamento. Ao contemplar aquele

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sorriso astral tão franco, Rodolfo sossegou na certeza de uma noite

tranquila.

IV

No dia seguinte, logo pela manhã procuraram a casa indicada

chegando a uma pequena fortaleza guardada por temíveis guardas de

feições duras e sabres afiados.

Uma pesada porta de ferro abriu-se, entraram num átrio sendo

desarmados e transportados para celas nauseabundas cobertas de

líquenes, coito de numerosas famílias de ratos.

Surpreendidos pela recepção, não ousaram defender-se e sem

resistência deixaram Abdul Hauqal ser arrastado para a ala direita da

fortaleza, enquanto Thiago e Rodolfo entravam num calaboiço já

habitado por um indivíduo pálido e magro.

- Traíram-nos.

Thiago, amargurado pelo destino olhava de relance para os

companheiros de infortúnio.

- Como os apanharam?

Um prisioneiro franzino, andrajoso, de longa barba, depois de

longas semanas de solitária reclusão procurava saber pormenores sobre

os novos companheiros. Rodolfo inteirou-o dos objectivos da

expedição e como haviam sido surpreendidos.

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- Seremos vendidos como escravos em África. Caíram nas mãos

de traficantes, o vosso amigo árabe será transportado para um país não

muçulmano sofrendo igualmente às mãos desses marginais.

- Como poderemos sair?

- Impossível. O forte possui muitos soldados bem armados.

- Não percamos tempo. Pensemos como fugir daqui.

O outro cativo abanou a cabeça esmorecido agarrando com

ambas as mãos as grades.

- A pedra que procuram está nas mãos de um mercador que a

comprou ao conde de Tequilla, pai de Brígida, a mulher que o dey

defrontou no mercado. Só ele tem riqueza para a comprar.

Os dois amigos olharam incrédulos para o homem deixando-o

continuar a falar.

- O conde de Tequilla permaneceu muitos anos solteiro,

caminhava muito gostando de passear a cavalo pelos campos. Um dia

viu uma mulher extremamente bela e casou com ela, só mais tarde

sabendo que havia desposado uma terrível feiticeira.

O companheiro de desventura voltou a sentar-se num pequeno

banco e olhou pela pequena janela da cela antes de continuar.

- Um ano as colheitas perderam-se, o povo amotinou-se

responsabilizando a bruxa pela desgraça. Invadiram o solar e mataram-

na, a muito custo o conde salvou Brígida que era a filha deles sendo

nessa altura ainda criança. A partir dessa data o conde de Tequilla

nunca aparece em público e Brígida persegue ferozmente aqueles que

infringem as leis tornando-se numa justiceira sem piedade.

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Thiago e Rodolfo ouviram com muita atenção a narrativa,

passados alguns minutos um carcereiro trazia para a masmorra um

bocado de pão e água.

- Queremos falar com o teu chefe.

O guarda inicialmente não prestou atenção aos homens, mas

como os prisioneiros insistiam prometendo-lhe farta recompensa,

conduziu os três a uma sala ricamente decorada com duas armaduras

vazias, junto às paredes, servindo de ornamento.

Um homem de longas barbas, escoltado por indivíduos armados

até aos dentes recebeu-os num cadeirão de madeira trabalhada.

- Desejam falar comigo?

Thiago destacou-se do grupo parando em frente ao barbudo que o

observava curioso, coçando a barba rala e mal cuidada.

- Sim, vamos sair e não queremos ferir ninguém.

O castelhano soltou uma gargalhada e os lábios finos tremiam

quando falou.

- Loucos, como pensam vencer os meus soldados?

Subitamente as armaduras saltaram, como munidas por seres

invisíveis saíram dos lugares e começaram a dirigir-se para os guardas

que bateram em retirada horrorizados deixando o atónito chefe

sozinho. Thiago agarrou no malvado que tremia e sacudiu-o com

força.

- Arranja depressa quatro cavalos e solta o árabe que entrou

connosco.

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Sem deixar de estremecer o malfeitor agarrou num pequeno sino,

abanando-o com força. Um criado acorreu receoso a cumprir as

ordens.

Passados instantes o carcereiro regressava transtornado com o

pavor estampado no rosto.

- Senhor, um mascarado entrou na fortaleza, matou alguns dos

nossos homens e soltou o mouro. Um terrível espadachim que apesar

de ser ferido num braço conseguiu levar de vencida quem lhe fez

frente.

Intrigado, Rodolfo aproximou-se de Thiago e perguntou em voz

baixa.

- Quem será o salvador do dey?

O amigo encolheu os ombros não respondendo. O chefe dos

traficantes dos escravos, muito abalado, voltara para a cadeira e

lamentou.

- Saiam, desde a vossa chegada que a má sorte bateu à minha

porta.

Rapidamente atravessaram os corredores da fortaleza e pouco

tempo depois o cheiro saboroso da maresia salientava-se ao odor do

bafio do forte. Sem perderem tempo tomaram a direcção da taberna.

Uma sensação extremamente desagradável percorreu o corpo do

traidor, quando viu a entrada das vítimas da cilada que armara na noite

anterior.

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- Não me castiguem. Amanhã devo deixar a vila, o chefe

obrigou-ma a abandonar esta terra como castigo, por não ter cuidado

com quem levo à sua presença.

- Sabes do paradeiro do nosso companheiro?

- Prenderam-no no largo do mercado.

- Qual o motivo?

- Responsabilizaram a feiticeira Brígida pela escassez de peixe.

O sarraceno tentou libertá-la e também ficou cativo. Amanhã serão

ambos julgados e condenados.

Cansados e felizes por saberem o local aonde Abdul Hauqel se

encontrava resolveram ir descansar. No dia seguinte pensariam numa

solução para o soltarem.

V

Ao amanhecer a população da vila enchia por completo o largo

do mercado para presenciar mais um julgamento que se tornara um

acontecimento bastante comum na vila. A terrível Brígida tinha sido

responsabilizada pelas pescarias infrutíferas, o mouro por a tentar

libertar, tendo o veredicto dos juízes consistido na pena por

enforcamento de ambos e para o efeito, duas cordas penduradas pelos

algozes balançavam ao vento.

O povo recebeu os condenados aos gritos e o rufar dos tambores

assinalou a solenidade do momento. Sem resistência a feiticeira e o

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dey deixaram que lhes colocassem os laços em volta do pescoço sendo

atadas cordas aos pulsos. Subitamente duas pombas brancas pousaram

nas cabeças dos condenados provocando murmúrios na assistência

alarmada pelo estranho fenómeno, contudo o juíz ainda assim ordenou

o prosseguimento da execução da pena até ser assaltado por inúmeras

gaivotas que provocou a debandada do ilustre magistrado.

Receosos, temendo outras atribulações imprevistas, suspeitando

que os espectadores imputassem tais factos a milagres, os soldados

nervosos soltaram os réus que sem entenderem o que se passava

escaparam rapidamente dos curiosos que se aproximavam.

- Thiago, só podias ser tu, a armar esta confusão.

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Abdul Hauqal abraçou efusivamente o companheiro que se

misturara com a assistência e explicou a razão que o levou à sua prisão

no pelourinho.

- Procurei salvar Brígida quando a prenderam, mas apenas

resultou também a minha detenção.

- Quem te salvou do cárcere?

Um mascarado vestindo uma camisa azul, que apesar de ferido

lutou como um leão matando grande numero de bandidos.

- Sabemos aonde guardam a pedra de Meca. Um prisioneiro de

cela indicou-nos a morada.

- Corramos, pois o tempo urge. Daqui a uma semana devemos

estar em Argel com a relíquia.

Rapidamente cavalgaram em corcéis em direcção ao palacete do

mercador, as ravinas desapareciam sob as patas dos cavalos, coelhos

saltavam à frente deles na estrada. Quando chegaram ao destino, um

corpulento indivíduo segurando um enorme mastim, estava de atalaia

ao portão da residência recusando com determinação a entrada aos

cavaleiros.

- Deixa-os entrar ou mordo-te!

Surpreendido o guarda olhou para o cachorro que o

acompanhava, que parecia falar, e recuou cedendo passagem aos

visitantes. Poucos minutos depois chegavam à presença de um homem

gordo de feições redondas e olhos pequeninos.

- Vendi a pedra hoje de manhã. Tinha-a comprado ao conde de

Tequilla

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- Quem a comprou?

- Um mascarado de camisa azul que apenas o vi de relance e

mandou um criado fazer-me uma oferta irrecusável. Admirados e

desiludidos os três amigos pretenderam sair da sala, mas a voz

possante do anfitrião ressoou naquelas paredes frias de pedra.

Candeias de azeite iluminavam imagens religiosas e o mobiliário

francês contrastava com os ícones trazidos de países distantes.

- Amanhã realiza-se a procissão de São Jorge, em Algoz, uma

aldeia vizinha rica no culto ao santo. Nesse povoado e provenientes de

todo o reino de Castela desembocam peregrinos, muitos milhares de

famílias reúnem-se para comemorar as acções de graças ao padroeiro.

Com um pouco de sorte poderão cruzar-se com o dono da pedra.

Agradecendo a amabilidade do mercador saíram da habitação a

tempo de verem dois camponeses a observarem atentamente o cão do

guarda e a ouvirem as explicações da sentinela.

- O bicho está embruxado.

- Senhor guarda, os cachorros não falam.

- Pela Virgem Santíssima, o animal ameaçou morder-me.

- Impossível.

- Garanto. Os meus olhos não mentem.

Rodolfo, Thiago e o dey montaram nos cavalos e ao passarem

pelo grupo algumas palavras brotaram do focinho do bicho.

- Adeus amigos!

Pálidos os camponeses de joelhos em terra fitaram o cãozinho

enquanto a sentinela com um ar de triunfo interrogava.

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- Então? Eu não dizia que o cão falava?

VI

A procissão de São Jorge realiza-se todos os anos constituindo

um dos mais importantes acontecimentos do Levante. Durante alguns

dias, velhos soldados franciscanos e lavradores cruzam-se com

vendedores, mendigos e toda a escumalha que desagua na vila.

Coches transportando mulheres com véus tapando um olho

movimentam-se lentamente por entre fidalgos garbosos de espada à

cinta, porte fino e maneiras delicadas. Dois ou três “grandes” de

Castela dão a honra de comparecer e a acompanhá-los inúmeros

criados que dão um colorido especial à festa.

Nos bodegones o vício escorre, os jogadores apenas interrompem

os jogos durante a hora do almoço para irem pedinchar ao mosteiro

mais próximo um prato de sopa, depois irão assistir a uma peça de

teatro ao ar livre ou às corridas de touros habituais durante os dias de

festa. Mudéjares, descendentes dos ancestrais muçulmanos misturam-

se com os cristãos e judeus comungando divertimentos, alegrias e

tristezas.

Desembocando na Calle Mayor, Thiago indicou um «mentidero»,

local de reunião de populares aonde os últimos mexericos e novidades

são relatados pelos profissionais intrometidos na vida alheia.

- Procuremos informações no «mentidero».

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Thiago secundado por Rodolfo e pelo dey de Argel penetrou

numa sala imunda, não obstante a pretensa riqueza de tapeçarias nas

paredes parecia que todos os malfeitores dos arredores se reuniam

naquela altura. Carteiristas, assassinos e ladrões de gado conversavam

trivialmente sem receio de cuadrilleros que policiavam fora da

estalagem.

Rodolfo procurou o conselho de uma criatura magra, um rufião

de longa capa, chapéu de abas largas com plumas, cota de malha,

espada à cinta e a camisa traindo por baixo uma pistola.

- O homem indicado para lhes dar informações será o “São

Pedro”.

Com gestos altivos e espaventosos indicou um velhote

melancólico, de terço na mão, cabelos brancos encaracolados, olhos

chupados, que murmurava palavras ocas. Sem demoras Rodolfo

sentou-se ao lado do ancião saltando à vista um molhe de chaves de

todos os feitios.

O velho malandrim levantou os olhos não demonstrando espanto

ao ver os estranhos que se sentavam ao pé dele.

- Sou Pedro, no entanto o povo baptizou-me de “São Pedro” por

trazer sempre um terço e estas chaves que me servem para entrar em

casas alheias.

- Procuramos uma pedra e estamos dispostos a pagar por ela

duzentos cruzados.

O velhote observou com interesse o desenho que lhe

apresentavam encolhendo os ombros, desolado.

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- Nunca a vi. Conheço todas as casas das redondezas, assalto

todas as noites para roubar apenas o indispensável para comer.

- Procuramos em Algoz um nobre vestindo uma camisa azul.

- Esses dados são muito vagos. Uma infinidade de soldados,

nobres, gentis-homens e fidalgos vestem camisas azuis.

Um rumor e o som de ferros de espadas chegou aos ouvidos dos

três amigos sendo Rodolfo o primeiro a compreender a situação.

- Uma rusga.

Fugindo pela porta das traseiras chegaram a uma rua poeirenta de

arcadas cobertas de toldos, as casas térreas intercalavam com pequenas

lojas de tijolo e barro. Pequenas imagens, decoradas com flores e velas

gastas, pareciam ter vida tal o talento dos artistas ao pintarem os

azulejos.

- Qual o rumo a seguir?

Thiago de espada em punho interrogou os amigos ainda a

recomporem-se da corrida. Repentinamente viram-se cercados de uma

dúzia de feições rudes e um dos frequentadores dos “mentideros”

destacou-se do grupo.

- Qual dos três leva os duzentos cruzados?

Sem pestanejar Thiago dirigiu-se para o salteador de gibão de

couro, armado com um bastão de ferro.

- Eu levo uma bolsa.

- Passa para cá as moedas.

- Não podemos porque nos faz falta o dinheiro.

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Espantado, o assassino olhou para os companheiros ao ouvir as

palavras do interlocutor, as faces começaram a ficar roxas e cheio de

fúria avançou com o bastão para o adversário, mas subitamente soltou

um grito de dor deixando cair o ferro no chão agarrando a mão dorida.

Pálidos os bandidos observaram no pavimento o bastão ficar

incandescente, acto continuo começaram a recuar lentamente fugindo

por fim a correr deixando o comparsa nas mãos do antagonista.

O som de guizos e um coro rompeu o silêncio, as temíveis

bandeiras da Inquisição dobravam a esquina e avançavam para eles.

Em frente um sacerdote com uma flecha ao alto seguido de duas filas

de encapuçados de longas túnicas com cores diferentes representando

as respectivas confrarias, os capuzes sinistros ocultavam os rostos

contrastando com os desgraçados que os seguiam escoltados por

guardas de longas lanças.

- O Santo Ofício.

O bandido estremeceu e o terror transpareceu no rosto ao

reconhecer um dos condenados que fazia parte do grupo.

- Apanharam o “São Pedro”.

Com dificuldade os três companheiros avistaram o velhote com

quem tinham conversado horas antes. A procissão parara perto de um

nicho e enquanto o clérigo que vinha à frente orava, o “São Pedro”

baixara-se, com a mão friccionava os tornozelos e limpava o suor do

rosto que em bátegas lhe escorria pela testa.

Rodolfo aproximou-se de Thiago e inquiriu angustiado cheio de

pena do ancião.

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- Não podemos deixar que estes malandros o enviem para o

patíbulo.

- Somos apenas três e eles são muitos.

O bandido de gibão chegou-se ao pé deles dirigindo-se com uma

cortesia a Rodolfo.

- A minha espada está pronta a acompanha-los.

Thiago agradeceu a inesperada generosidade do salteador e a sua

mente trabalhava com afinco a descobrir uma saída para a situação. De

repente sorriu e todos se aproximaram curiosos.

- E se mandássemos o “São Pedro” mais cedo para o céu?

Rodolfo e o dey soltaram uma gargalhada calculando a nova

partida do amigo, mas o salteador recuou aterrado.

- Não matem o meu pai!

- Teu pai? Então foi ele que te avisou que transportávamos as

moedas?

Cabisbaixo o fanfarrão calou-se, olhando entristecido para a

lúgubre procissão.

Algo inesperado aconteceu, enquanto os mais piedosos da

comitiva se ajoelhavam, outros blasfemavam e gritavam, correndo de

um lado para o outro nervosos. O ladrão aproximou-se da comitiva não

acreditando no que os seus olhos viam, “São Pedro” sem compreender

o que lhe sucedia subia para o céu distanciando-se já alguns metros

acima do solo.

A confusão generalizou-se, os outros condenados depois de se

recomporem do estranho fenómeno aproveitavam a oportunidade para

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fugirem pelo labirinto de ruas, não obstante os guardas vociferando

uns com os outros os perseguirem.

Lentamente o velhote pousou em cima do telhado de um

mosteiro e após se agarrar desesperado às telhas começou a berrar para

o retirarem de tão incómoda posição.

Rodolfo e Abdul Hauqel riam da cena, o salteador após instantes

de hesitação desapareceu deixando o ferro no chão de areia.

- Nunca passei momentos tão divertidos.

O dey sentara-se num degrau ajeitando o cinto da espada em

forma de meia-lua de que nunca se separava.

- Apesar de os nossos esforços serem debalde até ao momento,

valeu a pena a vossa companhia nesta viagem até terras do Levante.

- O tempo urge. Como poderemos encontrar o mascarado da

camisa azul?

- Se soubéssemos de quem se trata seria mais fácil a nossa tarefa.

Um moço de bigode farfalhudo, cabeça redonda repousando

sobre uma lechuguila ou gola espanhola sob uma armação de arame,

aproximou-se e interpelou os amigos.

- Posso ser útil?

De capa negra, chapéu de feltro com abas largas contendo

plumas e gibão justo enchumaçado com um produto mole, o

desconhecido demonstrava alta estirpe e convivência social elevada.

Rodolfo encarou o castelhano com curiosidade pela forma intrépida

como se lhes dirigiu.

- Ouviu a conversa?

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- Sim. Ia a passar e não o pude evitar.

-Procuramos um mascarado com uma camisa azul, é dono da

pedra que queremos obter.

- Se quiserem conduzo-os a ele.

- Como sabe ser o mesmo?

O homem não respondeu logo, mas o sorriso cativante exprimiu

confiança ao grupo.

- As notícias espalham-se depressa.

O cavalheiro com gestos de fino recorte balanceava as mangas da

túnica e pela prontidão de movimentos demonstrava que há anos usava

os calções e pantorrillas que trazia. Sem dar explicações dobrou a

coluna numa vénia cerimoniosa, pedindo para o acompanharem. De

passo largo percorreram longas ruas sujas até chegarem a uma casa de

pedra aonde sobressaia um escudo sobre a porta de entrada. As

sentinelas afastaram-se dando passagem para uma sala solarenga e

arejada, predominavam quadros de pintores castelhanos e flamengos

famosos sobre as paredes caiadas, em baixo esteiras de esparto

rodeavam o compartimento, à medida que caminhavam o ladrilho

rugia sob os pés, os santos e beatos observavam-nos do alto com os

olhos de pedra nos nichos.

Os sofás de veludo convidativos emergiam de tapetes persas e

pequenos baús de marfim dispersavam-se sobre móveis caros dando

uma atmosfera confortável, não sendo alheio um braseiro de cobre.

Um vulto de camisa azul, de costas, à distância alguns metros, olhava

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para as traseiras da mansão através de uma janela, possivelmente para

um repuxo colocado no centro de um jardim verdejante.

O dey de Argel sentiu um nó na garganta ao reconhecer aquela

figura majestosa que dias antes o libertara das masmorras dos

traficantes de escravos. Um frade na sombra observava atentamente os

recém-chegados, apenas o fogo dos candelabros iluminavam

timidamente a face meio oculta pelo capuz. Tossiu duas vezes para

chamar a atenção do auditório.

- Sabemos da vossa missão e como humildes servos de Cristo

devemos ajudar aqueles que procuram a paz.

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- Precisamos da pedra para manter a concórdia entre os nossos

povos.

O clérigo indicou o misterioso espadachim e esclareceu.

- Escondemos em lugar seguro a vossa relíquia.

Baixando a cabeça o frade aguardou que o estranho personagem

que durante o diálogo se mantivera de costas voltadas quebrasse o

silêncio.

- Bem-vindos.

Ao ouvir as palavras e reconhecendo a voz, o dey saltou

agarrando o braço do espadachim.

- Brígida.

O nome da jovem feiticeira soou uníssono pela sala, um grito de

dor acompanhara o gesto de Abdul Hauqal, as feições da moça

contraíram-se ao sentir a mão do muçulmano agarrar-lhe no braço

ferido.

- Brígida, arriscaste a tua vida para me salvar.

- Deixa-me. Estás a magoar-me.

Confusos os visitantes não sabiam qual a reacção a empreender,

por fim Rodolfo encarou o religioso exclamando.

- Não saímos sem a pedra.

O frade atiçou o braseiro, apontando para uma porta de longos

trincos cobrindo uma madeira de veios salientes.

- Entendo perfeitamente a vossa intransigência. Podeis tomar as

vossas refeições na sala ao lado e disponibilizarei quartos para

dormirem esta noite.

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As mangas largas do hábito ocultavam as mãos quando o

anfitrião agarrou uma tenaz de ferro atiçando as cinzas quentes…

- Sei que lutam contra o tempo.

Brígida mais calma dirigiu-se a Abdul Hauqal e murmurou.

- A pedra regressará no vosso barco a África, mas ser-vos-á

entregue quando embarcarem.

Resolveram aceitar a hospitalidade da feiticeira e do monge para

pernoitarem naquela casa, e no dia seguinte os cavalos partiam à

desfilada em direcção a Tequilla. As tórridas planícies pareciam

sufocar ao Sol e camponeses de pele tisnada, ainda descendentes de

mudéjares, os antigos muçulmanos integrados nos novos reinos

cristãos, apascentavam tranquilamente rebanhos de cabras e ovelhas

indolentes mastigando ervas queimadas pelo astro-rei.

A noite surpreendeu o grupo no caminho e um oportuno

acampamento de ciganos garantiu companhia aos aventureiros. Um

desconhecido de raça calé explicou a razão da caravana.

- Seguimos para Tequilla. Os cuadrilleros prenderam um dos

nossos reis e milhares de ciganos dirigem-se para a vila.

- Vão tentar a libertação dele?

- Sim. Ramiro, o nosso rei matou um salteador de estradas que

possivelmente lhe queria roubar os dentes de ouro. Vão executá-lo

mesmo sem julgamento.

- Nessa luta morrerão muitos homens de ambos os lados.

O cigano com um gesto de desprezo respondeu a Rodolfo

mostrando a faca afiada.

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- Podemos morrer contudo Ramiro será libertado.

Uma bailadeira saltou para dentro de um círculo de ciganos,

ensaiou uma sarabanda revolvendo a cabeça soltando os cabelos em

desalinho. Ao compasso das castanholas, tamborins e de uma viola,

enlevada dirigia olhares provocadores ao dey de Argel que a

contemplava curioso.

Thiago encheu um copo de vinho e bebeu um gole antes de mirar

o cigano.

- Se ajudarmos a soltar Ramiro posso contar com o vosso apoio

quando sairmos de Tequilla?

O interlocutor não retirava os olhos da mulher que dançava e

respondeu rudemente ao português.

- Sim, se alguém ajuda um cigano pode contar que toda a tribo o

secundará quando estiver em dificuldades.

As estrelas testemunharam o pacto. Musica e danças duraram

toda a noite, porém os viajantes pareciam jamais serem vencidos pelo

cansaço.

VII

Tequilla acordara silenciosa, o ambiente pesado que antecedia os

acontecimentos importantes como o daquele dia, em que a justiça

levava ao cadafalso Ramiro, o rei dos ciganos.

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De manhã cedo um número invulgar de soldados patrulhava as

ruas e a comunidade cigana comparecia em peso à condenação do seu

chefe.

Ramiro seguia altivo para o cadafalso aonde seria enforcado,

acompanhado por uma forte escolta de cuadrilleros. Sentado em cima

de um burro o carrasco, envergando uma vestimenta negra, era seguido

por um séquito de monges com crucifixos abrindo caminho no meio da

multidão. Enfiado numa túnica branca, de barrete azul, o rei dos

ciganos levava as mãos atadas atrás das costas e um cabresto ao

pescoço. Um pregoeiro gritava o crime, acompanhado pelo juiz que o

condenara e pelo aguazil, sem um queixume, emproado, o réu

observava a população que numa última homenagem lhe deitava

flores.

Chegados ao patíbulo o condenado subiu para cima de um

estrado trepando os poucos degraus de madeira que o separavam da

forca. O carrasco experimentou o nó da corda enquanto um frade num

murmúrio lhe dirigiu algumas palavras piedosas.

Thiago acompanhado dos seus novos amigos ciganos olhou em

volta e verificou se o cavalo se encontrava conforme previamente

planeara horas antes. Num rompante a corda da forca começou a arder,

soltando imprecauções aos soldados, a multidão agitou-se e os guardas

dificilmente continham os populares. Um larápio aproximou-se de

Thiago, roubou-lhe a bolsa com as moedas, golpeou a cabeça do jovem

com um pau correndo em seguida. Assistido prontamente pelos

circundantes o português não recuperou os sentidos e levaram-no em

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braços para casa de um médico nas proximidades de “Puerta del Sol”,

uma habitação assente sobre pórticos com robustas grades de ferro nas

janelas.

Durante quatro horas, apesar dos esforços do clínico o moço

permaneceu desmaiado sob o olhar atento do dey e de Rodolfo, para

reanimar na precisa altura em que um indivíduo coberto por uma capa

entrava no quarto destapando-se.

- Agradeço a vossa preciosa ajuda.

A chegada intempestiva de Ramiro deixou os presentes

admirados. Com curiosidade Rodolfo encarou o rei dos ciganos.

- Senhor, não sabemos porque nos agradeces pois praticamente

nós nada fizemos para te soltar.

Uma gargalhada saiu da boca do homem que sem cerimónias se

sentou aos pés da cama.

- Uma cigana contou-me os vossos feitos. Espantosa a maneira

como incendiastes a corda, deitastes fogo ao patíbulo trovejando na

altura em que me quiseram executar.

- Ramiro, nós em nada contribuímos para a tua salvação.

- Mentes, quem podia ter poderes para lançar tal pandemónio?

- Brígida. Não sei como ela soube do nosso pacto com os da tua

raça.

O cigano levantou-se temeroso, pouco à vontade observou em

volta e perguntou.

-Brígida? A terrível feiticeira responsável pela morte de tantos

condenados salvou-me a vida?

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- Sim, não podia ser outra pessoa.

Como um animal enjaulado o cigano andava de um lado para o

outro com as mãos atrás das costas e passo firme.

- Porque me salvou a vida?

- Possivelmente para nos ajudares a fazer sair de Tequilla.

O homem parou cobrindo-se de novo com a capa antes de

responder a Rodolfo. O nariz em bico de águia traia uma firme

decisão.

- Ramiro reconhece as dívidas de gratidão. Toda a minha tribo

vos ajudará a saírem da povoação numa tartana ou chalupa guiada

pelos mais hábeis marinheiros da zona.

- Combinado. Amanhã um bergantim tripulado pelos mais

destemidos corsários de Argel aguarda-nos ao largo da costa.

VIII

O cais de Tequilla agitava-se como normalmente todos os das

vilas costeiras do mar Mediterrâneo. Gaivotas disputavam o peixe

miúdo deixado na praia e os pescadores cosiam as redes com linhas

antes de se lançarem na faina habitual.

Rodolfo preparou a chalupa, convidando Abdul Hauqal e Thiago

a entrarem no pequeno barco que os levaria ao bergantim que se

avistava alguns metros ao largo. Uma cigana aproximou-se e

reconheceram a jovem que estivera a dançar no acampamento.

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- Gostava de vos acompanhar.

Surpreendidos observavam a donzela de saias longas e xaile por

onde escorriam os longos cabelos negros.

- Vamos para Argel.

- Sei do vosso destino. Li nas estrelas a vossa odisseia e o nosso

futuro cruza-se.

Incrédulos com as palavras da moça ajudaram-na a entrar no

barco e os braços robustos de Rodolfo imprimiram velocidade

invejável à chalupa. Ainda se balanceava nas ondas da praia quando

apareceram soldados a tentar impedir que o barco largasse a barra,

contudo várias dezenas de indivíduos contrariam-lhes as intenções.

Pesaroso Abdul Hauqal olhou para a praia aonde a peleja continuava

sem tréguas.

- Lamento a pedra ter sido roubada e regressarmos sem ela,

porém ganhámos amigos em Tequilla.

Thiago concordou com o dey ao reconhecer Ramiro e os ciganos

combatendo os soldados.

- O rei dos ciganos cumpriu a promessa, logo que estejamos ao

largo fogem e nunca mais os apanham.

Indiferente à luta que se desenrolava no cais que de onde se iam

afastando, a cigana de véu a cobrir o nariz e a boca deixando apenas a

descoberto os olhos, brincava com a espuma das ondas que rodeavam

a embarcação e lhe molhavam a mão morena.

- Dentro de momentos estaremos em segurança.

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O bergantim aproximara-se atraído pelos tiros e logo os corsários

os auxiliavam a embarcar.

- Dey o teu coração está triste?

Já no convés Thiago observava os olhos melancólicos de Abdul

Hauqal normalmente cheios de vida.

- Sim, não levávamos a pedra e o meu coração ficou em terras do

Levante nas mãos de uma feiticeira.

Thiago não encontrou resposta a dar, contudo uma voz melodiosa

e suave fez-se ouvir sobressaindo ao barulho das ondas.

- Aqui está a pedra sagrada.

Ao Sol, a pedra negra, fruto de tantas aventuras brilhava nas

mãos da cigana que destapou as faces.

- Brígida. Por isso Ramiro não morreu no cadafalso, ouvistes as

nossas conversas no acampamento e nunca nos deixastes.

- Sim. Salvei-o para nos ajudarem a fugir e nunca me

reconheceram disfarçada de cigana.

O dey de Argel depois de pegar o talismã beijou a feiticeira

enlaçando-a. Thiago e Rodolfo prudentemente afastaram-se, apenas o

céu e o mar ofereciam cenário para o par apaixonado.

FIM

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O MATRIMÓNIO DOS POGGETTO

I

A costa italiana vislumbrava-se no horizonte carregado de cores

vivas. A tripulação do barco retirou a bandeira de Argel para a

substituir pela do duque de Poggetto, uma prudência necessária para

evitar derramamento de sangue inútil.

O barco deslizava pelo mar azul prenúncio de um novo dia

quente, o vento sul abanava as velas arrastando a embarcação para

terra num balancear preguiçoso e morno. Pequenas ondas

esbranquiçadas batiam vagarosamente no casco feito em madeiras

provenientes das florestas suecas, como tributo aos estaleiros de Argel.

Os porões carregavam as provisões suficientes para um mês. O

paiol de pólvora continha o suficiente para alimentar as baterias do

tombadilho salvaguardando a defesa do dey e da comitiva, que

raramente se aventuravam a penetrar no coração do mundo cristão,

eterno inimigo daquelas faces tisnadas pelo Sol e enrugadas pelo mar.

Um homem de porte atlético e maneiras delicadas observava a

azáfama dos marinheiros subindo e descendo aos mastros para orientar

as velas.

- Desembarcaremos dentro de algumas horas.

Thiago admirava a perícia da tripulação escolhida

criteriosamente entre os melhores da pequena cidade de Argel, situada

no norte de África, enquanto Rodolfo observava o céu.

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Abdul Hauqel olhou sorrindo para o amigo antes de continuar.

- Nunca pensei deixar o palácio de Janina para assistir ao

casamento de um fidalgo italiano, mas jamais recusaria a honra de

assistir ao matrimónio do duque de Poggetto, meu querido amigo e

antigo embaixador de Veneza na minha cidade.

- O teu gesto é louvável. Eu conheci o duque numa recepção,

logo fui cativado pela eloquência das suas palavras e pelas maneiras

delicadas comprovativas de um alto grau de educação. Um nobre

notável que muito contribuiu para a aproximação de homens de raças e

credos diferentes. Ele sempre demonstrou ser um perfeito diplomata

intensificando as relações entre os povos.

- Sem dúvida. Precisamos agora de atravessar regiões em que

apenas podemos contar connosco, terras pertencentes a desconhecidos

que não devem ter a hospitalidade do nosso anfitrião.

- Sim, quando desembarcarmos no porto jamais deveremos

revelar as nossas identidades. Iremos cruzar-nos com inúmeros

cavaleiros que se bateram com guerreiros muçulmanos e muitos

desejariam de bom grado ver-nos encarcerados em frios calabouços ou

até mortos.

- Iremos estar atentos para evitar o pior. Como medida de

precaução este barco foi construído por um polaco, em nada se parece

com as minhas embarcações mouras que cruzam o mar Mediterrâneo.

Em terra seremos acompanhados por seis janizaros que falam

fluentemente a língua italiana. Um pequeno grupo desperta menos

suspeitas do que uma numerosa comitiva.

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De repente o vigia começou a agitar os braços e a gritar que já se

avistava o porto. Imediatamente todos se prepararam para as

manobras, um pequeno barco a remos deslizou do cais de embarque

rumando em direcção à barca acostando minutos depois. Algumas

escadas de cordas voaram e um corpulento italiano de bigodes

encerados subiu com dificuldade para o tombadilho.

Durante um tempo o homem inspeccionou os papéis oferecidos

por Thiago e depois de inúmeros entraves, quando lhe ofereceram

algumas moedas de prata, mandou a embarcação avançar. O astro-rei

cedera o reinado à Lua quando pela primeira vez Abdul Hauqel

desembarcou na península itálica.

- Necessitamos de retemperar as forças. Vamos primeiro para

uma estalagem prosseguindo amanhã a jornada.

Perto do cais descobriram uma pequena hospedaria apinhada de

homens rudes, que trocavam novidades em voz alta sublinhando as

afirmações com gestos desmedidos Ao entrarem, um criado vestido

com tecido grosseiro e de barrete indicou uma mesa perdida a um

canto, e sem auscultar os clientes trouxe de imediato canecas de vinho.

Na mesa ao lado, um indivíduo vestido com um casaco de capuz

e a cabeça descoberta, narrava aos berros um acontecimento muito

importante que abalava a aldeia naquele momento. Um janizaro

conhecedor da língua italiana apressou-se a informar os presentes.

- Parece que um terrível salteador se encontra cercado pela

guarda numa casa fora da aldeia. Alguém denunciou o seu paradeiro e

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uma força composta de vinte homens não lhe dá tréguas nem um

momento de descanso.

Rodolfo abriu a boca admirado e interrogou.

- Como pode um homem sozinho enfrentar duas dezenas de

soldados?

- A progenitora parece ser uma terrível bruxa que o auxilia a

defender-se. Durante muitos anos o bandido assassinou vários

viajantes na estrada principal até que agora finalmente vai cair nas

mãos da justiça.

- E a mãe, porque a receiam?

- Nunca contactou com ninguém, vive do que a terra lhe dá

nunca se aproximando de uma povoação. Um dia quando três homens

a tentaram matar, apareceu um animal incrível que a auxiliou a

desembaraçar-se dos inimigos e todos acreditam que foi o próprio

diabo em pessoa a ajudou na altura.

Um silêncio revelador de temor caiu sobre os presentes sendo o

dey de Argel o primeiro a interrompê-lo.

- Quem é esse demónio que pode transformar-se em animal?

Thiago ponderou as palavras antes de responder a Abdul Hauqel

com o seu semblante traindo grande preocupação.

O demo é o mal, temos liberdade nas nossas acções, contudo

muitas vezes o belzebu tenta-nos a praticar as mais incorrectas.

- Seria mesmo o diabo a surgir? Se três homens tentam matar

uma mulher indefesa aparecendo na altura uma criatura será esse

defensor o mafarrico? Ele nunca iria ajudar a senhora em dificuldades.

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Thiago não disse mais nada. Bebeu o vinho olhando em redor da

sala, entretanto alguns clientes principiavam a debandar recolhendo-se

às respectivas casas.

Depois de saciarem os estômagos todos se dirigiram para os

quartos. Um sono reparador esperava-os antes de seguirem viagem.

II

Um galo oportuno cantou anunciando o princípio do dia e

despertando os hóspedes. O frenesim habitual instalara-se entre os

criados em mais um dia de trabalho.

Depois de ajaezarem os cavalos o grupo atravessou a vila e

entrou na estrada principal contornada por árvores de grande porte. A

manhã apresentava-se perfeita para a jornada. Os cavaleiros

saboreavam o aroma do campo apreciando paisagens desconhecidas

para quem vive normalmente em desertos e urbes. Coelhos

atravessavam o caminho em velocidades impensáveis e lagartos

escondiam-se nas pedras temendo aqueles seres descomunais para o

seu tamanho.

De tempos a tempos os cavaleiros cruzavam-se com carros de

bois que penosamente arrastavam grossos troncos de pinheiros, mulas

de modestos arreios em marcha lenta transportando camponesas com

saias cinzentas, sem casacos e sapatos toscos, ainda adormecidas pelo

calor.

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Junto a um riacho, um rapaz montando um burro que

freneticamente sacudia a cauda para afastar as moscas, conversava

com uma mulher de cesto pousado sobre a relva que ao ouvir a

conversação do companheiro soltava juvenis gargalhadas acariciando

com a mão o focinho do jerico.

Abruptamente a paz foi interrompida por uma salva de tiros que

pareceu não importunar o casal.

- Depressa os tiros vieram dali.

Um janizaro indicava apontando a direcção, ligeiros entraram

numa clareira a tempo de verem um homem sair de um casebre de

mãos levantadas e ser recebido com uma saraivada de balas que o

postaram por terra. Uma mulher correu atrás da vítima debruçando-se

sobre ela como que a querer protegê-la de nova agressão. Acto

contínuo um soldado destacou-se do grupo aonde se integrava e enfiou

na cabeça da mulher um capuz negro atando-o no pescoço, apesar da

resistência da idosa. Em seguida arrastou-a até uma árvore apontando

o arcabuz para ela.

- Alto!

Thiago gritou a tempo de evitar o assassínio, nem os soldados

nem os janizaros baixavam as armas, mas nenhum dos grupos queria

começar a peleja que se sabia de antemão vir a ser sangrenta.

- Quem sois vós para nos deter?

O capitão dirigiu-se ameaçador para Thiago parando o cavalo

em frente do português.

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- Sou um convidado para a boda do duque de Poggetto e não

desejo assistir a um crime.

- Esta mulher não passa de uma bruxa.

De repente um animal incrível saltou do arvoredo, os soldados

fugiram aterrados preparando-se o dey, Rodolfo mais o restante

séquito a vender cara a vida. Thiago no entanto desprezou o monstro,

aproximou-se da velhota, abraçou-a e acto imediato o animal

desapareceu como por encanto.

Abdul Hauqel aproximou-se dos dois, ainda de espada

desembainhada, observou o amigo levantando a anciã amparando-a

por um braço.

- Estranha terra aonde os monstros aparecem subitamente e

evaporam-se como a espuma do mar.

- Apenas observastes uma ilusão. Convido-te a procurares no

chão pegadas da fera.

As tentativas do monarca de Argel para descobrir as pisadas

apresentaram-se infrutíferas e escutou o companheiro.

- Presenciastes um caso de hipnotismo colectivo. Lembro-me há

muitos anos quando vivia numa caravana de saltimbancos, um mago

castelhano iludia a assistência levando-a a pensar existir um naufrágio.

Quando despertaram do estado hipnótico, alguns dos mais respeitáveis

espectadores agarravam-se no chão às cadeiras e as mais austeras

damas simulavam nadar na pista.

- Espantoso. Gostaria de ver um espectáculo assim no meu

palácio de Janina.

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- Infelizmente um conde enforcou-o acusando-o de magia negra.

Sentada numa pedra a mãe olhava tristemente para o corpo do

filho sangrando abundantemente no peito.

- Como te chamas boa mulher.

- De olhos lacrimejantes a velha respondeu a soluçar.

- Marina.

- Preferes ficar ou seguir connosco? Certamente os soldados

regressarão mais tarde.

- Senhor, o meu filho era a única razão que me mantinha fixa

nesta terra fora da lei de Deus, contudo receio transtornar a vossa

viagem.

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- Veste as roupas do teu filho, monta um dos cavalos dos

soldados abatidos pelo teu filho e acompanha-nos. Ninguém te

reconhecerá.

De novo se meteram ao caminho furando rebanhos de ovelhas e

caçando javalis descuidados que pagavam com a vida a aventura de se

cruzarem com os cavaleiros.

Ouviram histórias fantásticas dos peregrinos, ultrapassaram

monges e descobriram estranhos eremitas em estado de absoluta

santidade, aconselhando as gentes pias dos lugares por onde passavam

a se manter na estrada para o Paraíso na companhia do Bem. Pássaros

inundavam a atmosfera com melodias suaves e borboletas

graciosamente embelezadas pela mão do Criador ornamentavam as

estradas emprestando um pouco de colorido à vegetação.

Quando descia a tarde do segundo dia, aproximaram-se de uma

pequena hospedaria e aproveitaram para abrigar os cavalos em uma

cavalariça entrando numa sala aonde na precisa altura serviam o jantar.

Abdul Hauqel lamentou não haver mesas livres para o grupo.

Um criado solícito acercou-se e com uma grande referência

aconselhou o grupo.

- Uma dama viaja sozinha com dois guardas. Talvez ela permita

que se sentem na sua mesa que é a maior que possuímos podendo a

vossa escolta comer na cozinha.

Rodolfo aceitou a sugestão e acompanhado do dey, de Marina e

de Thiago abordaram a nobre donzela.

- Senhora, permitis que utilizemos a vossa mesa hoje?

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A jovem olhou para os recém-chegados e depois de os analisar

acedeu com agrado.

- Queiram sentar-se. Gosto da companhia de gentis-homens,

nestes tempos tumultuosos e de trevas, novos amigos são sempre bem-

vindos e mais preciosos que ouro e prata.

Lucrécia apresentava-se deste modo aos seus companheiros,

bastante jovial, em breve parecia ser um conhecimento de longos anos.

O jantar decorreu sem incidentes, a maioria dos hóspedes já se tinham

recolhido quando um grupo de homens armados entrou na sala

forçando a porta de entrada e o que aparentava ser o chefe dirigiu-se

para a moça.

- Acompanha-nos.

De feições transtornadas pelo pavor, a jovem escondeu-se atrás

dos dois homens que a acompanhavam e que se tinham levantado

desembainhando as espadas. Todos na sala se prepararam para a luta,

excepto Thiago que se manteve sentado, porém foi a sua voz que soou

na sala.

- Ela fica connosco!

- Como te atreves?

O gigante que comandava o grupo preparava-se para ferir o

interlocutor, mas uma força invisível segurava-lhe na espada não o

deixando levar em frente os seus intentos. Thiago continuou a falar

calmamente.

- Esta senhora é guardada por inúmeros duendes que enchem a

sala.

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De repente, a sala que alardeava estar vazia começou num

frenesim estranho, canecas andavam no ar transportadas por mãos

invisíveis, tabuleiros com carnes cruzavam-se rapidamente e uma viola

principiou a tocar sozinha, o suficiente para o bando aterrado recuar

saindo em pânico da hospedaria. Dois dos bandidos apavorados tinham

corrido para a cozinha, contudo passados breves instantes regressavam

espavoridos de novo ao salão fugindo de vez do albergue, perseguidos

pelos janizaros com facas nas mãos e coléricos por lhes terem

interrompido a refeição.

Um coro de gargalhadas ecoou no recinto. O dey de Argel

gritava para os seus homens em árabe na frente dos estupefactos

criados que jamais haviam assistido a uma cena daquela natureza.

Thiago continuou calmamente a comer e encarou os amigos.

- Não nos devem tornar a incomodar mais, os meus “duendes” e

os janizaros de Abdul Hauqel devem dar-lhes pesadelos para várias

noites.

Lucrécia sorriu cismática e todos escutaram a sua apreensão.

- Hoje afugentaram os meus inimigos, mas receio cair em novas

armadilhas. Se estes foragidos entraram à vontade esta noite na sala,

sendo recebidos desta maneira, certamente que na próxima tentativa de

me raptarem serão mais prudentes. Certamente pretendem um resgate.

Marina apertou a mão da moça e afagou-lhe a cabeça com

carinho.

- Talvez possas seguir connosco durante algum tempo. Para

aonde ides?

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- Para o palácio do duque de Poggetto.

Um murmúrio de admiração percorreu os circundantes e Abdul

Hauqal transmitiu a sua ideia perante a aprovação de todos.

- Nós também seguimos para assistir ao casamento do duque,

porque não vais na nossa companhia?

Radiante, com um brilho nos olhos, Lucrécia concordou

satisfeita abraçando Marina e depois de se despedir, subiu com esta as

escadas em direcção ao quarto deixando os homens sozinhos.

- Quem desejará raptar Lucrécia? Podíamos ter obrigado um dos

assaltantes a dizer quem ordenou o sequestro.

- Não nos lembrámos na altura, foi tudo muito rápido,

intensifiquemos as nossas precauções. Eles não nos conhecem e

procuram arrebatar a nossa companheira. Cumpre-nos protege-la como

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dama e como convidada para o casamento do duque, talvez sejam

salteadores da estrada que apenas a procurassem para a roubar e exigir

um resgate.

O dey de Argel interveio na conversa expondo uma ideia.

- Hoje colocarei um janizaro de sentinela à hospedaria. A

donzela também tem dois custódias, quanto maior o nosso grupo

melhor nos defenderemos durante a jornada.

Todos concordaram e retiraram-se para os aposentos deixando a

hospedaria no mais profundo silêncio. Numa árvore próxima uma

coruja começou a piar, até ao momento em que alguém pegou num

copo com água lançando-o na esperança de a calar. Não a atingiu, ela

esvoaçou afastando-se prudentemente da estalagem deixando apenas o

som do balancear dos ramos dos sobreiros ao vento.

III

Bem cedo o grupo retomou o caminho penetrando no arvoredo

queimado pelo Sol. Rolas voavam em redor e uma águia imponente

picava como uma seta sobre um rato que saltitava procurando abrigo,

ao longe nas montanhas as searas doiradas contrastavam com o azul do

céu.

Passadas algumas horas, o matagal e as rochas davam lugar a um

manto de erva verde sobranceira a uma pequena aldeia enterrada num

vale, servida por um rio que serpenteava duas ou três colinas como

uma cobra metálica adormecida.

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Lentamente desceram ao povoado chegando a uma feira aonde

os habitantes compravam toda a espécie de utensílios como alfaias,

hortaliças, casacos de lã, tamancos e uma infinidade de bens mudavam

de dono no meio de intenso palavreado. O calor apertava, o pó cobria

as bancas entranhando-se no nariz transmitindo uma sensação

desagradável intensificada pelos odores da praça.

- Parece um sonho.

Lucrécia extasiada pela paisagem, transmitia a ideia geral ao

observarem aquele lugar digno de servir de modelo a um célebre

pintor. Um caminho de areia dirigia-se para o centro da aglomeração.

- Os nativos aproveitam a natureza construindo sólidas

habitações. Reparem que as casinhas são fabricadas com rochas e

pedras semelhantes às que passámos, transportadas por carros de bois.

Todos os habitantes vestiam os fatos domingueiros. Miúdos e

graúdos, de olhos bem abertos, ouviam os feirantes enaltecerem as

numerosas qualidades dos artigos comprados no interior do país e

resgatados agora a troco de algumas moedas, pecúlio economizado

durante o ano para este momento.

A feira realiza-se no sopé do castelo de velhas muralhas

enegrecidas pelo tempo, mas cada vez mais altivas pelos séculos. Os

sons de guizos, palavreados, berros fervilham na praça transformando-

a num grandioso recinto de interesses de circunstância.

Descendo dos cavalos os viajantes abriram dificilmente caminho

no meio da multidão que sufocava, e já se preparavam para deixar

aquele pequeno Inferno, quando um moço saindo apressadamente de

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uma tenda escorregou caindo desamparado à frente de Rodolfo, que ao

tentar o levantar sentiu a lâmina fina de uma espada encostada nas

costas.

- Deixa-o!

Rodolfo recuou não largando o braço do rapaz, que com o terror

estampado no rosto fitava as faces indiferentes do espadachim, que

certamente habituado a ser prontamente obedecido mostrava-se cada

vez mais agressivo.

- Deixa-o, quero lhe dar um correctivo que nunca mais terá a

ousadia de roubar uma maçã.

Um grupo ávido de curiosidade assistia à cena. Rodolfo sem

deixar de se interpor entre o perseguidor e o perseguido procurou a

bolsa atirando algumas moedas ao homem.

- Leva este dinheiro que te paga o prejuízo.

De modo violento o espadachim lançou por terra as moedas

oferecidas e tentou afastar o opositor, contudo Rodolfo adivinhando a

intenção atirou-o por terra.

- Pagarás com a vida a afronta.

Enquanto o ladrão da maçã fugia o indivíduo pegou na arma

para esgrimir, procurando resolver rapidamente a peleja sem o

conseguir e com o passar dos minutos ia-se sentindo menos seguro.

Um grupo de guardas que passava tomou de imediato o partido do

agressor e em pouco tempo o duelo tomava a forma de uma batalha

campal.

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Sons de trompetas conseguiram terminar a refrega, um cavaleiro

de barbas brancas acercou-se do grupo seguido de numerosa comitiva.

Depois de ouvir a versão de ambos os grupos desmontou do cavalo e

abraçou Rodolfo sob o rancor do adversário.

- Perdoa o meu filho. Ele usa demasiado as armas faltando-lhe

no entanto a prudência.

- Senhor, recusei-me a assistir a um cruel castigo.

- A bondade inunda o teu coração. Se o meu filho Olasso foi

demasiado severo com o larápio, contigo não respeitou as normas da

cortesia. Desejo que me visites no meu castelo, és forasteiro e eu gosto

sempre de saber as novidades de outros lugares.

- Agradeço a honra da vossa hospitalidade.

Com a reverência o grupo viu o cavaleiro montar o ginete

retomando o caminho interrompido pelo diálogo.

Sem comentarem o sucedido os viajantes gastaram o resto da

tarde na praça e quando desaparecia o Sol no horizonte apresentaram-

se no castelo. Um pajem recebeu os cavalos e um criado convidou-os a

entrar num salão aonde se destacavam uma lareira, uma mesa

excepcionalmente comprida e várias cabeças de javalis e veados

pregadas nas paredes.

- Ainda bem que aceitaram o meu convite, folgo muito em

receber o homem que ensinou a nobre arte de esgrima a Olasso.

Uma gargalhada ecoou na mesa aonde se sentavam os

convidados do conde de Cavalcanti, apenas o filho do fidalgo

continuava a ostentar as feições neutras de sempre. Rodolfo agradeceu

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o convite do conde apresentando os companheiros. Olasso pela

primeira enrubesceu quando trocou um cerimonioso aperto de mão

com Lucrécia.

A conversa decorreu animada e prazenteira, ficando acordada a

partida no dia seguinte. O filho do conde de Cavalcanti surpreendeu

todos quando encarou o pai dizendo-lhe.

- Amanhã partirei com eles.

Um murmúrio de espanto percorreu a assistência, contudo o

conde ficou pensativo antes de dirigir-se a Rodolfo.

- Tens o direito de recusar a companhia dele, mas asseguro-te

que assim como é precipitado no uso da arma também é leal e ajudar-

vos-á em todos os empreendimentos.

- Não duvido da sua fidelidade e acabas de confirmar as minhas

impressões sobre ele. Amanhã poderá partir connosco, apenas coloco

uma condição.

- Qual?

- Só poderá usar uma arma que lhe será dada por nós.

Olasso ainda esboçou protestar, mas o ar resoluto de Rodolfo

acabou com qualquer possível tentativa de discordância e todos

abandonaram o salão, dirigindo-se para os aposentos a descansarem da

longa jornada.

Uma coruja principiou a piar esvoaçando assustada quando

alguém a tentou atingir com um copo de água, um grito soou no

castelo.

- Raios, fugiu outra vez.

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Depois caiu o silêncio e a calma voltou a reinar.

IV

No dia seguinte, antes de partirem, Thiago entregou um pequeno

bacamarte a Olasso que resignado o guardou apertando-o entre a

camisa e o cinto. O dia amanhecera sem nuvens e o conde despediu-se

com os olhos raiados de sono, preço de uma noite mal dormida devido

ao festim da véspera.

O som de trompetas anunciou a saída dos convidados que se

encontravam no adro do castelo do conde de Cavalcanti, um soldado

ensonado rodou uma manivela para que um pesado mecanismo

baixasse uma ponte levadiça, único acesso da fortificação com o

exterior.

Os pássaros começavam a desbaratar a terra, os moleiros

carregavam enormes fardos em direcção aos moinhos cruzando-se com

pedintes, aventureiros e comerciantes vindos de toda a Itália para a

feira, mulheres fiavam fios de linho que cuidadosamente guardavam

em cestos de verga transmitidos de geração em geração.

A planície de trigo desapareceu dando lugar a um espesso

matagal cujos gravetos arranhavam as pernas dos cavalos e cavaleiros

que avançavam. Um janizaro que ia diante da comitiva com a ajuda de

uma cimitarra abria um pequeno carreiro por onde passavam todos.

Um brado quebrou o silêncio, o grupo estancou o passo e com

horror viram dois possantes javalis investindo contra Lucrécia. Sem

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perda de tempo Olasso disparou o bacamarte assustando os animais e o

cavalo da jovem que empinou atirando-a ao chão. De imediato o moço

saltou da montada abraçando a donzela aconchegando-a contra o seu

corpo.

- Salvem-na, não a deixem morrer porque a amo.

Espantados rodearam o filho do conde e Lucrécia, sendo o dey o

primeiro a responder-lhe.

- Ela não morre, apenas desmaiou com o susto e com a queda.

Suavemente, Lucrécia abriu os olhos vendo ainda com Olasso a

abraçá-la, sorriu-lhe.

- Gostava que repetisses meu “príncipe encantado” e da mesma

forma as palavras que dissestes há pouco.

Furioso por lhe terem descoberto o sentimento, o rapaz

empurrou rudemente a jovem voltando a montar sob o olhar curioso

dos companheiros.

Ninguém voltou a referir-se ao incidente e durante a viagem

Lucrécia tentou infrutiferamente dialogar com o taciturno pretendente

sem o conseguir.

Continuaram a jornada, num largo surgiu um robusto

camponês a cortar uma cana com uma faca acompanhado de um velho

andrajoso e de feições queimadas pelo Sol. Ao observarem os viajantes

de imediato agarraram em dois arcos com flechas construídos por eles

próprios esperando de forma cautelosa a reacção dos recém-chegados.

Thiago acalmou-os enquanto acariciava a crina da montada e bebia um

pouco de água de uma cabaça presa por uma corda à sela.

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- Nada temam, estamos de passagem e apenas desejamos

descansar um pouco.

Subitamente o velho correu para Lucrécia que ao reconhecê-lo

saltou do cavalo, abraçou-o efusivamente apresentando depois o

ancião ao cortejo.

- Senhores, eu nunca pensei encontrar aqui o meu pai. Tenho a

certeza que ele vos acolherá condignamente.

Dois coelhos e um javali serviram de banquete e todos

enalteceram o almoço confeccionado pelo camponês, fiel servidor do

pai de Lucrécia.

- Permaneço neste lugar desde que o meu filho partiu para

África. Deixei o meu castelo recolhendo-me neste lugar longe dos

homens e das recordações.

A filha beijou-o no rosto e guardou os magros pertences do pai.

- Desejo que venhas connosco, antes de findar o dia. O meu

coração transborda de alegria por te reencontrar.

Renitente o velho fixava a fogueira aonde os coelhos e o javali

assavam deitando um agradável aroma para o ar.

- Minha filha, acompanhar-te-ei porque me pedes, no entanto

tenho antes uma missão a desempenhar e sem ela não poderei seguir

convosco.

- Diz o que te retém neste lugar?

- Dois aristocratas que vivem nestas terras guerreiam-se há

longos anos espalhando a morte e a desolação por este território.

Todos os anos por esta altura, assinam tréguas por um mês no meu

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casebre porque me respeitam muito e sentem que sou neutro em

relação aos seus diferendos. Hoje é o dia em que novo tratado de paz

será assinado e enquanto o pacto não for feito não poderei ausentar-

me.

Abdul Hauqal sorriu matreiro inteirando rapidamente o grupo do

seu plano para levar de vez a harmonia aquelas paragens. Todos se

riram às gargalhadas traçando os pormenores. Se tudo corresse como o

previsto nunca mais haveria guerra naquela região.

- Como se chamam os dois nobres?

- Um intitula-se de Barão Verde o outro de Barão Azul.

V

Um carreiro de areia deslizava directo a uma pequena clareira

aonde um homem chorava copiosamente sentado em cima de uma

pedra. Bem constituído parecia ali encontrar-se há longo tempo,

demonstrando não dar pela chegada do Barão Verde acompanhado do

séquito fortemente armado.

- Porque chorais bom camponês?

- Pelas desgraças deste mundo, nobre senhor. Pranto as minhas

desventuras e as do próximo servo de Satanás.

- Porque o segues?

- Ilustre nobre, durante a minha primeira vida terrena, cometi as

maiores atrocidades, desprezei os pobres, amaldiçoei os bons, trocei

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dos puros e o diabo sabedor dos meus defeitos quando morri escolheu-

me para o acompanhar.

- Pobre alma.

O Barão Verde sorria incrédulo e aproximando-se do indivíduo,

interrogou-o.

- Aonde está esse mafarrico?

- Por cima de ti nobre senhor.

Olhando para o alto o cavaleiro viu com terror um animal

medonho de focinho de cabra, de longos chifres, cauda comprida

terminando em seta e patas de burro flutuando no ar a sorrir com o ar

de espanto do cavaleiro.

A tremer ouvindo os murmúrios de angústia dos seus seguidores,

o nobre olhou para Thiago que se encontrava disfarçado de camponês

perguntando-lhe num sussurro.

- Quem é o próximo servidor do demónio?

Com voz trémula Thiago respondeu-lhe ao mesmo tempo que se

ouvia uma tremenda rizada do alto.

- O Barão Verde, que semeia sangue e chamas como ninguém

pelos vinhedos e trigais lançando o terror nos mosteiros sagrados.

Tremendo de medo, o Barão Verde partiu à desfilada como

perseguido por cem diabos, mal acompanhando a comitiva. Passados

alguns instantes o “Satanás” descia do alto e retirava a mascara de

feições de cabra deixando surgir um rosto bem-humorado.

- Que tal parecia eu vestido de diabo?

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- Soberbo, Abdul Hauqal, nunca ninguém o representou com

tanta convicção e realismo. Asseguro-te meu amigo que depois da tua

gargalhada pensei que tu eras o próprio Belzebu. Como estará a

decorrer a visita do Barão Azul a Marina?

- Adorava lá estar neste momento.

Algumas centenas de metros afastado daquele local outra cena se

desenrolava com a presença da feiticeira Marina. O Barão Azul

deparava com uma velhinha de aspecto frágil sentada num tronco

caído de uma árvore.

- Sabes que estás numa propriedade particular? Espantas-me a

caça.

Agressivo o nobre colocara a mão no punho da espada e

interrogava Marina que continuava a bordar.

- Eu sei, nobre senhor. Porém faço companhia aqueles

esqueletos que estão além.

O fidalgo espreitou para a direcção indicada e ficou lívido. Vinte

ossadas lutavam entre si sem razão aparente.

- Porque estão a lutar?

- Aquelas ossadas são do Barão Azul, do Barão Verde e seus

seguidores, nunca fizeram outra coisa senão guerrear. Dentro de um

ano, se tudo correr como penso, eles morrerão e aquela visão vai se

tornar realidade.

Pálido o Barão Azul começou receoso a afastar-se de Marina, e a

tremer perguntou.

- Como sabes isso?

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- Eu sou o Futuro e apenas te estou a dar a antevisão do que vai

acontecer.

Horrorizado o nobre retirou-se nunca mais se ouvindo falar dele.

Há quem diga que se afastou para Roma, mas é impossível confirmar.

VI

Depois de uma viagem muito acidentada, Thiago e os seus

companheiros chegaram ao castelo do duque de Poggetto sendo

recebidos pelo senhor feudal em pessoa.

O átrio estava engalanado de papelinhos multicolores e alguns

convidados visitavam as ameias de onde se podia admirar muitas

léguas em redor. O tempo ajudava a uma boa disposição e o

matrimónio seria celebrado por um cardeal amigo que se deslocara

propositadamente de Pádua para celebrar a cerimónia.

Quando viu Lucrécia o duque de Poggetto desmontou correndo a

abraçá-la expansivamente, contudo um tiro cortou aquela manifestação

de carinho. Olasso cheio de ciúmes disparara e apenas a pronta

intervenção dos homens do duque conseguiram evitar que ele

continuasse a atirar.

- Levem-no de imediato para os calabouços.

Prontamente os soldados cumpriram as ordens, e o duque ainda

meio aturdido pelo acontecimento convidou o grupo a entrar para um

salão. Depois de contarem todas as peripécias da viagem tudo voltou

ao normal tendo a cerimónia do enlace decorrido sem incidentes.

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- Porque não ficam aqui mais tempo?

Abdul Hauqal explicou a razão porque não podia satisfazer o

pedido do anfitrião.

- Gostei muito da viagem, mas já tenho saudades da minha

cidade.

- Compreendo-te meu amigo. Não vos retenho mais e apenas

desejo um bom regresso a todos.

Soltaram Olasso do cárcere obrigando-o a seguir com uma

venda nos olhos até chegarem a casa do pai.

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O conde de Calvancanti ofereceu um grande banquete em

honra dos visitantes convidando Thiago para a sua direita e Lucrécia

para a sua esquerda.

- Como decorreu a viagem?

- Bem, porém o vosso filho continua a gostar de pegar em armas.

Olasso baixou os olhos envergonhado e deixou Thiago

continuar.

- Não compreendo porque gosta de usar as armas quando pode

defrontar javalis sem as mesmas.

O moço levantou os olhos espantado parecendo por momentos

querer responder, mas calou-se prudentemente.

- Enfrentou os javalis com um bacamarte em que eu previamente

retirara os projécteis e colocara pólvora seca. Felizmente para ele não

podia utilizar a arma ou teria morto o irmão da noiva dele se eu não

tivesse feito a mesma coisa.

- O duque era irmão de Lucrécia?

Olasso dificilmente continha a admiração olhando para Thiago e

para a noiva.

- Sim. Durante a cerimónia aproveitei a oportunidade para pedir

a mão de Lucrécia para Olasso e tanto o duque como o pai deram o seu

consentimento.

O moço mal refeito da surpresa levantou-se indo radiante

abraçar a jovem.

- Nunca mais hei-de pegar em armas e um dia tenho de ir pedir

desculpa ao duque pelo susto que lhe preguei.

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Todos aplaudiram o rapaz, o jantar decorreu dentro dos limites

do bom senso, se bom senso é comer três cabritos, vinte coelhos e seis

javalis acompanhados de uma pipa de vinho.

- E o teu pai ficou com o duque de Poggetto?

- Sim, o pai julgava-o morto. O meu irmão passou demasiado

tempo em Argel e ele julgava que ele estaria defunto.

Acabada a refeição todos se foram deitar e apareceu uma coruja.

Uma sorte para ela o copo de água lançado com uma praga não lhe

acertar.

- Bolas, fugiu outra vez.

Depois o silêncio.

VII

O barco deslizou no ancoradouro e a aragem batendo levemente

nas velas pouco a pouco conduziu-o para o mar alto. Abdul Hauqal

falava com Thiago.

- Uma viagem maravilhosa.

- Sim, tudo correu bem, o conde de Cavalcanti conseguiu

convencer o filho a não usar mais as armas, Olasso casou com

Lucrécia e ela convidou Marina para aia oferecendo-lhe um lar.

- O duque de Poggetto encontrou o pai e a irmã. Conheci a Itália

e gostei muito, adorava aqui voltar.

- Podemos combinar nova viagem.

- Sim, dentro de alguns dias chegaremos a Argel.

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O Sol queimava os braços da tripulação. Os marinheiros faziam

os impossíveis por se livrarem dos raios enquanto manobravam a

embarcação.

- Os nossos amigos janizaros estão a dormir e Rodolfo até

ressona.

- Uma bela viagem, contudo muito esgotante.

- Concordo contigo. Sabes que aprendi a imitar uma coruja?

Abdul Hauqal começou a simular o som do piar da ave,

repentinamente um balde com água voou duma vigia, encharcando-o

todo e ouviu-se a voz de Rodolfo.

- Maldito pássaro, agora apanhei-te.

Thiago soltou uma gargalhada ao contemplar a cara de Rodolfo

assomando à vigia e ao ver o dey de Argel sacudindo as roupas todas

molhadas.

- Não existem dúvidas Abdul Hauqal que reproduzistes

lindamente o piar da coruja.

FIM

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SÃO JUSTINIANO DE LEPANTO

I

A gruta de Lepanto, situada a escassas centenas de metros da

costa algarvia, constitui um dos locais de peregrinação dos marinheiros

que quando o mar faz perigar as suas embarcações imploram com

fervor o nome de São Justiniano.

Conta a tradição que Justiniano foi um terrível pirata que

assaltava as aldeias ribeirinhas e viu-se um dia metido no meio de uma

tremenda tempestade que lançou a sua embarcação contra os rochedos,

despedaçando-a em mil fragmentos. Aos gritos todos os companheiros

de Justiniano morreram um a um tragados pelas ondas revoltas e

quando este já se preparava para entregar a alma ao Criador viu

aparecer uma cruz em chamas dentro de uma caverna.

Justiniano reuniu as últimas forças nadando em direcção à praia,

e em boa hora o decidiu, pois assomou são e salvo. Depois de

recuperar as forças procurou a gruta vindo a tornar-se um eremita,

vivendo exclusivamente das esmolas e ofertas dos peregrinos das

aldeias circundantes levando uma vida santificada e curando pela fé,

muitos enfermos.

O tempo passou e como um rio, as gentes vizinhas da gruta todos

os anos passaram a dirigir-se para o local sagrado, implorando a

protecção ao santo protecção transformando aquele santuário numa

enorme manifestação de fé.

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Camponeses, pescadores e negociantes deitaram abaixo as

barreiras sociais que os separavam e caminhan juntos pelas mesmas

estradas ansiando idênticas graças e benesses, partilhando em comum

os haveres.

Quando do aprisionamento de Rodolfo pelos corsários argelinos,

ele prometera a São Justiniano fazer a peregrinação caso regressasse

salvo ao reino de Portugal, e finalmente na companhia de Thiago ali

estava ele para cumprir a promessa.

- Thiago, quanta gente humilde aqui vem pedindo venturas?

O companheiro olhou em redor e observou os campesinos de

barretes garridos agarrados a bordões, repartindo as sopas de legumes

e os pães enegrecidos com pescadores descalços, mãos calejadas e de

camisas esfarrapadas.

- Muitas centenas.

Um velho de barba rala aproximou-se deles. Sentou-se numa

pedra e sem cerimónias entabulou conversa com os dois amigos.

- Infelizmente já não podemos pedir as bênções do santo como

antigamente.

Rodolfo admirado deixou o homem continuar.

- Em tempos não muito distantes, todos podiam sentar-se numa

rocha no fundo da gruta, era nesse penhasco que São Justiniano se

sentava para meditar. Agora apenas alguns o podem fazer.

Thiago interpelou o indivíduo curioso pela revelação.

- Porque não são todos?

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- O dono destas terras querendo enriquecer à custa da fé alheia

colocou guardas na gruta, apenas aqueles que pagam podem sentar-se

na rocha do venerável São Justiniano. A maioria são pessoas humildes

que não podem pagar ou despender muito dinheiro, por isso ficam

impossibilitados de lá entrarem.

O murmúrio da multidão aumentou quando uma carruagem

escoltada por quadro guardas chegou à entrada da gruta, abrindo-se a

porta para dar passagem a uma senhora idosa acompanhada de uma

jovem. Altivas entraram na caverna, os romeiros receosos afastaram-se

para dar passagem às damas.

Rodolfo chamou a atenção do velho, este com desdém respondeu

à curiosidade do jovem.

- São a esposa e a filha do dono destas terras. A moça sofre de

uma doença incurável procurando todos os anos um milagre que a cure

da enfermidade que a consome.

- Porque não consulta um curandeiro?

O velho abriu os olhos de espanto ao ouvir a pergunta.

- Existem curandeiros conhecedores de plantas mágicas, mas até

ao momento nenhum debelou a doença dela.

Thiago aproximou-se da moça quando ela regressou e subiu para

a carruagem, porém um guarda ameaçador afastou-o com a lança. O

velho agarrando o braço do jovem puxou-o para trás.

- Cuidado, os guardas têm ordens para matar quem se aproxime

demasiado de Lucena.

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O coche começou a descer lentamente o caminho da encosta e a

populaça pouco a pouco voltou a dispersar-se.

Um rapaz aproveitando a distracção dos guardas que olhavam

para a composição tentou forçar a entrada na gruta, mas foi

barbaramente espancado. Rodolfo ainda o tentou auxiliar, porém a

certa altura os peregrinos agarrando em paus e pedras principiaram a

ameaçar as custódias, que apesar de melhor armados recearam a

multidão fugindo num ápice.

Satisfeitos os fieis entoavam louvores a Rodolfo por os ajudar a

se libertarem dos homens do odiado proprietário das terras.

Durante o resto do dia e toda a noite a alegria transbordou no

acampamento, com o alvorecer notaram aterrados que uma enorme

fileira de homens armados os havia cercado, o conde Manrique, dono

do domínio vinha disposto a vingar-se da humilhação sofrida pelos

seus acólitos.

- Procuro o culpado dos acontecimentos de ontem.

Receosos os caminhantes mantinham-se mudos como as rochas

daquela centenária gruta, testemunha de tantos actos piedosos.

Rodolfo avançou e encarou o conde Manrique sem medo.

- Fui eu que defendi o rapaz dos teus guardas.

- Prendam-no.

Imediatamente Rodolfo viu os seus pulsos amarrados por uma

corda à sela de um cavalo, depois lentamente o nobre seguido dos

demais cavaleiros começou a descer a ladeira com o prisioneiro.

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II

No salão principal o conde Manrique jantava acompanhado da

esposa e de sua filha Lucena, dispensando naquela noite os habituais

convidados, quando um criado atravessou o aposento e sussurrou-lhe

ao ouvido. De imediato deu ordens na sua voz possante habituado que

estava a ser de imediato obedecido.

- Mandem-no entrar.

Um jovem acompanhado pelo serviçal entrou no salão parando

em frente ao aristocrata.

- Que desejas? Sei que tens o selo do rei, por conseguinte devo

receber-te.

- Chamo-me Thiago, venho pedir-te a libertação do teu

prisioneiro.

- Nunca. Ele defrontou os meus homens e devo puni-lo.

- Peço a tua clemência, ele defendeu um rapaz que estava a ser

barbaramente espancado e nenhum dos súbitos do nosso amado

monarca pode receber tal tratamento.

Os olhos do conde Manrique encheram-se de ódio, levantando-se

dirigiu-se para a porta e apontando para a saída gritou.

- Sai das minhas terras pois quem manda aqui sou eu, não o rei.

Se desejas sair com vida do meu castelo apressa-te.

Thiago manteve-se no seu lugar provocando ainda maior

indignação ao fidalgo.

- Se não sais a bem vais a mal, tragam os meus mastins.

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Passados alguns instantes três enormes cães irrompiam na sala,

contudo ao aproximaram-se do forasteiro este começou a elevar-se no

ar, apesar dos esforços dos animais para o alcançarem, cada vez ele

subia mais como amparado por uma força oculta. Perante o espanto

dos presentes as lebres que serviam de jantar da família saltaram das

travessas e aproximaram-se dos mastins que ao cheirarem o delicioso

pitéu lançaram-se à desfilada atrás delas saindo do salão, fechando-se

de seguida a porta do recinto.

Thiago voltou a descer e encarou um conde Manrique

estupefacto e a balbuciar entre os dentes.

- Sois um mago?

O moço sorriu, com à vontade agarrou numa maçã trincando-a.

- Não, sou um homem vulgar.

- Sai do meu castelo.

Devagar um criado aproximou-se sorrateiramente do jovem pelas

costas e com uma massa atingiu-lhe a nuca caindo o corpo imóvel no

soalho. O conde contemplou o adversário dando ordens.

- Não o matem, não gostaria de que os enviados do monarca

viessem aqui fazer investigações quando dessem por falta dele.

Cuidadosamente os criados puxaram a vítima para a rua principal

da vila abandonando-a perto de um chafariz.

Passado um tempo Thiago recuperou os sentidos e os seus olhos

mal podiam acreditar no que viam à sua frente. Rodolfo sentado diante

dele esperava que o amigo recuperasse da pancada traiçoeira.

- Pareceu-me que nunca mais acordavas.

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O jovem acariciou a cabeça dorida, lentamente tentou levantar-

se, mas deixou o corpo permanecer na mesma posição ao sentir fortes

dores nas costas. Depois inquiriu Rodolfo.

- Como saístes da prisão?

- Soltaram-me.

- O conde soltou-te?

- Não. Lucena, a filha do conde Manrique subornou um guarda

que me soltou. Trocamos as nossas imagens da gruta.

- Que imagens?

- Todos os peregrinos costumam levar para suas casas uma

pequena cruz queimada como recordação da visita ao santuário.

Com muito esforço Thiago conseguiu levantar-se e decidiu.

- Amanhã regressamos a Lisboa. Já cumpristes a tua promessa.

III

No bairro dos “Rais”, o dey de Argel acompanhado de oito

janizaros bebia um café entretendo-se a ver a multidão a passar na rua

Zenkat S´Bâ Tabaren. Duas mulheres com enormes haid, sob grandes

albornozes, conversavam sem prestar atenção a três kalibas que

puxando mulas cheias de odres com azeite se preparavam para ir ao

mercado. Um ulama, um dos poucos homens que sabem escrever,

rascunhava num papel ouvindo um cliente de turbante azul

acompanhado de um turco, enquanto um servente esperava a sua vez

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para ditar uma carta de amor à sua apaixonada, para em troca, pagar ao

ulama um peixe. Outro ulama desenhava uma roda mágica num

documento e entregava-o a um judeu, que satisfeito por possuir agora

uma mágica contra os malefícios mostrava a imagem a um barrani ou

escravo cristão que o apreciava atentamente.

Um marabuto aproxima-se do dey de Argel, secundado por dois

seguidores, preparando-se Abdul Hauqel para lhe dar esmola quando o

seu turbante lhe foge da cabeça e começa a rodopiar no ar. Os

janizaros receosos não ousam desafiar o “homem-santo” e olham para

o líder que num cumprimento afectuoso saúda os recém-chegados.

- Thiago e Rodolfo, que bela surpresa.

O “marabuto” soltou uma gargalhada ao ver-se descoberto.

- Desembarcamos numa das vossas belas praias e como trazemos

pouco dinheiro disfarcei-me de marabuto. Ficarias surpreendido com a

“generosidade” do teu povo, pois apesar de havermos esfarrapado o

nosso vestuário batendo com os albornozes contra as rochas os teus

vassalos obrigaram os nossos estômagos a passarem por um longo

jejum não obstante o Ramadão ter sido há vários meses.

O dey de Argel sorriu e convidou os amigos a sentarem-se à sua

mesa, tendo Rodolfo aproveitado a oportunidade para apresentar a

companheira.

- Esta é Lucena, a filha do conde de Manrique raptado por um

“rais” durante uma incursão ao sul do reino de Portugal. Viemos com a

intenção tentar libertar o pai dela.

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O chefe supremo da cidade olhou para a rapariga vestida como

uma muçulmana e pesaroso encolheu os ombros.

Todos os escravos que entram pela porta de Argel passam pelo

meu palácio de Janina porém há alguns meses que não recebo nenhum.

Muitos corsários desembarcam na costa, longe dos meus janizaros,

encaminham os cativos para sul aonde algumas tribos como os

“Aurés” os recebem e os enviam para as montanhas.

Thiago pousou a mão em cima do ombro de Lucena para lhe dar

ânimo fixando um verdadeiro marabuto que passava e que curioso

olhava o “colega” com sotaque estrangeiro.

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- Não desistiremos, precisamos descobrir as montanhas dos

“Aurés”, partiremos os três e haveremos de descobrir o paradeiro do

conde Manrique.

Abdul Hauqel concordou prontificando-se a auxiliar a comitiva.

Hoje dormirão no meu palácio de Janina, pela alvorada três

mulas com mantimentos esperarão por vós nas “Portas do Sol”.

Cuidado, qualquer contratempo poderá transformá-los em três

barranis.

- Não temas meu amigo, se na rua Badestan, o local aonde

vendem os escravos cristãos ou barranis não estiver quem procuramos,

iremos a qualquer local mesmo que para isso tenhamos de ir a

Constantinopla buscá-lo.

O dey de Argel sorriu divertido e respondeu ao amigo.

- Eu sei, estou mesmo a imaginar a cara do sultão turco quando

passear pelos frondosos jardins do palácio e ouvir os peixinhos dos

lagos a conversarem

Uma risota geral acolheu o gracejo de Abdul Hauqel, depois com

um ar mais sério aconselhou.

- Visitem o Casbah, frequentem os cafés e os banhos, talvez com

um pouco de sorte ouçam informações úteis. Vou também pedir aos

meus espiões que estejam atentos.

- Obrigado meu amigo.

- Amanhã dirijam-se para o mercado de Azun e quando a feira

acabar acompanhem os mercadores no regresso às montanhas.

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A tarde decorreu sem problemas e sem novidades. Percorreram

as ruas mais movimentadas da cidade contudo todos desconheciam a

chegada recente de escravos pelo que resolveram adiantar os

preparativos para a jornada.

IV

Desde muito cedo os feirantes começavam a desmembrar as

tendas e a reunir os animais para se integrarem nas caravanas, que em

zig-zag por entre palmeiras levantavam uma poeira esbranquiçada

rapidamente transportada pelo vento para longe. As muralhas de Azun,

imponentes e fortes pareciam ignorar a sua terrível história, um local

de matança de tantos condenados obrigados a saltarem vindo a morrer

esmagados nas pedras batidas naquele momento pelos pés do povo.

Turcos, mouros, kabilas, judeus, uma infinidade de raças e credos

cruzavam-se conversando sob a autoridade dos janizaros sempre

prontos a intervirem ao mínimo despontar de uma confrontação.

Thiago estava sentado sobre uma esteira conversando com

Rodolfo e Lucena quando um rosto enegrecido pela luminosidade do

deserto parou diante dele apurando uma requintada vénia.

- Marabuto, dais-me a honra de te convidar para nos

acompanhares?

O moço olhou para aquelas feições enrugadas pelo calor e

reconheceu na cimitarra presa à cintura, pelo albornoz e turbantes

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negros como carvão, um berbere do deserto. Aprovando o aspecto do

interlocutor agradeceu a gentileza.

- Folgo muito em podermos gozar a vossa companhia, dirigimo-

nos para sul em busca de um barrani.

Agha, o berbere não dissimulou uma expressão de espanto,

contudo rapidamente o sorriso que o obrigava a mostrar os dentes

apodrecidos pelo haxixe voltou a aflorar-lhe o rosto.

- Eu e mais dois companheiros da minha tribo viemos buscar

algumas crianças que após passarem alguns meses a aprender a ler e a

escrever em Argel retornam a casa. No nosso regresso costumam

ocorrer inúmeros perigos e a presença de um marabuto impõe respeito

ao mais feroz dos assaltantes. Connosco também viajará um tuaregue.

Rodolfo sorriu, coçou a orelha e gracejou.

- Agha, podes crer que o nosso “santo-homem” tem um modo

muito peculiar de tratar os salteadores.

O africano concordou e erguendo as mãos para o alto como numa

prece concluiu.

- Esses poderes certamente recebem os marabutos de Alá.

Quando Maomé montado num camelo subiu à montanha…

- Agha, não canses mais o nosso “santo-homem”, ele não aparenta,

mas já possui uma idade avançada.

Thiago lançou uma pequena pedra a Rodolfo, que rindo da

fictícia cólera do amigo, desviou-se do projéctil.

Sem compreender o significado da brincadeira o nómada do

deserto curvou o tronco numa reverência e anunciou.

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- Dentro de algum tempo passarei aqui com a minha gente e

iniciaremos a marcha.

Depois da retirada do moço os três companheiros fizeram planos

para a jornada e Lucena foi a primeira a pronunciar-se dirigindo-se a

Thiago.

- Quando chegarmos às montanhas talvez algum membro da tribo

nos indique o paradeiro do meu pai.

- Sim, estes viajantes percorrem as areias escaldantes como os

barcos cruzam os oceanos, vivem em cima das montadas metade da

vida.

- E manejam as armas como ninguém.

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- No entanto as crianças podem retardar-nos a jornada.

- Em qualquer expedição a nossa travessia seria lenta, com os

mercadores também as cargas demorariam a viagem.

Finda a conversa carregaram os animais e quando o berbere

regressou principiou a marcha em direcção às montanhas dos “Aurés”.

As palmeiras e os oásis tornaram-se mais raros e a vegetação seca deu

lugar às ondas de areia, em pouco tempo deixaram de vislumbrar

qualquer outro animal a não ser as mulas, cavalos e camelos que

lentamente arrastavam as crianças e os parcos haveres da caravana.

V

Dois dias passaram-se, e ao amanhecer do terceiro dia viram uma

longa coluna no horizonte, que com o passar do tempo ia

intensificando os contornos de cavaleiros fortemente armados

deixando-os a todos amedrontados.

Agha, preparou-se para a peleja, mas Rodolfo acalmou o

guerreiro.

- Espera eles aproximarem-se, guardemos os nossos trunfos.

Os montadores cercaram o grupo e o que parecia ser o chefe deu

ordens para a caravana se desviar do rumo traçado até aquele momento

sendo prontamente obedecido, deslocando-se todos com a mesma

lentidão até chegarem a um acampamento coberto de tendas. Um

pouco mais longe algumas dezenas de camelos tentavam arrancar do

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chão ervas secas e um grupo de mulheres com baldes iam retirando

água de um poço.

Os raptores conduziram os prisioneiros até à presença de um

velho barbudo que com uma faca trabalhava numa madeira

construindo uma flauta.

Todos cumprimentaram o indivíduo que pareceu só naquele

momento reparar nos cativos.

- Quem sois?

Thiago destacou-se e com uma referência explicou.

- Gente pacífica. Estas crianças regressam ao lar acompanhados

de familiares da sua tribo e nós procuramos um barrani.

O ancião de barbas brancas franziu um sobrolho surpreendido.

- Um marabuto à procura de um escravo cristão?

- Sim.

Um homem de feições cruelmente mutiladas destacou-se do

grupo que cercava o velho, e de pé com o dedo acusador voltado para

o jovem, gritou.

- Mentes, são espiões da tribo dos Abid, os spahis árabes.

Agha, tentou lançar o cavalo à desfilada pronto para ferir o

adversário, mas Rodolfo conseguiu prender-lhe as rédeas evitando o

confronto.

O idoso levantou-se, aproximou-se de Thiago rodeando-o

curioso, depois parou e encarou a pequena assembleia com quem

conversava antes da chegada dos forasteiros.

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- Comparemos a magia do nosso feiticeiro Mustafá com a do

“homem-santo”. Se o nosso mago vencer os estranhos, eles serão

arrastados pelos cavalos e mortos, porém se o marabuto triunfar, o

nosso mago será chicoteado e os forasteiros poderão partir em paz.

O feiticeiro esperou que o velho se sentasse, espalhou bagos de

milho no chão e desafiou Thiago mostrando-lhe uma galinha,

- Tanta impedir esta ave de comer o milho sem te aproximares

dela e eu acredito que sejas um marabuto.

Como por magia um espeto que assava pedaços de carne numa

fogueira próxima começou a mover-se no ar perseguindo a galinha que

num instante desapareceu no labirinto de tendas.

Os nómadas estupefactos começaram a segredar entre si sobre o

estranho prodígio olhando para o local aonde se sumira o animal com

o espeto voador manejado por uma mão invisível.

Passados alguns segundos ouviram o zumbido de uma flecha e

uma sentinela apareceu com o bicho agarrado pelo pescoço e com um

enorme sorriso começou a falar.

- Chefe, esta galinha ia a fugir, mas eu consegui apanhá-la.

O velho barbudo soltou uma gargalhada, mas Mustafá chegou

perto do guarda dando-lhe uma bofetada cheio de cólera

surpreendendo a sentinela que fugiu a correr enquanto um coro de

gargalhadas enfurecia gradualmente o feiticeiro. Vermelho de raiva

voltou-se para Thiago que permanecia imóvel.

- Ganhastes o primeiro assalto porém falta venceres a guerra.

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Furioso, procurou umas pedras e deitou-as no fogo até ficarem

incandescentes.

- Vou passar descalço por cima delas, quero que faças o mesmo.

Concentrando-se passou rapidamente com os pés nus sobre as

pedras e cruzando os braços depois da transição voltou-se para Thiago

aguardando ver o que o antagonista fazia.

- Desafio-te a também passares descalço por cima delas.

O cristão sorriu, descalçou-se sentando-se no chão. Depois

parecendo estar assentado numa liteira invisível levantou-se no ar e

como que por artes mágicas passou por cima dos calhaus.

Murmúrios de admiração ouviram-se por toda a parte.

Repentinamente um zumbido ecoou, uma seta proveniente do

aglomerado de pavilhões atravessou o ar cravando-se no braço

esquerdo de Mustafá que com um grito caiu por terra. Thiago saltou

sobre ele, arrancou a flecha do corpo do mago, colocou a boca no

ferimento e cuspiu de forma a neutralizar algum eventual veneno.

Depois assentando a cabeça do ferido em cima de um tronco

acolchoado com o seu próprio turbante retirou um líquido de uma

sacola tingindo o braço do feiticeiro. Os muçulmanos seguiam todos os

movimentos do forasteiro não ousando interferir no tratamento.

- Ele precisa agora de descansar. Quem poderia querer a sua

morte?

O velho de barbas coçou o queixo pensativo.

- Mustafá tem muitos inimigos e agora de noite dificilmente

apanharíamos quem lhe atirou a seta.

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Alguns lamentos de dor vinham da boca do mago. Lucena

aproximou-se dele e ao chegar-se junto do jovem feiticeiro este

arrancou-lhe o pequeno crucifixo carbonizado, lembrança da gruta de

São Justiniano, que ela trazia ao pescoço e escondeu-a por baixo da

túnica. O chefe árabe quis devolver-lhe a recordação porém a moça

impediu-o.

- Deixa, Mustafá precisa neste momento mais da imagem do que

eu. Necessita de um sono retemperador, depressa saberemos como

reagiu ao veneno.

- Ele ainda é muito novo, certamente vai sobreviver.

- Sim, não deixámos o veneno se espalhar-se.

- Dei ordens para que vocês dormissem numa tenda. Podem

depois partir quando quiserem, contem com a amizade da minha tribo.

Lucena sorriu para o ancião agradecendo, depois aconchegou um

cobertor no corpo de Mustafá ficando de vigília ao jovem feiticeiro.

Thiago e Rodolfo naquele momento traçavam uma linha num mapa.

- Ao alvorecer retomaremos o caminho em direcção às

montanhas, devemos evitar as trilhas perigosas para as crianças.

- Parece que existe pouca união nestas paragens.

- Não duvides. Argel fica longe, apenas podemos contar

connosco.

Agha que os acompanhara desde o princípio da jornada

aproximou-se deles mascando tabaco.

- Amanhã chegaremos à minha tribo. Não sei o que seria de nós

sem a vossa presença.

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- Apenas cumprimos o nosso dever.

- Sois um “santo-homem” estranho. Já tinha contactado com

outros marabutos e ouvido falar dos seus prodígios, mas é a primeira

vez que assisto às maravilhas de um deles.

Thiago pousou a mão amigavelmente no ombro do berbere e

confessou.

- Não presenciastes nenhuma magia, apenas observastes

fenómenos naturais. Descansa agora que tudo correrá bem.

A noite envolveu todo o acampamento com o seu manto negro e

o rugir de um leão não chegou para inquietar os animais e os homens

habituados aos sons daquelas paragens. O ruído abafado pela areia dos

cascos de um cavalo cavalgando para fora do local pronunciou

desgraça não obstante a quietude da escuridão.

VI

Desgastados pelo calor, foi com manifesto alivio que o chefe dos

berberes apontou para um local perdido no horizonte.

- Dentro de pouco tempo poderei abraçar a minha gente.

Rodolfo sorriu, levantou o braço mandando parar a caravana.

- Vamos almoçar. Entretanto um dos teus homens pode ir

anunciar a nossa chegada.

Agha soltou uma gargalhada e esclareceu.

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- Não precisamos de avisar: Neste momento já toda a nossa tribo

sabe que estamos aqui, nada lhes passa despercebido à volta do nosso

deserto pois enxergamos ao longe.

Uma linha de pó começou a desenhar-se ao longe e gradualmente

deu forma a três cavaleiros montados em cavalos pequenos e

musculados. Ao chegarem junto da caravana cumprimentaram

colocando a mão no peito.

- Que Alá vos proteja.

Depois da saudação, o trio recém-chegado desmontou e sentou-se

para ouvir o relato da viagem em que Agha não poupava elogios aos

cristãos. Ouvindo com a máxima atenção a narração, um dos recém-

vindos puxou de um longo cachimbo, acendeu o conteúdo do pipo e

absorveu o fumo.

- São poucos os barrani a atravessarem o deserto e os que passam

são escravos para irem trabalhar para as pedreiras das montanhas.

- Procuramos o pai de Lucena. Ele só podia ter passado por aqui

há poucas semanas.

O berbere abanou a cabeça cuspindo para o lado retorquindo a

Rodolfo.

- Apenas demandaram estes lugares dois barrani há uma semana,

eram jovens que iam trabalhar para um turco que comprou vastas

propriedades no interior. O otomano prefere ser guardado por escravos

cristãos do que por muçulmanos.

- Porquê?

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- Porque sendo bem tratados querem conservar a boa saúde do

turco pois não sabem depois de ele morrer quem vai ser dono deles e

qual vai ser o novo trabalho. Como cativos não sonham com grandes

ambições.

- Então iremos para oeste.

- Muito cuidado, a consideração de que gozam os marabutos em

Argel não é a mesma que por estes lugares. Aqui prevalece a lei do

mais forte.

- Teremos cautela.

- Sim, quando virem homens armados nunca saberão se são

amigos ou inimigos.

Thiago agradeceu a hospitalidade do berbere. Montando a cavalo

seguido de Lucena e Rodolfo iniciou a jornada para oeste.

Percorridas algumas milhas e já com o Sol em poente

vislumbraram um grupo de homens à volta de um braseiro com

solidéus na cabeça, camisas de pano brancas e meias negras. A gaba

estava presa à cintura por um shal.

Ao verem aproximar-se os três amigos o que aparentava ser o

mais velho levantou-se convidando-os a sentarem-se junto ao braseiro.

- Somos judeus, estamos comemorando o “Pentecostes”. Se sois

berberes acompanhem-nos na nossa celebração e festejem o

“Navasardi”.

- Não somos berberes, mas sim cristãos.

O semita traiu uma expressão de assombro, sentando-se

continuou a alimentar o lume com gravetos.

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- Então comemorem o São João.

Thiago desmontou, retirou um recipiente com água sentando-se

em seguida ao lado do judeu.

- Engraçado como na mesma altura existem três celebrações

diferentes para cada uma das religiões.

Um dos hebreus veio com uma ânfora de vinho e ofereceu-a aos

cristãos.

- Bebam. Se desejam comer têm carneiro a assar e como o Sol

deve desaparecer dentro de momentos podem dormir aqui. Rodolfo

recusou o vinho dizendo.

- Preciso de tratar dos animais, mas agradeço o teu convite.

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Depois de cuidar dos cavalos e mulas o moço dirigiu-se para um

poço a fim de encher os recipientes, contudo um dos judeus impediu-o

de continuar.

- Não tem água, tens uma nascente mais adiante.

Rodolfo começou a caminhar para o local indicado, contudo um

lamento das profundezas do poço acabou por o fazer parar. Quando se

voltou viu o hebreu apontar-lhe um bacamarte.

- Devias ter aceitado o vinho pois já estarias com os teus amigos.

Olhando para o fundo do poço, Rodolfo viu Thiago e Lucena

sentados no fundo a olharem para ele com uma expressão inquieta.

- Este poço é uma prisão natural.

O cristão reconheceu a voz do judeu que os recebera e viu com

apreensão que estava desarmado.

- Traficamos escravos, foi no entanto a primeira vez que vieram

ao nosso encontro por espontânea vontade.

Sem oferecer resistência o moço deixou que o prendessem e o

descessem por uma corda para junto dos companheiros.

- Dentro de dias os “Aurés” virão buscá-los para os venderem nas

montanhas para as pedreiras. A jovem será vendida como escrava para

alguém que a precise como serviçal ou concubina.

No fundo do túnel reinava a amargura, os três cristãos faziam

agora companhia a dois negros capturados na Núbia enquanto

andavam a pescar. Alguns musgos cobriam a carne fedorenta e

deteriorada com que os semitas alimentavam os prisioneiros.

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- As paredes são demasiado altas para treparmos e escasseiam as

pedras para nos agarrarmos.

Lucena fez um movimento afirmativo com a cabeça à observação

de Thiago olhando tristemente para a boca do poço aonde sobressaia

uma ténue claridade. O amigo sentou-se mais próximo dela.

- Não podemos acender um lume pois as ervas estão verdes e o

fumo intoxicava-nos em pouco tempo.

- Só nos resta aguardar acreditando que a humidade não nos

deprima.

- Enquanto houver vida, há esperança.

- Fomos muito ingénuos em deixar-nos surpreender e termos dito

que éramos cristãos.

- De momento nada podemos fazer senão descansarmos

aguardando os acontecimentos.

Pouco a pouco o sono foi vencendo-os, um silêncio pesado

surgiu mantendo-se por largas horas Rodolfo de vela, observando a

entrada do poço. Já os olhos se principiavam a fechar quando um

ligeiro ruído o inquietou. De repente algumas cordas desceram fazendo

com que ele acordasse os amigos.

- Silêncio, alguém está a querer libertar-nos.

Começaram as subir pelas cordas, ao chegarem ao cimo viram

um árabe de rosto coberto pedindo silêncio e um dos judeus jazendo

com um punhal enterrado no peito a poucos metros de distância. De

imediato seguiram o salvador para junto de quatro cavalos, mas a

queda de um dos núbios complicou a fuga ao acordar os judeus.

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O oportuno rugido de um leão perto do local aonde acampavam

os traficantes de escravos lançou a confusão salvando a situação e os

seis saltaram para os corcéis indicados partindo a galope.

Correndo velozmente atrás do desconhecido viram com temor o

grupo perseguidor dos hebreus ganharem terreno pois alguns cavalos

dos fugitivos levavam dois cavaleiros e acabaram por entrar num

desfiladeiro. Os perseguidores seguiram-nos até à entrada montanhosa

sendo recebidos nessa altura por uma oportuna chuva de balas que os

fez retroceder em pânico pois não contavam com uma emboscada.

Parando os cavalos dirigiram-se aos novos aliados e espantados

reconheceram Agha comandando um numeroso grupo de berberes

ainda escondidos nas rochas.

- Agha, eu nunca pensei sentir tanta satisfação em ver-te nestes

penedos.

O nómada desceu da rocha correndo em direcção a Thiago que

desmontou e o abraçou efusivamente.

- Marabuto, apenas seguimos as instruções de um membro de

uma tribo nossa amiga que pediu para esperarmos aqui por vocês.

Todos olharam em redor à procura do libertador de rosto coberto

contudo ele desaparecera sem deixar rasto.

- Sabes quem era?

- Não. Tinha as faces ocultas, apenas o identificamos pela

vestimenta como membro do outro clã, seguimo-lo até aqui e depois

aguardamos conforme nos pediu.

Rodolfo sentou-se no chão e esticou as pernas ainda dormentes.

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- Muito feliz a nossa fuga. Primeiro um leão apareceu na melhor

altura a rugir no meio dos traficantes de escravos e depois os teus

companheiros aqui à nossa espera.

Agha inquiriu curioso Rodolfo depois de ouvir as suas palavras.

- Surgiu um leão no meio deles?

Thiago piscou um olho para o amigo emendando.

- Não vimos nenhum leão, apenas se ouviu um rugido.

Rodolfo encarou o amigo, deu uma risada batendo com a mão na

areia do deserto.

- Claro que o rugido só podia ser obra tua. Só não entendo quem

estava interessado em arriscar a própria vida para nos salvar?

Lucena regressava a pé puxando o seu cavalo pelas rédeas e

ouvindo a conversa sorriu.

- Eu sei a identidade do nosso salvador, encontrei isto no pescoço

do meu cavalo.

Todos se levantaram curiosos e foram ver de perto o objecto que

a filha do conde Manrique transportava na mão

- A cruz de São Justiniano de Lepanto.

Thiago agarrou no objecto sagrado, beijou-o e murmurou

enquanto olhava o deserto.

- Mustafá pagou a dívida dele.

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VII

Um vermelho agressivo tingia o horizonte prenúncio de violento

calor para o dia, o vento desaparecera por completo e a ondulação da

areia perdia-se nas rochas das montanhas pouco nítidas contrastando o

ouro com o castanho.

Thiago segurou numa pequena ânfora e hidratou o cavalo que

com sofreguidão bebeu sedento o conteúdo.

- Dentro de algumas horas estaremos nas montanhas. Os

indígenas destas zonas veneram os “velhos das montanhas” que

habitam nesses lugares inóspitos.

- Como podem seres humanos viverem num ambiente tão hostil?

- Bebem a água dos cactos e alimentam-se de raízes.

- Estranho procedimento.

- Conta a tradição que descendem de antigos escravos fugitivos

que se refugiaram nas grutas para fugirem aos donos.

- Como conseguem não voltar a cair nas mãos dos amos e

traficantes de escravos?

- Possuem estranhos poderes, sabem fazer-se temer por aqueles

que os hostilizam.

Penosamente os cavalos chegaram às montanhas e vaguearam

pelos desfiladeiros de areia fina. No cimo do monte um negro idoso

numa atitude de prece acompanhado de um pachorrento leão que

dormitava pareceu ignorar os europeus. Thiago dirigiu a montada para

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junto do anacoreta, o leão acordou da letargia, contudo o eremita

colocou a mão sobre o dorso acalmando-o e indagou.

- O que procuras?

- Desculpa interromper a tua oração, procuramos um barrani.

O indivíduo olhou em redor, respondendo e fazendo em

simultâneo um gesto com a cabeça.

- Há dias que não passa aqui ninguém. Diariamente rezo na

montanha como o profeta me ensinou no seu livro sagrado não dando

conta de alguém aqui passar.

- Procuramos o pai da rapariga que nos acompanha.

Lucena maravilhada com a calma do negro desmontou e sentou-

se junto daquele ser andrajoso com tão estranha parceria.

- Minha filha, aquele que procuras deixará a solidão das

companhias com quem anda arranjando o amparo graças ao teu amor.

- Sabes do seu paradeiro?

- Todos temos um pouso e apenas estamos perdidos quando

queremos. Quantos de nós nos julgamos desgarrados e tudo

reconhecemos à nossa volta comungando com Aquele que nos criou?

Deus sabe o lugar de todos e até aquela lebre que ali vês sabe aonde

me encontrar durante o dia.

- Ajudas-me?

Um pequeno fruto rolou de um arbusto caindo aos pés dos dois.

- Alá acaba de te informar que a vida consiste numa roda,

voltarás ao inicio da tua jornada com aquele que anseias e o ciclo será

fechado.

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A respiração do ancião tornou-se ofegante. Thiago temeu pela

saúde do negro e aconselhou.

- Deixa-o, para quem não fala há muito tempo estás a obrigá-lo a

um enorme esforço.

Com dificuldade o homem levantou-se com a ajuda de uma vara

e apontando para longe exclamou.

Sigam este rumo que vos estou a indicar. Muitos perigos vos

aguardam, mas não desesperem pois Deus é misericordioso.

Desceram a encosta íngreme, os animais percorriam a trilha

escorregando nas pedras, apenas os braços dos viajantes travavam a

marcha. Ao resvalar as mulas e os cavalos levantavam a areia

formando uma nuvem obrigando os retardatários a tossirem as

impurezas do ar.

A marcha continuou penosa, o Sol asfixiante não dava tréguas e a

vegetação parecia soçobrar ao calor. Passadas algumas horas viram

uma dezena de indivíduos esfarrapados picando a pedra enquanto três

guardas sentados sob um arbusto mascavam tabaco e limpavam longos

saifs ou espadas árabes. A chegada dos forasteiros não interrompeu as

tarefas até ao momento em que Lucena correu para um dos cativos que

se encontrava preso com grilhões unidos por uma pequena corrente

abraçando-o expansivamente.

Uma das sentinelas que parecia ser o chefe, levantou-se de

imediato e agarrou a moça que em desespero procurou soltar-se só

acalmando quando sentiu uma faca na garganta. Rudemente o guarda

inquiriu.

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- Quem sois?

Depois ordenou aos companheiros que desarmassem Thiago e

Rodolfo e prendendo-os com cordas. O grupo havia descoberto o

paradeiro do conde Manrique porém a sorte continuava adversa.

O resto da tarde decorreu com Lucena olhando tristemente para o

pai que mais magro e escuro continuava britando a pedra. Um tuaregue

vestido de azul em que apenas os olhos estavam destapados passou

parecendo nem se dignar a olhar a triste cena.

VIII

Passados quinze dias os jovens continuavam sem esperança de

salvação. Enquanto Thiago e Rodolfo saiam com os demais cativos a

partir a rocha, Lucena servia como serviçal na casa do dono dos

escravos.

A habitação era constituída de uma casa de apenas um piso que

rodeava um pequeno lago artificial sendo a parte de cima constituída

por um terraço, aonde os nativos faziam a secagem de produtos

agrícolas. Uma divisão autónoma com grades servia de dormitório

aonde pernoitavam os prisioneiros em velhas enxergas roídas pelo

tempo.

O chefe do trio de guardas era um homem impiedoso, chamado

Haddad, que não poupava os condenados à escravidão utilizando o

chicote do cavalo quando se demoravam mais a caminhar ou faziam

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um pequeno intervalo no trabalho de desbaste das pedreiras. As caras

com cicatrizes dos escravos eram a parte visível da desumanidade com

que ele os tratava.

No final da tarde, antes de anoitecer, uma vez mais regressavam

os prisioneiros em fila indiana com uma enorme corda que os prendia

pelo pescoço uns aos outros, com grilhões e correntes nos pés que lhes

dificultava a marcha sendo amparados pelos companheiros quando

algum ameaçava cair.

Os guardas seguiam ao lado do grupo cavalgando prontos para

darem com o pequeno chicote naquele que se atrasasse.

Ao chegarem ao átrio viram três homens conversando

calmamente sentados sobre a borda do muro do lago artificial. A

vestimenta totalmente azul em que apenas lhes deixava visíveis os

olhos imediatamente os identificou como tuaregues.

Haddad e os outros dois guardas ignoraram-nos, pois estavam

habituados à chegada de nómadas mercadores que procuravam vender

utensílios nos poucos lugares habitados.

Calmamente desceram das montadas e levaram os cavalos a

beber deixando os escravos saciarem a sede no tanque. Enquanto os

animais bebiam retiravam-lhes as selas e as rédeas para os preparar

para o descanso na cavalariça.

Entretanto Lucena saiu de casa munida com uma bilha e uma

tigela como habitualmente fazia para dar de beber aos três guardas,

contudo em vez de fazer o usual trajecto entregou os utensílios ao que

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parecia ser o chefe dos tuaregues, regressando rapidamente para a

habitação.

Perante a surpresa dos circundantes o nómada abandonou os

companheiros dirigindo-se a Thiago e enchendo uma tigela de água

ofereceu-a ao jovem.

Haddad, que presenciava o que o tuaregue fazia, aproximou-se

dele com a chibata procurando bater-lhe de modo violento porém o

forasteiro desviou-se e com um potente murro deitou o adversário ao

chão.

Outro guarda que assistia veio em socorro de Haddad com a

cimitarra ao alto, mas um tiro proveniente do terraço atingiu-lhe um

braço fazendo com que a arma rolasse no pavimento.

Todos olharam para o local de onde havia partido o disparo e

com assombro viram dez homens segurando bacamartes prontos a

intervir se necessário.

Os dois tuaregues que tinham assistido a tudo, imóveis até aquele

momento, saíram do local aonde estavam sentados, calmamente

dirigiram-se para Haddad que permanecia deitado no chão, retiraram-

lhe as chaves e abriram os grilhões aos escravos colocando-os por sua

vez nos vigias obrigando-os em seguida a entrarem na divisão da casa

com grades.

Com um gesto o líder tuaregue convidou todos os prisioneiros a

entrarem em casa e sentou-se no tapete persa da sala de estar seguido

do grupo. Retirou o turbante que lhe encobria o rosto e com um sorriso

falou para o grupo.

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- Davam uns excelentes barranis.

Thiago, Roberto e Lucena não esconderam a sua expressão de

assombro quando reconheceram o dey de Argel. Thiago foi o primeiro

a recompor-se da estupefacção e inquiriu.

- Como nos descobristes?

Abdul Hauqel olhava para os amigos ainda mal refeitos da

surpresa esclarecendo.

- Não utilizei poderes mágicos. Quando saíram de Argel no vosso

grupo ia um tuaregue que era meu espião. Tinha como missão

acompanhar-vos e zelar pela vossa segurança.

- Penso que nunca mais o vimos desde que deixamos as crianças

com a tribo.

- Não o viam contudo ele sempre esteve a vigiar-vos. Quando os

prenderam na pedreira foram a ele que o viram passar e depois de

saber aonde dormiam veio avisar-me do que tinha sucedido.

- Abençoado seja.

- Seguidamente vim aqui com os meus janizaros e libertei-os.

Fico contente por Lucena ter encontrado o pai tendo tudo acabado

bem. Regressaremos a Argel podendo depois retornarem ao reino de

Portugal quando quiserem.

- E os guardas das pedreiras?

- Irão connosco. Serão condenados por maltratarem os cativos e

terem vos tornado escravos que são delitos graves. Agora vamos

dormir pois amanhã iniciaremos a viagem de regresso.

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A noite estava quente, Lucena e o pai abraçados foram até ao átrio

ver ao longe as montanhas que tinham sido cenário de tantos dias de

sofrimento. Os olhos estavam agora marejados de lágrimas de alegria.

FIM

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IndiceIndiceIndiceIndice

O SENHOR DE PORCEL …………………………………… 7

EM TERRAS DO LEVANTE ……………………………. 51

O MATRIMÓNIO DOS POGGETTO …………………… 85

SÃO JUSTINIANO DE LEPANTO …………………. 113

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