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RURIS, REVISTA DO CENTRO DE ESTUDOS RURAIS é uma publicação doCentro Interno de Estudos Rurais (Ceres), do Instituto de Filosofia e CiênciasHumanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp), cujaproposta é apresentar e discutir resultados de pesquisas realizadas em contextosnacionais e internacionais que envolvam atores e situações relacionados ao mundo rural, de forma a trazer para o leitor os temas e as questões queemergem dos processos sociais contemporâneos. A revista, seguindo o caráterinterdisciplinar do Ceres, publica trabalhos inéditos realizados no âmbito dediferentes campos do conhecimento.
Editores EMÍLIA PIETRAFESA DE GODOI e FERNANDO ANTONIO LOURENÇO
Editores adjuntos ANA CAROLINA BAZZO DA SILVA, AUGUSTO POSTIGO,CRISTIANO RAMALHO, FERNANDA DE FREITAS GONÇALVES, JOSÉ CARLOS ALVESPEREIRA, JULIANA GUANAIS, MARIANA MIGGIOLARO CHAGURI, MARISA BARBOSAARAUJO LUNA, MAURO WILLIAM BARBOSA DE ALMEIDA, NASHIELI RANGELLOERA, SENILDE ALCANTÂRA GUANAES, VANDA SILVA, VERENA SEVÁ NOGUEIRA
Comissão Editorial (Ceres/IFCH/Unicamp) EMÍLIA PIETRAFESA DE GODOI,FERNANDO ANTONIO LOURENÇO, MAURO WILLIAM BARBOSA DE ALMEIDA, NEUSA MARIA MENDES DE GUSMÃO, SÔNIA BERGAMASCO
Conselho Editorial AFRÂNIO GARCIA JÚNIOR (CRBC/EHESS/Paris), ALDENORGOMES DA SILVA (UFRN), ALFREDO WAGNER BERNO DE ALMEIDA (UFAM),ANTONIO CARLOS DIEGUES (NUPAUB/USP), ARIOVALDO UMBELINO DE OLIVEIRA(USP), CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (Unicamp), DARLENE AP. DE OLIVEIRAFERREIRA (Unesp), EDGARD MALAGODI (UFPB), ELIANE DA FONTE (UFPE),ELIDE RUGAI BASTOS (Unicamp), ELLEN WOORTMANN (UnB), ERIC SABOURIN(CIRAD/França), JOÃO DE PINA CABRAL (Universidade de Lisboa),JOHN CORDEL (NUPAUB/USP), JOSÉ MACHADO PAIS (Universidade de Lisboa),JOSÉ MAURÍCIO ARRUTI (Cebrap), JOSÉ SÉRGIO LEITE LOPES (Museu Nacional),JOSEFA SALETE B. CAVALCANTI (UFPE), LEONILDE S. DE MEDEIROS (UFRRJ),LÍGIA MARIA OSÓRIO SILVA (Unicamp), LYGIA SIGAUD (Museu Nacional),MANOELA CARNEIRO DA CUNHA (Universidade de Chicago), MOACIR PALMEIRA(Museu Nacional), MARIA APARECIDA DE MORAES SILVA (Unesp),MARIA DE NAZARETH WANDERLEY BAUDEL (UFPE), MARIA DO LIVRAMENTO M.CLEMENTINO (UFRN), MARIA JOSÉ CARNEIRO (UFRRJ), MARIA TEREZA D. P.LUCHIARI (Unicamp), MARILDA APARECIDA DE MENEZES (UFPB), NEIDEESTERCI (UFRJ), NEUSA MARIA MENDES DE GUSMÃO (Unicamp), RUBEMMURILO LEÃO REGO (Unicamp), RUSSEL PARRY SCOTT (UFPE), SIMONEMALDONADO (UFPB), SÔNIA BERGAMASCO (Unicamp)
Projeto gráfico e editoração ANA BASAGLIACapa VITOR LOURENÇOPreparação dos originais e revisão final VILMA APARECIDA ALBINOFotolitos LASERCOLOR BUREAU & FOTOLITOImpressão GRÁFICA CENTRAL DA UNICAMP
7
01{01}
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Ruris : Revista do Centro de Estudos Rurais / Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. vol.1, n.1 (2007). Campinas: Unicamp/IFCH, 2007.200 p.
2007 (1) ISSN 1980-1998
Título da capa: Ruris. Revista do Centro de Estudos Rurais
1. Sociologia rural. 2. Desenvolvimento rural – Aspectos sociais.3. Agricultura – Aspectos ambientais. 4. População rural – Aspectos antropológicos. I. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Centro de Estudos Rurais. II. Título.
CDD – 307.72
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Emília Pietrafesa de Godoi e Fernando Antonio Lourenço
DEPOIMENTO
SER SOCIÓLOGA DO “MUNDO RURAL” NA UNICAMP.
MEMÓRIAS MUITO VIVAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Maria de Nazareth Baudel Wanderley
ARTIGOS
TEMPOS E ESPAÇOS NOS MUNDOS RURAIS DO BRASIL . . . . . . 37
Carlos Rodrigues Brandão
MUDANÇA E ÁGUA NO SUL DE PORTUGAL:
A BARRAGEM DE ALQUEVA E A ALDEIA DA LUZ . . . . . . . . . . . . 65
Clara Saraiva
A FAMÍLIA TAL COMO ELA É NOS DESENHOS DE CRIANÇAS . . . 105
Maria Aparecida de Moraes Silva, Beatriz Medeiros de Melo,
Andréia Peres Appolinário
A LONGA EVOLUÇÃO DA RELAÇÃO RURAL–URBANO . . . . . . . . 157
PARA ALÉM DE UMA ABORDAGEM NORMATIVA DO DESENVOLVIMENTO RURAL
Arilson da Silva Favareto
RESENHA
MANAGING THE COMMONS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193
Letícia Merino e Jim Robson (eds.). Consejo Civil Mexicano
para la Silvicultura Sostenible A. C., 2005
Luis Henrique Cunha e Marisa B. Araújo Luna
SUMMARY . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 196
PROCEDIMENTOS PARA PUBLICAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . 197
APRESENTAÇÃO
Ruris – Revista do Centro de Estudos Rurais, do Instituto de Filo-
sofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campi-
nas, nasce no momento em que o Ceres, Centro Interno de Estu-
dos Rurais do IFCH, completa dez anos de atividades e se constitui,
assim, na expressão objetivada da sua consolidação.1
O Ceres é um centro de pesquisas interdisciplinares que reú-
ne profissionais e estudantes de várias áreas do conhecimento,
com a predominância da antropologia e da sociologia. Desde a
sua criação, a cooperação sociologia–antropologia se expressa não
somente nas atividades de pesquisas e seminários organizados,
mas também na direção do Ceres: Maria de Nazareth Baudel Wan-
derley foi a sua primeira diretora e teve como vice-diretor o an-
tropólogo Carlos Rodrigues Brandão. Neste primeiro número da
Ruris, trazemos o depoimento de Nazareth Wanderley como uma
justa homenagem àquela que foi a fundadora do Ceres.
Seu depoimento não só explicita o caráter interdisciplinar do
Centro de Estudos Rurais como também nos dá uma idéia do es-
pírito da Ruris, pois, mais do que nos contar uma trajetória pes-
soal, ele nos remete à experiência de um grupo de pessoas que
colaboraram na constituição e consolidação de um campo de co-
nhecimento dentro do IFCH. Através do seu depoimento, ficamos
conhecendo os temas trabalhados e, em decorrência disso, as
transformações desse mesmo campo impulsionadas pelos proces-
sos vividos pela sociedade brasileira. Não é difícil constatar que
situações e categorias de sujeitos relacionados ao mundo rural se
impõem à nossa reflexão sempre que a nossa sociedade é sacudida
7
1 A publicação de Rurisresulta de um convênioentre a Unicamp (Univer-sidade Estadual de Campi-nas) e o IICA/NEAD-MDA(Instituto Interamerica-no de Cooperação Agrí-cola/Núcleo de EstudosAgrários e Desenvolvi-mento Rural). Agradece-mos ao NEAD e ao IICApelo financiamento rece-bido e especialmente aCaio Galvão de França,coordenador geral doNEAD, e a Adriana Lo-pes, coordenadora exe-cutiva do NEAD, peloapoio e entusiasmo comque acolheram o projetoeditorial da revista.
por transformações sociais; assim, falar do rural é refletir sobre as
transformações sociais que ocorrem no conjunto da sociedade.
Quando o Grupo de Estudos Agrários – afetuosamente chamado
de Grupo do Matinho – passa a se reunir na década de 70, as dis-
cussões giravam em torno, sobretudo, do processo de moderni-
zação da agricultura e da proletarização que atingia as populações
rurais; a essas questões vieram se somar outras como as referen-
tes à propriedade da terra, às formas de reprodução do campesi-
nato e à produção familiar. Como expressão da consolidação des-
se campo de conhecimento no IFCH, foi criada, na década de 80,
a então Área de Agricultura e Questão Agrária do Doutorado em
Ciências Sociais.2
Como nos ensina a antropologia, a história dos nomes é tam-
bém a história das instituições que eles nomeiam e suas transfor-
mações. Lido assim, o nome dessa área temática ganha eloqüên-
cia: a questão agrária era a pauta central dos pesquisadores. Ao
longo dos anos que se seguiram, ao acompanhar o movimento
dos campos disciplinares, assistimos, por um lado, à crise do pró-
prio conceito de sociedade agrária, mas, por outro, vemos a re-
composição das questões agrárias, de uma maneira mais especí-
fica, e rurais, de uma maneira mais geral, através de novos temas
e novos atores sociais e políticos que emergem dos processos so-
ciais contemporâneos: os acampados, os assentados, os quilom-
bolas, os ribeirinhos, os seringueiros; suas trajetórias identitárias
e históricas passam a ser contempladas na agenda dos pesquisa-
dores, assim como os conflitos, as alianças, suas relações com ou-
tros segmentos da sociedade e com o próprio Estado. Também re-
cortes de gênero, etários, identitários somam-se aos de classe.
Assim, ao longo dos anos, essa área do doutorado em ciências so-
ciais, além de continuar a trabalhar com as raízes agrárias da his-
tória brasileira e do pensamento social por elas gerado, incorpo-
rou novas questões e, em 2001, passa a se chamar Processos
Sociais, Identidades e Representações do Mundo Rural.3
Este preâmbulo vem para dizer que Ruris é, pois, uma revis-
ta do Ceres, que, por sua vez, reúne estudantes, professores e pes-
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2 Para o conhecimentoda composição do Grupodo Matinho, remetemoso leitor ao depoimentode Maria de NazarethBaudel Wanderley. E,para a trajetória do Ce-res, suas atividades epesquisas, ver <www.ifch.unicamp.br/ceres>.
3 Vale insistir aqui que,sendo também uma “ca-tegoria de leitura do so-cial”, o rural, com toda aambigüidade que lhe éprópria por recobrir dis-tintos espaços, distintoscontextos, além de serempregado por diferen-tes atores sociais – desdeaqueles que se reivindi-cam do mundo rural aosproponentes de políticaspúblicas – permite refle-tir sobre as transforma-ções sociais mais abran-gentes. Ver M. Mormont“Le rural comme lecturedu social”, L’Europe et séscampagnes, M. Jollivet eN. Eizner (orgs.), Paris:Presse de la FondationNationale des SciencesPolitiques, 1996.
quisadores vinculados, sobretudo, aos programas de pós-gradua-
ção em antropologia, sociologia e ciências sociais do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e que persiste no exer-
cício desafiador de confrontar perspectivas de distintas formações
disciplinares dentro de um campo de conhecimento. Ruris pre-
tende ser um espaço de debates para os pesquisadores que, seja a
partir de uma perspectiva mais teórica, seja a partir de pesquisas
empíricas, se dedicam a questões que concernem à vida de ho-
mens e mulheres de campos, cerrados, montanhas, rios e mares
dentro e fora das fronteiras nacionais.
EMÍLIA PIETRAFESA DE GODOI
Departamento de Antropologia, IFCH/Unicamp
FERNANDO ANTONIO LOURENÇO
Departamento de Sociologia, IFCH/Unicamp
Campinas, 30 de setembro de 2006
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DEPOIMENTO
SER SOCIÓLOGA DO “MUNDO RURAL” NA UNICAMP. MEMÓRIAS MUITO VIVAS
MARIA DE NAZARETH BAUDEL WANDERLEY
Neste primeiro número da revista do Ceres, gostaria de refletir so-
bre minha própria experiência, como professora e pesquisadora
do IFCH da Unicamp, onde, durante 20 anos, participei ativamen-
te do mestrado de sociologia e do doutorado de ciências sociais.
Considero que a constituição da área temática do doutorado, en-
tão denominada Agricultura e Questão Agrária, envolvendo an-
tropólogos e sociólogos, resultou na consolidação, nessa univer-
sidade, de um campo de reflexão, próprio das ciências sociais,
sobre o mundo rural. Esse campo se caracterizou por privilegiar
a compreensão dos processos de formação das diversas categorias
de sujeitos sociais e suas expressões econômicas, sociais, políticas
e culturais, tendo como pressuposto principal a heterogeneidade
do mundo rural.
OS ESPAÇOS ACADÊMICOS
O Grupo do Matinho
Cheguei à Unicamp em 1978, momento em que o Grupo de Es-
tudos Agrários (carinhosamente chamado Grupo do Matinho) es-
tava em pleno apogeu. Esse grupo era formado por professores e
alunos vinculados aos diversos departamentos do IFCH (na oca-
sião, o Departamento de Economia integrava o instituto), bem co-
mo a outros centros universitários de São Paulo, especialmente à
ESALQ, aos campi da Unesp em Botucatu e Araraquara e às PUCs
de Campinas e de São Paulo. Participavam do grupo, entre outros:
Tamás Szmrecsányi, Verena Stolcke, Peter Eisemberg, Rodolfo
1 3
Hoffmann, Oriovaldo Queda, José Graziano da Silva, Sérgio Silva,
Ângela Kageyama, Rubem Murilo Leão Rego, Maria Helena Antu-
niassi, Vera Marisa Costa e Sonia Bergamasco.
A equipe se organizou como um espaço de reflexão e debate
sobre a agricultura brasileira, mais especificamente sobre os pro-
cessos de modernização da agricultura. Naquele mesmo ano, o se-
minário anual, promovido pelo grupo, contou com a calorosa
participação de pesquisadores como Alberto Passos Guimarães,
Inácio Rangel e Maria Yedda Linhares, com os quais, precisamen-
te, se tentava dialogar sobre o processo de transição.
Foram longamente discutidas no grupo as teses de doutora-
do de José Graziano da Silva, Sérgio Silva, Ângela Kageyama, Ru-
bem Murilo Leão Rego, entre outras, elaboradas nesse período.1
No final dos anos 70, o debate acadêmico refletia um mo-
mento de transição da realidade brasileira, na qual a moderniza-
ção da agricultura, impulsionada, sobretudo, com as orientações
da política agrícola presentes no Estatuto da Terra, começava a re-
velar seus resultados mais evidentes, nos campos econômico, so-
cial e político. Esse ambiente de efervescência era profundamente
estimulado pela constituição de duas “redes” nacionais de pesqui-
sa e intercâmbio: um programa de estudos sobre Mão-de-Obra
Volante na Agricultura, coordenado pela Associação Brasileira de
Reforma Agrária (Abra) e pelo Departamento de Economia Rural
da Faculdade de Ciências Agronômicas, da Unesp/Botucatu, e o
Projeto de Intercâmbio em Pesquisa Social na Agricultura, PIPSA,
ambas financiadas pela Fundação Ford.
No grupo da Unicamp, que funcionou até 1982, alguns te-
mas passam a constituir o núcleo forte das reflexões: a proprie-
dade da terra e suas relações com o capital; o progresso técnico,
seus avanços e os limites dos novos modelos tecnológicos propos-
tos; o trabalho na agricultura e o processo de proletarização; e as
formas de reprodução do campesinato. Esses temas recortavam o
que se poderia denominar a questão agrária brasileira naquele
momento, centrada na opção política pela modernização da agri-
cultura que era ideologicamente apresentada como uma exigên-
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1 José Graziano da Silva,Progresso técnico e rela-ções de trabalho na agri-cultura. São Paulo: Hu-citec, 1981. Sérgio Silva,Valor e renda da terra: omovimento do capital nocampo. São Paulo: Polis,1981. Ângela Kageyama,Modernização, produti-vidade e emprego naagricultura: una análiseregional. Tese de douto-rado em economia. Cam-pinas, Unicamp, 1985.Rubem Murilo LeãoRêgo, Terra de violência:estudo sobre a luta pelaterra no sudoeste doParaná. Dissertação demestrado em sociologia.São Paulo, USP, 1981.
cia do progresso. Outros temas recorrentes, que perpassavam e in-
tegravam esse corpus diziam respeito ao papel do Estado, ao pen-
samento social brasileiro, ao desenvolvimento regional e, natural-
mente, à dimensão histórica da agricultura no Brasil.
O doutorado de ciências sociais
Até então, minha atuação como professora se restringia ao Pro-
grama de Mestrado de Sociologia, em que oferecia disciplinas e
orientava dissertações sobre a problemática rural e agrícola.
Em 1985, e já em um outro quadro institucional, interna-
mente, com a criação do Instituto de Economia e, externamente,
com os esforços da Capes para a consolidação da pós-graduação,
no Brasil, um prolongado debate no IFCH deu origem ao Douto-
rado de Ciências Sociais. Tenho orgulho de ter, juntamente com
Vilmar Faria, Daniel Hogan, Mariza Corrêa e tantos outros pro-
fessores, participado da montagem dessa proposta. Desde o iní-
cio, o programa se estruturava em torno de dois eixos: a forma-
ção avançada nas teorias contemporâneas das ciências sociais e o
aprofundamento de problemáticas específicas, definidas em tor-
no de áreas temáticas.
A área temática Agricultura e Questão Agrária só começou a
funcionar no primeiro semestre de 1986, formada pelos professo-
res Maria Conceição d’Incao, Rubem Murilo Leão Rego, Teresa Sa-
les, Carlos Rodrigues Brandão e por mim. Elide Rugai Bastos subs-
tituiu Maria Conceição, quando esta se aposentou. A primeira
turma selecionada contou com quatro alunos: Antonieta da Cos-
ta Vieira, Aluísio Schumacher, Dalcy Cruz e Leonilde Sérvolo de
Medeiros. Nesse primeiro momento, um seminário reunia o con-
junto de professores e alunos, criando um ambiente que nos aju-
dou a precisar os temas e as leituras de interesse comum.
Progressivamente, o doutorado como um todo se consoli-
dou, constituindo novas áreas temáticas e ampliando o número
de alunos nele envolvido. Com a segunda turma de alunos, da qual
fizeram parte Ricardo Abramovay, Regina Bruno, Clemilda Oli-
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1 5
veira e Carlos Teixeira, nossa área temática também se fortaleceu,
recortando como tema central de suas atividades de ensino e pes-
quisa “as questões associadas aos processos e relações sociais en-
tre as diferentes categorias de sujeitos e instituições ligadas à pro-
dução de bens, serviços e símbolos do mundo rural, sob a
perspectiva das ciências sociais”. A partir de então, o foco do se-
minário comum se orientou para uma releitura crítica dos para-
digmas da questão agrária e para uma reflexão sobre o mundo ru-
ral brasileiro e foram definidas as seguintes disciplinas específicas
da área: história social da agricultura; a questão agrária e as ciên-
cias sociais; raízes rurais da sociedade brasileira; sociedades agrá-
rias; estudos comparativos sobre a questão agrária; agricultura e
meio ambiente.
Para isso, muito contribuiu o entrosamento crescente entre
os antropólogos e sociólogos. Na minha experiência pessoal, o
grande momento desse diálogo foi a disciplina que Carlos Bran-
dão e eu ministramos conjuntamente durante o primeiro semes-
tre de 1994. Não se tratava apenas de dividir os temas de um pro-
grama de curso, ele com a parte antropológica e eu com os autores
sociólogos. Na verdade, nossa intenção era a de construir um es-
paço propriamente interdisciplinar no campo das ciências sociais
voltadas para o mundo rural. Permito-me transcrever, integral-
mente, a ementa da disciplina:
A idéia de revisitar “as mesmas coisas”, os mesmos temas, su-
jeitos sociais, relações e questões, com outros olhos, com “no-
vos olhares” é sempre fecunda e perigosamente desafiadora
entre as nossas ciências. A proposta deste Curso é a de uma tal
revisita. Pensamos tomar alguns temas bastante comuns e já
muito investigados a respeito do mundo rural e procedermos
a uma leitura de suas questões desde um ponto de vista, em
alguma coisa, pelo menos, diferente. Imaginamos a possibili-
dade de retomar a produção familiar no mundo rural: as es-
tratégias de produção de “bens” agropastoris e de reprodução
de diferentes estilos de vida no campo; os diferentes códigos
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e sistemas de sentido (da ideologia das práticas econômicas ao
imaginário das religiões) dos diversos tipos de sujeitos indivi-
duais e coletivos do campo, e introduzirmos uma reflexão so-
bre sua atualidade através do estudo e da discussão de textos
e abordagens não muito comuns em tais casos. Não muito co-
muns, mas bastante convergentes às questões que sempre
orientaram o pensamento de uma Sociologia Rural ou de uma
Antropologia do Campesinato. Pretendemos, de igual manei-
ra, orientar a proposta do curso ao ponto de encontro entre a
tradição e a modernidade (ou entre a tradicionalidade e a mo-
dernização), de tal sorte que, lidando com estilos de vida, com
processos e estruturas de organização da vida social rural em
seus vários planos, com códigos sociais de diferentes tipos de
relações de reciprocidade, de alianças e conflitos, com a ideo-
logia e o imaginário (no limite, até mesmo com os devaneios
de que fala Bachelard), estejamos sempre situados a meio ca-
minho entre formas tradicionais, consagradas mesmo de cul-
turas do universo rural, e os processos sociais de inovação e
ruptura, tornados obrigatórios através de uma modernização
de todas as esferas sociais da vida e do trabalho no mundo ru-
ral. Ao longo das 7 unidades do curso, estaremos às voltas com
tipos intrigantemente comuns de nossas comunidades rurais,
devolvidos à leitura na experiência de sua máxima subjetivi-
dade. Estaremos retomando, por exemplo, a lógica das rela-
ções familiares e de parentesco através dos opostos entre a nor-
ma consagrada das relações entre os seus atores sociais e as
alternativas “camponesas” de sua transgressão. Estaremos re-
trabalhando o imaginário e os sistemas de organização de co-
munidades rurais rearticuladas como movimentos religiosos
do passado (Canudos, Contestado), mas também como mo-
vimentos sociais do presente.
Essa tentativa, que considero muito bem-sucedida, exigia dos
dois professores uma certa dose de humildade e um grande esfor-
ço: ambos estavam presentes em todas as aulas e se dispuseram a
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ler os “clássicos” (dos estudos rurais) dos dois enfoques discipli-
nares. Pessoalmente, reconheço com entusiasmo que li, então, pe-
la primeira vez, alguns dos autores antropólogos e fiquei muito
contente ao poder discutir com Carlos Brandão textos com filia-
ção sociológica mais explícita. Os alunos, eles também, em maio-
ria sociólogos ou antropólogos, pelo que me diziam, adoraram a
disciplina.
No conjunto da área temática, três princípios orientavam a
formação que pretendíamos oferecer.
1) Em primeiro lugar, a convicção que o doutorado, qualquer que
fosse a área temática de inserção do aluno, era um curso de ciên-
cias sociais. Para nós, isso significava assumir que a sociologia ru-
ral é, antes de tudo, sociologia, como afirmará, mais tarde, Mar-
cel Jollivet, tanto quanto a antropologia do campesinato e do
mundo rural é, antes de tudo, antropologia. Nas disciplinas teó-
ricas, a grande questão dizia respeito à crise dos paradigmas nas
ciências sociais, tema que polarizava as perspectivas dos próprios
professores da casa.
Para os alunos, o primeiro grande teste era o exame de qua-
lificação, que funcionava como um elemento articulador entre es-
sas questões mais gerais e o tema particular da tese. De fato, a exi-
gência era de que o doutorando escolhesse um tema teórico das
ciências sociais, que pudesse iluminar seu tema de tese, sem, no
entanto, se confundir com o seu capítulo teórico. Como afirmou
Ricardo Abramovay, em seu próprio ensaio:
Este texto nasceu das discussões sobre a crise das ciências so-
ciais, tema dos mais importantes no decorrer dos cursos que
realizei no Doutorado em Ciências Sociais na Universidade Es-
tadual de Campinas. Além do interesse geral que estas discus-
sões trazem, seu impacto sobre os próprios doutorandos, pe-
lo que pude perceber, é duplo. Embora alguns poucos não se
deixem “abalar” pelo tema e passem pelos cursos basicamente
com o mesmo conjunto de convicções com que ali ingressa-
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ram, a maior parte de nós dá-se conta da fragilidade em que
se encontram não apenas os fundamentos do trabalho nas
ciências sociais e do homem, mas em suas próprias sub-áreas
específicas. É bem verdade que essa constatação pode trazer
paralisia. Acredito, porém, ao contrário, que na maior parte
dos casos ela será a base para a busca de respaldo mais segu-
ro ao trabalho de pesquisa. Se uma crise de paradigma amea-
ça – por definição – o andamento tranqüilo das atividades
científicas, somente seu cerco em cada sub-área específica po-
derá contribuir, acredito, para que seja superada.
Seria impossível enumerar aqui o trabalho de todos os alu-
nos. Cito, apenas a título de exemplo, alguns deles. No texto so-
bre A crise dos paradigmas e os estudos agrários, Ricardo Abra-
movay procurou analisar como alguns balanços sobre os estudos
agrários feitos na França, na Inglaterra e, especialmente, nos Es-
tados Unidos, refletiram sobre a crise dos paradigmas no campo
específico dos estudos rurais desses países. O ensaio que Leonil-
de Medeiros defendeu teve como título Algumas considerações
sobre o conceito de classe social, no qual ela analisa os conceitos
de classe, segundo o paradigma marxista e o debate contemporâ-
neo, especialmente em Thompson, Castoriadis e Bourdieu. Esse
exercício foi, sem dúvida, de grande utilidade para a sua tese so-
bre a formação dos trabalhadores rurais no Brasil.Alfio Brandem-
burg apresentou um ensaio intitulado Colonos: da subserviên-
cia à utopia, passo teórico importante para a elaboração de sua
tese sobre a agricultura familiar e os projetos de desenvolvimen-
to sustentável no Paraná. Por sua vez, a qualificação de João Car-
los Tedesco baseou-se no trabalho intitulado Cotidiano, história
e cultura: uma análise sobre a importância do cotidiano nos es-
tudos sobre o camponês. Como sua tese seria sobre o campesina-
to no Rio Grande do Sul, ele procurou aprofundar seus conheci-
mentos sobre o pensamento de alguns autores, a respeito da vida
cotidiana, especialmente de Henri Lefebvre, Agnes Heller e Hen-
ri Mendras. Regina Bruno, cuja tese seria sobre a “burguesia ru-
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ral”, apresentou o trabalho Demiurgos, sanguessugas e autôma-
tos, no qual se debruçou sobre o pensamento de Marx a respeito
da burguesia. Este, formado do exame de qualificação, foi poste-
riormente abolido e substituído por um texto teórico mais pró-
ximo ao próprio tema da tese.
2) O segundo princípio dizia respeito à problemática específica
da área temática a que estávamos vinculados. Tratava-se da ne-
cessidade de pensar as questões que o mundo rural coloca à so-
ciedade brasileira e como as ciências sociais podem pensar essas
questões. Nosso ponto de partida era a convicção de que a com-
preensão da realidade rural precisa de um tratamento teórico
complementar, próprio, o que faz da antropologia e da sociolo-
gia rurais uma antropologia e uma sociologia específicas. De fa-
to, o reconhecimento de uma problemática rural exige de seus es-
tudiosos que expliquem por que o meio rural permanece como
“um espaço singular e um ator coletivo”, para citar uma referên-
cia que usei posteriormente em um artigo sobre o mundo rural
nas sociedades modernas.
Como entender as relações fundamentais entre o capital e o
trabalho, sem integrar a reflexão sobre a propriedade da terra? As
formas de apropriação da terra, sabemos todos, têm profundas
implicações sobre a estrutura e as práticas de classes da socieda-
de como um todo e sobre a configuração e a dinâmica dos movi-
mentos sociais. No Brasil, conhecemos assalariados do solo e cam-
poneses sem terra; as relações de trabalho incluem as formas ditas
“análogas à escravidão”, praticadas por grandes proprietários e
empresários agrícolas, freqüentemente tidos como modernos; en-
tre as estratégias de defesa da propriedade, adotadas pela “bur-
guesia” agrária brasileira, consta, em lugar privilegiado, a elimi-
nação física dos seus opositores.
É preciso lembrar que as classes subalternas que vivem da
agricultura, em sua expressão moderna – aqui incluídos os seto-
res ligados à agricultura familiar –, se constituíram em um pro-
cesso recente. Data, de fato, dos anos 60, a emergência de uma
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enorme massa de trabalhadores rurais – colonos, moradores – que
perdeu o acesso, já precário, à terra e aos meios de sua subsistên-
cia e passou a viver da venda de sua força de trabalho. Da mesma
forma, nos dias de hoje, sob os nossos olhos, os assentamentos de
reforma agrária, que se disseminam em todo o território nacio-
nal, constituem-se como sementeiras de um campesinato, cujo lu-
gar na sociedade ainda está sendo conquistado.
Quando se trata da sociologia do trabalho, o conhecimento
das particularidades do mundo rural pode compreender como a
ainda forte e determinante vinculação da atividade agrícola com
a criação de seres vivos explica em grande parte por que o traba-
lho agrícola, nas condições modernas de produção, não se reali-
za sob a dominação de um sistema de máquinas, nem pode orga-
nizar-se como uma “fábrica no campo”. Como se expressaria,
então, o pós-fordismo nos processos de produção agrícola?
A sociologia da família rural tenta explicar como a coletivi-
dade familiar se expressa enquanto unidade de produção, de tra-
balho e de consumo. É da articulação dessas três dimensões que
resultam a polarização entre o projeto coletivo familiar e a busca
de individualização de seus membros e os conseqüentes conflitos
e tensões específicos, nos planos da divisão interna do trabalho,
das formas de distribuição da renda familiar e da representação
externa da unidade de produção.
3) Finalmente, o terceiro princípio é o resultado da conjunção dos
dois precedentes e consistiu no grande esforço empreendido, no
sentido de promover um diálogo constante e profundo entre as
diversas temáticas que compunham o programa do doutorado.
De fato, enfrentando uma grande dificuldade – a temática rural
era considerada por alguns ilustres professores e pesquisadores
uma questão menor, senão ultrapassada na sociedade brasileira e
na academia –, havia, entre nós, uma grande preocupação com o
diálogo com os demais colegas do doutorado, com o objetivo pri-
mordial de aproximar nossas reflexões daqueles outros pesquisa-
dores da realidade brasileira, que também se dedicavam ao estu-
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2 1
do de temas específicos. Partíamos do pressuposto de que não se-
ria possível amputar a parte rural da realidade brasileira, sob pe-
na de tornar impossível a formulação de uma visão de conjunto
e em profundidade dessa mesma realidade. Com algumas áreas
temáticas, as interfaces pareciam evidentes, como era o caso de
“meio ambiente e sociedade” e “pensamento social brasileiro”.
Pretendíamos, porém, ir mais além e assumir que o doutorado,
com suas diversas áreas temáticas, seria o lócus privilegiado para
a construção desse intercâmbio, já que contávamos com cerca de
60 professores-doutores, envolvidos em uma grande diversidade
temática. O interesse mútuo e as trocas se processam sem dificul-
dades, quando o estudioso das políticas sociais considera a situa-
ção específica da aposentadoria rural, ou quando o pesquisador
do sindicalismo brasileiro se depara com as particularidades do
movimento sindical rural ou ainda quando a reflexão sobre o
mundo do trabalho incorpora o que se passa no interior da agri-
cultura familiar. O mesmo pode ser dito da presença de acampa-
mentos de reforma agrária em áreas urbanas, das transformações
recentes da família, no campo como na cidade, das múltiplas ex-
pressões de identidades sociais, referidas aos lugares de vida e às
experiências de luta, da vida cotidiana nos espaços rurais, das prá-
ticas religiosas etc.
Se é difícil aos demais cientistas sociais incluir a dimensão
rural como parte integrante dos próprios objetos de estudo, mais
difícil ainda é para os sociólogos e antropólogos “rurais” dar con-
ta das bibliografias especializadas do conjunto desse campo teó-
rico tão vasto e diversificado. Todos nós, que vivenciamos a expe-
riência de orientar teses e dissertações nesse campo, sabemos que
boa parte dos alunos nos procura com temas sobre a família, o
trabalho, a tecnologia, os movimentos sociais, a religião etc., em
tal ou qual contexto rural. Só resta aos orientadores a humildade
de reconhecer seus limites e envolver seus colegas especialistas em
parcerias enriquecedoras para todos, alunos e professores, estu-
diosos do mundo rural ou não.
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2 2
O projeto Capes/Cofecub
Em 1991, a área temática passou a integrar o Projeto Capes/
Cofecub, Novas Perspectivas do Desenvolvimento Agrícola na
França, na Europa e no Brasil. Esse projeto de cooperação inter-
nacional com a França havia começado bem antes, envolvendo a
Universidade de Paris X – Nanterre e a Universidade Federal da
Paraíba. Em sua segunda fase, até 2005, que tive a honra de coor-
denar, ele incluiu, do lado brasileiro, a Unicamp e a Universidade
Federal do Rio Grande do Sul.
Os impactos do projeto sobre nossa área temática foram sen-
tidos em diversos níveis. Em primeiro lugar, o projeto oferecia
missões de estudo e de trabalho aos pesquisadores brasileiros.
Nesse quadro, alguns dos nossos alunos tiveram a oportunidade
de receber bolsas-sanduíche para realizar missões de estudo em
Nanterre. Foi o caso, por exemplo, de Alfio Brandemburg e de Ja-
dir de Moraes Pessoa. Da mesma forma, professores também pu-
deram realizar missões de trabalho na França.
Em segundo lugar, o projeto assegurava a doação anual de li-
vros franceses. Até hoje quando visito a biblioteca do IFCH reco-
nheço as publicações que recebemos naquela ocasião e que foram
a base do amplo acervo hoje disponível.
Em terceiro lugar, durante todo o período de vigência do pro-
jeto, tivemos a oportunidade de programar diversos seminários
que contaram com a participação de colegas franceses. Lembro,
especialmente, da presença de Jacques Chonchol, então diretor do
Instituto de Altos Estudos para a América Latina, bem como, em
diversas ocasiões, de Hélène Delorme (coordenadora francesa do
projeto), Hugues Lamarche, Jean-Paul Billaud, Bernard Roux e
Magda Zanoni – esta, brasileira, professora na França.
Dois desses seminários marcaram, particularmente, o pe-
ríodo. Um primeiro, realizado em novembro de 1989, teve como
tema Os Camponeses têm Futuro? Uma Homenagem a Alexander
Chayanov. Esse encontro representava para nós uma opor-
tunidade de retomar, no campo da sociologia, o interesse pelo
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campesinato, de alguma forma relegado por uma grande parte
dos sociólogos brasileiros, desde as últimas contribuições de Ma-
ria Isaura Pereira de Queiroz, no início dos anos 70. Os antropó-
logos, como sabemos, nunca abandonaram essa temática.
O outro seminário, com o título Agricultura Familiar e Pro-
jeto de Modernidade – Seminário Internacional, ocorreu em
1998, por ocasião do lançamento, no Brasil, do livro A agricultu-
ra familiar – Uma realidade multiforme, coordenado por Hugues
Lamarche. Mais uma vez, essa reunião pretendeu constituir-se co-
mo um marco no sentido do reconhecimento e da legitimidade
intelectual da problemática da agricultura familiar no nosso país.
Sonia Bergamasco, professora da Feagri/Unicamp, e eu fo-
mos as coordenadoras do evento, que reuniu um grande número
de pesquisadores do Brasil e do exterior. Vale lembrar que Sonia
Bergamasco sempre esteve muito proximamente vinculada à
equipe do IFCH, desde o Grupo do Matinho, do qual participava,
enquanto era a chefe do Departamento de Economia Rural da
Unesp/Botucatu e participou do Ceres desde o início. Fico feliz
por saber que ela, atualmente, integra o corpo docente do douto-
rado de ciências sociais. As comunicações apresentadas no semi-
nário internacional e os debates suscitados diziam respeito a pes-
quisas em Portugal, na Itália, na Espanha, na França, no Canadá,
na Polônia, na Tunísia, na Argentina, na Holanda, além, eviden-
temente, de no Brasil.
O seminário, como está registrado em seus Anais, demons-
trou a pertinência e a atualidade da problemática da agricultura
familiar ao abrir um grande leque de questões: a reprodução so-
cial da agricultura familiar em áreas de agricultura moderna, de
antiga agricultura camponesa, ou ainda em novos contextos so-
ciais, tais como as reservas florestais na Amazônia; o trabalho agrí-
cola e a identidade profissional: pluriatividade, a profissão do
agricultor, novas identidades; a moralidade familiar e o compor-
tamento econômico; as políticas agrícolas e a reprodução da agri-
cultura familiar: os impasses e as perspectivas da agricultura fami-
liar na Europa, as políticas sociais para os agricultores brasileiros,
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a previdência social rural, pobreza, exclusão social e cidadania; a
agricultura e o meio ambiente: o novo lugar da agricultura fami-
liar na sociedade moderna: a gestão dos recursos naturais, a re-
presentação da natureza pelos agricultores: a agricultura familiar
e o meio rural: uma nova ruralidade.
A riqueza dos debates estimulou as conclusões, encaminha-
das no sentido da necessidade da formulação de novos marcos
teóricos capazes de explicar a agricultura familiar moderna, isto
é, a que – com todas as suas contradições – é gerada e reproduzi-
da nas condições da sociedade moderna. Uma teoria que situe o
nosso objeto no espaço da tensão entre o geral e as especificida-
des, entre o global e a localidade, entre a tradição e a modernida-
de, entre o homem do campo e o cidadão. Uma teoria interdisci-
plinar, que se inspire diretamente nas ciências explicativas da
sociedade moderna, ao mesmo tempo em que contribua para fa-
zê-las avançar, pela incorporação de questões – a agricultura, o
agricultor, o meio rural – tantas vezes excluídas.
Finalmente, o Projeto Capes/Cofecub teve um efeito extre-
mamente estimulante dos contatos entre pesquisadores brasilei-
ros e franceses, para além das equipes diretamente envolvidas.
Assim, por exemplo, em diversas ocasiões, nossos colegas france-
ses participaram das reuniões do GT Estado e Agricultura, da
Anpocs, num profícuo intercâmbio, que lhes oferecia uma visão
nacional da comunidade acadêmica brasileira e dos principais te-
mas em debate.
A fundação do Ceres
Em 1996, foi criado o Centro de Estudos Rurais (Ceres), grupo
de pesquisa vinculado ao IFCH. Para formalizar sua fundação, rea-
lizamos uma mesa-redonda, cujo tema foi Reforma Agrária: Uma
Demanda da Sociedade, através da qual pretendíamos, igualmen-
te, homenagear José Gomes da Silva, fundador e, por muitos anos,
presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra),
ex-presidente do Incra e, reconhecidamente, um dos maiores de-
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fensores da reforma agrária do país, que havia falecido recente-
mente. A mesa contou com a participação de Leonilde Servolo de
Medeiros (CPDA/UFRRJ), Abdias Vilar de Carvalho (Incra/SP),
Fernando Antônio Lourenço (Cesop/Unicamp) e Vera Lúcia Gra-
ziano Rodrigues (PUC/Campinas), filha do doutor Gomes.
O Ceres consolidou sua experiência baseada nos três prin-
cípios já referidos acima. De fato, os seminários seguintes, que
denominamos Diálogos Pertinentes, tinham como objetivo co-
tejar o olhar de um pesquisador de um tema relevante, na pers-
pectiva do mundo rural, com o de um outro estudioso desse mes-
mo tema, mas que não assumisse esse recorte rural. Assim, o
primeiro desses diálogos pertinentes teve como tema Movimen-
tos Sociais Rurais e Urbanos, com a participação de Maria Célia
Paoli (USP) e Regina Novaes (UFRJ). Foi extremamente rico ver
como as duas grandes estudiosas dos movimentos sociais no Bra-
sil ampliavam sua própria reflexão, para incorporar a problemá-
tica específica que a outra lhe propunha. Um segundo seminá-
rio reuniu Ricardo Abramovay (FEA/USP) e Mariza Corrêa (do
Centro Pagu e do doutorado) em torno do tema Agricultura Fa-
miliar, Juventude e Gênero. Ricardo acabara de participar de uma
pesquisa em Santa Catarina sobre a juventude rural, que havia
constatado, entre outros aspectos relevantes, um processo de
masculinização da população rural do estado, questão que foi
discutida por Mariza, reconhecidamente uma especialista nos es-
tudos sobre família e gênero.
Essa foi minha última atividade no Ceres. Em julho de 1997,
aposentei-me e realizei a sonhada migração de retorno para o Re-
cife, minha terra natal.2
A SOCIOLOGIA DO MUNDO RURAL
Já que se trata de minhas memórias, tomo a liberdade de restrin-
gir o campo do relato à minha trajetória pessoal, consciente de
que ela foi, sem dúvida, o resultado de meu pertencimento aos
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2 Apresento a relação dosmeus orientandos queconcluíram suas teses dedoutorado na Unicamp,que também vivencia-ram a origem e o mo-mento inicial do Ceres:(1990) Ricardo Abramo-vay, professor da FEA/USP, De camponeses aagricultores: paradigmasdo capitalismo agrário emquestão, prêmio de Me-lhor Tese do Ano conce-
grupos a que me referi neste artigo, num momento especialmen-
te fecundo da produção acadêmica brasileira.
No novo contexto pós-64, as referências às relações feudais
haviam perdido, definitivamente, sua anterior legitimidade teóri-
co-política. Em 1965, Caio Prado Júnior publicara o seu polêmi-
co livro A revolução brasileira, que consolidou a reflexão sobre o
capitalismo no Brasil. Uma questão, no entanto, permanecia: Que
capitalismo era esse? Como pensar essa realidade à luz das teorias
clássicas sobre o desenvolvimento do capitalismo?
Considerando essas questões sob o ângulo mais específico das
transformações da agricultura, interessava compreender as mu-
danças nas classes agrárias, tanto as classes dominantes – o signi-
ficado da propriedade da terra assume aqui uma grande impor-
tância – quanto as “classes subalternas”, termo este que passa a ser
adotado após a difusão da obra de Antonio Gramsci no Brasil.
Um veio fundamental foi o que considerava o processo de prole-
tarização da força de trabalho rural, isto é, a passagem das formas
tradicionais do colonato e da morada para as relações puramen-
te assalariadas, especialmente, do trabalhador “volante” em São
Paulo e do “clandestino” na Zona da Mata pernambucana, que foi
objeto de uma vastíssima bibliografia. Da mesma forma, os estu-
dos sobre o campesinato assumiram um grande peso, para uns,
uma categoria inexistente na sociedade brasileira, para outros ao
contrário, pela sua oposição ao latifúndio, portadora de uma
grande força transformadora.
Durante a década de 60, a população rural, que até então
era majoritária no país, perde a predominância em benefício da
população urbana. Os conceitos de “rural” e “urbano” utilizados
pelo IBGE já eram, na ocasião, questionados por alguns estudio-
sos. Dois livros de Juarez Rubens Brandão Lopes, Crise do Bra-
sil arcaico (1967) e Desenvolvimento e mudança social (1968), dão
conta da nova centralidade do mundo urbano-industrial na
sociedade brasileira. O debate sobre o mundo rural toma assim
uma nova feição: Qual o seu lugar nesses processos de trans-
formação?
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2 7
dido pela Anpocs, publi-cada pela Hucitec e Edi-tora da Unicamp, 1992;Leonilde Sérvolo de Me-deiros, professora doCPDA/UFRRJ, Lavrado-res, trabalhadores agríco-las, camponeses: os co-munistas e a constituiçãode classes no campo,1995; Leila de MenesesStein, professora daUnesp/Araraquara, Sin-dicato, estado e agricul-tura: o dilema da repre-sentação, doutorado deciências sociais, 1997; Al-fio Brandenburg, profes-sor da UFPR, ONGs e aagricultura familiar – Aexperiência da Rureco nodesenvolvimento da agri-cultura familiar na regiãocentro-oeste do Paraná,publicada pela Editora daUFPR, 1999; (1998) Fer-nando Antônio Louren-ço, professor do IFCH/Unicamp, Agriculturailustrada – Ambivalênciado reformismo agrícolano Brasil (1770-1920),publicada pela Editora daUnicamp, 2001; (1998)João Carlos Tedesco, pro-fessor da UPF, Terra, sa-lário e família – Raciona-lidades em conflito nocotidiano do meio rural,publicada pela Editora daUniversidade de PassoFundo, 1999; DiógenesPinheiro, Batismo de fo-go – Lideranças políticasem assentamentos rurais,1999; (1999) Sergio Luizde Oliveira Vilela, asses-sor da Embrapa, Globali-zação e emergência demúltiplas ruralidades –Reprodução social de agri-cultores via produtos paranichos de mercado, publi-cada pela Embrapa,2000;Regina Bruno, professoraCPDA/UFRRJ, O ovo daserpente: monopólio daterra e violência na NovaRepública, 2002.
São essas questões que inspiraram minhas tentativas de par-
ticipar do debate acadêmico e que tentarei explicitar a seguir.
A questão fundiária no Brasil
Na minha tese de doutorado, defendida, em 1975, na Universida-
de de Paris X – Nanterre, na França, eu havia tentado analisar as
relações entre o capital e a propriedade da terra na economia açu-
careira de Pernambuco. Minha conclusão era de que a articula-
ção entre ambos constituía um dos eixos centrais das estratégias
de reprodução dessa economia. Os “empresários” locais procura-
vam suprir a fragilidade do processo de acumulação capitalista,
através de formas particulares de uso da terra, que asseguravam
a fixação dos trabalhadores (sistema de morada) e a adequação
da produção às oscilações dos mercados de açúcar. Nessa expe-
riência histórica, ao invés da “fórmula trinitária”, com a qual Marx
explicara o lugar da propriedade da terra sob o capitalismo, via-
se o proprietário na condição de “dirigente da produção”. As con-
tradições que os clássicos, Marx em primeiro lugar, haviam regis-
trado entre o capital e a propriedade fundiária eram, nesse caso,
como que externalizadas e socializadas para o conjunto da socie-
dade local e se manifestavam no caráter extensivo do uso da ter-
ra, na grande proporção de terras improdutivas, na superexplo-
ração da força de trabalho e na dependência estrutural em relação
ao Estado. Como expressei, na apresentação da publicação da te-
se no Brasil, “trata-se de uma indústria dirigida por latifundiá-
rios, de uma oligarquia agrária constituída por industriais e de
um capitalismo carente de capital”.
Um dos elementos-chave da legitimação ideológica da mo-
dernização da agricultura no Brasil consistia na afirmação de que,
para ser moderno, seria necessário ser grande, a escala se trans-
formando numa das exigências do progresso. Esse argumento en-
cobria uma dupla dimensão do caráter conservador da moderni-
zação. Por um lado, tentava reconhecer nas propriedades de
grandes extensões uma capacidade, real ou potencial, para res-
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ponder satisfatoriamente às transformações tecnológicas em cur-
so. Como por um passe de mágica, a “Modernização sob o co-
mando da terra” (título do artigo que publiquei na Revista Idéias
do IFCH) esvazia o conceito de latifúndio que, sem muito esfor-
ço, pode ser apresentado como empresa rural e aceder aos bene-
fícios assegurados às unidades de produção modernas. Por outro
lado, tentava justificar a exclusão dos agricultores que operavam
em pequena escala, no que se refere tanto à terra quanto ao capi-
tal. Aos pequenos agricultores, poder-se-ia oferecer a fixação no
campo, uma eventual melhoria da renda, o acesso a certos bens,
mas jamais a parceria no progresso da agricultura.
Campesinato e agricultura familiar
Ao chegar à Unicamp, atendendo a uma sugestão de Tamás
Szmrecsányi, então coordenador do Grupo de Estudos Agrários,
dediquei-me a elaborar um texto sobre o campesinato, que seria
objeto de debate no grupo – O camponês, um trabalhador para
o capital. Foi um trabalho despretensioso, no qual procurei or-
ganizar minhas próprias idéias sobre a questão. Numa primeira
parte, afirmava que grande parte dos estudiosos da realidade bra-
sileira aceitava o pressuposto de que o capitalismo supõe, neces-
sariamente, a proletarização plena da força de trabalho. Assim,
no que se refere ao campesinato, ou se negava sua existência ou
se admitia que ele representava relações anteriores (pré) ou an-
tagônicas (anti), em todo caso “fora” (não) do capitalismo. Pro-
punha, então, que se pudesse pensar o campesinato como um
elemento integrado, contraditoriamente, à própria reprodução
das sociedades capitalistas, como uma expressão de sua hetero-
geneidade. Otávio Guilherme Velho, do Museu Nacional, havia
sido convidado a debater meu texto no grupo. Devo a ele, com
sua valiosa leitura crítica, o estímulo para continuar a pesquisa
que pretendia.
A busca da compreensão do campesinato continuou em
duas pesquisas subseqüentes. A primeira foi realizada com pro-
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dutores de feijão em São Paulo. Na verdade, minha intenção era
a de, uma vez na Unicamp, realizar uma pesquisa empírica sobre
esse tema. Num primeiro momento, integrei-me à equipe
coordenada por José Graziano da Silva e Ângela Kageyama, que
participava do estudo latino-americano sobre a diferenciação
camponesa, promovido pelo IICA. Escolhemos os produtores de
feijão da região de Itararé, em São Paulo, como estudo de caso
no Brasil. A situação desses produtores pareceu-nos particular-
mente interessante.
No início dos anos 70, com a elevação dos preços do feijão,
em decorrência de uma grave crise em seu abastecimento, a re-
gião de Itararé, onde predominavam produtores familiares, em
geral pequenos, especializa-se na produção de feijão. Os produ-
tores transformam rapidamente seu processo de produção, com
a introdução de um “pacote tecnológico” moderno e eficiente, cu-
jo carro-chefe foi uma certa variedade do feijão. Eles contaram
para isso com o apoio decisivo da pesquisa, da assistência técni-
ca e do crédito oferecidos pelo estado de São Paulo.
Em suas conclusões, a pesquisa registrava um profundo pro-
cesso de diferenciação social, pelo qual os produtores vivencia-
vam movimentos ascendente ou descendente (hacia arriba ou ha-
cia abajo, como diziam os coordenadores latino-americanos do
projeto), sem que isso implicasse para o produtor a perda da con-
dição camponesa. A “decomposição” do campesinato, que ocorre
quando o produtor perde a condição camponesa e se transforma
em empresário ou proletário, também foi observada na região,
porém, numa dimensão menos expressiva. A pesquisa observou,
igualmente, que a construção do espaço de reprodução desses
agricultores ocorria no contexto particular de suas relações com
o mercado e com o estado e de mudanças no padrão tecnológi-
co. A constatação empírica da permanência de um setor, que não
hesitávamos em definir como camponês, nos distanciava, portan-
to, de qualquer referência a “formas residuais” do campesinato,
“em vias de desaparecimento”. Não pude participar da pesquisa
até o final, pois, grávida, fui desaconselhada pelo médico a reali-
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zar viagens longas e cansativas. Graziano e Ângela compreende-
ram meus limites.
Na continuação, minha segunda pesquisa teve como título
Trajetória social e projeto de autonomia: os produtores familia-
res de algodão da região de Campinas, São Paulo. Os produtores
de algodão de Araras e Leme eram, em sua grande maioria, pe-
quenos proprietários, que trabalhavam com suas famílias. O al-
godão é uma cultura sujeita a sérios riscos naturais – doenças e
pragas –, ao mesmo tempo em que é submetida a estritas normas
de qualidade, em sua condição de matéria-prima industrial. Ela
deve, assim, ser realizada com elevado padrão tecnológico, o que
exige, além da capacitação dos produtores, o investimento de uma
soma importante de capital no processo produtivo. No caso estu-
dado, esses produtores dispunham de um capital relativamente
importante, adotavam uma tecnologia moderna, segundo as
orientações dos serviços de assistência técnica e eram relativa-
mente bem-remunerados. Pude perceber, no entanto, que viviam
uma série de tensões nos diversos planos de suas relações econô-
micas e sociais: com o estado, que exercia uma forma de tutela so-
bre suas práticas produtivas; com o mercado de insumos, em tor-
no dos preços dos mesmos; com o mercado comprador do
algodão (as beneficiadoras do produto), também sobre os preços,
mas, especialmente, a respeito da imposição das normas de qua-
lidade e, finalmente, com o mercado de trabalho, uma vez que a
colheita de algodão permanecia manual e era realizada por traba-
lhadores externos à família. No entanto, essa integração subordi-
nada ao mercado não anula a afirmação de um projeto familiar,
que se expressa, fundamentalmente, na prioridade atribuída pe-
los agricultores à consolidação do patrimônio familiar e no com-
prometimento dos membros da família no processo de trabalho
do estabelecimento. O caráter contraditório dessa subordinação
que, ao submeter, integra e viabiliza o trabalho familiar trans-
forma a unidade de produção e ainda incita diversas ações de
resistência, funda os limites do que denominei uma autonomia
relativa. Esse conceito me permitiu qualificar as contradições es-
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pecíficas vivenciadas pelos agricultores familiares, reconhecendo
o “lugar” que eles ocupam na heterogeneidade da sociedade ca-
pitalista brasileira.
A partir de 1984, participei da pesquisa internacional que
consistia no estudo comparativo sobre a agricultura familiar em
cinco países: França, Polônia, Canadá, Tunísia e Brasil. Os resul-
tados, que foram publicados em dois tomos, em francês, polonês
e português, permitiram sedimentar para os seus autores uma
concepção da agricultura familiar nas sociedades modernas. Ela
é heterogênea em suas formas de expressão social, e essa realida-
de multiforme é conseqüência direta de sua capacidade de adap-
tação a situações diversificadas. Em conseqüência, mais impor-
tante do que registrar seu desempenho econômico, torna-se
necessário compreender o que move esses agricultores no contex-
to em que vivem e, sobretudo, que estratégias adotam para im-
plementar seus projetos de reprodução.
O primeiro tomo dessa publicação, A agricultura familiar –
Uma realidade multiforme, foi consagrado à apresentação da pro-
posta teórico-metodológica que norteava a equipe, bem como de
uma síntese a respeito da agricultura familiar em cada país sele-
cionado. Assinei, com Anita Brumer, Ghislaine Duque e Fernan-
do Antônio Lourenço, o capítulo sobre o Brasil. No segundo to-
mo, dedicado ao estudo comparativo propriamente dito, os
temas trabalhados na pesquisa de campo foram analisados de
forma transversal, isto é, considerando sua incidência nas 13
áreas dos 5 países.3
O “lugar” dos rurais
Para o segundo tomo – A agricultura familiar – Do mito à reali-
dade –, escolhi, juntamente com Fernando Lourenço, o tema re-
ferente à vida local dos agricultores familiares. Um dos últimos
estudos no Brasil sobre o tema das relações entre o mundo rural
e o mundo urbano havia sido o de Maria Isaura Pereira de Quei-
roz, a respeito dos “bairros rurais paulistas”, publicado em 1973.
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3 Hugues Lamarche(coord.), A agriculturafamiliar – Uma realidademultiforme. Campinas:Editora da Unicamp,1993, v. 1; A agriculturafamiliar – Do mito à rea-lidade. Campinas: Edito-ra da Unicamp, 1998, v. 2.
Essa questão começou a me interessar por ocasião da pesquisa
realizada em Leme. Boa parte dos agricultores, produtores de al-
godão, residia na sede municipal, cidade com 70 mil habitantes,
localizada num importante eixo urbano-industrial do estado de
São Paulo. Como os sítios eram relativamente próximos e os
meios de transporte acessíveis, as relações entre (esse) meio rural
e (essa) cidade eram freqüentes, o que não impedia os agriculto-
res (os homens mais que as mulheres; os adultos, mas não os jo-
vens) de manter suas formas tradicionais de lazer no meio rural,
tais como pescarias, festas religiosas e encontro com os amigos
dos sítios. Posteriormente, quando da aplicação da pesquisa no
Canadá, constatei que os agricultores viviam em suas proprieda-
des, porém com um acesso intenso à cultura urbana, no que se
refere ao uso cotidiano de bens e serviços disponíveis ao conjun-
to da população do país, o que incluía o gozo anual de férias nos
vizinhos Estados Unidos ou mesmo na Europa. Analisando o con-
junto das áreas pesquisadas, percebemos que os agricultores fa-
miliares têm acesso, diferenciado sem dúvida, à cultura urbana e
ampliam seus espaços de interação, para além do âmbito local,
atingindo as esferas regionais e nacionais. No entanto, mesmo na
França e no Canadá, os países mais “modernos” do universo da
pesquisa, o meio rural é para eles o espaço das relações de proxi-
midade e de interconhecimento, que permanece valorizado.
Vivo hoje no Recife, onde continuo exercendo minhas ativi-
dades de professora e pesquisadora, como colaboradora do Pro-
grama de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE e como bolsis-
ta do CNPq. As pesquisas subseqüentes já foram realizadas após
minha instalação no Recife, como um desdobramento dos inte-
resses já assumidos até então, e tinham por objeto, mais uma vez,
a compreensão do mundo rural brasileiro na atualidade e a agri-
cultura familiar.
Apesar da distância, os laços com a Unicamp não se rompe-
ram. Tive a felicidade de poder continuar ligada ao Ceres através
do Projeto Capes/Procad, O Mundo Rural e as Ciências Sociais –
Produção de Conhecimento e Formação de Pesquisadores, que
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reuniu numa profícua parceria, de 2001 a 2005, os estudiosos do
mundo rural brasileiro da Unicamp e das Universidades Federais
do Rio Grande do Norte, Campina Grande e Pernambuco. Neste
e em tantos outros espaços acadêmicos, o encontro com os pes-
quisadores do Ceres é, sempre para mim, um momento de ale-
gria, mas também, por que não dizer, de saudade.
MARIA DE NAZARETH BAUDEL WANDERLEY é professora aposentada da Unicamp,colaboradora do PPGS–UFPE.
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A R T I G O S
TEMPOS E ESPAÇOS NOS MUNDOS RURAIS DO BRASIL
CARLOS RODRIGUES BRANDÃO
R E S U M O Este trabalho é uma espécie de “segunda parte” de um estudo an-
terior, mais teórico e bibliográfico, sobre a questão da existência, vivência e percep-
ção cultural de tempos e espaços no mundo rural. Um trabalho situado entre lei-
turas de geografia e de antropologia. Meu propósito aqui é descrever um pouco das
diferenças existentes hoje entre as diversas modalidades de “experiência de tempos-
espaços” nas diversas modalidades de comunidades rurais (ou relacionadas ao mun-
do rural) por ventura (ou desventura) presentes no Brasil de hoje. Parto do princí-
pio (aliás, evidente) de que o “mundo rural brasileiro” é muito mais diversificado
e polissêmico do que em geral se imagina. Retomo algumas idéias há muito tempo
desenvolvidas por José de Souza Martins em Capitalismo e tradicionalismo e des-
crevo o que me parece mais característico de três formas sociais de viver e trabalhar
no mundo rural.
P A L A V R A S - C H A V E Espaços-tempos rurais; camponeses; mudança
social.
A B S T R A C T This work is a kind of “second part” of a previous study, more
theoretical and bibliographical in nature, on the issues of existence, experience anc
cultural perception of times and spaces in the rural world. It is a work placed between
anthropological and geographical readings. My aim is to describe some of the current
differences between several modes of “experiencing space-times” which prevail in
distinct modes of rural (or rural-related) communities which exist in today’s Brazil,
for better or worse. I start from the (incidentally self-evident) principle that the
“Brazilian rural world” is much more diverse and polysemic than one generally
imagines. I go back to a few ideas developed a long time ago by José de Souza Martins
in Capitalism and Traditionalism to describe what seems to me to be most
characteristic in three social forms of life and work in the rural world.
K E Y W O R D S Rural spaces-times; peasants; social change.
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UM BREVE OLHAR PARA ONTEM
Uma leitura dos estudos que nos últimos 50 anos provem da an-
tropologia, da geografia e mesmo da sociologia haveria de nos lem-
brar que a maior parte dos trabalhos de campo de que resultaram
e seguem resultando artigos, livros, dissertações e teses, em que
questões como as relações culturais tempo-espaço são levadas em
conta, ou são mesmo essenciais, são trabalhos centrados em co-
munidades rurais tradicionais. São os antigos estudos de comuni-
dade (Donald Pearson, Emílio Willems, Eduardo Galvão, Oracy
Nogueira e tantos outros), como as pesquisas pioneiras dos bair-
ros rurais paulistas, de que o recentemente republicado Parceiros
do Rio Bonito, de Antonio Candido, ao lado de Bairros rurais pau-
listas, de Maria Isaura Pereira de Queiroz, são dois excelentes
exemplos. Ou são as várias pesquisas de sociedades camponesas tra-
dicionais, que por um longo tempo têm ocupado o tempo e os es-
tudos de vários cientistas sociais.1
Vistos de cima e de passagem, às vezes parece que as comu-
nidades rurais tradicionais são enfocadas a partir do espaço e da
cultura, ao passo que as frentes pioneiras ou de expansão, as áreas
de conflito agrário, os acampamentos e assentamentos da refor-
ma agrária são estudados a partir do tempo e da história. Tere-
mos então, de um lado, um excesso de cultura (espaço) sem his-
tória e, de outro, um excesso de história (tempo) sem cultura.2
Há muitos espaços sem tempos, de um lado, e muitos tempos sem
espaços, de outro. E é difícil encontrar um ponto de equilíbrio en-
tre essas duas dimensões que tanto na natureza quanto nas socie-
dades humanas não existem nunca em separado.
Com a atenção talvez centrada demais naquilo que se trans-
forma e moderniza no mundo rural da atualidade global e brasi-
leira, Milton Santos quase descreve o campo através do que nestes
últimos anos ele deixou de ser, para ser aquilo em que vertigino-
samente, e, não raro, de maneira lastimável, ele se transforma.
Uma racionalidade empresarial domina todo o cenário da ci-
dade, do campo e das relações entre um e outro. Essa racionali-
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1 Apenas para lembraralguns autores nas ciên-cias sociais: Nice L. Mul-ler, “Sítios e sitiantes noestado de São Paulo”, Bo-letim USP, n. 132, Geo-grafia, 1951; Maria Isau-ra Pereira de Queiroz,Bairros rurais paulistas,Duas Cidades, 1973, eCampesinato brasileiro,Vozes, 1976; AntonioCandido, Os parceiros doRio Bonito, Duas Cida-des, 1971; Emílio Wil-lems, Cunha – Tradição etransição em uma culturarural no Brasil, Secretariade Agricultura do Estadode São Paulo, 1947; Ro-bert Shirley, O fim deuma tradição, Perspecti-va, 1971; José de SouzaMartins, Capitalismo etradicionalismo, Pionei-ra, 1975; Afrânio GarciaJr., Terra de trabalho: tra-balho familiar e pequenosagricultores, Paz e Terra,1983; Margarida MariaMoura, Os herdeiros daterra, Hucitec, 1978; Osdeserdados da terra, Ber-trand Brasil, 1988; Olin-da Maria de Noronha, Decamponesa a “madame”– Trabalho feminino e re-lações de saber no meiorural, Loyola, 1986; Leo-narda Musumeci, O mitoda terra liberta, Anpocs,Vértice,1988;Luiz Eduar-do Soares, Campesinato,ideologia e política, Za-har, 1981; Klaas Woort-mann,“Com parente nãose neguceia”, AnuárioAntropológico, n. 87, 1990;Jadir de Moraes Pessoa,Cotidiano e história, Edi-tora da Universidade Fe-deral de Goiás, 1997;Carlos Rodrigues Bran-dão, A partilha da vida,GEIC, Cabral, 1995.
2 Algo semelhante acon-tece em outros camposde estudos sociais. Nocampo das pesquisas so-bre religiões no Brasil,
dade de que o “agronegócio” é o melhor (e o pior) espelho altera
estruturas sociais de poder, de apropriação de espaços de vida,
trabalho e produção. Altera – às vezes depressa demais – espaços,
terras, territórios, cenários, tempos e paisagens. Movida pelo pe-
so do capital, pela racionalidade capitalista e por uma tecnologia
industrializada que em poucos meses transforma biomas de cer-
rado no norte de Minas em milhares de alqueires do deserto ver-
de dos eucaliptais e que faz os círculos de plantio de soja em la-
vouras irrigadas chegarem até nas portas de Brasília, além de
alterar a vida de paisagens e de pessoas, das beiras do Chuí às do
Oiapoque.
Por toda a parte estamos envolvidos com novos termos en-
tre a terra e o trabalho, novos conflitos, ou o aguçar dos velhos
conflitos entre antigos e novos personagens rurais ou “no cam-
po”. Uma racionalidade centrada no lucro, na competência espe-
cializada e na competição legitimada como uma forma quase úni-
ca de realização do “progresso” quebra o que resta ainda de visões
e vivências tradicionais de tempo-espaço rural e de modos de vi-
da a que se aferram ainda os índios e os camponeses.
Cria-se, praticamente, um mundo rural sem mistérios onde
cada gesto e cada resultado deve ser previsto, de modo a as-
segurar a maior produtividade e a maior rentabilidade pos-
sível. Plantas e animais já não são herdados das gerações an-
teriores, mas são criaturas da biotecnologia; as técnicas a
serviço da produção da armazenagem, do transporte, da
transformação dos produtos e de sua distribuição, respondem
pelo modelo mundial e são calcados em objetivos pragmáti-
cos, tanto mais provavelmente alcançados, quanto mais cla-
ro for o cálculo na sua escolha e na sua implantação. É desse
modo que se produzem nexos estranhos à sociedade local, e
mesmo nacional, e que passam a ter um papel determinante,
apresentando-se tanto como causa, quanto como conseqüên-
cia da inovação técnica e da inovação organizacional. O todo
é movido pela força (externa) dos mitos comerciais, essa ra-
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por exemplo, os pesqui-sadores que se dedicamaos estudos dos sistemasreligiosos de tradiçãoafro-brasileira e, em es-pecial, o candomblé, oudo catolicismo popular,em geral “desestorificam”o seu olhar e aprofundammuito uma etnografia demitos, símbolos e sig-nificados profundos. Jáaqueles que investigam oprotestantismo ou a Igre-ja Católica, como umainstituição social com-plexa, “desculturalizam”o olhar e se dedicam aquestões sociopolíticasrelacionadas a organiza-ções formais da Igreja, asituações de conflito e a relações de poder.
zão do mercado que se impõe como motor do consumo e da
produção.
Nesse mundo rural assim domesticado, implanta-se um im-
pério do tempo medido, em que novas regularidades são bus-
cadas. Muitas delas só se tornam possíveis quando tem êxito
a vontade de se subtrair às leis naturais. O respeito tradicio-
nal às condições naturais (solo, água, insolação, etc.) cede lu-
gar, em proporções diversas, segundo os produtos e regiões, a
um novo calendário agrícola baseado na ciência, na técnica e
no conhecimento.3
O que Milton Santos diz aqui não nos é desconhecido. E, se no
começo do segundo parágrafo ele emprega a palavra “domestica-
do”, eis uma palavra bem-escolhida. Pois de fato bem sabemos que
a junção do capital flexível, as novas tecnologias aplicadas sobretu-
do à pecuária e à monocultura e, como sua “ciência”, sua lógica e
sua ideologia invadem tanto o campo rural quanto todos os outros
campos da vida (no sentido agora conferido por Pierre Bourdieu a
essa palavra), ora propondo e ora impondo uma outra ética dirigi-
da à criação de saberes, valores, sentimentos e sociabilidades que
gerem modos de vida tão “modernos” que terminem, sabendo dis-
so ou não, inteiramente submetidos a essa nova racionalidade.
Como tantos outros estudiosos da “condição pós-moderna”
antecipam há já alguns anos, tanto na cidade quanto no campo,
não são apenas algumas esferas da vida mais diretamente associa-
das ao capital e ao trabalho as que devem enquadrar-se e serem
cada vez mais regidas pela lógica dessa neo-racioalidade e pela éti-
ca e política de seus modos de vida (de sua neocultura, se quiser-
mos), mas todas as esferas, se possível das vidas de todas as cate-
gorias de pessoas, grupos humanos e comunidades sociais.
Juntos, as novas técnicas e o novo capital, deixam de ser, co-
mo no passado, exclusivamente de um domínio particular de
atividade e se espalham por todo o corpo social, tornando-se
verdadeiros regedores do tempo social.4
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3 Milton Santos, op. cit.,p. 243, cap. 13: “Espaçosda racionalidade”.
4 Milton Santos, op. cit.,p. 246, cap. 13.
E não apenas nos tempos para pensar e viver a temporalida-
de, mas também uma nova ordenação dos espaços que vão da re-
lação entre os corpos às relações entre os poderes, as proprieda-
des e as classes sociais.
Devemos, no entanto, desconfiar dessa expansão sem limites
e não-questionável, ou fracamente questionadas da lógica do ca-
pital flexível conduzido sobretudo pelas unidades de expansão do
agronegócio em suas diferentes fases e faces. Em primeiro lugar
porque há, diante dela, por toda a parte, uma resistência ativa de
grupos e comunidades expropriados por ela. Em segundo lugar
porque há também uma outra resistência menos ativa, menos mo-
bilizada, mas nem por isso menos “resistente”. Veremos mais
adiante o mesmo geógrafo opondo à “racionalidade do capital” e
da agricultura do mercado uma “outra racionalidade”, ou mesmo
outras “contra-racionalidades”, as do mundo da vida, do trabalho
ou, se quisermos trazer aqui uma feliz expressão de José de Sou-
za Martins, da agricultura de excedente.5
Em todo o Brasil, através de todos os espaços de “sistemas de
objetos e sistemas de ações” e dos mais diversos grupos humanos
e modos de vidas, populares ou não, entrevemos a ação de movi-
mentos sociais do MST ao SOS Mata Atlântica. Pela via da questão
agrária, pela via da questão ambiental, pela via dos direitos hu-
manos ou por outras vias de enfrentamento que a elas se somam
e com elas interagem, são inúmeras as unidades de ações sociais
que se opõem à racionalidade, ao poder e aos interesses da expan-
são globalizada do capital no campo, como propõem, no bojo de
suas diferentes contra-racionalidades, outras e opostas alternati-
vas de gestão social de tempos e de espaços, de vidas e de mun-
dos de vida e de trabalho.
De outra parte, de igual maneira estamos diante de um múl-
tiplo e nada uniforme ou globalizado mundo rural. Somos ali-
mentados por grãos, frutas e folhas que ainda provêm bem mais
da multivariança da agricultura familiar típica do campesinato
tradicional e da expansão (menos visível, mas possivelmente mais
sólida) de novas alternativas de produção e gestão do ambiente e
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5 Ver o seu sempre atualCapitalismo e tradiciona-lismo. São Paulo: Pionei-ra, 1975.
dos bens da terra, como a agricultura orgânica, a permacultura,
a agrossilvicultura e outras mais. De um lado, as imensas áreas
uniformemente tomadas de pessoas e culturas tradicionais para
abrigarem o gado ou a soja. De outro, a criação recente de áreas
crescentes de produção agropastoril e mesmo madeireira regi-
das por princípios de sustentabilidade e solidariedade. Longe, na
Amazônia, a expansão de experiência dos “povos da floresta”, co-
mo os seringueiros do Xapuri são exemplos de uma fecunda con-
tra-racionalidade.
Onde parece haver uma uniformização crescente e irrever-
sível, podemos estar diante, também, de uma crescente diferen-
ciação de formas culturais de vida e modos sociais de trabalho
no campo. Comunidades indígenas ampliam suas áreas de espa-
ços-reservas homologadas e, pouco a pouco e perigosamente, al-
gumas delas se integram a uma economia regional de exceden-
tes. Comunidades negras rurais quilombolas (bem mais do que
contamos ou imaginamos até agora) conquistam o direito de
existirem em suas terras ancestrais de pleno direito. Comunida-
des camponesas reinventam estratégias para se preservarem,
transformando todo o necessário para que o essencial de suas
formas de vida não se perca. Acampamentos dos movimentos so-
ciais da reforma agrária cobrem de lonas pretas tanto os espaços
estritos das beiras de estradas, quanto as terras de fazendas im-
produtivas e ocupadas. Um campesinato modernizado, em par-
te cativo, mas em parte ainda livre diante do poder do agrone-
gócio, não apenas sobrevive, mas se reproduz com sabedoria.
Ao analisar transformações macroestruturais em todo o
mundo em uma “era de globalização”, Octavio Ianni soma-se a
outros estudiosos “do que está acontecendo”, ao lembrar que,
mesmo nos espaços mais aparentemente dominados pelo gi-
gantismo “do que mudou”, as formas de vida comunitárias e
tradicionais, de ocupação e produção em multiespaços parti-
lhados de vida, labor e trabalho, não apenas resistem e sobre-
vivem, mas, em alguns cenários, elas proliferam, adaptam-se e
transformam-se. Ainda que essa transformação represente uma
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progressiva perda de autonomia em nome dos pólos dominan-
tes de domínio da economia agropastoril. Ianni lembra que o
próprio agronegócio se expande a expensas da pequena agri-
cultura e, mais ainda, em aliança com pequenas e médias pro-
priedades agrícolas modernizadas e a meio caminho entre a eco-
nomia de excedente e a economia de mercado, segundo José de
Souza Martins.6
Sabemos que tudo está mudando, e nada mudou ainda in-
teiramente. A começar pela desigualdade social, a expropriação,
o empobrecimento de quem já era pobre e a expansão da nova
racionalidade de que nos fala Milton Santos. E podemos então
concordar com Vera Salazar, em uma passagem do documento
apresentado em um seminário sobre a reforma agrária, no Insti-
tuto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia.
A revolução tecnológica, expressa na modernização da agri-
cultura, a partir da década de 1970, representa esta transfor-
mação que, no entanto, não alterou significativamente a con-
figuração do quadro agrário brasileiro. A concentração de
terra e de riquezas no campo e na cidade, as disparidades re-
gionais no que tange à renda dos agricultores, ao predomínio
de certos cultivos, visando o mercado externo se mantiveram
(e se mantém) reproduzindo e fortalecendo as distorções es-
truturais que definem e embasa a história da estrutura agrá-
ria brasileira.7
A dupla resistência lembrada linha acima implica aquilo que
mais nos interessa compreender. É que tanto em sua atividade
mobilizada quanto em sua tradicionalidade modernizada existem
diferentes formas próprias ou apropriadas de pensar a vida e o
mundo. Voltemos por uma última vez aqui a Milton Santos.
Ante a racionalidade dominante, desejosa de tudo conquistar,
pode-se, de um ponto de vista dos atores não beneficiados, fa-
lar de irracionalidade, isto é, de produção deliberada de situa-
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7 Vera Lúcia Salazar Pes-soa, “Entre o rural e o ur-bano – Construindo gru-pos de pesquisas”. Textoelaborado para a Mesa-Redonda III: Grupos dePesquisa – Agricultura eDesenvolvimento Regio-nal: Relatos de Experiên-cias, p. 1.
6 Octavio Ianni, A era doglobalismo. Rio de Janei-ro: Civilização Brasileira,2002.
ções não-razoáveis. Objetivamente pode-se dizer também
que, a partir dessa racionalidade hegemônica, instalam-se pa-
ralelamente contra-racionalidades.
Essas contra-racionalidades se localizam, de um ponto de vis-
ta social, entre os pobres, os migrantes, os excluídos, as mino-
rias: de um ponto de vista econômico, entre as atividades mar-
ginais, tradicional ou recentemente marginalizadas; e, de um
ponto de vista geográfico, nas áreas menos modernas e mais
“opacas”, tornadas irracionais para usos hegemônicos. Todas
essas situações se definem pela sua incapacidade de subordi-
nação completa às racionalidades dominantes, já que não dis-
põem dos meios para ter acesso à modernidade material con-
temporânea. Essa experiência da escassez é a base de uma
adaptação criadora à realidade existente.8
Formas culturais e populares de racionalidades e de sensibi-
lidades que poderiam parecer anti-racionais e ultrapassadas. Sis-
temas de idéias e estilos de ação fora do tempo e do lugar. No en-
tanto eles podem ser pensados como contra-racionalidades.
Como a defesa de espaços de vida e de trabalho no campo, não
apenas postos à margem, mas auto-situados em zonas de frontei-
ra geográfica, social e simbólica de um processo proclamado por
seus realizadores como algo inevitável, benéfico e irreversível de
“modernização do campo”. Uma modernização insustentável que
traz para o mundo rural escalas e interações de tempo-espaço tí-
picas da empresa fabril moderna. Com a diferença de que “lá”, na
cidade, as fábricas estão ainda repletas de trabalhadores, enquan-
to no campo largos espaços de produção de mercado precisam es-
tar cada vez mais vazios de braços humanos, para dar lugar às
poucas máquinas que, primeiro, substituíram famílias de campo-
neses e, depois, as próprias pessoas de trabalhadores volantes. As-
sim, diante do avanço expropriador e uniformizante do capital
flexível, todas as supostas anti-racionalidades que a ele se opõem
podem ser compreendidas como diferentes alternativas de outras
racionalidades.
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8 Milton Santos, op. cit.,p. 246, cap. 13.
PROXIMIDADE E DIFERENÇA: SISTEMAS DE PRODUÇÃO, MODOS DE VIDA E VIVÊNCIA DE TEMPOS E ESPAÇOS NOS MUNDOS RURAIS BRASILEIROS
Retomemos de forma mais ordenada aqui os argumentos que
acabam de nos deixar, entre as linhas acima. Seja porque toda a
expansão do poder, dos interesses e da racionalidade do agrone-
gócio provoca a persistência de antigos e a emergência de novos
poderes, modos de vida e racionalidades rurais e populares (Mil-
ton Santos), seja porque, no fim das contas, a expansão do ca-
pital flexível, agropecuário,“não alterou significativamente a
configuração do quadro agrário brasileiro” (Vera Salazar), po-
demos pensar em perguntas opostas às respostas que apontam
para uma uniformização rotinizante dos espaços de vida e de
trabalho dos mundos rurais brasileiros, sob os “novos tempos”
da modernização capitalista. Não estaremos nós diante de uma
persistente e essencial (no sentido de não-marginal) presença de
antigas e novas múltiplas formas de interação entre tempos-e-
espaços, que caracterizam e seguem caracterizando a experiên-
cia pessoal, interativa e social dos diversos atores e dos diversos
modos de vida das diferentes modalidades de presença humana
no campo, hoje?
Quero retomar aqui algumas idéias de José de Souza Mar-
tins em Capitalismo e tradicionalismo. Faço a síntese das que nos
tocam de mais perto aqui. A pequena unidade camponesa de tra-
dicional agricultura familiar não é marginal à expansão do capi-
tal agrário e nem é uma experiência social em extinção. Ao con-
trário, ela é orgânica e essencial à expansão do capitalismo no
campo.
Lembremos José de Souza Martins. Essa agricultura tradicio-
nal não é uma agricultura de consumo, mas uma agricultura de ex-
cedente. Seus produtores geram tanto os bens de consumo fami-
liar quanto, e em múltiplos casos, principalmente o excedente que
é destinado à troca e à venda em mercados vicinais, locais e mes-
mo regionais. Pequenos proprietários e produtores arrendatários
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de terra plantam e criam diretamente para o mercado e, em dife-
rentes situações, tendem a tornar-se “cativos”de produtores maio-
res ou mesmo de empresas que financiam a produção e detêm o
poder de compra de seus produtos. Há um momento em que, des-
crevendo estratégias de produção e venda de produtos da terra
em uma região por onde eu mesmo passei anos depois, em pes-
quisa de campo, ele diz o seguinte:
Vê-se que na montanha, tanto no Alto Paraíba quanto na
Mantiqueira, a população rural produz diretamente os bens
da sua subsistência (feijão) e um excedente de aproximada-
mente 1/4 do produto para semente e comércio. Na planície,
contudo, a população rural produz menos da metade do fei-
jão que provavelmente consome. Mas, na planície e na mon-
tanha (agora apenas o Alto Paraíba) estimo que menos de 10%
do leite produzido destina-se ao consumo dos próprios pro-
dutores. A sua produção tem em vista o mercado.9
Podemos situar essa agricultura rústica, camponesa, familiar,
ou que nome tenha, em diferentes pontos a meio caminho de uma
linha de alternativas que começa, aí sim, em unidades familiares
ou mesmo coletivas de produção de consumo e as unidades em-
presariais de produção de mercado. Concordo com José de Souza
Martins em que, fora o caso das comunidades indígenas – e, mes-
mo assim, nem todas e nem sempre – e fora o caso de algumas
comunidades muito isoladas mesmo de um mercado local, ou de
produção muito limitada, que caracterizariam uma restrita pro-
dução de consumo, na qual se troca e, mais ainda, se vende apenas
o pouco que sobrou do consumo destinado ao grupo familiar ou
à unidade maior, a comunidade, todas as outras constituem as di-
ferentes modalidades de tempos-espaços produtoras de econo-
mias de excedente.
A própria conversa cotidiana, seja entre vizinhos, amigos e
parceiros do trabalho, seja em âmbito familiar (ali onde as opi-
niões das esposas são bastante mais importantes do que se ima-
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9 Op. cit., p. 10, 11. Devodizer que, pesquisandovários anos mais tardecomunidades campone-sas nas mesmas regiõesde montanha (Catuçaba,em São Luís do Parai-tinga, no Alto Paraíba eJoanópolis, na serra daMantiqueira paulista),encontrei dados bastantepróximos. E eles valemtambém para a venda deoutros produtos, comomilho, cebola, porcos egado de corte.
gina em geral), versa quase sempre sobre assuntos ligados “à lida”
com as plantas e/ou os animais. E, nelas, as questões relativas às
estratégias de comercialização local e regional dos excedentes ga-
nham um lugar cada vez mais central. Economias familiares, de
tipo tradicional camponês, seja na direção de uma ainda maior
tradicionalidade, seja como no caso de alguns assentamentos da
reforma agrária, não situadas à margem de sistemas dominantes
de economias de mercado, mas integradas em e entre os seus es-
paços territoriais de natureza, sociedade e mesmo de cultura.
Podemos concordar com Graziano Neto e também com vá-
rios outros estudiosos dos processos de transformação da agricul-
tura, da pecuária e mesmo de atividades de extração direta dos
bens da terra (indústria madeireira, mineração etc.), quando lem-
bram que a suposta ou real “modernização do campo brasileiro”
foi bastante conservadora. Ela se realiza bem mais no plano agrí-
cola do que no agrário. Ela “moderniza” formas de apropriação e
de concentração da propriedade fundiária e não na direção ver-
dadeiramente moderna. Isto é, a de uma efetiva democratização
social e econômica do acesso à terra e às efetivas condições sociais
e tecnológicas do trabalho com a terra. Modernizamos tecnoló-
gica e capitalisticamente a agricultura, criamos às pressas um mo-
delo importado de agronegócio sem havermos antes procedido a
uma modernização estrutural do campo.10
Os sucessivos “programas de reforma agrária” seguem desti-
nando aos homens da terra porções residuais de “lotes” em assen-
tamentos precariamente assistidos, enquanto se empenham, uns
após os outros, em apoiar os latifúndios de agropecuária de mer-
cado e a incentivar a expansão do agronegócio, à custa de um cres-
cente deterioro das condições de vida de famílias e de comunida-
des rurais e de uma degradação, em vários espaços, irreversível,
do meio ambiente, como vejo ocorrer agora no norte de Minas,
onde trabalho com uma equipe de pesquisa nas duas margens do
rio São Francisco.
Assim, se quisermos estender um olhar geográfico não ape-
nas ao que parece mais visível, mais dinâmico e mais conflitivo
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10 Francisco GrazianoNeto, Questão agrária eecologia – Crítica da mo-derna agricultura. SãoPaulo: Brasiliense, 1982.
nos diferentes mundos não-urbanos do Brasil (para aí incluirmos
também os territórios e as comunidades das diferentes outras
étnicas no país), poderemos trabalhar com três amplas categorias
de ocupação de territórios, de apropriação da terra, de manejo do
ambiente, de criação de tipos de vida social e suas diferentes
culturas. E, nelas, de diferentes modalidades de experiência, de
percepção-compreensão e de recriação de seus diversos espaços-
tempos. Enfim, daquilo que em boa medida atribui substância
geoexistencial ao que Milton Santos lembrava linhas acima como
as nossas diferentes racionalidades. Pois pensar racionalmente um
mundo começa por criar os padrões tempo-e-espaço, em que su-
jeitos sociais criam os cenários entre a natureza e a cultura, que
os recriam como múltiplos e interativos atores culturais dos dra-
mas de vidas que compartem.
E este seria o momento de lembrarmos uma vez mais que,
tal como acontece em outros campos da experiência humana,
sobram vivências, pesquisas e teorias a respeito da construção
cultural de sentidos de tempo-e-espaço em sociedades indíge-
nas e sociedades regionais tradicionais, entre terras de negros,
terras de santos e terras de camponeses patrimoniais, do que en-
tre unidades rurais modernizadas, quaisquer que sejam as suas
dimensões e vocações de economia. Conheço inúmeras pesqui-
sas sobre o viver, o sentir e o saber de tempos e de espaços em
comunidades indígenas, ou em comunidades étnicas tradicio-
nais (como as da ilha de Bali, estudadas pelo mesmo Clifford
Geertz), do que em áreas de frentes pioneiras e de expansão (em-
prego aqui ainda categorias de José de Souza Martins), em ter-
ritórios de unidades camponesas modernizadas, como tantas no
Sudeste e no Sul do Brasil, em latifúndios de economia de mer-
cado e mesmo em assentamentos e acampamentos da reforma
agrária.
Essa diferença de ênfase de olhares diferentes entre antropó-
logos, geógrafos e outros cientistas sociais por certo acompanha
o que parece de fato “dar-se a ver” na diversidade de nossos ter-
ritórios, paisagens e unidades sociais situadas fora das cidades.
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Acompanha também a própria relação existencial da experiência
pessoal, interativa e social da relação-criação de tempo-espaço.
Em termos que vão de uma geografia das paisagens a uma an-
tropologia dos dramas sociais, podemos estabelecer um gradiente
aliás já sugerido acima.11 De um lado ficam as comunidades so-
ciais e culturas associadas à variedade de produções de consumo,
entre indígenas, quilombolas, camponeses tradicionais e quase
isolados. A meio caminho coloquemos as unidades rurais associa-
das à produção de excedentes. Entre eles, demarquemos posições.
Na linha de fronteira com as “comunidades de consumo”, estão os
outros produtores familiares de padrão camponês tradicional (co-
mo os das culturas caipiras de São Paulo), sejam eles proprietá-
rios sitiantes, moradores agregados, parceiros. A meio caminho fi-
cam os pequenos produtores camponeses, ainda patrimoniais, ou
algo já mais modernizados. Na posição mais próxima às unidades
de produção de mercado, até pelas relações de proximidade, aco-
modação forçada e conflito com ela, ficam os lavradores antigos
e recentes das terras apropriadas pela reforma agrária. Finalmen-
te, no pólo oposto situam-se as unidades típicas da produção de
mercado, caracterizadas hoje pelo agronegócio. Entre os sujeitos
populares, ficam aí pequenos produtores cativos do mercado, pro-
dutores já especializados para o mercado. Estão também todos os
múltiplos trabalhadores rurais, entre condutores especializados de
máquinas agrícolas e trabalhadores volantes.
Bem sabemos que, tanto em casos individuais quanto em ter-
mos de comunidades inteiras, quase já não existem mais “tipos
puros” de sujeitos rurais. Um bom exemplo dessa variância cres-
cente são as comunidades muito tradicionais de pequenos agri-
cultores do vale do Jequitinhonha (e de quantos outros vales no
Brasil), que, justamente para poderem manter a propriedade e a
vida rural tradicional, migram sazonalmente para terras distan-
tes de São Paulo em busca de trabalho assalariado associado à mais
moderna e devastadora produção de mercado.
Deixemos de lado os senhores do poder e do capital e foque-
mos o olhar sobre os outros “homens da terra”, a começar por
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11 Tomo emprestada es-ta categoria que passa doteatro à antropologiaatravés de estudos bas-tante conhecidos de Vic-tor Turner, Drams, fieldsand metaphors: symbolicaction in human society.Ithaca: Cornell Univer-sity Press, 1985.
pessoas, famílias e comunidades de povos indígenas e quilombo-
las até todos os outros, se possível: os agricultores e pecuaristas,
agricultores camponeses, de produção ainda familiar, pequenos
proprietários, sitiantes tradicionais; os trabalhadores rurais par-
ceiros, “agregados” e “moradores” ou não, trabalhadores parcei-
ros, meeiros e, no limite, arrendatários. Sigamos adiante em di-
reção aos outros “herdeiros”, “deserdados” e expropriados da
terra: os camponeses, os expropriados, os trabalhadores diaris-
tas, volantes, os peões de fazendas, os acampados nas beiras de
estrada e os assentados da reforma agrária, enfim, os homens po-
bres da terra.12
Em que espaços eles habitam, vivem, trabalham, se reprodu-
zem e pensam a vida e o mundo? Em que tempos se movem e co-
mo representam o seu passar? Como, nesta era em que mesmo no
campo tudo muda e permanece como está, tudo se move (a co-
meçar pela vida dos migrantes) e, aqui e ali, parece ainda tão igual
a sempre, tão “parado no ar”? Claro, não chegarei perto de mui-
tas sugestões de respostas a essas perguntas e àquelas que suas res-
postas haverão de reabrir. Creio, no entanto, que poderia ser pro-
veitoso abrirmos nossos horizontes aos seus limites máximos e
realizarmos juntos um exercício de precária classificação das
aproximações e diferenças entre o habitar espaços, criar espaços,
viver espaços e pensar, no tempo, os espaços da vida.
RUGOSIDADES: OS TEMPOS-ESPAÇOS ONDE O RELÓGIOÉ TAMBÉM O SOL
Em um livro que se tornou depois um clássico na antropologia,
após descrever o modo de vida dos Nuer, um povo nilota cria-
dor de gado, entre suas aldeias e os acampamentos, Evans-Prit-
chard conclui um parágrafo, após comentar o viver e o sentir do
passar do tempo deles, com uma frase pouco típica para um in-
glês já habitante de tempos em que os seus pais haviam desco-
berto que “tempo é dinheiro”. Ele conclui dizendo: “os Nuer têm
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5 0
12 Será fácil ver que es-tou empregando aquinomes comuns até mes-mo em títulos de livrossobre as diferentes cate-gorias de trabalhadoresdiretos entre os tempos-espaços sociais da terra.
sorte”. A felicidade deles está em não serem, ainda ou sempre, co-
mo nós somos.13
E o que aproxima comunidades indígenas (entre isoladas,
contatadas, integradas), comunidades quilombolas e as ainda
existentes (e cada vez mais raras), comunidades regionais cam-
ponesas semi-isoladas, é o fato de que, entre elas, para quem o
tempo ainda é mais “comida” do que “dinheiro”, o correr da vi-
da se passa no interior de uma natureza ainda muito pouco so-
cializada. Ainda apenas aos fragmentos realizada e pensada co-
mo cultura.
Como uma boa parte do que se obtém para o sustento fami-
liar e a reprodução da vida coletiva é obtido da natureza, por co-
leta, caça e pesca, os espaços da vida e do trabalho ainda são, em
uma larga medida, os da própria natureza. Depoimentos de se-
ringueiros do Acre revelam um existir no mundo e um viver es-
paços-tempos ao mesmo tempo próximos e bem distantes dos
nossos. Ali, onde a medida de minutos ou de horas pode ser da-
da pelo tempo de coleta da seringa em uma árvore, e a medida de
um dia é a soma das coletas de várias árvores, mais os desloca-
mentos entre a casa (a “colocação”) e elas.
Uma múltipla racionalidade – pois cada etnia é um caso e ca-
da comunidade cultural um outro – convive e representa os es-
paços da vida segundo padrões talvez bastante mais diferenciados
e complexos do que podemos imaginar. Pois muitas das represen-
tações que aos poucos uma cultura “moderna-e-racionalizada”re-
pensa, abole ou simplifica, ainda são essenciais entre indígenas,
quilombolas e seringueiros.
Se eu perguntar a uma estudante de mestrado em geografia
o que é a floresta onde ela está e que formas de existência habi-
tam ali, é provável que ela limite os seus espaços ao que lhe é vi-
sível. Tudo o que existe diante de seus olhos e que, ao redor, não
é nem “cidade” e nem “campo”. A terra, as plantas e, de modo es-
pecial, as árvores que a caracterizam como “uma floresta”. Ou, se
ela for mais rigorosa, “uma extensão territorial de mata atlântica
caracterizada por formações vegetais semidecíduas, característi-
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13 E. E. Evans-Pritchard,Os Nuer. São Paulo: Pers-pectiva, 1978, p. 116.
cas de algumas florestas de transição”. Eu também tenderia a ver-
e-pensar a floresta como aquilo que eu vejo e percebo como a flo-
resta-diante-de-mim. De uma maneira perceptual e existencial,
uma floresta é o que eu vejo e represento como “esta floresta”.
Um caiapó provavelmente levaria mais tempo para respon-
der o que é uma floresta. Ele provavelmente começaria por indi-
car tudo aquilo que não é visível, pois está “debaixo da terra”, mi-
nerais, águas, raízes, plantas e animais subterrâneos e algo mais.
Depois, ele por certo desdobraria a floresta em vários estratos, seis
ou sete, de acordo com o tipo de vegetais que predominam, de
acordo com os frutos que habitam cada “andar” e de acordo com
os animais que existem em cada espaço. Aquilo que uma botâni-
ca classificaria como vegetação rasteira, sub-bosque, bosque e
dossel, para o nosso caiapó poderia desdobrar-se em outras e bem
mais minuciosas derivações. E a sua floresta não acabaria no dos-
sel das árvores mais altas. Pois muito possivelmente ela se esten-
deria até o espaço acima da floresta onde voam os seus pássaros
que voam mais alto.
Com mais coragens e temores do que nós, ele e também mui-
tos camponeses quilombolas ou caboclos povoariam a nossa flo-
resta “natural” de seres que nem por não serem “da nossa natu-
reza” não seriam menos reais. Seres sub e supernaturais, dos
espíritos dos mortos aos emissários dos deuses, benévolos uns,
terríveis outros. E seres que interagem entre eles, com os animais
e as plantas e até com os seres humanos. De sorte que estar na flo-
resta e obter delas o sustento implica não apenas atos técnicos,
mas gestos entre o mágico e o sagrado.
Os próprios seres da natureza, das águas e do vento às plan-
tas e aos animais, são dotados de identidades, de forças e de for-
mas de interação conosco bem maiores do que poderíamos su-
por. Entre camponeses católicos, os ciclos da vida natural, entre a
floresta, os campos de pastagens, os terrenos de lavouras sazonais
ou permanentes, o pomar ao redor da casa e a horta próxima à
cozinha, são diversos e interligados tempos-lugares regidos pelas
forças da natureza, transformados pelas forças do trabalho huma-
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no e ordenados por princípios e ritmos extranaturais que entre-
tecem a maior parte das atividades agropastoris de tempos, ritos
e gestos ora mágicos, ora religiosos.
Mesmo essas sociedades tradicionais de uma economia de
consumo não vivem exclusivamente dentro de seus limites; pos-
suem sistemas de intertrocas de pessoas, de bens e de mensagens,
que deveríamos mais invejar do que apenas pesquisar.14 E siste-
mas que, mesmo nos espaços menos socializados pelo trabalho
humano na Amazônia, escapam do domínio interno de uma mes-
ma aldeia e geram amplos sistemas de trocas de bens de consu-
mo intertribais.
Embora possa parecer supérfluo aqui, devo lembrar que al-
gumas comunidades não tanto rurais, mais neo-ruralizadas, re-
tornam do mais moderno e urbano e desejos de experiências de
vida e de partilha de tempos-espaços que em vários momentos
lembram os que sumariamente descrevi aqui. Algumas pequenas
comunidades religiosas, tanto as de origem brasileira, como o
Santo Daime, quanto de origem asiática, como os Hare Krishna,
retornam à natureza, voltam “ao campo” e buscam reencontrar,
em uma vida mais próxima do vento e dos deuses do que dos re-
lógios e dos mercados, uma vida ao mesmo tempo sagrada e na-
tural. A começar por uma complexa sacralização da própria na-
tureza. Algumas nas florestas do Acre. Outras compram barato
algumas terras altas na Chapada dos Veadeiros, em Goiás. Outras
vivem ao nosso redor, perto de Parati ou na vizinhança de Pinda-
monhangaba, não muito longe de São Paulo.15 Assim, vivem an-
cestralmente tempos-espaços inseridos ainda nos domínios da
natureza, ou buscam retornar a essa mesma relação com a vida e
o mundo, uns porque são “primitivos” demais e outros porque
cansados demais da complexidade do mundo pós-moderno. Se-
rá que, como os Nuer e bem mais do que nós, de um lado e do
outro... eles são felizes?
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14 Devo lembrar aqui anova edição, e primorosa,do Ensaio sobre a dádiva,de Marcel Mauss, em2004, pela Editora CosacNaify, de São Paulo.
15 E não devemos esque-cer que ainda existe noBrasil uma associação –Abrasca – de comunida-des alternativas, as quais,mesmo quando não tãoassociadas a alguma reli-gião nativa ou exótica,procuram viver “na” e“da” natureza e retornara formas de vida extre-mamente simples e coma menor relação possívelcom o mercado local e,sobretudo, regional. Nãotenho os dados aqui,agora, mas lembro-mede, há muitos anos, terexaminado no Programade Pós-Graduação emGeografia, na Universi-dade de São Paulo, umadissertação a respeito deuma dessas comunida-des alternativas, a Frate-runidade, na serra dosPireneus, em Pirenó-polis, Goiás. Tive naUnicamp uma mestran-da de sociologia que de-senvolveu uma pesquisasobre as relações entre afilosofia vedanta, as co-munidades Hare Krish-na e a ecologia profunda.Creio que tendem a serescolhas de pesquisas ca-da vez mais comuns. Ofato de que uma delas te-nha sido na geografia e aoutra na sociologia bemdemonstra que essa ten-dência pouco tem a vercom as supostas “excen-tricidades dos antropó-logos”.
RUGOSIDADES E MODERNIDADES: OS ESPAÇOS RURAISONDE O TEMPO É O RELÓGIO E É O SOL
Uma inesperada mas oportuna maneira de procurarmos com-
preender algo das experiências de espaço-tempo entre as comu-
nidades diferenciadamente situadas nos diferentes pontos de in-
tervalo entre as culturas e comunidades de pequena socialização
de espaços da natureza e de uma economia de consumo, ou de tro-
cas de produtos por produtos, dentro de estritas normas e ritos
de intercâmbio entre categorias de produtores-atores, e as que nos
esperam mais adiante seria o começarmos por pensar como cul-
turalmente tais trocas de produtos por produtos, ou de mercado-
rias por dinheiro, são vivas entre os tempos-espaços sociais de co-
munidades camponesas ainda tradicionais, mas já integradas no
mercado como economias de excedente, de acordo com José de
Souza Martins.
Claro, estas já são comunidades rurais onde o trabalho com
a terra é dirigido a produzir, além do consumo, o excedente co-
mercializável. Planta-se, coleta-se e cria-se para viver e para ven-
der. Troca-se, vende-se e compra-se trabalho por bens, bens por
bens, trabalho e bens por dinheiro. E disso se vive a “vida na ro-
ça”. A meio caminho entre uma natureza ainda não inteiramente
socializada e incorporada ao domínio da cultura (aqui num du-
plo sentido da palavra) e a cidade, o lugar-urbano dos “recursos”
e do mercado regional, assim pessoas, famílias e comunidades ru-
rais vivem em espaços cujo lugar mais central é o sítio, a peque-
na propriedade ou posse camponesa, cuja extensão mais familiar
é o bairro rural e seus equivalentes. Uma vida rural a que no li-
mite mais costumeiro cabem qualificadores como “caipira”, “ser-
taneja”, “rústica”, “tradicional” ou “patrimonial”, e a que no limi-
te mais próximo a uma “nova racionalidade” cabem nomes como
“moderno” ou “modernizada”.
Fiquemos com as formas de vida e de trabalho mais típicas
do campesinato tradicional de produção familiar. Entre elas, gra-
máticas sociais que configuram sistemas de valores, de identida-
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de e de princípios étnicos e éticos de interação, envolvendo ne-
las inclusive preceitos que regem trocas, vendas e compras. Sis-
temas tradicionais que prescrevem todo um complexo processo
de transações de bens e de serviços. Intertrocas econômicas pa-
recendo serem apenas comerciais, na verdade são interpessoais,
afetivas, sociais, simbólicas, antes ou ao lado de serem relações
que envolvem dinheiro. Pois, bem mais ali do que em esferas mais
modernizadas de transações, nem tudo o que se produz é con-
sumo, nem tudo o que troca é mercadoria. Mais do que nós, e
com melhores motivos, as pessoas comem comida e símbolos e
trocam bens e sentidos de vida. No que se consome e no que se
troca ou vende, as “coisas” que passam de mão em mão, mesmo
que a troco de dinheiro, variam de acordo com aquele com quem
se troca, com aquilo que se troca e com a qualidade da situação
em que se comercia.
Em um de seus estudos sobre esse assunto, ao recriar o con-
ceito de campesinidade, Klaas Woortmann trabalha com os dife-
rentes sentidos e valores de uma ética camponesa. E, em “Com
parente não se neguceia”, ele descreve os diferentes círculos de in-
terações entre categorias de pessoas e categorias de coisas que se
trocam, vendem e compram. E ele demonstra como a relação fa-
miliar, parental, vicinal e outra mais determinam bem mais o sen-
tido do valor da mercadoria do que ela própria.16
Como costumamos dizer e relembrar sempre na antropolo-
gia, a própria economia é uma das muitas dimensões de uma cul-
tura. Produzimos bens e vendemos trabalho e/ou mercadorias.
Mas, através de pessoas e de coisas (mesmo num mundo onde
pessoas têm valor como coisas e coisas, como pessoas), na verda-
de o que trocamos nos diferentes tempos-espaços dos diversos
mercados possíveis são símbolos e significados, valores e sentidos
de vida. Um mesmo pai-camponês que em novembro se endivi-
da para comprar uma máquina duvidosa, em março duplica a dí-
vida para não deixar de casar a filha caçula com uma “grande fes-
ta”. Modos, políticas, éticas e estéticas de vida que resistem ainda
a uma entrega completa à racionalidade do mundo dos negócios
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16 A respeito dessa ques-tão e de outras, rela-cionadas também demaneira direta a expe-riências e percepções detempo e espaço, queroindicar aqui alguns tra-balhos do “casal Woort-m a n n ”. D e E l l e nWoortmann, “O sítiocamponês”, publicadooriginalmente no Anuá-rio Antropológico, n. 81,de 1983, pela EditoraTempo Brasileiro, do Riode Janeiro. De KlaasWoortmann, além dolongo artigo aqui men-cionado, que foi origi-nalmente publicado non. 69 de um caderno daSérie Antropológica, De-partamento de Antropo-logia, Universidade deBrasília, s/d, um outroartigo “A comida, a famí-lia e a construção do gê-nero feminino”, origi-nalmente publicado narevista Dados, v. 29,n. 1, de 1986, no Rio deJaneiro. Livros posterio-res de Ellen e Klaas reu-niram esses artigos aoutros que recomendotambém enfaticamente.
apregoa e vende, atribuindo a quem a ela não adere a imagem
do “atraso”.
No interior de “contra-racionalidades”ou de “outras-raciona-
lidades”, segundo Milton Santos (2002), uma cultura derivada de
uma socialização da natureza bastante mais completa e complexa
do que nos casos anteriores ainda olha para o sol, mas já observa
o relógio para sentir o passar do tempo. E tanto pensa em paisa-
gens naturais quanto no valor de mercado do alqueire de terra, pa-
ra pensar os espaços da vida e do trabalho. De outra parte, os bens
da terra são produzidos observando uma mescla de tecnologias pa-
trimoniais (nada indica que as vendas de enxadas tenham dimi-
nuído no mercado brasileiro) e tecnologias modernas e importa-
das.17 Costumes antigos e ritos religiosos ainda estão presentes no
preparo do terreno, nas festas de colheita, em muito maior escala
do que as nossas medidas acadêmicas alcançam. E o passar do tem-
po ainda subordina o relógio ao sol e o calendário oficial ao das
festas populares e às marcações naturais das estações do ano.
Não obstante, mesmo no mundo rural tradicional, os hori-
zontes da vida tornam-se cada vez mais voltados para “o mundo
da cidade”, e cada vez mais as cidades “maiores” dominam as cida-
des menores que, cercadas por áreas rurais, se tornam eixos de re-
ferência deles e um ponto a meio caminho entre o sítio e a “cida-
de grande”. Espaços urbanos tendem a ser, a cada dia mais, o lugar
de destino dos filhos dos homens e das mulheres da terra, quando
não deles próprios. E as músicas sertanejas que versejam sobre a
“saudade da minha terra” são o mais triste e dolente testemunho
disso. Não podemos esquecer que a incorporação da luz elétrica a
um número agora grande e crescente de áreas rurais e a chegada
vertiginosa dos meios de comunicação de massa, em que o “assis-
tir televisão”se associa ao antigo costume de “ouvir o rádio”e com-
pete com este, de uma maneira bastante mais semioticamente
marcada colocam a cidade e a racionalidade mais ilusoriamen-
te moderna dentro até de alguns últimos ranchos de pau-a-pique.
A vida cotidiana, quando medida em seus pequenos ciclos do
passar do tempo – uma semana –, médios ciclos – um ano agrí-
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17 Novas práticas, novastecnologias e novos insu-mos, entre maquináriose produtos químicos nãoraros impostos aos agri-cultores patrimoniaispela mídia a serviço debancos e de empresasmultinacionais, que nãoraro, também, acarretamo endividamento quetorna o produtor pobre,porém livre, em um tra-balhador dos credores desuas dívidas. Não sãopoucos e crescem bas-tante os casos de peque-nos proprietários que“perdem” as suas terrascomo pagamento de dí-vidas.
cola – e longos ciclos – os muitos anos de uma vida –, em boa me-
dida é ainda centrada no lugar rural onde a vida afetiva e a vida
de trabalho se associam nos espaços consagrados do sítio campo-
nês: a pequena propriedade familiar. Em segundo lugar, em seus
entornos naturais e na comunidade vicinal próxima: o arraial, o
bairro rural, o povoado, a vila, o patrimônio. Mas sítios e povoa-
dos camponeses tendem a ser, mais e mais, espaços-lugares satéli-
tes das cidades, sejam elas a sede do município, as cidades-merca-
do ou mesmo as cidades de romaria e devoção.18 E, bem sabemos,
uma das diferenças de percepção espacial mais importantes será
justamente o deslocamento do eixo das relações, tendo como fo-
co o “lugar onde vivo e trabalho” e a cidade. Entre as comunida-
des mais isoladas de predominância de economia de consumo, o
centro da vida é ainda um espaço natural fracamente socializado,
e a cidade é um referente tempo-espacial difícil e distante. Entre
as comunidades camponesas tradicionais, o centro da vida vivida
e pensada é uma quase sinuosa linha que passa pela natureza, de-
mora no lugar de trabalho e de natureza socializada e termina na
cidade, bastante mais marcada e próxima nas unidades sociais de
economia de excedente do que nas anteriores. Já, entre as comuni-
dades e culturas próximas de ou já plenamente integradas em uma
economia de mercado, o espaço-tempo de referência da vida pen-
sada e vivida é o da cidade-mercado. Os lugares rurais são espaço
de passagem e mais de um trabalho impessoal do que de vida, e a
natureza é um referente ora distante demais, ora hostil o bastan-
te para valer apenas quando dominado, apropriado e destruído.
MODERNIDADES E FALSAS MODERNIDADES: ESPAÇOSRURAIS ONDE O PASSAR DO SOL JÁ NÃO MARCA MAISAS HORAS E NEM A LUA O PASSAR DOS DIAS
O simples viajar e ver desde a estrada longas paragens homogê-
neas de uma paisagem despovoada de bichos (a não ser o gado)
e de pessoas (a não ser os raros e passageiros trabalhadores even-
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18 Das pesquisas decampo que fiz em Goiáse em São Paulo, com co-munidades camponesastradicionais, gostaria deindicar a leitura de al-guns capítulos de livrosderivados de três delas:Plantar, colher, comer.Rio de Janeiro: Graal,1978; A partilha da vida.Taubaté: GEIC, Cabral,1995; O afeto da terra.Campinas: Editora daUnicamp, 1999.
tuais) permite ao olhar de quem passa a imagem dos espaços de
vida e trabalho de mulheres e homens que são agora os trabalha-
dores das solidões da terra e dos senhores do agronegócio.
As extensões homogêneas dos canaviais, das plantações de so-
ja, dos eucaliptais. As paisagens que foram um dia florestas ou
porções do cerrado, ou mesmo frações bem menores de terrenos
de policultura camponesa. A uniformização quase absoluta da
paisagem, a derrocada da biodiversidade e de uma corresponden-
te humana sociodiversidade. Eis a paisagem múltipla e, no entan-
to, tão uniforme, dessa ilusória socialização extrema de espaços
naturais. Para que a terra produza em excesso – o mito tecnoló-
gico da produtividade –, tanto seres e grupos humanos são reti-
rados das paisagens anteriores, quanto a própria terra é subjuga-
da: tornada plana, vazia do que não sejam os espaços vazios da
produção, exaurida de recursos naturais e impregnada das quí-
micas do agronegócio.
A uma domestificação uniformizante dos espaços naturais,
ou patrimonialmente sociabilizados pelo trabalho da agricultu-
ra familiar, corresponde uma absoluta entrega de tempos-espa-
ços rurais ao domínio da cidade. Entre a máquina e a mídia, o
universo da racionalidade do moderno-urbano domina as pai-
sagens naturais e humanas do campo. Não será ao acaso que a
maioria dos seus trabalhadores braçais ou vivem em cidades-dor-
mitório próximas, ou migram de espaços muito distantes, como
o vale do Jequitinhonha, e vivem provisoriamente na periferia
pobre das cidades.
Trabalhadores sazonais e impessoais. Volantes voláteis que
em geral sequer sabem em que lugar estão trabalhando por uma
manhã, um dia, um par de dias. Não é também ao acaso que em
boa medida o trabalho realizado por essas “turmas” de trabalha-
dores volantes é bem mais o de queimar, derrubar e colher, do que
o de tratar do solo (feito por máquinas) e semear.
A racionalidade empresarial imposta ao campo pouco a
pouco inverte todos os eixos de uma lógica das relações socie-
dade-natureza e de uma ética nas interações entre as diferentes
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categorias de atores culturais envolvidos em suas diferentes eco-
nomias e em seus diversos modos de vida. Os espaços-valor pas-
sam a ser os mais inteiramente entregues às monoculturas de
mercado. Isso em que pese o fato de que um número crescente
de agroempresas redobre retóricas em favor da “preservação do
meio ambiente”. A transferência de símbolos e de significados in-
terativos típicos da fábrica moderna para espaços-tempos rurais,
com foco sobre o binômio competência–competitividade em to-
dos os momentos e lugares da vida de pessoas e de comunida-
des, desqualifica experiências e maneiras de ser e de produzir tí-
picos do campesinato.
No entanto, uma típica e neocapitalística nova racionalida-
de da modernidade no campo brasileiro é falsa e enganosa. Em
quase todas as regiões modernizadas através da expansão de an-
tigas e novas alternativas de unidades de mercado no campo, os
mais arcaicos modos e métodos de expropriação da terra e de
apropriação da força de trabalho disponível, migrante e miserá-
vel, estão ainda em plena vigência. O agronegócio das empresas
agrícolas, pastoris, madeireiras e de mineração preserva e mo-
derniza sistemas de trabalho fundados na escravidão, na semi-
escravidão, na servidão, na exploração do trabalho de mulheres
e de crianças. Isso significa que a absoluta racionalidade da mo-
dernização do campo brasileiro se apóia organicamente em al-
ternativas bastante pré-capitalistas de “conquista” da terra e de
“posse e uso” do trabalho.19
Assim, da mesma maneira como vemos pequenos produto-
res familiares, sitiantes modernizados, em luta contínua para se
apropriarem precariamente de uma semelhante racionalidade e
de equipamentos e padrões de trabalho pelo menos proporcio-
nalmente próximos aos do agronegócio, vemos, de outra parte, as
frentes de expansão capitalistas empregando as mais residuais es-
tratégias de apropriação da terra e do trabalho. E não nos espan-
temos em imaginar que procedimentos semelhantes, com outras
normas, pessoas e palavras, sejam empregados também em unida-
des rurais de racionalidade empresarial no sul dos Estados Unidos
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19 Lembro José de SouzaMartins, uma vez mais:“Embora as relações deprodução indicadas, co-mo as de colonato e dearrendamento em espé-cie não se configuremcomo tipicamente capi-talistas, é preciso não co-meter o engano de atri-buir as tensões da frentepioneira a essa atipici-dade e, portanto, a umantagonismo de outraespécie: capitalismo/pré-capitalismo. Essas rela-ções são, na verdade, aspossíveis e necessárias àacumulação e reprodu-ção do capital. Daí que afrente pioneira tenhasempre se apresentadocomo expressão limitedo capitalismo no cam-po e, ao mesmo tempo,tenha se apoiado em re-lações sociais fundamen-tais não-tipicamente ca-pitalistas: escravatura,colonato, arrendamentoem espécie. Na verdade,o que caracteriza o capi-talismo no campo não éa instauração de relaçõesde produção típicas, for-muladas em termos e decompra e venda de força-de-trabalho por dinhei-ro. O que a caracteriza éa instauração da proprie-dade privada da terra, is-to é, a mediação da ren-da capitalizada entre oprodutor e a sociedade”.Op. cit., p. 49, 50.
da América. O que seria da produção agrícola de lá sem o traba-
lho clandestino e semi-servil de trabalhadores mexicanos?
Em termos do que se passa na esfera das imagens e idéias de
configurações de culturas e entre culturas, sabemos que, através
de um processo bastante bem-conhecido, em um primeiro mo-
mento as imagens-idéias e as pautas de identidade e de princípios
de relacionamentos entre categorias sociais de/entre pessoas, en-
tre elas e o mundo natural e entre elas e os símbolos e significa-
dos do correr da vida cotidiana, são aos poucos trazidas “de lon-
ge” e propostas e impostas de vários modos. Um estilo tradicional
de vida no seu todo, e em cada um dos seus campos, começa a ser
pouco a pouco desqualificado, quando os agentes do “progresso”
traduzem como “atraso” tudo o que não é o seu espelho. Tais con-
tra-imagens e idéias em que o negócio toma o lugar da vida, en-
quanto o country rotula o “sertanejo” ou o “caipira” como res-
quícios ou reminiscências, a meio caminho entre o “preservado”
e o pitoresco.
Em um segundo momento, padrões e sistemas de tais “novas
pautas do ser, viver, pensar e produzir” são internalizados – a co-
meçar entre os mais jovens, moças e rapazes – pelos atores sociais
populares, e são incorporados como modernos e contraditórios
valores entretecidos com o que é próprio de suas culturas patri-
moniais. Ressalto que as diferenças e as divergências entre gera-
ções, entre pais e filhos, têm aqui um papel muito grande.
Finalmente, um novo campo de símbolos, de sentidos de vi-
da e de significações do mundo (de “racionalidades”, em Milton
Santos) se sobrepõe, tornando artificialmente “moderno” o que
era “tradicional” e transformando em folcloricamente “típico” o
que antes fora “próprio”. O que equivale em transformar, pouco
a pouco, a vida rural em um simulacro da urbana, e o que era ri-
tual da comunidade em espetáculo para uma platéia de “outros”.
Assim, da culinária às crenças religiosas, da vestimenta aos ritos
da comunidade camponesa, das éticas e técnicas do labor e do
trabalho às próprias estéticas da vida, tudo se redefine no todo
ou em partes relevantes e crescentes nas diferentes culturas ru-
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6 0
rais que já utilizam o relógio e o trator, mas ainda consideram
importante perguntar aos sinais naturais do tempo como have-
rá de ser o “inverno” que se aproxima.
Mais do que na solidão das áreas de planuras deserdadas da
monocultura, é talvez nos cenários das grandes festas da moder-
nidade rural que as diferenças se tornam social e simbolicamen-
te mais visíveis. Pois aqui as festas comunitárias aos santos pa-
droeiros e aos momentos de celebração da solidariedade familiar
e vicinal transformam-se nas grandes festas de produtos ou nas
grandes “feiras de pecuária” – em que o sucesso é medido pelas
cifras de milhões nas compras e vendas de bois e vacas – ou nas
“festas de peão de boiadeiro”, em que os rituais se transformam
em espetáculos, as tradições em “atrações” e em que os cenários
dos acontecimentos se deslocam dos adros de igrejas e das praças
das pequenas cidades para os grandes estádios consagrados a
eventos regidos por competições premiadas, onde homens e ani-
mais competem entre si e com outros homens.20 Essas grandes
“festas” e feiras em que a máquina e o produto substituem o san-
to e a pessoa são a melhor metáfora da modernização uniformi-
zante do campo.
Mas, se assim é, podemos prosseguir com ela para pensar o
seu outro lado. Longe dos grandes palcos e nos intervalos dos pi-
cadeiros, não são poucas as expressões da vida rural camponesa
que por “ali” também circulam. Onde, a um primeiro olhar, to-
dos os espaços do acontecer parecem dominados por uma mes-
ma cultura de celebração country dos imaginários globalizados do
agronegócio, coexistem inúmeras áreas liminares de fronteira. Um
domínio simbólico uniformizante e cuidadosamente programa-
do é entrecortado todo o tempo e em quase todos os espaços da
cidade e da festa.
De certa maneira algo semelhante ocorre até mesmo nas
áreas rurais do Brasil mais dominadas pela monocultura do
agronegócio. Um inventário criterioso sobre a sociodiversidade
na ocupação de territórios aponta a coexistência supostamente
pacífica e a presença crescente de conflitos; a hegemonia nunca
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20 Ver, como um exce-lente exemplo, O chão é olimite – A festa de peão deboiadeiro e a domestica-ção do sertão, de SidneyValadares Pimentel, pu-blicado pela Editora daUniversidade Federal deGoiás em 1997. Para seter uma idéia da trans-formação de produtosem símbolos de uma so-ciedade através de suasfestas, em Felixlândia, nonorte de Minas Gerais,de uns anos para cá cele-bra-se uma grande Festado Carvão.
estável e tranqüila dos espaços do agronegócio; a dependência
que a economia rural de mercado tem da vizinhança da econo-
mia de subsistência e também de uma força volante de trabalho
que o avanço da tecnologia agrícola ainda não resolveu; o cres-
cimento das frentes de luta em favor da reforma agrária e da cau-
sa ambiental.
Um olhar algo mais complexo e interativo sobre os horizon-
tes dos mundos rurais deveria convidar-nos a uma leitura não
tanto do que, real ou ilusoriamente, domina espaços e campos de
relações rurais, mas do que, em seus intervalos e de maneira bem
mais ativa e diferenciada do que podemos imaginar, existe ainda,
resiste e se renova, para reocupar espaços e reinventar formas de
ser e viver no campo.
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CARLOS RODRIGUES BRANDÃO é professor visitante do Instituto de Geografia daUniversidade Federal de Uberlândia e do doutorado em ambiente e sociedade da Unicamp e pesquisador do Ceres. Este texto inédito foi apresentado no Encon-tro sobre a Reforma Agrária, em junho de 2006, na Universidade Federal de Uber-lândia.
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MUDANÇA E ÁGUA NO SUL DE PORTUGAL: A BARRAGEM DE
ALQUEVA E A ALDEIA DA LUZ*
CLARA SARAIVA
R E S U M O O projeto de construção de uma megabarragem no Alentejo, uma
zona extremamente árida no sul de Portugal, teve os seus inícios nos anos 50, du-
rante o regime salazarista, mas só se concretizou no início do século XXI. A imen-
sa albufeira1 a que a barragem deu origem inundou uma área que abrangeu a Al-
deia da Luz, que por esse motivo foi inteiramente trasladada para outra localização.
A fecho das comportas deu-se em fevereiro de 2002; no verão e outono do mesmo
ano, a população foi transferida, e, durante 2003, a velha Luz foi completamente
demolida. Hoje em dia, passeia-se de barco por cima do local onde estava a antiga
Luz. Este texto fornece o contexto em que o projeto de Alqueva se desenvolveu, a ca-
racterização geral do clima social que acompanhou o processo e o resumo do que
foram os acontecimentos principais e as vivências no período da mudança e de iní-
cio da adaptação a um novo território e uma nova situação.
P A L A V R A S - C H A V E Portugal; água; barragem; deslocamento de
populações.
A B S T R A C T The project for the construction of a mega-dam, in an extremely
dry area of Southern Portugal had its beginnings in the 50s, under the Salazar
regime. It was only after decades of advances and delays that its construction finally
took place. The huge lake flooded an area which included the Village of Luz, that
therefore had to be entirely moved into another location. The closing of the flood-
gates took place in february 2002; that year the population was transferred, and in
2003 the old Luz was completely demolished. Nowadays, one goes by boat over the
site where the old village once existed. This text provides the general context in
which the Alqueva project was developed and a general description of the social
climate surrounding the process. It also gives a summary of the main events and
experiences during the dislocation period and the initial adaptation to a new
territory and a new life situation.
K E Y W O R D S Portugal; water; mega-dam; population displacement.
6 5
* Uma versão anteriordeste texto foi publicadano artigo “Aldeia da Luz:entre dois solstícios, a et-nografia das continuida-des e mudanças”, Etno-gráfica, v. VII, n. 1, 2003.
1 Represa artificial deáguas pluviais, dos riosou do degelo. Cf. dicio-nário eletrônico <http://www.portoeditora.pt/dol/default.asp?param=08010100>. (N. do E.)
A MEGABARRAGEM
Quem não ouviu falar
Na Barragem do Alqueva
Pelos jeitos que leva
Nossa Aldeia vai acabar
E nós temos que abalar
Daqui para outro lado
Porque já está marcado
Aonde a outra vão fazer
É verdade podem crer
Estou muito preocupado
João Chilrito Farias2
A Barragem de Alqueva, cujas comportas se encerraram em 2002,
é a maior da Europa, com cerca de 96 m de altura e uma área de
250 km2, no seu nível de armazenamento pleno à cota 152. Albu-
feira e barragem situam-se no rio Guadiana, o grande rio do sul
do país, nessa região extremamente árida que é o Alentejo, na me-
tade sul de Portugal. O empreendimento atinge 19 concelhos do
Alto e Baixo Alentejo; a albufeira tem uma capacidade total de
4.150 milhões de m3 (com 3.150 milhões de m3 de capacidade útil),
e o seu sistema global de rega pretende equipar uma área com cer-
ca de 110.000 ha e será composto por uma rede de canais e condu-
tas que atingirão um desenvolvimento de 5.000 km. Os objetivos
gerais dessa gigantesca estrutura, alterados ao longo de sucessivos
reajustamentos, prendem-se com a constituição de uma reserva
de água vital na luta contra a seca e a garantia do abastecimento
regular de água às populações; a alteração progressiva do mode-
lo de especialização da agricultura no sul do país, disponibilizan-
do 110.000 ha de área de rega; a produção de energia hidroelétri-
ca; o combate à desertificação física e populacional através da
incrementação do mercado de emprego regional, a par da dina-
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2 Poeta local, autor demuitas quadras alusivasao processo de Alqueva e ao abandono forçadoda aldeia.
mização agrícola, industrial e turística – esta última apoiada no
desenvolvimento de potencialidades turísticas possibilitadas por
um espelho de água com 250 km2 de área e margens que ultra-
passam os 1.000 km de extensão.
Numa zona do país com clima seco e escassez de água, a Bar-
ragem de Alqueva surgiu como um sonho de mudança para me-
lhor, mas transformou-se, ao longo da segunda metade do século
XX, num “elefante branco”, um projeto que avançava e recuava, de
que se ouvia falar, mas parecia nunca se vir a concretizar, mercê de
opiniões divergentes, condicionamentos vários e complexidades
das conjunturas econômicas e políticas que se foram sucedendo.
Os primeiros estudos para um plano de rega do Alentejo
foram efetuados em 1957, e o Convênio Internacional Luso-
Espanhol, celebrado em 1968, previa já a construção da grande
barragem, como elemento fulcral e incontornável de todo o em-
preendimento. Após progressos e retrocessos, em 1975, já após o
25 de abril de 1974, o projeto herdado do Estado Novo é defini-
tivamente reiniciado, com a decisão governamental de lhe dar cor-
po e o início dos trabalhos em Alqueva, em 1976. As obras preli-
minares duraram apenas dois anos, o tempo de construir as
ensecadeiras3 de montante e jusante, o túnel de desvio provisó-
rio do rio, os acessos e as infra-estruturas de apoio, e foram no-
vamente interrompidas em 1978, tendo o empreendimento en-
trado numa fase de avaliações e novos estudos. Com uma nova
decisão governamental de retoma em 1993, é criada a Comissão
Instaladora da Empresa de Alqueva, que preparou e lançou os pri-
meiros concursos públicos internacionais com vista à prossecu-
ção do projeto. Essa comissão dá lugar, dois anos mais tarde, à
EDIA (Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas de Alque-
va S.A., uma sociedade anônima de capitais exclusivamente pú-
blicos), sensivelmente na mesma altura em que se retomam os tra-
balhos em Alqueva. Em maio de 1998, têm lugar as primeiras
betonagens que dão corpo à desejada mas polêmica obra no Alen-
tejo. Em fevereiro de 2002, as comportas são encerradas e inicia-
se o enchimento da barragem.
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3 Tapumes que cercam asconstruções feitas em ní-vel mais baixo que o daágua, para se trabalharem seco.Cf.<http://www.portoeditora.pt/dol/de fau l t . a sp?par am=08010100>. (N. do E.)
As modificações observadas ao longo dos tempos na listagem
dos objetivos da construção da gigantesca estrutura que é a Bar-
ragem de Alqueva e a sua albufeira prenderam-se não apenas com
as mutações e os avanços tecnológicos operados, mas também
com as contingências da crescente escassez de água potável no pla-
neta e a decorrente mudança no modo de olhar esse elemento,
que passou assim de bem da natureza comum e público a patri-
mônio valorizado. Conseqüentemente, a noção de barragem co-
mo grande geradora de energia elétrica, se bem que não totalmen-
te posta de lado, é suplantada por outras prioridades, como a que
salienta o valor do elemento aquático, a par da intenção de recu-
perar uma região pobre e esquecida, sem alternativas de empre-
go e repulsora das camadas jovens da população. Desse modo, nos
objetivos estruturantes enunciados e publicamente apresentados
pelos dirigentes da Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estru-
turas de Alqueva (EDIA), a “constituição de uma reserva estraté-
gica de água” surge em primeiro lugar, secundada pela “garantia
de abastecimento regular de água” e pela “alteração do modelo de
especialização da agricultura do sul do país”, seguida do “reforço
da capacidade instalada para produção de energia elétrica”, da
“criação de potencialidades turísticas” e da “dinamização do mer-
cado regional e do tecido empresarial” (Serrão, 1999).
Em resposta a pressões e críticas vindas de vários quadran-
tes, ao longo de décadas, que condenavam o poder central pela
fraca atenção dada ao Alentejo, a tônica posta na recuperação so-
cial e econômica dessa região fez com que as parcerias portugue-
sas e comunitárias que se estabeleceram com vista à prossecução
do projeto abarcassem um conjunto de medidas e ações – in-
cluindo a gestão ambiental, o apoio aos setores econômicos e a
formação profissional – que se propunham reabilitar o sul, pro-
movendo uma gestão equilibrada e sustentada de recursos natu-
rais de modo a criar mais-valias para a população residente (Ser-
rão, 1999, p. 21).
Com o avanço do projeto, as dúvidas e as críticas avoluma-
ram-se, em estudos das mais variadas áreas, desde as ciências na-
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turais, aos estudos ambientais, de engenharia e economia, a ou-
tros de cariz mais social e humano. A discussão em torno dos be-
nefícios e malefícios do projeto intensifica-se a partir da retoma
dos trabalhos em 1993 e as críticas e oposições vão num crescen-
do à medida que ele avança e os seus detalhes se tornam públicos
e objeto de discussão nacional e internacional, em que questões
ambientais e patrimoniais adquirem um peso de relevo.
Os estudos e avaliações de impacto, realizados ou encomen-
dados pela EDIA ou outras instituições públicas e privadas en-
volvidas no processo, sucedem-se. Com a consciência de que
uma obra com as dimensões de Alqueva implicaria uma profun-
da alteração na paisagem, nos marcos históricos e na cultura da
região, procurou-se criar compromissos de minimização dos
impactos na zona, através de programas de salvaguarda arqueo-
lógica e ambiental, de âmbito técnico-científico (Silva e Lança,
2001, p. 3).
Sendo a transferência da Aldeia da Luz um dos problemas
mais candentes no nível social e humano, abundaram igualmen-
te os trabalhos com vista à caracterização social, econômica,
demográfica e patrimonial, destinados a avaliar o impacto proje-
tado de todo o projeto sobre essa população e esse espaço. Mul-
tiplicaram-se as informações nos meios de comunicação social,
os colóquios, debates, estudos e as publicações; Alqueva foi-se
paulatinamente instalando na mente dos portugueses como as-
sunto da ordem do dia, e a Aldeia da Luz passou a fazer parte des-
se complexo público: de aldeia perdida do concelho de Mourão,
tornou-se assunto de primeira página dos jornais nacionais e das
notícias das principais cadeias televisivas nacionais.
A VELHA LUZ
Adeus Rua do Rossio
Adeus Sociedade
Adeus Museu de Antiguidades
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Tudo feito com muito brio
Adeus Fonte do Rossio
Adeus Travessa do Caneiro
Ainda digo adeus primeiro
Ao antigo lavadouro
Despeço-me com muito amor
Adeus Rua Sá-Carneiro
Digo adeus à taberna
Do Francisco Carrilho
Seguindo o mesmo trilho
Adeus Café Lanterna
Falando de coisas modernas
Tal como elas são
Tenho a preocupação
Não me esqueça alguma coisa
Adeus café da Lousa
Adeus Rua de Mourão
João Chilrito Farias
A velha Aldeia da Luz, situada a cerca de 9 km de Mourão e per-
tencente ao mesmo concelho, distrito de Évora, estava implantada
numa zona abundante em água nos vales que a delimitavam, a
poente e a sul, onde corriam os rios Guadiana e Alcarrache. Essa
área era por isso rica em vestígios arqueológicos, testemunhos de
uma intensa ocupação humana desde os tempos mais remotos da
idade do cobre, que entraria para a história com a chegada dos ro-
manos e a implantação de estruturas como a do Castelo da Lousa.
A povoação devia as suas origens à implantação do santuá-
rio de louvor a Nossa Senhora, com base na lenda do aparecimen-
to da Virgem a um pastor, num local onde certamente já existiam
cultos mais antigos ligados à virtude das águas. A utilização des-
se lugar deverá ter estado inserida na rota das vias comerciais e de
peregrinação que cruzavam o grande rio Guadiana, ligando o nor-
te e o sul da antiga Lusitânia. Os dados mais concretos são da se-
gunda metade do século XVIII, relativos às memórias paroquiais
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de 1758, que aludem à existência de 31 vizinhos e 117 moradores
na Luz. O documento menciona ainda a importância das visitas
de “romeiros oriundos de Mourão, Reguengos e São Marcos, par-
ticularmente nas sextas-feiras de março e por altura das festas e
missas da Senhora da Luz, no segundo domingo de setembro, o
que motivara a construção de casas de romagem” (Monteiro,
2003, p. 28). A igreja parece então afirmar-se como um
pólo aglutinador das gentes da Luz, bem como de outras pa-
ragens, que associam as vivências religiosas a um quotidiano
ligado às atividades agrícolas, à produção de cereais (trigo,
centeio, cevada), aos olivais, azinhais, ferragiais, à rega e à moa-
gem nos açudes, à pesca (barbo), à construção e manutenção
das casas, aos vários mesteres, gentes que compram e vendem
as suas propriedades, que contraem empréstimos e hipotecam
os seus bens, que freqüentam o ensino elementar na escola
mista, que passam pelos atos simbólicos das suas vidas (bati-
zado, casamento e óbito), passando pela igreja, e que se quei-
xam ainda a 10 de julho de 1877, apesar das leis aprovadas em
nível nacional, da falta de terrenos e de meios financeiros pa-
ra construírem no terreiro da igreja o cemitério que poria fim
aos enterramentos na igreja (Monteiro, 2003, p. 28-9).
Nos finais do século XX, à data em que se iniciou o pro-
cesso de Alqueva, a Luz era uma freguesia pouco povoada e
com características predominantemente rurais. A zona em que
se inseria fazia parte da peneplanície alentejana, com um cli-
ma de afinidades mediterrânicas e continentais; da zona pla-
náltica partiam diversos cursos de água que se iam reunir ao
rio Guadiana e a um dos seus principais tributários, a ribeira
de Alcarrache.
No seio de uma zona do país envelhecida, que sofreu nas dé-
cadas de 60 e 70 a saída para o exterior das camadas mais jovens
da população, a Luz contava em 1991 com 394 residentes (nú-
mero que desceu para 363 em 2001), que se distribuíam em cer-
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ca de 185 parcelas, constituídas por habitações e respectivos ane-
xos, quintais e tapadas.4 Na ocupação agrícola dominava a ex-
ploração cerealífera extensiva de sequeiro,5 intercalada por oli-
vais; a pecuária, assente na criação de bovinos, caprinos e ovinos,
complementava esse sistema. Desse modo, para se caracterizar a
base econômica da população da Luz, tem de se contar com o
cultivo de pequenas parcelas, na maioria com menos de 10 ha,
dedicadas sobretudo ao cultivo de cereais, oleaginosas, produtos
agrícolas, olival e pastagens. Essa agricultura era quase exclusi-
vamente de tipo familiar, desenvolvida em explorações por con-
ta própria e alguns casos de arrendamento, e sobretudo pelos
mais velhos.
Nos quintais adjacentes às casas criavam-se animais de ca-
poeira e cresciam árvores de fruto e, em pequenos canteiros, pro-
dutos hortícolas e ervas aromáticas, importantes na cozinha re-
gional alentejana, como o poejo, os coentros e os alhos. Algumas
famílias possuíam alguma vinha; as hortas, situadas ao longo do
caminho conducente ao lavadouro público, forneciam legumes e
frutos para consumo familiar. Havia cerca de seis casas que se de-
dicavam à criação de gado miúdo (ovino ou caprino) para venda
ou fabrico do queijo; duas dessas unidades tinham também cria-
ção de gado grosso e uma terceira tinha investido no gado suíno.
A falta de capacidade concorrencial das formas de explora-
ção locais (IHERA, 1999, p. 29), aliadas a oportunidades de me-
lhoria das condições de vida noutros setores de atividade e nou-
tras zonas, levou a um reforço do êxodo rural e ao conseqüente
abandono da atividade agrícola. Assim, a juntar à quebra da po-
pulação ativa empregada no setor primário, deu-se o incremen-
to do setor secundário – representado na freguesia pelo empre-
go na construção civil e na indústria de extração de cascalho, areia
e xisto – e do setor terciário, que entretanto se tornou bastante
dinâmico, sendo as duas atividades predominantes o comércio e
a restauração e ainda a área dos serviços.
A situação de relação das atividades agrícolas com a camada
mais idosa da população era também reflexo do referido alto grau
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4 Tapada: mata vedadapor muro, geralmentedestinada à criação decaça; terreno murado. Cf.<http://www.portoedi-tor a .p t /do l /de fau l t .asp?param=08010100>.(N. do E.)5 Sequeiro: culturas semrega; privado de água;terreno de sequeiro, ter-reno sem água. (N. do E.)
de pluriatividade dessa freguesia, em que grande parte dos pro-
dutores individuais e da população agrícola familiar tinham uma
atividade lucrativa exterior, sobretudo do setor terciário e dos em-
pregos na capital do concelho e outras vilas circundantes; algu-
mas famílias viviam e trabalhavam na área da grande Lisboa, mas
mantinham as suas casas na aldeia, onde volviam aos fins de se-
mana e nos períodos de férias.
Dispondo de um centro de saúde, um centro de dia para os
idosos, uma escola primária e um jardim de infância, além dos
pequenos comércios e cafés locais, era servida por visitas regula-
res de vendedores ambulantes, que percorriam as aldeias da re-
gião em dias diferentes da semana e que constituíam um impor-
tante eixo de ligação ao exterior.
De um modo geral e mesmo tendo em conta o pluriempre-
go à data do fecho das comportas da barragem em 2002, pode-
mos afirmar que a Aldeia da Luz representava, como muitas ou-
tras povoações do interior do país, um resíduo de ruralidade num
país em que o declínio da agricultura se acentuou após a década
de 60 e em que o mundo rural e arcaico que se havia perpetuado
até à primeira metade do século XX desapareceu perante as ino-
vações e mudanças no estilo de vida das pessoas que se deram na
segunda metade desse mesmo século.
Exceptuando dois agregados familiares de proprietários, re-
sidentes na área da grande Lisboa, os habitantes da Luz eram so-
bretudo descendentes de seareiros6 e trabalhadores rurais (na acep-
ção dada por Cutileiro, 1977, na sua monografia sobre a vizinha
Vila de Monsaraz), que trabalhavam nas terras dos primeiros e
sobretudo de latifundiários das zonas circundantes, em cujos
“montes” – núcleos centrais das grandes propriedades agrícolas
– muitos também cumpriam a função de feitor, caseiro, pastor,
maioral ou porqueiro. Outra série de ocupações principais ou
complementares tinha a ver com os ofícios tradicionais ou arte-
sanais de apoio à agricultura que sustentaram um modo de vida
autárquico, que caracterizou o mundo rural português até finais
dos anos 50: moleiro,7 maquilão,8 tosquiador, ferreiro, abegão,9
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6 Arrendatários de peque-nas parcelas que apenastinham direito à seara, enão ao restolho, impor-tante para a alimentaçãodo gado miúdo.7 Dono de moinho,aquele que trabalha emmoagem. Cf. <http://www.portoeditora.pt/dol/default.asp?param=08010100>. (N. do E.)8 Moço de moleiro queleva a farinha aos domi-cílios. (N. do E.)9 Abegão: indivíduo quefaz carros, arados e ou-tros instrumentos agrí-colas. (N. do E.)
pedreiro, mestre da taipa10 ou dos telheiros,11 entre outros. A es-
tas juntavam-se o fabrico de produtos alimentares locais, como o
queijo de cabra, a caça, a recoleção de espargos e “silarcas” – no-
me local dado a uma espécie de cogumelos enterrados – e a pes-
ca no Guadiana, a que muitos se dedicavam e que significava uma
contribuição importante para a alimentação da casa. A matança
do porco, importante marco no ciclo de vida anual, tinha normal-
mente lugar entre dezembro e janeiro, quando as temperaturas
mais frias permitem realizar calmamente a repartição dos dife-
rentes tipos de carne e o fabrico dos enchidos, postos em seguida
no “fumeiro”, na chaminé da casa.
Algumas famílias de seareiros foram ascendendo, ao longo de
gerações e mercê de seu trabalho e de sucessivos investimentos em
terras, a uma posição social e economicamente confortável. A
emigração para a Suíça e França, sobretudo entre o final da déca-
da de 60 e início da de 80, teve um papel preponderante na evo-
lução da estrutura socioeconômica da Luz. Muitos chefes de fa-
mília trabalharam por períodos mais ou menos longos (5, 10, 15
anos) nesses países, área da construção civil e jardinagem, e con-
seguiram equilibrar orçamentos e fazer poupanças que investi-
ram, muitas vezes, em melhoramentos nas casas, aquisição de ter-
ras ou na ajuda aos filhos, quando estes formaram as suas próprias
unidades familiares autônomas.
Chegamos assim ao fim do século XX, altura em que a Luz
compreendia uma área urbana que rondava os 16 ha. A aldeia e a
sua zona envolvente marcavam a paisagem em sintonia com a na-
tureza, e na sua arquitetura foram utilizados, ao longo de séculos,
os materiais à disposição na região – a terra e a pedra –, obede-
cendo ao padrão da casa térrea e caiada de branco, característica
do sul do país (Oliveira e Galhano, 1992). A maior parte das ca-
sas da Luz, sobretudo as mais antigas, tinham sido construídas pe-
las mãos das próprias pessoas, por vezes com ajuda dos mestres
taipeiros e dos telheiros, constituindo assim exemplos de arqui-
teturas populares que refletiam amiúde as vicissitudes das vidas
das famílias e as dificuldades por que passaram para conseguirem
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10 Taipa: parede feitacom terra argilosa. (N.do E.)11 Operário que faz te-lhas. (N. do E.)
“a sua casinha”. No verão, as casas abriam-se para o exterior, a rua
passava a ser uma extensão delas, e as sociabilidades femininas
desfilavam ao longo das soleiras das portas, onde as mulheres se
sentavam para conversar.
“O ALQUEVA ERA UM MEDO”
Desde as primeiras referências ao projeto de Alqueva, relativa-
mente ao Plano de Rega do Alentejo, na segunda metade da dé-
cada de 50, que a Luz ouvia falar da possibilidade da barragem
como uma ameaça que pairava sobre o destino da aldeia. Entre
essa data e o decisivo avanço dos trabalhos em 1993, a altura em
que a população teve mais consciência da possível continuida-
de do projeto coincidiu com esse curto período entre 1976 e
1978, em que se iniciaram as obras com vista à edificação da bar-
ragem e se efetuaram os primeiros estudos de carácter social so-
bre a Luz (Fonseca, s.d.). Mas esse período de relativa agitação
foi seguido de um tempo muito mais longo de pausa; a suces-
são de retomas e interrupções dos trabalhos agravaram a des-
confiança e incredibilidade dos luzenses de que “o medo de Al-
queva” se transformasse algum dia em realidade e a aldeia viesse
a ser submergida.
A preocupação com o destino dos habitantes da aldeia a sub-
mergir pelas águas da imensa bacia de retenção esteve presente
desde o começo do projeto. Uma das hipóteses iniciais era a cons-
trução de diques, mantendo a aldeia no seu sítio, mas esta foi de
imediato posta de lado pela população, o que é compreensível,
numa zona onde não se está habituado à convivência com gran-
des massas de água. Assim, as primeiras sondagens visavam saber
se as pessoas preferiam a mudança da aldeia ou uma indenização
pecuniária. Apesar de haver já uma clara preferência pela primei-
ra hipótese (“nós sempre quisemos casa por casa e terra por ter-
ra”),12 em 1993 o então presidente da Junta de Freguesia fez cir-
cular um questionário informal, em que os habitantes deveriam
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12 As pequenas parcelasde terra em torno da al-deia naquilo que foi de-finido como “a unidadeagrícola mínima” foramrepostas com parcelasequivalentes. As proprie-dades de maior dimen-são foram alvo de expro-priação e compensadaspecuniariamente. Estenão é, no entanto, o ob-jetivo deste artigo e nãose vai aqui, por conse-guinte, desenvolver essetema.
indicar se queriam a nova aldeia construída no perímetro da fre-
guesia ou noutro local.
A junta recebeu cerca de 157 respostas (de um total de 180
famílias), que confirmaram a vontade da Luz se manter una en-
quanto comunidade e de ser reinstalada tão próximo da antiga al-
deia quanto possível. Os trabalhos foram retomados ainda no ano
de 1993; o bloqueio definitivo e legalmente institucionalizado à
dinâmica de crescimento da aldeia concretizou-se em 1995, quan-
do a Câmara Municipal de Mourão e a EDIA publicaram um de-
creto a proibir qualquer construção subseqüente na Luz. As pers-
pectivas de desenvolvimento da aldeia restringiram-se; muitos
casais jovens com planos de aí se estabelecerem viram-se força-
dos a ir para terras vizinhas, desde Reguengos de Monsaraz a Évo-
ra: o atual presidente da junta contabiliza a perda de cerca de 20
casais nesse processo.
De acordo com a opinião local, expressa nomeadamente pe-
las autoridades da aldeia, “as pessoas nunca acreditaram no Al-
queva” e pensa-se que houve um processo de “dissolução de von-
tade”, por parte do poder central, de fazer com que a população
só fosse acreditando paulatinamente nessa nova realidade que se-
ria a barragem, de modo a não oferecer uma resistência franca
(política e social) contra o projeto. Tal terá sido conseguido atra-
vés de uma genérica falta de informação em relação ao projeto e
uma sucessão de dados contraditórios, que numa altura indica-
vam que tudo iria avançar para logo a seguir tudo parar. Essa sus-
peição faz parte de um contexto real em que todo o processo de
Alqueva decorreu, num clima permanente de conflito de idéias,
de fazer e desfazer, de tentativa e erro, muito sentido pela popu-
lação e pela Junta de Freguesia, como intermediária no diálogo da
população com a EDIA e o poder central.
Quando finalmente as obras avançaram e a nova aldeia co-
meçou a tomar forma, as angústias dos seus habitantes irrompe-
ram. Para além do abandono forçado das casas em que os filhos
nasceram e do território familiar das ruas, da transformação ir-
reversível da paisagem, da perda de terrenos, hortas e campos de
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cultivo, foi a gestão da identidade local e dos indivíduos enquan-
to elementos ativos de unidades sociais familiares que surgiu co-
mo questão fulcral e extremamente complexa.
No seio de um clima social e psicologicamente perturbado,
todo o processo de concepção e concretização da nova aldeia foi,
forçosamente, moroso e difícil. Ao longo de anos e de vários con-
cursos públicos, formaram-se diferentes equipes que projetaram
a aldeia, os vários equipamentos públicos e finalmente aquilo
que a EDIA denominou “o espaço monumental”, constituído pe-
la igreja matriz, o cemitério e o novo museu projetado para a No-
va Luz. Para estabelecer uma ponte entre os vários elementos in-
tervenientes no processo – nomeadamente com as diversas
equipes de arquitetos projetistas –, foi criado o GRAL – Gabinete
de Reinstalação da Aldeia da Luz –, o pólo local da EDIA,13 cujos
técnicos passaram a operar na aldeia em estreita ligação com os
habitantes. Após anos de conversações e trabalhos, retrocessos e
atrasos, em 2002, quando as comportas se fecharam, a nova al-
deia estava praticamente pronta a receber os seus ocupantes.
O SOLSTÍCIO DE VERÃO E A TRASLADAÇÃO DOS MORTOS
A mudança de toda a Aldeia da Luz para um novo local acarreta-
va o problema melindroso da trasladação integral da comunida-
de dos antepassados, já que a velha necrópole seria também sub-
mergida pelas águas. O cemitério fazia parte de um conjunto que
distava cerca de 1 km do núcleo populacional e que integrava a
igreja matriz, do século XV (com posteriores acrescentos, visíveis
nas influências góticas dos portais e capitéis e nas características
renascentistas da capela batismal), e a praça de touros: um con-
junto que simbolicamente unia as esferas da morte e da festa, do
sagrado e do profano. O percurso entre a aldeia e o santuário era
marcado pelas cruzes junto às quais se rezavam antigamente os
responsos nos cortejos fúnebres que conduziam os defuntos ao
cemitério; e era também este o caminho percorrido todos os anos
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13 A sede da EDIA é emBeja, existindo igual-mente um pólo da em-presa em Lisboa.
pela procissão solene em honra de Nossa Senhora da Luz, no pri-
meiro domingo de setembro, e pelas gentes que acorriam à tou-
rada de sábado e à vacada de segunda-feira, integradas nesses fes-
tejos do final do verão em honra da santa padroeira da freguesia.
Tendo sido decidido pelos luzenses que “não abandonariam
as suas alminhas” e que a mudança dos mortos deveria anteceder
a dos vivos, o cemitério foi integralmente trasladado em julho de
2002. No sábado, dia 22 de junho, realizou-se uma missa na igre-
ja matriz, seguida por uma derradeira cerimônia religiosa no ve-
lho cemitério, presidida pelo bispo auxiliar de Évora, em que a
população se despediu desse espaço – as famílias alumiaram as al-
mas dos defuntos, acendendo uma lamparina, e colocaram uma
flor nas sepulturas – e cerrou-se simbolicamente o portão. Este
foi um momento de catarse emocional coletiva forte, em que as
pessoas se sentiram unidas na dor que lhes causava esse abando-
no forçado dos mortos.
Seguiu-se uma romagem até ao novo cemitério, na nova al-
deia, onde se procedeu à bênção do campo sagrado e onde, num
simulacro simbólico do processo que se seguiria – já que nessa al-
tura todas as campas se encontravam vazias – e na seqüência do
que tinham feito no velho cemitério, cada família acendeu igual-
mente uma lamparina e colocou uma flor nos ocos que viriam a
ser a nova morada dos seus antepassados.
Numa comunidade que já se sentia vitimada pela decisão su-
perior da submersão da aldeia, a trasladação do cemitério cons-
tituiu o expoente máximo da violação de privacidade e tocou o
âmago sagrado da relação das pessoas com a morte, vista como
disruptor por excelência da harmonia familiar e social; parti-
lhando as mesmas concepções sobre a morte e a relação com o
mundo do além, a repetição do sofrimento e dos gestos de cada
família funcionou como um meio de reforço da identidade local.
Um desses gestos repetidos foi o “alumiar das alminhas” nos dois
espaços cemiteriais.
A noção de que as alminhas “não se podem sentir sozinhas e
precisam de uma luz para as guiar” é recorrente na relação dos vi-
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vos com os mortos e um exemplo da noção mais geral da neces-
sidade do integral e do cuidado no cumprimento dos rituais, de
modo a que a alma ascenda ao seu lugar devido na esfera do além
e que, desse modo, se mantenha uma boa relação entre os dois
mundos. Nesse caso, ela é ainda correlária da importância dada
ao espaço – real e simbólico – e ao território ocupado pelos de-
funtos, onde, através nomeadamente dos cuidados dispensados
na manutenção e embelezamento das sepulturas, se atualiza fisi-
camente essa relação (Saraiva, 1996). O gesto de alumiar funcio-
nou aqui como alívio no peso de consciência que as pessoas so-
friam por sentirem que estavam a abandonar os seus mortos. A
continuidade dos gestos entre os dois espaços físicos – o velho ce-
mitério onde as almas ficavam e o novo para onde elas iriam –
ajudou também a mitigar a dor sentida pelos luzenses.
Essa data coincidiu com a festa anual em honra do Sagrado
Coração de Jesus. À tarde, na praça de touros por baixo do cemi-
tério encerrado, teve lugar uma das tradicionais vacadas. À noi-
te, no pátio das instalações da junta no centro da aldeia – onde,
na noite anterior, se tinham visto diapositivos que mostravam a
paisagem circundante da aldeia tal como ela tinha permanecido
até fevereiro de 2002 (data do fecho da comportas e do conse-
qüente início da subida do nível das águas) –, a banda tocou e
bailou-se ao som do conjunto Nova Luz, grupo de rock organi-
zado e composto por jovens da aldeia, que nesse dia celebrava o
seu sexto aniversário.
A opção de juntar a festa do Sagrado Coração com as ceri-
mônias de encerramento do velho cemitério e a bênção do novo
provocou alguma controvérsia na aldeia, e muita gente não foi à
vacada por ter achado mal essa junção de celebrações. A justifi-
cativa para a sobreposição de datas (até porque a festa do Sagra-
do Coração costumava realizar-se uma ou duas semanas mais
cedo) dada pela organização e pela Junta de Freguesia prendeu-
se com a preocupação em aliviar e não enfatizar o lado emocio-
nal e negativo do encerramento do cemitério, distraindo as pes-
soas com a festa aliada às celebrações do Sagrado Coração. Esse
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episódio ilustra a complexa gestão de emoções coletivas que tem
pautado todo o processo de concertação e mudança da aldeia, tal
como a noção desenvolvida pela antropologia, que olha as emo-
ções como algo gerido e muitas vezes mesmo controlado social e
culturalmente, sublinha Lutz (1988), Lutz e Abu-Lughod (1990),
Lutz e White (1986) e Rosaldo (1984).
Na semana seguinte procedeu-se aos trabalhos preparativos
da trasladação. A zona do cemitério, que estava já inteiramente
vedada, foi interditada, e a partir daí só a equipe que trabalhou
na processo pôde lá entrar. A trasladação iniciou-se no dia 28 de
junho e durou 13 dias; foram mudados uma média de 12 corpos
por dia. Os féretros saiam em carro fúnebre do velho cemitério e
seguiam por uma estrada exterior ao núcleo populacional, de mo-
do a evitar o trauma coletivo que constituiria o desfile diário de
12 a 20 funerais pelo meio da aldeia.
As famílias aguardavam os seus defuntos no novo cemitério,
onde se procedia à inumação das urnas nos novos ocos. Seguiu-
se um critério de convocação por famílias, em que se tentou que
os defuntos de uma unidade familiar fossem todos mudados no
mesmo dia, de modo a evitar várias deslocações ao cemitério –
propósito dificultado pelo grau de endogamia da Luz, em que
quase todos são aparentados por laços de consagüinidade ou afi-
nidade. O projeto do novo cemitério respeitou as especificidades
da antiga necrópole, com os “ocos” característicos da zona – se-
pulturas exteriores, elevadas em relação ao solo, o que faz com
que a inumação não seja feita, na maioria dos casos,14 na terra e
o processo de decomposição dos corpos seja aeróbio –, onde as
posições relativas de cada sepultura se mantiveram inalteradas. A
manutenção do aspecto físico de cada campa e da vizinhança das
sepulturas visou minimizar os problemas decorrentes da trans-
posição desse campo sagrado para o novo espaço, permitindo às
pessoas uma fácil identificação das suas sepulturas familiares: as
mesmas pedras ou outras semelhantes revestiram os novos ocos,
e todas as cabeceiras de sepultura, lápides, jarras e outras decora-
ções foram igualmente transferidas para o novo cemitério.
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14 Já que muitos dosocos são duplos, o corpoque fica por baixo tempor vezes contato com aterra, o que não acontececom os do nível superior.
Foram dias difíceis, em que se reviveram as mortes que mar-
caram as vidas das famílias, um trauma aumentado pela repeti-
ção do ato mais de uma dezena de vezes, diariamente. Mexer na
comunidade dos mortos foi também tocar na memória sagrada
de uma aldeia, que ultrapassou os restos mortais individualmen-
te identificados que foram trasladados. Esse processo despoletou
uma catarse coletiva e um sentimento de solidariedade derivada
do sentimento da união na dor. Com os seus mortos no novo es-
paço, só restava aos luzenses aceitarem com resignação que os vi-
vos se mudassem também.
PREPARAR A MUDANÇA
Entre meados de julho e meados de agosto, todas as unidades fa-
miliares que iriam receber habitações na nova aldeia foram con-
vocadas individualmente para uma visita final à casa. Nessa visi-
ta estavam presentes dois elementos da EDIA, dois representantes
da população que tinham acompanhado o processo de concer-
tação e de discussão dos projetos de cada casa desde o início e as
famílias. O objetivo final dessas visitas era, no dizer da empresa,
“a entrega das chaves das casas aos seus proprietários”. Eram pas-
sadas em revista as discrepâncias existentes relativamente ao pro-
jeto aprovado, com as sucessivas alterações a que se tinha chega-
do por acordo entre as partes, e o produto final patente na casa
construída.
Na maioria dos casos, as divergências foram renegociadas,
tendo sido atribuídas às famílias indenizações pecuniárias por ele-
mentos ou detalhes lacunares ou que estavam diferentes do acor-
dado, de montante variável e adequado a cada caso. Quando se
conseguia de imediato um acordo, as chaves eram entregues e as
pessoas podiam começar a proceder a limpeza com vista à
mudança, marcava-se a data para se ir à Junta de Freguesia rece-
ber o cheque referente à indenização e, posteriormente, as pes-
soas eram contatadas pelos serviços centrais da EDIA, em Beja,
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para a marcação da escritura. A partir do momento em que esta
se concretizava, as velhas casas da antiga Luz passavam oficial e
juridicamente para a posse da EDIA.
A questão da data da mudança tinha sido um dos principais
pontos de discórdia e controvérsia na aldeia nos últimos meses.
Uns defendiam que se devia começar a mudar o mais depressa
possível, enquanto outros eram da opinião que a mudança só po-
dia ter lugar após as festas de setembro de Nossa Senhora da Luz.
Muitos achavam uma vergonha a procissão percorrer as ruas que,
ao contrário do que sempre aconteceu, não seriam caiadas, lim-
pas e alindadas para o grande dia da passagem da procissão sole-
ne pelas artérias da velha aldeia, rumando depois à igreja matriz.
A solenidade atual dessa celebração adquiria nesse verão de
2002 uma ênfase acrescida: ao fim de se repetir, desde há cinco
anos, que “esta festa será a última na velha aldeia”, era agora ób-
vio – com as comportas da barragem fechadas, o nível das águas
a subir, a nova aldeia pronta e a maioria das chaves das casas já
entregues aos seus novos proprietários – que esse seria real e de-
finitivamente o último ano da grande festa da santa padroeira na
sua velha morada e na antiga igreja matriz.
É importante perceber o significado simbólico e a importân-
cia dada a esse santuário e à lenda da sua origem, que fazia com
que o sentido de pertença ao território estivesse enraizado no sím-
bolo multivocal representado pela igreja, espaço sagrado de de-
voção mas também gênese do povoado e dos próprios luzenses.
Na década de 80 construiu-se no Largo 25 de Abril, o centro
da aldeia, uma capela – erigida em honra ao Sagrado Coração de
Jesus15 –, onde se passaram a realizar as missas dominicais, nove-
nas de maio, velórios e missas de corpo presente, isto é, os servi-
ços religiosos mais correntes. Do ponto de vista da Igreja Católi-
ca, essa construção deveria ter efeitos positivos na assiduidade dos
luzenses aos serviços religiosos, pela sua localização no âmago da
aldeia, evitando assim a desculpa de que não se ia à missa por ser
a igreja “mú longe”. De fato, esse novo santuário facilitou, em ter-
mos práticos, a vida das mulheres da Luz,16 até por se tornar mais
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15 Foi a partir dessa altu-ra que se começou a ce-lebrar a referida festa emhonra ao Sagrado Cora-ção de Jesus.16 Refiro-me a mulherese não a homens, já que naLuz, à semelhança doresto do Alentejo, a prá-tica religiosa é um assun-to sobretudo feminino(França, 1981). São rarosos homens que assistemàs missas, aguardandonormalmente no exte-rior o término destas. Aparticipação masculinareporta-se sobretudo aotransporte dos grandes epesados andores nas pro-cissões solenes das festasda aldeia.
fácil encontrar o padre nessa capela central. A igreja matriz con-
servou a sua aura de santuário original e ficou reservada para oca-
siões mais solenes, como casamentos, batizados, cerimônias espe-
ciais e a grande festa de setembro. No entanto, a relação emocional
forte das pessoas da Luz continuou a ser com a igreja matriz, e
não com a capela.
No seio de tanta controvérsia, percebeu-se que não havia
tempo para mudar toda a gente antes da festa, nem fazia sentido
que esta tivesse lugar na nova aldeia, com a maioria da popula-
ção ainda a residir no velho núcleo. Finalmente, algumas famílias
se mudaram antes da festa de setembro17 – deixando, muitas ve-
zes, uma cama ou um colchão na velha casa “para as noites da fes-
ta” –, mas o grosso das mudanças ocorreu nas semanas subse-
qüentes às festas, havendo em alguns dias sete ou oito mudanças
simultâneas ou consecutivas. Esse ritmo começou a diminuir a
partir de finais de outubro.A mudança da aldeia, inicialmente pla-
neada para agosto e setembro de 2002, estendeu-se praticamente
até ao Natal de 2002:18 chegamos assim ao solstício de inverno.
A FESTA DE NOSSA SENHORA DA LUZ
A festa em honra de Nossa Senhora da Luz iniciou-se com a tra-
dicional vacada noturna de sexta-feira à noite, num recinto im-
provisado no largo da escola, no centro da aldeia. No sábado de
manhã, a alvorada foi feita com a banda de Mourão a tocar pelas
ruas da aldeia e uma pequena procissão – em honra de santo An-
tônio – pelas ruas da aldeia. À tarde, houve a atuação dos pára-
quedistas e a tourada na praça de touros; o arraial noturno foi
abrilhantado pela banda de Mourão, pelos grupos corais de Mou-
rão e da Luz e ainda pelos artistas de variedades musicais, segui-
dos pelo fogo de artifício e baile. O domingo foi o dia votado à
devoção da Senhora da Luz, com a procissão pelas ruas da aldeia,
a romagem até à igreja matriz e a celebração de missa solene, em
que o padre invocou as circunstâncias peculiares vividas, a recen-
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17 Uma única família ti-nha sido mudada antesdo início da trasladaçãodo cemitério, por motivode doença de um dosmembros dessa unidade.
18 Algumas famíliasmais renitentes e comquestões por resolvercom a EDIA permanece-ram na velha aldeia atémarço/abril de 2003,mas estes foram real-mente apenas alguns ca-sos isolados.
te transferência dos defuntos para a nova aldeia, a mudança em
curso e a eminente destruição da igreja e da velha aldeia. Quan-
do terminou a missa, pôde-se assistir ao fogo de artifício, sentados
na bancada da praça de touros. Por trás, o terreno vazio onde an-
tes tinha existido o cemitério e que parecia ter-se desvanecido co-
mo que por ação de um pincel mágico. Os luzenses foram con-
frontados nesse dia com o desaparecimento desse espaço: a grande
maioria das pessoas da Luz não tinham voltado àquele lugar des-
de o dia da derradeira cerimônia de encerramento do cemitério,
em junho.19 Ele tornou-se, durante o período que durou a tras-
ladação, uma zona interdita, repleta de poluição e tabus que se re-
fletiam nos comentários que circulavam na aldeia durante esse
período e que se referiam à pestilência que os ventos traziam des-
se lugar onde os mortos estavam a ser profanados.
À noite, de novo variedades musicais e baile até de madru-
gada; na segunda-feira, último dia da festa, a vacada ao fim da tar-
de, no recinto da praça de touros, e a música e o baile finais.
A grande festa de verão é, à semelhança do que acontece um
pouco por todo o país, o momento por excelência de abertura da
Luz ao exterior. Para além de familiares emigrados no estrangeiro
ou na zona da capital, a fama das festas da aldeia atrai pessoas das
redondezas e de várias outras regiões do Alentejo e é motivo de or-
gulho dos luzenses, sobretudo quando as comparam com as das
aldeias e vilas circundantes e com o prestígio dos artistas que con-
tratam: “Nós temos sempre os melhores! A Mariza vem este ano e
já cá esteve há dois anos e vem também a Ana Malhoa e o pai! E
aqui na Luz é sempre à borla,20 nem fechamos o largo como fa-
zem noutros sítios!” A festa de 2002, anunciada como a derradei-
ra na velha aldeia, foi uma das mais concorridas de sempre.
A efervescência da multidão que assiste ao espetáculo de va-
riedades diminui ao longo do baile da madrugada e, a partir das
3 horas, 4 horas da manhã, o espaço, esvaziado dos “de fora”, é de-
volvido aos locais: as danças que se fazem às 4 horas ou 5 horas
da manhã, com rodas e filas dançantes – como o “paquito” e o
comboiozinho –, espelham relações de familiaridade que se per-
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19 Muitos já se tinhamdeslocado ali no dia an-terior, para assistirem àtourada, mas a afluênciaà procissão e missa foisem dúvida mais repre-sentativa.
20 Borla: gratuitamente;de graça.Cf.<http:// www.portoeditora.pt/dol/de fau l t . a sp?par am=08010100>. (N. do E.)
petuam entre as gentes da aldeia. Uma outra ocasião importante
e reservada unicamente aos luzenses é o momento de encerra-
mento das festas. Na terça-feira, cumprindo um ritual obrigatório
e costumeiro, o presidente da Junta de Freguesia convidou toda a
população a participar de um almoço comunitário na cooperati-
va da junta. Embora o convite fosse generalizado a toda a gente,
só as pessoas que de algum modo tinham estado ligadas à orga-
nização da festa e a camada mais jovem compareceram. No final,
os jovens decidiram ir tomar café na”nova aldeia”, no único esta-
belecimento aí já instalado – uma forma de marcar um dia dife-
rente, que, como disse a jovem que insistiu em pagar a despesa na
sua totalidade, “há tão poucas vezes em que estamos todos assim
aqui juntos, tem de ser celebrado!” A opção pela escolha do café
na nova e, à altura, pouco habitada aldeia é interessante e pode
ser vista como uma afirmação simbólica da parte dos jovens da
aceitação de um espaço que marcará as suas vidas futuras.
DO VERÃO AO SOLSTÍCIO DE INVERNO: A MUDANÇA DOS VIVOS
Nos meses de setembro e outubro, as dinâmicas das duas aldeias
foram inteiramente pautadas pelo ritmo das mudanças. À medi-
da que se esvaziava a antiga Luz, ia-se enchendo a outra aldeia:
cada dia havia mais casas habitadas e janelas abertas na nova po-
voação. Aos poucos, as portas das antigas ruas passaram a exibir
o dístico que marcava o estigma da casa vazia e que, destinado a
informar o carteiro local, podia também ser tomado como uma
espécie de contagem decrescente conducente ao final da Luz:“En-
tregar o correio na loja da D. Adelina”.
De semana para semana, podia-se observar a diminuição do
movimento nas ruas e a crescente azáfama nas artérias do novo
núcleo. A escola, que abrange o ensino pré-primário e o primei-
ro ciclo, iniciou-se, tal como estava planeado, na data oficial de
abertura do ano escolar, a 15 de setembro. A maior parte das fa-
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mílias com crianças em idade escolar estava nessa altura já a re-
sidir na Nova Luz.
Os dias anteriores à mudança foram sempre marcados por
uma grande azáfama: era preciso embalar os objetos, separar o
que não se queria levar, preparar tudo para o dia da despedida da
velha casa. As etiquetas com as designações das diferentes divisó-
rias da casa eram colocadas nas caixas de modo a facilitar o pro-
cesso de desempacotamento e arrumação na nova casa.
No dia da mudança, tudo era levado – do interior, das di-
versas divisões das casas: mobiliário, roupas, bibelôs e objetos
embalados, candeeiros, eletrodomésticos e esquentadores; dos
quintais e anexos: utensílios agrícolas e outros, plantas, animais
domésticos e as suas respectivas “casas” (gaiolas de pássaros, ca-
sotas de cães etc.), lenhas. Para o transporte das plantas foi ne-
cessário, para muitas casas, um caminhão separado, dada a quan-
tidade e o volume delas, e a vontade expressa pelas pessoas de
“não deixarem lá as suas plantas a apodrecer debaixo de água”.
Após anos, meses de angústia, esses dias finais foram, para
muitas famílias, mais fáceis do que eles próprios esperavam. Vá-
rias pessoas disseram que o que lhes custou mais foi o dia em
que foram ao GRAL marcar a mudança e receber as caixas e as
etiquetas para o empacotamento. Esses atos fizeram com que
realizassem que a tal duvidosa hora da mudança sobre a qual
tanto se havia falado e especulado se tinha, afinal, transforma-
do numa certeza incontornável e contra a qual eles já não po-
diam lutar.
Apesar disso, a despedida da velha morada foi muitas vezes
dolorosa e amiúde as lágrimas caíssem pelas faces de homens e
mulheres ao fecharem pela última vez a porta das velhas casas. Es-
te foi um marco simbólico importante na conceptualização da ne-
cessidade de abandonar a velha aldeia, mesmo se, na realidade, o
abandono se deu de uma forma paulatina. Todas as famílias guar-
daram uma chave e voltavam regularmente à velha casa nas sema-
nas subseqüentes à mudança para irem buscar haveres deixados,
coisas que se pensava originalmente não serem necessárias, para
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levarem as galinhas que se tinham deixado nos quintais, para apa-
nhar os últimos frutos e legumes das hortas que trabalhavam.
No dia da mudança, o contraponto da tristeza de deixar a ve-
lha casa era a chegada à casa nova. Um misto de emoção e de in-
vocação dos aspectos práticos para anular tristezas, já que era ne-
cessário começar a ordenar e a impor algum sentido aos objetos
nos seus novos lugares, fazer o essencial para pôr a casa a fun-
cionar: colocar lâmpadas elétricas ou candeeiros novos previa-
mente comprados, preparar as camas para a primeira noite na
nova casa, começar a pendurar as roupas nos roupeiros. As mu-
danças despoletaram mecanismos de solidariedade familiares e
vicinais – correntes em situações críticas em que as rotinas coti-
dianas são alteradas, como na morte e luto, mas também em al-
turas de cooperação e entreajuda no trabalho, por exemplo –, em
que parentes e sobretudo mulheres mais jovens das famílias vi-
nham ajudar mães, sogras e tias a limpar os móveis, fazer as ca-
mas, trazer comida para as primeiras refeições no novo espaço ou
a convidar os que se mudavam a ir comer à casa deles.
O ritmo de adaptação foi diferente consoante as casas. Algu-
mas, com tudo mais organizado e que dispunham de mais aju-
das, conseguiam em poucos dias ter “a casinha arrumada”; ou-
tras, com mais haveres e com menos auxílios, permaneciam com
as divisões repletas de caixas cujos rótulos exteriores indicavam o
destino próximo do que se encontrava no seu interior: quarto 1,
quarto 2, cozinha 1, cozinha 2, sala, quintal etc.
Com todo o trauma a ela associado, a mudança para a nova
aldeia teve também aspectos positivos: ambiguamente temida e
desejada, ela possibilitou a consagração de um sonho de renova-
ção que para muitos foi importante. Quase toda a gente investiu
na compra de mobiliário novo, pelo menos para algumas divisó-
rias da casa, e foi nítida a ênfase posta nas cozinhas. Mesmo quem
dispunha de parcos meios financeiros comprou candeeiros no-
vos, já que estes eram mais acessíveis e não era pensável ir para
uma casa nova sem coisas novas. A proclamação de que “agora,
com a mudança, são tudo casas de noivas” refere-se não apenas à
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jocosidade com que se desejava felicidade aos casais na sua pri-
meira noite na nova casa (e que era motivo de brincadeira sobre-
tudo entre os casais mais idosos), “uma segunda noite de núp-
cias”, mas também ao fato de a ida para uma casa nova marcar
normalmente uma etapa na vida das pessoas, que corresponde ao
rito de passagem do casamento.
Simbolicamente, a casa na recém-criada aldeia correspondia
a uma noção de revitalização que, no meio de tanta discussão e
tristeza, não deixava de ser apelativa. Submetidos a uma série de
ritos de passagem indesejáveis – de luto pela velha casa e aldeia,
de transição de espaços –, os luzenses juntaram-lhes outros mais
agradáveis: a noção da nova casa e da cama feita de novo para
uma “noite de núpcias” simbólica são alguns desses exemplos.
AO LONGO DO OUTONO
Não foi só a despedida das casas que se deu de forma gradual. A
relação com os espaços públicos foi a mesma e pautou-se por um
constante volver, de modo que estes só muito lentamente foram
sendo abandonados: os poços e as fontes (sobretudo o poço ve-
lho no caminho das hortas) onde se continuou a ir buscar água,
os campos onde se caçou durante todo o outono e onde se apa-
nharam silarcas no inverno.
Na velha Luz existiam três cafés, dois na artéria principal que
ligava a aldeia a Mourão, um num pequeno largo igualmente cen-
tral, e ainda a Sociedade Recreativa Luzense. Um quarto café, lo-
calizado igualmente na rua de Mourão, foi sempre percepciona-
do mais como restaurante do que café e foi este o estabelecimento
que se mudou primeiro para a nova aldeia, ainda antes da festa
de setembro.
Era nesses espaços que se geria a intensa sociabilidade mas-
culina: antes da refeição do meio-dia para se tomar uns copos e
comer um petisco, ritual repetido e prolongado antes do repas-
to noturno e, após este, para beber o café ou os digestivos. O cos-
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tume é realizar-se o périplo pelos vários estabelecimentos, volta
que dura várias horas. Era ainda nos cafés que se viam os gran-
des jogos de futebol e outros espetáculos desportivos de interesse
e que os grupos se juntavam para jogar as cartas ou para outros
entretenimentos, como o caso da sala de snooker e de matraqui-
lhos na sociedade.
Mesmo já com muitas famílias na aldeia nova, o palco das in-
tensas sociabilidades centradas nos cafés continuou focado na ve-
lha aldeia até à mudança desses espaços. Durante todo o mês de
setembro e parte de outubro, depois do jantar, o largo da velha al-
deia transformava-se em parque de estacionamento de todos os
que já residiam no novo núcleo e que “iam tomar o café na al-
deia”. É interessante notar que mesmo as pessoas a habitarem já
nas novas casas continuavam a referir-se à velha aldeia como “a
aldeia” ou “a Luz”, noção expressa em frases como “Queres vir to-
mar café na aldeia?” ou “Vão para a Luz?”. Num esforço para se
manter uma relação identitária com um espaço que se desfazia e
se recriava noutro local, a invocação do nome da aldeia parecia
de vital importância.
Esse panorama só mudou com a transferência dos cafés e da
Sociedade Recreativa, no mês de outubro, o que marcou definiti-
vamente a transposição do pulsar da vida social para a Nova Luz.
A despedida do último café na velha aldeia foi uma longa noite de
festa, em que se cantou, se chorou e se bailou, o grupo coral atuou
e os acordeões soaram até de madrugada. Nessa altura, as casas de
comércio da aldeia – três mercearias e uma padaria – já se tinham
mudado. A partir daqui os resistentes que permaneciam no velho
núcleo sentiam que “realmente aquilo ali já não é vida” e que “até
para comprar uma caixa de fósforos é preciso ir à aldeia nova”.
PENSAR UMA NOVA ALDEIA
Para a reinstalação da aldeia foi preciso repensar um novo aglo-
merado, a partir de 25 projetos-tipo e de alguns projetos especí-
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ficos, que dessem de algum modo conta da diversidade de edifí-
cios; a preocupação da equipe projetista era, na origem e confor-
me foi afirmado em vários dos documentos dela emanados, rea-
lizar uma operação de realojamento que contemplasse não apenas
o patrimônio fundiário, mas espelhasse a identidade da aldeia,
transpondo a imagem de uma povoação alentejana. Não obstan-
te, ao longo dos anos de duração do projeto, geraram-se inúme-
ros conflitos e problemas de difícil resolução.
A ocupação das novas moradias, para além de obrigar as
pessoas a percepcionarem e adaptarem-se a um novo espaço,
confrontou-as com casas recém-acabadas e com os erros de pro-
jeto e de construção que já tinham sido objeto de confronto en-
tre os luzenses e a EDIA ao longo de anos. Apesar de tentativas
iniciais de entendimento entre as pessoas e a equipe projetista
através da criação de uma comissão de luzenses que se reunia
com os arquitetos, a partir de certa altura o diálogo tornou-se
impossível e foi a EDIA, através do GRAL, que ficou encarregada
do contato direto com a população – toda a discussão sobre as
áreas das casas, anexos e quintais, os materiais a escolher para o
revestimento dos chãos, acerca de trocas e negociações referen-
tes a modificações nas casas passou a ter lugar na sede da EDIA
na aldeia, e era aos técnicos do GRAL que as pessoas se dirigiam
para qualquer reclamação.
No produto final e na adequação das casas para as vivências
cotidianas das famílias surgiram inúmeros problemas. Alguns
deles se reportam ao próprio projeto de urbanização, como a
questão do deficiente escoamento das águas pluviais, que pro-
vocou inundações nos quintais de várias casas durante o primei-
ro outono/inverno passado na nova aldeia (2002-2003). Outros,
com uma errada concepção do que é a vida dos habitantes da
Luz, em que uma parte da população se dedica ainda à agricul-
tura, aliada à criação de gado. A Aldeia da Luz faz parte dessa
fração do país que ainda representa o que resta do mundo rural
em vias de desaparecimento (Baptista, 1996). Uma aldeia alen-
tejana em que os rituais da matança do porco, do fumeiro, do
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fazer do vinho e da preparação da azeitona continuam a fazer
parte de um modo de vida que o projeto de arquitetura não en-
tendeu na plenitude.
As modificações introduzidas nos interiores das casas – a
colocação de azulejos decorativos nas paredes dos corredores e
de algumas salas, a introdução de colunas e arcos decorativos di-
visórios entre a cozinha e a sala e o investimento maçico no mo-
biliário das cozinhas são os exemplos mais recorrentes e notó-
rios – prendem-se mais com a necessidade de apropriação de
um espaço estranho, de cada um transformar à sua maneira e
personalizar um território novo, que se quer diferente daquele
do vizinho.
Pelas modificações e decorações inovadoras, construções nas
traseiras – sobretudo nos quintais e tapadas –, por exemplo, de
segundas cozinhas e chaminés destinadas ao fumeiro, fechamen-
to de telheiros, construção de casões para abrigo de alfaias agrí-
colas ou animais, alterações nos muros circundantes das proprie-
dades, entre outros, pode-se afirmar que a tipologia original se
encontra totalmente ultrapassada.
Muitas das modificações realizadas nos exteriores prendem-
se com questões de afirmação social, sobretudo por parte das fa-
mílias mais abastadas ou daquelas que, mercê dos ganhos conse-
guidos com a emigração, tinham feito mais investimentos e
modernizado as suas casas na velha aldeia, num passado recente.
Exemplo disso são os muros exteriores refeitos com vedações em
ferro forjado, complementados com portões no mesmo material.
Mas reduzir toda essa dinâmica aos aspectos da visibilidade so-
cial é, penso, extremamente redutor: muitas vezes a funcionalida-
de, as questões estéticas ou a necessidade de continuar esferas de
sociabilidade que existiam na velha aldeia triunfam, como é o ca-
so de um luzense que baixou o nível do muro do seu quintal,21
para que a mulher pudesse continuar a conversar com a vizinha
sem ter de sair de casa e, também, “para ter vista”. De um ou ou-
tro modo, subjacente está sempre a necessidade de apropriação
simbólica do espaço.
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21 Todas as paredes dedivisória entre parcelassão bastante altas, acimade 2 m.
“OS DE CÁ” E “OS DE FORA”
A Aldeia da Luz situava-se numa estrada que, vinda de Mourão,
terminava na aldeia, só conduzindo, através de um caminho de
terra batida, ao Castelo da Lousa, uma edificação romana junto
ao Guadiana. Esse monumento arqueológico era o que levava
mais pessoas a passarem pela aldeia, que mantinha um ritmo de
vida bastante pacato. O Alqueva veio revolucionar as vivências da
Luz e devassar intimidades.
A afluência de pessoas “de fora” começou com os primeiros
estudos sobre a barragem e sobretudo com o início do projeto de
construção da nova aldeia. Foram os primeiros inquéritos e os es-
tranhos a porem intermináveis perguntas de porta em porta; os
arquitetos e engenheiros a entrarem pelas casas, a contar e a me-
dir tudo o que era susceptível de ser medido; os cineastas a faze-
rem filmes sobre a aldeia; os fotógrafos a editarem livros e a rea-
lizarem exposições de fotografias; os antropólogos e sociólogos a
inquirirem sobre o processo de mudança.
Além desse primeiro tipo de invasão do exterior, mais rela-
cionada com peritos das diversas áreas do trabalho a realizar, a
Luz habituou-se a dois outros grupos de alógenos desconheci-
dos até então para a grande maioria da população: os imigran-
tes estrangeiros que vieram trabalhar para as obras de constru-
ção da aldeia e os turistas. O primeiro grupo permaneceu na
aldeia durante todo o período de construção e obras, sensivel-
mente desde 1996 até 2003, tendo essa ocupação sido mais inten-
sa entre 1998 e o verão de 2002. A velha Aldeia da Luz transfor-
mou-se num espaço de concentração de pessoas oriundas “dos
quatro cantos do mundo”22 a uma escala verdadeiramente sur-
preendente: havia vários grupos dos países de leste (sobretudo
moldavos e ucranianos), outros dos Palop – guineenses, cabo-
verdianos, angolanos –, de outros países africanos (por exem-
plo, senegaleses) e ainda brasileiros e paquistaneses. A maioria
vivia em contentores e instalações fornecidas pelos empreiteiros
e subempreiteiros das obras, mas alguns tinham alugado casas
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22 Usando uma expres-são amiúde repetida pe-los luzenses quando fala-vam desse fenômeno.
na aldeia. Vários homens provenientes dos países de leste trou-
xeram as suas mulheres e filhas, o que funcionou como um fa-
tor que facilitou a sua integração. Elas começaram também a tra-
balhar na Luz e foram mais tarde, durante o período das
mudanças, uma mão-de-obra muito valorizada nas limpezas das
casas, no dizer das luzenses: “as ucranianas que limpam muito
bem”. Mesmo os grupos que não moravam na aldeia interagiam
com os habitantes, já que, desprovidos de meios de locomoção
próprios, se abasteciam de víveres nas mercearias e padaria lo-
cais. Muitos luzenses que nunca dali tinham saído se viram con-
frontados com homens de turbante na cabeça, línguas desco-
nhecidas e modos de vida percepcionados como diferentes dos
padrões locais.
O terceiro grupo começou a invadir a Luz sobretudo no úl-
timo ano antes da mudança, e ainda mais a partir do momento
do fecho das comportas e da maior divulgação e presença do ca-
so do Alqueva e da “aldeia que vai desaparecer” nos meios de co-
municação social e, sobretudo, de todo um aproveitamento sen-
sacionalista feito por esse grupo media sobre o caso da Luz.
Durante os fins de semana do verão de 2002, chegavam a entrar
diariamente cerca de 30 autocarros na velha aldeia, e as largas cen-
tenas de automóveis particulares provocavam longas linhas de
tráfego e engarrafamentos a ponto de se ter de restringir a circu-
lação de automóvel e se impor sentidos de circulação únicos. No
Largo 25 de Abril, nas tardes tórridas dos domingos de agosto,
muitas vezes havia mais turistas que autóctones.
Os luzenses viam o desfile de pessoas que para eles olhavam
num misto de orgulho da sua afirmação da identidade local e de
repúdio por um devassar de espaços e privacidades que sentiam
como sua pertença. O orgulho estava aliado à constatação do in-
teresse que os demais manifestavam pela sua aldeia antes desco-
nhecida, pela notoriedade que o seu sacrifício lhes trouxe nacio-
nalmente; mas essa atração pela fama envolve também o outro
lado, uma certa saturação que foi aumentando à medida que os
anos passavam, as obras avançavam e o número de visitantes cres-
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cia, e eles começaram a sentir-se “olhados como se fossem peças
de museu ou animais do jardim zoológico”.
Os turistas iam ainda ao Castelo da Lousa, até à altura em
que este foi coberto de sacos de areia23 e deixou de poder ser vi-
sitado. Essa avalanche de visitantes continuou até as obras de des-
mantelamento terem sido iniciadas e ter sido interditada pela
EDIA a entrada na velha aldeia (fevereiro de 2003); continuou du-
rante algum tempo, para ver a nova aldeia, que passou então a ser
o palco dos engarrafamentos de fim de semana.
CELEBRAÇÕES OFICIAIS E FESTEJOS INFORMAIS
Uma data especialmente importante foi o dia da saída dos santos
da velha para a nova aldeia, ao fim da tarde de sábado, dia 19 de
outubro. A igreja matriz tinha anteriormente sido esvaziada e os
santos levados para a capela do Largo 25 de Abril. Foi daí que saiu
a “procissão do adeus”,24 o cortejo que levou os andores dos san-
tos, a pé, da velha para a nova aldeia, onde ficaram guardados na
nova igreja paroquial, única a ser utilizada para os atos de culto
enquanto se aguarda a inauguração da nova igreja matriz – que
é, aliás, o único edifício de todo esse complexo que foi projetado
e construído como uma réplica do seu antecedente. Da velha igre-
ja foram retirados vários elementos que se transpuseram para a
nova construção – as colunas e outras pedras do alpendre, o pór-
tico frontal e o lateral, o batistério, o púlpito, as pinturas murais
do altar-mor, os altares laterais de madeira, os candelabros e ain-
da outros elementos estruturais e decorativos.
No dia seguinte, domingo, o bispo de Évora realizou uma
missa e procedeu à bênção solene da nova capela. A partir dessa
data, deixaram de haver missas na aldeia antiga, e as mulheres que
lá continuavam passaram a ter de se deslocar à nova aldeia para
assistir aos atos de culto.
A 19 de novembro de 2002, a Nova Aldeia da Luz foi solene-
mente inaugurada pelo primeiro-ministro, já com a grande maio-
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24 Como constava dospôsteres afixados nos co-mércios e cafés locais.
23 Medida decidida pe-los arqueólogos que de-fendem que esta é a úni-ca maneira de se poderpreservar essa edificaca-ção romana para gera-ções futuras, quando, da-qui a umas centenas deanos, as águas baixaremde nível.
ria da população a viver lá. Para lá das comemorações, dos dis-
cursos e das visitas oficiais, à noitinha houve uma refeição comu-
nitária e um espetáculo multimédia, com som, luz e água. Mas a
população sentiu esse dia, um dia de semana (terça-feira) em que
muitos trabalharam, como aquilo exatamente que ele foi: um dia
de inauguração oficial.
Os luzenses engendraram eles próprios as suas formas de se
despedirem da aldeia. Duas semanas depois da inauguração ofi-
cial, organizaram uma vacada no velho Largo 25 de Abril, que, ao
contrário das suas congêneres das festas de setembro, era destina-
da única e exclusivamente “aos da terra”. As pessoas refugiaram-
se das vacas e dos touros dentro de casas vazias e já sem janelas e
o bar foi improvisado na antiga mercearia do largo, nessa altura
já a funcionar em pleno na nova aldeia.
Durante todo o outono e inverno de 2002, os luzenses deslo-
cavam-se – como as hordas de turistas de fim de semana – para
observarem a subida do nível das águas, que, num ano de pluvio-
sidade elevada, foi aumentando a um ritmo assustador, sobretu-
do no período entre o Natal e as primeiras semanas de 2003. Os
comentários das pessoas denotavam a surpresa por tudo aconte-
cer tão rapidamente: “A fonte santa desapareceu quase de um dia
para o outro... isto está um mar!” Com os seus mapas cognitivos
e memórias da paisagem circundante completamente alteradas, é
às gerações mais velhas que o panorama da águas mais impres-
siona, quando reconhecem que “agora já não me sei bem orien-
tar; procuro coisas que já estão debaixo da água e que dantes a
gente conhecia tão bem!...”
OS JOVENS E OS VELHOS
A adaptação das pessoas aos novos espaços da aldeia foi-se proces-
sando ao ritmo dos acontecimentos e da apropriação dos territó-
rios e das sociabilidades adequadas ao papel de cada um. A pada-
ria, a partir do momento em que se estabeleceu na nova aldeia,
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cumpriu o seu papel de local de intensa interação feminina, onde
se comentam, logo pela manhã, as novidades do dia e da noite an-
terior.O mesmo aconteceu com as mercearias,nomeadamente por-
que o correio foi, durante o lapso de tempo que decorreu entre as
mudanças e a inauguração oficial – data em que foram colocadas
as placas com os nomes das ruas e os números das portas – entre-
gue e subseqüentemente distribuído no estabelecimento que exer-
cia oficialmente as funções de posto de correio local. A ida à quei-
jaria ou à casa de mulheres que têm cabras e fabricam queijos, as
deslocações à escola para ir buscar as crianças, as idas ao café, fo-
ram-se delineando e desenvolvendo à medida que a nova aldeia ad-
quiria corpo. A circunstância das novas casas, do novo mobiliário,
do esmero posto na decoração e das obras e melhoramentos reali-
zados suscitou a multiplicidade de visitas às casas uns dos outros.
O ritmo da ciclicidade anual dos eventos foi trazendo as pes-
soas aos espaços públicos – as celebrações e o madeiro de Natal
no Largo 25 de Abril, a comemoração da passagem do ano, tam-
bém junto ao madeiro, com uma refeição comunitária e fogo de
artifício. O final do ano foi também marcado pela celebração
do primeiro casamento na nova aldeia: num cenário carregado
do simbolismo de um ritual de agregação cumprido num espaço
recém-criado e ele próprio num processo de apropriação coleti-
va, a noiva e seu séquito percorreu, pelas ruas da aldeia e peran-
te o olhar público, a distância entre a casa dos seus pais e a Junta
de Freguesia, no largo principal.
A lenta e difícil apropriação dos espaços públicos reflete, mais
uma vez e à semelhança do que acontece com as casas, um proje-
to de urbanismo que não primou pela reflexão em torno dos mo-
dos de estar e das vivências das gentes da Luz.
Um dos problemas de circulação prende-se com a escala des-
sa nova aldeia, com ruas mais largas e em que as distâncias entre
os seus extremos parecem incomensuravelmente maiores e intrans-
poníveis. O estrato da população que mais queixas tem a esse res-
peito é a faixa etária mais idosa, que é também o grupo que mais
usufrui dos espaços exteriores. Na velha aldeia, o Largo 25 de Abril
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era o ponto de encontro dos homens, sobretudo ao fim da tarde, e
era daí que os diferentes grupos divergiam para o périplo tradicio-
nal pelos cafés, numa partilha de petiscos e copos que acompanha-
vam as conversas. No novo núcleo o largo é um espaço devassado,
sem intimismo, demasiado grande e por isso pouco acolhedor, fa-
to agravado pela ausência de bancos, de árvores e de sombras – a
única oliveira para aqui transplantada não consegue cumprir essas
funções de estabelecer um espaço afável e convidativo, o que ilus-
tra o problema da diminuição dos pólos que favoreciam a convi-
vencialidade e dos espaços de sociabilidade coletiva.
As mulheres também sentem a sua circulação restringida.
Mercê de sucessivas heranças, junção e separação de proprieda-
des pelo casamento, muitas famílias eram proprietárias, na velha
aldeia, de mais que uma parcela. Essa dispersão das propriedades
englobava também os quintais e as segundas cozinhas, onde, no
dia-a-dia, se fazia o fogo e se cozinhava, que, sobretudo na zona
mais antiga da aldeia – a Rua de Trás –, estavam distanciados das
habitações e muitas vezes do lado oposto da rua. Isso fazia com
que as mulheres fossem, na sua azáfama cotidiana, obrigadas a
atravessar permanentemente a rua e a se cruzar com as vizinhas.
Nas novas casas, as segundas cozinhas e quintais situam-se nas
traseiras, mas dentro dos perímetros das casas, não proporcionan-
do essas sociabilidades e encontros femininos.
Outra ocupação dos mais velhos se viu também anulada com
a mudança: as hortas, situadas numa das extremidades da aldeia,
eram trabalhadas por homens e mulheres, que daí extraíam legu-
mes, hortaliças e frutas para o gasto da casa. A maior parte des-
ses espaços não eram pertença de quem os trabalhava, mas sim
por estes arrendados ou simplesmente – na grande maioria – em-
prestados sem encargos, já que os seus proprietários viviam fora
ou deles não se podiam ocupar. O caminho das hortas era ainda
percorrido pelas mulheres que iam aos poços buscar água ou ao
lavadouro lavar colchas e mantas. Essas interações não foram re-
tomadas na nova aldeia, onde as hortas são adjacentes às casas ou
aos casões agrícolas, espalhadas por uma zona mais extensa que
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anteriormente, e o lavadouro não entrou em funcionamento. Nu-
ma zona em que os mais velhos viveram a sua idade juvenil e adul-
ta a trabalhar para os donos das terras, viram os triunfos e as der-
rotas da reforma agrária, e alguns participaram desses triunfos e
dessas derrotas (Drain, 1992), são ainda estes que remodelam as
suas posturas e se adaptam ao novo cenário de vida: vendem-se
ovelhas ou cabras por causa da diminuição dos pastos, vai-se tra-
balhar para as casas que têm mais gado e que podem beneficiar-
se melhor das novas hipóteses a serem criadas pela massa gigan-
tesca de água que se avizinha.
A adaptação foi naturalmente mais fácil para os mais jovens,
a faixa etária virada para o futuro e que melhor aproveitará as si-
nergias possibilitadas pela albufeira. A Luz é uma aldeia com uma
vitalidade invulgar, se a compararmos com outras aldeias do in-
terior do país, que contava, na época da mudança, em 2002-2003,
com cerca de 20 jovens na faixa etária dos 15 aos 25 anos e mais
de 25 crianças entre os 2 e 14 anos de idade. Foram esses jovens
que fundaram a Associação de Jovens e o grupo de rock Nova Luz
sensivelmente seis anos antes. A associação promoveu, nessa al-
tura, uma peça de teatro inteiramente escrita, encenada e repre-
sentada pelos jovens, cujo tema era a barragem e as suas conse-
qüências, um pouco uma sátira com aspetos de comédia e de
drama, em referência ao cenário de perturbação que se vivia na
aldeia – já que coincidiu com o período mais agudo de discussões
acerca dos projetos de execução das casas. Essa performance mos-
trou o quanto o processo afetou também os mais jovens. De igual
modo, do repertório de canções do Nova Luz uma das mais re-
questadas é a que termina com os seguintes versos:
Em nome do que há-de vir Ficas na minha memória
Tu vais partir, alguém te leva Passou à história, já não seduz
Vá lá, diz adeus ao mundo mas enquanto eu viver não te vou
esquecer
Vais para o fundo do lago Aldeia da Luz
de Alqueva
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Alguns dos rapazes que tocam na banda de rock cantam tam-
bém no grupo coral, composto inteiramente por elementos mas-
culinos, seguindo a tradição alentejana, mas com vários grupos
etários, desde os mais velhos aos mais novos. Em todas as atua-
ções do grupo coral da Luz durante esse período conturbado, an-
terior e durante e mudança, havia uma canção que era sempre en-
toada, cuja letra foi composta por um dos seus elementos e que
bem sintetiza a saga por que os luzenses passaram:
Aldeia da Luz querida Muita gente há-de chorar
Não posso nisto pensar Até os que cá não estão
Quando for a despedida Quando for desenterrar
Muita gente há-de chorar Quem está debaixo do chão
Choram novos e choram velhos Aqui nesta ocasião
Choram todos quantos estão Nós teremos de abalar
Tanta gente a chorar Vamos daqui com paixão
Aqui nesta ocasião De não te poder levar
VÍTIMAS OU HERÓIS – O REFAZER DA IDENTIDADE LOCAL
O processo psicológico e social de adaptação à nova situação foi
sempre marcado por uma ambigüidade e um discurso que têm
muitas vezes faces diversas consoante os interlocutores. Ao orgu-
lho sentido pela “nova casinha” aliou-se a noção da penalização
perante uma condição que as pessoas sentem que lhes foi impos-
ta, mas que, no seio de um ethos que prima por um certo fatalis-
mo – e mesmo um “conformismo suicida”, segundo alguns –, se
habituaram a aceitar.
Se o fato de se terem sacrificado pelo bem do país acarreta o
estatuto duplo de vítimas e heróis – fato bem-sentido pelas pes-
soas que se gabam de terem aceitado a cota máxima para o nível
das águas, porque, “já que o país ia gastar dinheiro, então, que se
fizesse bem, mesmo que saiamos sacrificados” –, à medida que o
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tempo passou e o processo de concertação se foi materializando,
os luzenses passaram de vítimas e heróis a reivindicadores; a am-
bigüidade dessas duas posições tem sido, também, a imagem vei-
culada pelos meios de comunicação social. Como em todos os ca-
sos de contestação social, foi necessário encontrar-se um culpado;
nesse caso, a EDIA será sempre, em última análise, o inimigo, a en-
tidade responsável pela desgraça que caiu sobre a Luz.
A complexidade do processo em curso foi (e é ainda), em
grande parte, engendrada e alimentada por um discurso de imo-
lação social, em que, para o exterior, cada um insiste na sua posi-
ção de vítima se comparado com o vizinho do lado, “beneficiado
pela EDIA”. Isso sucede aos vários níveis da consciência pessoal e
social: mesmo as pessoas que sentem que o processo lhes foi fa-
vorável e se consideram contentes e orgulhosos com a sua “nova
casinha” apressam-se logo em seguida a reiterar os lados negati-
vos do seu caso e a afirmar que, no geral, “ficaram pior que os
vizinhos”. Foram sobretudo as famílias com um nível social e eco-
nômico mais confortável e que haviam feito recentes melhora-
mentos nas suas casas que se sentiram mais lesadas com o nive-
lamento social que a imposição de tipologias nos projetos para a
construção das casas deu, e foram também estes que se apressa-
ram a introduzir mais modificações nas novas moradias.
Em termos de estratégias identitárias dos vários grupos so-
ciais, os de estatuto social e econômico mais elevado são os que
tendem menos a desenvolver o discurso da comparação pela
negativa e viram o ônus dos seus dissabores para a EDIA, culpada
de uma tendência para um nivelamento social patente na uni-
formidade arquitetônica das casas que não lhes agrada. Nas
famílias de condição socioeconômica mais baixa, o processo des-
poletou a verbalização de toda uma consciência velada das dife-
renças sociais.
Para uns e outros, de qualquer modo, o bode expiatório de
todas as maleitas reais ou simbólicas por que têm passado foi, e
continua a ser, a empresa responsável por Alqueva. Essa necessi-
dade de objetivar e imputar culpas e ódios se traduziu também
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na proclamação de que “não se deixa lá nada para a EDIA” e, na
prática, na retirada pelos próprios da maioria dos materiais das
antigas casas – portas, janelas e marquises, telhas, vigas e outros
elementos estruturais dos edifícios. O que resultou também num
certo conforto psicológico, já que foram os próprios luzenses os
agentes ativos do início do desmantelamento da velha aldeia.
UMA ALDEIA COM ESPELHO
Da velha Aldeia da Luz, hoje em dia nada resta: tudo foi arrasa-
do, reduzido a escombros ou reciclado – com o fim de preservar
a qualidade da água e o bom aproveitamento da albufeira, mas
também para proteger a memória de um local que as pessoas que-
rem “conservar na lembrança como ele era, e não destruído”.
Apesar de toda a contestação e aspectos necessariamente
complexos num processo dessa envergadura, o realojamento da
Luz refletiu a vontade da população de permanecer una enquan-
to comunidade, ao contrário do caso da Barragem de Vilarinho,
no Minho, em que as pessoas foram desalojadas e se dispersaram
completamente, conforme relato de Novaes (1973), e dos casos
estudados por Reis e Bloemer (2001) nos exemplos de reassenta-
dos devido à construção de hidroelétricas pela Eletrosul, na zona
Sul do Brasil.
Passados quase quatro anos após a mudança, a nova aldeia
está rodeada por um imenso espelho de água, projetos inovado-
res de investimento e desenvolvimento, mas algumas dificuldades
de adaptação e vivências no novo espaço não estão ainda sana-
das. Resta esperar e ver como as pessoas e as coisas recordarão es-
se período conturbado e que indubitavelmente marcará para sem-
pre a Nova Aldeia da Luz e as suas gerações vindouras.
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CLARA SARAIVA é antropóloga social e cultural, investigadora auxiliar, Instituto deInvestigação Científica Tropical, Lisboa, e docente convidada do Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade No-va de Lisboa.
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A FAMÍLIA TAL COMO ELA É NOS DESENHOS DE CRIANÇAS
MARIA APARECIDA DE MORAES SILVA
BEATRIZ MEDEIROS DE MELO
ANDRÉIA PERES APPOLINÁRIO
R E S U M O A partir da década de 1960, assistiu-se à vinda de milhares de tra-
balhadores, de várias áreas do país, para as cidades da região de Ribeirão Preto/SP,
em busca de trabalho nas lavouras de café, cana e laranja. Essa migração foi res-
ponsável pelo surgimento de bairros periféricos, habitados por trabalhadores ru-
rais, que vivem nas cidades e trabalham no campo. Na década de 1990, em virtu-
de do processo de reestruturação produtiva, da precarização e do desemprego, a
situação social dos trabalhadores se agravou muito. O objetivo deste artigo é a aná-
lise dos efeitos desse processo sobre as famílias, a partir das representações das crian-
ças, por meio dos seus desenhos.
P A L A V R A S - C H A V E Desenhos de crianças; gênero; trabalho rural; ex-
ploração econômico-social.
A B S T R A C T Since the 1960’s thousands of workers coming from different
areas of Brazil have rushed into the cities of the Ribeirão Preto region, São Paulo,
looking for employment in its coffee, sugar cane and orange farms. This migration
resulted in the growth of periurban bairros inhabited by workers who live in town
but work in the countryside. In the 1990’s, the plight of these workers has worsened,
due to changes in the productive structure, which resulted in short-term jobs and
unemployment. This article has the goal of analyzing the effects of this process over
families, based in children’s representations as contained in their drawings.
K E Y W O R D S Children’s drawings; gender; rural work; socio-economical ex-
ploitation.
1 0 5
Assiste-se atualmente ao processo progressivo de precari-
zação do trabalho nas lavouras de cana-de-açúcar e laranja na
região de Ribeirão Preto/SP. O Estatuto do Trabalhador Rural
(1963) operou a individualização do trabalho no campo e a in-
tensificação da exploração da mão-de-obra. A migração para a
cidade resultou na situação de incapacidade de reprodução eco-
nômica por parte desses trabalhadores, conforme já apontado
em outros estudos (Stolcke, 1986, 1993; Silva, 1997, 1999). Pau-
latinamente, foi ocorrendo a “crise do provedor” na unidade
doméstica e a multiplicação das mulheres-chefes-de-família. O
fim do colonato1 indicava a tendência da redução da taxa de
natalidade entre as famílias dos doravante denominados “bóias-
frias”, mas a realidade empírica estudada revela ainda a presen-
ça de um número elevado de filhos, algo que contraria a ten-
dência do país.2
Diante desse contexto histórico, o objetivo deste artigo é a
análise dos efeitos do processo de exclusão-inclusão precária (Sil-
va, 2004), resultantes da implantação da maneira de produzir do
agribusiness, sobre a organização social das famílias de trabalha-
dores rurais, residentes nas periferias urbanas sob a ótica das
crianças, sujeitos geralmente ausentes dos temas da sociologia,
em razão do caráter adultocêntrico desse ramo do conhecimen-
to científico.3 Por meio da combinação de várias técnicas de pes-
quisa, tornou-se possível conhecer as diversas estratégias adota-
das pelas famílias para a garantia da reprodução social e o olhar
das crianças sobre suas próprias famílias. De antemão, ressalta-
mos que a escolha do universo infantil para a análise sociológi-
ca representou um enorme desafio não apenas em virtude de
poucas pesquisas existentes como também dos limites teórico-
metodológicos enfrentados, já que essa problemática não pode
ser encerrada num único campo do conhecimento. A fim de dar-
mos conta dessa empreitada, foram feitos alguns recortes analí-
ticos que privilegiam a criança como sujeito, diferente do adul-
to, dotado de representações específicas, segundo o universo
social no qual está inserida, e o desenho enquanto representação
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1 O colonato reporta-seao sistema de trabalho vi-gente sobretudo na eco-nomia cafeeira desde osfins do século XIX atémeados do século XX.Consistia no trabalho fa-miliar regido pelo chefeda família. As normaseram definidas segundoo contrato de trabalhoque discriminava as tare-fas no cafezal, o direito aouso de pequena roça desubsistência e a proprie-dade de alguns animais.Esse sistema priorizava asfamílias numerosas capa-zes de fornecer o maiornúmero de braços para aslavouras.
2 Em média, as mulheresda pesquisa têm quatrofilhos, cifra muito supe-rior à média nacional.Dados recentes da PNADapontam para o declíniodas taxas de fecundidadeno país. O número mé-dio de filhos por famíliaera 6,2 em 1940 e 1950;6,3 em 1960; 5,8 em1970; 4,4 em 1980; 2,9em 1991; 2,4 em 2000; 2,1em 2004 e 1,8 em 2050(estimativa). Segundo ademógrafa Ana AméliaCamarano, a fecundida-de caiu mais entre as mu-lheres mais pobres. Folhade S. Paulo, Caderno Di-nheiro, B 5, 22 de janeirode 2006.
3 José de Souza Martinsfoi um dos pioneiros amostrar criticamente quea sociologia não estudaas crianças. Ver, a respei-to, Martins (1991). A in-clusão da criança nostemas sociológicos foiobjeto de uma coletânea,publicada recentemente:Faria, Demartini, Prado(2002); na historiografia,destaca-se a obra de DelPriore (1991).
social. Portanto, as análises da psicologia infantil e da psicanáli-
se que enfocam os desenhos visando aos testes clínicos e níveis
de inteligência escapam aos nossos objetivos. O desenho, conju-
gado a sua leitura feita pela respectiva criança, constitui-se na ex-
pressão e também na percepção que ela tem da família e do mun-
do social que a cerca.
A análise dessa problemática será feita no contexto de algu-
mas questões teóricas que privilegiam as relações entre estrutu-
ra e sujeito. Partimos do princípio de que as estruturas não são
fatos objetivos, independentemente dos sujeitos que compõem
uma dada realidade social. Existe uma relação dialética entre es-
trutura e sujeito, cujo resultado são as relações processuais. Des-
sa sorte, as considerações sobre os espaços sociais das famílias,
necessárias ao entendimento das representações infantis por
meio dos desenhos, serão precedidas por aquelas acerca das re-
lações entre a sociogênese e a psicogênese. Tal procedimento teó-
rico possibilitará a compreensão da particularidade histórica des-
sa realidade social, levando-se em conta os aspectos universais
que fazem parte dela.
Os dados empíricos estão ancorados na etnografia concen-
trada na cidade de Rincão, localizada no interior do estado de
São Paulo (a 280 km da capital), com 10.329 habitantes, e 70%
da população economicamente ativa ocupa o setor primário
(Censo, 2000). Optou-se pela análise etnográfica a fim de ob-
servar em profundidade o comportamento de 15 famílias de
um mesmo quarteirão, localizado num dos limites urbanos da
cidade, no Bairro Jardim Bela Vista. Essa metodologia abarcou
várias técnicas: desenhos de 40 crianças,4 coleta de depoimen-
tos orais com jovens adolescentes grávidas, com mulheres ca-
sadas, com mulheres solteiras com filhos, com alguns homens,
com representantes do Conselho Tutelar, da Creche Municipal,
do Posto de Saúde, além da observação participante. O tema
dos desenhos relacionado à família tinha como pressuposto a
análise das várias formas da estrutura familiar presentes entre
eles. As entrevistas com as mulheres contaram com o apoio de
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4 Os desenhos foram co-letados em duas etapas:num primeiro momen-to, foram reunidas 15crianças na casa do pai deuma das pesquisadoras;num segundo momento,foram coletados 25 dese-nhos na creche munici-pal, ocasião em que sedesenvolveu uma ativi-dade teatral. Em ambos,não havia a presença dosmembros das famíliasdas crianças. Outros de-talhes serão explicitadosadiante.
uma cartilha sobre corpo e saúde, distribuída pelo Conselho
da Condição Feminina, cujos objetivos eram, por meio de uma
relação dialógica, o conhecimento das práticas reprodutivas,
da sexualidade e das relações de gênero. Com o intento de co-
nhecer as relações de parentesco, vizinhança e compadrio, fo-
ram produzidas fichas de família, cuja leitura preliminar per-
mitiu a caracterização geral dessas famílias, tal como elas são
e não a partir de modelos preexistentes.
Além da realização das oficinas para a coleta dos desenhos,
desenvolveram-se atividades recreativas com representações de
peças teatrais infantis pelas próprias crianças,5 distribuição do
material, papel sulfite, lápis de cor, refrigerante, bolachas e brin-
quedos. Em seguida, foram feitas fichas contendo a leitura de ca-
da desenho, feita pela respectiva criança. Nas fichas há as seguin-
tes informações: nome da criança, idade, etnia, nomes e papéis
das pessoas representadas nos desenhos, além de informações co-
ligidas pelas entrevistas com os demais informantes e das obser-
vações acerca do comportamento da criança durante a atividade.
Os resultados auferidos a partir dessa técnica de pesquisa foram
extremamente ricos para a análise das representações infantis so-
bre a família e também para o entendimento de uma outra lógi-
ca familiar existente entre esses trabalhadores.
PRIMEIRAS IMPRESSÕES
O cenário analisado é um quarteirão que faz limite com os cana-
viais de uma usina situada na região. A cerca é entremeada de ár-
vores, sob as quais foram colocados bancos de madeira, que ser-
vem como pontos de encontro dos moradores e são, na verdade,
espaços de sociabilidade e extensões das próprias casas. Há um
elevado número de crianças em cada unidade doméstica e a pre-
sença de diversas pessoas cuidadoras.
As mulheres trabalham na colheita da laranja, nos empregos
domésticos, no corte da cana e em casa para o sustento dos fi-
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5 O teatro infantil foiorientado pelas pesqui-sadoras Beatriz Medeirosde Melo e Andréia PeresAppolinário, cujos “ato-res” foram as própriascrianças. Foram forneci-dos a elas bonecos defantoche, após ter-lhessido solicitado que re-presentassem pessoas desuas famílias e criassemuma história, baseadaem Rapunzel. A peça foimontada com oito parti-cipantes: o rei, a bruxa,dois personagens femi-ninos, dois personagensmasculinos e tambémum personagem de con-tos infantis, a Rapunzel.Com as crianças senta-das no chão, pergun-tamos-lhes quais per-sonagens eles queriamrepresentar. O elencocriado foi o seguinte: abruxa se transformou naavó paterna; o rei, no pai;uma personagem infan-til de cabelos brancos, naavó materna; Rapunzel,na filha; um boneco, nofilho; uma personagemde cabelos pretos e amar-rados, na mãe. O cotidia-no da mãe de levar ascrianças na creche, ir pa-ra o trabalho e buscá-lasno final da tarde aparecerepresentado, bem comoas “ruindades”da avó pa-terna (bruxa) em relaçãoa elas e às suas mães e asrepresentações acolhe-doras da avó materna. Ospais foram representa-dos como bêbados, amãe que mandou o paiembora por causa da be-bida, a mãe que resolveuficar com a guarda dos fi-lhos e a avó que apanhaas crianças na escola, emfunção do trabalho damãe.
lhos. Algumas delas são acompanhadas no trabalho agrícola pe-
los filhos maiores de idade ou até mesmo pelos filhos menores.
Dentre as 12 crianças que moram somente com sua mãe, apenas
2 recebem pensão alimentícia do pai. Em apenas quatro das dez
famílias nucleares, a renda do homem é indispensável para a re-
produção material, em duas daquelas as mulheres também tra-
balham e, em uma outra, a renda do filho mais velho pesa mais
que a do pai.
Foi verificada a prática de tomar por padrinho dos filhos os
próprios vizinhos, pessoas próximas que podem dividir a respon-
sabilidade pela criação; há uma relação de troca: os filhos são a
dádiva, e o fato de oferecê-los como afilhados redunda em retri-
buição material ou em forma de favores. A prática da circulação
de crianças,6 com a qual cinco dessas famílias já se envolveram,
baseia-se na mesma lógica. Toda a vizinhança se agrupa num cír-
culo de ajuda mútua sustentado pelas mulheres e crianças.
Outro ponto importante se reporta aos homens. A paterna-
gem não é assumida como valor, como dever ou compromisso.
Ao lado da circulação de crianças, há a circulação de homens, de
uma unidade doméstica a outra. Quanto às mulheres sem os com-
panheiros, elas se fixam nas casas de seus genitores ou nos fun-
dos de seus quintais e contam com a ajuda de parentes e vizinhos.
Esses aspectos são como molduras dos quadros familiares,
cujos conteúdos refletem o estilo de vida, a sociabilidade entre
vizinhos e parentes – muitas vezes, permeada por conflitos –, as
relações entre pais e filhos, homens e mulheres, enfim a vida tal
como ela é. A metáfora do quadro emoldurado nos sugere a pre-
sença de personagens, cenas, paisagens. Por conseguinte, há a ne-
cessidade de um olhar acurado, capaz de perceber os grandes tra-
ços e também os pequenos detalhes. E mais ainda. Enxergar, por
detrás dos cenários, as ausências e os silêncios, enfim, os que não
estão no quadro e cujas revelações se constituem no intento des-
te texto.
Nos desenhos das crianças raramente aparecem as casas. Es-
sa ausência sugere algumas reflexões sobre o espaço geográfico e
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6 Circulação de crianças,expressão utilizada porFonseca (1995), ocorrequando a criança é desti-nada a um lar substitutosegundo as necessidadesde reprodução da família.
social onde elas vivem. As cidades-dormitórios dessa região são
cercadas pelos canaviais. Os limites do urbano coincidem com as
plantações de cana. As imagens captadas pela pesquisa retratam
os dois mundos – rural e urbano – como espaços contíguos e não
separados. Os bairros habitados por trabalhadores rurais podem
ser considerados como verdadeiras colônias das usinas na cidade.
Esses espaços são entendidos enquanto espaços de sociabili-
dade, onde se acham presentes traços do mundo rural de antes e
do mundo urbano, considerado moderno. O “tradicional” e o
“moderno” se cruzam formando uma verdadeira simbiose. As
imagens dos fogões a lenha, das hortas, das ervas plantadas em
vasos e áreas bem-restritas existem lado a lado com os fogões a
gás, a televisão, a geladeira, os aparelhos de som, os celulares, en-
fim as mercadorias de consumo do mundo urbano.
O espaço da rua não se acha separado do espaço da casa, tal
como foi mostrado por Da Matta (1987). Andando pelas ruas,
vêem-se crianças brincando de “casinha” à frente da casa, na cal-
çada. Sobretudo, nos finais de tarde de sábados e domingos, é mui-
to comum as mulheres se sentarem à frente da casa para conver-
sar.Aliás, é comum a construção de bancos de cimento ou madeira
junto aos muros, o que demonstra que a rua é um espaço que po-
de ser considerado uma extensão da casa, portanto não se acha
em oposição a ela. A pesar dos muros, os vizinhos têm livre aces-
so às casas. Essa realidade é constatada com muita freqüência por
ocasião das entrevistas. Dificilmente, uma entrevista é realizada
sem a presença de outras pessoas, quer sejam da família ou da vi-
zinhança. Esse dado é importante para a análise das relações en-
tre público e privado.
Na verdade, entre esses trabalhadores, essa separação não é
a mesma encontrada em outros universos sociais. As dificulda-
des financeiras conduzem à reprodução das estratégias de sobre-
vivência existentes no mundo rural de antes, assentadas nos va-
lores e códigos costumeiros. Faz parte do costume “pedir
emprestado” não somente alimentos como também outras mer-
cadorias que, porventura, estejam faltando na casa. Outro dado
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constatado pela pesquisa é a livre circulação de pessoas da vizi-
nhança pela casa e o conhecimento que elas possuem de todo o
espaço. Assim, elas têm conhecimento onde estão guardados do-
cumentos, remédios, objetos que fazem parte da privacidade das
pessoas da família.
Não obstante, as relações entre vizinhos não se verificam de
forma totalmente harmônica. Numa das casas vive uma família
cujo contato com as demais pessoas do quarteirão é bastante ra-
ro. Aqui se observa situação encontrada por Schuwartz (1990,
p. 161), cuja pesquisa entre operários no norte da França consta-
tou o confinamento familiar e uma sociabilidade que limita os
contatos com vizinhos, considerados indesejáveis.7Acredita-se
que esses achados forneçam pistas importantes à análise de temas
como privacidade, intimidade, relativos às classes médias e altas
e, freqüentemente, estendidos a todas as camadas sociais. Esses
dados fornecem a dimensão da complexidade da realidade social
e exigem do pesquisador muitos cuidados no momento da aná-
lise e interpretação das informações coletadas.
Os salários baixos, o desemprego e a exclusão social contri-
buem para o agravamento das condições de reprodução social
dessas famílias. Esse fato gera a necessidade de encontrar estraté-
gias de moradia. O aproveitamento do mesmo lote e a construção
de várias casas por parentes e consangüíneos – os puxadinhos –,
além da vinda de mulheres ou homens com seus respectivos côn-
juges (ou não) e seus filhos para a casa dos pais, já idosos. Em
regra, não são os idosos que vão morar com os filhos ou netos,
porém o contrário. Os avós conseguiram após a Constituinte, que
regularizou o direito à aposentadoria dos trabalhadores rurais,
construir suas casas, geralmente pequenas, sob o sistema da au-
toconstrução. Assim sendo, o número de pessoas de distintas ge-
rações nas unidades domésticas é bastante elevado. Essa situação,
muitas vezes, contribui para o agravamento dos conflitos intrafa-
miliares, além dos rearranjos do espaço da casa, por meio da su-
pressão de cômodos destinados à sala, por exemplo, pois é bas-
tante comum a sala “virar” quarto e também a cozinha “virar” sala
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7 Em muitos momentos,as pessoas mantiveramsilêncio sobre essa espé-cie de cordão sanitárioentre si e esses vizinhos,cuja casa sempre estavacom janelas e portas cer-radas e os filhos jovensnão eram vistos circu-lando pela rua. Ver, a res-peito dessas considera-ções, Romanelli (2003,p. 260-1).
e quarto ou ainda o sofá se transformar na divisória entre sala e
quarto. Acrescente-se a esse quadro a presença de netos, filhos de
mães adolescentes, que passam a morar com os avós. Embora a
aposentadoria seja um benefício justo aos idosos rurais, a reali-
dade encontrada reflete o processo de empobrecimento das dis-
tintas gerações dessas famílias, cujos proventos dos avós têm pa-
pel relevante na sua reprodução social.8
No tocante aos estudos de memória, a presença desse gran-
de número de pessoas na casa, além das crianças, impõe, muitas
vezes, dificuldades à pesquisa, pois o velho nesse ambiente não
possui o necessário tempo de contemplação para o trabalho da
reconstrução das lembranças. Em geral, o tempo presente, carac-
terizado pelas inúmeras dificuldades dos membros adultos e jo-
vens, acaba por influir negativamente na saúde física, mental e
psíquica dos velhos. Para esses velhos, a matéria-prima das lem-
branças, suas próprias experiências, é espoliada. O que o pesqui-
sador consegue registrar são meros fragmentos do passado ator-
mentado pelo presente de seus descendentes e deles próprios.
A FAMÍLIA TAL COMO ELA É
De antemão, nosso objetivo não é adentrar o debate sobre os con-
ceitos de família, a partir dos distintos ramos do conhecimento,
como a sociologia, antropologia, psicologia, história social e de-
mografia,9 nem tampouco analisar os desenhos sob a ótica da psi-
canálise, como já foi dito acima. É necessário estabelecer a distin-
ção entre as noções de família e unidades domésticas. Família diz
respeito ao parentesco, à ideologia e à coabitação; unidade domés-
tica diz respeito à coabitação e cooperação econômica imediata
para esse grupo (Scott, 1990, p. 41). Para fins desta análise, tanto
uma noção quanto outra cabem dentro dos propósitos analíticos.
Partimos do princípio que as crianças têm muito a dizer e, por is-
so, não podem ser descartadas do processo do conhecimento; por
outro lado, não as consideramos como sujeitos abstratos, porém
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8 A assistência previden-ciária aos trabalhadoresrurais só se implantou defato a partir de 1992,com o regime de univer-salização do atendimen-to e a redistribuição deum salário mínimo paraambos os sexos, sob ida-de mínima de 55 anospara as mulheres e 60anos para os homens.
9 Existe uma vasta pro-dução crítica sobre essetema. Ver, dentre outros,Arantes et al. (1993), Ka-loustian (2002), RevistaBrasileira de História,n. 17.
inseridos em grupos sociais específicos e pertencentes às famílias
de trabalhadores rurais que vivem nas cidades dessa região num
momento de exclusão, desemprego e precarização do trabalho. A
questão norteadora deste artigo é a seguinte: Como esse proces-
so social é experienciado pelas crianças no interior do grupo pri-
mário – a família – ao qual pertencem?
A memória e a história desses trabalhadores são fundamen-
tais à compreensão deles enquanto adultos e também de suas
crianças enquanto projeções de suas vidas. Esse fato é importante
para não considerar essas crianças tão-somente como pertencen-
tes às camadas populares ou de baixa renda ou ainda à classe dos
trabalhadores. Dessa sorte, as famílias são vistas enquanto produ-
toras e reprodutoras da vida biológica e social, em que valores, sím-
bolos e representações sociais constituem o elo entre os membros
que as compõem. Não corroboramos com as denominações de fa-
mílias quebradas, desestruturadas, incompletas, adjetivos que pres-
supõem a existência de um modelo comparativo. Portanto, afas-
tamos da análise essas idéias preconcebidas a partir de tipologias,
cujos vieses ideológicos constituem o partis pris de modelos exis-
tentes na sociedade como um todo (Romanelli, 2003; Sarti, 1996).
As famílias pesquisadas apresentam os seguintes perfis: 1) fa-
mílias relativamente estáveis com a presença do pai, da mãe e dos
filhos; 2) famílias com a presença da mãe e dos filhos advindos de
relações sucessivas com vários companheiros; famílias com a pre-
sença de parentes consangüíneos ou não.
O modelo de família nuclear, característico das classes mé-
dias e altas, não existe, portanto, na totalidade dessa realidade so-
cial. O modelo de família extensa também não é mais amplamen-
te praticado desde o fim do colonato, mas ainda deixa vestígios
da prática e da moral que valorizam o grande número de filhos e
a co-residência do casal junto a eles. Mas o fato que progressiva-
mente cresce entre as novas gerações é o da família não-nuclear
com destaque para o vínculo mães–filhos. Elas ficam com a tute-
la dos filhos, porém seus proventos são insuficientes para a garan-
tia da sobrevivência deles. O modelo do patriarcado10 vigente –
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10 Segundo Saffioti, asrazões do emprego donome patriarcado são:1) não se trata de uma re-lação privada, mas civil;2) dá direitos sexuais aoshomens sobre as mulhe-res, praticamente semrestrição; 3) configuraum tipo hierárquico derelação, que invade todosos espaços da sociedade;4) tem uma base mate-rial; 5) corporifica-se;6) representa uma estru-tura de poder baseada naideologia e na violência(2004, p. 57-8).
articulado ao de provedor defeituoso, criado pelas atuais condi-
ções econômicas – produz a figura do pai que foi embora. A famí-
lia produz um conjunto de práticas culturais (re)significadas por
meio da criação de laços de reciprocidade, como é o caso do apa-
drinhamento e da circulação de crianças. A base dessas práticas é
o estabelecimento de um círculo de ajuda mútua que envolve,
principalmente, mulheres e crianças da vizinhança.
Assim sendo, os arranjos matrifocais dominam a organiza-
ção dessas famílias. Quanto à matrifocalidade, adotamos a defi-
nição dada por Smith (1973) e utilizada por Scott (1990), cujas
pesquisas foram realizadas com famílias de mulheres pobres da
Guiana Inglesa e da periferia de Recife, respectivamente.
O termo matrifocalidade identifica uma complexa teia de re-
lações montadas a partir do grupo doméstico onde, mesmo
na presença do homem na casa, é favorecido o lado feminino
do grupo. Isso se traduz em: relações mãe-filho mais solidá-
rias que relações pai-filho, escolha de residência, identificação
de parentes conhecidos, trocas de favores e bens, visitas etc.,
todos mais fortes pelo lado feminino; e também na provável
existência de manifestações culturais e religiosas que destacam
o papel feminino (p. 38).
No que tange à chefia feminina, vários autores ressaltam que
chefia não se confunde com focalidade. É preciso levar em conta
que há a coexistência de normas “patriarcais” e práticas “matrifo-
cais”. No caso das trabalhadoras rurais, essa situação é muito pre-
sente. As mulheres assumem a maternagem, enquanto os homens
não assumem a paternagem.A constatação desse fato pode ser vis-
ta na circulação dos homens, já que, quando abandonam ou quan-
do são expulsos da casa pelas mulheres, eles contraem novas
uniões e passam a viver com outras mulheres. A dominação mas-
culina se faz presente nesse momento por meio da geração de no-
vos filhos, pois o poder do homem se realiza por meio da procria-
ção. Vários depoimentos de mulheres revelam que a convivência
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com os parceiros passa pela aceitação de ficarem grávidas. Assim
sendo, a pesquisa constatou a presença de muitos filhos da mes-
ma mulher, porém de distintos pais. O caso de uma trabalhado-
ra rural de Rincão é paradigmático: com quatro filhos de pais di-
ferentes, ela sustentava todos sem o auxílio destes, justificando a
não-exigência do pagamento de pensão como uma forma de evi-
tar a presença dos homens em sua casa e também do controle
exercido por eles sobre sua vida. Seu salário é insuficiente para a
sobrevivência de todas as crianças, por isso recebe o auxílio de pa-
rentes e vizinhos, além de deixar as crianças na creche municipal
durante todo o dia. Vale a pena ainda destacar que a solidarieda-
de, na maioria das vezes, advém de outras mulheres.
Quanto à figura do homem, nos desenhos das crianças, ora
ela aparece como o pai que foi embora, ora diminuída ou do mes-
mo tamanho que a dos demais membros. Esses dois últimos as-
pectos também ocorrem em relação às mães. Levando-se em con-
ta uma análise que se opõe às dicotomias, evita-se o apego à
vitimização das mulheres e à discriminação dos homens. Obje-
tiva-se à compreensão do gênero enquanto categoria de análise
e categoria histórica, portanto, à análise das relações de gênero
entre homens e mulheres pobres, na sua grande maioria não-
branca e constituída de trabalhadores rurais, provenientes de ou-
tras regiões do país. Nesse sentido, esses homens e essas mulhe-
res são portadores de valores e ideologia de gênero, ancorados
nas relações patriarcais. Duas questões podem ser levantadas: a
figura masculina do provedor. Em virtude das dificuldades eco-
nômicas, do desemprego, dos salários baixos, os homens não
conseguem prover suas famílias. A participação no orçamento fa-
miliar de proventos advindos da mulher ou até mesmo dos fi-
lhos retira-lhes parcela de poder que, em outra condição social,
pelo menos teoricamente, eles possuíam (Stolcke, 1986, 1993;
Silva, 1997, 1999). Esse fato conduz a um conjunto de conflitos
nas relações intrafamiliares, quase sempre permeados pela vio-
lência doméstica (de gênero e também geracional). Estas são as
condições para a criação da figura do pai que foi embora.
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Essa mesma situação foi também constatada por Neves em
sua pesquisa com famílias no Morro do Cavalão em Niterói/RJ,
ao revelar que a unidade matrifocal se apresenta como um reor-
denamento de papéis do casal em virtude da impossibilidade de
o marido conseguir reproduzir a família nos níveis culturais de-
finidos pelo grupo (1985, p. 200 e segs.).
A figura do pai que foi embora se situa no contexto do rear-
ranjo das relações de gênero dessas famílias. O homem chefe de
família, o provedor da época do colono já não mais existe. Por
conseguinte, os padrões de masculinidade e virilidade foram pro-
fundamente afetados, de tal forma que a identidade masculina so-
freu profundas fraturas. A virilidade é um atributo sexual, cons-
truída socialmente.
A virilidade é o atributo que confere à identidade sexual mascu-
lina a capacidade de expressão do poder (associada ao exercício
da força,da agressividade,da violência e da dominação sobre ou-
trem), seja contra os rivais sexuais, seja contra as pessoas hos-
tis ao sujeito ou aos que lhe estão chegados e a quem, por sua vi-
rilidade, ele deve garantir proteção e segurança. O parceiro amoroso
de um sujeito viril deve-lhe reconhecimento, gratidão, submissão e
respeito, em troca de serviços (Dejours, 1999, p. 84, grifos nossos).
No entanto, a virilidade possui uma outra face, na medida
em que se transforma num verdadeiro fardo.
O privilégio masculino é também uma cilada e encontra sua
contrapartida na tensão e contensão permanentes [...]. A vi-
rilidade, entendida como capacidade reprodutiva, sexual e so-
cial, mas também como aptidão ao combate e ao exercício da
violência (sobretudo em caso de vingança), é, acima de tudo,
uma carga (Bourdieu, 1999, p. 64).
A única alternativa para a incapacidade de prover a família e
manter os padrões de virilidade, assentados na submissão e res-
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peito, é a saída da casa. Essa partida dá início a um verdadeiro
processo de circulação de homens, pois as relações são, na sua
maioria, muito efêmeras. Para não assumirem publicamente seu
fracasso, eles passam a circular entre outros lares. Repete-se aqui
a mesma situação encontrada por Scott (1990) – as uniões visi-
tantes – e também por Fonseca (2000) e Neves (1985).
A circulação de crianças é outra manifestação desse quadro
social, que está ligado à prevalência do sistema de apadrinhamen-
to, característico da área rural. Os padrinhos são responsáveis pe-
la educação e socialização dos afilhados. O compadrio é pautado
por relações de solidariedade e coesão dos grupos sociais de vizi-
nhança e parentesco. As crianças circulam quando as condições
de sobrevivência põem em risco a vida delas.
As relações de poder são porosas. Dessa sorte a dominação
masculina, ainda que fragmentada, não desapareceu. A matrifo-
calidade não representa a dominação feminina em relação aos ho-
mens. Não houve o processo de inversão de relações de domina-
ção e sim o processo de empoderamento das mulheres, presente
nas relações afetivas com os filhos e também nas decisões econô-
micas e financeiras no interior das unidades domésticas.
As relações patriarcais não devem ser explicadas tão-somen-
te a partir dos níveis particulares e de parentesco. A frase, ruim
com ele, pior sem ele, pronunciada por muitas mulheres que su-
portam os maus-tratos e a violência dos maridos, revela a exis-
tência dos padrões convencionais e universais que estruturam a
sociedade. Esse fato pode explicar as uniões efêmeras e a busca
constante de novos companheiros por muitas mulheres, após o
término de uma relação conjugal. Essas reflexões nos levam a acre-
ditar que as noções de matrifocalidade, chefias femininas, viri-
lidade, precisam ser entendidas vis-à-vis as relações patriarcais
existentes no conjunto da sociedade e nas suas manifestações par-
ticulares. No caso estudado, mesmo que as mulheres não arquem
sozinhas com a reprodução social dos filhos, é em torno delas, en-
quanto mães, avós, tias, madrinhas, que os novos arranjos são te-
cidos, na grande maioria dos casos. Quanto ao lugar das crianças
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nesse contexto, há muitos desenhos que retratam suas ausências
ou até a (des)identificação.
Numa realidade em que a reprodução social – enquanto re-
produção biológica, material e social – é marcada pela complexi-
dade, a criança torna-se a materialização do paradoxo, ou, sob ou-
tro aspecto, a materialização da “vontade divina”, que se faz alheia
a uma vontade deliberada. De todo modo ela é fruto e responsa-
bilidade, em última instância, daquela que a gerou: a mãe.
Fonseca (2000) nos sugere de que forma algumas mulheres
percebem essa “responsabilidade”:
[...] nos grupos populares atuais, certas mães concordam em
ter seus filhos criados por outros porque, para elas, não é es-
ta a questão mais importante [...]. Sua responsabilidade é ga-
rantir bons cuidados à criança, mas outros podem propiciar
tais cuidados tão bem quanto ela (p. 40).
Definitivamente essa afirmação não apareceu no depoimen-
to de nenhuma das mulheres entre as quais questionamos a pos-
sibilidade de “darem” seus filhos a outros em função de impossi-
bilidades materiais de cuidarem elas próprias de seus filhos. A
maternidade enquanto pilar da construção da identidade da mu-
lher faz com que recaia sobre ela o peso de uma responsabilida-
de que assume um sentido moral. E nem sempre a transferência
dessa responsabilidade é aceita pela comunidade moral.
Entretanto, se o fato sugerido por essa autora não é assumi-
do na linguagem – ou, quando é, não o é para toda a comunida-
de –, a observação etnográfica e os diálogos com os vizinhos re-
velam-nos casos recorrentes em que a mulher pensou, durante
toda a gravidez, em dar seu filho para outra família e não o fez
em função do peso da moral que envolve a maternidade ou mes-
mo da incorporação da moral da maternidade, em outros casos
em que ela realmente o fez.
Consolidada ou não a circulação de crianças, o que se ressal-
ta é a presença do sentimento de recusa que o nascimento de uma
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criança – ou de mais uma criança – faz surgir. Se isso pôde ser
percebido através do trabalho etnográfico, foi, sobremaneira, no
desenho das crianças e na reação de algumas delas ao perceber
nosso interesse sobre aquilo que elas podem representar que esse
fato se tornou inegável. Em seus desenhos vimos auto-represen-
tações diminutas, desconexas, fragmentadas, algumas sem boca,
enquanto outros desenhos simplesmente não continham a repre-
sentação de seu criador. Em suas reações durante a atividade, per-
cebemos perplexidade ao redor da causa de nosso interesse sobre
elas e uma subseqüente dificuldade em deixar que fossemos em-
bora, como se houvessem descoberto uma capacidade intrínseca,
prazerosa e antes oculta: a capacidade de atribuir significado. A
maioria das crianças tem pouco tempo de contato com as mães
ou pais. Muitas delas ficam o dia todo nas creches ou escolas, de
onde são retiradas pelas mães ou avós no final da tarde. Por outro
lado, as mães, após o trabalho fora de casa, acumulam a dupla jor-
nada de trabalho, pois, ao chegarem em casa, necessitam desem-
penhar as tarefas domésticas – lavar roupa, cozinhar e limpar –,
não dispondo de tempo para as relações afetivas com as crianças.
Essas mulheres trabalham em geral durante seis dias por semana,
dispondo de apenas um dia de folga, utilizado para a limpeza da
casa e outros afazeres que ficaram pendentes durante a semana.
Tal situação se agrava se elas não obtiverem o apoio de outras
mulheres – filhas, mães, irmãs etc. – para o desempenho de todas
essas atividades. Portanto, o ato de cuidar da criança é pouco pra-
ticado pelas mães em virtude da imposição das relações de traba-
lho pautadas por salários baixos, superexploração e grande ofer-
ta de trabalhadores que acaba contribuindo para as ameaças de
demissão em caso de faltas, cujas conseqüências agravariam a si-
tuação de penúria da família como um todo.
Por conseguinte, o afeto, implícito no ato de cuidar, é rele-
gado, nesses casos, a outras mulheres, parentes ou professoras das
creches e escolas, as quais nem sempre desempenham esse papel.
A carência afetiva presente em algumas crianças11 foi uma das
observações captada durante a realização das oficinas para a
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11 Esse dado não se cons-titui em apanágio dessascrianças,pois é algo cons-tatado em outras famíliasde outras classes sociais.Ademais, o ato de cuidar,segundo os atributos so-ciais engendrados (de gê-nero), cabe, em geral, àsmulheres, e do qual oshomens se declinam. Apaternagem, segundo seobservou, não ocorrenessas famílias. Outros-sim, a mãe é uma figuraque aparece na totalidadedos desenhos, algo quenão ocorre com todos ospais.
obtenção dos desenhos, algo que também está registrado nas lei-
turas destes pelas crianças.
DESENHANDO A FAMÍLIA TAL COMO ELA É
A análise dos desenhos infantis exigiu a incorporação de outras re-
flexões, a fim de se compreender a ontologia dos socci, entendidos
enquanto classe, gênero, raça/etnia e geração. Dessa sorte, a teoria
da alienação de Marx (1978) e as reflexões de Elias (1990), acres-
cidas àquelas de Silveira (1989), fornecerão os elementos necessá-
rios à compreensão da realidade estudada vis-à-vis o ser social.
Segundo Marx, a sociedade não é uma abstração diante do
indivíduo. O indivíduo é o ser social.
A exteriorização da sua vida [...] é pois uma exteriorização e
confirmação da vida social. A vida individual e a vida genéri-
ca do homem não são distintas, por mais que, necessariamen-
te, o modo de existência da vida individual seja um modo mais
particular ou mais geral da vida genérica [...]. Como consciên-
cia genérica o homem confirma sua vida social real e não faz
mais que repetir no pensar seu modo de existência efetivo, as-
sim como, inversamente, o ser genérico se confirma na cons-
ciência genérica e é para si, na sua generalidade, enquanto ser
pensante (Marx, 1978, p. 10).
Os sentidos – audição, tato, olfato, visão, gosto –, assim como
a subjetividade, não são postos naturalmente para o homem. Por
outro lado, a natureza é o corpo inorgânico do homem, segundo
Marx. Ao retomar as reflexões marxianas sobre a alienação e feti-
chismo, Silveira (1989) mostra que o processo de constituição da
individualidade é um processo histórico que tem início com a cu-
mulação originária, quando se observa a separação entre o homem
e a natureza. Portanto há uma relação entre o desenvolvimento da
história e o desenvolvimento da individualidade.
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De um modo geral, a acumulação originária implica na sepa-
ração do homem (do trabalhador) de seu corpo inorgânico –
a natureza; as perdas do objeto, a alienação, a desobjetiva-
ção: a capacidade de trabalho como “pura subjetivação sem
objeto” (p. 58-9).
Essa separação corresponde ao surgimento do processo de
isolamento social do indivíduo, na medida em que os vínculos so-
ciais prévios se rompem, tanto os vínculos com a natureza como
os de dependência social característicos das formas de produção
que precederam à constituição do capitalismo. É nesse sentido que
o indivíduo surge enquanto força de trabalho, dimensão funda-
mental de sua individualidade.
No que tange às reflexões sobre o fetichismo, esse autor re-
vela que, para Marx, a submissão ao domínio da mercadoria não
é apenas externamente, mas atinge as práticas dos indivíduos e
também sua estruturação psíquica. Para ele, os efeitos desse mol-
damento, das determinações da forma mercadoria, na carne e na
psique dos indivíduos resultam numa dialética conflitiva entre
uma dimensão internalizada do sujeitamento e outra advinda da
subversão desse assujeitamento.
Assujeitamento e amoldamento não são vistos linearmente,
porém enquanto processos conflitivos entre a dominação das re-
lações capitalistas e as determinações, advindas dos próprios su-
jeitos em subverter tais determinações que foram recalcadas, re-
primidas (p. 75).
As mudanças das relações entre as estruturas das relações hu-
manas e a correspondente mudança na estrutura do psiquismo,
a partir de um outro ponto de observação, que não a dialética
marxiana, foram também objeto da análise de Elias (1990), no vo-
lume 2 de O processo civilizatório. Para esse autor, há um constan-
te aprofundamento da imposição social das autocoações, respon-
sáveis pelo chamado processo civilizatório. Para ele, cada vez é
maior o número de pessoas que têm de sintonizar o comporta-
mento pelo das outras. Esse ajustamento é consciente e, ao mes-
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mo tempo, se consolida no indivíduo um sistema de autocontro-
le automático e cego, ou seja, inconsciente (p. 189-90). Esses dois
paradigmas oferecem elementos importantes à análise da forma-
ção da psicogênese e sua relação com a sociogênese.
Elias também associa a violência ao surgimento desse pro-
cesso de moldamento, que, no decorrer do tempo, se transforma
em hábito.12
Da violência armazenada nos bastidores do quotidiano pro-
vém uma pressão constante e regular que se exerce sobre a vi-
da do indivíduo, o qual mal a sente, porque já se habituou a
ela, porque o comportamento e a plasmação das pulsões fo-
ram, desde a infância, ajustados a essa organização da socie-
dade [...]. A verdadeira coação é aquela que o indivíduo exer-
ce sobre si próprio, com base no conhecimento que tem das
conseqüências das suas ações sobre toda uma série de redes de
ações, ou com base em atitudes análogas que observou nos
adultos que modelaram seu aparelhamento psíquico, quando
criança (p. 194).
Entretanto, o amoldamento do comportamento não resulta
apenas em equilíbrio funcional, podendo gerar tensões, desequi-
líbrios constantes. Tais perturbações podem transformar-se, por
sua vez, em fantasias, devaneios e sonhos. Para Elias, parte das ten-
sões e paixões que outrora eram diretamente resolvidas na luta
corpo a corpo é agora dominada dentro de si próprio. Essas re-
flexões não coincidem com a visão psicanalítica, a qual tende,
muitas vezes, a extrair da totalidade da estrutura psíquica um “in-
consciente”, “um id” concebido como a-histórico, abstraído das
condições reais de existência (p. 229).
O que é determinante numa pessoa [...] não é só um “id” nem
só um “ego” ou um “superego”, mas sempre e fundamental-
mente a relação entre esses estratos funcionais de autocoman-
do psíquico, os quais em parte se degladiam e em parte coo-
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12 Para Marx, a violênciafaz parte do processo deacumulação originária,ou seja, no momento donascimento do capitalis-mo. Ver, a respeito, o ca-pítulo sobre a “Acumula-ção primitiva”, no livro Ide O capital.
peram uns com os outros. Mas essas relações dentro de cada
pessoa [...] transformam-se, no decurso do processo civiliza-
cional, de acordo com a específica transformação das relações
entres as pessoas, isto é, das relações sociais. Poderíamos dizer
que, no decurso deste processo, a consciência se torna menos
permeável às pulsões e as pulsões menos permeáveis à consciên-
cia (p. 230).
A ideologia, ou a superestrutura, não é capaz de explicar to-
das as mudanças. Parafraseando Elias, toda investigação que só
toma em consideração a consciência dos homens, a sua razão ou
as suas idéias, e não leva em conta a estrutura das pulsões, as pai-
xões humanas, é limitada, pois muitos aspectos à compreensão
dos homens não serão vistos (p. 229). Portanto, as relações entre
a infra-estrutura e a superestrutura não são lineares. As mudan-
ças que ocorrem nesta última não são meros reflexos da primei-
ra.A ação dos sujeitos historicamente determinados define a com-
plexidade dessas relações e, pour cause, as mudanças operadas
caracterizam as inúmeras mediações existentes e a produção da
história enquanto processo.
Acreditamos que, nos limites deste texto, essas idéias forne-
çam os subsídios necessários à análise das representações das
crianças, por meio de desenhos, sobre as respectivas famílias de
trabalhadores rurais, sob a ótica do ser social. As transformações
econômicas e a vinda para as cidades foram responsáveis por
grandes mudanças na organização familiar, cujos reflexos se
estenderam ao moldamento dos comportamentos e também à es-
truturação psíquica de seus membros. Esse processo, caracteriza-
do por aceitação–recusa – manifesto no alcoolismo dos homens,
na não-acepção da paternagem, na circulação masculina entre os
diferentes lares, na matrifocalidade –, atinge também as pulsões
psíquicas de adultos e crianças.
Por conseguinte, a abordagem psíquico-pedagógica que visa
tão-somente aos aspectos do desenvolvimento cognitivo da crian-
ça, descontextualizado de seu ambiente social, não faz parte de
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nosso escopo teórico, assim como a abordagem universalizante da
teoria piagetiana. Essa teoria, segundo alguns críticos, teria trans-
formado o processo de construção das estruturas cognitivas,
como ele ocorre no Ocidente, num paradigma para o desen-
volvimento psíquico de todas as crianças (Freitag, 1984, p. 75).
Privilegiamos as diferenças e não a comparação a partir da idade.
Contudo, tomamos cuidado para não cair nas armadilhas do re-
lativismo cultural, segundo o qual cada cultura possui seus esque-
mas cognitivos específicos, posição esta que pode conduzir ao et-
nocentrismo.
As diferenças culturais e socioeconômicas são as que exercem
maior importância no processo cognitivo da criança. Segundo
Freitag (1984, p. 77), na pesquisa intercultural não há menção à
produção material de bens, estrutura de poder, à divisão do tra-
balho, à estrutura social de classes, estrutura familiar, seus dife-
rentes tipos e diferentes processos de socialização.Vale a pena ain-
da lembrar que há inúmeras diferenças culturais em uma mesma
sociedade. São essas diferenças de classe social, de gênero e ra-
ça/etnia que explicam os processos da psicogênese e não somen-
te as manifestações culturais.
A combinação das diversas técnicas de pesquisa descritas
acima foi um instrumento importante à análise dos desenhos no
contexto da realidade social das crianças vis-à-vis a leitura dos
conteúdos manifesto e latente (Leite, 1993). O conteúdo mani-
festo ou expresso se baseia na leitura do desenho feito pela crian-
ça. O conteúdo latente exige o conhecimento do contexto social
no qual a criança se acha inserida. A realidade social possui mui-
tas facetas. Algumas são visíveis, outras são invisíveis, inaudí-
veis, fragmentadas, silenciadas. No conjunto, os desenhos apon-
tam para a produção de um processo de conservação–dissolução,
em que alguns traços dos modelos anteriores permaneceram,
enquanto outros desapareceram. A realidade estudada é revela-
dora da presença do patriarcado, como organização social pre-
dominante, muito embora o homem não seja, na maioria dos
casos, o chefe da família, como já foi revelado acima. As relações
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patriarcais se manifestam por meio das figuras do pai que foi em-
bora e do provedor defeituoso – e não mais da figura do pai pa-
trão –, as quais, last but not least, definem as relações patriarcais
como padrão existente.
Nosso esforço doravante será o de interpretar as representa-
ções das famílias que aparecem nos desenhos e não procedermos
à análise clínica por meio de testes dos desenhos (Cox, 2000). Pa-
ra o desempenho dessa tarefa, optamos pela inclusão de apenas
duas referências específicas sobre desenhos infantis.13 A relação
entre sociogênese e psicogênese será aprofundada por meio da
incorporação das reflexões de Di Leo (1991) e Derdyk (1989), pro-
fissionais das áreas das disciplinas comportamentais, que se de-
bruçaram sobre a interpretação dos desenhos das crianças, pri-
vilegiando seu universo social. Além dessas referências, serão
acrescentadas aquelas cuja preocupação sociológica se voltou pa-
ra a análise dos relatos das crianças, levando-se em conta a im-
portância do universo infantil para a compreensão da realidade
social, a partir das inúmeras mediações e significados existentes
entre a realidade e a imagem que se tem dela.
Di Leo (1991) realizou uma análise clínica de 91 desenhos de
crianças, muitas das quais com problemas psíquicos. Suas contri-
buições são importantes na medida em que, além do desenho, são
incorporados os depoimentos das crianças. Assim, sua interpre-
tação leva em conta a inserção da criança em seu universo social
e familiar. No capítulo referente aos desenhos da família, o autor
chama a atenção para os seguintes itens, os quais fornecerão pis-
tas mais seguras para o caso analisado na presente pesquisa:
• A figura do pai ausente, agressivo, presente no desenho, mas au-
sente nas relações familiares. Muitos desenhos de crianças de
trabalhadores rurais refletem a ausência do pai – o pai que foi
embora –, ou, ainda, este é desenhado do mesmo tamanho dos
demais membros da família.
• Os botões na roupa refletem o poder e a rigidez masculinos. É ne-
cessário lembrar que os desenhos coligidos abarcam crianças de 3
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13 Segundo os propósi-tos deste artigo, a bi-bliografia utilizada paraa interpretação dos de-senhos, aludida maisadiante, não contempla aanálise da psicologia dodesenvolvimento infan-til, sobretudo aquelasvoltadas para os testesclínicos que avaliam a in-teligência e sim aquelasque privilegiam o dese-nho como representaçãosocial, como manifesta-ção do universo materiale simbólico das crianças.
a 12 anos. Acima de 11 anos, a criança entra na fase da adolescên-
cia, portanto, é necessário levar esse aspecto em consideração.
• A figura desenhada geometricamente, segundo esse autor, reve-
la a ausência de emoção. Trata-se de uma atitude que é racio-
nalmente controlada, sem emoção.
• A ausência de braços revela a incapacidade de ação; as mãos
atrás do corpo sugerem falta de confiança.
• Os tamanhos pequenos sugerem auto-estima baixa; pessoas
desenhadas em espaços cercados, como se fossem caixotes, re-
velam ausência de comunicação entre os membros da família.
• A presença de árvores – as três principais partes da árvore, su-
postamente, se referem aos três maiores campos da personali-
dade: o tronco – a vida emocional; as raízes – a vida instintiva;
a copa – a vida intelectual e social e representa o futuro. Tron-
co com buracos sugere a presença de traumas. O tronco amplo
pode sugerir reação emocional à má condição existente.
• Desenhos de dentes podem sugerir agressão. No entanto, o au-
tor adverte para as armadilhas na interpretação dos desenhos
infantis. É necessário sempre verificar os elementos universais
de interpretação e também a particularidade de cada criança.
Outra armadilha mencionada se reporta ao desmembramento
dos corpos. À primeira vista sugere desagregação, porém é ne-
cessário conhecer a realidade social da criança para chegar a es-
sa afirmação. Em geral, essa separação dos membros ocorre nas
crianças pequenas. Num dos desenhos coligidos pela nossa
pesquisa, há o caso de um menino (J), em que se vê o desmem-
bramento. Ele próprio aparece sem boca, ouvidos, nariz e olhos.
Trata-se de uma criança que estava vivendo com seus padrinhos,
em razão de problemas com seus pais. Nesse caso, o desmem-
bramento é fiel à realidade vigente.
• O autor adverte também para os cuidados em relação à inter-
pretação dos símbolos:
Um símbolo pode ser universal, mas o seu significado é indi-
vidual. Os desenhos devem trazer novos insights; devem con-
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firmar o que é sabido. Tomados fora do contexto, eles podem
enganar (p. 195).
• A casa representa aconchego, afeto, segurança. Os desenhos são
representações e não reproduções. A casa simboliza o lugar on-
de são buscados afeto e segurança, necessidades básicas que en-
contram prenchimento na vida familiar. Animais são seguida-
mente adicionados como parte da família. Árvores, flores e o sol
aparecem como expressão da crescente necessidade por luz, na-
tureza e um mundo além dos confins do lar (p. 52). Ausência
da casa é muito recorrente nos desenhos coligidos.
Derdyk (1989) traz importantes contribuições sobre o dese-
nho enquanto representação social, das quais foram selecionados
os seguintes pontos:
• A criança enquanto desenha, canta, conta história, teatraliza,
imagina ou até silencia. O ato de desenhar impulsiona outras
manifestações, que acontecem juntas, numa unidade indissolú-
vel, possibilitando uma grande caminhada pelo quintal do ima-
ginário (p. 19).
• O desenho manifesta o desejo da representação, mas também o
desenho, antes de mais nada, é medo, é opressão, é alegria, é cu-
riosidade, é afirmação, é negação. Ao desenhar, a criança passa
por um intenso processo vivencial e existencial (p. 51).
• O desenho é uma atividade do imaginário. A criança vive in-
serida na paisagem cultural do adulto. Seria necessária uma
reflexão profunda sobre como essa paisagem interage e se re-
laciona com o mundo da criança, eternamente em transição.
(p. 53).
• O conteúdo manifesto são as imagens presentes no papel e o la-
tente trata das mensagens subliminares, escondidas ali no papel
(p. 54). O mundo para as crianças está em todos os lugares si-
multaneamente.
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O espaço emocional traz para bem perto ou leva para bem
longe os objetos dotados de afeto, independente de sua real
posição física. O espaço emocional dita as hierarquias afetivas
através da dimensão das formas. Por exemplo, o clássico “de-
senho de família”, em que um dos membros é muito maior ou
muito menor quando comparado aos demais. É a expressão do
conteúdo simbólico da criança manifestado pela maneira de re-
presentar, figurar e nos apresentar os membros de sua família
(p. 78-9, grifos nossos).
• O desenho é uma verdadeira “fábrica de imagens”.
(O desenho), “fábrica de imagens”, conjuga elementos oriun-
dos do domínio da observação sensível do real e da capacida-
de de imaginar e projetar, vontade de significar. O desenho
configura um campo minado de possibilidades, confrontan-
do o real, o percebido e o imaginário. A observação, a memó-
ria e a imaginação são personagens que flagram esta zona de
incerteza: o território entre o visível e o invisível (Francastell,
1975, p. 25, apud Derdyk, p. 115).
• É importante salientar, segundo a visão dessa autora, que o dese-
nho lida com os elementos do espaço e também dos tempos –
passado, presente e futuro. Há uma simbiose entre os tempos,
entre a observação (presente), a memória (passado) e a imagi-
nação (futuro). No ato de desenhar, estão várias manifestações
mentais, como imaginar, lembrar, sonhar, observar, associar, re-
lacionar, simbolizar, reapresentar (p. 121).
Na coletânea recentemente publicada, Faria, Demartini, Pra-
do (2002), os autores chamam a atenção para a ausência das crian-
ças nas investigações dos cientistas sociais, talvez com exceção da
antropologia, e se propõem ao enfrentamento dos inúmeros de-
safios que essa tarefa apresenta, em virtude de que as vozes das
crianças não podem ser interpretadas da mesma maneira que a
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dos adultos, dificuldades estas acrescidas ao fato de que o mate-
rial coletado é feito pelos adultos e interpretado por eles.
A fim de facilitar a leitura dos desenhos, que se encontram no
final deste artigo, optamos por analisá-los em conjuntos, por meio
de uma amostra, seguindo a sugestão de Gusmão (1996, p. 181 e
segs.), ressaltando que os desenhos são verdadeiras “fábricas de
imagens”, nas quais se misturam as representações do momento
presente, passado e das expectativas futuras. Os desenhos revelam
e escondem. Assim sendo, o conhecimento da realidade concreta
de seus produtores é fundamental para a interpretação analítica. As
leituras dos desenhos feitas pelas crianças, as análises do conteúdo
manifesto serão os pilares sobre os quais se assentará a análise do
conteúdo latente, cujos contornos teóricos foram definidos acima.
Conjunto 1 – Nº- de desenhos: 6
Características: famílias com a presença do pai e da mãe.
• Em alguns desenhos aparece a casa, em outros, não.
• Em geral, o pai não possui um destaque nos desenhos, ao con-
trário da mãe.
• Os membros da família não necessariamente vivem na mesma
casa. Esse fato demonstra que a percepção de família não se res-
tringe à casa.
A leitura do Desenho 1 feita pela criança (menina de 9 anos)
revela que a mãe – colhedora de laranja – tem um lugar desta-
cado, ao contrário do pai – cortador de cana –, que é represen-
tado do mesmo tamanho dos demais membros. Há também a pre-
sença de um irmão que mora na casa da vizinha, outra que vive
na Cutrale (fazenda), um irmão que mora num quartinho dos
fundos e um irmão já falecido, aos 21 anos de idade.
Nesse desenho, não há a casa, embora a união das nuvens pe-
lo sol represente a união dos pais. As pessoas aparecem próximas e
sorridentes. O pai trabalha na usina e a mãe é colhedora de laran-
ja. Segundo depoimentos de vizinhos, a autora do desenho ficou
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“escondida” até a idade de 4 anos, cujos motivos não ficaram escla-
recidos, havendo muito silêncio a respeito. Durante a oficina, a
criança se mostrou muito tímida.A presença de duas irmãs que cir-
culam, portanto, que se acham ausentes, e do irmão morto aos 21
anos, desenhado no final após o que vive no quartinho, são traços
reveladores das ausências, do conteúdo latente, dos aspectos subli-
minares. Segundo as reflexões anteriores, pode-se afirmar que, na
realidade, se trata de uma família cujos membros estão divididos,
separados, porém unidos na representação, no desejo da criança.
No Desenho 2 feita por uma menina de 8 anos de idade, as
pessoas aparecem no interior da casa. O tamanho da autora do
desenho é maior do que os dos demais, inclusive dos pais. As fi-
guras são retilíneas e aparecem desnudas, embora de mãos dadas.
O pai trabalha no corte da cana e a mãe na colheita da laranja. As
presenças da chuva, das nuvens e do sol, cujos olhos estão aper-
tados entre as nuvens, parecem sugerir a necessidade de luz sobre
a casa.As hierarquias afetivas, traduzidas nas figuras pequenas dos
pais, são indicativas de outros valores, que não aqueles nos quais
o pai é representado de tamanho maior, seguido do da mãe. Nes-
se caso, a mãe é desenhada em primeiro lugar, e o tamanho da fi-
gura do pai é ligeiramente menor do que a dela.
O Desenho 3 é de um menino de 10 anos de idade. O pai é
motorista de caminhão e transporta suco de laranja; a mãe tra-
balha na usina. Moram na casa seis pessoas. As figuras são quase
do mesmo tamanho. A do pai aparece em primeiro lugar. Os
botões da roupa revelam o poder masculino e a rigidez, segundo
as reflexões acima. Alguns membros da família estão ausentes.
Somente o pai tem as mãos. A figura da mãe é singela. A ausên-
cia de braços e mãos pode revelar falta de autonomia e dificulda-
des de ação e falta de apoio familiar. O nome do avô, morto há
três meses, é mencionado. Por outro lado, foi acrescentada a figu-
ra do amigo acima na folha. A casa parece ser grande, mas as pes-
soas não estão no seu interior.
O Desenho 4 é de uma menina de 7 anos de idade, cujos pais
trabalham na colheita da laranja. Aqui também a ausência de bra-
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ços é evidenciada. O que chama a atenção é a figura da mãe ra-
biscada, além de botões nas roupas da autora do desenho e de
uma irmã que fica na creche. A leitura feita pela criança revela
também que a reprodução familiar é em parte assumida pelos or-
ganismos municipais, por meio de creches e projetos para as
crianças maiores.
Em se tratando de uma atividade temporária, a colheita da
laranja emprega as pessoas durante apenas seis meses ao ano. As-
sim sendo, a reprodução física e social dessas famílias é marcada
pela instabilidade financeira e fica na dependência das creches
municipais. A ausência da casa na maioria dos desenhos sugere
que esse espaço não possui para essas crianças o mesmo valor sim-
bólico de crianças de outras classes sociais. A presença da casa va-
zia com as pessoas do lado de fora é um dado que pode ser assim
interpretado: em geral, as casas são pequenas tendo em vista o
grande número de pessoas que nelas vivem. Daí decorrem as con-
siderações acima sobre o espaço da rua ser tomado como uma es-
pécie de extensão da casa. Ademais, o grande número de pessoas
impede a individualização dos espaços da casa, tal como foi mos-
trado. Desse modo, os quadros sociais representados pela casa
possuem outros significados no imaginário dessas crianças, não
necessariamente relacionados à família, sem contar que elas pas-
sam a metade do tempo da vida delas nas creches.
Para fins de comparação, optamos por agregar a esse conjun-
to o Desenho 5 de uma menina de 6 anos do Assentamento Hor-
to Guarani, no município de Pradópolis, próximo à cidade de Rin-
cão. Todas as pessoas estão no interior da casa, que apresenta uma
divisão sexual do espaço em feminino e masculino. A árvore apa-
rece ao lado da casa, além das flores. Sobre a casa, o vôo de uma
borboleta em direção às nuvens, onde está gravado seu nome, se-
paradas pelo sol sugere a percepção da natureza que caracteriza o
espaço rural. As figuras são quase do mesmo tamanho, desnudas
e retilíneas.
Essa mesma menina produziu o Desenho 6, que se reporta à
oca do avô, índio, que vive no mesmo lote da família. As presen-
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ças de répteis – lagarto, cobra –, do gato (Romão), se misturam
àquela do avô dormindo no chão, além das árvores e da presen-
ça da lâmpada colocada pelo pai. Esse desenho é bastante fiel à
realidade vivenciada pela criança.
As reflexões da pedagoga, Márcia Gobbi (2002), ao conjuga-
rem desenho e oralidade como forma privilegiada de expressão
da criança, fornecem subsídios importantes para essas distintas
interpretações. Considerando o mesmo universo social, foram ve-
rificadas várias formas de percepção e representação das famílias
pelas crianças que vivem com os pais. As distintas temporalida-
des – presente, passado, futuro – se mesclam aos espaços sociais,
valores, símbolos, e à cultura. Para essa autora, os desenhos não
são reproduções fiéis da realidade vivida, como se estivessem con-
geladas no tempo e no espaço. Os desenhos contêm imaginação
e sonhos. São frágeis as análises da psicologia do desenvolvimen-
to infantil que conquistaram amplo espaço entre as práticas dos
educadores e educadoras, sendo responsáveis pela construção de
olhares voltados para um trabalho que procura estabelecer as eta-
pas e fases do psiquismo infantil. Estas se tornam prisioneiras de
um olhar já formatado, enquadrado em modelos em que as pro-
duções devam ser encaixadas (p. 74-5).
A incorporação dos desenhos da menina assentada é um in-
dicativo das diferenças espaciais, do mundo vivido, além da di-
versidade cultural por meio da convivência com o avô que prefe-
riu viver na oca, separada da casa da filha. Ao ser solicitada que
fizesse o desenho de sua família, a criança foi fiel a sua realidade
vivida. Portanto, a cultura é uma representação dos diferentes es-
paços e tempos e diz de si, mas diz de seu grupo e da sociedade
em que está e vive (Gusmão, 2003, p. 24).
Conjunto 2 – Nº- de desenhos: 5
Características: famílias com a presença de membros consangüí-
neos de distintas gerações.
• A casa ora aparece, ora não.
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• Há também a ausência de algumas pessoas nos desenhos.
No Desenho 7 de uma menina de 8 anos, cujo pai é varredor
de rua e a mãe é colhedora de laranja, aparecem 11 figuras, todas
do mesmo tamanho, sem roupas, com os mesmos traços retilí-
neos, pintadas da mesma cor, indistintas. A casa é extremamente
pequena para abrigar o número de pessoas. A presença da árvo-
re com frutos sugere que a família também possa dar muitos fru-
tos. Não há hierarquias. A mãe aparece antes do pai. Há primos,
primas, tios e avó. O cotidiano, o momento presente domina to-
da a cena. Não há projeções. O passado, traduzido na presença da
avó, parece indicar que ele é igual ao presente do adulto e tam-
bém ao futuro das crianças no contexto de um vivido sem mu-
danças. O pequeno espaço na parte inferior da folha utilizado pa-
ra o desenho sugere o espaço simbólico das relações de dominação
dessa família no universo social ao qual pertencem. O espaço
emocional é indiferenciado, todos se situam no mesmo plano da
folha de papel, que coincide com o espaço social.
O Desenho 8 é de uma menina de 8 anos. O pai trabalha no
corte de cana e a mãe é empregada doméstica. É filha única. Há
um primo de 12 anos que mora com a família, portanto, trata-
se de uma criança que circula. A figura do pai é menor do que
a da mãe. O primo não é desenhado. Há a figura de uma bone-
ca e um carrinho de bebê. Ao lado da casa, há uma flor e uma
árvore com grande copa e frutos. No alto da folha, muitos cora-
ções coloridos e o sol, fonte de luz e calor. Ao contrário do de-
senho anterior, a casa é grande, tendo em vista o número e o ta-
manho das pessoas. Os corações coloridos no alto podem ser
interpretados como sinais de amor, afeto, embora na esfera do
desejo, dos sonhos.
No Desenho 9 de um menino de 8 anos, cujo pai é cortador
de cana e a mãe é empregada doméstica, tanto a árvore como a
família estão sobre a terra, o que pode revelar o equilíbrio fami-
liar. A avó materna e o tio não residem na casa, embora sejam de-
senhados como membros da família. Todas as pessoas são apre-
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sentadas do mesmo tamanho, algo recorrente em vários casos, o
que indica a ausência de hierarquias e também o lugar “pequeno”
(e em baixo) que o grupo familiar ocupa no universo social. O sol
entre as nuvens sugere que a percepção vai além da situação vivi-
da. Moram, na casa, quatro pessoas.
O Desenho 10 de uma menina de 8 anos de idade retrata a
ausência de muitos membros. A mãe é empregada doméstica. São
registrados apenas o pai (que não reside na casa), a mãe e ela pró-
pria. As demais pessoas – nove residentes na casa – estão ausen-
tes. A avó materna, o tio, o meio-irmão – filho do pai com outra
mulher que reside com ele – não são pintados. No desenho, o pai,
que pega lavagem para os porcos na fazenda, é pintado por últi-
mo, antes dela e da mãe. Além dos traços retilíneos, há indicati-
vos dos órgãos genitais masculinos e femininos nos desenhos.
Além dessas ausências, a casa não aparece, assim como outros ele-
mentos da natureza. As três figuras estão separadas entre si. A ex-
periência vivida do mundo real permite associar significados que
poderiam realizar-se. A ausência desses traços sugere a ausência
de projetos, de expectativas, de transformações. Valeria a pergun-
ta: Onde estão os sonhos dessa criança?
No Desenho 11 da menina de 8 anos, cujo pai trabalha no
corte de cana e a mãe é empregada doméstica, embora as figuras
sejam muito pequenas e também situadas na parte inferior da fo-
lha de papel, elas são pintadas com detalhes: os avós com benga-
las e óculos, o irmão com a bola. Os primos, tios e avós não resi-
dem na casa, porém são percebidos como de sua família. A casa
está ausente. O sol, sem detalhes, surge entre nuvens.
Conjunto 3 – Nº- de desenhos: 5
Características: famílias com o pai ausente.
• Em alguns desenhos, ora a casa aparece, ora não.
O Desenho 12 é de uma menina de 11 anos de idade, em cu-
ja casa vivem seis pessoas. Não sabe dizer a profissão do pai e a
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mãe é trabalhadora rural. Segundo o diário de campo, a mãe é al-
coólatra e, atualmente, todos estão morando com a tia, em vir-
tude de terem sido despejados, por falta de pagamento do aluguel.
A figura da mãe é a maior e aparece entre a dos filhos. Embora o
pai viva com sua irmã, ela o desenhou por último. Um sol triste
está entre as nuvens. A casa e a árvore não aparecem. As figuras
estão separadas umas das outras.
Essa família traduz a miserabilidade que caracteriza boa par-
te desses trabalhadores. Salários baixos, trabalho sazonal, ausên-
cia do pai, são fatores que contribuem para aumentar o sofrimen-
to e as tensões vivenciadas. O alcoolismo da mãe é o resultado
dessa situação social.
No Desenho 13 de uma menina de 9 anos de idade, cuja ir-
mã é autora do Desenho 12, o pai está ausente. A figura da mãe
aparece em primeiro lugar e é a maior. A copa da árvore é gran-
de, com muitos frutos, o que pressupõe o desejo de um futuro
promissor. O tronco é pequeno e as raízes não aparecem. Segun-
do as considerações acima, o tronco representa a vida emocio-
nal; as raízes, a vida instintiva e a copa, a vida intelectual, social
e o futuro.
No Desenho 14 de uma menina de 10 anos de idade, cuja mãe
está desempregada e o pai é colhedor de laranja, as figuras estão
desmembradas. A figura da mãe aparece em primeiro lugar, po-
rém foi pintada com lápis preto. No momento da leitura do de-
senho, a criança disse sobre a mãe: “Ela não é mais porque o pa-
drasto bateu em nós”. A figura do pai, que não vive na casa, está
desmembrada, assim como as dos demais, exceto a dela própria.
A figura do padrasto agressor também não foi pintada. A folha de
papel, dividida ao meio, sugere que a topografia da família é pe-
quena, não havendo a necessidade da folha inteira. Por outro la-
do, o espaço emocional das figuras não obedece às hierarquias dos
modelos, baseadas nos papéis desempenhados pelos membros da
família. A figura de um dos irmãos é maior do que a do pai. É in-
teressante notar que a mãe, embora morando na casa, não é mais
considerada mãe, ao contrário do pai que está ausente da casa,
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mas é presente nas relações familiares, segundo a representação.
Portanto, no nível do imaginário, há a inversão dos lugares e dos
papéis sociais.
No Desenho 15 de um menino de 13 anos de idade, a mãe é
a figura mais representativa. Ela é pintada com as roupas da ro-
ça, pois é uma colhedora de laranja. Trata-se de uma família sob
a chefia da mulher. O autor do desenho não aparece. O menino é
responsável pelos cuidados da casa, realiza todas as tarefas domés-
ticas, enquanto a mãe trabalha na roça. As quatro crianças são de
pais diferentes. Nenhum vive na casa, “todos foram embora”. A
mãe é auxiliada pela família da irmã que mora ao lado de sua ca-
sa. A menina vive boa parte do tempo na casa da tia. A casa é mui-
to precária e não aparece no desenho. Embora sejam bem-feitas
as figuras, não há qualquer traço que se refira ao imaginário, à vi-
da futura. As dificuldades do cotidiano são muitas. A sazonalida-
de do trabalho, os salários baixos, inferiores ao mínimo, impõem
a essa família as necessidades de assistência, advinda da prefeitu-
ra local e dos parentes. Inquirida sobre as razões de não solicitar
judicialmente as pensões dos pais de seus filhos, a mãe respondeu
que sua atitude era para evitar a interferência deles em sua vida.
Esse fato é bastante revelador dos conflitos das relações de gêne-
ro, bem como do empoderamento da mulher que, embora no li-
mite da sobrevivência, prefere resguardar sua autonomia, algo
que, segundo ela, poderia ser posta em risco, na medida em que
eles poderiam fazer-lhe exigências em troca do pagamento das
pensões aos respectivos filhos. Os demais irmãos também dese-
nharam a família. Do mesmo modo, os respectivos pais não apa-
recem, ao passo que a figura da mãe é a maior.
O Desenho 16 de uma menina de 5 anos de idade, cujo “pai
foi embora” e é trabalhador rural e a mãe é empregada domésti-
ca, apresenta a leitura feita pela menina, não somente relatando
os nomes das pessoas. Toda folha de papel é ocupada e as posi-
ções topológicas são distintas. Sem contar que há várias divisões.
No canto superior esquerdo, foram pintados o tio, que sustenta a
casa, a mãe, a tia. No canto superior direito, a avó. No canto in-
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ferior direito, num quartinho separado da casa, mora o avô, al-
coólatra, que briga com a avó. Sobre o pai, a autora do desenho
não fez nenhum comentário.
Essa menina fez outro desenho sobre a família e, nele, ela res-
saltou o papel do tio, como provedor da família, cuja figura está
de braços bem abertos. Relatou também que logo o tio iria casar-
se e não mais sustentaria a casa, pois iria embora. A divisão espa-
cial reflete também o espaço emocional, no qual o avô é excluído
do contato familiar, já que mora num quartinho separado, e as
demais pessoas estão no alto, fora da casa, longe do chão, apre-
sentando corpos disformes, cabelos desalinhados, assemelhando-
se a caricaturas. As condições sociais dessa família são refletidas
nas imagens desenhadas pela criança.
Conjunto 4 – Nº- de desenhos: 5
Características: ausência de muitos membros da família.
• A casa ora aparece, ora não.
O Desenho 17 é de um menino de 8 anos de idade, que es-
tá vivendo com a madrinha, portanto, trata-se de um criança
que circula. O pai trabalha no corte de cana e a madrinha colhe
laranja. No momento da pesquisa, uma vizinha afirmou (pois
não foi possível o contato com a família) que ele seria “devolvi-
do” aos pais, pois se tratava de uma criança muito difícil. O con-
teúdo latente revela que a figura de seu rosto não tem olhos, bo-
ca, nariz, ouvidos, ou seja, é um círculo sem traços, indefinido.
O corpo é disforme. O coração vermelho pintado no alto da fo-
lha, com traços fortes, sugere relações emotivas que estão ausen-
tes nas pessoas, talvez existindo como forma de projeção, algo
abstrato. Durante a realização da oficina, essa criança revelou
ser inquieta, com atos que sempre procurava chamar a atenção
sobre si mesmo.
No Desenho 18 de um menino de 8 anos de idade, cujos pais
trabalham na colheita da laranja, todos os cinco membros da fa-
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mília estão ausentes. Segundo as reflexões acima, a existência dos
compartimentos revela ausência de comunicação entre os mem-
bros. A única figura que aparece é a sua, isolada, com a referên-
cia da creche. No canto inferior direito, uma figura invertida apa-
rece rabiscada, sem identificação. Os “caixotes” vazios podem
sugerir, além da ausência de comunicação entre os membros da
família, o isolamento sentido pela criança, no seu próprio “caixo-
te”, cuja imagem é indefinida e incompleta.
O Desenho 19 é de um menino de 8 anos de idade, cujo pai
trabalha no corte da cana e a mãe colhe laranja. No primeiro de-
senho, ele representou o avô na parte inferior da folha. Os traços
pontiagudos e os botões na roupa indicam agressividade. Na ou-
tra folha, aparecem a casa e a árvore; sua figura é do mesmo ta-
manho da casa; seus membros parecem estar atrofiados. A árvo-
re não possui raízes; o tronco é grande e ela é pintada de preto.
Moram na casa seis pessoas, quatro delas ausentes nos desenhos,
inclusive os pais. Contudo, há o sol, nuvens, pássaros, indicativos
da natureza, além da casa.
O Desenho 20 é de um menino de 11 anos, cujos pais traba-
lham na colheita de laranja e em cuja casa moram 17 pessoas. A
figura desenhada, de um diabo com chifres, atravessada por um
podão de cortar cana, reporta-se ao pai; em sua leitura, ele disse
que a figura não é o pai, porém ele quis colocar pai. Aparece tam-
bém o nome de uma mulher, mãe do colega, seu nome e a pala-
vra “paz” em grandes letras. A ausência de quase todos os mem-
bros da família, aliada a essa representação do pai e a palavra “paz”,
é indicativo de ausência afetiva e violência praticada pelo pai. As
imagens revelam e escondem uma realidade marcada por muitos
conflitos. A figura da mãe, além de ausente, é substituída pelo no-
me da do colega, que possivelmente possa significar-lhe algum
sentimento positivo.
A autoria do Desenho 21 é de uma menina de 12 anos, cujo
irmão é o menino do Desenho 19. As crianças são negras. Duran-
te a atividade de teatro, essa criança representou o papel da avó
materna como aquela que oferecia apoio à mãe, quando esta bri-
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gava com o marido. As figuras estão em compartimentos, o pai
está ausente. As figuras estão desnudas e são retilíneas. A falta de
roupa, traço que surge em outros desenhos, sugere a ausência de
cuidados, de carinho. Se compararmos as interpretações dos con-
teúdos latentes dos desenhos 19 e 21, veremos que a violência e a
ausência de proteção lhe são comuns. Essa mesma situação foi en-
contrada por Riva (2006, p. 113), que utilizou a técnica do dese-
nho para constatar as formas de negligência por parte dos pais
em relação aos filhos. Num dos desenhos, todas as figuras foram
pintadas desnudas.
As pessoas estão no interior da casa e esta é cercada por gran-
des muros, num dos quais aparece a copa de uma árvore com fru-
tos. A bicicleta da irmã é desenhada, o que sugere a raridade des-
sa mercadoria entre essas crianças, tendo em vista o baixo poder
aquisitivo da família.
O ato de desenhar é um ato em que a criança escreve seus
pensamentos sobre a realidade vivida ou imaginária. A família
transfere à criança toda herança cultural; muitos elementos cul-
turais são transmitidos às crianças por meio de relações afetivas.
No Desenho 21, os muros altos da casa podem representar as bar-
reiras enfrentadas pelos negros na sociedade em que vivem. O es-
paço da casa parece configurar o isolamento, o cerceamento das
pessoas que vivem nela em relação ao mundo exterior.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Parafraseando a professora Miriam Moreira Leite (1993), que
analisou fotografias de famílias, poderíamos levantar a questão:
Existiria uma leitura desses desenhos capaz de substituir ou equi-
valer à de documentos escritos ou depoimentos verbais? Diante
das alternativas, ainda nos baseando nessa autora, o documento
escrito e as imagens iconográficas ou fotográficas são representa-
ções que aguardam um leitor que as decifre (p. 23). A imagem não
fala por si mesma. Dessa sorte, tecemos o conjunto de reflexões
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acerca do ser social no intuito de compreender a criança-sujeito,
inserida numa família, cujos padrões de organização passaram
por várias mudanças em função das relações socioeconômicas
existentes na produção do denominado agribusiness sucroalcoo-
leiro e citrícola da região analisada. Tais mudanças, como vimos,
acarretaram a precarização das relações de trabalho, o desempre-
go, sem contar as incertezas do mercado laboral sazonal, cada vez
mais restrito e exigindo mão-de-obra, dotada de força para o dis-
pêndio de enormes energias para o trabalho excessivamente pesa-
do do corte da cana, fato que alija as mulheres e as pessoas acima
de 40 anos de idade da atividade do corte da cana. Restam às mu-
lheres a colheita da laranja, cujos salários são inferiores aos do
corte da cana, ou o emprego doméstico. Portanto, os genitores
dessas crianças estão nas ocupações mais desvalorizadas finan-
ceira e socialmente. A vida deles oscila entre as incertezas do mer-
cado laboral e a exclusão social, recaindo sobre as mulheres, ain-
da, o peso da dominação patriarcal e, sobre os negros, as
discriminações étnicas/raciais. Na expressão de Bourdieu, são vi-
das suspensas por um fio.
O conjunto dos desenhos analisados revela, portanto, outra
maneira de dizer, baseada na descrição da realidade circundante
e também nas representações sociais dessas crianças. O lugar
emocional das pessoas da família aparece ora disforme, ora in-
distinto, retilíneo, sem cores, sem marcas, na parte inferior da fo-
lha sulfite, lugar este que coincide com a escala social na qual se
inserem todos os membros da família. Considerando o ideal
como parte do real, em alguns desenhos a idealização está ausen-
te. Se retomarmos as reflexões sobre o ser social, podemos afir-
mar que o processo dominador imposto aos trabalhadores ru-
rais nestas últimas décadas culminou não somente na introjeção
da autocoação, caracterizado pelos salários baixos, pela miséria
material e incapacidade de reprodução social, pelo alcoolismo
dos adultos, mormente dos homens, como também pela espolia-
ção das lembranças, responsáveis pela negação da memória her-
dada pelas crianças. Partindo do pressuposto de que as distintas
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temporalidades não são lineares, porém se misturam, imprimin-
do umas às outras novos matizes, cujos significados se transfor-
mam no decorrer do tempo e dos espaços vividos, podemos afir-
mar que esse processo, ao atingir a própria essência humana, ao
ser internalizado, pode gerar tanto o amoldamento como a resis-
tência, por meio da dialética conflitiva, segundo as considerações
acima. Assujeitamento e amoldamento não são vistos linearmen-
te, porém enquanto processos conflitivos entre a dominação das
relações capitalistas e as determinações, advindas dos próprios
sujeitos em subverter tais determinações que foram recalcadas,
reprimidas.
Ethel Kosminsky (1998) mostra a importância do desenho
conjugado à oralidade em um estudo de caso de crianças inter-
nadas em instituições assistenciais. Segundo ela, a coleta dos
desenhos exige do pesquisador uma postura que se afaste do pa-
ternalismo, dos preconceitos de classe e etnia e também das ideo-
logias dominadoras. Por outro lado, o fato de o pesquisador não
ser criança é um fato que exige outros cuidados. Nos quadros de
uma sociologia da infância, poder-se-ia perguntar se as crianças
das camadas subalternas apresentam grafismos mais elementa-
res do que as crianças das camadas dominantes. Essa autora ad-
verte para os perigos do reducionismo, aliado à construção de
cânones, ou seja, de critérios classificatórios, de modelos que va-
lorizam as características étnicas e culturais de uma camada da
população, ou da população de um país, em detrimento de ou-
tros, capazes de conduzir ao etnocentrismo e aos preconceitos
classistas (p. 85).
O trabalho etnográfico no quarteirão escolhido pela pesqui-
sa, que durou duas semanas inteiras, além das atividades recrea-
tivas desenvolvidas com as crianças em vários momentos, permi-
tiu não somente aproximação das crianças, como também as
relações de confiança entre pesquisador e pesquisado. Algumas
delas chegaram a desenhar as pesquisadoras em folhas de papel
separado, com trancinhas nos cabelos, como se elas fossem crian-
ças, o que denota a relação afetiva produzida.
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Dessa sorte, ainda que reconheçamos as possíveis limitações
das interpretações dos desenhos, as reflexões acima representam
um duplo desafio. Primeiramente, por adentrar um terreno no-
vo, cujo caminhar exigiu muita cautela. Em segundo lugar, por
tomar consciência de que a exploração e a dominação – de clas-
se, gênero e etnia – atingem a vida dos dominados não somen-
te no que tange a sua materialidade, como também à própria
subjetividade. Desse modo, qualquer práxis que vise acabar com
a situação de heteronomia deverá levar em conta o processo de
alienação, objetivação e assujeitamento de corpos e almas. Por-
tanto, é uma larga tarefa, que não pode ser circunscrita aos mo-
vimentos sindicais. Uma pedagogia, que fosse capaz de inserir
em seus conteúdos a realidade social e cultural da criança, po-
deria ser o caminho para a autonomia e a abolição das injusti-
ças sociais existentes. A concretização dessa utopia necessaria-
mente deverá incluir o sujeito-criança, além de mulheres e
homens adultos.
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1 4 4
MARIA APARECIDA DE MORAES SILVA é professora livre-docente, colaboradora doPPG/Geografia/Unesp/Presidente Prudente, pesquisadora visitante do PPG/Geo-grafia/USP e pesquisadora do CNPq. BEATRIZ MEDEIROS DE MELO é bolsista da Fapesp/Mestrado/Unesp/PresidentePrudente.ANDRÉIA PERES APPOLINÁRIO é bolsista de AT do CNPq.
ANEXO
Desenho 1
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Desenho 2
Desenho 3
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Desenho 4
Desenho 5
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Desenho 6
Desenho 7
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Desenho 8
Desenho 9
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Desenho 10
Desenho 11
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Desenho 12
Desenho 13
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Desenho 14
Desenho 15
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Desenho 16
Desenho 17
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Desenho 18
Desenho 19
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Desenho 20
Desenho 21
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A LONGA EVOLUÇÃO DA RELAÇÃO RURAL–URBANO
PARA ALÉM DE UMA ABORDAGEM NORMATIVA DO DESENVOLVIMENTO RURAL*
ARILSON DA SILVA FAVARETO
R E S U M O Na base da emergência do que se convencionou chamar por “nova
ruralidade” há um deslizamento no conteúdo social e na qualidade da articulação
das suas três dimensões definidoras fundamentais: as relações rural–urbano, a pro-
ximidade com a natureza e os laços interpessoais. Os significados maiores dessa mu-
dança são, de um lado, a erosão do paradigma agrário que sustentou as visões pre-
dominantes sobre o rural ao longo de todo o último século e, de outro, a intensificação
de um longo e heterogêneo processo de racionalização da vida rural. Um processo
através do qual o rural, em vez de desaparecer, se integra por completo à dinâmica
mais ampla dos processos de desenvolvimento, por meio tanto da unificação dos di-
ferentes mercados (de trabalho, de produtos e serviços, e de bens simbólicos) como
também por meio da criação de instituições que regulam as formas de uso social des-
ses espaços, agora amalgamando interesses que têm por portadores sociais segmen-
tos originários também de outras esferas. Este artigo discute algumas dessas idéias,
que conformam a tese de doutorado do autor, a partir de uma análise da longa evo-
lução das relações rural–urbano, contribuindo assim para se pensar os processos de
desenvolvimento rural para além de um viés eminentemente normativo.
P A L A V R A S - C H A V E Desenvolvimento rural; questão agrária; sociolo-
gia rural.
A B S T R A C T Underlying the emergence of what is conventionally called “the
new rurality”, there is a shift in the social context and in the quality of the articulation
between its three defining and fundamental dimensions: rural-urban relations,
proximity to nature, and interpersonal ties. The broader implications of this change
are, on the one hand, the erosion of the agrarian paradigm that supported the
prevailing views of the rural throughout the last century and, on the other hand, the
intensification of a long-term, heterogeneous process of rationalization of rural life.
Along this process, instead of disappearing, the rural becomes wholy integrated into
the wider dynamics of development process, both by means of the unification of
different markets (for labor, products and services, and symbolics goods) and by the
creation of institutions that regulate the forms of social use of these spaces, which
today amalgamate interests whose social bearers are originate in non-rural spheres.
K E Y W O R D S Rural development; agrarian issue; rural sociology.
1 5 7
* Este artigo é uma ver-são modificada de umdos capítulos da tese dedoutorado do autor, Pa-radigmas do desenvolvi-mento rural em questão– Do agrário ao territo-rial. Cf. Favareto (2006).
INTRODUÇÃO
Desenvolvimento rural é algo que envolve a manifestação de um
processo de características mais gerais, o desenvolvimento, em
um domínio específico, nesse caso, o rural. Compreendê-lo sob
uma perspectiva não-normativa é algo que exige a adoção de dois
procedimentos. O primeiro é entender o desenvolvimento não
como desejo, utopia ou ilusão, pelos conteúdos expressos num
“dever ser” – como é tão comum em situações cotidianas ou mes-
mo em toda uma vertente da bibliografia sobre o assunto (Rist,
2001; Rivero, 2003) –, mas sim como evolução de configurações
determinadas, analisando as interdependências entre estruturas
sociais, meio ambiente e instituições a partir de um enfoque em
sua evolução de longo prazo (Favareto, 2006). O segundo é defi-
nir em que consiste a particularidade desse espaço específico que
é o rural e as decorrências disso para se pensar sua trajetória his-
tórica. Nos tempos recentes tornou-se quase um hábito falar-se
em “novo rural”, em “novas ruralidades”, muitas vezes sem um
esforço analítico em elucidar o que nisso é recente e o que é pro-
priamente permanente. Importa saber, sobretudo, qual a impli-
cação dessa nova situação, insinuada pela adjetivação crescente
vista na bibliografia sobre estudos rurais em termos de instân-
cias empíricas a serem mobilizadas e em termos de articulações
conceituais para entendê-las. Este é o problema a que se dedica
este artigo.
A hipótese que se pretende demonstrar pode ser sintetizada
numa tripla afirmação: 1) o momento atual da ruralidade repre-
senta uma nova etapa em sua longa evolução, na qual, em vez de
desaparecer ou diminuir inexoravelmente, os espaços rurais se in-
tegram por completo à dinâmica mais ampla dos processos de de-
senvolvimento, por meio tanto da unificação de diferentes mer-
cados (de trabalho, de bens e serviços, mas também de bens
simbólicos) como por meio da criação de instituições formais que
regulam as formas de uso social desses espaços; 2) na base da
emergência dessa nova etapa, ocorre um deslizamento no conteú-
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do social e na qualidade da articulação de três dimensões defini-
doras da ruralidade – as relações rural–urbano, a proximidade
com a natureza e os laços interpessoais; 3) um dos significados
maiores dessa mudança é a erosão do paradigma agrário que sus-
tentou as visões predominantes sobre o rural ao longo de todo o
último século.
Para demonstrar essa hipótese, o artigo está organizado em
duas seções principais. Inicialmente, é traçada uma pequena his-
tória da relação campo–cidade com o principal intuito de eviden-
ciar o movimento das contradições entre esses dois pólos. Muito
menos do que um tratamento exaustivo de tão amplo tema, o que
seria impossível nos limites deste texto, espera-se pôr em evidên-
cia os marcos que envolveram o processo de intensa urbanização
ocorrido destacadamente no último século e, junto disso, os si-
nais de permanência do rural nessa nova condição. Na seção se-
guinte, também sem a intenção de esgotar o rico painel de auto-
res que se dedicam às metamorfoses da ruralidade, o objetivo
consiste em apresentar argumentos em torno dos significados
dessa nova etapa. O que esses significados implicam em termos
de instâncias empíricas e de articulações conceituais é objeto de
tratamento na conclusão do artigo, em que são indicados tam-
bém alguns desdobramentos dessas idéias.
UMA PEQUENA HISTÓRIA DA RELAÇÃO CAMPO–CIDADE
A idéia de rural, ou de ruralidade, é similar a tantas outras que
só existem em relação direta com seu par oposto, tal como acon-
tece com o masculino e o feminino, ou com o sagrado e o pro-
fano. Para pensar os termos da relação entre os dois pólos, a
primeira dificuldade que se impõe é justamente sua própria de-
limitação.
Na economia rural, a tradição sempre foi pensar seu objeto
como algo relacionado à agricultura, no mais das vezes incorpo-
rando aspectos que vão além daqueles diretamente relacionados
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à produção primária, mas tendo por universo as famílias ou em-
presas ligadas a essa atividade. É evidente que isso teve durante
determinado período uma base histórica, uma correspondência
no real que lhe sustentava, mesmo que como visão distorcida ou
parcial: o peso determinante do setor agrícola na vida rural.
Na sociologia, a própria criação do ramo dedicado ao rural
veio apoiada na oposição comunidade–sociedade, restringindo
seu objeto ao estudo das várias dimensões da vida social dos pe-
quenos lugarejos, também com forte presença da agricultura na
determinação dos rumos dos indivíduos ou das economias locais,
e sempre pensando essa esfera com uma relativa autonomia e em
aberto contraste com a sociedade envolvente. A clássica definição
de Sorokin elenca os seguintes traços marcantes: as diferenças
ocupacionais entre os dois espaços, com maior peso das ativida-
des primárias no caso dos espaços rurais; as diferenças ambien-
tais, com maior dependência da natureza no rural; o tamanho da
população; a densidade demográfica; o grau de diferenciação so-
cial e de complexidade; as características de mobilidade social; e
as diferenças de sentido da migração.1 São traços que claramen-
te falam mais da condição rural nos anos 30 do século XX, quan-
do tal definição foi formulada, do que exatamente de caracteres
fundamentais da ruralidade.2
O estudo da história urbana, da história das cidades, por sua
vez, rendeu periodizações e tipologias interessantes, que partem
de alguma definição do que pode ser considerado, em perspecti-
va de evolução temporal, uma cidade. Paul Bairoch, num livro
clássico sobre o tema – De Jerico a México: villes et économie dans
l’histoire (Bairoch, apud Bairoch, 1992) –, elenca cinco critérios
mais comuns para se considerar um assentamento humano de-
terminado como uma cidade: existência de um artesanato em
tempo integral, indício de especialização de tarefas; existência de
fortificações por oposição a aldeia, que permanece aberta; tama-
nho e sobretudo densidade populacional; a estrutura urbana de
habitação (casas, ruas etc.); e a durabilidade da aglomeração em
oposição ao acampamento.
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1 Cf. Sorokin, Zimmer-man e Galpin (1986).
2 A respeito da constitui-ção desse ramo discipli-nar e das injunções so-ciais a que ele estavaexposto nesse momento,ver Martins (1986).
Bairoch adverte que, dependendo da região em questão, al-
guns desses critérios podem perder o sentido estruturante. De to-
dos, a presença do artesanato é o mais importante, por sua rela-
ção com a especialização e o que ela implica para a divisão do
trabalho e a necessidade e possibilidade da troca. Essa conceitua-
ção sustenta uma cronologia de longa duração da relação entre
campos e cidades. Nessa sua história econômica, o autor estabele-
ce uma periodização estruturada em quatro etapas: os primórdios
da urbanização (5000 a.C.); as sociedades tradicionais (de 2700
a.C. à Revolução Industrial); a Revolução Industrial (da Revolu-
ção Industrial ao pós-guerra); e finalmente o período marcado por
aquilo que ele chama de “inflação urbana no Terceiro Mundo”.
Já Max Weber, em A dominação não legítima (Tipologia das
cidades), havia adotado critérios de definição e classificação das
cidades que aliam aos critérios por ele mesmo definidos como
“estritamente econômicos”e “político-administrativos”, outros de
ordem “associativa” (Weber, 1998, p. 408-9). De acordo com essa
idéia, sob o aspecto estritamente econômico, a existência de uma
cidade implicava ter uma sede senhorial-territorial com centro,
para o qual deveriam convergir as demais atividades; a troca re-
gular de bens como componente essencial das atividades aquisi-
tivas; ser um lugar que comporte um mercado, onde a população
local satisfaz uma parte essencial de suas necessidades cotidianas.
Sob o aspecto político-administrativo, a cidade constituiu-se his-
toricamente como uma unidade entre mercado, como decorre das
funções descritas, e fortaleza, guarnição, sede administrativa de
uma determinada abrangência ou domínio. Nessas condições, as
cidades se caracterizaram fisicamente por serem assentamentos
fechados, em oposição à ocorrência de moradias isoladas, e por
serem grandes assentamentos humanos e não-pequenos, onde
predominam os laços de conhecimento pessoal. A esses dois as-
pectos, Weber agrega o elemento associativo, o que em sua teoria
significa mais do que a espontânea ou induzida combinação en-
tre indivíduos numa mesma empreitada ou organização, signifi-
ca mesmo o próprio processo de “associação”, de viver em socie-
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dade.3 E nisso Weber destaca a necessidade de existência de uma
“comunidade urbana”, da qualificação de cidadão com as liberda-
des e direitos que isso comporta, mas também com os constran-
gimentos nisso implicados, tal qual existiu originalmente somen-
te no Ocidente.
No pensamento do grande sociólogo alemão, e de maneira
coerente com seu método dos tipos ideais, em vez de uma crono-
logia tem-se uma tipologia, em que a ênfase no tipo de agentes
por detrás dos processos sociais predominantes dá origem às tí-
pico-ideais cidades de consumidores, cidades de produtores, ci-
dades mercantis e cidades de agricultores, com vários desses tipos
coexistindo em períodos históricos determinados.4
Um diálogo entre essas definições sugere que uma aborda-
gem da história das relações entre campo e cidade deveria combi-
nar a composição de critérios estruturais e funcionais com crité-
rios relacionais, através de um tratamento da longa duração da
contradição entre os dois pólos. É isso o que faz Georges Duby
(1973) analisando a situação européia e francesa em particular, até
chegar a uma tipologia da interação desses espaços. Ou Fernand
Braudel (1979/1995, 1985), que em sua obra clássica confere às ci-
dades – sempre tomadas em relação com os campos – o mesmo
estatuto dado à moeda na evolução histórica da Civilização mate-
rial e capitalismo: ambos são fundamentais para a ampliação das
trocas. E, como diz Braudel, “sans échange, pas de société”.
Nessa longa evolução, cabe perguntar, portanto, o que são os
traços distintivos em uma e outra época e, principalmente, o que
tal trajetória ensina a respeito das características fundamentais e
das possibilidades de desenvolvimento rural no mundo contem-
porâneo.
A divisão espacial do trabalho antes da Modernidade
A relação com o que muito mais tarde a humanidade viria a cha-
mar como campos e cidades começa pela própria essência do nas-
cimento do fenômeno urbano: a formação dos primeiros assen-
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4 Vale lembrar que os ti-pos ideais são um recur-so elaborado por Weberpara contornar os limitesdo pensamento indutivoem ciências sociais. Elesnunca existem enquantotal no mundo real. Sãoconstruções teóricas, ob-tidas a partir da acentua-ção de um ou mais doscaracteres fundamentaisdas realidades em ques-tão, e servem como umamedida aproximativa, apartir da qual pode ava-liar-se o quão próximoou distante determinadasituação está do tipoideal e, em seguida, in-terrogar as razões paratanto. Para um trata-mento mais pormenori-zado, ver Ringer (2004).
3 Ver, a respeito, a eluci-dativa explicação de Ga-briel Cohn na sua intro-dução à edição brasileirade Economia e sociedade(Weber, 1998).
tamentos de caráter mais permanente a partir da Revolução do
Neolítico, com a passagem da colheita, caça e pesca para a agri-
cultura e a criação. Não se trata de entrar aqui na polêmica que
já consumiu rios de tinta entre os especialistas no assunto sobre
quem determinou o quê na relação entre a sedentarização e a cria-
ção das práticas agrícolas, mas de destacar que o aumento da pro-
dução por superfície de terra teve conseqüências maiores para a
história posterior da humanidade na formação de excedentes in-
tercambiáveis e no adensamento populacional associado ao fim
do nomadismo.5
Para se ter uma idéia do alto grau de interdependência entre
essas duas variáveis, basta lembrar que, para a situação da Europa
no Pré-Neolítico, seria necessária uma área equivalente a “cinco
Suíças ou uma Grã-bretanha” para suportar uma cidade de mil
habitantes, o que tornaria impossível se estabelecer fluxos de troca
(Bairoch, 1992). Por isso não é de se espantar que raras foram as
regiões onde, havendo agricultura, não se formaram cidades no
curso dos milênios seguintes. Quanto mais volumosos os
excedentes agrícolas, quanto melhores as terras, mais precoce foi
o surgimento de assentamentos humanos importantes. Essa
dependência direta foi chamada por Bairoch de “dupla tirania, da
distância e da agricultura”. As possibilidades de desenvolvimento
eram totalmente presas à possibilidade de produção de bens de
subsistência através da atividade primária. E as eventuais trocas
estavam igualmente vinculadas ao êxito em se alcançar um ex-
cedente. Seu intercâmbio, por sua vez, estava igualmente atado à
extensão da distância entre os locais de origem dos dois pólos
envolvidos, já que não existiam condições de transporte e
conservação mínimas.
É evidente que a dinâmica que envolve esta relação entre
agricultura e formação das cidades é algo que implica intervalos
temporais bastante dilatados. Para dar apenas um exemplo,
as primeiras indicações de prática da agricultura datam de
8500-8000 a.C., no Oriente Médio, e as primeiras indicações de
cidades proto-urbanas nessa mesma região remontam a 7800 a.C.
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5 Há uma literatura rela-tivamente extensa a res-peito. Consultar, entreoutros, Boserup (1987),Mazoyer e Roudart(1997/2002),North (1981).
E é importante também sublinhar que essa mesma relação en-
gendrou padrões espaciais distintos em diferentes partes do
mundo. Novamente para ficar apenas nos limites de um exemplo,
por volta de 1700 a população mundial já estava na casa dos 700
milhões de pessoas, dos quais 60 milhões habitando as cidades.
Nesse momento da história, enquanto a Ásia tinha 33 cidades com
mais de 100 mil pessoas, a Europa contava com apenas 12. Mas
nesta última, contudo, o número de cidades com algo em torno
de 50 mil habitantes havia-se multiplicado enormemente desde o
início do milênio (Bairoch, 1992), denotando um padrão bem
diferente daquele experimentado no Oriente e revelador da
especificidade européia, traço tão destacado por Max Weber.
Segundo ele, foi justamente na Europa que a intensidade das ações
das cidades sobre os campos foi mais positiva para o conjunto da
economia, porque foi ali, naquele continente ou em uma parte
específica dele, que as cidades se constituíram em espaços de
associação menos vinculados às qualificações estamentais que
pesavam sobremaneira nos campos. Weber dedicou uma extensa
pesquisa materializada em vários de seus textos para explicar as
articulações entre idéias, economia e sociedade.6 Sua abordagem
é compreensiva justamente por não conferir uma determinação
única do material para as instituições ou vice-versa, e sim por ver
o real como resultado de composições históricas singulares.
Enquanto no Oriente as cidades se firmaram como extensão dos
domínios de castas e estamentos religiosos, no Ocidente elas
tomaram a forma de espaços de troca mais dinâmicos.
Esmiuçando o pensamento weberiano sobre essa especifici-
dade, Domingues (2000, p. 222) explica que
a cidade configurara-se como espaço da liberdade e da auto-
nomia precisamente porque floresceu em um momento ex-
tremamente peculiar no desenvolvimento histórico do Oci-
dente. Ela inserira-se em um contexto feudal, já em si
contratual, estabelecendo-se um contrato de liberdade entre
seus cidadãos – que formavam uma comunidade em todos os
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6 Para o debate aqui pro-posto são de extrema im-portância os seguintestextos de Weber: o capí-tulo intitulado “Socio-logia das religiões” e aseção Tipologia das cida-des, ambos em Eco-nomia e sociedade; e aparte III: Religião, dosEnsaios de sociologia,além d’A ética protestantee o “espírito” do capitalis-mo. Cf. respectivamenteWeber (1998; 1904/2004).Uma excelente apresen-tação dos textos sobre re-ligião, discutida a partirde sua importância parao processo de desencan-tamento e racionalizaçãodo mundo, pode ser en-contrada em Pierucci(2003).
planos, inclusive em termos de significação cultural e sentido
da ação: a defesa da liberdade compartilhada entre iguais. Ela
escapara, com isso, paralelamente à sua inserção na tessitura
contratual do mundo feudal, da lógica da dominação que o
estrutura. Ela constituiu-se em momento absolutamente sin-
gular da história universal: estabelecera uma autonomia ante
os estamentos dominantes no contexto societal global do feu-
dalismo, tornando a dominação tradicional “não legítima”. Ao
mesmo tempo, desabrochara em um momento anterior ao de-
senvolvimento do Estado patrimonial, o qual levou à sua su-
bordinação, à dominação racional-legal e, afinal, à perda da-
quela oportunidade histórica única de realização da liberdade.
O credo coletivo da urbe, por seu turno, tecera uma comu-
nhão entre os cidadãos sem que, por outro lado, se rompesse
a efetiva esfera de autonomia de cada indivíduo, malgrado a
profundidade já significativa da racionalização da conduta no
que tange às questões econômicas. Mais ainda, a ação social
não perdera seu sentido coletivo.
Este era o “ar das cidades que torna as pessoas livres”, ditado me-
dieval lembrado por Weber e assim explicado em termos socio-
lógicos.
Isso não é, contudo, um processo que se estabelece de ma-
neira homogênea mesmo no interior daquele continente. O nas-
cimento e a expansão das cidades no norte da Europa não se deu
tão cedo quanto no sul. Influenciaram nisso basicamente dois fa-
tores: o modelo de urbanização – já que em alguns lugares o cam-
pesinato representava um quarto, em outros metade do total de
habitantes –, e os sistemas de produção – nos Países Baixos, por
exemplo, a importação de cereais e a conseqüente diminuição da
demanda por mão-de-obra no campo favoreceu uma mais alta
taxa de urbanização (Bairoch, 1992). Essa condição repercutiu
também no padrão de organização espacial e econômica em am-
bas as regiões. No norte, as cidades se firmaram a partir da rela-
ção com seu entorno, seja na estruturação de uma malha de al-
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deias e pequenas cidades, seja nas interfaces mais estreitas entre
a produção agrícola e o artesanato (Braudel, 1979/1995).7 Nesse
segundo plano, segundo Duby (1973), a relação cidade–campo
se teria estabelecido por meio da disseminação de “lugares me-
diadores”, cuja posição, situada entre a vida citadina e a do villa-
ge, pela atividade de seus notáveis e de seus homens de lei, de seus
pequenos empresários, de seus comerciantes, viria a ser de im-
portância capital até a consolidação da Revolução Industrial. No
outro plano, típico, sobretudo, das regiões mediterrâneas, pro-
cessos históricos impuseram ao campo formas diferentes de so-
ciabilidade com influência urbana: os modos de produção, as re-
lações políticas tinham ares citadinos, mas tratava-se, segundo
suas palavras, de um urbanismo muito antigo. Nele, a posição
privilegiada das cidades litorâneas contribuiu para a moldagem
de uma relação com os campos através das instituições, da eco-
nomia e das estruturas sociais de uma maneira mais hierarqui-
zada e presidida pela possibilidade dos intercâmbios externos
através do comércio.
O rural na “era industrial”
Duby e Bairoch, ao menos, concordam que até o período da Re-
volução Industrial, apesar da antiga e crescente importância das
cidades, durante séculos o motor da história esteve no meio rural
e as cidades se desenvolveram como “parasitas tutelares” (Duby,
1973), expressão que, como sublinha Wanderley (2000), indica a
dependência urbana em relação ao dinamismo econômico vindo
do campo, e ao mesmo tempo um exercício pela cidade de fun-
ções de dominação sobre o meio rural. Com o tempo, o acúmu-
lo de poderes acabou por se inverter e as cidades se tornaram do-
nas de tudo e o campo verdadeiro servo e subordinado. A cidade
passa a reunir os fatores favoráveis à inovação: demanda efetiva,
possibilidade de contatos sociais que favorecem a circulação de
informações, existência de pessoas e coisas dedicadas ao trabalho
não-agrícola.
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7 Para um excelente pa-norama sobre o lugar dascidades na evolução dahistória ocidental se-gundo uma perspectivabraudeliana, consultar oinstigante texto de Mau-rice Aymard (1992).
Essa idéia é exatamente oposta ao argumento de Jane Jacobs
(1984), para quem, desde as primeiras ocorrências do fenômeno
urbano, teria ficado claro que a evolução dos espaços rurais de-
pendia das cidades, e não o contrário: as economias rurais seriam
sempre tributárias das cidades porque o desenvolvimento é um
processo de mudança intrínseca dentro de um contexto capaz de
suportá-lo, no qual a diversificação e a possibilidade da produção
e disseminação das inovações – ambos vistos como atributos es-
pecíficos das cidades – são determinantes.8
Os argumentos de Jacobs são em parte muito pertinentes,
mas as evidências históricas fazem a balança pender mais para o
lado de Bairoch e Duby. Ela acerta na sua ênfase na diversificação,
mas erra ao ver somente nas cidades o lugar possível para tanto.
Mais interessante do que procurar em qual dos pólos se encontra
a virtude imanente é compreender as múltiplas articulações pos-
síveis entre eles e os resultados que essas interações geram. É pos-
sível identificar situações anteriores ao período de mais intensa
urbanização em que o fluxo cidade–campo se estabeleceu de ma-
neira a gerar impactos negativos para o segundo pólo – como é o
caso emblemático da distribuição gratuita de cereais na Roma an-
tiga. E, inversamente, é possível da mesma maneira divisar situa-
ções em que as condições de maior dinamismo das cidades reper-
cutiram positivamente sobre os campos, por exemplo, através da
metalurgia e de melhoramentos na ferramentaria agrícola, no au-
mento da produtividade, no comércio e na introdução de novas
variedades. Da mesma forma, Mazoyer e Roudart (1997/2000)
mostram claramente como a longa evolução desde a Revolução
do Neolítico até a Revolução Industrial é pontuada por uma sé-
rie nada desprezível de inovações. Os autores não chegam a afir-
mar que boa parte delas teve origem fora das cidades. Mas, con-
siderando a frágil urbanização do mundo nesse longo período, de
um lado, e a riqueza e variedade dessas inovações através da his-
tória, de outro, isso é facilmente presumível.
O que ninguém certamente nega, enfim, é que, na longa
passagem do período feudal para o capitalismo, a cidade se tor-
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8 Uma análise pormeno-rizada do tema na obrade Jane Jacobs foi muitobem-feita por Karin Vec-chiatti (2003).
9 Cf., por exemplo, Wil-liams (1985).
na gradativamente o pólo dominante, e o faz rompendo pouco
a pouco as limitações de que falava Bairoch. Com a Revolução
Industrial e a urbanização, como foi dito, são solapadas as duas
marcas de todo o período anterior, de resto abaladas já desde o
século XI e mais intensamente desde o século XV: a “tirania da
distância e da agricultura”. Paradoxalmente, no entanto, as cida-
des não desempenharam um papel determinante no déclenche-
ment da Revolução Industrial na Inglaterra, nem nos primeiros
passos de sua transmissão espacial para o resto da Europa. Em-
bora as cidades não estivessem ausentes do processo de criação
de inovações técnicas importantes, um exame da localização das
empresas dos setores motores das primeiras técnicas importan-
tes mostra uma forte predominância, senão do meio puramente
rural, ao menos das regiões de cidades muito pequenas, no limi-
te do rural. Isso se devia ao tipo de energia disponível – já que a
primeira força motriz eram moinhos d’água e a segunda o car-
vão – e a algumas características essenciais da economia – níveis
salariais mais baixos no rural, custo mais baixo de terrenos e
construções nesses espaços e a ausência de regulamentação (Bai-
roch, 1992). As fábricas surgem inicialmente no meio dos cam-
pos, reunindo a justaposição de trabalhadores individuais, e só
depois vão para a cidade, onde se introduz uma mais sofisticada
divisão do trabalho.
Com o passar do tempo, a variável técnica assume maior pe-
so e, com isso, a situação inicial se inverte quase que por comple-
to. As cidades vão gradativamente se tornar o lugar da monetari-
zação das relações, da mobilidade social, da adequação entre oferta
e demanda de mão-de-obra qualificada, da concentração da ren-
da. Tanto é que, no século XVIII, as cidades vão aparecer no ima-
ginário da época associadas à riqueza e ao luxo. No século XIX, à
mobilidade e à formação das massas. E, mais tarde, no século XX,
ainda à mobilidade, ao futuro, mas agora em situações de estra-
nhamento típicas dos grandes e massificados ambientes urbanos.
O rural, por outro lado, vai sendo mais e mais associado ao pas-
sado, ao rústico e ao idílico, à tradição, quando não ao irracional.9
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Analisando as transformações demográficas posteriores à
Revolução Industrial, Bairoch nota que “algo acontece” no sécu-
lo XIX. No século XVIII, a taxa de urbanização européia ficou es-
tacionária, e os efeitos da industrialização, restritos ao Reino Uni-
do. Até então se vivia mais no campo que na cidade, esta última
crescendo principalmente graças à emigração de jovens. No sécu-
lo XIX, com a disseminação da Revolução Industrial pela Europa,
a taxa de urbanização salta de 16% a 40% no início do século XX.
Esse crescimento é interrompido nos anos 30 e no período da Se-
gunda Grande Guerra para voltar a acelerar em seguida. Mas, ago-
ra, não mais no mesmo ritmo do século anterior. Se até a Revo-
lução Industrial apenas uma ou duas cidades passavam da casa
do 1 milhão de habitantes, na Primeira Grande Guerra oito cida-
des passavam dos 2 milhões, e no pós-guerra Nova York sozinha
passa a casa dos 10 milhões, mais que toda a população urbana
da Europa e América do Norte há menos de 500 anos, mais pre-
cisamente por volta de 1600. Não há dúvida, portanto, do quão
intensa foi a urbanização do mundo ocidental ao longo dos últi-
mos dois séculos, a ponto de importantes teóricos passarem a fa-
lar em Revolução Urbana ou em Civilização Urbana (Lefebvre,
1970/2002).
Ao mesmo tempo, não há, contudo, indícios que apontem
para uma intensificação ainda maior ou sequer no mesmo ritmo
nos tempos atuais. Isto é, não se trata de questionar a dominação
urbana do mundo contemporâneo, mas sim de qualificá-la, para
então avaliar seu significado em relação aos momentos anterio-
res e, particularmente, para a permanência ou não do estatuto
empírico e teórico do pólo dominado, o rural. A conformação das
tendências futuras exige uma maior decantação das tendências
demográficas recentes, cujos sentidos atuais são bastante multi-
facetados, comportando distintos padrões de urbanização e de re-
lação entre as cidades e o espaço rural que lhes envolve. Por isso,
antes de passar ao exame do novo estatuto da ruralidade no mun-
do contemporâneo, cabe dedicar algumas linhas à especificidade
latino-americana.
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A peculiaridade latino-americana
No caso específico do chamado “Terceiro Mundo”, seria um erro
analisá-lo como mera extensão ou cópia imperfeita do que ocor-
re nos países do capitalismo avançado. Na América Latina, parti-
cularmente, há livros clássicos que tratam diretamente da pecu-
liaridade latino-americana: José Luis Romero (1976/2004) e, antes
dele, Sérgio Buarque de Holanda (1936/1995) já haviam mostrado
como as cidades se constituíram como porta de entrada e aliada
da colonização.
Numa conhecida passagem de Raízes do Brasil, há uma tipo-
logia das cidades latino-americanas contrapondo o racionalismo
das cidades hispânicas, fundadas sobre um conjunto de prescri-
ções que aparecem no desenho planejado, no traçado reto de suas
ruas e vias, e o barroquismo das cidades luso-brasileiras. Rome-
ro, sob direta influência da metodologia weberiana dos tipos
ideais, classifica cinco tipos de cidades latino-americanas, tipos
que se sucedem e cuja diferenciação é dada pela classe ou grupo
social dominante. A seqüência histórica tem início com o ciclo
das fundações que trouxe a constituição das cidades com suas fun-
ções preestabelecidas pela Coroa, com seus grupos urbanos ori-
ginários e sua mentalidade fundadora, a mentalidade expansio-
nista européia. Nas belas palavras de Romero (1979/2004, p. 96-7),
[...] posicionados em frente ao lugar escolhido, com a mão
apertada na empunhadura da espada, o olhar fixo na cruz e
os pensamentos direcionados para as riquezas que a aventura
lhes proporcionaria, os homens do grupo fundador da cida-
de que já tinha nome, mas da qual nada existia sobre o solo,
deveriam experimentar a sensação de quem espera o prodígio
da criação surgida do nada. Eram europeus em um continen-
te desconhecido, e a criação estava prefigurada em suas men-
tes. Porque esta façanha não era, na verdade, senão um passo
a mais nessa ambiciosa aventura européia de expandir-se, ini-
ciada quatro séculos antes. A terra que agora ocupavam – uma
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terra real com rios e planícies, lagos e vulcões – deveria ser
uma extensão da terra que deixaram no dia em que embarca-
ram em seus navios. [...] A mentalidade fundadora foi a da ex-
pansão européia conduzida por essa certeza absoluta e inques-
tionável da posse da verdade. A verdade cristã não significava
somente uma fé religiosa: era, a rigor, a expressão radical de
um mundo cultural. E quando o conquistador trabalhava em
nome dessa cultura, não só afirmava o sistema de interesses
que ela representava como também o conjunto de meios ins-
trumentais e de técnicas que a cultura burguesa havia acres-
centado à velha tradição feudo-cristã. [...] Os grupos funda-
dores expressavam essa interpenetração feudo-burguesa que
na península ia ajustando as relações entre as classes e tam-
bém entre os fins e os meios. [...] Graças àquela certeza, a men-
talidade expansionista européia havia concebido o projeto de
instrumentalizar o mundo não cristão de acordo com seus
próprios interesses, e afirmou-se nessa convicção cada vez
mais, à medida que os meios iam aumentando suas possibili-
dades: à maior superioridade técnica correspondeu maior cer-
teza da validade de seus fins.
Essa passagem traz, não uma, mas várias significações impor-
tantes. Entre muitas, ela fala da forma de apropriação do espaço
e dos recursos naturais, do tipo de relação entre colonizadores e
colonizados, da extensão que o Novo Mundo representava em re-
lação ao imaginário europeu da época. Fala, em suma, do senti-
do da colonização. Da colonização como instituição, do que ela
representava para as formas de interpretação da relação com o
novo espaço, seus homens e suas coisas. Combinavam-se assim
atitudes senhoriais e atitudes burguesas, por razões que remon-
tam às necessidades de colaboração entre esses dois segmentos da
sociedade européia do período da colonização.
Os cinco tipos que se sucedem desde então são, sempre segun-
do a tipologia de Romero, as cidades fidalgas, as cidades “criollas”,
as cidades patrícias, as cidades burguesas e as cidades massifica-
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das, finalmente, no século XX. Nelas, a cidade que se desenvolve
em razão do comércio vai gradativamente gerando as elites go-
vernantes da época dos processos de independência e, posterior-
mente, os grupos integrados e dependentes do capital internacio-
nal do período de mais intensa industrialização.
No Brasil as cidades de início não alcançaram a mesma im-
portância que nos demais países latino-americanos. É somente
nos meados do século XVIII que há um maior fortalecimento dos
grupos urbanos e das funções intermediárias das cidades. Até en-
tão a sociedade agrária havia imposto sua imagem de realidade.
Novamente nas palavras de Romero (1979/2004),
[...] foram os senhores da terra que esboçaram o primeiro per-
fil do Brasil colonial, ao passo que as populações urbanas –
artesãos e pequenos funcionários, clérigos e pequenos co-
merciantes – foram suplantadas. Até o século XIX, só algumas
cidades – Salvador da Bahia e, sobretudo, a Recife holande-
sa – insinuaram a sua capacidade de influir na poderosa aris-
tocracia fundiária, que amava a vida rural e residia em meio
a suas propriedades.
Isso significava um sentido totalmente diferente para a rela-
ção entre as cidades e seu entorno. Enquanto a Espanha havia ima-
ginado seu império colonial como uma rede de cidades, o domí-
nio português se limitava à exploração econômica. Na raiz dessa
diferença, segundo Romero, estava a experiência de choque com
os muçulmanos, que levou durante bom tempo à ocupação de
parte da Península Ibérica, o que culturalmente se traduzia num
medo terrível da possibilidade da mestiçagem e da aculturação.
Assim, a cidade “racional” da América hispânica era militarizada
e disciplinada para evitar tais riscos, enquanto na América luso-
brasileira as cidades se fundaram por princípios mais pragmáti-
cos. Essa prevalência do rural como centro ideológico do mundo
luso-brasileiro permaneceu até o momento em que as mudanças
acentuadas do capitalismo industrial instituem, sobretudo a par-
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tir dos fins do século XIX, uma sociedade crescentemente urbani-
zada. É assim que a “rede de latifúndios” vai sendo substituída por
uma “rede de cidades”, de maneira similar ao que acontecera na
América hispânica.
O fundamental a destacar é que, tanto em Romero como em
Buarque de Holanda, as cidades e o processo de urbanização, suas
relações com o mundo rural, são muito mais que realidades físi-
cas, são materializações de formas de vida e de mentalidade. Nos
dois autores esse processo de integração leva a uma espécie de
triunfo do mundo urbano, mas numa síntese muito peculiar. Em
Buarque de Holanda, a urbanização tragaria pouco a pouco o “ho-
mem cordial”, criação do mundo rural, agregado, isolado, depen-
dente, incorporando-o como uma espécie de portador do passa-
do agrário. Em Romero, embora haja a constante presença dos
pólos rural e urbano, é neste último que reside o foco dinâmico
da história.
Mas, apesar de tudo isso, também nos dois autores há uma
constante interpenetração entre os dois pólos: na forma das he-
ranças ibéricas que irão traduzir-se no viés patrimonial e patriar-
calista das instituições, segundo o autor brasileiro, na forma de
ideologias contrapostas e que interagem dialeticamente, embora
sempre presididas pelo pólo urbano, segundo o autor argentino.10
Já para outro autor brasileiro clássico, Gilberto Freire, o peso das
polaridades seria simplesmente inverso: as raízes escravistas ori-
ginárias da oposição entre Casa-grande e senzala se teriam esten-
dido para o mundo urbano e se materializado na antítese dos So-
brados e mocambos, segundo livro de sua trilogia, e tenderiam
mesmo a se perpetuar, em Jazigos e covas rasas, título planejado
para o terceiro livro, que nunca foi publicado.11 Não é de outra
coisa que fala Raymundo Faoro em Os donos do poder ou, no ca-
so das estruturas econômicas, as principais obras de Celso Furta-
do e de Caio Prado Jr.12
Essa diluição e persistência do rural no urbano é uma pri-
meira característica marcante da América Latina e do Brasil em
particular. Por certo também na Europa e EUA, mas ali as ruptu-
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10 Um analista da obrade Romero, Gorelik, cita-do na apresentação deseu livro, chega a quali-ficar a postura do autorargentino como umaespécie de “otimismo ur-bano”: “[...] o campo se-ria, assim, para o Rome-ro que lê Sarmiento, abarbárie da necessidadee da liberdade, que comopossibilidade só pode seaninhar na cidade” (San-tos, 2004, p. 18).11 Em seu lugar, e numasubstituição sintomáti-ca, Freire publicou Or-dem e progresso. Ao queparece, Freire não aban-donou a intenção de pu-blicar Jazigos e covas ra-sas, mas esse projeto foiinterrompido com suamorte.12 Num Colóquio sobre“Villes et campagnes”realizado nos anos 50 naFrança, Fernand Braudelchamava a atenção doshistoriadores e geógrafosfranceses sobre a entãorecente produção brasi-leira e sua habilidade emmostrar as permanên-cias do mundo agráriona urbanização crescen-te. Não é mero acaso ofato de ser este um traçofundamental nas trêsobras que Antonio Can-dido considerou seremas leituras indispensáveissobre a formação do Bra-sil: Casa-grande e senzala,Raízes do Brasil e Forma-ção do Brasil contempo-râneo.
13 Para se ter uma idéiada proporção e magni-tude desses números,entre 1945 e 1970 o cres-cimento foi de 4,5% a.a.,enquanto na Europaentre 1880 e 1905 essepercentual foi de 2% a.a.Detalhe: com a Chinapuxando a média parabaixo (Bairoch, 1992).
ras introduzidas em passagens históricas fundadoras da moder-
nidade nessas nações em alguma medida “resolveu” essa herança,
seja através do protagonismo direto que as populações campone-
sas tiveram em tais eventos, do qual a Revolução Francesa talvez
seja o maior exemplo, seja ainda pela diminuição da hierarquia
social que pesa sobre os habitantes dos dois espaços, o urbano e
o rural, ao longo de toda a história recente daqueles países. Tra-
ta-se, na América Latina, de uma continuidade com viés marca-
damente negativo nas formas de representação social, como he-
rança agrária, patriarcal, escravista, ou como lugar por excelência
da dominação tradicional, da pobreza e da subordinação.
Outra característica é a velocidade e o formato em que se deu
o fenômeno da urbanização. A partir das décadas de 20 e 30 do
século XX, acontece uma progressão sem precedentes na história.
No chamado “Terceiro Mundo”, em 1930, 150 milhões de pessoas
já viviam nas cidades. Mas, pouco mais de meio século depois, es-
se número havia sido multiplicado por dez e chegado próximo de
1,5 bilhão de pessoas em áreas urbanas.13 Salvo exceções, esse au-
mento da população – impulsionado pela introdução de técnicas
médicas e sanitárias ocidentais, pelo descarte da mão-de-obra nos
campos, pela extensão rápida da educação no meio rural criando
um fosso entre duas gerações e por um intenso êxodo rural mo-
tivado pela busca por salários mais altos nas cidades (Bairoch,
1992) – se fez com frágil desenvolvimento econômico, com uma
débil industrialização e, mais grave, sem proporcional aumento
da produtividade agrícola, levando a uma hipertrofia urbana, a
uma superurbanização.
A terceira característica marcante da urbanização do “Tercei-
ro Mundo”, por fim, é a concentração nas cidades muito grandes.
Em 1930, quase um terço da população já estava em cidades de
500 mil habitantes, enquanto na Europa, continente de urbaniza-
ção muito mais antiga, esse percentual era de 20%. Nesse mesmo
momento seis cidades já tinham mais de 1 milhão de habitantes,
número que salta para 20 em 1950 e para 130 em 1980. E, em
1990, oito cidades já estavam com 7 a 10 milhões de habitantes.
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Por tudo isso não é exagero chamar esse processo de “inflação ur-
bana do Terceiro Mundo”; e, como tal, suas conseqüências prin-
cipais não são das mais virtuosas: criou-se uma situação de deficit
alimentar, quando às vésperas da Segunda Grande Guerra havia
excedente, criou-se um deficit de empregos urbanos, e ocorreu
uma hipertrofia do setor terciário (Bairoch, 1992).
Não é de estranhar, portanto, a diferença entre o rural e o ur-
bano nos países do capitalismo avançado e nos países da Améri-
ca Latina, Ásia e África. O fenômeno urbano aqui se constituiu
sobre estruturas sociais e instituições outras porque os agentes e
os processos históricos se compuseram de maneira diferente. A
herança colonial e escravista, associada à hipertrofia urbana e à
vertigem resultante da velocidade com que ela se deu é, a um só
tempo, resultado e causa de um estilo de urbanização que se fez
sem a criação de classes e lugares mediadores, a exemplo daquilo
que os villages e seus respectivos atores representaram na Europa
Ocidental. Por aqui, as técnicas agrícolas, que tiveram nas cidades
uma importante fonte de irradiação, foram importadas dos paí-
ses do capitalismo avançado. O padrão de urbanização, apoiado
em cidades muito grandes, exigiu grandes volumes de importa-
ções, com impactos para o balanço econômico. A monetarização
da vida social significou endividamento e não-liberação dos laços
servis. E a complexidade das técnicas e a integração econômica
mundial tornaram as trocas entre países e regiões mais importan-
tes que as trocas entre cidade e campo. Em síntese, na América
Latina e no restante do chamado Terceiro Mundo, diferente da
Europa, a urbanização tal como se deu foi mais um fator de sub-
desenvolvimento, e não propriamente um trunfo ao desenvolvi-
mento (Bairoch, 1992). Além disso, constituiu-se uma verdadei-
ra ideologia urbana que, em última análise, se traduz como um
“não-lugar” do rural na modernidade, interditando assim a pos-
sibilidade de que seja legítimo preconizar que esses amplos espa-
ços possam ser objeto de investimentos e de expectativas futuras.
As tipologias de Romero e Buarque de Holanda são excelen-
tes para análises de longo prazo, como a aqui empreendida, pois
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sinalizam o sentido mais geral da evolução, os caracteres mais for-
tes que permanecem após sucessivas etapas. Mas trazem consigo
uma dificuldade, que é não permitir uma leitura da heterogenei-
dade interna dessas grandes unidades como países ou continen-
tes num dado momento histórico. Na Europa já há uma tradição
estabelecida em explorar os contrastes espaciais das relações en-
tre cidades e campos, como foi possível observar através das obras
de Braudel, Duby, Bairoch. E nos anos mais recentes vários estu-
dos acadêmicos ou patrocinados pela União Européia ou órgãos
de governo têm elaborado interessantes tipologias e estudos
comparativos.14 Na América Latina, ou ao menos no Brasil, sim-
plesmente não há trabalhos consagrados que explorem as relações
entre o rural e o urbano tendo por objeto o mapeamento e clas-
sificação de um número razoável de realidades. Só muito recen-
temente, nos últimos dez anos, têm surgido programas de pesqui-
sa explorando esse tema sob diferentes enfoques.15
Tanto os achados desses programas de pesquisa como a as-
censão mesmo dos interesses pelas relações entre o rural e o ur-
bano são resultado de um momento particular da história desses
espaços, cujo significado pode ser o fim ou no mínimo um arre-
fecimento da urbanização intensa experimentada até então.
UMA NOVA ETAPA?
Nos anos 70 do século XX, pela primeira vez desde a Revolução
Industrial a taxa de urbanização dos países do capitalismo avan-
çado fica estagnada. Passa-se a falar até em urbanização dos cam-
pos, o que poderia significar tanto uma contradição em termos
como o sinal de dissolução de uma oposição. Os processos sociais
que levam a essa diminuição da distância entre os dois espaços
estão na raiz de uma interrogação formulada por Paul Bairoch:
Trata-se de uma nova etapa? Isto é, fenômenos antes concernen-
tes à urbanização atingem um outro universo sem, no entanto,
fagocitá-lo? Ou esse processo sinaliza uma homogeneização en-
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14 Uma leitura crítica dealguns desses programasde pesquisa pode ser en-contrada em Favareto(2006), especialmenteno capítulo 3.
15 Cf. Projeto CUT,Contag (1998), IBGE/IPEA, Nesur-IE/Unicamp(1999),Abramovay (2002).
tre os dois pólos forte o suficiente para apagar suas distinções
substantivas?
Estas foram as questões que permearam os debates que se es-
tabeleceram, a rigor, já desde os anos 50, mas mais aprofundada-
mente desde os 70, na Europa. Uma boa síntese pode ser encon-
trada num emblemático número da revista Études Rurales,
organizado por Georges Duby, que trazia por título L’urbanisation
des campagnes.Reunindo textos de alguns dos mais influentes pes-
quisadores franceses da época, a publicação trazia vários artigos
que atestavam e analisavam as características e implicações desse
fenômeno de diluição das assimetrias entre o urbano e o rural na
Europa, e na França em particular. O texto de Julliard (1973), por
exemplo, já apresentava uma tipologia mais complexa, com uma
abertura para diferentes composições entre cidades e campos: ci-
dades rentistas do solo, amparadas em uma relação de parasita-
gem com o meio rural; cidades que cresceram sem laços orgâni-
cos com o meio rural, envolvendo-o, mas esterelizando-o em vez
de fecundá-lo; cidades que associaram sem ruptura o campo a seu
próprio desenvolvimento. O que é quase consensual desde então
é que as transformações econômicas, o processo de modernização
da produção e a crescente integração dos mercados levaram, ao
fim de um tipo específico de ruralidade, aquela que já foi chama-
da por Mendras de “sociedades camponesas”.
Três características importantes desempenharam papel-cha-
ve nessa nova situação. Primeiro, o compromisso institucional
que se criou, historicamente, em torno da garantia da paridade
econômica e social entre os agricultores e os demais setores e que
é muito bem-retratada em Jollivet e Gervais (1976). Isso criou
condições para que se aproximassem as condições de vida em am-
bos os espaços, contribuindo tanto para a vitalidade econômica
do meio rural como para regular o impulso ao êxodo, que até en-
tão era tão forte. Segundo, e em parte motivado pelo elemento
anterior, o padrão de crescimento demográfico que passa a vigo-
rar não aponta mais para o esvaziamento dos campos, mas até pa-
ra a situação inversa, para a atração populacional desses espaços,
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inicialmente através do dinamismo gerado pela equalização das
rendas e, num segundo momento, com o avanço da infra-estru-
tura e das possibilidades de comunicação, com novos habitantes,
sobretudo profissionais liberais e idosos em busca de amenidades
e lazer. Terceiro, a descentralização econômica e política que pro-
piciou tanto o surgimento de novas oportunidades de trabalho
como também a viabilização de equipamentos sociais adequados
a uma população com exigência crescente, esses dois últimos as-
pectos mais destacados por Kayser (1972, 1990).
São evidências empíricas que, sem dúvida, permitiriam res-
ponder positivamente à pergunta de Bairoch: os tempos atuais re-
presentam, por certo, um novo momento, uma nova etapa. Nes-
sa condição, muda a estrutura e a dinâmica das relações entre os
campos e as cidades. A primazia marcante das atividades primá-
rias – agricultura, pecuária, mineração, silvicultura – cede espaço
a uma maior diversificação, com uma crescente heterogeneização
das economias rurais, em que se destaca o crescimento cada vez
maior do setor de serviços. Com isso, mudam as vantagens com-
parativas do rural nas possibilidades de captação das rendas ur-
banas. A localização, a fertilidade e o preço da terra passam a di-
vidir importância com a acessibilidade, a paisagem. Da mesma
forma, a composição do perfil populacional e as tendências de-
mográficas típicas do período anterior são substituídas por um
forte arrefecimento, ou mesmo uma inversão nos fluxos demo-
gráficos. São outros agentes, novas variáveis introduzidas ou tor-
nadas mais relevantes, novos interesses, uma nova estrutura de
oposições e identidades que sustentam a especificidade dessa no-
va configuração da relação rural–urbano. E, para completar, mu-
da também o ambiente institucional que orienta a regulação das
formas de uso social dos recursos naturais. Se é verdade que des-
de a Antigüidade já há leis e sanções que dão os parâmetros para
as formas de apropriação da natureza, o que ocorre a partir de en-
tão é uma mudança também nesse domínio do mundo social: o
acesso à terra, a gestão de bacias hidrográficas, a conservação de
florestas e rios e a valorização da paisagem e da biodiversidade
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passam a ser novos aspectos incorporados aos anteriores. O que
é novo, além da extensão de domínios regulados cada vez mais
por instituições formais, é a forma como isso se dá, menos orien-
tada por decisões do tipo comando e controle, e mais por com-
promissos institucionais. Em outros termos, muda também o es-
tatuto da dominação.16
Mas, pelo ângulo teórico, qual o estatuto dessa nova situa-
ção? Duas são as perguntas, na verdade. Primeiro, é preciso es-
clarecer se a inauguração desse novo momento, dessa passagem,
localizada aproximadamente no último quarto do século XX,
trouxe consigo um fim do rural, se, com o “fim das sociedades
camponesas” de que falava Jollivet (talvez fosse melhor falar em
“sociedades agrárias”), acaba também a relevância histórica e
explicativa da ruralidade. Segundo, caso a resposta à questão an-
terior seja negativa e ainda haja conteúdo compreensivo na dis-
tinção entre o rural e o urbano, cabe interrogar então qual é seu
sentido.
Em dois artigos recentes, Veiga (2004, 2005) vê nas idéias de
Henri Lefebvre e de Bernard Kayser as melhores expressões para
as duas respostas extremas à primeira dessas perguntas. Por isso
vale à pena vê-las um pouco mais de perto.
Lefebvre dedicou parte expressiva de sua obra à produção so-
cial do espaço, inicialmente com uma ênfase em estudos rurais,
que se desloca posteriormente para os fenômenos relativos à ur-
banização. No seu influente livro A revolução urbana, de 1970, ele
a designa como um amplo conjunto de transformações que faria
as sociedades passarem do período em que predominaram ques-
tões típicas da sociedade industrial – como emprego, crescimen-
to e industrialização – para outras, nas quais a problemática da
sociedade urbana ganharia relevo e preeminência. Nessa socieda-
de urbana, típica do período pós-industrial, a urbanização com-
pleta – “hoje virtual, amanhã real”– envolveria e dominaria o con-
junto de esferas do mundo existente, e o destino dos espaços rurais
seria, portanto, a diluição de seus caracteres substantivos nesse
movimento envolvente da sociedade urbana.17
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16 Vários trabalhos abor-dam isolada ou combi-nadamente essas mudan-ças. Ver, entre outros,Kayser (1990, 1993), Vei-ga (1998), Wanderley(2000),Abramovay (2003).
17 Cf. Lefebvre (1970/2002).
18 No Brasil, ver porexemplo os trabalhos deMonte-Mor (2003). Umaapresentação mais cir-cunstanciada e porme-norizada das idéias deLefebvre pode ser encon-trada também em Mar-tins (1996).
Apenas quatro anos mais tarde, o mesmo autor publicou
outro influente livro, The production of space, em que a hipóte-
se da urbanização completa não tem mais o mesmo caráter de
eixo argumentativo. Esse possível recuo, se não de conteúdo, ao
menos de ênfase, pode ser resultado tanto de uma melhor pon-
deração de Lefebvre – que admitia já no livro de 1970 que tal
idéia deveria ser considerada como hipótese, a fim de não se con-
fundir o categórico com o problemático, o especulativo com o
empiricamente demonstrável –, ou pode ter sido também resul-
tado da constatação, sublinhada por autores igualmente impor-
tantes da época, de sinais de vitalidade ainda emitidos pelo meio
rural.
Essa ambigüidade nos desdobramentos da obra de Lefebvre
não quer dizer que ela tenha sido totalmente deixada de lado, nem
por seu formulador, nem muito menos por seguidores de suas
idéias em vários ramos do conhecimento.18 Mas o fato é que não
há, nesse autor e nem na linhagem que ele inaugura, uma demons-
tração do esvaziamento do conteúdo social e explicativo do rural.
Tal afirmação vem sempre embasada em uma tautologia: a urba-
nização generalizada tem como devir a sociedade urbana, à dinâ-
mica da qual nada escapa.
No extremo oposto, Bernard Kayser lançou suas idéias sobre
esse problema em 1972, mas elas foram mais bem sistematizadas
no livro La renaissance rurale, de 1990. Embora se apoiando so-
bretudo em dados demográficos, Kayser, diferente de Lefebvre, re-
portou-se a situações muito concretas que estariam ocorrendo em
diferentes espaços dos EUA e do Velho Continente e que aponta-
vam para uma revitalização de áreas antes condenadas à estagna-
ção e ao esvaziamento. Um renascimento que teria em sua base
os efeitos do “enriquecimento do conjunto da sociedade”, passí-
vel de percepção através de fenômenos como a atração popula-
cional, o crescimento de atividades não-agrícolas, as iniciativas de
desenvolvimento local e uma mudança no perfil demográfico.
Com isso, em vez de desaparecer, os campos pareciam renascer,
agora integrados complementarmente às cidades: os campos, co-
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mo lugar da liberdade e da beleza, as cidades, como centros de la-
zer e de trabalho (Hervieu e Viard, 1996/2001).
Ao discutir os argumentos desses dois autores, Veiga (2004,
2005) oferece uma terceira hipótese: as mudanças por que vem
passando o rural contemporâneo não dão lugar nem ao fim do
rural, como em Lefebvre, nem a um renascimento, como em Kay-
ser, mas diferente de ambos, ensejam a emergência de uma nova
ruralidade, mesmo termo aliás utilizado por Wanderley (2000)
em um conhecido artigo sobre o tema.
Para contestar os argumentos de Lefebvre, Veiga procede ini-
cialmente a um exercício de demonstração da permanência dos
traços distintivos da ruralidade no mundo contemporâneo, con-
centrando-se, num primeiro instante, no grau de artificialização
dos ecossistemas como critério fundamental de distinção do ru-
ral e do urbano. Ali, pode-se constatar que 50% da área do globo
terrestre, excetuando a Antártida, permanece “praticamente inal-
teradas”, contra 24% “parcialmente alterados” e 22% “fortemen-
te artificializados”. Nessa última categoria, que inclui as áreas com
agropecuária intensiva e assentamentos humanos nos quais foi re-
movida a vegetação primária e onde há desertificação ou outras
formas de degradação permanente, apenas a Europa apresenta um
percentual de área mais expressivo, de 65%. O segundo continen-
te mais artificializado é a Ásia, onde esse número cai para 29%. E
na América do Sul essa fração é de meros 12%. A partir daí Vei-
ga concentra sua análise no continente europeu, por considerar
que o debate sobre a permanência ou desaparecimento da rura-
lidade deve ter por objeto situações em que a urbanização foi mais
longe. Além disso, seria preciso valer-se de critérios não estrita-
mente ecológicos, como aquele expresso no grau de artificializa-
ção dos ecossistemas. Portanto, utilizando então dados da OCDE,
produzidos a partir de um tableau de indicadores demográficos,
ambientais e socioeconômicos, Veiga mostra que nada menos do
que 28% da população européia vive em regiões predominante-
mente rurais, enquanto 40% habitam as regiões predominante-
mente urbanas e 32%, as regiões relativamente rurais. Esses da-
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dos seriam suficientes para, no mínimo, mostrar que não se che-
gou ao grau completo de urbanização de que fala Lefebvre, mas
não seriam suficientes para anular sua hipótese. Os partidários de
suas idéias poderiam argumentar que tais sociedades caminham
para tal padrão, o que já seria possível vislumbrar a partir dos da-
dos de países como Reino Unido, Bélgica ou Holanda, onde as re-
giões predominantemente rurais praticamente deixaram de exis-
tir. No entanto, a análise tendencial dos mesmos dados mostra
uma situação diferente. Quem mais atrai população, aumentan-
do assim seu peso relativo, é a categoria intermediária, formada
pelos espaços “significativamente rurais”. Tanto o “rural profun-
do” como as regiões metropolitanas ou mais densamente urba-
nizadas apresentam declínio. Não há, portanto, evidências empí-
ricas que confirmem o movimento apontado por Lefebvre e
sinalizem um fim do rural.
Quanto ao argumento de Kayser, o estudo de Veiga apresen-
ta uma concordância inicial no que diz respeito à permanência do
rural, mas diverge quando se trata de qualificar seu estatuto nos
tempos atuais. Tendo por base um significativo rol de pesquisas
sobre o rural europeu, Veiga mostra como tal situação não resul-
ta de um impulso que faz voltar os fundamentos da ruralidade pre-
térita, ainda que traços dela persistam e coexistam no novo mo-
mento. Trata-se, sim, de uma nova ruralidade, que se apresenta
metamorfoseada. A novidade está no fato de que “nunca houve so-
ciedades tão opulentas quanto as que hoje tanto estão valorizan-
do sua relação com a natureza”, e isso não somente no terreno das
preocupações com os problemas ambientais, como as ameaças à
biodiversidade ou o aquecimento global, mas também no que diz
respeito à liberdade conquistada com a maior mobilidade e com
o enriquecimento da sociedade e o que isso permite em termos de
aproveitamento das amenidades naturais, seja através da consti-
tuição de novas residências em áreas rurais, seja através das ativi-
dades turísticas. Mesmo as atividades produtivas que não se
apóiam diretamente em novas formas, o uso social dos recursos
naturais guardam com eles estreita correspondências: em inúme-
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ros casos é possível constatar uma descentralização da atividade
industrial, motivada tanto pela capacidade de certas áreas rurais
em atrair potenciais empreendedores devido às características am-
bientais de residência, como pelo dinamismo empreendedor vol-
tado para mercados emergentes e que explora as vantagens com-
petitivas derivadas das melhores condições de vida e de trabalho
dessas mesmas áreas (North e Smallborne apud Veiga, 2004).
Os dados da OCDE (1996), utilizados por Veiga, mostram
mesmo que, nas regiões predominantemente rurais, é raro encon-
trar algum país onde o percentual de ocupados na agricultura su-
pere a casa dos 30%, o que ocorre somente na Islândia e na Gré-
cia. Na maioria, é o setor de serviços que responde pela maior
fatia, chegando a 88% na República Tcheca e, na maior parte dos
casos, situando-se acima do percentual de 50%. Em suma, a vita-
lidade do rural não se resume mais aos campos, como lugar de
realização de atividades primárias, mas a uma trama complexa
envolvendo os campos e suas cidades, com destaque para uma in-
tegração intersetorial da economia e para uma emergência da va-
riável ambiental como elemento-chave. Tudo isso levou Veiga
(2005) a afirmar, em consonância com outros estudos como Wan-
derley (2000) e Abramovay (2003), que se trata efetivamente de
uma nova ruralidade. E que, segundo o autor, se expressa em três
vetores: os desdobramentos paisagísticos dos esforços de conser-
vação da biodiversidade, o aproveitamento econômico das decor-
rentes amenidades naturais através de um leque de atividades que
costumam ser tratadas no âmbito do turismo e a crescente neces-
sidade de utilização de fontes renováveis de energia disponíveis
nesses espaços rurais.
CONCLUSÃO
A longa evolução da relação entre campo e cidade mostra clara-
mente a permanência do fenômeno rural no mundo contempo-
râneo, mesmo no momento e nos países em que a urbanização
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foi mais intensa. A oposição campo–cidade se desloca para a con-
tradição rural–urbano. Enquanto a primeira diz respeito ao con-
traste entre espaços, sendo os campos o lugar de realização de ati-
vidades predominantemente primárias, destacadamente a
agricultura, na segunda o estatuto fundante da distinção, deslo-
ca-se para o grau de artificialização desses espaços e seus impac-
tos para os modos de vida, exigindo assim uma abordagem capaz
de combinar critérios ecológicos com outros de caráter social e
econômico. O rural mostra-se não mais uma categoria passível de
ser apreendida em termos setoriais, e sim territoriais. Duas são as
implicações principais disso em termos de instâncias empíricas a
serem mobilizadas em esforços de compreensão e de articulações
conceituais.
Primeiro, os processos sociais subjacentes àquilo que a lite-
ratura das ciências sociais aplicadas vem chamando por nova ru-
ralidade trouxeram consigo uma erosão das bases empíricas que
estavam na raiz do paradigma clássico de explicação do desenvol-
vimento rural, em cujo cerne estava sua redução aos aspectos agrí-
colas e agrários, ou, em outros termos, à sua dimensão setorial. A
relação entre sociedade e natureza, que encerra um primeiro tra-
ço distintivo da ruralidade, é objeto de um deslocamento em que
as formas de uso social dos recursos naturais passam do privilé-
gio à produção de bens primários a uma multiplicidade de pos-
sibilidades em que se destacam aquelas relativas à valorização e
ao aproveitamento das amenidades naturais, à conservação da
biodiversidade e à utilização de fontes renováveis de energia. As
relações de proximidade, segundo traço distintivo da ruralidade,
também são alvo de um deslocamento: a relativa homogeneida-
de que marcava as comunidades rurais dá lugar a uma crescente
heterogeneização e um certo esgarçamento dos laços de solidarie-
dade que eram a marca da ruralidade pretérita. A relação com as
cidades, último traço distintivo, deixa de se basear na exportação
de produtos primários para dar origem a tramas territoriais com-
plexas e multifacetadas, com diferentes mecanismos de composi-
ção entre os dois pólos, agora baseados em novas formas de inte-
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1 8 4
gração entre os mercados de trabalho, de produtos físicos e ser-
viços e também de bens simbólicos. De exportadora de recursos
como bens materiais e trabalho, os territórios rurais passam a ser
atrativos de novas populações e de rendas urbanas. Em suma, de-
saparece todo o sentido em tratar o rural exclusivamente como o
oposto do urbano, em proclamar seu desaparecimento, ou em re-
sumi-lo a apenas uma de suas dimensões atuais: o agrário. O sig-
nificado maior disso tudo é um certo esboroamento da visão pre-
dominante que sustentou as ciências sociais aplicadas sobre o
rural durante todo o século passado.
A segunda implicação surge como desdobramento da ante-
rior e, por limites de espaço, somente pode ser anunciada aqui.19
Um aspecto marcante do rural contemporâneo é a penetração
crescente em todas as esferas da vida rural de um longo processo
de racionalização que se manifesta em formas cada vez mais de-
sencantadas de condução da vida por parte dessas populações, em
mecanismos e instituições cada vez mais complexos de regulação
desses territórios e das formas de acesso e uso dos recursos natu-
rais e em uma mudança nas estruturas sociais locais com a intro-
dução de novas populações, uma valorização cada vez maior dos
conteúdos técnicos e instrumentais, o estilhaçamento dos interes-
ses e conflitos que antes eram unívocos e tendiam a derivar das
formas de posse e uso da terra. Não se trata de afirmar que toda
a população rural se transformou em calvinistas à imagem webe-
riana d’A ética protestante e o espírito do capitalismo, mas de cons-
tatar que, mesmo sendo o lugar por excelência onde ainda mais
se valoriza a proximidade com a natureza e a tradição, isso se faz
sob conteúdos sociais totalmente novos. Com a racionalização da
vida rural, é todo um universo ancorado na ruralidade agrária que
se dilui, para dar lugar a novas significações. Permanência do ru-
ral, associada à heterogeneização e aos conflitos disso derivados
passam a ser palavras-chave para compreender suas manifesta-
ções contemporâneas.
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1 8 5
19 Essa idéia é desenvol-vida em Favareto (2006),especialmente no capítu-lo “A racionalização davida rural”.
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ARILSON DA SILVA FAVARETO é sociólogo, doutor em ciência ambiental pela USPe professor da Universidade Federal do ABC. Este artigo é uma versão modificadade um dos capítulos da tese de doutorado do autor, Paradigmas do desenvolvimen-to rural em questão – Do agrário ao territorial. Cf. Favareto (2006).
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1 9 0
R E S E N H A
Os estudos sobre o manejo de
recursos comuns ou a apro-
priação coletiva de recursos na-
turais têm tomado diferentes
direções na última década, com
a emergência de novas proble-
máticas e o aprofundamento de
antigas questões, ao mesmo
tempo em que esforços inter-
disciplinares de pesquisa são
realizados em todas as regiões
do planeta. A ênfase dada aos
arranjos institucionais e aos di-
reitos de propriedade que mar-
caram as décadas de 1980 e
1990 cede espaço a temas como
identidade, saber tradicional,
globalização, políticas conser-
vacionistas e mudança ambien-
tal, entre outros.
Managing the commons, edi-
tado por Letícia Merino e Jim
Robson, reflete a ampliação das
temáticas atualmente relacio-
nadas aos estudos sobre recur-
sos comuns e se propõe a ofe-
recer um painel abrangente das
questões emergentes e das im-
plicações políticas da produção
acadêmica na área. A obra, or-
ganizada em quatro volumes e
lançada em 2005, sintetiza os
debates ocorridos durante a 10ª
Conferência Bianual da Inter-
national Association for the
Study of Common Property
(IASCP), realizada em Oaxaca,
México, em 2004, que reuniu
centenas de pesquisadores de
várias partes do mundo, com
expressiva participação de paí-
ses da América Latina.
Cada um dos volumes de
Managing the commons é de-
dicado a um tema específico:
direitos indígenas, desenvolvi-
mento econômico e identi-
dade; mercados, cadeias de
comercialização (commodity
chains) e certificação; paga-
mento por serviços ambientais;
e conservação da biodiversida-
de. Para cada volume, foram
elaborados uma introdução ao
MANAGING THE COMMONSLetícia Merino e Jim Robson (eds.)
Consejo Civil Mexicano para la Silvicultura Sostenible A. C., 2005
LUIS HENRIQUE CUNHA
MARISA B. ARAÚJO LUNA
1 9 3
tema e um comentário final
com recomendações e questões
de pesquisa, acompanhados de
três artigos selecionados entre
os trabalhos apresentados em
Oaxaca.
O volume dedicado a refletir
sobre as relações entre o mane-
jo de recursos comuns e os
mercados é o mais polêmico e,
por isso mesmo, mais interes-
sante. Os estudos sobre apro-
priação coletiva de recursos na-
turais têm dado pouca atenção
ao papel do mercado, visto co-
mo uma força externa que de-
sorganiza regimes de proprie-
dade coletiva. Os artigos deste
volume propõem uma visão al-
ternativa em que os mercados
podem ser também aliados de
iniciativas de manejo de recur-
sos comuns: criando oportuni-
dades para a redução da po-
breza, gerando demanda para
produtos certificados ou atra-
vés da reconfiguração das
cadeias de comercialização. O
volume seria beneficiado por
uma abordagem que enfatizas-
se processos de mudança socio-
ambiental e uma análise sobre
a distribuição desigual de cus-
tos e benefícios nas relações en-
tre populações que manejam
recursos comuns e o mercado.
Mas, sem dúvida, é preciso con-
cordar com Dan Klooster, em
seu comentário final, em que os
mercados integram os recursos
comuns a estruturas globais de
produção e consumo e em que
essa questão merece mais aten-
ção do que tem recebido.
Já o volume dedicado aos di-
reitos indígenas sobre recursos
apropriados coletivamente se
ressente de uma recorrente
“romantização” dos commons.
Populações indígenas que não
reconhecem o conceito de pro-
priedade privada são con-
frontadas a estados nacionais
centralizadores e a processos
nacionais ou globais de privati-
zação dos recursos naturais
representam tanto simplifica-
ção quanto generalização pro-
blemáticas do ponto de vista
teórico e da prática política. O
volume, no entanto, operacio-
naliza conceitos relevantes co-
mo território, governança e
conhecimento tradicional.
Finalmente, os volumes sobre
pagamento de serviços am-
bientais e conservação da bio-
diversidade, apesar de focarem
questões emergentes das mais
relevantes, tanto do ponto de
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1 9 4
vista político quanto acadêmi-
co, com desafios grandes a pro-
jetos interdisciplinares de pes-
quisa, revelam a dificuldade em
assumir uma posição mais crí-
tica e distanciada dos processos
sociais em curso.
Managing the commons é
uma boa introdução ao debate
contemporâneo em torno do
manejo de recursos comuns e
um esforço bem-sucedido de
demarcação de algumas das
questões emergentes nesse
campo. Mas a coletânea não
aprofunda o debate teórico,
destinando-se mais a influen-
ciar políticas públicas do que
em contribuir com a problema-
tização dos conceitos e teorias
que orientam a pesquisa sobre
os recursos comuns.
1. Managing the commons:
payment for environmental
services. ISBN: 968-817-735-0,
paperback, 72 páginas.
2. Managing the commons:
conservation of biodiversity.
ISBN: 968-817-734-2, paperback,
61 páginas.
3. Managing the commons:
markets, commodity chains
and certification. ISBN: 968-817-
736-9, paperback, 76 páginas.
4. Managing the commons:
indigenous rights, economic
development and identity.
ISBN: 968-817-737-7, paperback,
72 páginas.
LUIS HENRIQUE CUNHA é doutor emdesenvolvimento socioambiental e pro-fessor do PPGCS/UFCG.
MARISA B. ARAÚJO LUNA é douto-randa do PPGAS/Unicamp e membrodo Ceres/Unicamp.
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1 9 5
1 9 6
CONTENTS
STATEMENT
BEING A “RURAL WORLD” SOCIOLOGIST AT UNICAMP:
VERY MUCH ALIVE MEMORIES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Maria de Nazareth Baudel Wanderley
ARTICLES
TIMES AND SPACES IN BRAZILIAN RURAL WORLDS . . . . . . . . . 37
Carlos Rodrigues Brandão
CHANGE AND WATER IN SOUTH PORTUGAL: THE ALQUEVA
DAM AND THE VILLAGE OF LUZ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
Clara Saraiva
THE FAMILY, AS IT APPEARS IN CHILDREN’S DRAWINGS . . . . . 105
Maria Aparecida de Moraes Silva, Beatriz Medeiros de Melo,
Andréia Peres Appolinário
THE LONG-TERM EVOLUTION OF RURAL-URBAN RELATIONS . . 157
BEYOND THE NORMATIVE APPROACH TO RURAL DEVELOPMENT
Arilson da Silva Favareto
REVIEW
MERINO, LETÍCIA & ROBSON, JIM, 2005. MANAGING THE
COMMONS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193
Luis Henrique Cunha, Marisa B. Araújo Luna
PROCEDIMENTOS PARA PUBLICAÇÃO
Serão publicados resenhas, traduções e artigos e/ou ensaios iné-
ditos em língua portuguesa e espanhola que cumpram com os
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25 (vinte e cinco) laudas (incluindo imagens) e 70 (setenta)
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nhadas da respectiva autorização do autor do artigo e/ou do
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anos, no caso de edição estrangeira.
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com aproximadamente 100 (cem) palavras e, no máximo, 4
(quatro) palavras-chave em português (ou espanhol) e em
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mação sobre a formação e filiação acadêmico-institucional
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gina, não podendo consistir em simples referências bibliográfi-
cas. Estas devem aparecer no corpo do texto com o seguinte for-
1 9 7
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ço/ páginas), conforme o exemplo: (Weber, 1977, p. 160-2).
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bética de sobrenome, e respeitar o formato da ISO (Internatio-
nal Standart Organization) ou da ABNT (Associação Brasileira
de Normas Técnicas), tal como aparece nos exemplos:
Livro
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of Chicago Press, 1985.
Coletânea
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