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Rui Resende
THIAGO UM HERÓI MEDIEVAL
Fotos de figurantes da Feira Medieval de Castro Marim
decorrida em Agosto de 2010
Edição do autor
Lisboa, 2010
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FICHA TÉCNICA
Titulo: THIAGO UM HERÓI MEDIEVAL
Autor e Editor: R. RESENDE
Capa: POSTAL ILUSTRADO DE L. & L.
Composição e Coordenação: R. RESENDE E S. SPINDOLA
Revisão de texto: S. SPINDOLA
Execução: GRAFICA COPIDOURO
Tiragem: 30 EXEMPLARES
ISBN: 978-989-97112-0-4
Depósito Legal: 320779/10
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O SENHOR DE PORCEL
I
No camarote da praça pública, repleta de gente, o senhor de
Porcel discutia qual a sentença que deveria ditar naquele dia cinzento
de São Thiago, em 1472.
O largo, de terra barrenta, encontrava-se repleto de locais que
faziam-se ouvir aos brados e comentavam o julgamento, aproveitando
a oportunidade para comprarem víveres numa feira improvisada de
tendas constituída expressamente para a ocasião.
- A morte na fogueira constituiria um castigo exemplar para esta
bruxa.
O conde coçou a barbicha e ajeitou o bigode antes de replicar na
sua voz pausada a dom Maximiano.
- Hoje não condenarei ninguém à morte, nasceu-me finalmente
um filho varão. Chamar-se-á Thiago em honra do padroeiro da aldeia,
porém a feiticeira deverá abandonar a povoação para sempre.
Dom Maximiano apertou o punho da espada cheio de cólera, mas
o conde ignorou a atitude e levantou-se apontando para a feiticeira
Molina, que jazia de joelhos à sua frente presa com correntes,
escoltada por guardas de longas lança, briosos e de elevada estatura.
- Soltem as grilhetas, condeno-te ao desterro. Vai em paz, mas
que a partir desta data que não te veja mais.
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Lançando algumas moedas de prata aos pés da bruxa o nobre
sentou-se satisfeito enquanto o povo o aclamava contente, tanto o
conde justo e bom como a feiticeira sempre caridosa com os mais
desafortunados. Ambos haviam ganho um lugar no coração da
populaça e a razão daquele tribunal popular prendia-se com uma
denúncia de um esbirro de dom Maximiano que a acusava de ter
envenenado uma camponesa com mesinhas e bruxarias.
A pobre mulher levantou-se com dificuldade e recolheu as
moedas colocando-as num bolso da longa saia preta e entre soluços
respondeu ao fidalgo.
- Obrigado, meu senhor. Para tua desgraça não me verás mais,
mas a tua acção bondosa será premiada num futuro distante.
Dom Maximiano não se dava por derrotado e insistia na sua
aversão em relação à feiticeira.
- Fazeis mal em não a lançar às chamas. Esta mulher permanecerá
certamente na aldeia.
O conde ignorou as palavras do comandante do seu grupo de
soldados e colocou a sua mão grossa no ombro do seu auxiliar.
- Acalmai o vosso ódio e vinde a um banquete oferecido a toda a
aldeia em honra do meu filho. Esta tarde javalis no espeto e vinho
serão distribuídos gratuitamente e mandei vir da cidade da Guarda um
grupo de ciganos que tocarão e dançarão para nós.
A multidão dispersou pela praça salpicada de vendedores,
saltimbancos e monges do mosteiro próximo. Com dificuldade o
conde, amparado por dois jovens e seguido do séquito dirigiu-se para
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uma tenda no centro da praça aonde as bandeiras desfraldadas com as
armas do nobre, dançavam ao vento.
A feiticeira Molina desapareceu rapidamente e já não ouviu o
galope de alguns cavaleiros a entrarem no largo, a principiarem a
chacinar os camponeses e os guardas do nobre.
Sobre os gritos dos feridos a voz de dom Maximiano elevava-se
no clamor, o ódio espelhava-se no rosto quando com a pesada espada
rompeu a população e encarou o conde.
- Hoje a tua alma vogará no inferno para sempre.
O bravo nobre enfrentou-o de pé. Com um tremor a espada luzia
ao defrontar o traidor, porém os anos não perdoavam e pouco a pouco
as forças faltaram-lhe quando mais precisou delas. Com um grito
estridente, dom Maximiano trespassou o peito do aristocrata e o corpo
ensanguentado do governante da aldeia caiu-lhe aos pés perante o
regozijo dos assaltantes.
- A partir de hoje ditarei a minha lei e todos me obedecerão. O
conde preparou-nos uma festa aproveitem-na e vamos saquear o
palácio.
Como lobos os energúmenos percorriam as ruelas da aldeia
pilhando-a, destruindo tudo à sua passagem matando os indefesos
aldeões que ousavam enfrentá-los.
Montando um cavalo alazão, dom Maximiano procurava de lar
em lar os fiéis ao conde e as suas mãos tingidas de sangue pareciam
insaciáveis de vidas inocentes.
- Para o palácio.
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- Seguido de numeroso grupo de cavaleiros bateu os poucos
defensores do antigo senhor de Porcel revitalizando o furor com a
procura infrutífera.
- Procurem o filho do fidalgo.
Apesar de percorrerem sala a sala, o bebé parecia haver-se
evaporado como que por algum acto de magia.
- Molina.
Com asco o cavaleiro soletrava as palavras e as mãos crispadas
agarravam a espada enquanto nas faces rubras os dois olhos negros
pareciam afundar-se.
- Maldita bruxa.
A procura vã enfurecia-o e ao ver os esforços frustrados
principiou a destruir o antigo salão do aristocrata, mas acalmou por
fim. Era uma estranha imagem, um incêndio contra o céu negro
elevando-se na povoação, que uma pequena caravana de saltimbancos
observava quando deixou a vila.
- Não se preocupe dom Maximiano, mesmo que a criança
sobreviva e reivindique um dia, os direitos do conde, jamais poderá
provar de quem descende.
- Enganas-te, toda a descendência da família nasce com uma
mancha nas costas.
Uma gargalhada ressoou no salão e o esbirro do usurpador
acalmou o comparsa.
- Para voltar o filho do conde precisará de muitos homens
armados e não será uma bruxa a fornecer-lhe.
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Satisfeito o hipócrita começou a encher os copos dos
companheiros com o vinho da adega do nobre enquanto mantinha o
saque ao paço. Ébrio batia nos criados com uma verga.
- A partir de hoje governarei esta vila como me apetecer e
prometo que quem me apoiar será bem recompensado.
Um novo amanhecer descobriu a vila de Porcel manchada pelo
generoso sangue do conde e as trevas no céu pareciam traduzir o que ia
na alma dos habitantes da povoação.
II
Vinte anos haviam decorrido desde o drama de Porcel. O ancião
de longos cabelos brancos, que deitado aguardava serenamente a
morte, narrava os acontecimentos a um jovem robusto que de lágrimas
nos olhos o escutava com atenção.
- O teu pai morreu e o destino quis que tu viesses para minha
casa. Bendita a hora em que te acolhi e à tua benfeitora.
As mãos gélidas do decano apertavam as do rapaz, sendo a cena
atentamente observada por uma mulher de olhos lacrimejantes e
longos cabelos pretos que contrastavam com o xaile branco e reluzente
caído sobre os ombros.
- Hoje a minha alma partirá para junto do Senhor, porém deixo-te
uma herança preciosa, não em riqueza, mas sim em saber. Tu és o filho
que nunca tive, amo-te como se fosses meu descendente.
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As paredes húmidas do quarto brilhavam à luz de uma vela de
cera acesa sobre o móvel, desvendando sombras que emprestavam
figuras irreais à cena. O som das palavras esvaziava-se e o homem
continuou ignorando os soluços do moço.
- Nunca desprezes os teus conhecimentos de medicina aprendidos
ao longo dos anos comigo e os segredos de feitiçaria ensinados por
Molina. Eles fazem de ti um homem temível e poderoso.
A voz do velho médico do rei enfraquecia à medida que falava
com o jovem, mas as mãos continuavam a apertar fortemente as do
mancebo.
- Promete-me nunca agarrares uma arma contra o Bem.
Com a cabeça do ancião no colo, Thiago sofria ao ver aquele que
ele tanto amava morrer, exalando um último suspiro, e apenas os
braços caridosos de Molina conseguiram retirá-lo do quarto para uma
pequena sala bem mais alegre.
- Meu filho, vivestes com saltimbancos, que não eram da tua
estirpe, porém ensinaram-te os seus segredos até ao momento de vires
para esta casa aonde completas-te a tua educação. Chegou o dia de eu
regressar, de voltar disfarçada à aldeia aonde nasci, não o tendo feito
antes porque não queria que o nosso bem-fazente morresse sem
ninguém à cabeceira. Apesar de a minha vida correr perigo em Porcel,
foi nesse lugar que me abençoou pela primeira vez a luz do dia.
Dirigindo-se para uma janela Thiago olhou para a rua ouvindo
com atenção a velha feiticeira.
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- O nosso benfeitor deixou-nos uma pequena herança, ficarei
apenas com uma pequena parte para comprar um casebre, o resto será
para ti. Conheço-te bem, sei que em breve partirás também daqui.
- Sim, sempre desejei viajar, percorrer o mundo, cruzar oceanos,
conhecer o local aonde o Sol nasce, beijar a terra que lhe serve de
leito.
- O teu sangue arde como o do conde.
- Esse título pertence-me.
Silenciosamente a mulher retirou-se deixando o jovem
observando o povo anónimo na ruela suja. Marinheiros carregavam
barris, casais passavam enlevados e uma vendedora gritava para um
rapaz que corria desenfreado para não ser apanhado por uma moça
bonita.
De súbito a donzela escorregou e dois homens corpulentos que
saiam de uma taberna troçaram da jovem, que sem cerimónias, lançou
uma pedra da calçada certeira à cabeça do rufia provocando-lhe pronta
reacção.
Sem possibilidades de fuga, apenas a rápida intervenção de
Thiago chamando a atenção do indivíduo evitou que ele se dirigisse
para a adolescente.
Saltando pela janela, o jovem enfrentou de mãos vazias os dois
ébrios armados de punhais perante um pequeno aglomerado de passan-
tes aterrados. Uma barreira de fogo serviu de muralha aos intentos
ameaçadores dos canalhas que perante tão estranho fenómeno fugiram
apavorados.
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Sem de inicio compreender o que se passava Thiago sentiu um
rubor quando a moça o beijou na face. Ao longe, na entrada da viela
ainda viu Molina afastar-se e desaparecer no meio da multidão. Com
um sorriso o jovem inquiriu.
- Quer que a leve a casa?
- Se desejar conhecer o meu irmão e jantar connosco. Ele parte
amanhã para Itália e é bom ter amigos corajosos quando se vive
metade da vida sozinha.
De braço dado atravessaram velhas ruelas pejadas de aventureiros
e mercadores até chegarem a uma casinha simples e acolhedora. Um
rosto enegrecido pelo Sol acolheu-os e o sorriso franco do irmão de
Ângela imediatamente cativou Thiago
A refeição decorreu sem incidentes e alegre, como a atmosfera da
noite apresentava-se cálida e convidativa, acabaram por se sentar num
pequeno pátio a conversar.
- Amanhã parto para Itália. Deseja acompanhar-me? O capitão
procura marinheiros valentes e ousados que se saibam bater caso os
muçulmanos nos ataquem.
- Gostaria de o acompanhar, mas não gosto da carreira de armas.
As feições do navegante traíram espanto ao ouvir a revelação do
hóspede.
- Como defendeu a minha irmã?
- Imprudentemente fiz frente a dois brigões não levando armas.
Confuso, Rodolfo deixou Thiago continuar a explicação enquanto
afastava um mosquito que lhe rondava um braço.
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- Salvou-me uma feiticeira que interpôs entre nós e os malfeitores
uma barreira de fogo.
Soltando uma gargalhada o homem fixou a irmã, contudo ao vê-la
com as faces sérias, aquiescendo com a cabeça deixou de rir e
perguntou.
- Sabe magia?
- Um pouco, porém raramente utilizo os meus poderes.
- Qual a sua profissão?
- Auxiliava o médico do rei.
Um assobio de assombro saiu dos lábios do interlocutor.
- Conhece a corte?
- Fui poucas vezes ao palácio real.
- Amanhã apresentá-lo-ei ao capitão e talvez venha comigo para
Itália. Nunca se sabe quando precisaremos de um amigo de bruxas no
barco.
Soltando uma risada Rodolfo, o irmão de Ângela, regressou a
casa deixando os dois jovens enamorados sozinhos no pátio.
- Um dia regressarei para te levar para sempre daqui.
- Aguardarei por ti.
Um longo beijo banhado pelo luar uniu os dois namorados, os
lábios juntavam-se selando-se um compromisso indissolúvel. Os dois
amantes nem ouviam os acordes de uma guitarra que saiam de uma
velha casa de pasto, onde dedos habilidosos soltavam calcando nas
cordas.
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III
O dia rompera claro e o capitão percorria com a vista o horizonte
servindo-se da mão direita como pala.
- Não me agrada a calmaria!
Um marinheiro tisnado pelo Sol respondeu ao superior soltando
um grunhido e apontou para um minúsculo ponto negro.
- Um barco. Prepara os homens e dá mais velocidade.
Sem replicar, o mulato prontificou-se a cumprir as ordens
soltando todas as velas da embarcação. Passados alguns instantes a
tripulação reunia-se a contemplar o ponto negro que gradualmente
aumentava.
Uma análise breve ao astrolábio linear bastou a Rodolfo para se
inteirar das horas.
- São sete e meia. Parece-me um navio de grande tonelagem.
Agarra as armas e luta como um leão se o barco pertencer aos
muçulmanos.
Thiago sentiu o sangue percorrer-lhe as faces. Nunca entrara em
nenhuma batalha naval e sabia da sorte que o esperava se caísse em
mãos dos sarracenos.
O grito do capitão para os artilheiros confirmou os seus piores
receios. Uma aparente desordem instalou-se no convés e os soldados
arrastavam as armas de maior calibre.
- Piratas.
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O aventureiro apertou com a mão o punho da espada sentindo
com este gesto um pouco de falsa segurança. A azáfama da tripulação
intensificou-se rolando os barris de pólvora para junto dos canhões que
atordoavam os ares.
Um cheiro a pólvora espalhou-se no ar e pequenas gotas de chuva
salpicavam os corpos suavizando os efeitos do calor mediterrânico. O
barco cristão carregado de mercadorias era presa fácil, ficando
rapidamente ao alcance dos discípulos de Alá, que como demónios
abordaram a embarcação espalhando-se numa larga frente e a peleja
ganhou novo vigor. O comandante gritava desesperado enquanto
lutava corpo a corpo com um corsário.
- Não os deixem saltar.
Desesperados os cristãos faziam esforços sobre-humanos
batendo-se valentemente para conter aquela avalanche humana,
contudo pouco habituados a combater sucumbiam ao numero do
adversário. Lado a lado Thiago e Rodolfo batiam-se com ardor, porém
esgotados acabaram por cair nas mãos dos inimigos que os prenderam
e reuniram aos demais companheiros.
Depois de saquearem as mercadorias os seguidores do profeta
afundaram o navio seguindo rumo a Argel, cidade costeira no norte de
África.
Acorrentados os prisioneiros pareciam um rebanho de ovelhas,
acossados por uma alcateia de lobos e os seus olhos revelavam a
apreensão que os tomara. O irmão de Ângela lamentava a desdita e
com um sorriso triste relatou os próximos passos dos inimigos.
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- Quando chegarmos a Argel seremos brindados com uma argola
na orelha que é o símbolo dos escravos.
- Possivelmente não nos separam.
- Iremos ser vendidos com abexins, arménios e outros cristãos.
- Não sabemos o nosso futuro.
- Com sorte vender-nos-ão para o trabalho de campo. Lamento
agora a minha ideia de te convidar.
Uma chicotada obrigou-os a calarem-se, um colosso negro
apresentou-lhes um punho ameaçador acompanhando o gesto com uma
torrente de palavras estranhas.
Balançando pela acção das ondas o barco deslizava para sul
esvaziando-se as esperanças de salvação, até que uma linha surgiu no
horizonte e uivos de alegria chegaram aos ouvidos dos melancólicos
cativos.
- Amanhã seremos negociados no mercado como escravos.
IV
Desde muito cedo que Argel despertara para o bulício habitual
com mercadores transportando-se em burros generosamente ajaezados
a cruzarem-se com carregadores esmagados por caixotes nas estreitas
ruas da cidade muçulmana. Nos bazares os clientes berravam junto às
dakkas com os lojistas, e não raro os vigilantes acompanhados por cães
intervinham nas contendas para findar as discussões.
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Escassas dezenas de metros adiante, o mercado enchera-se de
uma multidão ansiosa por observar os produtos do dia como camelos,
gatos, escravos e flores para decoração.
Valendo-se da voz grossa o apregoador berrava as virtudes de dez
escravos sem defeitos que vendia a um preço razoável porque não
poderia estar naquele local no dia seguinte. Uma mulher núbia
argumentava que o elevado preço pedido era incomportável para o seu
senhor e se ele não baixasse o custo dos servos em doze moedas
regressaria sem a mercadoria. O diálogo manteve-se aceso por longos
minutos, contudo pouco a pouco a conversa amenizou-se findando o
negócio proveitoso para ambas as partes.
Munidos de chicotes e armados com sabres os homens que
acompanhavam a negra Fátima reuniram os escravos e colocaram-lhes
algemas, retirando-lhes as pesadas correntes que prendiam os pés dos
desafortunados.
Uma penosa marcha principiava para Thiago, Rodolfo e os
companheiros, presos em fila indiana por uma longa corda no pescoço,
contudo todos se alegraram de não os separem e a saída da metrópole
pareceu-lhes uma bênção para o espírito.
Durante três intermináveis semanas o grupo percorreu a areia do
deserto, a fadiga não lhes quebrava as forças devido aos cuidados dos
guardas a que não era estranho o aparecimento duma especial afeição
entre Fátima e Rodolfo.
Ao fim de vinte dias de marcha surgiu um pequeno grupo de
casas brancas dominadas por uma maior que ladeava um pátio
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contendo um enorme tanque. Encaminharam-se para uma porta
habilmente decorada de pregos e ferros, entrando para o pátio meio
ocupado por uma cisterna de água cristalina, tendo ao lado um
pequeno lago aonde nadavam calmamente peixinhos vermelhos
ornamentando o local.
Depois de saciarem a sede entraram na casa dominante e
atravessaram duas divisões antes de pararem junto a uma porta, aonde
os esperava um criado ricamente trajado que os convidou a entrar.
Sentado num poufe castanho e de pele de camelo, aguardava-os um
velho de olhos negros, vestimenta alva, turbante na cabeça e longas
barbas brancas encaracoladas que cumprimentou Fátima juntando as
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mãos analisando cuidadosamente o grupo recém-chegado com ar
aprovador.
- Realizas sempre boas compras pois eles nem parecem terem
feito uma viagem longa.
A serva que se mantivera desde que entrara junto a uma das
paredes da divisão respondeu respeitosamente curvando ligeiramente a
cabeça.
- Obrigado meu amo pelas generosas palavras.
- Seis escravos cristãos trabalharão no cultivo apascentando os
camelos e cabras, um servirá o meu filho, e os outros três ajudar-te-ão
nas lides domésticas.
Um jovem entrou na sala sem se anunciar e com uma vénia
cumprimentou o dono da casa. O turbante ricamente decorado e as
maneiras resolutas revelavam ascendência senhorial.
- Pai, como sabes, eu preciso de um criado e como sei que
compraram dez escravos…
- Escolhe aquele que pretendes.
Decidido e sem pestanejar o moço apontou para Rodolfo. Acto
contínuo a núbia lançou-se aos pés do jovem com lágrimas a
escorrerem-lhe pelos olhos.
- Meu senhor, esse não.
Surpreendido Muhammad Haldun, o filho do dono da casa,
hesitou na acção a empreender, mas anuiu ao pedido da servente.
- Não sei a razão porque agis assim.
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A bela negra não retirava os olhos do chão aos soluços enquanto
os restantes se mantinham em silêncio. Por fim o mancebo agarrou
numa das mãos da moça e levantou-a com um sorriso.
- Não prefiro nenhum em especial e se Fátima deseja este cativo
para a acompanhar não irei contra o seu pedido expresso.
Amparado por um criado o ancião levantou-se encaminhando-se
para o filho vestido com uma camisa e calções de pano branco bordado
com fio de ouro, colocando uma das mãos sobre o ombro.
- Belo gesto Muhammad Haldun, digno da tua estirpe.
- Fátima tornou-se para mim como uma irmã, não irei fazer
experiências médicas num escravo que lhe roubou o coração.
Envergonhada por desvendar a paixão aos seus senhores, Fátima
soluçava baixinho e inconscientemente abraçou Muhammad Haldun
quando este a beijou suavemente na testa.
Inspeccionando de novo o grupo de escravos o velho apontou
para Thiago exclamando com autoridade.
- Retirem as algemas a este escravo.
Os guardas prontamente obedeceram à ordem, e libertos os
pulsos, Thiago friccionou-os para restabelecer a circulação.
- Armem-no com um sabre. Ele acompanhará o meu filho.
Batendo palmas voltou para o local aonde se sentara
anteriormente enquanto todos se retiravam da sala.
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V
Escoltado por Thiago e dois guardas, Muhammad Haldun saiu da
casa paterna dirigindo-se para as montanhas a caminho da sua casa. Os
cavalos rapidamente devoravam quilómetros de areia subindo ravinas
íngremes, pequenos animais receosos afastavam-se dos cavaleiros e
raros arbustos quebravam a monotonia da paisagem.
Durante dois dias o pequeno grupo caminhou sem contratempos e
ao findar o segundo dia algo despertou as atenções de um dos guardas.
- Senhor, pareceu-me ver um dromedário.
Nesse momento uma flecha acertou no ombro do homem e, acto
contínuo, todos se abrigaram numa cova fruto da erosão do vento do
deserto. Aos gritos duas dezenas de berberes cercavam os quatro
homens que de imediato se aperceberam da sua situação dramática.
Muhammad Haldun deitado na areia colocou o turbante de forma a lhe
tapar o nariz e a boca desvendando apenas os olhos, apontou o fuzil
para os atacantes e exclamou.
- Não nos resta outra alternativa a não ser combater o melhor que
soubermos.
Resolvidos a venderem cara a vida, viram com horror os
assaltantes apontarem para ele um pequeno canhão.
- Senhor, se nos rendermos talvez nos poupem as vidas e depois
os possamos iludir.
Muhammad Haldun não respondeu a Thiago, contudo saiu do
abrigo de braços levantados. Passados poucos minutos os bandidos
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aprisionavam-nos transportando os cativos para uma imensa gruta,
iluminada por dezenas de tochas, que lhes servia de esconderijo.
Um árabe de feições de águia, sentado num pequeno tapete, tendo
um colosso negro de pé por atrás, recebeu-os e os gestos decididos
indicavam ser o chefe do bando. Dezenas de comparsas rodeavam o
grupo, deitando por vezes impropérios aos desafortunados.
- Sou Ibn Maqdisi, a partir deste momento as vossas vidas
pertencem-me.
- Clamo-me Muhammad Haldun e o meu pai pode dar-te um
valioso resgate se me libertares.
O foragido sorriu, com um gesto da cabeça negou a proposta
enquanto, que com a ponta de um punhal ia fazendo arabescos do chão
arenoso da caverna.
- Prefiro que entres para o meu grupo, Muhammad Haldun, se me
obedeceres serás rico, se não, morrerás.
- Escolho a morte.
O gigante negro que até ao momento se mantivera imóvel por trás
do cabecilha dirigiu-se ameaçador para o cativo, contudo o chefe
deteve-o.
- Não lhe faças mal.
Retirando o punhal do chão, Ibn Maqdisi passou o dedo pela
lâmina da arma e de seguida cravou-a no chão do antro com furor.
Thiago avançou para ele e perante a admiração dos fora da lei falou-
lhe árabe.
25
- Ibn Maqdisi, a tua palavra como a de todos os berberes é
sagrada. Lanço-te um desafio.
O mouro elevou o olhar para o interlocutor e as feições duras
amedrontavam aqueles que as contemplavam.
- Pareces cristão, como sabes a minha língua?
- Meu pai era doutor, tinha um criado sarraceno que o ajudou a
traduzir tratados e livros médicos árabes. A medicina muçulmana está
tão avançada como a cristã.
- Muito bem, qual a tua proposta?
- Desejo um duelo entre mim e um dos teus homens escolhido
como o mais valente. Caso eu ganhe deixas-nos seguir em paz, se pelo
contrário o teu escolhido vencer, pertencerei ao teu grupo.
O bandoleiro soltou uma gargalhada que ecoou na gruta, e
exclamações a zombar o desafio nasciam por todo o lado. A multidão
gritava o seu apoio à ideia e Ibn Maqdisi acabou por fazer um pequeno
gesto com a cabeça dando o seu acordo.
- Não tendes hipótese. Se Omar, o negro que está atrás de mim
ganhar o duelo, juntar-se-ão ao meu bando, se ele perder poderão sair
em liberdade.
Muhammad Haldun fitava Thiago atónito, mas concordou com o
desafio. De imediato foi traçada uma linha na terra em forma de um
círculo que definia a área aonde os combatentes iriam pelejar. O
foragido definiu as regras da refrega.
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- Os dois combaterão dentro do espaço da circunferência
desenhada na terra, o primeiro que lançar o adversário para fora dela
será o vencedor. Que arma escolhes para o combate cristão?
- O teu punhal.
- És audaz, serás um bom elemento do meu grupo, espero que
Omar não te fira muito para poderes depois lutar com fulgor ao meu
lado.
- Não serei derrotado pois a mão de Deus está do nosso lado.
O sarraceno não respondeu lançando o punhal para dentro do
círculo, mas Thiago não o apanhou, deixando-se permanecer imóvel de
pé dentro da circunferência.
Aos urros o colosso negro entrou no terreno de combate sendo
saudado pela multidão aos gritos. Sem entender porque Thiago não
agarrava o punhal foi avançando lentamente para o adversário com a
cimitarra descaída tentando adivinhar o que o oponente iria fazer.
Passados instantes o espanto espalhava-se no rosto dos
circundantes, o punhal como munido por uma mão invisível subia e
rodava no ar sem ninguém a segurá-lo. Diversas expressões de
assombro assomavam no meio da turba e o temor tomava conta dos
bandoleiros.
- Alá protege-os!
- Ele é mágico.
- Será um novo profeta?
O punhal subira até ao tecto da gruta, e depois de gerar a
admiração geral, voltava a descer. Trémulo de terror Omar acabou por
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sair do círculo e deitou-se por terra colocando a testa no pavimento,
enquanto os elementos do bando assustados voltavam-se para Ibn
Maqdisi, esperando a reacção do chefe, que num acesso de fúria
atirava terra com a sandália para cima das costas do petrificado negro.
Uma barreira de fogo obrigou-o a recuar, fazendo-o cair de costas no
chão, enquanto alguns elementos da populaça começavam a prostrar-se
por terra.
Thiago agarrou no punhal e dirigiu-se para o salteador que ainda
deitado colocou o braço a tapar os olhos pensando que o cristão o iria
matar, porém o jovem puxou-o para cima ajudando-o a levantar-se e
entregou-lhe de seguida a arma. Mais sereno, Ibn Maqdisi voltou a
sentar-se no tapete aonde estivera antes do combate e inquiriu.
- Quem és tu? És um novo profeta, iremos seguir-te para onde nos
mandares.
- Não sou profeta e quero que deixes a vida de salteador.
- Roubamos para sobreviver, a maioria do meu bando são pessoas
que viviam pacificamente, mas os elevados impostos fizeram com que
lhes confiscassem as casas e campos, deixando-os na miséria. Somos
uma turba imensa, apesar de mal armada.
- O dey de Argel carrega-vos com impostos?
- Não, o cobrador de impostos dele, que tem um exército
particular e maltrata as gentes que não lhe pagam as pesadas taxas que
ele solicita.
- Agora desejo que nos libertes.
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- Assim farei, dar-vos-ei um salvo-conduto, nunca hesites em
procurar-me quando precisares de mim, és um homem justo e bom,
lamento não quereres ficar connosco.
Thiago e os companheiros montaram nos cavalos, que entretanto
lhes entregaram, e saíram do local a galope, embrenhando-se
novamente no deserto até chegarem já de noite a um pequeno oásis
aonde deixaram as montadas a beber num pequeno lago.
Depois acenderam uma fogueira com gravetos e envolveram-se
em mantas para dormirem, todavia Muhammad Holdun não tirava os
olhos do português.
29
- Thiago, irei falar com o meu pai para que te liberte, devo-te a
vida.
Sentado sobre uma pedra a olhar para o fogo e sentindo a frescura
da noite o cristão demorou alguns segundos a responder.
- Nada me deves e ainda não é hora de deixar de ser cativo. Esse
momento chegará, a minha liberdade será no mesmo momento da dos
meus companheiros que vieram comigo no barco.
O muçulmano calou-se. Aconchegando a manta contra o corpo
voltou-se para adormecer. A chama da fogueira transformou-se em
cinzas e passado um tempo todos dormiam ao relento sob um céu
estrelado e uma Lua reluzente.
VI.
Durante cinco meses Thiago serviu fielmente na casa de
Muhammad Haldun, e pouco a pouco a amizade enraizou-se. Apesar
da estima do amigo, o português passava longas horas em meditação,
cheio de saudades, os momentos passados com Ângela faziam-no
suspirar e o coração enchia-se de nostalgia.
Uma tarde o maometano chamou o companheiro e apresentou-lhe
uma lista de bens necessários ao quotidiano.
- Parte amanhã para Argel, tenta arranjar-me estes produtos no
mercado, e cuidado com os ladrões que abundam nos bazares.
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Thiago recebeu a lista e guardou-a entalando o papel no shall, um
cinto de pano apertado na cintura.
- Serás acompanhado por dois homens e que a paz de Alá te
guarde.
- Regressarei o mais cedo possível.
Muhammad Haldun bateu palmas despedindo o companheiro
ficando a observar Thiago vestido como um autêntico mouro.
No dia seguinte bem cedo, os viajantes partiram e após uma
jornada calma avistaram o casario da cidade desenhando-se no
horizonte sem nuvens.
Acotovelando-se com o povo, entraram numa ruela comprida
aonde as lojas mais ricas estavam dotadas de pequenos alpendres. Num
ruído ensurdecedor, aqui e além os comerciantes sentados em esteiras
com as pernas dobradas conversavam e negociavam indiferentes ao
calor tórrido.
Ferreiros, trabalhando ao ar livre em forjas improvisadas, faziam
saltar milhares de faíscas tomando o metal a forma de inúmeros
objectos como alfaias para a agricultura, ornamentações e utensílios
para as habitações. A multidão começou a afastar-se quando som de
guizos e de ferraduras a baterem no chão de pedra começou a
aproximar-se. Curiosos, os três homens, acercaram-se para verem
passar o personagem que de forma tão pouco discreta anunciava a sua
passagem.
Inesperadamente uma negra ao tentar passar a correr em frente da
comitiva tropeçou numa pedra e estatelou-se na calçada sendo
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prontamente socorrida por um servo que apesar dos esforços
desesperados não a conseguiu erguer de imediato. Dois soldados que
iam em frente do séquito aproximaram-se, um deles começou a
chicotear o par provocando a reacção do escravo, sendo prontamente
neutralizado pelos restantes guardas e apenas a voz de um árabe
montando um belo cavalo branco, ricamente ajaezado, evitou correr
sangue na calçada. Entretanto a negra Fátima erguia-se e lamentava a
situação crítica de Rodolfo.
O dey de Argel, chefe supremo da cidade, que comandava o
grupo, bem-disposto dirigiu-se para ela sob o olhar atento da multidão.
- Posso mandar matar o teu companheiro pois ousou defrontar os
meus guardas.
Pálida a moça tremia ao ver os janizaros, puxarem os cabelos de
Rodolfo provocando-lhe queixumes de dor.
- Eu intercedo no julgamento!
O dey de Argel voltou a cabeça colérico para ver quem ousava
entrar no diálogo sem cerimónias, mas os olhos abriram-se de espanto
ao ver uma galinha a falar e a encaminhar-se para ele. Estupefactos, os
circundantes olhavam para aquela intrometida que parecia não notar a
atenção de que era alvo.
- Por eu ser uma galinha não implica que eu não possa defender o
rapaz.
Amedrontado o dirigente mouro observava espantado o animal,
enquanto a populaça envolvente se chegava mais perto para ver o
32
fenómeno resultando de seguida uma imensa confusão que os jovens
aproveitaram para escapar do local.
Passados instantes penas da galinha voavam em todas as
direcções e os “vigilantes” acompanhados por cães usavam bastões
para conter a confusão.
Thiago e os acompanhantes correram atrás dos amigos e passado
pouco tempo paravam para conversar. Fátima abraçou carinhosamente
o cristão.
- A tua intervenção não podia ser mais oportuna, lamento
perderes a galinha.
- Não te preocupes, compro outra.
- Nós viemos comprar alfaias a Argel e mantimentos. Por pouco
matavam-nos.
- No entanto o destino juntou-nos uma vez mais. Cuidado com os
maus encontros como o anterior.
- O pai de Muhammad adoeceu gravemente, avisa o filho quando
regressares para ele ir junto do leito. O nosso amo libertou-nos, apenas
quando ele falecer abandonaremos a casa.
Entretidos a conversar não viram algumas dezenas de janizaros,
os turcos que constituem a guarda pessoal do dey, rodeá-los.
Apanhados de surpresa sentiram uma sensação desagradável quando o
chefe supremo de Argel, no alto do seu corcel branco e gracejando lhes
perguntou.
- Continuamos o nosso julgamento? Agora desejam uma ovelha
ou um asno como vosso defensor?
33
VII
As urbes costeiras do norte de África aliciam o estrangeiro
sensibilizando-o para o ambiente que transparece, como se o visitante
incauto se visse subitamente num dos contos das “Mil e uma noites”.
Os raios de Sol atravessam um céu sem nuvens e os telhados
rasos das habitações apresentam uma brancura sem igual, que
contrasta com o vermelho acastanhado da paisagem e o cinzento das
sombras. O mar azul do Mediterrâneo fornece um colorido misterioso,
as ondas alvas e frágeis banhando suavemente montículos dourados de
areia, rivalizam em colorido com o branco das habitações.
Palmeiras e tamareiras esperneiam-se pelo infinito, e em qualquer
mesquita um muezzin chama os crentes às orações do alto de um
minarete, um bedéi conversa com um vendedor de kilims, belos
tapetes bordados em paragens longínquas.
Os comerciantes interrompem por vezes as azáfamas habituais,
voltados para Meca cumprindo o ofício da oração sentados nos
calcanhares e baixando a cabeça tocando com ela no solo.
Sem oferecerem resistência os novos prisioneiros do dey
seguiram para o palácio de Jenina, residência oficial do senhor de
Argel, e enquanto Fátima e Rodolfo eram guardados numa cela
especial, Thiago e os dois companheiros foram conduzidos a um
subterrâneo imundo, com infiltrações de água, dividido em pequenas
celas de grossas grades nas janelas.
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A noite chegou e o silêncio envolveu a cidade, estrelas brilhantes
no céu sem nuvens cintilavam, anunciando uma noite calma.
Um guarda segurando uma travessa com peixe seco, cebolas e
pão, entrou na cela colocando o jantar sobre uma mesinha de madeira
ruída pelo caruncho. De barbicha e cabeça rapada, aonde boiava um
fez, o islamita vestia de negro e o bigode cortado no centro fazia
lembrar os de um gato.
- A tua mulher ainda se encontra doente?
O chaveiro maometano esfregou os olhos, incrédulo parecia que
as noites mal dormidas o faziam ter alucinações, o peixinho na
travessa interrogava-o sobre a doença da esposa que o preocupava
tanto. Acercou-se da mesa e duvidou se o cansaço não lhe estava a
pregar partidas até que sentiu uma forte dor na nuca e caiu
inconsciente no chão.
Thiago com a perna de um banco acertara em cheio na cabeça do
muslim e acompanhado pelos outros prisioneiros escapuliu-se pelos
corredores sem resistência.
O alarme soou tardiamente, quando o homem ainda quase
inconsciente foi apresentado ao dey, o cristão percorria as ruelas
populosas de Argel. Furioso por o acordarem a uma hora inoportuna o
chefe dos muçulmanos da cidade inquiriu o trémulo guardião prostrado
à sua frente.
- Como fugiu o cristão?
Acariciando ainda a nuca dorida pela pancada o guarda explicou
as estranhas circunstancias da fuga.
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- Meu amo, eu ando preocupado em virtude da minha esposa ter
adoecido a semana passada. Esta noite ao entrar na cela com o jantar, o
peixe na travessa perguntou-me como estava a saúde dela.
Os acompanhantes do dey como em coro começaram a rir-se,
observando incrédulos o desgraçado, porém o comandante de Argel
manteve-se sério, retirou algumas moedas de prata de uma bolsa e
lançou-as para junto do vigia.
- Se apanhares os prisioneiros vivos recebes o dobro dessas
moedas.
Despedindo todos os que se encontravam no salão, o dey voltou
para o quarto não conseguindo adormecer, pois temia fazer mal a um
mago tão poderoso e desejava a permanência dele em Argel. No dia
seguinte iria pedir aos outros prisioneiros para lhe trazerem o cristão
para uma missão melindrosa.
VIII
A morte do pai de Muhammad Haldun abalara muito o jovem
islamita que com relutância acedera em acompanhar Thiago ao palácio
do dey de Argel.
A recepção discreta dispensada aos dois amigos culminou com
um pedido estranho do chefe muçulmano.
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- Os meus espiões detectaram uma conspiração para me afastar
do poder, e segundo tudo leva a crer, parece ser o angariador de
impostos o responsável pela conjuração. Preciso da vossa ajuda.
- Porque não o prende?
- Sem ele tomar uma iniciativa será difícil. Ele goza do apoio de
alguns dos corsários, enquanto não se opuser frontalmente receio que
ao prende-lo acabe numa guerra civil.
Um barulho ensurdecedor chegou-lhes aos ouvidos, a porta da
sala abriu-se, repentinamente o angariador de impostos à frente de um
numeroso grupo de apaziguados irrompeu na sala. A pronta
intervenção de um pequeno grupo de janizaros proporcionou a fuga
dos três homens por uma porta secreta do palácio de Jenina, e passados
alguns momentos cavalgavam para fora da cidade seguindo o dey.
Decorridas algumas horas, o desolado chefe supremo de Argel,
seguido de Thiago e Muhammad Haldun chegava a uma fortaleza que
se mantivera fiel ao muçulmano. Desmontando os corcéis entraram
numa sala sobriamente mobilada, aonde nas duas varandas se podiam
ver dois canhões voltados para o mar.
- Para reconquistar o trono preciso de dinheiro e homens. Deixei
os meus bens em Argel, vai ser difícil reaver o trono sem a ajuda de
mercenários pois aqui tenho poucos soldados fiéis.
- Meu senhor, todos te estimam.
- Os corsários são hábeis lutadores e com o angariador de
impostos a chefiar os meus súbitos a cidade sofrerá muitas injustiças.
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Uma ideia relampejou na mente de Thiago, perante surpresa
geral, e sem dizer uma palavra saiu do forte a galope. Alguns dias se
passaram, mas numa tarde o português regressou ao convívio dos
amigos.
- Dey, um numeroso grupo de homens espera as tuas ordens para
marchar sobre Argel.
O sarraceno saiu da sala para o exterior. Em frente da fortificação
várias centenas de berberes vestidos de negro, com espingardas e
cimitarras ameaçadoras acolheu-o aos gritos.
Ibn Maqdisi o foragido, saiu do grupo, desmontou o belo cavalo e
dirigindo-se ao líder da cidade disse.
- Durante muitos anos pilhámos porque devido aos elevados
impostos obrigaram-nos a abandonar as nossas terras e famílias.
O dey de Argel colocou a mão sobre o ombro do fora da lei e
murmurou.
- Tardiamente observo as injustiças.
- Meu amo, uma só palavra tua e todo este imenso povo está
disposto a morrer por ti. Hoje mesmo, se quiseres poderei juntar
milhares de camponeses e lavradores dispostos a combater o
usurpador. O teu inimigo também é o nosso.
- Dentro de uma semana regressarei ao meu palácio. Que Alah
vos ajude na tarefa de angariar mais combatentes e seja misericordioso
convosco. A vossa lealdade será recompensada.
O Sol escondia-se no horizonte e os guerreiros dispersaram aos
gritos pelas montanhas que ficaram iluminadas pela luz das tochas.
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IX
Em Argel, os rebeldes festejavam ainda a subida ao poder do
angariador de impostos, hidromel trazido clandestinamente do norte da
Europa, corria pelas canecas dos corsários e ciganas agitavam-se
dançando ao som de músicas frenéticas.
Foliões ouviam “mudahhik” contarem anedotas, grupelhos
assistiam a lutas de galos treinados especialmente para estas alturas
festivas, e em alguns becos jovens de olhos esbugalhados eram
espectadores atentos de marionetas enquanto comiam guloseimas.
A praça principal estava engalanada com bandeiras, criados
assavam cabras em brasas para insaciáveis apreciadores de carne. Os
animais previamente sangrados por judeus, como manda a doutrina
muçulmana, tostavam nos gigantescos espetos.
O angariador de impostos, rodeado de apaziguados, saíra do
palácio de Janina e num largo contemplava os saltimbancos mandados
vir expressamente do Cairo para a festa em honra da sua tomada de
posse.
O ruído do aço das cimitarras soou num bazar próximo, como
demónios, os berberes e alguns janizaros travavam uma sanguinária
peleja com os corsários. Habituados a não terem de suportar longos
combates em terra, os apoiantes do antigo servidor do dey em breve
tentavam se refugiar nos barcos, contudo os rais, ou chefes supremos
dos navios, impediam a sua entrada e acabavam por ser aprisionados
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Regressado ao palácio, já controlando a situação, estando o
usurpador com correntes, o chefe dos crentes reconduzido ao poder
chamou os amigos disposto a recompensar todo o apoio prestado
durante a odisseia.
- Ibn Maqdisi percorrerá os campos, analisará a situação dos
camponeses e devolverá as terras, aqueles que tiveram de sair delas
por não terem podido pagar os pesados impostos.
Satisfeito com a nova tarefa o antigo foragido agradeceu,
ofereceu uma indumentária berbere a Thiago, saindo depois do salão
acompanhado de numerosa comitiva. O dey chamou em seguida
Muhammad Haldun e segurando num anel ofereceu-o ao vassalo
perante ruidosa aclamação.
- Serás o novo angariador de impostos, quem me teme, temer-te-
á, e quem me respeita, respeitar-te-á.
Comovido abraçou o amigo voltando-se finalmente para os dois
cristãos.
- Lamento a vossa partida, contudo sei do vosso desejo de
regressarem ao reino de Portugal. Mandei tripular um barco e
representarão a minha nação junto da vossa pátria.
- Não seremos atacados pelos corsários?
- Não. Os corsários não são piratas, pilham sob o pavilhão de
Argel os barcos dos nossos inimigos. Os rais, tomaram o meu partido e
são de inteira confiança.
Despedindo todos, o dey ofereceu a Thiago e Rodolfo inúmeras
preciosidades como prova de gratidão, colocou seis janizaros como
40
guarda pessoal deles, mas para os dois a maior jóia esperava-os em
Lisboa. Nessa noite não dormiram e Thiago lembrava-se ainda do
beijo trocado à porta da casa de Ângela.
X
El rey D. Afonso V, foi um dos monarcas portugueses com maior
reinado na História de Portugal. Teve o cognome de “O Africano”
pelas conquistas que fez no norte de África, nomeadamente as tomadas
dos fortes e das cidades de Alcácer Ceguer, Anafé, Arzila, Tanger e
Larache.
Foi um rei batalhador, tendo inclusive no final do seu reinado,
Portugal sido invadido pelos monarcas espanhóis sendo derrotado por
aqueles, que mais tarde se chamariam de “Os Reis Católicos”, na
batalha de Toro.
Quando recebeu Thiago, tinha sido batido pelos castelhanos e
aragoneses há pouco tempo, por isso ansiava por concórdia e qualquer
tratado de paz era sempre bem-vindo.
A viagem de Argel para Lisboa tinha sido rápida, com ventos
favoráveis, contudo os barcos na altura tinham de estar de quarentena
no porto de desembarque, em virtude da peste. Naqueles séculos esta
doença era um enorme flagelo, não havia remédios eficazes, a forma
mais comum de a evitar era deixarem preventivamente os marinheiros
41
nos barcos, durante um certo período de tempo para terem a certeza de
que não eram portadores da enfermidade.
O monarca era um indivíduo corpulento, de longas barbas e
depressivo, o que veio a originar poucos anos depois a entrega do
trono, ainda antes da sua morte, ao seu herdeiro e futuro rei Dom
JoãoII.
Sua majestade honrou os visitantes recebendo-os no salão real,
privilégio concedido aos raros diplomatas das nações poderosas que
lhe apresentavam as credenciais. Thiago, entrou no aposento vestido
com o traje berbere que Ibn Maqdisi lhe oferecera, com a pele
queimada pelo Sol tórrido do deserto estava irreconhecível e dois
janizaros ladeavam-no fazendo-lhe a guarda.
- Sois o novo embaixador de Argel?
- Sim, Alteza Real.
O rei estava de costas para os recém-chegados quando tinham
entrado no compartimento, olhando uma pintura exposta na parede,
contudo ao ouvir falar correctamente português voltou-se curioso e
admirou aquele forasteiro altivo que com garbo o encarava.
- Ouvi dizer que sois um poderoso feiticeiro, serias queimado
vivo se fossem outras as circunstâncias, por feitiçaria, mas tratando-se
de um diplomata de uma nação amiga, terás a minha protecção.
- Obrigado meu rei.
- Que contrapartidas pretendes para assinares o tratado? Sei que
és livre de colocares todas as alíneas no acordo que pretendes, o teu
dey tem enorme confiança em ti.
42
- Não haverá cláusulas, apenas o respeito e a amizade entre as
duas nações.
- Sois hábil, a negociar. A minha vida aproxima-se do fim, já me
esforço a andar, quero que o tratado seja célere na assinatura.
O rei sentou-se no trono e encostou-se para trás olhando com
interesse para os três homens à sua frente. Thiago retorquiu sorrindo.
- Vossa majestade devia ter feito o que lhe disse o médico que
faleceu, andar menos na montada e mais a pé.
O monarca pareceu ser atingido por um raio, imediatamente os
guardas secundaram-no, porém ele mandou-os afastarem com um
sinal.
- Além de feiticeiro és vidente. Gostaria que vivesses aqui no
paço, serias ricamente recompensado.
- Obrigado meu rei, mas já tenho uma pequena habitação aonde
pretendo viver. Não sou adivinho, várias vezes ouvi essa
recomendação ao meu pai quando ele aqui vinha.
O soberano levantou-se do trono e devagar caminhou para o novo
embaixador de Argel tentando o reconhecer. Depois com um sorriso e
num sussurro interrogou.
- Thiago?
- Sim, meu rei.
Dom Afonso V correu então a abraçar o jovem efusivamente,
depois puxou-o para junto do trono indo pessoalmente buscar uma
cadeira para o moço se sentar ao seu lado.
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- Lamento a morte do teu pai. Mandei indagar aonde te
encontravas contudo tinhas desaparecido misteriosamente.
- Foram muitas as aventuras depois disso.
- Quero saber todas. É uma ordem real. Serás tu a fazer o tratado,
conheço bem a tua honradez, apenas colocarei o selo real.
- Obrigado, majestade.
- Quero recompensar-te. Esse tratado para mim é muito
importante.
- Vou aceitar a vossa oferta, pretendo prender um bandido que se
apossou do poder em Porcel depois de assassinar barbaramente várias
pessoas.
- Vais ficar com uma guarda que te irá acompanhar para essa
missão, dar-te-ei um salvo-conduto, nesse documento também ordeno
para que sejam cumpridos todos os teus desejos. Quem levantar a
espada contra ti será o mesmo que ousar defrontar-me.
Dom Afonso V ainda escutou atento algumas das façanhas dos
aventureiros e continuou a insistir com eles para residirem com ele,
mas as saudades do lar e de Ângela, superiorizaram-se à honra de sua
alteza real.
XI
A velha casinha de Ângela mantinha a singeleza de outrora e a
rapariga recebeu os jovens de modo comovente. As faces radiantes
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mantinham a frescura do passado e o corpo gracioso não sofrera a
erosão do tempo, continuando com a vivacidade de um gamo.
- Ângela, amanhã eu partirei para Porcel na minha última missão.
Rodolfo pousou a mão no ombro do amigo e exclamou na sua
voz calma e jovial.
- Encontras a felicidade nesta casa, sabes se Molina, a tua mãe
adoptiva, ainda vive?
- Não sei. Dom Maximiano ocupa um lugar usurpado com
derramamento de sangue inocente.
- Acalmai o vosso ódio, não vos posso reter. Fátima e Ângela
manter-se-ão nesta casa até ao vosso regresso.
- Partirei apenas acompanhado pelos meus janizaros e pela
custódia real.
Todas as tentativas de Rodolfo para que Thiago permanecesse
resultaram vãs e os meios de persuasão das mulheres ficaram sem
resposta por parte do filho do conde de Porcel.
No dia seguinte o jovem partiu para a aldeia natal com o
propósito de reaver o património da família pilhado por Dom
Maximiano e castigar o culpado pelo acto. A jornada decorreu sem
problemas e a bela paisagem de Porcel irreconhecível para o jovem
deslumbrou-o pela subtileza do colorido.
Sem temor por andar vestido como berbere, deixou os guardas
numa estalagem e resolveu vaguear por aqueles pinhais sozinho
deixando a montada escolher o itinerário. Uma velha camponesa de
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roupas negras como carvão, andrajosa e de pele marcada pelo tempo
interrompeu os pensamentos do jovem.
- Moço, compras um coelho acabado de abater?
Um sobressalto invadiu-o quando reconheceu Molina, quebrada
pela idade estendendo o coelho pardo na sua direcção. As faces magras
da mulher reflectiam a fome por que passara nos últimos anos, e os
braços frágeis, certamente sobrecarregados pelos trabalhos pesados do
campo, haviam escurecido com o Sol e com a chuva.
- Ofereço-te seis moedas de prata para me deixares pernoitar na
tua casa.
- Viajante, és meu hóspede, não quero o vosso dinheiro para
dormires no meu casebre.
- Insisto em pagar as seis moedas.
Sem reconhecer o rapaz, Molina aceitou guardar o dinheiro num
bolso, agarrou no pau aonde se apoiava começando a dirigir-se para o
lar seguida do cavaleiro que entretanto desmontara levando o cavalo
pelas rédeas.
A tarde caia, um pequeno cão recebeu-os abanando a cauda
satisfeito, as ovelhas remexiam-se e uma cabra esforçava-se por comer
uma erva renitente em sair da terra.
O casebre, humilde e acolhedor possuía como mobiliário uma
cama com cobertores várias vezes remendados, uma mesa de madeira
e duas cadeiras torturadas pelo caruncho. Uma lareira acesa servia de
lugar para aquecer uma panela enegrecida pelos toros e gravetos
queimados.
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- Retira o turbante e aquece-te ao lume. Apesar de seres infiel,
para mim continuas uma criatura de Cristo, quero o teu bem-estar na
minha casa.
Thiago obedeceu e puxou de um pequeno banco de pinho com
três pernas para junto do fogo da lareira.
- Em cima da mesa está uma boa aguardente e copos, bebe
enquanto preparo o coelho para o nosso jantar.
- Gosto do coelho com batatas.
A velhota informou com mágoa apontando ao mesmo tempo para
um saco.
47
- As batatas deste saco pertencem ao senhor de Porcel. Ele
aguarda um nobre de Lisboa, um amigo do rei e lançou novos
impostos em géneros para o receber ricamente.
- Não imaginas a alegria que dom Maximiano vai ter ao receber o
tal amigo de sua alteza real.
Depois de gracejar, o moço levantou-se do assento, agarrou no
saco, retirou uma dúzia de batatas e colocou-as no turbante dando-as
de seguida à idosa.
- Não temas, ele louvará a tua gentileza para comigo.
Receosa, Molina aceitou as batatas deitando-as na panela do
jantar aonde o coelho e os legumes já ferviam. Um cheiro agradável
alastrou na sala recompensando a anfitriã pelo esmero com que se
esforçava na confecção da refeição.
O barulho súbito de galope sobressaltou-a, a porta abriu-se
violentamente com um pontapé dando passagem a dois esbirros de
Dom Maximiano.
Um acolhimento inesperado sob a forma de uma vassoura voando
sozinha recebeu-os, e os homens fugiram espantados perante o terror
de Molina. A mulher à janela observava os guardas aterrorizados
fugirem a correr enquanto Thiago continuava calmamente a beber o
cálice de aguardente.
- Senhor, dom Maximiano virá furioso quando lhe relatarem o
que aconteceu e a forma como acolhemos os seus homens. Vós
fizestes bruxaria.
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- Não gosto de ser interrompido enquanto como e nada receeis
boa mulher. Espero que ele regresse tão depressa como fugiram os
seus acólitos.
A noite alastrou e Thiago recordou os tempos passados na
companhia da velha feiticeira e do médico do rei. Os acontecimentos
passavam-se incrivelmente rápidos e a hora do castigo soara.
XII
O som das ferraduras de cavalos a baterem no pavimento acordou
os dois, e fortes batidas na porta quebraram a monotonia do alvorecer.
Um homem robusto de longa barba branca assomou primeiro à janela e
depois dando passos largos entrou sem cerimonias no casebre.
- Bruxa, serás queimada viva pelo teu acto.
Dois guardas avançaram prendendo Molina cumprindo as ordens
de dom Maximiano.
- Soltem a mulher.
Thiago enfrentou o assassino e a voz poderosa impressionou o
nobre pela altivez do tom.
- Quem sois vós para contrariares as minhas ordens?
- O enviado do rei.
Os esbirros recuaram ao verem o selo real num documento nas
mãos do jovem soltando de imediato Molina que se refugiou
prudentemente a um canto.
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- Esta mulher negou-se a pagar o contributo e fez um acto de
bruxaria.
- Não, quem correu com os teus soldados fui eu, queres ser tu a
acusar-me de um acto de feitiçaria? Ela alojou um enviado do rei, os
teus apaziguados invadiram a casa durante o meu descanso.
Ninguém ousara enfrentar o nobre, e este pela primeira vez sentiu
medo ao ver o intrépido representante do monarca que ditava a lei
naquele momento. Thiago ordenou, colocando a mão na bainha da
espada.
- Abandonemos a casa e deixemos Molina com os seus afazeres.
Logo virão trazer-lhe roupas pois será minha convidada de honra no
jantar.
Saindo de casa ouviram o som de trombetas e viram chegar a
coluna dos guardas reais encabeçada pelos seis janizaros que
procuravam Thiago. Ao verem os soldados de dom Maximiano
imediatamente cercaram-nos, apontaram-lhes os mosquetes,
desarmaram-nos, e deixaram-nos presos num moinho gasto pelo
tempo.
Thiago montou a cavalo, acompanhado do traidor partiu à
desfilada com a guarda atrás em direcção ao palácio. Grupos de
camponeses davam passagem aos cavaleiros, com as colheitas no auge,
todos os braços ajudavam nas tarefas.
- Belos campos.
- Os meus domínios estendem-se até estas terras.
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- Mentes. Estes campos pertencem ao filho do conde a quem
usurpastes o poder assassinando-o de forma vil bem como a restante
família.
Reconhecendo Thiago e cheio de furor, o facínora desembainhou
a espada avançando contra o moço que se desviou do golpe atirando o
adversário ao chão. Um camponês que estava perto ao ver caído o
causador de tantas desgraças não hesitou e trespassou-o com uma
forquilha.
Gritando vivas a Thiago o povo pretendeu ajudar expulsar os
últimos lacaios de dom Maximiano, no entanto não foi necessário o
apoio, porque sem o chefe, resolveram prudentemente fugir para outras
localidades
Algumas semanas depois Ângela visitou a vila e ainda hoje na
praça principal, uma lápide recorda o casamento dos dois apaixonados.
Quanto a Molina, nunca mais quis abandonar o casebre,
ofereceram-lhe um burrinho e todas as semanas lhe é enviada lenha e
mantimentos. Diz o povo, que em noites de Lua cheia a podem ver
buscando alecrim, salva e arruda nos campos, para afastar os maus
olhares e manter a paz na vila.
FIM
51
EM TERRAS DO LEVANTE
I
As estrelas cintilantes salpicavam graciosamente o firmamento
imenso como se um antigo gigante, num acesso de furor, houvesse
partido uma bola de fogo espalhando-a pelo céu em inúmeras
partículas. A Lua desenhava um riacho de luz no mar e algumas
nuvens negras surgiam fantasmagóricas tapando por vezes o luar
naquela zona do Mediterrâneo.
Um pequeno veleiro com a bandeira portuguesa acelerou o
andamento em direcção a um grandioso djonk, ferozmente armado de
canhões e hasteando o terrível pavilhão de Argel.
Os marinheiros muçulmanos com perícia saltaram para o veleiro
cristão prestando homenagem aos dois europeus, que de sorriso nos
lábios, rapidamente subiram por uma escada de corda para o barco
mouro.
- Que a paz de Alá vos siga!
Um árabe com a pele queimada pelo Sol quente de África saudou
os homens convidando-os a penetrarem numa sala ricamente
ornamentada de tapetes de Damasco e jóias da Pérsia.
- Thiago e Rodolfo, o meu coração transborda de alegria ao estar
de novo na vossa presença.
- Sentimos o mesmo, a felicidade de reencontrar um irmão.
52
Abdul Hauqal bateu palmas e um criado entrou com um cesto
cheio de frutas deliciosas depositando as tâmaras e laranjas no tapete,
saindo de seguida deixando os antigos companheiros sozinhos.
- Meus amigos, o apelo que vos dirigi reveste-se do maior
segredo, poucas pessoas sabem da sua razão e significado.
- Dey, tens chefiado sabiamente os teus súbitos, só temos
recebido da tua parte manifestações de estima, conta-nos o teu
problema para podermos ajudar-te.
- Vou ser breve. Durante os últimos três anos os inimigos dos
nossos povos moldaram uma conspiração diabólica e desejam uma
guerra entre as nossas nações.
- Como podemos contrariar os seus planos.
O chefe supremo de Argel não respondeu de imediato a Rodolfo,
pensativo deixou que o fumo do cachimbo de cobre se filtrasse na água
antes de continuar a falar.
- Há muitos anos, horas antes da conquista de Meca pelo profeta
Maomé, uma estrela surgiu no firmamento e encaminhou-se para a
cidade sagrada.
- Um meteorito?
- O profeta interpretou o fenómeno como um sinal de Alá, e ao
findar a batalha um crente achou no meio da areia uma pedra
incandescente que foi levada para a mesquita, sendo durante muitos
anos visitada por gerações de muçulmanos. Uma noite roubaram-na
sendo acusado do furto um dos muitos judeus que viviam na cidade,
contudo jamais a voltaram a encontrar.
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- Qual a relação entre a pedra e o solicitares a nossa presença?
- Segundo maometanos escorraçados de Tequilla, uma povoação
perto de Sevilha, um nobre castelhano comprou a pedra a um
proprietário de terras. Necessito que me acompanhem para a tentar
reaver.
- Desejas a nossa ida ao reino de Castela para recuperar a pedra?
- Sim. O nobre, dono da mesma, isolou-se do mundo e será muito
difícil receber alguém.
- E se depois de a nossa ida o meteorito permanecer em Tequilla?
- Rebentará a guerra. A comunidade árabe organizará um
exército invadindo o reino de Castela.
- Quanto tempo nós temos para reaver esse talismã sagrado?
Abdul Hauqel contou com a ajuda dos dedos e respondeu sério.
- Duas semanas.
- Devemos então partir o mais cedo possível, o tempo é escasso
para esse empreendimento.
- Irei convosco. Os meus cidadãos ainda falam das partidas de
Thiago.
Gracejando Abdul Hauqal recusou os pedidos dos cristãos para
ele continuar na sua cidade quando iniciassem a perigosa estadia em
solo do Levante. A curiosidade de Abdul Hauqel vencia a prudência e
a temeridade derrotava a precaução.
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II
Desde cedo que um movimento desusado em Tequilla anunciava
o dia do mercado. Vendedores de lã, artesãos e peixeiras gritavam as
virtudes dos seus produtos a clientes ciosos das suas moedas.
Perto do cais recheado de botes, o chão arenoso da praça do
mercado cobria-se de pó das serrações de madeira, de naturais da
localidade, de foliões de longínquas paragens e algumas crianças sujas
perseguiam cães esqueléticos cobertos de insectos.
Sobre a muralha do porto os três amigos observavam o
movimento da feira e a azáfama dos pescadores estendendo as redes
para o dia seguinte as lançarem ao mar.
Gritos de angústia despertaram-nos do lazer ao observarem uma
pequena multidão em agitação no centro do mercado. Rápidos,
dirigiram-se para o aglomerado e com horror viram uma mulher
andrajosa presa a um poste sob o Sol tórrido.
Thiago agarrou no ombro de um navegante que observava a cena
com indiferença questionando-o.
- Porque amarraram esta mulher?
- Roubou ovos.
- Qual vai ser o castigo?
O velho marinheiro olhou primeiro espantado por o forasteiro
não saber as penalizações da terra e depois satisfeito com o aspecto do
rapaz respondeu com ares de sabedoria.
- Cem chicotadas!
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- A pobre mulher morrerá com um número tão elevado. Uma
penalização desumana para uma pequena infracção.
O embarcadiço encolheu os ombros continuando a admirar a
velhota que tentava soltar as cordas que a mantinham presa. Escapando
aos guardas, o dey procurou ajudar a mulher, contudo um chicote
estalou e ele voltou-se para ver uma mulher montada a cavalo, vestida
de negro, de faces belas e ameaçadoras.
- Sai da frente.
Abdul Hauqel permaneceu entre a velhota e a amazona,
começando os curiosos a afastarem-se receosos.
- Sai da frente para eu bater nessa ladra.
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O mouro, impávido não arredou e a opositora furiosa dançou o
chicote no ar chicoteando com violência o árabe ferindo-o na cara.
Sereno o muçulmano de início manteve-se mudo e depois falou
pausadamente pela primeira vez.
- Não matarás esta mulher enquanto eu viver.
Receosos os espectadores da cena olhavam para os dois
intervenientes do diálogo formando partidos. O cavalo da amazona
esgatanhou na terra e em seguida ao sentir as esporas da dona no
ventre partiu à desfilada saindo do largo.
Pálida, a velhota deixou Abdul Hauqel desatar as cordas que lhe
roíam os pulsos e beijou as mãos do benfeitor.
- Senhor, desafiastes uma feiticeira terrível. Brígida não te
perdoará teres desobedecido às suas ordens em público.
Sem prestar atenção às palavras da anciã, Abdul Hauqal seguiu
com os amigos para fora do mercado. Uma taberna convidativa
lembrou-lhes que a hora do almoço tinha chegado. Um ruidoso grupo
bebia na taberna ouvindo um cigano de lenço na cabeça, que
acompanhado por um bandolim cantava um amor perdido algures
numa estrada.
- Quais os vossos planos para descobrirmos a pedra?
Rodolfo inquiriu os companheiros chamando em seguida o
criado para os servir.
- Devemos procurar alguém que nos informe. Perguntaremos aos
habitantes da terra.
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- Não podemos cair em ciladas, se alguma vez nos perdermos o
local de reencontro será nesta taberna.
Um indivíduo de fartos bigodes ouviu a conversa e sentou-se sem
cerimónia à mesa dos três amigos.
- Procuram algo?
- Sim, uma pedra que para nós tem muito valor, uma pedra negra
roubada por judeus e tudo indica encontrar-se nesta vila.
O homem sorriu satisfeito e pediu uma cerveja ao taberneiro.
- Eu sei aonde ela se encontra.
Entusiasmados assaltaram o desconhecido com interrogações
sobre o novo dono do amuleto religioso.
- Precisaremos de ter cuidado, o dono da pedra não sabe do seu
real valor. Cautelosamente poderemos fechar o negócio.
Combinado novo encontro com o estranho, receberam a morada
de um mercador que morava num forte e com discrição abandonaram a
casa de pasto dirigindo-se para a rua apreciando a noite cálida.
III
Uma fogueira ardia no descampado a alguns metros da estrada
poeirenta apinhada de jumentos e peregrinos que em grupos
palmilhavam os quilómetros em silêncio, uma turba humana imensa de
mendigos andrajosos, camponeses de vestimentas rudes, feirantes
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carregando ruidosos utensílios, todos aspirando tantos objectivos como
o número das suas almas.
A tarde descia suave no horizonte, uma fita alaranjada prometia
novo dia de calor sem vento como se Deus penitenciasse já os crentes
preparando-os para o advento dos misticismos.
Thiago colocou a panela sobre as chamas e removeu o conteúdo
dos recipientes com uma colher de pau provando em seguida.
- Delicioso. O carvão aviva o paladar.
Os companheiros não responderam entretidos a avistar um
monge com um capuz que lhe encobria os olhos e se aproximava do
grupo.
- Posso descansar na vossa companhia?
Sem aguardar uma resposta, o clérigo sentou-se numa pedra
descalçando as sandálias de couro sujas e suadas. Rodolfo ofereceu ao
recém-chegado um prato de sopa convidando-o a chegar-se ao grupo.
- Repousa amigo. Um bom jantar reforçará as energias para a tua
missão.
- Podemos seguir juntos em peregrinação. As vicissitudes da vida
são inúmeras, os livros sagrados apelam à penitência e à pobreza,
porém nunca senti vocação para eremita.
- Procuramos a concórdia sob a forma de uma pedra. Ao alcançá-
la evitamos derramamento inútil de sangue inocente.
- Venturosos aqueles que buscam a paz.
Interessado pela missão dos companheiros o monge fazia
diversas perguntas tentando ajudar aqueles que de forma generosa o
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acolhiam no acampamento. Subitamente, o pequeno grupo de pessoas
desviou o olhar observando receosa uma dezena de cavaleiros no
horizonte.
.- Soldados castelhanos.
Thiago de pé, protegendo os olhos, transmitia aos companheiros
o grito de alerta. Indiferente, o religioso esclareceu.
- Andam à procura de pessoal para o exército real. Se descobrem
um condenado enviam-no como remador, os vagabundos que caiem
sob a sua alçada são obrigados a seguirem como expedicionários e são
os primeiros da linha da frente das batalhas, se recuam são abatidos
pelos que vêm atrás.
- Não os receias bom monge?
- Não me metem medo. Temor é uma palavra inacessível ao
vocabulário do meu passeio divino.
Ao constatar a presença dos quatro o comandante dos militares
caminhou na direcção deles parando a escassos metros.
- Estão presos. Em nome do rei devem seguir-nos até à aldeia de
Circe para um interrogatório.
A majestosa figura do clérigo levantou-se. Perdido entre os
companheiros e os tropas, as palavras brotaram gélidas da boca
imóvel.
- Nunca seremos detidos, segue em paz e que Deus te
acompanhe.
Furioso, o comandante da soldadesca esporeou a barriga do
cavalo que soltou um relincho de dor partindo à desfilada. Ao chegar
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perto do monge desembainhou a espada e num golpe violento atingiu a
cabeça do adversário com tal rudeza que perdeu o equilíbrio caindo
por terra. Um murmúrio de receio envolveu o séquito ao contemplarem
a vítima. O golpe da arma rasgara parte do capuz que descaíra pondo à
vista uma cabeça de pedra.
- Maldito demónio.
Recuperando a espada o castelhano aproximou-se amedrontado
para junto da figura de granito aonde antes estivera o religiosos até
surgir nova metamorfose, um gigantesco urso negro tomou forma
encarando o comandante, que em pânico saltou para a montada
fugindo atrás dos aterrorizados acólitos.
O dey de Argel procurou o urso que desaparecera deixando no
local uma rosa branca sobre o hábito do monge caído sobre a terra.
- Brígida. Certamente foi ela quem vestia o hábito do monge
procurando acompanhar-nos, mas a aparição imprevista dos soldados
desmanchou-lhe o plano.
- Terrível o poder dos seus feitiços.
Rodolfo enxergava a nuvem negra no horizonte resultante da
cavalgada dos fugitivos. Ninguém se atreveria a os perseguir depois da
narração do caso, a não ser a Inquisição, a odiosa mão sangrenta do
monarca para confiscar bens para os paupérrimos baús reais. Acendeu
uma tocha na fogueira para o ajudar na tarefa de dar de beber aos
animais. A Lua já se distinguia na abóbada celeste como uma alva
boca risonha no azul claro do firmamento. Ao contemplar aquele
61
sorriso astral tão franco, Rodolfo sossegou na certeza de uma noite
tranquila.
IV
No dia seguinte, logo pela manhã procuraram a casa indicada
chegando a uma pequena fortaleza guardada por temíveis guardas de
feições duras e sabres afiados.
Uma pesada porta de ferro abriu-se, entraram num átrio sendo
desarmados e transportados para celas nauseabundas cobertas de
líquenes, coito de numerosas famílias de ratos.
Surpreendidos pela recepção, não ousaram defender-se e sem
resistência deixaram Abdul Hauqal ser arrastado para a ala direita da
fortaleza, enquanto Thiago e Rodolfo entravam num calaboiço já
habitado por um indivíduo pálido e magro.
- Traíram-nos.
Thiago, amargurado pelo destino olhava de relance para os
companheiros de infortúnio.
- Como os apanharam?
Um prisioneiro franzino, andrajoso, de longa barba, depois de
longas semanas de solitária reclusão procurava saber pormenores sobre
os novos companheiros. Rodolfo inteirou-o dos objectivos da
expedição e como haviam sido surpreendidos.
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- Seremos vendidos como escravos em África. Caíram nas mãos
de traficantes, o vosso amigo árabe será transportado para um país não
muçulmano sofrendo igualmente às mãos desses marginais.
- Como poderemos sair?
- Impossível. O forte possui muitos soldados bem armados.
- Não percamos tempo. Pensemos como fugir daqui.
O outro cativo abanou a cabeça esmorecido agarrando com
ambas as mãos as grades.
- A pedra que procuram está nas mãos de um mercador que a
comprou ao conde de Tequilla, pai de Brígida, a mulher que o dey
defrontou no mercado. Só ele tem riqueza para a comprar.
Os dois amigos olharam incrédulos para o homem deixando-o
continuar a falar.
- O conde de Tequilla permaneceu muitos anos solteiro,
caminhava muito gostando de passear a cavalo pelos campos. Um dia
viu uma mulher extremamente bela e casou com ela, só mais tarde
sabendo que havia desposado uma terrível feiticeira.
O companheiro de desventura voltou a sentar-se num pequeno
banco e olhou pela pequena janela da cela antes de continuar.
- Um ano as colheitas perderam-se, o povo amotinou-se
responsabilizando a bruxa pela desgraça. Invadiram o solar e mataram-
na, a muito custo o conde salvou Brígida que era a filha deles sendo
nessa altura ainda criança. A partir dessa data o conde de Tequilla
nunca aparece em público e Brígida persegue ferozmente aqueles que
infringem as leis tornando-se numa justiceira sem piedade.
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Thiago e Rodolfo ouviram com muita atenção a narrativa,
passados alguns minutos um carcereiro trazia para a masmorra um
bocado de pão e água.
- Queremos falar com o teu chefe.
O guarda inicialmente não prestou atenção aos homens, mas
como os prisioneiros insistiam prometendo-lhe farta recompensa,
conduziu os três a uma sala ricamente decorada com duas armaduras
vazias, junto às paredes, servindo de ornamento.
Um homem de longas barbas, escoltado por indivíduos armados
até aos dentes recebeu-os num cadeirão de madeira trabalhada.
- Desejam falar comigo?
Thiago destacou-se do grupo parando em frente ao barbudo que o
observava curioso, coçando a barba rala e mal cuidada.
- Sim, vamos sair e não queremos ferir ninguém.
O castelhano soltou uma gargalhada e os lábios finos tremiam
quando falou.
- Loucos, como pensam vencer os meus soldados?
Subitamente as armaduras saltaram, como munidas por seres
invisíveis saíram dos lugares e começaram a dirigir-se para os guardas
que bateram em retirada horrorizados deixando o atónito chefe
sozinho. Thiago agarrou no malvado que tremia e sacudiu-o com
força.
- Arranja depressa quatro cavalos e solta o árabe que entrou
connosco.
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Sem deixar de estremecer o malfeitor agarrou num pequeno sino,
abanando-o com força. Um criado acorreu receoso a cumprir as
ordens.
Passados instantes o carcereiro regressava transtornado com o
pavor estampado no rosto.
- Senhor, um mascarado entrou na fortaleza, matou alguns dos
nossos homens e soltou o mouro. Um terrível espadachim que apesar
de ser ferido num braço conseguiu levar de vencida quem lhe fez
frente.
Intrigado, Rodolfo aproximou-se de Thiago e perguntou em voz
baixa.
- Quem será o salvador do dey?
O amigo encolheu os ombros não respondendo. O chefe dos
traficantes dos escravos, muito abalado, voltara para a cadeira e
lamentou.
- Saiam, desde a vossa chegada que a má sorte bateu à minha
porta.
Rapidamente atravessaram os corredores da fortaleza e pouco
tempo depois o cheiro saboroso da maresia salientava-se ao odor do
bafio do forte. Sem perderem tempo tomaram a direcção da taberna.
Uma sensação extremamente desagradável percorreu o corpo do
traidor, quando viu a entrada das vítimas da cilada que armara na noite
anterior.
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- Não me castiguem. Amanhã devo deixar a vila, o chefe
obrigou-ma a abandonar esta terra como castigo, por não ter cuidado
com quem levo à sua presença.
- Sabes do paradeiro do nosso companheiro?
- Prenderam-no no largo do mercado.
- Qual o motivo?
- Responsabilizaram a feiticeira Brígida pela escassez de peixe.
O sarraceno tentou libertá-la e também ficou cativo. Amanhã serão
ambos julgados e condenados.
Cansados e felizes por saberem o local aonde Abdul Hauqel se
encontrava resolveram ir descansar. No dia seguinte pensariam numa
solução para o soltarem.
V
Ao amanhecer a população da vila enchia por completo o largo
do mercado para presenciar mais um julgamento que se tornara um
acontecimento bastante comum na vila. A terrível Brígida tinha sido
responsabilizada pelas pescarias infrutíferas, o mouro por a tentar
libertar, tendo o veredicto dos juízes consistido na pena por
enforcamento de ambos e para o efeito, duas cordas penduradas pelos
algozes balançavam ao vento.
O povo recebeu os condenados aos gritos e o rufar dos tambores
assinalou a solenidade do momento. Sem resistência a feiticeira e o
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dey deixaram que lhes colocassem os laços em volta do pescoço sendo
atadas cordas aos pulsos. Subitamente duas pombas brancas pousaram
nas cabeças dos condenados provocando murmúrios na assistência
alarmada pelo estranho fenómeno, contudo o juíz ainda assim ordenou
o prosseguimento da execução da pena até ser assaltado por inúmeras
gaivotas que provocou a debandada do ilustre magistrado.
Receosos, temendo outras atribulações imprevistas, suspeitando
que os espectadores imputassem tais factos a milagres, os soldados
nervosos soltaram os réus que sem entenderem o que se passava
escaparam rapidamente dos curiosos que se aproximavam.
- Thiago, só podias ser tu, a armar esta confusão.
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Abdul Hauqal abraçou efusivamente o companheiro que se
misturara com a assistência e explicou a razão que o levou à sua prisão
no pelourinho.
- Procurei salvar Brígida quando a prenderam, mas apenas
resultou também a minha detenção.
- Quem te salvou do cárcere?
Um mascarado vestindo uma camisa azul, que apesar de ferido
lutou como um leão matando grande numero de bandidos.
- Sabemos aonde guardam a pedra de Meca. Um prisioneiro de
cela indicou-nos a morada.
- Corramos, pois o tempo urge. Daqui a uma semana devemos
estar em Argel com a relíquia.
Rapidamente cavalgaram em corcéis em direcção ao palacete do
mercador, as ravinas desapareciam sob as patas dos cavalos, coelhos
saltavam à frente deles na estrada. Quando chegaram ao destino, um
corpulento indivíduo segurando um enorme mastim, estava de atalaia
ao portão da residência recusando com determinação a entrada aos
cavaleiros.
- Deixa-os entrar ou mordo-te!
Surpreendido o guarda olhou para o cachorro que o
acompanhava, que parecia falar, e recuou cedendo passagem aos
visitantes. Poucos minutos depois chegavam à presença de um homem
gordo de feições redondas e olhos pequeninos.
- Vendi a pedra hoje de manhã. Tinha-a comprado ao conde de
Tequilla
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- Quem a comprou?
- Um mascarado de camisa azul que apenas o vi de relance e
mandou um criado fazer-me uma oferta irrecusável. Admirados e
desiludidos os três amigos pretenderam sair da sala, mas a voz
possante do anfitrião ressoou naquelas paredes frias de pedra.
Candeias de azeite iluminavam imagens religiosas e o mobiliário
francês contrastava com os ícones trazidos de países distantes.
- Amanhã realiza-se a procissão de São Jorge, em Algoz, uma
aldeia vizinha rica no culto ao santo. Nesse povoado e provenientes de
todo o reino de Castela desembocam peregrinos, muitos milhares de
famílias reúnem-se para comemorar as acções de graças ao padroeiro.
Com um pouco de sorte poderão cruzar-se com o dono da pedra.
Agradecendo a amabilidade do mercador saíram da habitação a
tempo de verem dois camponeses a observarem atentamente o cão do
guarda e a ouvirem as explicações da sentinela.
- O bicho está embruxado.
- Senhor guarda, os cachorros não falam.
- Pela Virgem Santíssima, o animal ameaçou morder-me.
- Impossível.
- Garanto. Os meus olhos não mentem.
Rodolfo, Thiago e o dey montaram nos cavalos e ao passarem
pelo grupo algumas palavras brotaram do focinho do bicho.
- Adeus amigos!
Pálidos os camponeses de joelhos em terra fitaram o cãozinho
enquanto a sentinela com um ar de triunfo interrogava.
69
- Então? Eu não dizia que o cão falava?
VI
A procissão de São Jorge realiza-se todos os anos constituindo
um dos mais importantes acontecimentos do Levante. Durante alguns
dias, velhos soldados franciscanos e lavradores cruzam-se com
vendedores, mendigos e toda a escumalha que desagua na vila.
Coches transportando mulheres com véus tapando um olho
movimentam-se lentamente por entre fidalgos garbosos de espada à
cinta, porte fino e maneiras delicadas. Dois ou três “grandes” de
Castela dão a honra de comparecer e a acompanhá-los inúmeros
criados que dão um colorido especial à festa.
Nos bodegones o vício escorre, os jogadores apenas interrompem
os jogos durante a hora do almoço para irem pedinchar ao mosteiro
mais próximo um prato de sopa, depois irão assistir a uma peça de
teatro ao ar livre ou às corridas de touros habituais durante os dias de
festa. Mudéjares, descendentes dos ancestrais muçulmanos misturam-
se com os cristãos e judeus comungando divertimentos, alegrias e
tristezas.
Desembocando na Calle Mayor, Thiago indicou um «mentidero»,
local de reunião de populares aonde os últimos mexericos e novidades
são relatados pelos profissionais intrometidos na vida alheia.
- Procuremos informações no «mentidero».
70
Thiago secundado por Rodolfo e pelo dey de Argel penetrou
numa sala imunda, não obstante a pretensa riqueza de tapeçarias nas
paredes parecia que todos os malfeitores dos arredores se reuniam
naquela altura. Carteiristas, assassinos e ladrões de gado conversavam
trivialmente sem receio de cuadrilleros que policiavam fora da
estalagem.
Rodolfo procurou o conselho de uma criatura magra, um rufião
de longa capa, chapéu de abas largas com plumas, cota de malha,
espada à cinta e a camisa traindo por baixo uma pistola.
- O homem indicado para lhes dar informações será o “São
Pedro”.
Com gestos altivos e espaventosos indicou um velhote
melancólico, de terço na mão, cabelos brancos encaracolados, olhos
chupados, que murmurava palavras ocas. Sem demoras Rodolfo
sentou-se ao lado do ancião saltando à vista um molhe de chaves de
todos os feitios.
O velho malandrim levantou os olhos não demonstrando espanto
ao ver os estranhos que se sentavam ao pé dele.
- Sou Pedro, no entanto o povo baptizou-me de “São Pedro” por
trazer sempre um terço e estas chaves que me servem para entrar em
casas alheias.
- Procuramos uma pedra e estamos dispostos a pagar por ela
duzentos cruzados.
O velhote observou com interesse o desenho que lhe
apresentavam encolhendo os ombros, desolado.
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- Nunca a vi. Conheço todas as casas das redondezas, assalto
todas as noites para roubar apenas o indispensável para comer.
- Procuramos em Algoz um nobre vestindo uma camisa azul.
- Esses dados são muito vagos. Uma infinidade de soldados,
nobres, gentis-homens e fidalgos vestem camisas azuis.
Um rumor e o som de ferros de espadas chegou aos ouvidos dos
três amigos sendo Rodolfo o primeiro a compreender a situação.
- Uma rusga.
Fugindo pela porta das traseiras chegaram a uma rua poeirenta de
arcadas cobertas de toldos, as casas térreas intercalavam com pequenas
lojas de tijolo e barro. Pequenas imagens, decoradas com flores e velas
gastas, pareciam ter vida tal o talento dos artistas ao pintarem os
azulejos.
- Qual o rumo a seguir?
Thiago de espada em punho interrogou os amigos ainda a
recomporem-se da corrida. Repentinamente viram-se cercados de uma
dúzia de feições rudes e um dos frequentadores dos “mentideros”
destacou-se do grupo.
- Qual dos três leva os duzentos cruzados?
Sem pestanejar Thiago dirigiu-se para o salteador de gibão de
couro, armado com um bastão de ferro.
- Eu levo uma bolsa.
- Passa para cá as moedas.
- Não podemos porque nos faz falta o dinheiro.
72
Espantado, o assassino olhou para os companheiros ao ouvir as
palavras do interlocutor, as faces começaram a ficar roxas e cheio de
fúria avançou com o bastão para o adversário, mas subitamente soltou
um grito de dor deixando cair o ferro no chão agarrando a mão dorida.
Pálidos os bandidos observaram no pavimento o bastão ficar
incandescente, acto continuo começaram a recuar lentamente fugindo
por fim a correr deixando o comparsa nas mãos do antagonista.
O som de guizos e um coro rompeu o silêncio, as temíveis
bandeiras da Inquisição dobravam a esquina e avançavam para eles.
Em frente um sacerdote com uma flecha ao alto seguido de duas filas
de encapuçados de longas túnicas com cores diferentes representando
as respectivas confrarias, os capuzes sinistros ocultavam os rostos
contrastando com os desgraçados que os seguiam escoltados por
guardas de longas lanças.
- O Santo Ofício.
O bandido estremeceu e o terror transpareceu no rosto ao
reconhecer um dos condenados que fazia parte do grupo.
- Apanharam o “São Pedro”.
Com dificuldade os três companheiros avistaram o velhote com
quem tinham conversado horas antes. A procissão parara perto de um
nicho e enquanto o clérigo que vinha à frente orava, o “São Pedro”
baixara-se, com a mão friccionava os tornozelos e limpava o suor do
rosto que em bátegas lhe escorria pela testa.
Rodolfo aproximou-se de Thiago e inquiriu angustiado cheio de
pena do ancião.
73
- Não podemos deixar que estes malandros o enviem para o
patíbulo.
- Somos apenas três e eles são muitos.
O bandido de gibão chegou-se ao pé deles dirigindo-se com uma
cortesia a Rodolfo.
- A minha espada está pronta a acompanha-los.
Thiago agradeceu a inesperada generosidade do salteador e a sua
mente trabalhava com afinco a descobrir uma saída para a situação. De
repente sorriu e todos se aproximaram curiosos.
- E se mandássemos o “São Pedro” mais cedo para o céu?
Rodolfo e o dey soltaram uma gargalhada calculando a nova
partida do amigo, mas o salteador recuou aterrado.
- Não matem o meu pai!
- Teu pai? Então foi ele que te avisou que transportávamos as
moedas?
Cabisbaixo o fanfarrão calou-se, olhando entristecido para a
lúgubre procissão.
Algo inesperado aconteceu, enquanto os mais piedosos da
comitiva se ajoelhavam, outros blasfemavam e gritavam, correndo de
um lado para o outro nervosos. O ladrão aproximou-se da comitiva não
acreditando no que os seus olhos viam, “São Pedro” sem compreender
o que lhe sucedia subia para o céu distanciando-se já alguns metros
acima do solo.
A confusão generalizou-se, os outros condenados depois de se
recomporem do estranho fenómeno aproveitavam a oportunidade para
74
fugirem pelo labirinto de ruas, não obstante os guardas vociferando
uns com os outros os perseguirem.
Lentamente o velhote pousou em cima do telhado de um
mosteiro e após se agarrar desesperado às telhas começou a berrar para
o retirarem de tão incómoda posição.
Rodolfo e Abdul Hauqel riam da cena, o salteador após instantes
de hesitação desapareceu deixando o ferro no chão de areia.
- Nunca passei momentos tão divertidos.
O dey sentara-se num degrau ajeitando o cinto da espada em
forma de meia-lua de que nunca se separava.
- Apesar de os nossos esforços serem debalde até ao momento,
valeu a pena a vossa companhia nesta viagem até terras do Levante.
- O tempo urge. Como poderemos encontrar o mascarado da
camisa azul?
- Se soubéssemos de quem se trata seria mais fácil a nossa tarefa.
Um moço de bigode farfalhudo, cabeça redonda repousando
sobre uma lechuguila ou gola espanhola sob uma armação de arame,
aproximou-se e interpelou os amigos.
- Posso ser útil?
De capa negra, chapéu de feltro com abas largas contendo
plumas e gibão justo enchumaçado com um produto mole, o
desconhecido demonstrava alta estirpe e convivência social elevada.
Rodolfo encarou o castelhano com curiosidade pela forma intrépida
como se lhes dirigiu.
- Ouviu a conversa?
75
- Sim. Ia a passar e não o pude evitar.
-Procuramos um mascarado com uma camisa azul, é dono da
pedra que queremos obter.
- Se quiserem conduzo-os a ele.
- Como sabe ser o mesmo?
O homem não respondeu logo, mas o sorriso cativante exprimiu
confiança ao grupo.
- As notícias espalham-se depressa.
O cavalheiro com gestos de fino recorte balanceava as mangas da
túnica e pela prontidão de movimentos demonstrava que há anos usava
os calções e pantorrillas que trazia. Sem dar explicações dobrou a
coluna numa vénia cerimoniosa, pedindo para o acompanharem. De
passo largo percorreram longas ruas sujas até chegarem a uma casa de
pedra aonde sobressaia um escudo sobre a porta de entrada. As
sentinelas afastaram-se dando passagem para uma sala solarenga e
arejada, predominavam quadros de pintores castelhanos e flamengos
famosos sobre as paredes caiadas, em baixo esteiras de esparto
rodeavam o compartimento, à medida que caminhavam o ladrilho
rugia sob os pés, os santos e beatos observavam-nos do alto com os
olhos de pedra nos nichos.
Os sofás de veludo convidativos emergiam de tapetes persas e
pequenos baús de marfim dispersavam-se sobre móveis caros dando
uma atmosfera confortável, não sendo alheio um braseiro de cobre.
Um vulto de camisa azul, de costas, à distância alguns metros, olhava
76
para as traseiras da mansão através de uma janela, possivelmente para
um repuxo colocado no centro de um jardim verdejante.
O dey de Argel sentiu um nó na garganta ao reconhecer aquela
figura majestosa que dias antes o libertara das masmorras dos
traficantes de escravos. Um frade na sombra observava atentamente os
recém-chegados, apenas o fogo dos candelabros iluminavam
timidamente a face meio oculta pelo capuz. Tossiu duas vezes para
chamar a atenção do auditório.
- Sabemos da vossa missão e como humildes servos de Cristo
devemos ajudar aqueles que procuram a paz.
77
- Precisamos da pedra para manter a concórdia entre os nossos
povos.
O clérigo indicou o misterioso espadachim e esclareceu.
- Escondemos em lugar seguro a vossa relíquia.
Baixando a cabeça o frade aguardou que o estranho personagem
que durante o diálogo se mantivera de costas voltadas quebrasse o
silêncio.
- Bem-vindos.
Ao ouvir as palavras e reconhecendo a voz, o dey saltou
agarrando o braço do espadachim.
- Brígida.
O nome da jovem feiticeira soou uníssono pela sala, um grito de
dor acompanhara o gesto de Abdul Hauqal, as feições da moça
contraíram-se ao sentir a mão do muçulmano agarrar-lhe no braço
ferido.
- Brígida, arriscaste a tua vida para me salvar.
- Deixa-me. Estás a magoar-me.
Confusos os visitantes não sabiam qual a reacção a empreender,
por fim Rodolfo encarou o religioso exclamando.
- Não saímos sem a pedra.
O frade atiçou o braseiro, apontando para uma porta de longos
trincos cobrindo uma madeira de veios salientes.
- Entendo perfeitamente a vossa intransigência. Podeis tomar as
vossas refeições na sala ao lado e disponibilizarei quartos para
dormirem esta noite.
78
As mangas largas do hábito ocultavam as mãos quando o
anfitrião agarrou uma tenaz de ferro atiçando as cinzas quentes…
- Sei que lutam contra o tempo.
Brígida mais calma dirigiu-se a Abdul Hauqal e murmurou.
- A pedra regressará no vosso barco a África, mas ser-vos-á
entregue quando embarcarem.
Resolveram aceitar a hospitalidade da feiticeira e do monge para
pernoitarem naquela casa, e no dia seguinte os cavalos partiam à
desfilada em direcção a Tequilla. As tórridas planícies pareciam
sufocar ao Sol e camponeses de pele tisnada, ainda descendentes de
mudéjares, os antigos muçulmanos integrados nos novos reinos
cristãos, apascentavam tranquilamente rebanhos de cabras e ovelhas
indolentes mastigando ervas queimadas pelo astro-rei.
A noite surpreendeu o grupo no caminho e um oportuno
acampamento de ciganos garantiu companhia aos aventureiros. Um
desconhecido de raça calé explicou a razão da caravana.
- Seguimos para Tequilla. Os cuadrilleros prenderam um dos
nossos reis e milhares de ciganos dirigem-se para a vila.
- Vão tentar a libertação dele?
- Sim. Ramiro, o nosso rei matou um salteador de estradas que
possivelmente lhe queria roubar os dentes de ouro. Vão executá-lo
mesmo sem julgamento.
- Nessa luta morrerão muitos homens de ambos os lados.
O cigano com um gesto de desprezo respondeu a Rodolfo
mostrando a faca afiada.
79
- Podemos morrer contudo Ramiro será libertado.
Uma bailadeira saltou para dentro de um círculo de ciganos,
ensaiou uma sarabanda revolvendo a cabeça soltando os cabelos em
desalinho. Ao compasso das castanholas, tamborins e de uma viola,
enlevada dirigia olhares provocadores ao dey de Argel que a
contemplava curioso.
Thiago encheu um copo de vinho e bebeu um gole antes de mirar
o cigano.
- Se ajudarmos a soltar Ramiro posso contar com o vosso apoio
quando sairmos de Tequilla?
O interlocutor não retirava os olhos da mulher que dançava e
respondeu rudemente ao português.
- Sim, se alguém ajuda um cigano pode contar que toda a tribo o
secundará quando estiver em dificuldades.
As estrelas testemunharam o pacto. Musica e danças duraram
toda a noite, porém os viajantes pareciam jamais serem vencidos pelo
cansaço.
VII
Tequilla acordara silenciosa, o ambiente pesado que antecedia os
acontecimentos importantes como o daquele dia, em que a justiça
levava ao cadafalso Ramiro, o rei dos ciganos.
80
De manhã cedo um número invulgar de soldados patrulhava as
ruas e a comunidade cigana comparecia em peso à condenação do seu
chefe.
Ramiro seguia altivo para o cadafalso aonde seria enforcado,
acompanhado por uma forte escolta de cuadrilleros. Sentado em cima
de um burro o carrasco, envergando uma vestimenta negra, era seguido
por um séquito de monges com crucifixos abrindo caminho no meio da
multidão. Enfiado numa túnica branca, de barrete azul, o rei dos
ciganos levava as mãos atadas atrás das costas e um cabresto ao
pescoço. Um pregoeiro gritava o crime, acompanhado pelo juiz que o
condenara e pelo aguazil, sem um queixume, emproado, o réu
observava a população que numa última homenagem lhe deitava
flores.
Chegados ao patíbulo o condenado subiu para cima de um
estrado trepando os poucos degraus de madeira que o separavam da
forca. O carrasco experimentou o nó da corda enquanto um frade num
murmúrio lhe dirigiu algumas palavras piedosas.
Thiago acompanhado dos seus novos amigos ciganos olhou em
volta e verificou se o cavalo se encontrava conforme previamente
planeara horas antes. Num rompante a corda da forca começou a arder,
soltando imprecauções aos soldados, a multidão agitou-se e os guardas
dificilmente continham os populares. Um larápio aproximou-se de
Thiago, roubou-lhe a bolsa com as moedas, golpeou a cabeça do jovem
com um pau correndo em seguida. Assistido prontamente pelos
circundantes o português não recuperou os sentidos e levaram-no em
81
braços para casa de um médico nas proximidades de “Puerta del Sol”,
uma habitação assente sobre pórticos com robustas grades de ferro nas
janelas.
Durante quatro horas, apesar dos esforços do clínico o moço
permaneceu desmaiado sob o olhar atento do dey e de Rodolfo, para
reanimar na precisa altura em que um indivíduo coberto por uma capa
entrava no quarto destapando-se.
- Agradeço a vossa preciosa ajuda.
A chegada intempestiva de Ramiro deixou os presentes
admirados. Com curiosidade Rodolfo encarou o rei dos ciganos.
- Senhor, não sabemos porque nos agradeces pois praticamente
nós nada fizemos para te soltar.
Uma gargalhada saiu da boca do homem que sem cerimónias se
sentou aos pés da cama.
- Uma cigana contou-me os vossos feitos. Espantosa a maneira
como incendiastes a corda, deitastes fogo ao patíbulo trovejando na
altura em que me quiseram executar.
- Ramiro, nós em nada contribuímos para a tua salvação.
- Mentes, quem podia ter poderes para lançar tal pandemónio?
- Brígida. Não sei como ela soube do nosso pacto com os da tua
raça.
O cigano levantou-se temeroso, pouco à vontade observou em
volta e perguntou.
-Brígida? A terrível feiticeira responsável pela morte de tantos
condenados salvou-me a vida?
82
- Sim, não podia ser outra pessoa.
Como um animal enjaulado o cigano andava de um lado para o
outro com as mãos atrás das costas e passo firme.
- Porque me salvou a vida?
- Possivelmente para nos ajudares a fazer sair de Tequilla.
O homem parou cobrindo-se de novo com a capa antes de
responder a Rodolfo. O nariz em bico de águia traia uma firme
decisão.
- Ramiro reconhece as dívidas de gratidão. Toda a minha tribo
vos ajudará a saírem da povoação numa tartana ou chalupa guiada
pelos mais hábeis marinheiros da zona.
- Combinado. Amanhã um bergantim tripulado pelos mais
destemidos corsários de Argel aguarda-nos ao largo da costa.
VIII
O cais de Tequilla agitava-se como normalmente todos os das
vilas costeiras do mar Mediterrâneo. Gaivotas disputavam o peixe
miúdo deixado na praia e os pescadores cosiam as redes com linhas
antes de se lançarem na faina habitual.
Rodolfo preparou a chalupa, convidando Abdul Hauqal e Thiago
a entrarem no pequeno barco que os levaria ao bergantim que se
avistava alguns metros ao largo. Uma cigana aproximou-se e
reconheceram a jovem que estivera a dançar no acampamento.
83
- Gostava de vos acompanhar.
Surpreendidos observavam a donzela de saias longas e xaile por
onde escorriam os longos cabelos negros.
- Vamos para Argel.
- Sei do vosso destino. Li nas estrelas a vossa odisseia e o nosso
futuro cruza-se.
Incrédulos com as palavras da moça ajudaram-na a entrar no
barco e os braços robustos de Rodolfo imprimiram velocidade
invejável à chalupa. Ainda se balanceava nas ondas da praia quando
apareceram soldados a tentar impedir que o barco largasse a barra,
contudo várias dezenas de indivíduos contrariam-lhes as intenções.
Pesaroso Abdul Hauqal olhou para a praia aonde a peleja continuava
sem tréguas.
- Lamento a pedra ter sido roubada e regressarmos sem ela,
porém ganhámos amigos em Tequilla.
Thiago concordou com o dey ao reconhecer Ramiro e os ciganos
combatendo os soldados.
- O rei dos ciganos cumpriu a promessa, logo que estejamos ao
largo fogem e nunca mais os apanham.
Indiferente à luta que se desenrolava no cais que de onde se iam
afastando, a cigana de véu a cobrir o nariz e a boca deixando apenas a
descoberto os olhos, brincava com a espuma das ondas que rodeavam
a embarcação e lhe molhavam a mão morena.
- Dentro de momentos estaremos em segurança.
84
O bergantim aproximara-se atraído pelos tiros e logo os corsários
os auxiliavam a embarcar.
- Dey o teu coração está triste?
Já no convés Thiago observava os olhos melancólicos de Abdul
Hauqal normalmente cheios de vida.
- Sim, não levávamos a pedra e o meu coração ficou em terras do
Levante nas mãos de uma feiticeira.
Thiago não encontrou resposta a dar, contudo uma voz melodiosa
e suave fez-se ouvir sobressaindo ao barulho das ondas.
- Aqui está a pedra sagrada.
Ao Sol, a pedra negra, fruto de tantas aventuras brilhava nas
mãos da cigana que destapou as faces.
- Brígida. Por isso Ramiro não morreu no cadafalso, ouvistes as
nossas conversas no acampamento e nunca nos deixastes.
- Sim. Salvei-o para nos ajudarem a fugir e nunca me
reconheceram disfarçada de cigana.
O dey de Argel depois de pegar o talismã beijou a feiticeira
enlaçando-a. Thiago e Rodolfo prudentemente afastaram-se, apenas o
céu e o mar ofereciam cenário para o par apaixonado.
FIM
85
O MATRIMÓNIO DOS POGGETTO
I
A costa italiana vislumbrava-se no horizonte carregado de cores
vivas. A tripulação do barco retirou a bandeira de Argel para a
substituir pela do duque de Poggetto, uma prudência necessária para
evitar derramamento de sangue inútil.
O barco deslizava pelo mar azul prenúncio de um novo dia
quente, o vento sul abanava as velas arrastando a embarcação para
terra num balancear preguiçoso e morno. Pequenas ondas
esbranquiçadas batiam vagarosamente no casco feito em madeiras
provenientes das florestas suecas, como tributo aos estaleiros de Argel.
Os porões carregavam as provisões suficientes para um mês. O
paiol de pólvora continha o suficiente para alimentar as baterias do
tombadilho salvaguardando a defesa do dey e da comitiva, que
raramente se aventuravam a penetrar no coração do mundo cristão,
eterno inimigo daquelas faces tisnadas pelo Sol e enrugadas pelo mar.
Um homem de porte atlético e maneiras delicadas observava a
azáfama dos marinheiros subindo e descendo aos mastros para orientar
as velas.
- Desembarcaremos dentro de algumas horas.
Thiago admirava a perícia da tripulação escolhida
criteriosamente entre os melhores da pequena cidade de Argel, situada
no norte de África, enquanto Rodolfo observava o céu.
86
Abdul Hauqel olhou sorrindo para o amigo antes de continuar.
- Nunca pensei deixar o palácio de Janina para assistir ao
casamento de um fidalgo italiano, mas jamais recusaria a honra de
assistir ao matrimónio do duque de Poggetto, meu querido amigo e
antigo embaixador de Veneza na minha cidade.
- O teu gesto é louvável. Eu conheci o duque numa recepção,
logo fui cativado pela eloquência das suas palavras e pelas maneiras
delicadas comprovativas de um alto grau de educação. Um nobre
notável que muito contribuiu para a aproximação de homens de raças e
credos diferentes. Ele sempre demonstrou ser um perfeito diplomata
intensificando as relações entre os povos.
- Sem dúvida. Precisamos agora de atravessar regiões em que
apenas podemos contar connosco, terras pertencentes a desconhecidos
que não devem ter a hospitalidade do nosso anfitrião.
- Sim, quando desembarcarmos no porto jamais deveremos
revelar as nossas identidades. Iremos cruzar-nos com inúmeros
cavaleiros que se bateram com guerreiros muçulmanos e muitos
desejariam de bom grado ver-nos encarcerados em frios calabouços ou
até mortos.
- Iremos estar atentos para evitar o pior. Como medida de
precaução este barco foi construído por um polaco, em nada se parece
com as minhas embarcações mouras que cruzam o mar Mediterrâneo.
Em terra seremos acompanhados por seis janizaros que falam
fluentemente a língua italiana. Um pequeno grupo desperta menos
suspeitas do que uma numerosa comitiva.
87
De repente o vigia começou a agitar os braços e a gritar que já se
avistava o porto. Imediatamente todos se prepararam para as
manobras, um pequeno barco a remos deslizou do cais de embarque
rumando em direcção à barca acostando minutos depois. Algumas
escadas de cordas voaram e um corpulento italiano de bigodes
encerados subiu com dificuldade para o tombadilho.
Durante um tempo o homem inspeccionou os papéis oferecidos
por Thiago e depois de inúmeros entraves, quando lhe ofereceram
algumas moedas de prata, mandou a embarcação avançar. O astro-rei
cedera o reinado à Lua quando pela primeira vez Abdul Hauqel
desembarcou na península itálica.
- Necessitamos de retemperar as forças. Vamos primeiro para
uma estalagem prosseguindo amanhã a jornada.
Perto do cais descobriram uma pequena hospedaria apinhada de
homens rudes, que trocavam novidades em voz alta sublinhando as
afirmações com gestos desmedidos Ao entrarem, um criado vestido
com tecido grosseiro e de barrete indicou uma mesa perdida a um
canto, e sem auscultar os clientes trouxe de imediato canecas de vinho.
Na mesa ao lado, um indivíduo vestido com um casaco de capuz
e a cabeça descoberta, narrava aos berros um acontecimento muito
importante que abalava a aldeia naquele momento. Um janizaro
conhecedor da língua italiana apressou-se a informar os presentes.
- Parece que um terrível salteador se encontra cercado pela
guarda numa casa fora da aldeia. Alguém denunciou o seu paradeiro e
88
uma força composta de vinte homens não lhe dá tréguas nem um
momento de descanso.
Rodolfo abriu a boca admirado e interrogou.
- Como pode um homem sozinho enfrentar duas dezenas de
soldados?
- A progenitora parece ser uma terrível bruxa que o auxilia a
defender-se. Durante muitos anos o bandido assassinou vários
viajantes na estrada principal até que agora finalmente vai cair nas
mãos da justiça.
- E a mãe, porque a receiam?
- Nunca contactou com ninguém, vive do que a terra lhe dá
nunca se aproximando de uma povoação. Um dia quando três homens
a tentaram matar, apareceu um animal incrível que a auxiliou a
desembaraçar-se dos inimigos e todos acreditam que foi o próprio
diabo em pessoa a ajudou na altura.
Um silêncio revelador de temor caiu sobre os presentes sendo o
dey de Argel o primeiro a interrompê-lo.
- Quem é esse demónio que pode transformar-se em animal?
Thiago ponderou as palavras antes de responder a Abdul Hauqel
com o seu semblante traindo grande preocupação.
O demo é o mal, temos liberdade nas nossas acções, contudo
muitas vezes o belzebu tenta-nos a praticar as mais incorrectas.
- Seria mesmo o diabo a surgir? Se três homens tentam matar
uma mulher indefesa aparecendo na altura uma criatura será esse
defensor o mafarrico? Ele nunca iria ajudar a senhora em dificuldades.
89
Thiago não disse mais nada. Bebeu o vinho olhando em redor da
sala, entretanto alguns clientes principiavam a debandar recolhendo-se
às respectivas casas.
Depois de saciarem os estômagos todos se dirigiram para os
quartos. Um sono reparador esperava-os antes de seguirem viagem.
II
Um galo oportuno cantou anunciando o princípio do dia e
despertando os hóspedes. O frenesim habitual instalara-se entre os
criados em mais um dia de trabalho.
Depois de ajaezarem os cavalos o grupo atravessou a vila e
entrou na estrada principal contornada por árvores de grande porte. A
manhã apresentava-se perfeita para a jornada. Os cavaleiros
saboreavam o aroma do campo apreciando paisagens desconhecidas
para quem vive normalmente em desertos e urbes. Coelhos
atravessavam o caminho em velocidades impensáveis e lagartos
escondiam-se nas pedras temendo aqueles seres descomunais para o
seu tamanho.
De tempos a tempos os cavaleiros cruzavam-se com carros de
bois que penosamente arrastavam grossos troncos de pinheiros, mulas
de modestos arreios em marcha lenta transportando camponesas com
saias cinzentas, sem casacos e sapatos toscos, ainda adormecidas pelo
calor.
90
Junto a um riacho, um rapaz montando um burro que
freneticamente sacudia a cauda para afastar as moscas, conversava
com uma mulher de cesto pousado sobre a relva que ao ouvir a
conversação do companheiro soltava juvenis gargalhadas acariciando
com a mão o focinho do jerico.
Abruptamente a paz foi interrompida por uma salva de tiros que
pareceu não importunar o casal.
- Depressa os tiros vieram dali.
Um janizaro indicava apontando a direcção, ligeiros entraram
numa clareira a tempo de verem um homem sair de um casebre de
mãos levantadas e ser recebido com uma saraivada de balas que o
postaram por terra. Uma mulher correu atrás da vítima debruçando-se
sobre ela como que a querer protegê-la de nova agressão. Acto
contínuo um soldado destacou-se do grupo aonde se integrava e enfiou
na cabeça da mulher um capuz negro atando-o no pescoço, apesar da
resistência da idosa. Em seguida arrastou-a até uma árvore apontando
o arcabuz para ela.
- Alto!
Thiago gritou a tempo de evitar o assassínio, nem os soldados
nem os janizaros baixavam as armas, mas nenhum dos grupos queria
começar a peleja que se sabia de antemão vir a ser sangrenta.
- Quem sois vós para nos deter?
O capitão dirigiu-se ameaçador para Thiago parando o cavalo
em frente do português.
91
- Sou um convidado para a boda do duque de Poggetto e não
desejo assistir a um crime.
- Esta mulher não passa de uma bruxa.
De repente um animal incrível saltou do arvoredo, os soldados
fugiram aterrados preparando-se o dey, Rodolfo mais o restante
séquito a vender cara a vida. Thiago no entanto desprezou o monstro,
aproximou-se da velhota, abraçou-a e acto imediato o animal
desapareceu como por encanto.
Abdul Hauqel aproximou-se dos dois, ainda de espada
desembainhada, observou o amigo levantando a anciã amparando-a
por um braço.
- Estranha terra aonde os monstros aparecem subitamente e
evaporam-se como a espuma do mar.
- Apenas observastes uma ilusão. Convido-te a procurares no
chão pegadas da fera.
As tentativas do monarca de Argel para descobrir as pisadas
apresentaram-se infrutíferas e escutou o companheiro.
- Presenciastes um caso de hipnotismo colectivo. Lembro-me há
muitos anos quando vivia numa caravana de saltimbancos, um mago
castelhano iludia a assistência levando-a a pensar existir um naufrágio.
Quando despertaram do estado hipnótico, alguns dos mais respeitáveis
espectadores agarravam-se no chão às cadeiras e as mais austeras
damas simulavam nadar na pista.
- Espantoso. Gostaria de ver um espectáculo assim no meu
palácio de Janina.
92
- Infelizmente um conde enforcou-o acusando-o de magia negra.
Sentada numa pedra a mãe olhava tristemente para o corpo do
filho sangrando abundantemente no peito.
- Como te chamas boa mulher.
- De olhos lacrimejantes a velha respondeu a soluçar.
- Marina.
- Preferes ficar ou seguir connosco? Certamente os soldados
regressarão mais tarde.
- Senhor, o meu filho era a única razão que me mantinha fixa
nesta terra fora da lei de Deus, contudo receio transtornar a vossa
viagem.
93
- Veste as roupas do teu filho, monta um dos cavalos dos
soldados abatidos pelo teu filho e acompanha-nos. Ninguém te
reconhecerá.
De novo se meteram ao caminho furando rebanhos de ovelhas e
caçando javalis descuidados que pagavam com a vida a aventura de se
cruzarem com os cavaleiros.
Ouviram histórias fantásticas dos peregrinos, ultrapassaram
monges e descobriram estranhos eremitas em estado de absoluta
santidade, aconselhando as gentes pias dos lugares por onde passavam
a se manter na estrada para o Paraíso na companhia do Bem. Pássaros
inundavam a atmosfera com melodias suaves e borboletas
graciosamente embelezadas pela mão do Criador ornamentavam as
estradas emprestando um pouco de colorido à vegetação.
Quando descia a tarde do segundo dia, aproximaram-se de uma
pequena hospedaria e aproveitaram para abrigar os cavalos em uma
cavalariça entrando numa sala aonde na precisa altura serviam o jantar.
Abdul Hauqel lamentou não haver mesas livres para o grupo.
Um criado solícito acercou-se e com uma grande referência
aconselhou o grupo.
- Uma dama viaja sozinha com dois guardas. Talvez ela permita
que se sentem na sua mesa que é a maior que possuímos podendo a
vossa escolta comer na cozinha.
Rodolfo aceitou a sugestão e acompanhado do dey, de Marina e
de Thiago abordaram a nobre donzela.
- Senhora, permitis que utilizemos a vossa mesa hoje?
94
A jovem olhou para os recém-chegados e depois de os analisar
acedeu com agrado.
- Queiram sentar-se. Gosto da companhia de gentis-homens,
nestes tempos tumultuosos e de trevas, novos amigos são sempre bem-
vindos e mais preciosos que ouro e prata.
Lucrécia apresentava-se deste modo aos seus companheiros,
bastante jovial, em breve parecia ser um conhecimento de longos anos.
O jantar decorreu sem incidentes, a maioria dos hóspedes já se tinham
recolhido quando um grupo de homens armados entrou na sala
forçando a porta de entrada e o que aparentava ser o chefe dirigiu-se
para a moça.
- Acompanha-nos.
De feições transtornadas pelo pavor, a jovem escondeu-se atrás
dos dois homens que a acompanhavam e que se tinham levantado
desembainhando as espadas. Todos na sala se prepararam para a luta,
excepto Thiago que se manteve sentado, porém foi a sua voz que soou
na sala.
- Ela fica connosco!
- Como te atreves?
O gigante que comandava o grupo preparava-se para ferir o
interlocutor, mas uma força invisível segurava-lhe na espada não o
deixando levar em frente os seus intentos. Thiago continuou a falar
calmamente.
- Esta senhora é guardada por inúmeros duendes que enchem a
sala.
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De repente, a sala que alardeava estar vazia começou num
frenesim estranho, canecas andavam no ar transportadas por mãos
invisíveis, tabuleiros com carnes cruzavam-se rapidamente e uma viola
principiou a tocar sozinha, o suficiente para o bando aterrado recuar
saindo em pânico da hospedaria. Dois dos bandidos apavorados tinham
corrido para a cozinha, contudo passados breves instantes regressavam
espavoridos de novo ao salão fugindo de vez do albergue, perseguidos
pelos janizaros com facas nas mãos e coléricos por lhes terem
interrompido a refeição.
Um coro de gargalhadas ecoou no recinto. O dey de Argel
gritava para os seus homens em árabe na frente dos estupefactos
criados que jamais haviam assistido a uma cena daquela natureza.
Thiago continuou calmamente a comer e encarou os amigos.
- Não nos devem tornar a incomodar mais, os meus “duendes” e
os janizaros de Abdul Hauqel devem dar-lhes pesadelos para várias
noites.
Lucrécia sorriu cismática e todos escutaram a sua apreensão.
- Hoje afugentaram os meus inimigos, mas receio cair em novas
armadilhas. Se estes foragidos entraram à vontade esta noite na sala,
sendo recebidos desta maneira, certamente que na próxima tentativa de
me raptarem serão mais prudentes. Certamente pretendem um resgate.
Marina apertou a mão da moça e afagou-lhe a cabeça com
carinho.
- Talvez possas seguir connosco durante algum tempo. Para
aonde ides?
96
- Para o palácio do duque de Poggetto.
Um murmúrio de admiração percorreu os circundantes e Abdul
Hauqal transmitiu a sua ideia perante a aprovação de todos.
- Nós também seguimos para assistir ao casamento do duque,
porque não vais na nossa companhia?
Radiante, com um brilho nos olhos, Lucrécia concordou
satisfeita abraçando Marina e depois de se despedir, subiu com esta as
escadas em direcção ao quarto deixando os homens sozinhos.
- Quem desejará raptar Lucrécia? Podíamos ter obrigado um dos
assaltantes a dizer quem ordenou o sequestro.
- Não nos lembrámos na altura, foi tudo muito rápido,
intensifiquemos as nossas precauções. Eles não nos conhecem e
procuram arrebatar a nossa companheira. Cumpre-nos protege-la como
97
dama e como convidada para o casamento do duque, talvez sejam
salteadores da estrada que apenas a procurassem para a roubar e exigir
um resgate.
O dey de Argel interveio na conversa expondo uma ideia.
- Hoje colocarei um janizaro de sentinela à hospedaria. A
donzela também tem dois custódias, quanto maior o nosso grupo
melhor nos defenderemos durante a jornada.
Todos concordaram e retiraram-se para os aposentos deixando a
hospedaria no mais profundo silêncio. Numa árvore próxima uma
coruja começou a piar, até ao momento em que alguém pegou num
copo com água lançando-o na esperança de a calar. Não a atingiu, ela
esvoaçou afastando-se prudentemente da estalagem deixando apenas o
som do balancear dos ramos dos sobreiros ao vento.
III
Bem cedo o grupo retomou o caminho penetrando no arvoredo
queimado pelo Sol. Rolas voavam em redor e uma águia imponente
picava como uma seta sobre um rato que saltitava procurando abrigo,
ao longe nas montanhas as searas doiradas contrastavam com o azul do
céu.
Passadas algumas horas, o matagal e as rochas davam lugar a um
manto de erva verde sobranceira a uma pequena aldeia enterrada num
vale, servida por um rio que serpenteava duas ou três colinas como
uma cobra metálica adormecida.
98
Lentamente desceram ao povoado chegando a uma feira aonde
os habitantes compravam toda a espécie de utensílios como alfaias,
hortaliças, casacos de lã, tamancos e uma infinidade de bens mudavam
de dono no meio de intenso palavreado. O calor apertava, o pó cobria
as bancas entranhando-se no nariz transmitindo uma sensação
desagradável intensificada pelos odores da praça.
- Parece um sonho.
Lucrécia extasiada pela paisagem, transmitia a ideia geral ao
observarem aquele lugar digno de servir de modelo a um célebre
pintor. Um caminho de areia dirigia-se para o centro da aglomeração.
- Os nativos aproveitam a natureza construindo sólidas
habitações. Reparem que as casinhas são fabricadas com rochas e
pedras semelhantes às que passámos, transportadas por carros de bois.
Todos os habitantes vestiam os fatos domingueiros. Miúdos e
graúdos, de olhos bem abertos, ouviam os feirantes enaltecerem as
numerosas qualidades dos artigos comprados no interior do país e
resgatados agora a troco de algumas moedas, pecúlio economizado
durante o ano para este momento.
A feira realiza-se no sopé do castelo de velhas muralhas
enegrecidas pelo tempo, mas cada vez mais altivas pelos séculos. Os
sons de guizos, palavreados, berros fervilham na praça transformando-
a num grandioso recinto de interesses de circunstância.
Descendo dos cavalos os viajantes abriram dificilmente caminho
no meio da multidão que sufocava, e já se preparavam para deixar
aquele pequeno Inferno, quando um moço saindo apressadamente de
99
uma tenda escorregou caindo desamparado à frente de Rodolfo, que ao
tentar o levantar sentiu a lâmina fina de uma espada encostada nas
costas.
- Deixa-o!
Rodolfo recuou não largando o braço do rapaz, que com o terror
estampado no rosto fitava as faces indiferentes do espadachim, que
certamente habituado a ser prontamente obedecido mostrava-se cada
vez mais agressivo.
- Deixa-o, quero lhe dar um correctivo que nunca mais terá a
ousadia de roubar uma maçã.
Um grupo ávido de curiosidade assistia à cena. Rodolfo sem
deixar de se interpor entre o perseguidor e o perseguido procurou a
bolsa atirando algumas moedas ao homem.
- Leva este dinheiro que te paga o prejuízo.
De modo violento o espadachim lançou por terra as moedas
oferecidas e tentou afastar o opositor, contudo Rodolfo adivinhando a
intenção atirou-o por terra.
- Pagarás com a vida a afronta.
Enquanto o ladrão da maçã fugia o indivíduo pegou na arma
para esgrimir, procurando resolver rapidamente a peleja sem o
conseguir e com o passar dos minutos ia-se sentindo menos seguro.
Um grupo de guardas que passava tomou de imediato o partido do
agressor e em pouco tempo o duelo tomava a forma de uma batalha
campal.
100
Sons de trompetas conseguiram terminar a refrega, um cavaleiro
de barbas brancas acercou-se do grupo seguido de numerosa comitiva.
Depois de ouvir a versão de ambos os grupos desmontou do cavalo e
abraçou Rodolfo sob o rancor do adversário.
- Perdoa o meu filho. Ele usa demasiado as armas faltando-lhe
no entanto a prudência.
- Senhor, recusei-me a assistir a um cruel castigo.
- A bondade inunda o teu coração. Se o meu filho Olasso foi
demasiado severo com o larápio, contigo não respeitou as normas da
cortesia. Desejo que me visites no meu castelo, és forasteiro e eu gosto
sempre de saber as novidades de outros lugares.
- Agradeço a honra da vossa hospitalidade.
Com a reverência o grupo viu o cavaleiro montar o ginete
retomando o caminho interrompido pelo diálogo.
Sem comentarem o sucedido os viajantes gastaram o resto da
tarde na praça e quando desaparecia o Sol no horizonte apresentaram-
se no castelo. Um pajem recebeu os cavalos e um criado convidou-os a
entrar num salão aonde se destacavam uma lareira, uma mesa
excepcionalmente comprida e várias cabeças de javalis e veados
pregadas nas paredes.
- Ainda bem que aceitaram o meu convite, folgo muito em
receber o homem que ensinou a nobre arte de esgrima a Olasso.
Uma gargalhada ecoou na mesa aonde se sentavam os
convidados do conde de Cavalcanti, apenas o filho do fidalgo
continuava a ostentar as feições neutras de sempre. Rodolfo agradeceu
101
o convite do conde apresentando os companheiros. Olasso pela
primeira enrubesceu quando trocou um cerimonioso aperto de mão
com Lucrécia.
A conversa decorreu animada e prazenteira, ficando acordada a
partida no dia seguinte. O filho do conde de Cavalcanti surpreendeu
todos quando encarou o pai dizendo-lhe.
- Amanhã partirei com eles.
Um murmúrio de espanto percorreu a assistência, contudo o
conde ficou pensativo antes de dirigir-se a Rodolfo.
- Tens o direito de recusar a companhia dele, mas asseguro-te
que assim como é precipitado no uso da arma também é leal e ajudar-
vos-á em todos os empreendimentos.
- Não duvido da sua fidelidade e acabas de confirmar as minhas
impressões sobre ele. Amanhã poderá partir connosco, apenas coloco
uma condição.
- Qual?
- Só poderá usar uma arma que lhe será dada por nós.
Olasso ainda esboçou protestar, mas o ar resoluto de Rodolfo
acabou com qualquer possível tentativa de discordância e todos
abandonaram o salão, dirigindo-se para os aposentos a descansarem da
longa jornada.
Uma coruja principiou a piar esvoaçando assustada quando
alguém a tentou atingir com um copo de água, um grito soou no
castelo.
- Raios, fugiu outra vez.
102
Depois caiu o silêncio e a calma voltou a reinar.
IV
No dia seguinte, antes de partirem, Thiago entregou um pequeno
bacamarte a Olasso que resignado o guardou apertando-o entre a
camisa e o cinto. O dia amanhecera sem nuvens e o conde despediu-se
com os olhos raiados de sono, preço de uma noite mal dormida devido
ao festim da véspera.
O som de trompetas anunciou a saída dos convidados que se
encontravam no adro do castelo do conde de Cavalcanti, um soldado
ensonado rodou uma manivela para que um pesado mecanismo
baixasse uma ponte levadiça, único acesso da fortificação com o
exterior.
Os pássaros começavam a desbaratar a terra, os moleiros
carregavam enormes fardos em direcção aos moinhos cruzando-se com
pedintes, aventureiros e comerciantes vindos de toda a Itália para a
feira, mulheres fiavam fios de linho que cuidadosamente guardavam
em cestos de verga transmitidos de geração em geração.
A planície de trigo desapareceu dando lugar a um espesso
matagal cujos gravetos arranhavam as pernas dos cavalos e cavaleiros
que avançavam. Um janizaro que ia diante da comitiva com a ajuda de
uma cimitarra abria um pequeno carreiro por onde passavam todos.
Um brado quebrou o silêncio, o grupo estancou o passo e com
horror viram dois possantes javalis investindo contra Lucrécia. Sem
103
perda de tempo Olasso disparou o bacamarte assustando os animais e o
cavalo da jovem que empinou atirando-a ao chão. De imediato o moço
saltou da montada abraçando a donzela aconchegando-a contra o seu
corpo.
- Salvem-na, não a deixem morrer porque a amo.
Espantados rodearam o filho do conde e Lucrécia, sendo o dey o
primeiro a responder-lhe.
- Ela não morre, apenas desmaiou com o susto e com a queda.
Suavemente, Lucrécia abriu os olhos vendo ainda com Olasso a
abraçá-la, sorriu-lhe.
- Gostava que repetisses meu “príncipe encantado” e da mesma
forma as palavras que dissestes há pouco.
Furioso por lhe terem descoberto o sentimento, o rapaz
empurrou rudemente a jovem voltando a montar sob o olhar curioso
dos companheiros.
Ninguém voltou a referir-se ao incidente e durante a viagem
Lucrécia tentou infrutiferamente dialogar com o taciturno pretendente
sem o conseguir.
Continuaram a jornada, num largo surgiu um robusto
camponês a cortar uma cana com uma faca acompanhado de um velho
andrajoso e de feições queimadas pelo Sol. Ao observarem os viajantes
de imediato agarraram em dois arcos com flechas construídos por eles
próprios esperando de forma cautelosa a reacção dos recém-chegados.
Thiago acalmou-os enquanto acariciava a crina da montada e bebia um
pouco de água de uma cabaça presa por uma corda à sela.
104
- Nada temam, estamos de passagem e apenas desejamos
descansar um pouco.
Subitamente o velho correu para Lucrécia que ao reconhecê-lo
saltou do cavalo, abraçou-o efusivamente apresentando depois o
ancião ao cortejo.
- Senhores, eu nunca pensei encontrar aqui o meu pai. Tenho a
certeza que ele vos acolherá condignamente.
Dois coelhos e um javali serviram de banquete e todos
enalteceram o almoço confeccionado pelo camponês, fiel servidor do
pai de Lucrécia.
- Permaneço neste lugar desde que o meu filho partiu para
África. Deixei o meu castelo recolhendo-me neste lugar longe dos
homens e das recordações.
A filha beijou-o no rosto e guardou os magros pertences do pai.
- Desejo que venhas connosco, antes de findar o dia. O meu
coração transborda de alegria por te reencontrar.
Renitente o velho fixava a fogueira aonde os coelhos e o javali
assavam deitando um agradável aroma para o ar.
- Minha filha, acompanhar-te-ei porque me pedes, no entanto
tenho antes uma missão a desempenhar e sem ela não poderei seguir
convosco.
- Diz o que te retém neste lugar?
- Dois aristocratas que vivem nestas terras guerreiam-se há
longos anos espalhando a morte e a desolação por este território.
Todos os anos por esta altura, assinam tréguas por um mês no meu
105
casebre porque me respeitam muito e sentem que sou neutro em
relação aos seus diferendos. Hoje é o dia em que novo tratado de paz
será assinado e enquanto o pacto não for feito não poderei ausentar-
me.
Abdul Hauqal sorriu matreiro inteirando rapidamente o grupo do
seu plano para levar de vez a harmonia aquelas paragens. Todos se
riram às gargalhadas traçando os pormenores. Se tudo corresse como o
previsto nunca mais haveria guerra naquela região.
- Como se chamam os dois nobres?
- Um intitula-se de Barão Verde o outro de Barão Azul.
V
Um carreiro de areia deslizava directo a uma pequena clareira
aonde um homem chorava copiosamente sentado em cima de uma
pedra. Bem constituído parecia ali encontrar-se há longo tempo,
demonstrando não dar pela chegada do Barão Verde acompanhado do
séquito fortemente armado.
- Porque chorais bom camponês?
- Pelas desgraças deste mundo, nobre senhor. Pranto as minhas
desventuras e as do próximo servo de Satanás.
- Porque o segues?
- Ilustre nobre, durante a minha primeira vida terrena, cometi as
maiores atrocidades, desprezei os pobres, amaldiçoei os bons, trocei
106
dos puros e o diabo sabedor dos meus defeitos quando morri escolheu-
me para o acompanhar.
- Pobre alma.
O Barão Verde sorria incrédulo e aproximando-se do indivíduo,
interrogou-o.
- Aonde está esse mafarrico?
- Por cima de ti nobre senhor.
Olhando para o alto o cavaleiro viu com terror um animal
medonho de focinho de cabra, de longos chifres, cauda comprida
terminando em seta e patas de burro flutuando no ar a sorrir com o ar
de espanto do cavaleiro.
A tremer ouvindo os murmúrios de angústia dos seus seguidores,
o nobre olhou para Thiago que se encontrava disfarçado de camponês
perguntando-lhe num sussurro.
- Quem é o próximo servidor do demónio?
Com voz trémula Thiago respondeu-lhe ao mesmo tempo que se
ouvia uma tremenda rizada do alto.
- O Barão Verde, que semeia sangue e chamas como ninguém
pelos vinhedos e trigais lançando o terror nos mosteiros sagrados.
Tremendo de medo, o Barão Verde partiu à desfilada como
perseguido por cem diabos, mal acompanhando a comitiva. Passados
alguns instantes o “Satanás” descia do alto e retirava a mascara de
feições de cabra deixando surgir um rosto bem-humorado.
- Que tal parecia eu vestido de diabo?
107
- Soberbo, Abdul Hauqal, nunca ninguém o representou com
tanta convicção e realismo. Asseguro-te meu amigo que depois da tua
gargalhada pensei que tu eras o próprio Belzebu. Como estará a
decorrer a visita do Barão Azul a Marina?
- Adorava lá estar neste momento.
Algumas centenas de metros afastado daquele local outra cena se
desenrolava com a presença da feiticeira Marina. O Barão Azul
deparava com uma velhinha de aspecto frágil sentada num tronco
caído de uma árvore.
- Sabes que estás numa propriedade particular? Espantas-me a
caça.
Agressivo o nobre colocara a mão no punho da espada e
interrogava Marina que continuava a bordar.
- Eu sei, nobre senhor. Porém faço companhia aqueles
esqueletos que estão além.
O fidalgo espreitou para a direcção indicada e ficou lívido. Vinte
ossadas lutavam entre si sem razão aparente.
- Porque estão a lutar?
- Aquelas ossadas são do Barão Azul, do Barão Verde e seus
seguidores, nunca fizeram outra coisa senão guerrear. Dentro de um
ano, se tudo correr como penso, eles morrerão e aquela visão vai se
tornar realidade.
Pálido o Barão Azul começou receoso a afastar-se de Marina, e a
tremer perguntou.
- Como sabes isso?
108
- Eu sou o Futuro e apenas te estou a dar a antevisão do que vai
acontecer.
Horrorizado o nobre retirou-se nunca mais se ouvindo falar dele.
Há quem diga que se afastou para Roma, mas é impossível confirmar.
VI
Depois de uma viagem muito acidentada, Thiago e os seus
companheiros chegaram ao castelo do duque de Poggetto sendo
recebidos pelo senhor feudal em pessoa.
O átrio estava engalanado de papelinhos multicolores e alguns
convidados visitavam as ameias de onde se podia admirar muitas
léguas em redor. O tempo ajudava a uma boa disposição e o
matrimónio seria celebrado por um cardeal amigo que se deslocara
propositadamente de Pádua para celebrar a cerimónia.
Quando viu Lucrécia o duque de Poggetto desmontou correndo a
abraçá-la expansivamente, contudo um tiro cortou aquela manifestação
de carinho. Olasso cheio de ciúmes disparara e apenas a pronta
intervenção dos homens do duque conseguiram evitar que ele
continuasse a atirar.
- Levem-no de imediato para os calabouços.
Prontamente os soldados cumpriram as ordens, e o duque ainda
meio aturdido pelo acontecimento convidou o grupo a entrar para um
salão. Depois de contarem todas as peripécias da viagem tudo voltou
ao normal tendo a cerimónia do enlace decorrido sem incidentes.
109
- Porque não ficam aqui mais tempo?
Abdul Hauqal explicou a razão porque não podia satisfazer o
pedido do anfitrião.
- Gostei muito da viagem, mas já tenho saudades da minha
cidade.
- Compreendo-te meu amigo. Não vos retenho mais e apenas
desejo um bom regresso a todos.
Soltaram Olasso do cárcere obrigando-o a seguir com uma
venda nos olhos até chegarem a casa do pai.
110
O conde de Calvancanti ofereceu um grande banquete em
honra dos visitantes convidando Thiago para a sua direita e Lucrécia
para a sua esquerda.
- Como decorreu a viagem?
- Bem, porém o vosso filho continua a gostar de pegar em armas.
Olasso baixou os olhos envergonhado e deixou Thiago
continuar.
- Não compreendo porque gosta de usar as armas quando pode
defrontar javalis sem as mesmas.
O moço levantou os olhos espantado parecendo por momentos
querer responder, mas calou-se prudentemente.
- Enfrentou os javalis com um bacamarte em que eu previamente
retirara os projécteis e colocara pólvora seca. Felizmente para ele não
podia utilizar a arma ou teria morto o irmão da noiva dele se eu não
tivesse feito a mesma coisa.
- O duque era irmão de Lucrécia?
Olasso dificilmente continha a admiração olhando para Thiago e
para a noiva.
- Sim. Durante a cerimónia aproveitei a oportunidade para pedir
a mão de Lucrécia para Olasso e tanto o duque como o pai deram o seu
consentimento.
O moço mal refeito da surpresa levantou-se indo radiante
abraçar a jovem.
- Nunca mais hei-de pegar em armas e um dia tenho de ir pedir
desculpa ao duque pelo susto que lhe preguei.
111
Todos aplaudiram o rapaz, o jantar decorreu dentro dos limites
do bom senso, se bom senso é comer três cabritos, vinte coelhos e seis
javalis acompanhados de uma pipa de vinho.
- E o teu pai ficou com o duque de Poggetto?
- Sim, o pai julgava-o morto. O meu irmão passou demasiado
tempo em Argel e ele julgava que ele estaria defunto.
Acabada a refeição todos se foram deitar e apareceu uma coruja.
Uma sorte para ela o copo de água lançado com uma praga não lhe
acertar.
- Bolas, fugiu outra vez.
Depois o silêncio.
VII
O barco deslizou no ancoradouro e a aragem batendo levemente
nas velas pouco a pouco conduziu-o para o mar alto. Abdul Hauqal
falava com Thiago.
- Uma viagem maravilhosa.
- Sim, tudo correu bem, o conde de Cavalcanti conseguiu
convencer o filho a não usar mais as armas, Olasso casou com
Lucrécia e ela convidou Marina para aia oferecendo-lhe um lar.
- O duque de Poggetto encontrou o pai e a irmã. Conheci a Itália
e gostei muito, adorava aqui voltar.
- Podemos combinar nova viagem.
- Sim, dentro de alguns dias chegaremos a Argel.
112
O Sol queimava os braços da tripulação. Os marinheiros faziam
os impossíveis por se livrarem dos raios enquanto manobravam a
embarcação.
- Os nossos amigos janizaros estão a dormir e Rodolfo até
ressona.
- Uma bela viagem, contudo muito esgotante.
- Concordo contigo. Sabes que aprendi a imitar uma coruja?
Abdul Hauqal começou a simular o som do piar da ave,
repentinamente um balde com água voou duma vigia, encharcando-o
todo e ouviu-se a voz de Rodolfo.
- Maldito pássaro, agora apanhei-te.
Thiago soltou uma gargalhada ao contemplar a cara de Rodolfo
assomando à vigia e ao ver o dey de Argel sacudindo as roupas todas
molhadas.
- Não existem dúvidas Abdul Hauqal que reproduzistes
lindamente o piar da coruja.
FIM
113
SÃO JUSTINIANO DE LEPANTO
I
A gruta de Lepanto, situada a escassas centenas de metros da
costa algarvia, constitui um dos locais de peregrinação dos marinheiros
que quando o mar faz perigar as suas embarcações imploram com
fervor o nome de São Justiniano.
Conta a tradição que Justiniano foi um terrível pirata que
assaltava as aldeias ribeirinhas e viu-se um dia metido no meio de uma
tremenda tempestade que lançou a sua embarcação contra os rochedos,
despedaçando-a em mil fragmentos. Aos gritos todos os companheiros
de Justiniano morreram um a um tragados pelas ondas revoltas e
quando este já se preparava para entregar a alma ao Criador viu
aparecer uma cruz em chamas dentro de uma caverna.
Justiniano reuniu as últimas forças nadando em direcção à praia,
e em boa hora o decidiu, pois assomou são e salvo. Depois de
recuperar as forças procurou a gruta vindo a tornar-se um eremita,
vivendo exclusivamente das esmolas e ofertas dos peregrinos das
aldeias circundantes levando uma vida santificada e curando pela fé,
muitos enfermos.
O tempo passou e como um rio, as gentes vizinhas da gruta todos
os anos passaram a dirigir-se para o local sagrado, implorando a
protecção ao santo protecção transformando aquele santuário numa
enorme manifestação de fé.
114
Camponeses, pescadores e negociantes deitaram abaixo as
barreiras sociais que os separavam e caminhan juntos pelas mesmas
estradas ansiando idênticas graças e benesses, partilhando em comum
os haveres.
Quando do aprisionamento de Rodolfo pelos corsários argelinos,
ele prometera a São Justiniano fazer a peregrinação caso regressasse
salvo ao reino de Portugal, e finalmente na companhia de Thiago ali
estava ele para cumprir a promessa.
- Thiago, quanta gente humilde aqui vem pedindo venturas?
O companheiro olhou em redor e observou os campesinos de
barretes garridos agarrados a bordões, repartindo as sopas de legumes
e os pães enegrecidos com pescadores descalços, mãos calejadas e de
camisas esfarrapadas.
- Muitas centenas.
Um velho de barba rala aproximou-se deles. Sentou-se numa
pedra e sem cerimónias entabulou conversa com os dois amigos.
- Infelizmente já não podemos pedir as bênções do santo como
antigamente.
Rodolfo admirado deixou o homem continuar.
- Em tempos não muito distantes, todos podiam sentar-se numa
rocha no fundo da gruta, era nesse penhasco que São Justiniano se
sentava para meditar. Agora apenas alguns o podem fazer.
Thiago interpelou o indivíduo curioso pela revelação.
- Porque não são todos?
115
- O dono destas terras querendo enriquecer à custa da fé alheia
colocou guardas na gruta, apenas aqueles que pagam podem sentar-se
na rocha do venerável São Justiniano. A maioria são pessoas humildes
que não podem pagar ou despender muito dinheiro, por isso ficam
impossibilitados de lá entrarem.
O murmúrio da multidão aumentou quando uma carruagem
escoltada por quadro guardas chegou à entrada da gruta, abrindo-se a
porta para dar passagem a uma senhora idosa acompanhada de uma
jovem. Altivas entraram na caverna, os romeiros receosos afastaram-se
para dar passagem às damas.
Rodolfo chamou a atenção do velho, este com desdém respondeu
à curiosidade do jovem.
- São a esposa e a filha do dono destas terras. A moça sofre de
uma doença incurável procurando todos os anos um milagre que a cure
da enfermidade que a consome.
- Porque não consulta um curandeiro?
O velho abriu os olhos de espanto ao ouvir a pergunta.
- Existem curandeiros conhecedores de plantas mágicas, mas até
ao momento nenhum debelou a doença dela.
Thiago aproximou-se da moça quando ela regressou e subiu para
a carruagem, porém um guarda ameaçador afastou-o com a lança. O
velho agarrando o braço do jovem puxou-o para trás.
- Cuidado, os guardas têm ordens para matar quem se aproxime
demasiado de Lucena.
116
O coche começou a descer lentamente o caminho da encosta e a
populaça pouco a pouco voltou a dispersar-se.
Um rapaz aproveitando a distracção dos guardas que olhavam
para a composição tentou forçar a entrada na gruta, mas foi
barbaramente espancado. Rodolfo ainda o tentou auxiliar, porém a
certa altura os peregrinos agarrando em paus e pedras principiaram a
ameaçar as custódias, que apesar de melhor armados recearam a
multidão fugindo num ápice.
Satisfeitos os fieis entoavam louvores a Rodolfo por os ajudar a
se libertarem dos homens do odiado proprietário das terras.
Durante o resto do dia e toda a noite a alegria transbordou no
acampamento, com o alvorecer notaram aterrados que uma enorme
fileira de homens armados os havia cercado, o conde Manrique, dono
do domínio vinha disposto a vingar-se da humilhação sofrida pelos
seus acólitos.
- Procuro o culpado dos acontecimentos de ontem.
Receosos os caminhantes mantinham-se mudos como as rochas
daquela centenária gruta, testemunha de tantos actos piedosos.
Rodolfo avançou e encarou o conde Manrique sem medo.
- Fui eu que defendi o rapaz dos teus guardas.
- Prendam-no.
Imediatamente Rodolfo viu os seus pulsos amarrados por uma
corda à sela de um cavalo, depois lentamente o nobre seguido dos
demais cavaleiros começou a descer a ladeira com o prisioneiro.
117
II
No salão principal o conde Manrique jantava acompanhado da
esposa e de sua filha Lucena, dispensando naquela noite os habituais
convidados, quando um criado atravessou o aposento e sussurrou-lhe
ao ouvido. De imediato deu ordens na sua voz possante habituado que
estava a ser de imediato obedecido.
- Mandem-no entrar.
Um jovem acompanhado pelo serviçal entrou no salão parando
em frente ao aristocrata.
- Que desejas? Sei que tens o selo do rei, por conseguinte devo
receber-te.
- Chamo-me Thiago, venho pedir-te a libertação do teu
prisioneiro.
- Nunca. Ele defrontou os meus homens e devo puni-lo.
- Peço a tua clemência, ele defendeu um rapaz que estava a ser
barbaramente espancado e nenhum dos súbitos do nosso amado
monarca pode receber tal tratamento.
Os olhos do conde Manrique encheram-se de ódio, levantando-se
dirigiu-se para a porta e apontando para a saída gritou.
- Sai das minhas terras pois quem manda aqui sou eu, não o rei.
Se desejas sair com vida do meu castelo apressa-te.
Thiago manteve-se no seu lugar provocando ainda maior
indignação ao fidalgo.
- Se não sais a bem vais a mal, tragam os meus mastins.
118
Passados alguns instantes três enormes cães irrompiam na sala,
contudo ao aproximaram-se do forasteiro este começou a elevar-se no
ar, apesar dos esforços dos animais para o alcançarem, cada vez ele
subia mais como amparado por uma força oculta. Perante o espanto
dos presentes as lebres que serviam de jantar da família saltaram das
travessas e aproximaram-se dos mastins que ao cheirarem o delicioso
pitéu lançaram-se à desfilada atrás delas saindo do salão, fechando-se
de seguida a porta do recinto.
Thiago voltou a descer e encarou um conde Manrique
estupefacto e a balbuciar entre os dentes.
- Sois um mago?
O moço sorriu, com à vontade agarrou numa maçã trincando-a.
- Não, sou um homem vulgar.
- Sai do meu castelo.
Devagar um criado aproximou-se sorrateiramente do jovem pelas
costas e com uma massa atingiu-lhe a nuca caindo o corpo imóvel no
soalho. O conde contemplou o adversário dando ordens.
- Não o matem, não gostaria de que os enviados do monarca
viessem aqui fazer investigações quando dessem por falta dele.
Cuidadosamente os criados puxaram a vítima para a rua principal
da vila abandonando-a perto de um chafariz.
Passado um tempo Thiago recuperou os sentidos e os seus olhos
mal podiam acreditar no que viam à sua frente. Rodolfo sentado diante
dele esperava que o amigo recuperasse da pancada traiçoeira.
- Pareceu-me que nunca mais acordavas.
119
O jovem acariciou a cabeça dorida, lentamente tentou levantar-
se, mas deixou o corpo permanecer na mesma posição ao sentir fortes
dores nas costas. Depois inquiriu Rodolfo.
- Como saístes da prisão?
- Soltaram-me.
- O conde soltou-te?
- Não. Lucena, a filha do conde Manrique subornou um guarda
que me soltou. Trocamos as nossas imagens da gruta.
- Que imagens?
- Todos os peregrinos costumam levar para suas casas uma
pequena cruz queimada como recordação da visita ao santuário.
Com muito esforço Thiago conseguiu levantar-se e decidiu.
- Amanhã regressamos a Lisboa. Já cumpristes a tua promessa.
III
No bairro dos “Rais”, o dey de Argel acompanhado de oito
janizaros bebia um café entretendo-se a ver a multidão a passar na rua
Zenkat S´Bâ Tabaren. Duas mulheres com enormes haid, sob grandes
albornozes, conversavam sem prestar atenção a três kalibas que
puxando mulas cheias de odres com azeite se preparavam para ir ao
mercado. Um ulama, um dos poucos homens que sabem escrever,
rascunhava num papel ouvindo um cliente de turbante azul
acompanhado de um turco, enquanto um servente esperava a sua vez
120
para ditar uma carta de amor à sua apaixonada, para em troca, pagar ao
ulama um peixe. Outro ulama desenhava uma roda mágica num
documento e entregava-o a um judeu, que satisfeito por possuir agora
uma mágica contra os malefícios mostrava a imagem a um barrani ou
escravo cristão que o apreciava atentamente.
Um marabuto aproxima-se do dey de Argel, secundado por dois
seguidores, preparando-se Abdul Hauqel para lhe dar esmola quando o
seu turbante lhe foge da cabeça e começa a rodopiar no ar. Os
janizaros receosos não ousam desafiar o “homem-santo” e olham para
o líder que num cumprimento afectuoso saúda os recém-chegados.
- Thiago e Rodolfo, que bela surpresa.
O “marabuto” soltou uma gargalhada ao ver-se descoberto.
- Desembarcamos numa das vossas belas praias e como trazemos
pouco dinheiro disfarcei-me de marabuto. Ficarias surpreendido com a
“generosidade” do teu povo, pois apesar de havermos esfarrapado o
nosso vestuário batendo com os albornozes contra as rochas os teus
vassalos obrigaram os nossos estômagos a passarem por um longo
jejum não obstante o Ramadão ter sido há vários meses.
O dey de Argel sorriu e convidou os amigos a sentarem-se à sua
mesa, tendo Rodolfo aproveitado a oportunidade para apresentar a
companheira.
- Esta é Lucena, a filha do conde de Manrique raptado por um
“rais” durante uma incursão ao sul do reino de Portugal. Viemos com a
intenção tentar libertar o pai dela.
121
O chefe supremo da cidade olhou para a rapariga vestida como
uma muçulmana e pesaroso encolheu os ombros.
Todos os escravos que entram pela porta de Argel passam pelo
meu palácio de Janina porém há alguns meses que não recebo nenhum.
Muitos corsários desembarcam na costa, longe dos meus janizaros,
encaminham os cativos para sul aonde algumas tribos como os
“Aurés” os recebem e os enviam para as montanhas.
Thiago pousou a mão em cima do ombro de Lucena para lhe dar
ânimo fixando um verdadeiro marabuto que passava e que curioso
olhava o “colega” com sotaque estrangeiro.
122
- Não desistiremos, precisamos descobrir as montanhas dos
“Aurés”, partiremos os três e haveremos de descobrir o paradeiro do
conde Manrique.
Abdul Hauqel concordou prontificando-se a auxiliar a comitiva.
Hoje dormirão no meu palácio de Janina, pela alvorada três
mulas com mantimentos esperarão por vós nas “Portas do Sol”.
Cuidado, qualquer contratempo poderá transformá-los em três
barranis.
- Não temas meu amigo, se na rua Badestan, o local aonde
vendem os escravos cristãos ou barranis não estiver quem procuramos,
iremos a qualquer local mesmo que para isso tenhamos de ir a
Constantinopla buscá-lo.
O dey de Argel sorriu divertido e respondeu ao amigo.
- Eu sei, estou mesmo a imaginar a cara do sultão turco quando
passear pelos frondosos jardins do palácio e ouvir os peixinhos dos
lagos a conversarem
Uma risota geral acolheu o gracejo de Abdul Hauqel, depois com
um ar mais sério aconselhou.
- Visitem o Casbah, frequentem os cafés e os banhos, talvez com
um pouco de sorte ouçam informações úteis. Vou também pedir aos
meus espiões que estejam atentos.
- Obrigado meu amigo.
- Amanhã dirijam-se para o mercado de Azun e quando a feira
acabar acompanhem os mercadores no regresso às montanhas.
123
A tarde decorreu sem problemas e sem novidades. Percorreram
as ruas mais movimentadas da cidade contudo todos desconheciam a
chegada recente de escravos pelo que resolveram adiantar os
preparativos para a jornada.
IV
Desde muito cedo os feirantes começavam a desmembrar as
tendas e a reunir os animais para se integrarem nas caravanas, que em
zig-zag por entre palmeiras levantavam uma poeira esbranquiçada
rapidamente transportada pelo vento para longe. As muralhas de Azun,
imponentes e fortes pareciam ignorar a sua terrível história, um local
de matança de tantos condenados obrigados a saltarem vindo a morrer
esmagados nas pedras batidas naquele momento pelos pés do povo.
Turcos, mouros, kabilas, judeus, uma infinidade de raças e credos
cruzavam-se conversando sob a autoridade dos janizaros sempre
prontos a intervirem ao mínimo despontar de uma confrontação.
Thiago estava sentado sobre uma esteira conversando com
Rodolfo e Lucena quando um rosto enegrecido pela luminosidade do
deserto parou diante dele apurando uma requintada vénia.
- Marabuto, dais-me a honra de te convidar para nos
acompanhares?
O moço olhou para aquelas feições enrugadas pelo calor e
reconheceu na cimitarra presa à cintura, pelo albornoz e turbantes
124
negros como carvão, um berbere do deserto. Aprovando o aspecto do
interlocutor agradeceu a gentileza.
- Folgo muito em podermos gozar a vossa companhia, dirigimo-
nos para sul em busca de um barrani.
Agha, o berbere não dissimulou uma expressão de espanto,
contudo rapidamente o sorriso que o obrigava a mostrar os dentes
apodrecidos pelo haxixe voltou a aflorar-lhe o rosto.
- Eu e mais dois companheiros da minha tribo viemos buscar
algumas crianças que após passarem alguns meses a aprender a ler e a
escrever em Argel retornam a casa. No nosso regresso costumam
ocorrer inúmeros perigos e a presença de um marabuto impõe respeito
ao mais feroz dos assaltantes. Connosco também viajará um tuaregue.
Rodolfo sorriu, coçou a orelha e gracejou.
- Agha, podes crer que o nosso “santo-homem” tem um modo
muito peculiar de tratar os salteadores.
O africano concordou e erguendo as mãos para o alto como numa
prece concluiu.
- Esses poderes certamente recebem os marabutos de Alá.
Quando Maomé montado num camelo subiu à montanha…
- Agha, não canses mais o nosso “santo-homem”, ele não aparenta,
mas já possui uma idade avançada.
Thiago lançou uma pequena pedra a Rodolfo, que rindo da
fictícia cólera do amigo, desviou-se do projéctil.
Sem compreender o significado da brincadeira o nómada do
deserto curvou o tronco numa reverência e anunciou.
125
- Dentro de algum tempo passarei aqui com a minha gente e
iniciaremos a marcha.
Depois da retirada do moço os três companheiros fizeram planos
para a jornada e Lucena foi a primeira a pronunciar-se dirigindo-se a
Thiago.
- Quando chegarmos às montanhas talvez algum membro da tribo
nos indique o paradeiro do meu pai.
- Sim, estes viajantes percorrem as areias escaldantes como os
barcos cruzam os oceanos, vivem em cima das montadas metade da
vida.
- E manejam as armas como ninguém.
126
- No entanto as crianças podem retardar-nos a jornada.
- Em qualquer expedição a nossa travessia seria lenta, com os
mercadores também as cargas demorariam a viagem.
Finda a conversa carregaram os animais e quando o berbere
regressou principiou a marcha em direcção às montanhas dos “Aurés”.
As palmeiras e os oásis tornaram-se mais raros e a vegetação seca deu
lugar às ondas de areia, em pouco tempo deixaram de vislumbrar
qualquer outro animal a não ser as mulas, cavalos e camelos que
lentamente arrastavam as crianças e os parcos haveres da caravana.
V
Dois dias passaram-se, e ao amanhecer do terceiro dia viram uma
longa coluna no horizonte, que com o passar do tempo ia
intensificando os contornos de cavaleiros fortemente armados
deixando-os a todos amedrontados.
Agha, preparou-se para a peleja, mas Rodolfo acalmou o
guerreiro.
- Espera eles aproximarem-se, guardemos os nossos trunfos.
Os montadores cercaram o grupo e o que parecia ser o chefe deu
ordens para a caravana se desviar do rumo traçado até aquele momento
sendo prontamente obedecido, deslocando-se todos com a mesma
lentidão até chegarem a um acampamento coberto de tendas. Um
pouco mais longe algumas dezenas de camelos tentavam arrancar do
127
chão ervas secas e um grupo de mulheres com baldes iam retirando
água de um poço.
Os raptores conduziram os prisioneiros até à presença de um
velho barbudo que com uma faca trabalhava numa madeira
construindo uma flauta.
Todos cumprimentaram o indivíduo que pareceu só naquele
momento reparar nos cativos.
- Quem sois?
Thiago destacou-se e com uma referência explicou.
- Gente pacífica. Estas crianças regressam ao lar acompanhados
de familiares da sua tribo e nós procuramos um barrani.
O ancião de barbas brancas franziu um sobrolho surpreendido.
- Um marabuto à procura de um escravo cristão?
- Sim.
Um homem de feições cruelmente mutiladas destacou-se do
grupo que cercava o velho, e de pé com o dedo acusador voltado para
o jovem, gritou.
- Mentes, são espiões da tribo dos Abid, os spahis árabes.
Agha, tentou lançar o cavalo à desfilada pronto para ferir o
adversário, mas Rodolfo conseguiu prender-lhe as rédeas evitando o
confronto.
O idoso levantou-se, aproximou-se de Thiago rodeando-o
curioso, depois parou e encarou a pequena assembleia com quem
conversava antes da chegada dos forasteiros.
128
- Comparemos a magia do nosso feiticeiro Mustafá com a do
“homem-santo”. Se o nosso mago vencer os estranhos, eles serão
arrastados pelos cavalos e mortos, porém se o marabuto triunfar, o
nosso mago será chicoteado e os forasteiros poderão partir em paz.
O feiticeiro esperou que o velho se sentasse, espalhou bagos de
milho no chão e desafiou Thiago mostrando-lhe uma galinha,
- Tanta impedir esta ave de comer o milho sem te aproximares
dela e eu acredito que sejas um marabuto.
Como por magia um espeto que assava pedaços de carne numa
fogueira próxima começou a mover-se no ar perseguindo a galinha que
num instante desapareceu no labirinto de tendas.
Os nómadas estupefactos começaram a segredar entre si sobre o
estranho prodígio olhando para o local aonde se sumira o animal com
o espeto voador manejado por uma mão invisível.
Passados alguns segundos ouviram o zumbido de uma flecha e
uma sentinela apareceu com o bicho agarrado pelo pescoço e com um
enorme sorriso começou a falar.
- Chefe, esta galinha ia a fugir, mas eu consegui apanhá-la.
O velho barbudo soltou uma gargalhada, mas Mustafá chegou
perto do guarda dando-lhe uma bofetada cheio de cólera
surpreendendo a sentinela que fugiu a correr enquanto um coro de
gargalhadas enfurecia gradualmente o feiticeiro. Vermelho de raiva
voltou-se para Thiago que permanecia imóvel.
- Ganhastes o primeiro assalto porém falta venceres a guerra.
129
Furioso, procurou umas pedras e deitou-as no fogo até ficarem
incandescentes.
- Vou passar descalço por cima delas, quero que faças o mesmo.
Concentrando-se passou rapidamente com os pés nus sobre as
pedras e cruzando os braços depois da transição voltou-se para Thiago
aguardando ver o que o antagonista fazia.
- Desafio-te a também passares descalço por cima delas.
O cristão sorriu, descalçou-se sentando-se no chão. Depois
parecendo estar assentado numa liteira invisível levantou-se no ar e
como que por artes mágicas passou por cima dos calhaus.
Murmúrios de admiração ouviram-se por toda a parte.
Repentinamente um zumbido ecoou, uma seta proveniente do
aglomerado de pavilhões atravessou o ar cravando-se no braço
esquerdo de Mustafá que com um grito caiu por terra. Thiago saltou
sobre ele, arrancou a flecha do corpo do mago, colocou a boca no
ferimento e cuspiu de forma a neutralizar algum eventual veneno.
Depois assentando a cabeça do ferido em cima de um tronco
acolchoado com o seu próprio turbante retirou um líquido de uma
sacola tingindo o braço do feiticeiro. Os muçulmanos seguiam todos os
movimentos do forasteiro não ousando interferir no tratamento.
- Ele precisa agora de descansar. Quem poderia querer a sua
morte?
O velho de barbas coçou o queixo pensativo.
- Mustafá tem muitos inimigos e agora de noite dificilmente
apanharíamos quem lhe atirou a seta.
130
Alguns lamentos de dor vinham da boca do mago. Lucena
aproximou-se dele e ao chegar-se junto do jovem feiticeiro este
arrancou-lhe o pequeno crucifixo carbonizado, lembrança da gruta de
São Justiniano, que ela trazia ao pescoço e escondeu-a por baixo da
túnica. O chefe árabe quis devolver-lhe a recordação porém a moça
impediu-o.
- Deixa, Mustafá precisa neste momento mais da imagem do que
eu. Necessita de um sono retemperador, depressa saberemos como
reagiu ao veneno.
- Ele ainda é muito novo, certamente vai sobreviver.
- Sim, não deixámos o veneno se espalhar-se.
- Dei ordens para que vocês dormissem numa tenda. Podem
depois partir quando quiserem, contem com a amizade da minha tribo.
Lucena sorriu para o ancião agradecendo, depois aconchegou um
cobertor no corpo de Mustafá ficando de vigília ao jovem feiticeiro.
Thiago e Rodolfo naquele momento traçavam uma linha num mapa.
- Ao alvorecer retomaremos o caminho em direcção às
montanhas, devemos evitar as trilhas perigosas para as crianças.
- Parece que existe pouca união nestas paragens.
- Não duvides. Argel fica longe, apenas podemos contar
connosco.
Agha que os acompanhara desde o princípio da jornada
aproximou-se deles mascando tabaco.
- Amanhã chegaremos à minha tribo. Não sei o que seria de nós
sem a vossa presença.
131
- Apenas cumprimos o nosso dever.
- Sois um “santo-homem” estranho. Já tinha contactado com
outros marabutos e ouvido falar dos seus prodígios, mas é a primeira
vez que assisto às maravilhas de um deles.
Thiago pousou a mão amigavelmente no ombro do berbere e
confessou.
- Não presenciastes nenhuma magia, apenas observastes
fenómenos naturais. Descansa agora que tudo correrá bem.
A noite envolveu todo o acampamento com o seu manto negro e
o rugir de um leão não chegou para inquietar os animais e os homens
habituados aos sons daquelas paragens. O ruído abafado pela areia dos
cascos de um cavalo cavalgando para fora do local pronunciou
desgraça não obstante a quietude da escuridão.
VI
Desgastados pelo calor, foi com manifesto alivio que o chefe dos
berberes apontou para um local perdido no horizonte.
- Dentro de pouco tempo poderei abraçar a minha gente.
Rodolfo sorriu, levantou o braço mandando parar a caravana.
- Vamos almoçar. Entretanto um dos teus homens pode ir
anunciar a nossa chegada.
Agha soltou uma gargalhada e esclareceu.
132
- Não precisamos de avisar: Neste momento já toda a nossa tribo
sabe que estamos aqui, nada lhes passa despercebido à volta do nosso
deserto pois enxergamos ao longe.
Uma linha de pó começou a desenhar-se ao longe e gradualmente
deu forma a três cavaleiros montados em cavalos pequenos e
musculados. Ao chegarem junto da caravana cumprimentaram
colocando a mão no peito.
- Que Alá vos proteja.
Depois da saudação, o trio recém-chegado desmontou e sentou-se
para ouvir o relato da viagem em que Agha não poupava elogios aos
cristãos. Ouvindo com a máxima atenção a narração, um dos recém-
vindos puxou de um longo cachimbo, acendeu o conteúdo do pipo e
absorveu o fumo.
- São poucos os barrani a atravessarem o deserto e os que passam
são escravos para irem trabalhar para as pedreiras das montanhas.
- Procuramos o pai de Lucena. Ele só podia ter passado por aqui
há poucas semanas.
O berbere abanou a cabeça cuspindo para o lado retorquindo a
Rodolfo.
- Apenas demandaram estes lugares dois barrani há uma semana,
eram jovens que iam trabalhar para um turco que comprou vastas
propriedades no interior. O otomano prefere ser guardado por escravos
cristãos do que por muçulmanos.
- Porquê?
133
- Porque sendo bem tratados querem conservar a boa saúde do
turco pois não sabem depois de ele morrer quem vai ser dono deles e
qual vai ser o novo trabalho. Como cativos não sonham com grandes
ambições.
- Então iremos para oeste.
- Muito cuidado, a consideração de que gozam os marabutos em
Argel não é a mesma que por estes lugares. Aqui prevalece a lei do
mais forte.
- Teremos cautela.
- Sim, quando virem homens armados nunca saberão se são
amigos ou inimigos.
Thiago agradeceu a hospitalidade do berbere. Montando a cavalo
seguido de Lucena e Rodolfo iniciou a jornada para oeste.
Percorridas algumas milhas e já com o Sol em poente
vislumbraram um grupo de homens à volta de um braseiro com
solidéus na cabeça, camisas de pano brancas e meias negras. A gaba
estava presa à cintura por um shal.
Ao verem aproximar-se os três amigos o que aparentava ser o
mais velho levantou-se convidando-os a sentarem-se junto ao braseiro.
- Somos judeus, estamos comemorando o “Pentecostes”. Se sois
berberes acompanhem-nos na nossa celebração e festejem o
“Navasardi”.
- Não somos berberes, mas sim cristãos.
O semita traiu uma expressão de assombro, sentando-se
continuou a alimentar o lume com gravetos.
134
- Então comemorem o São João.
Thiago desmontou, retirou um recipiente com água sentando-se
em seguida ao lado do judeu.
- Engraçado como na mesma altura existem três celebrações
diferentes para cada uma das religiões.
Um dos hebreus veio com uma ânfora de vinho e ofereceu-a aos
cristãos.
- Bebam. Se desejam comer têm carneiro a assar e como o Sol
deve desaparecer dentro de momentos podem dormir aqui. Rodolfo
recusou o vinho dizendo.
- Preciso de tratar dos animais, mas agradeço o teu convite.
135
Depois de cuidar dos cavalos e mulas o moço dirigiu-se para um
poço a fim de encher os recipientes, contudo um dos judeus impediu-o
de continuar.
- Não tem água, tens uma nascente mais adiante.
Rodolfo começou a caminhar para o local indicado, contudo um
lamento das profundezas do poço acabou por o fazer parar. Quando se
voltou viu o hebreu apontar-lhe um bacamarte.
- Devias ter aceitado o vinho pois já estarias com os teus amigos.
Olhando para o fundo do poço, Rodolfo viu Thiago e Lucena
sentados no fundo a olharem para ele com uma expressão inquieta.
- Este poço é uma prisão natural.
O cristão reconheceu a voz do judeu que os recebera e viu com
apreensão que estava desarmado.
- Traficamos escravos, foi no entanto a primeira vez que vieram
ao nosso encontro por espontânea vontade.
Sem oferecer resistência o moço deixou que o prendessem e o
descessem por uma corda para junto dos companheiros.
- Dentro de dias os “Aurés” virão buscá-los para os venderem nas
montanhas para as pedreiras. A jovem será vendida como escrava para
alguém que a precise como serviçal ou concubina.
No fundo do túnel reinava a amargura, os três cristãos faziam
agora companhia a dois negros capturados na Núbia enquanto
andavam a pescar. Alguns musgos cobriam a carne fedorenta e
deteriorada com que os semitas alimentavam os prisioneiros.
136
- As paredes são demasiado altas para treparmos e escasseiam as
pedras para nos agarrarmos.
Lucena fez um movimento afirmativo com a cabeça à observação
de Thiago olhando tristemente para a boca do poço aonde sobressaia
uma ténue claridade. O amigo sentou-se mais próximo dela.
- Não podemos acender um lume pois as ervas estão verdes e o
fumo intoxicava-nos em pouco tempo.
- Só nos resta aguardar acreditando que a humidade não nos
deprima.
- Enquanto houver vida, há esperança.
- Fomos muito ingénuos em deixar-nos surpreender e termos dito
que éramos cristãos.
- De momento nada podemos fazer senão descansarmos
aguardando os acontecimentos.
Pouco a pouco o sono foi vencendo-os, um silêncio pesado
surgiu mantendo-se por largas horas Rodolfo de vela, observando a
entrada do poço. Já os olhos se principiavam a fechar quando um
ligeiro ruído o inquietou. De repente algumas cordas desceram fazendo
com que ele acordasse os amigos.
- Silêncio, alguém está a querer libertar-nos.
Começaram as subir pelas cordas, ao chegarem ao cimo viram
um árabe de rosto coberto pedindo silêncio e um dos judeus jazendo
com um punhal enterrado no peito a poucos metros de distância. De
imediato seguiram o salvador para junto de quatro cavalos, mas a
queda de um dos núbios complicou a fuga ao acordar os judeus.
137
O oportuno rugido de um leão perto do local aonde acampavam
os traficantes de escravos lançou a confusão salvando a situação e os
seis saltaram para os corcéis indicados partindo a galope.
Correndo velozmente atrás do desconhecido viram com temor o
grupo perseguidor dos hebreus ganharem terreno pois alguns cavalos
dos fugitivos levavam dois cavaleiros e acabaram por entrar num
desfiladeiro. Os perseguidores seguiram-nos até à entrada montanhosa
sendo recebidos nessa altura por uma oportuna chuva de balas que os
fez retroceder em pânico pois não contavam com uma emboscada.
Parando os cavalos dirigiram-se aos novos aliados e espantados
reconheceram Agha comandando um numeroso grupo de berberes
ainda escondidos nas rochas.
- Agha, eu nunca pensei sentir tanta satisfação em ver-te nestes
penedos.
O nómada desceu da rocha correndo em direcção a Thiago que
desmontou e o abraçou efusivamente.
- Marabuto, apenas seguimos as instruções de um membro de
uma tribo nossa amiga que pediu para esperarmos aqui por vocês.
Todos olharam em redor à procura do libertador de rosto coberto
contudo ele desaparecera sem deixar rasto.
- Sabes quem era?
- Não. Tinha as faces ocultas, apenas o identificamos pela
vestimenta como membro do outro clã, seguimo-lo até aqui e depois
aguardamos conforme nos pediu.
Rodolfo sentou-se no chão e esticou as pernas ainda dormentes.
138
- Muito feliz a nossa fuga. Primeiro um leão apareceu na melhor
altura a rugir no meio dos traficantes de escravos e depois os teus
companheiros aqui à nossa espera.
Agha inquiriu curioso Rodolfo depois de ouvir as suas palavras.
- Surgiu um leão no meio deles?
Thiago piscou um olho para o amigo emendando.
- Não vimos nenhum leão, apenas se ouviu um rugido.
Rodolfo encarou o amigo, deu uma risada batendo com a mão na
areia do deserto.
- Claro que o rugido só podia ser obra tua. Só não entendo quem
estava interessado em arriscar a própria vida para nos salvar?
Lucena regressava a pé puxando o seu cavalo pelas rédeas e
ouvindo a conversa sorriu.
- Eu sei a identidade do nosso salvador, encontrei isto no pescoço
do meu cavalo.
Todos se levantaram curiosos e foram ver de perto o objecto que
a filha do conde Manrique transportava na mão
- A cruz de São Justiniano de Lepanto.
Thiago agarrou no objecto sagrado, beijou-o e murmurou
enquanto olhava o deserto.
- Mustafá pagou a dívida dele.
139
VII
Um vermelho agressivo tingia o horizonte prenúncio de violento
calor para o dia, o vento desaparecera por completo e a ondulação da
areia perdia-se nas rochas das montanhas pouco nítidas contrastando o
ouro com o castanho.
Thiago segurou numa pequena ânfora e hidratou o cavalo que
com sofreguidão bebeu sedento o conteúdo.
- Dentro de algumas horas estaremos nas montanhas. Os
indígenas destas zonas veneram os “velhos das montanhas” que
habitam nesses lugares inóspitos.
- Como podem seres humanos viverem num ambiente tão hostil?
- Bebem a água dos cactos e alimentam-se de raízes.
- Estranho procedimento.
- Conta a tradição que descendem de antigos escravos fugitivos
que se refugiaram nas grutas para fugirem aos donos.
- Como conseguem não voltar a cair nas mãos dos amos e
traficantes de escravos?
- Possuem estranhos poderes, sabem fazer-se temer por aqueles
que os hostilizam.
Penosamente os cavalos chegaram às montanhas e vaguearam
pelos desfiladeiros de areia fina. No cimo do monte um negro idoso
numa atitude de prece acompanhado de um pachorrento leão que
dormitava pareceu ignorar os europeus. Thiago dirigiu a montada para
140
junto do anacoreta, o leão acordou da letargia, contudo o eremita
colocou a mão sobre o dorso acalmando-o e indagou.
- O que procuras?
- Desculpa interromper a tua oração, procuramos um barrani.
O indivíduo olhou em redor, respondendo e fazendo em
simultâneo um gesto com a cabeça.
- Há dias que não passa aqui ninguém. Diariamente rezo na
montanha como o profeta me ensinou no seu livro sagrado não dando
conta de alguém aqui passar.
- Procuramos o pai da rapariga que nos acompanha.
Lucena maravilhada com a calma do negro desmontou e sentou-
se junto daquele ser andrajoso com tão estranha parceria.
- Minha filha, aquele que procuras deixará a solidão das
companhias com quem anda arranjando o amparo graças ao teu amor.
- Sabes do seu paradeiro?
- Todos temos um pouso e apenas estamos perdidos quando
queremos. Quantos de nós nos julgamos desgarrados e tudo
reconhecemos à nossa volta comungando com Aquele que nos criou?
Deus sabe o lugar de todos e até aquela lebre que ali vês sabe aonde
me encontrar durante o dia.
- Ajudas-me?
Um pequeno fruto rolou de um arbusto caindo aos pés dos dois.
- Alá acaba de te informar que a vida consiste numa roda,
voltarás ao inicio da tua jornada com aquele que anseias e o ciclo será
fechado.
141
A respiração do ancião tornou-se ofegante. Thiago temeu pela
saúde do negro e aconselhou.
- Deixa-o, para quem não fala há muito tempo estás a obrigá-lo a
um enorme esforço.
Com dificuldade o homem levantou-se com a ajuda de uma vara
e apontando para longe exclamou.
Sigam este rumo que vos estou a indicar. Muitos perigos vos
aguardam, mas não desesperem pois Deus é misericordioso.
Desceram a encosta íngreme, os animais percorriam a trilha
escorregando nas pedras, apenas os braços dos viajantes travavam a
marcha. Ao resvalar as mulas e os cavalos levantavam a areia
formando uma nuvem obrigando os retardatários a tossirem as
impurezas do ar.
A marcha continuou penosa, o Sol asfixiante não dava tréguas e a
vegetação parecia soçobrar ao calor. Passadas algumas horas viram
uma dezena de indivíduos esfarrapados picando a pedra enquanto três
guardas sentados sob um arbusto mascavam tabaco e limpavam longos
saifs ou espadas árabes. A chegada dos forasteiros não interrompeu as
tarefas até ao momento em que Lucena correu para um dos cativos que
se encontrava preso com grilhões unidos por uma pequena corrente
abraçando-o expansivamente.
Uma das sentinelas que parecia ser o chefe, levantou-se de
imediato e agarrou a moça que em desespero procurou soltar-se só
acalmando quando sentiu uma faca na garganta. Rudemente o guarda
inquiriu.
142
- Quem sois?
Depois ordenou aos companheiros que desarmassem Thiago e
Rodolfo e prendendo-os com cordas. O grupo havia descoberto o
paradeiro do conde Manrique porém a sorte continuava adversa.
O resto da tarde decorreu com Lucena olhando tristemente para o
pai que mais magro e escuro continuava britando a pedra. Um tuaregue
vestido de azul em que apenas os olhos estavam destapados passou
parecendo nem se dignar a olhar a triste cena.
VIII
Passados quinze dias os jovens continuavam sem esperança de
salvação. Enquanto Thiago e Rodolfo saiam com os demais cativos a
partir a rocha, Lucena servia como serviçal na casa do dono dos
escravos.
A habitação era constituída de uma casa de apenas um piso que
rodeava um pequeno lago artificial sendo a parte de cima constituída
por um terraço, aonde os nativos faziam a secagem de produtos
agrícolas. Uma divisão autónoma com grades servia de dormitório
aonde pernoitavam os prisioneiros em velhas enxergas roídas pelo
tempo.
O chefe do trio de guardas era um homem impiedoso, chamado
Haddad, que não poupava os condenados à escravidão utilizando o
chicote do cavalo quando se demoravam mais a caminhar ou faziam
143
um pequeno intervalo no trabalho de desbaste das pedreiras. As caras
com cicatrizes dos escravos eram a parte visível da desumanidade com
que ele os tratava.
No final da tarde, antes de anoitecer, uma vez mais regressavam
os prisioneiros em fila indiana com uma enorme corda que os prendia
pelo pescoço uns aos outros, com grilhões e correntes nos pés que lhes
dificultava a marcha sendo amparados pelos companheiros quando
algum ameaçava cair.
Os guardas seguiam ao lado do grupo cavalgando prontos para
darem com o pequeno chicote naquele que se atrasasse.
Ao chegarem ao átrio viram três homens conversando
calmamente sentados sobre a borda do muro do lago artificial. A
vestimenta totalmente azul em que apenas lhes deixava visíveis os
olhos imediatamente os identificou como tuaregues.
Haddad e os outros dois guardas ignoraram-nos, pois estavam
habituados à chegada de nómadas mercadores que procuravam vender
utensílios nos poucos lugares habitados.
Calmamente desceram das montadas e levaram os cavalos a
beber deixando os escravos saciarem a sede no tanque. Enquanto os
animais bebiam retiravam-lhes as selas e as rédeas para os preparar
para o descanso na cavalariça.
Entretanto Lucena saiu de casa munida com uma bilha e uma
tigela como habitualmente fazia para dar de beber aos três guardas,
contudo em vez de fazer o usual trajecto entregou os utensílios ao que
144
parecia ser o chefe dos tuaregues, regressando rapidamente para a
habitação.
Perante a surpresa dos circundantes o nómada abandonou os
companheiros dirigindo-se a Thiago e enchendo uma tigela de água
ofereceu-a ao jovem.
Haddad, que presenciava o que o tuaregue fazia, aproximou-se
dele com a chibata procurando bater-lhe de modo violento porém o
forasteiro desviou-se e com um potente murro deitou o adversário ao
chão.
Outro guarda que assistia veio em socorro de Haddad com a
cimitarra ao alto, mas um tiro proveniente do terraço atingiu-lhe um
braço fazendo com que a arma rolasse no pavimento.
Todos olharam para o local de onde havia partido o disparo e
com assombro viram dez homens segurando bacamartes prontos a
intervir se necessário.
Os dois tuaregues que tinham assistido a tudo, imóveis até aquele
momento, saíram do local aonde estavam sentados, calmamente
dirigiram-se para Haddad que permanecia deitado no chão, retiraram-
lhe as chaves e abriram os grilhões aos escravos colocando-os por sua
vez nos vigias obrigando-os em seguida a entrarem na divisão da casa
com grades.
Com um gesto o líder tuaregue convidou todos os prisioneiros a
entrarem em casa e sentou-se no tapete persa da sala de estar seguido
do grupo. Retirou o turbante que lhe encobria o rosto e com um sorriso
falou para o grupo.
145
- Davam uns excelentes barranis.
Thiago, Roberto e Lucena não esconderam a sua expressão de
assombro quando reconheceram o dey de Argel. Thiago foi o primeiro
a recompor-se da estupefacção e inquiriu.
- Como nos descobristes?
Abdul Hauqel olhava para os amigos ainda mal refeitos da
surpresa esclarecendo.
- Não utilizei poderes mágicos. Quando saíram de Argel no vosso
grupo ia um tuaregue que era meu espião. Tinha como missão
acompanhar-vos e zelar pela vossa segurança.
- Penso que nunca mais o vimos desde que deixamos as crianças
com a tribo.
- Não o viam contudo ele sempre esteve a vigiar-vos. Quando os
prenderam na pedreira foram a ele que o viram passar e depois de
saber aonde dormiam veio avisar-me do que tinha sucedido.
- Abençoado seja.
- Seguidamente vim aqui com os meus janizaros e libertei-os.
Fico contente por Lucena ter encontrado o pai tendo tudo acabado
bem. Regressaremos a Argel podendo depois retornarem ao reino de
Portugal quando quiserem.
- E os guardas das pedreiras?
- Irão connosco. Serão condenados por maltratarem os cativos e
terem vos tornado escravos que são delitos graves. Agora vamos
dormir pois amanhã iniciaremos a viagem de regresso.
146
A noite estava quente, Lucena e o pai abraçados foram até ao átrio
ver ao longe as montanhas que tinham sido cenário de tantos dias de
sofrimento. Os olhos estavam agora marejados de lágrimas de alegria.
FIM
147
148
149
IndiceIndiceIndiceIndice
O SENHOR DE PORCEL …………………………………… 7
EM TERRAS DO LEVANTE ……………………………. 51
O MATRIMÓNIO DOS POGGETTO …………………… 85
SÃO JUSTINIANO DE LEPANTO …………………. 113
150