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RURIS, REVISTA DO CENTRO DE ESTUDOS RURAIS · a longa evoluÇÃo da relaÇÃo rural–urbano . . . . . . . . 157 para alÉm de uma abordagem normativa do desenvolvimento rural arilson

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RURIS, REVISTA DO CENTRO DE ESTUDOS RURAIS é uma publicação doCentro Interno de Estudos Rurais (Ceres), do Instituto de Filosofia e CiênciasHumanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp), cujaproposta é apresentar e discutir resultados de pesquisas realizadas em contextosnacionais e internacionais que envolvam atores e situações relacionados ao mundo rural, de forma a trazer para o leitor os temas e as questões queemergem dos processos sociais contemporâneos. A revista, seguindo o caráterinterdisciplinar do Ceres, publica trabalhos inéditos realizados no âmbito dediferentes campos do conhecimento.

Editores EMÍLIA PIETRAFESA DE GODOI e FERNANDO ANTONIO LOURENÇO

Editores adjuntos ANA CAROLINA BAZZO DA SILVA, AUGUSTO POSTIGO,CRISTIANO RAMALHO, FERNANDA DE FREITAS GONÇALVES, JOSÉ CARLOS ALVESPEREIRA, JULIANA GUANAIS, MARIANA MIGGIOLARO CHAGURI, MARISA BARBOSAARAUJO LUNA, MAURO WILLIAM BARBOSA DE ALMEIDA, NASHIELI RANGELLOERA, SENILDE ALCANTÂRA GUANAES, VANDA SILVA, VERENA SEVÁ NOGUEIRA

Comissão Editorial (Ceres/IFCH/Unicamp) EMÍLIA PIETRAFESA DE GODOI,FERNANDO ANTONIO LOURENÇO, MAURO WILLIAM BARBOSA DE ALMEIDA, NEUSA MARIA MENDES DE GUSMÃO, SÔNIA BERGAMASCO

Conselho Editorial AFRÂNIO GARCIA JÚNIOR (CRBC/EHESS/Paris), ALDENORGOMES DA SILVA (UFRN), ALFREDO WAGNER BERNO DE ALMEIDA (UFAM),ANTONIO CARLOS DIEGUES (NUPAUB/USP), ARIOVALDO UMBELINO DE OLIVEIRA(USP), CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (Unicamp), DARLENE AP. DE OLIVEIRAFERREIRA (Unesp), EDGARD MALAGODI (UFPB), ELIANE DA FONTE (UFPE),ELIDE RUGAI BASTOS (Unicamp), ELLEN WOORTMANN (UnB), ERIC SABOURIN(CIRAD/França), JOÃO DE PINA CABRAL (Universidade de Lisboa),JOHN CORDEL (NUPAUB/USP), JOSÉ MACHADO PAIS (Universidade de Lisboa),JOSÉ MAURÍCIO ARRUTI (Cebrap), JOSÉ SÉRGIO LEITE LOPES (Museu Nacional),JOSEFA SALETE B. CAVALCANTI (UFPE), LEONILDE S. DE MEDEIROS (UFRRJ),LÍGIA MARIA OSÓRIO SILVA (Unicamp), LYGIA SIGAUD (Museu Nacional),MANOELA CARNEIRO DA CUNHA (Universidade de Chicago), MOACIR PALMEIRA(Museu Nacional), MARIA APARECIDA DE MORAES SILVA (Unesp),MARIA DE NAZARETH WANDERLEY BAUDEL (UFPE), MARIA DO LIVRAMENTO M.CLEMENTINO (UFRN), MARIA JOSÉ CARNEIRO (UFRRJ), MARIA TEREZA D. P.LUCHIARI (Unicamp), MARILDA APARECIDA DE MENEZES (UFPB), NEIDEESTERCI (UFRJ), NEUSA MARIA MENDES DE GUSMÃO (Unicamp), RUBEMMURILO LEÃO REGO (Unicamp), RUSSEL PARRY SCOTT (UFPE), SIMONEMALDONADO (UFPB), SÔNIA BERGAMASCO (Unicamp)

Projeto gráfico e editoração ANA BASAGLIACapa VITOR LOURENÇOPreparação dos originais e revisão final VILMA APARECIDA ALBINOFotolitos LASERCOLOR BUREAU & FOTOLITOImpressão GRÁFICA CENTRAL DA UNICAMP

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ruris : Revista do Centro de Estudos Rurais / Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. vol.1, n.1 (2007). Campinas: Unicamp/IFCH, 2007.200 p.

2007 (1) ISSN 1980-1998

Título da capa: Ruris. Revista do Centro de Estudos Rurais

1. Sociologia rural. 2. Desenvolvimento rural – Aspectos sociais.3. Agricultura – Aspectos ambientais. 4. População rural – Aspectos antropológicos. I. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Centro de Estudos Rurais. II. Título.

CDD – 307.72

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

Emília Pietrafesa de Godoi e Fernando Antonio Lourenço

DEPOIMENTO

SER SOCIÓLOGA DO “MUNDO RURAL” NA UNICAMP.

MEMÓRIAS MUITO VIVAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

Maria de Nazareth Baudel Wanderley

ARTIGOS

TEMPOS E ESPAÇOS NOS MUNDOS RURAIS DO BRASIL . . . . . . 37

Carlos Rodrigues Brandão

MUDANÇA E ÁGUA NO SUL DE PORTUGAL:

A BARRAGEM DE ALQUEVA E A ALDEIA DA LUZ . . . . . . . . . . . . 65

Clara Saraiva

A FAMÍLIA TAL COMO ELA É NOS DESENHOS DE CRIANÇAS . . . 105

Maria Aparecida de Moraes Silva, Beatriz Medeiros de Melo,

Andréia Peres Appolinário

A LONGA EVOLUÇÃO DA RELAÇÃO RURAL–URBANO . . . . . . . . 157

PARA ALÉM DE UMA ABORDAGEM NORMATIVA DO DESENVOLVIMENTO RURAL

Arilson da Silva Favareto

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RESENHA

MANAGING THE COMMONS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193

Letícia Merino e Jim Robson (eds.). Consejo Civil Mexicano

para la Silvicultura Sostenible A. C., 2005

Luis Henrique Cunha e Marisa B. Araújo Luna

SUMMARY . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 196

PROCEDIMENTOS PARA PUBLICAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . 197

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APRESENTAÇÃO

Ruris – Revista do Centro de Estudos Rurais, do Instituto de Filo-

sofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campi-

nas, nasce no momento em que o Ceres, Centro Interno de Estu-

dos Rurais do IFCH, completa dez anos de atividades e se constitui,

assim, na expressão objetivada da sua consolidação.1

O Ceres é um centro de pesquisas interdisciplinares que reú-

ne profissionais e estudantes de várias áreas do conhecimento,

com a predominância da antropologia e da sociologia. Desde a

sua criação, a cooperação sociologia–antropologia se expressa não

somente nas atividades de pesquisas e seminários organizados,

mas também na direção do Ceres: Maria de Nazareth Baudel Wan-

derley foi a sua primeira diretora e teve como vice-diretor o an-

tropólogo Carlos Rodrigues Brandão. Neste primeiro número da

Ruris, trazemos o depoimento de Nazareth Wanderley como uma

justa homenagem àquela que foi a fundadora do Ceres.

Seu depoimento não só explicita o caráter interdisciplinar do

Centro de Estudos Rurais como também nos dá uma idéia do es-

pírito da Ruris, pois, mais do que nos contar uma trajetória pes-

soal, ele nos remete à experiência de um grupo de pessoas que

colaboraram na constituição e consolidação de um campo de co-

nhecimento dentro do IFCH. Através do seu depoimento, ficamos

conhecendo os temas trabalhados e, em decorrência disso, as

transformações desse mesmo campo impulsionadas pelos proces-

sos vividos pela sociedade brasileira. Não é difícil constatar que

situações e categorias de sujeitos relacionados ao mundo rural se

impõem à nossa reflexão sempre que a nossa sociedade é sacudida

7

1 A publicação de Rurisresulta de um convênioentre a Unicamp (Univer-sidade Estadual de Campi-nas) e o IICA/NEAD-MDA(Instituto Interamerica-no de Cooperação Agrí-cola/Núcleo de EstudosAgrários e Desenvolvi-mento Rural). Agradece-mos ao NEAD e ao IICApelo financiamento rece-bido e especialmente aCaio Galvão de França,coordenador geral doNEAD, e a Adriana Lo-pes, coordenadora exe-cutiva do NEAD, peloapoio e entusiasmo comque acolheram o projetoeditorial da revista.

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por transformações sociais; assim, falar do rural é refletir sobre as

transformações sociais que ocorrem no conjunto da sociedade.

Quando o Grupo de Estudos Agrários – afetuosamente chamado

de Grupo do Matinho – passa a se reunir na década de 70, as dis-

cussões giravam em torno, sobretudo, do processo de moderni-

zação da agricultura e da proletarização que atingia as populações

rurais; a essas questões vieram se somar outras como as referen-

tes à propriedade da terra, às formas de reprodução do campesi-

nato e à produção familiar. Como expressão da consolidação des-

se campo de conhecimento no IFCH, foi criada, na década de 80,

a então Área de Agricultura e Questão Agrária do Doutorado em

Ciências Sociais.2

Como nos ensina a antropologia, a história dos nomes é tam-

bém a história das instituições que eles nomeiam e suas transfor-

mações. Lido assim, o nome dessa área temática ganha eloqüên-

cia: a questão agrária era a pauta central dos pesquisadores. Ao

longo dos anos que se seguiram, ao acompanhar o movimento

dos campos disciplinares, assistimos, por um lado, à crise do pró-

prio conceito de sociedade agrária, mas, por outro, vemos a re-

composição das questões agrárias, de uma maneira mais especí-

fica, e rurais, de uma maneira mais geral, através de novos temas

e novos atores sociais e políticos que emergem dos processos so-

ciais contemporâneos: os acampados, os assentados, os quilom-

bolas, os ribeirinhos, os seringueiros; suas trajetórias identitárias

e históricas passam a ser contempladas na agenda dos pesquisa-

dores, assim como os conflitos, as alianças, suas relações com ou-

tros segmentos da sociedade e com o próprio Estado. Também re-

cortes de gênero, etários, identitários somam-se aos de classe.

Assim, ao longo dos anos, essa área do doutorado em ciências so-

ciais, além de continuar a trabalhar com as raízes agrárias da his-

tória brasileira e do pensamento social por elas gerado, incorpo-

rou novas questões e, em 2001, passa a se chamar Processos

Sociais, Identidades e Representações do Mundo Rural.3

Este preâmbulo vem para dizer que Ruris é, pois, uma revis-

ta do Ceres, que, por sua vez, reúne estudantes, professores e pes-

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2 Para o conhecimentoda composição do Grupodo Matinho, remetemoso leitor ao depoimentode Maria de NazarethBaudel Wanderley. E,para a trajetória do Ce-res, suas atividades epesquisas, ver <www.ifch.unicamp.br/ceres>.

3 Vale insistir aqui que,sendo também uma “ca-tegoria de leitura do so-cial”, o rural, com toda aambigüidade que lhe éprópria por recobrir dis-tintos espaços, distintoscontextos, além de serempregado por diferen-tes atores sociais – desdeaqueles que se reivindi-cam do mundo rural aosproponentes de políticaspúblicas – permite refle-tir sobre as transforma-ções sociais mais abran-gentes. Ver M. Mormont“Le rural comme lecturedu social”, L’Europe et séscampagnes, M. Jollivet eN. Eizner (orgs.), Paris:Presse de la FondationNationale des SciencesPolitiques, 1996.

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quisadores vinculados, sobretudo, aos programas de pós-gradua-

ção em antropologia, sociologia e ciências sociais do Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e que persiste no exer-

cício desafiador de confrontar perspectivas de distintas formações

disciplinares dentro de um campo de conhecimento. Ruris pre-

tende ser um espaço de debates para os pesquisadores que, seja a

partir de uma perspectiva mais teórica, seja a partir de pesquisas

empíricas, se dedicam a questões que concernem à vida de ho-

mens e mulheres de campos, cerrados, montanhas, rios e mares

dentro e fora das fronteiras nacionais.

EMÍLIA PIETRAFESA DE GODOI

Departamento de Antropologia, IFCH/Unicamp

FERNANDO ANTONIO LOURENÇO

Departamento de Sociologia, IFCH/Unicamp

Campinas, 30 de setembro de 2006

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DEPOIMENTO

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SER SOCIÓLOGA DO “MUNDO RURAL” NA UNICAMP. MEMÓRIAS MUITO VIVAS

MARIA DE NAZARETH BAUDEL WANDERLEY

Neste primeiro número da revista do Ceres, gostaria de refletir so-

bre minha própria experiência, como professora e pesquisadora

do IFCH da Unicamp, onde, durante 20 anos, participei ativamen-

te do mestrado de sociologia e do doutorado de ciências sociais.

Considero que a constituição da área temática do doutorado, en-

tão denominada Agricultura e Questão Agrária, envolvendo an-

tropólogos e sociólogos, resultou na consolidação, nessa univer-

sidade, de um campo de reflexão, próprio das ciências sociais,

sobre o mundo rural. Esse campo se caracterizou por privilegiar

a compreensão dos processos de formação das diversas categorias

de sujeitos sociais e suas expressões econômicas, sociais, políticas

e culturais, tendo como pressuposto principal a heterogeneidade

do mundo rural.

OS ESPAÇOS ACADÊMICOS

O Grupo do Matinho

Cheguei à Unicamp em 1978, momento em que o Grupo de Es-

tudos Agrários (carinhosamente chamado Grupo do Matinho) es-

tava em pleno apogeu. Esse grupo era formado por professores e

alunos vinculados aos diversos departamentos do IFCH (na oca-

sião, o Departamento de Economia integrava o instituto), bem co-

mo a outros centros universitários de São Paulo, especialmente à

ESALQ, aos campi da Unesp em Botucatu e Araraquara e às PUCs

de Campinas e de São Paulo. Participavam do grupo, entre outros:

Tamás Szmrecsányi, Verena Stolcke, Peter Eisemberg, Rodolfo

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Hoffmann, Oriovaldo Queda, José Graziano da Silva, Sérgio Silva,

Ângela Kageyama, Rubem Murilo Leão Rego, Maria Helena Antu-

niassi, Vera Marisa Costa e Sonia Bergamasco.

A equipe se organizou como um espaço de reflexão e debate

sobre a agricultura brasileira, mais especificamente sobre os pro-

cessos de modernização da agricultura. Naquele mesmo ano, o se-

minário anual, promovido pelo grupo, contou com a calorosa

participação de pesquisadores como Alberto Passos Guimarães,

Inácio Rangel e Maria Yedda Linhares, com os quais, precisamen-

te, se tentava dialogar sobre o processo de transição.

Foram longamente discutidas no grupo as teses de doutora-

do de José Graziano da Silva, Sérgio Silva, Ângela Kageyama, Ru-

bem Murilo Leão Rego, entre outras, elaboradas nesse período.1

No final dos anos 70, o debate acadêmico refletia um mo-

mento de transição da realidade brasileira, na qual a moderniza-

ção da agricultura, impulsionada, sobretudo, com as orientações

da política agrícola presentes no Estatuto da Terra, começava a re-

velar seus resultados mais evidentes, nos campos econômico, so-

cial e político. Esse ambiente de efervescência era profundamente

estimulado pela constituição de duas “redes” nacionais de pesqui-

sa e intercâmbio: um programa de estudos sobre Mão-de-Obra

Volante na Agricultura, coordenado pela Associação Brasileira de

Reforma Agrária (Abra) e pelo Departamento de Economia Rural

da Faculdade de Ciências Agronômicas, da Unesp/Botucatu, e o

Projeto de Intercâmbio em Pesquisa Social na Agricultura, PIPSA,

ambas financiadas pela Fundação Ford.

No grupo da Unicamp, que funcionou até 1982, alguns te-

mas passam a constituir o núcleo forte das reflexões: a proprie-

dade da terra e suas relações com o capital; o progresso técnico,

seus avanços e os limites dos novos modelos tecnológicos propos-

tos; o trabalho na agricultura e o processo de proletarização; e as

formas de reprodução do campesinato. Esses temas recortavam o

que se poderia denominar a questão agrária brasileira naquele

momento, centrada na opção política pela modernização da agri-

cultura que era ideologicamente apresentada como uma exigên-

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1 José Graziano da Silva,Progresso técnico e rela-ções de trabalho na agri-cultura. São Paulo: Hu-citec, 1981. Sérgio Silva,Valor e renda da terra: omovimento do capital nocampo. São Paulo: Polis,1981. Ângela Kageyama,Modernização, produti-vidade e emprego naagricultura: una análiseregional. Tese de douto-rado em economia. Cam-pinas, Unicamp, 1985.Rubem Murilo LeãoRêgo, Terra de violência:estudo sobre a luta pelaterra no sudoeste doParaná. Dissertação demestrado em sociologia.São Paulo, USP, 1981.

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cia do progresso. Outros temas recorrentes, que perpassavam e in-

tegravam esse corpus diziam respeito ao papel do Estado, ao pen-

samento social brasileiro, ao desenvolvimento regional e, natural-

mente, à dimensão histórica da agricultura no Brasil.

O doutorado de ciências sociais

Até então, minha atuação como professora se restringia ao Pro-

grama de Mestrado de Sociologia, em que oferecia disciplinas e

orientava dissertações sobre a problemática rural e agrícola.

Em 1985, e já em um outro quadro institucional, interna-

mente, com a criação do Instituto de Economia e, externamente,

com os esforços da Capes para a consolidação da pós-graduação,

no Brasil, um prolongado debate no IFCH deu origem ao Douto-

rado de Ciências Sociais. Tenho orgulho de ter, juntamente com

Vilmar Faria, Daniel Hogan, Mariza Corrêa e tantos outros pro-

fessores, participado da montagem dessa proposta. Desde o iní-

cio, o programa se estruturava em torno de dois eixos: a forma-

ção avançada nas teorias contemporâneas das ciências sociais e o

aprofundamento de problemáticas específicas, definidas em tor-

no de áreas temáticas.

A área temática Agricultura e Questão Agrária só começou a

funcionar no primeiro semestre de 1986, formada pelos professo-

res Maria Conceição d’Incao, Rubem Murilo Leão Rego, Teresa Sa-

les, Carlos Rodrigues Brandão e por mim. Elide Rugai Bastos subs-

tituiu Maria Conceição, quando esta se aposentou. A primeira

turma selecionada contou com quatro alunos: Antonieta da Cos-

ta Vieira, Aluísio Schumacher, Dalcy Cruz e Leonilde Sérvolo de

Medeiros. Nesse primeiro momento, um seminário reunia o con-

junto de professores e alunos, criando um ambiente que nos aju-

dou a precisar os temas e as leituras de interesse comum.

Progressivamente, o doutorado como um todo se consoli-

dou, constituindo novas áreas temáticas e ampliando o número

de alunos nele envolvido. Com a segunda turma de alunos, da qual

fizeram parte Ricardo Abramovay, Regina Bruno, Clemilda Oli-

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veira e Carlos Teixeira, nossa área temática também se fortaleceu,

recortando como tema central de suas atividades de ensino e pes-

quisa “as questões associadas aos processos e relações sociais en-

tre as diferentes categorias de sujeitos e instituições ligadas à pro-

dução de bens, serviços e símbolos do mundo rural, sob a

perspectiva das ciências sociais”. A partir de então, o foco do se-

minário comum se orientou para uma releitura crítica dos para-

digmas da questão agrária e para uma reflexão sobre o mundo ru-

ral brasileiro e foram definidas as seguintes disciplinas específicas

da área: história social da agricultura; a questão agrária e as ciên-

cias sociais; raízes rurais da sociedade brasileira; sociedades agrá-

rias; estudos comparativos sobre a questão agrária; agricultura e

meio ambiente.

Para isso, muito contribuiu o entrosamento crescente entre

os antropólogos e sociólogos. Na minha experiência pessoal, o

grande momento desse diálogo foi a disciplina que Carlos Bran-

dão e eu ministramos conjuntamente durante o primeiro semes-

tre de 1994. Não se tratava apenas de dividir os temas de um pro-

grama de curso, ele com a parte antropológica e eu com os autores

sociólogos. Na verdade, nossa intenção era a de construir um es-

paço propriamente interdisciplinar no campo das ciências sociais

voltadas para o mundo rural. Permito-me transcrever, integral-

mente, a ementa da disciplina:

A idéia de revisitar “as mesmas coisas”, os mesmos temas, su-

jeitos sociais, relações e questões, com outros olhos, com “no-

vos olhares” é sempre fecunda e perigosamente desafiadora

entre as nossas ciências. A proposta deste Curso é a de uma tal

revisita. Pensamos tomar alguns temas bastante comuns e já

muito investigados a respeito do mundo rural e procedermos

a uma leitura de suas questões desde um ponto de vista, em

alguma coisa, pelo menos, diferente. Imaginamos a possibili-

dade de retomar a produção familiar no mundo rural: as es-

tratégias de produção de “bens” agropastoris e de reprodução

de diferentes estilos de vida no campo; os diferentes códigos

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e sistemas de sentido (da ideologia das práticas econômicas ao

imaginário das religiões) dos diversos tipos de sujeitos indivi-

duais e coletivos do campo, e introduzirmos uma reflexão so-

bre sua atualidade através do estudo e da discussão de textos

e abordagens não muito comuns em tais casos. Não muito co-

muns, mas bastante convergentes às questões que sempre

orientaram o pensamento de uma Sociologia Rural ou de uma

Antropologia do Campesinato. Pretendemos, de igual manei-

ra, orientar a proposta do curso ao ponto de encontro entre a

tradição e a modernidade (ou entre a tradicionalidade e a mo-

dernização), de tal sorte que, lidando com estilos de vida, com

processos e estruturas de organização da vida social rural em

seus vários planos, com códigos sociais de diferentes tipos de

relações de reciprocidade, de alianças e conflitos, com a ideo-

logia e o imaginário (no limite, até mesmo com os devaneios

de que fala Bachelard), estejamos sempre situados a meio ca-

minho entre formas tradicionais, consagradas mesmo de cul-

turas do universo rural, e os processos sociais de inovação e

ruptura, tornados obrigatórios através de uma modernização

de todas as esferas sociais da vida e do trabalho no mundo ru-

ral. Ao longo das 7 unidades do curso, estaremos às voltas com

tipos intrigantemente comuns de nossas comunidades rurais,

devolvidos à leitura na experiência de sua máxima subjetivi-

dade. Estaremos retomando, por exemplo, a lógica das rela-

ções familiares e de parentesco através dos opostos entre a nor-

ma consagrada das relações entre os seus atores sociais e as

alternativas “camponesas” de sua transgressão. Estaremos re-

trabalhando o imaginário e os sistemas de organização de co-

munidades rurais rearticuladas como movimentos religiosos

do passado (Canudos, Contestado), mas também como mo-

vimentos sociais do presente.

Essa tentativa, que considero muito bem-sucedida, exigia dos

dois professores uma certa dose de humildade e um grande esfor-

ço: ambos estavam presentes em todas as aulas e se dispuseram a

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ler os “clássicos” (dos estudos rurais) dos dois enfoques discipli-

nares. Pessoalmente, reconheço com entusiasmo que li, então, pe-

la primeira vez, alguns dos autores antropólogos e fiquei muito

contente ao poder discutir com Carlos Brandão textos com filia-

ção sociológica mais explícita. Os alunos, eles também, em maio-

ria sociólogos ou antropólogos, pelo que me diziam, adoraram a

disciplina.

No conjunto da área temática, três princípios orientavam a

formação que pretendíamos oferecer.

1) Em primeiro lugar, a convicção que o doutorado, qualquer que

fosse a área temática de inserção do aluno, era um curso de ciên-

cias sociais. Para nós, isso significava assumir que a sociologia ru-

ral é, antes de tudo, sociologia, como afirmará, mais tarde, Mar-

cel Jollivet, tanto quanto a antropologia do campesinato e do

mundo rural é, antes de tudo, antropologia. Nas disciplinas teó-

ricas, a grande questão dizia respeito à crise dos paradigmas nas

ciências sociais, tema que polarizava as perspectivas dos próprios

professores da casa.

Para os alunos, o primeiro grande teste era o exame de qua-

lificação, que funcionava como um elemento articulador entre es-

sas questões mais gerais e o tema particular da tese. De fato, a exi-

gência era de que o doutorando escolhesse um tema teórico das

ciências sociais, que pudesse iluminar seu tema de tese, sem, no

entanto, se confundir com o seu capítulo teórico. Como afirmou

Ricardo Abramovay, em seu próprio ensaio:

Este texto nasceu das discussões sobre a crise das ciências so-

ciais, tema dos mais importantes no decorrer dos cursos que

realizei no Doutorado em Ciências Sociais na Universidade Es-

tadual de Campinas. Além do interesse geral que estas discus-

sões trazem, seu impacto sobre os próprios doutorandos, pe-

lo que pude perceber, é duplo. Embora alguns poucos não se

deixem “abalar” pelo tema e passem pelos cursos basicamente

com o mesmo conjunto de convicções com que ali ingressa-

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ram, a maior parte de nós dá-se conta da fragilidade em que

se encontram não apenas os fundamentos do trabalho nas

ciências sociais e do homem, mas em suas próprias sub-áreas

específicas. É bem verdade que essa constatação pode trazer

paralisia. Acredito, porém, ao contrário, que na maior parte

dos casos ela será a base para a busca de respaldo mais segu-

ro ao trabalho de pesquisa. Se uma crise de paradigma amea-

ça – por definição – o andamento tranqüilo das atividades

científicas, somente seu cerco em cada sub-área específica po-

derá contribuir, acredito, para que seja superada.

Seria impossível enumerar aqui o trabalho de todos os alu-

nos. Cito, apenas a título de exemplo, alguns deles. No texto so-

bre A crise dos paradigmas e os estudos agrários, Ricardo Abra-

movay procurou analisar como alguns balanços sobre os estudos

agrários feitos na França, na Inglaterra e, especialmente, nos Es-

tados Unidos, refletiram sobre a crise dos paradigmas no campo

específico dos estudos rurais desses países. O ensaio que Leonil-

de Medeiros defendeu teve como título Algumas considerações

sobre o conceito de classe social, no qual ela analisa os conceitos

de classe, segundo o paradigma marxista e o debate contemporâ-

neo, especialmente em Thompson, Castoriadis e Bourdieu. Esse

exercício foi, sem dúvida, de grande utilidade para a sua tese so-

bre a formação dos trabalhadores rurais no Brasil.Alfio Brandem-

burg apresentou um ensaio intitulado Colonos: da subserviên-

cia à utopia, passo teórico importante para a elaboração de sua

tese sobre a agricultura familiar e os projetos de desenvolvimen-

to sustentável no Paraná. Por sua vez, a qualificação de João Car-

los Tedesco baseou-se no trabalho intitulado Cotidiano, história

e cultura: uma análise sobre a importância do cotidiano nos es-

tudos sobre o camponês. Como sua tese seria sobre o campesina-

to no Rio Grande do Sul, ele procurou aprofundar seus conheci-

mentos sobre o pensamento de alguns autores, a respeito da vida

cotidiana, especialmente de Henri Lefebvre, Agnes Heller e Hen-

ri Mendras. Regina Bruno, cuja tese seria sobre a “burguesia ru-

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ral”, apresentou o trabalho Demiurgos, sanguessugas e autôma-

tos, no qual se debruçou sobre o pensamento de Marx a respeito

da burguesia. Este, formado do exame de qualificação, foi poste-

riormente abolido e substituído por um texto teórico mais pró-

ximo ao próprio tema da tese.

2) O segundo princípio dizia respeito à problemática específica

da área temática a que estávamos vinculados. Tratava-se da ne-

cessidade de pensar as questões que o mundo rural coloca à so-

ciedade brasileira e como as ciências sociais podem pensar essas

questões. Nosso ponto de partida era a convicção de que a com-

preensão da realidade rural precisa de um tratamento teórico

complementar, próprio, o que faz da antropologia e da sociolo-

gia rurais uma antropologia e uma sociologia específicas. De fa-

to, o reconhecimento de uma problemática rural exige de seus es-

tudiosos que expliquem por que o meio rural permanece como

“um espaço singular e um ator coletivo”, para citar uma referên-

cia que usei posteriormente em um artigo sobre o mundo rural

nas sociedades modernas.

Como entender as relações fundamentais entre o capital e o

trabalho, sem integrar a reflexão sobre a propriedade da terra? As

formas de apropriação da terra, sabemos todos, têm profundas

implicações sobre a estrutura e as práticas de classes da socieda-

de como um todo e sobre a configuração e a dinâmica dos movi-

mentos sociais. No Brasil, conhecemos assalariados do solo e cam-

poneses sem terra; as relações de trabalho incluem as formas ditas

“análogas à escravidão”, praticadas por grandes proprietários e

empresários agrícolas, freqüentemente tidos como modernos; en-

tre as estratégias de defesa da propriedade, adotadas pela “bur-

guesia” agrária brasileira, consta, em lugar privilegiado, a elimi-

nação física dos seus opositores.

É preciso lembrar que as classes subalternas que vivem da

agricultura, em sua expressão moderna – aqui incluídos os seto-

res ligados à agricultura familiar –, se constituíram em um pro-

cesso recente. Data, de fato, dos anos 60, a emergência de uma

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enorme massa de trabalhadores rurais – colonos, moradores – que

perdeu o acesso, já precário, à terra e aos meios de sua subsistên-

cia e passou a viver da venda de sua força de trabalho. Da mesma

forma, nos dias de hoje, sob os nossos olhos, os assentamentos de

reforma agrária, que se disseminam em todo o território nacio-

nal, constituem-se como sementeiras de um campesinato, cujo lu-

gar na sociedade ainda está sendo conquistado.

Quando se trata da sociologia do trabalho, o conhecimento

das particularidades do mundo rural pode compreender como a

ainda forte e determinante vinculação da atividade agrícola com

a criação de seres vivos explica em grande parte por que o traba-

lho agrícola, nas condições modernas de produção, não se reali-

za sob a dominação de um sistema de máquinas, nem pode orga-

nizar-se como uma “fábrica no campo”. Como se expressaria,

então, o pós-fordismo nos processos de produção agrícola?

A sociologia da família rural tenta explicar como a coletivi-

dade familiar se expressa enquanto unidade de produção, de tra-

balho e de consumo. É da articulação dessas três dimensões que

resultam a polarização entre o projeto coletivo familiar e a busca

de individualização de seus membros e os conseqüentes conflitos

e tensões específicos, nos planos da divisão interna do trabalho,

das formas de distribuição da renda familiar e da representação

externa da unidade de produção.

3) Finalmente, o terceiro princípio é o resultado da conjunção dos

dois precedentes e consistiu no grande esforço empreendido, no

sentido de promover um diálogo constante e profundo entre as

diversas temáticas que compunham o programa do doutorado.

De fato, enfrentando uma grande dificuldade – a temática rural

era considerada por alguns ilustres professores e pesquisadores

uma questão menor, senão ultrapassada na sociedade brasileira e

na academia –, havia, entre nós, uma grande preocupação com o

diálogo com os demais colegas do doutorado, com o objetivo pri-

mordial de aproximar nossas reflexões daqueles outros pesquisa-

dores da realidade brasileira, que também se dedicavam ao estu-

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do de temas específicos. Partíamos do pressuposto de que não se-

ria possível amputar a parte rural da realidade brasileira, sob pe-

na de tornar impossível a formulação de uma visão de conjunto

e em profundidade dessa mesma realidade. Com algumas áreas

temáticas, as interfaces pareciam evidentes, como era o caso de

“meio ambiente e sociedade” e “pensamento social brasileiro”.

Pretendíamos, porém, ir mais além e assumir que o doutorado,

com suas diversas áreas temáticas, seria o lócus privilegiado para

a construção desse intercâmbio, já que contávamos com cerca de

60 professores-doutores, envolvidos em uma grande diversidade

temática. O interesse mútuo e as trocas se processam sem dificul-

dades, quando o estudioso das políticas sociais considera a situa-

ção específica da aposentadoria rural, ou quando o pesquisador

do sindicalismo brasileiro se depara com as particularidades do

movimento sindical rural ou ainda quando a reflexão sobre o

mundo do trabalho incorpora o que se passa no interior da agri-

cultura familiar. O mesmo pode ser dito da presença de acampa-

mentos de reforma agrária em áreas urbanas, das transformações

recentes da família, no campo como na cidade, das múltiplas ex-

pressões de identidades sociais, referidas aos lugares de vida e às

experiências de luta, da vida cotidiana nos espaços rurais, das prá-

ticas religiosas etc.

Se é difícil aos demais cientistas sociais incluir a dimensão

rural como parte integrante dos próprios objetos de estudo, mais

difícil ainda é para os sociólogos e antropólogos “rurais” dar con-

ta das bibliografias especializadas do conjunto desse campo teó-

rico tão vasto e diversificado. Todos nós, que vivenciamos a expe-

riência de orientar teses e dissertações nesse campo, sabemos que

boa parte dos alunos nos procura com temas sobre a família, o

trabalho, a tecnologia, os movimentos sociais, a religião etc., em

tal ou qual contexto rural. Só resta aos orientadores a humildade

de reconhecer seus limites e envolver seus colegas especialistas em

parcerias enriquecedoras para todos, alunos e professores, estu-

diosos do mundo rural ou não.

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O projeto Capes/Cofecub

Em 1991, a área temática passou a integrar o Projeto Capes/

Cofecub, Novas Perspectivas do Desenvolvimento Agrícola na

França, na Europa e no Brasil. Esse projeto de cooperação inter-

nacional com a França havia começado bem antes, envolvendo a

Universidade de Paris X – Nanterre e a Universidade Federal da

Paraíba. Em sua segunda fase, até 2005, que tive a honra de coor-

denar, ele incluiu, do lado brasileiro, a Unicamp e a Universidade

Federal do Rio Grande do Sul.

Os impactos do projeto sobre nossa área temática foram sen-

tidos em diversos níveis. Em primeiro lugar, o projeto oferecia

missões de estudo e de trabalho aos pesquisadores brasileiros.

Nesse quadro, alguns dos nossos alunos tiveram a oportunidade

de receber bolsas-sanduíche para realizar missões de estudo em

Nanterre. Foi o caso, por exemplo, de Alfio Brandemburg e de Ja-

dir de Moraes Pessoa. Da mesma forma, professores também pu-

deram realizar missões de trabalho na França.

Em segundo lugar, o projeto assegurava a doação anual de li-

vros franceses. Até hoje quando visito a biblioteca do IFCH reco-

nheço as publicações que recebemos naquela ocasião e que foram

a base do amplo acervo hoje disponível.

Em terceiro lugar, durante todo o período de vigência do pro-

jeto, tivemos a oportunidade de programar diversos seminários

que contaram com a participação de colegas franceses. Lembro,

especialmente, da presença de Jacques Chonchol, então diretor do

Instituto de Altos Estudos para a América Latina, bem como, em

diversas ocasiões, de Hélène Delorme (coordenadora francesa do

projeto), Hugues Lamarche, Jean-Paul Billaud, Bernard Roux e

Magda Zanoni – esta, brasileira, professora na França.

Dois desses seminários marcaram, particularmente, o pe-

ríodo. Um primeiro, realizado em novembro de 1989, teve como

tema Os Camponeses têm Futuro? Uma Homenagem a Alexander

Chayanov. Esse encontro representava para nós uma opor-

tunidade de retomar, no campo da sociologia, o interesse pelo

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campesinato, de alguma forma relegado por uma grande parte

dos sociólogos brasileiros, desde as últimas contribuições de Ma-

ria Isaura Pereira de Queiroz, no início dos anos 70. Os antropó-

logos, como sabemos, nunca abandonaram essa temática.

O outro seminário, com o título Agricultura Familiar e Pro-

jeto de Modernidade – Seminário Internacional, ocorreu em

1998, por ocasião do lançamento, no Brasil, do livro A agricultu-

ra familiar – Uma realidade multiforme, coordenado por Hugues

Lamarche. Mais uma vez, essa reunião pretendeu constituir-se co-

mo um marco no sentido do reconhecimento e da legitimidade

intelectual da problemática da agricultura familiar no nosso país.

Sonia Bergamasco, professora da Feagri/Unicamp, e eu fo-

mos as coordenadoras do evento, que reuniu um grande número

de pesquisadores do Brasil e do exterior. Vale lembrar que Sonia

Bergamasco sempre esteve muito proximamente vinculada à

equipe do IFCH, desde o Grupo do Matinho, do qual participava,

enquanto era a chefe do Departamento de Economia Rural da

Unesp/Botucatu e participou do Ceres desde o início. Fico feliz

por saber que ela, atualmente, integra o corpo docente do douto-

rado de ciências sociais. As comunicações apresentadas no semi-

nário internacional e os debates suscitados diziam respeito a pes-

quisas em Portugal, na Itália, na Espanha, na França, no Canadá,

na Polônia, na Tunísia, na Argentina, na Holanda, além, eviden-

temente, de no Brasil.

O seminário, como está registrado em seus Anais, demons-

trou a pertinência e a atualidade da problemática da agricultura

familiar ao abrir um grande leque de questões: a reprodução so-

cial da agricultura familiar em áreas de agricultura moderna, de

antiga agricultura camponesa, ou ainda em novos contextos so-

ciais, tais como as reservas florestais na Amazônia; o trabalho agrí-

cola e a identidade profissional: pluriatividade, a profissão do

agricultor, novas identidades; a moralidade familiar e o compor-

tamento econômico; as políticas agrícolas e a reprodução da agri-

cultura familiar: os impasses e as perspectivas da agricultura fami-

liar na Europa, as políticas sociais para os agricultores brasileiros,

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a previdência social rural, pobreza, exclusão social e cidadania; a

agricultura e o meio ambiente: o novo lugar da agricultura fami-

liar na sociedade moderna: a gestão dos recursos naturais, a re-

presentação da natureza pelos agricultores: a agricultura familiar

e o meio rural: uma nova ruralidade.

A riqueza dos debates estimulou as conclusões, encaminha-

das no sentido da necessidade da formulação de novos marcos

teóricos capazes de explicar a agricultura familiar moderna, isto

é, a que – com todas as suas contradições – é gerada e reproduzi-

da nas condições da sociedade moderna. Uma teoria que situe o

nosso objeto no espaço da tensão entre o geral e as especificida-

des, entre o global e a localidade, entre a tradição e a modernida-

de, entre o homem do campo e o cidadão. Uma teoria interdisci-

plinar, que se inspire diretamente nas ciências explicativas da

sociedade moderna, ao mesmo tempo em que contribua para fa-

zê-las avançar, pela incorporação de questões – a agricultura, o

agricultor, o meio rural – tantas vezes excluídas.

Finalmente, o Projeto Capes/Cofecub teve um efeito extre-

mamente estimulante dos contatos entre pesquisadores brasilei-

ros e franceses, para além das equipes diretamente envolvidas.

Assim, por exemplo, em diversas ocasiões, nossos colegas france-

ses participaram das reuniões do GT Estado e Agricultura, da

Anpocs, num profícuo intercâmbio, que lhes oferecia uma visão

nacional da comunidade acadêmica brasileira e dos principais te-

mas em debate.

A fundação do Ceres

Em 1996, foi criado o Centro de Estudos Rurais (Ceres), grupo

de pesquisa vinculado ao IFCH. Para formalizar sua fundação, rea-

lizamos uma mesa-redonda, cujo tema foi Reforma Agrária: Uma

Demanda da Sociedade, através da qual pretendíamos, igualmen-

te, homenagear José Gomes da Silva, fundador e, por muitos anos,

presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra),

ex-presidente do Incra e, reconhecidamente, um dos maiores de-

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fensores da reforma agrária do país, que havia falecido recente-

mente. A mesa contou com a participação de Leonilde Servolo de

Medeiros (CPDA/UFRRJ), Abdias Vilar de Carvalho (Incra/SP),

Fernando Antônio Lourenço (Cesop/Unicamp) e Vera Lúcia Gra-

ziano Rodrigues (PUC/Campinas), filha do doutor Gomes.

O Ceres consolidou sua experiência baseada nos três prin-

cípios já referidos acima. De fato, os seminários seguintes, que

denominamos Diálogos Pertinentes, tinham como objetivo co-

tejar o olhar de um pesquisador de um tema relevante, na pers-

pectiva do mundo rural, com o de um outro estudioso desse mes-

mo tema, mas que não assumisse esse recorte rural. Assim, o

primeiro desses diálogos pertinentes teve como tema Movimen-

tos Sociais Rurais e Urbanos, com a participação de Maria Célia

Paoli (USP) e Regina Novaes (UFRJ). Foi extremamente rico ver

como as duas grandes estudiosas dos movimentos sociais no Bra-

sil ampliavam sua própria reflexão, para incorporar a problemá-

tica específica que a outra lhe propunha. Um segundo seminá-

rio reuniu Ricardo Abramovay (FEA/USP) e Mariza Corrêa (do

Centro Pagu e do doutorado) em torno do tema Agricultura Fa-

miliar, Juventude e Gênero. Ricardo acabara de participar de uma

pesquisa em Santa Catarina sobre a juventude rural, que havia

constatado, entre outros aspectos relevantes, um processo de

masculinização da população rural do estado, questão que foi

discutida por Mariza, reconhecidamente uma especialista nos es-

tudos sobre família e gênero.

Essa foi minha última atividade no Ceres. Em julho de 1997,

aposentei-me e realizei a sonhada migração de retorno para o Re-

cife, minha terra natal.2

A SOCIOLOGIA DO MUNDO RURAL

Já que se trata de minhas memórias, tomo a liberdade de restrin-

gir o campo do relato à minha trajetória pessoal, consciente de

que ela foi, sem dúvida, o resultado de meu pertencimento aos

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2 Apresento a relação dosmeus orientandos queconcluíram suas teses dedoutorado na Unicamp,que também vivencia-ram a origem e o mo-mento inicial do Ceres:(1990) Ricardo Abramo-vay, professor da FEA/USP, De camponeses aagricultores: paradigmasdo capitalismo agrário emquestão, prêmio de Me-lhor Tese do Ano conce-

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grupos a que me referi neste artigo, num momento especialmen-

te fecundo da produção acadêmica brasileira.

No novo contexto pós-64, as referências às relações feudais

haviam perdido, definitivamente, sua anterior legitimidade teóri-

co-política. Em 1965, Caio Prado Júnior publicara o seu polêmi-

co livro A revolução brasileira, que consolidou a reflexão sobre o

capitalismo no Brasil. Uma questão, no entanto, permanecia: Que

capitalismo era esse? Como pensar essa realidade à luz das teorias

clássicas sobre o desenvolvimento do capitalismo?

Considerando essas questões sob o ângulo mais específico das

transformações da agricultura, interessava compreender as mu-

danças nas classes agrárias, tanto as classes dominantes – o signi-

ficado da propriedade da terra assume aqui uma grande impor-

tância – quanto as “classes subalternas”, termo este que passa a ser

adotado após a difusão da obra de Antonio Gramsci no Brasil.

Um veio fundamental foi o que considerava o processo de prole-

tarização da força de trabalho rural, isto é, a passagem das formas

tradicionais do colonato e da morada para as relações puramen-

te assalariadas, especialmente, do trabalhador “volante” em São

Paulo e do “clandestino” na Zona da Mata pernambucana, que foi

objeto de uma vastíssima bibliografia. Da mesma forma, os estu-

dos sobre o campesinato assumiram um grande peso, para uns,

uma categoria inexistente na sociedade brasileira, para outros ao

contrário, pela sua oposição ao latifúndio, portadora de uma

grande força transformadora.

Durante a década de 60, a população rural, que até então

era majoritária no país, perde a predominância em benefício da

população urbana. Os conceitos de “rural” e “urbano” utilizados

pelo IBGE já eram, na ocasião, questionados por alguns estudio-

sos. Dois livros de Juarez Rubens Brandão Lopes, Crise do Bra-

sil arcaico (1967) e Desenvolvimento e mudança social (1968), dão

conta da nova centralidade do mundo urbano-industrial na

sociedade brasileira. O debate sobre o mundo rural toma assim

uma nova feição: Qual o seu lugar nesses processos de trans-

formação?

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dido pela Anpocs, publi-cada pela Hucitec e Edi-tora da Unicamp, 1992;Leonilde Sérvolo de Me-deiros, professora doCPDA/UFRRJ, Lavrado-res, trabalhadores agríco-las, camponeses: os co-munistas e a constituiçãode classes no campo,1995; Leila de MenesesStein, professora daUnesp/Araraquara, Sin-dicato, estado e agricul-tura: o dilema da repre-sentação, doutorado deciências sociais, 1997; Al-fio Brandenburg, profes-sor da UFPR, ONGs e aagricultura familiar – Aexperiência da Rureco nodesenvolvimento da agri-cultura familiar na regiãocentro-oeste do Paraná,publicada pela Editora daUFPR, 1999; (1998) Fer-nando Antônio Louren-ço, professor do IFCH/Unicamp, Agriculturailustrada – Ambivalênciado reformismo agrícolano Brasil (1770-1920),publicada pela Editora daUnicamp, 2001; (1998)João Carlos Tedesco, pro-fessor da UPF, Terra, sa-lário e família – Raciona-lidades em conflito nocotidiano do meio rural,publicada pela Editora daUniversidade de PassoFundo, 1999; DiógenesPinheiro, Batismo de fo-go – Lideranças políticasem assentamentos rurais,1999; (1999) Sergio Luizde Oliveira Vilela, asses-sor da Embrapa, Globali-zação e emergência demúltiplas ruralidades –Reprodução social de agri-cultores via produtos paranichos de mercado, publi-cada pela Embrapa,2000;Regina Bruno, professoraCPDA/UFRRJ, O ovo daserpente: monopólio daterra e violência na NovaRepública, 2002.

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São essas questões que inspiraram minhas tentativas de par-

ticipar do debate acadêmico e que tentarei explicitar a seguir.

A questão fundiária no Brasil

Na minha tese de doutorado, defendida, em 1975, na Universida-

de de Paris X – Nanterre, na França, eu havia tentado analisar as

relações entre o capital e a propriedade da terra na economia açu-

careira de Pernambuco. Minha conclusão era de que a articula-

ção entre ambos constituía um dos eixos centrais das estratégias

de reprodução dessa economia. Os “empresários” locais procura-

vam suprir a fragilidade do processo de acumulação capitalista,

através de formas particulares de uso da terra, que asseguravam

a fixação dos trabalhadores (sistema de morada) e a adequação

da produção às oscilações dos mercados de açúcar. Nessa expe-

riência histórica, ao invés da “fórmula trinitária”, com a qual Marx

explicara o lugar da propriedade da terra sob o capitalismo, via-

se o proprietário na condição de “dirigente da produção”. As con-

tradições que os clássicos, Marx em primeiro lugar, haviam regis-

trado entre o capital e a propriedade fundiária eram, nesse caso,

como que externalizadas e socializadas para o conjunto da socie-

dade local e se manifestavam no caráter extensivo do uso da ter-

ra, na grande proporção de terras improdutivas, na superexplo-

ração da força de trabalho e na dependência estrutural em relação

ao Estado. Como expressei, na apresentação da publicação da te-

se no Brasil, “trata-se de uma indústria dirigida por latifundiá-

rios, de uma oligarquia agrária constituída por industriais e de

um capitalismo carente de capital”.

Um dos elementos-chave da legitimação ideológica da mo-

dernização da agricultura no Brasil consistia na afirmação de que,

para ser moderno, seria necessário ser grande, a escala se trans-

formando numa das exigências do progresso. Esse argumento en-

cobria uma dupla dimensão do caráter conservador da moderni-

zação. Por um lado, tentava reconhecer nas propriedades de

grandes extensões uma capacidade, real ou potencial, para res-

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ponder satisfatoriamente às transformações tecnológicas em cur-

so. Como por um passe de mágica, a “Modernização sob o co-

mando da terra” (título do artigo que publiquei na Revista Idéias

do IFCH) esvazia o conceito de latifúndio que, sem muito esfor-

ço, pode ser apresentado como empresa rural e aceder aos bene-

fícios assegurados às unidades de produção modernas. Por outro

lado, tentava justificar a exclusão dos agricultores que operavam

em pequena escala, no que se refere tanto à terra quanto ao capi-

tal. Aos pequenos agricultores, poder-se-ia oferecer a fixação no

campo, uma eventual melhoria da renda, o acesso a certos bens,

mas jamais a parceria no progresso da agricultura.

Campesinato e agricultura familiar

Ao chegar à Unicamp, atendendo a uma sugestão de Tamás

Szmrecsányi, então coordenador do Grupo de Estudos Agrários,

dediquei-me a elaborar um texto sobre o campesinato, que seria

objeto de debate no grupo – O camponês, um trabalhador para

o capital. Foi um trabalho despretensioso, no qual procurei or-

ganizar minhas próprias idéias sobre a questão. Numa primeira

parte, afirmava que grande parte dos estudiosos da realidade bra-

sileira aceitava o pressuposto de que o capitalismo supõe, neces-

sariamente, a proletarização plena da força de trabalho. Assim,

no que se refere ao campesinato, ou se negava sua existência ou

se admitia que ele representava relações anteriores (pré) ou an-

tagônicas (anti), em todo caso “fora” (não) do capitalismo. Pro-

punha, então, que se pudesse pensar o campesinato como um

elemento integrado, contraditoriamente, à própria reprodução

das sociedades capitalistas, como uma expressão de sua hetero-

geneidade. Otávio Guilherme Velho, do Museu Nacional, havia

sido convidado a debater meu texto no grupo. Devo a ele, com

sua valiosa leitura crítica, o estímulo para continuar a pesquisa

que pretendia.

A busca da compreensão do campesinato continuou em

duas pesquisas subseqüentes. A primeira foi realizada com pro-

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dutores de feijão em São Paulo. Na verdade, minha intenção era

a de, uma vez na Unicamp, realizar uma pesquisa empírica sobre

esse tema. Num primeiro momento, integrei-me à equipe

coordenada por José Graziano da Silva e Ângela Kageyama, que

participava do estudo latino-americano sobre a diferenciação

camponesa, promovido pelo IICA. Escolhemos os produtores de

feijão da região de Itararé, em São Paulo, como estudo de caso

no Brasil. A situação desses produtores pareceu-nos particular-

mente interessante.

No início dos anos 70, com a elevação dos preços do feijão,

em decorrência de uma grave crise em seu abastecimento, a re-

gião de Itararé, onde predominavam produtores familiares, em

geral pequenos, especializa-se na produção de feijão. Os produ-

tores transformam rapidamente seu processo de produção, com

a introdução de um “pacote tecnológico” moderno e eficiente, cu-

jo carro-chefe foi uma certa variedade do feijão. Eles contaram

para isso com o apoio decisivo da pesquisa, da assistência técni-

ca e do crédito oferecidos pelo estado de São Paulo.

Em suas conclusões, a pesquisa registrava um profundo pro-

cesso de diferenciação social, pelo qual os produtores vivencia-

vam movimentos ascendente ou descendente (hacia arriba ou ha-

cia abajo, como diziam os coordenadores latino-americanos do

projeto), sem que isso implicasse para o produtor a perda da con-

dição camponesa. A “decomposição” do campesinato, que ocorre

quando o produtor perde a condição camponesa e se transforma

em empresário ou proletário, também foi observada na região,

porém, numa dimensão menos expressiva. A pesquisa observou,

igualmente, que a construção do espaço de reprodução desses

agricultores ocorria no contexto particular de suas relações com

o mercado e com o estado e de mudanças no padrão tecnológi-

co. A constatação empírica da permanência de um setor, que não

hesitávamos em definir como camponês, nos distanciava, portan-

to, de qualquer referência a “formas residuais” do campesinato,

“em vias de desaparecimento”. Não pude participar da pesquisa

até o final, pois, grávida, fui desaconselhada pelo médico a reali-

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zar viagens longas e cansativas. Graziano e Ângela compreende-

ram meus limites.

Na continuação, minha segunda pesquisa teve como título

Trajetória social e projeto de autonomia: os produtores familia-

res de algodão da região de Campinas, São Paulo. Os produtores

de algodão de Araras e Leme eram, em sua grande maioria, pe-

quenos proprietários, que trabalhavam com suas famílias. O al-

godão é uma cultura sujeita a sérios riscos naturais – doenças e

pragas –, ao mesmo tempo em que é submetida a estritas normas

de qualidade, em sua condição de matéria-prima industrial. Ela

deve, assim, ser realizada com elevado padrão tecnológico, o que

exige, além da capacitação dos produtores, o investimento de uma

soma importante de capital no processo produtivo. No caso estu-

dado, esses produtores dispunham de um capital relativamente

importante, adotavam uma tecnologia moderna, segundo as

orientações dos serviços de assistência técnica e eram relativa-

mente bem-remunerados. Pude perceber, no entanto, que viviam

uma série de tensões nos diversos planos de suas relações econô-

micas e sociais: com o estado, que exercia uma forma de tutela so-

bre suas práticas produtivas; com o mercado de insumos, em tor-

no dos preços dos mesmos; com o mercado comprador do

algodão (as beneficiadoras do produto), também sobre os preços,

mas, especialmente, a respeito da imposição das normas de qua-

lidade e, finalmente, com o mercado de trabalho, uma vez que a

colheita de algodão permanecia manual e era realizada por traba-

lhadores externos à família. No entanto, essa integração subordi-

nada ao mercado não anula a afirmação de um projeto familiar,

que se expressa, fundamentalmente, na prioridade atribuída pe-

los agricultores à consolidação do patrimônio familiar e no com-

prometimento dos membros da família no processo de trabalho

do estabelecimento. O caráter contraditório dessa subordinação

que, ao submeter, integra e viabiliza o trabalho familiar trans-

forma a unidade de produção e ainda incita diversas ações de

resistência, funda os limites do que denominei uma autonomia

relativa. Esse conceito me permitiu qualificar as contradições es-

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pecíficas vivenciadas pelos agricultores familiares, reconhecendo

o “lugar” que eles ocupam na heterogeneidade da sociedade ca-

pitalista brasileira.

A partir de 1984, participei da pesquisa internacional que

consistia no estudo comparativo sobre a agricultura familiar em

cinco países: França, Polônia, Canadá, Tunísia e Brasil. Os resul-

tados, que foram publicados em dois tomos, em francês, polonês

e português, permitiram sedimentar para os seus autores uma

concepção da agricultura familiar nas sociedades modernas. Ela

é heterogênea em suas formas de expressão social, e essa realida-

de multiforme é conseqüência direta de sua capacidade de adap-

tação a situações diversificadas. Em conseqüência, mais impor-

tante do que registrar seu desempenho econômico, torna-se

necessário compreender o que move esses agricultores no contex-

to em que vivem e, sobretudo, que estratégias adotam para im-

plementar seus projetos de reprodução.

O primeiro tomo dessa publicação, A agricultura familiar –

Uma realidade multiforme, foi consagrado à apresentação da pro-

posta teórico-metodológica que norteava a equipe, bem como de

uma síntese a respeito da agricultura familiar em cada país sele-

cionado. Assinei, com Anita Brumer, Ghislaine Duque e Fernan-

do Antônio Lourenço, o capítulo sobre o Brasil. No segundo to-

mo, dedicado ao estudo comparativo propriamente dito, os

temas trabalhados na pesquisa de campo foram analisados de

forma transversal, isto é, considerando sua incidência nas 13

áreas dos 5 países.3

O “lugar” dos rurais

Para o segundo tomo – A agricultura familiar – Do mito à reali-

dade –, escolhi, juntamente com Fernando Lourenço, o tema re-

ferente à vida local dos agricultores familiares. Um dos últimos

estudos no Brasil sobre o tema das relações entre o mundo rural

e o mundo urbano havia sido o de Maria Isaura Pereira de Quei-

roz, a respeito dos “bairros rurais paulistas”, publicado em 1973.

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3 Hugues Lamarche(coord.), A agriculturafamiliar – Uma realidademultiforme. Campinas:Editora da Unicamp,1993, v. 1; A agriculturafamiliar – Do mito à rea-lidade. Campinas: Edito-ra da Unicamp, 1998, v. 2.

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Essa questão começou a me interessar por ocasião da pesquisa

realizada em Leme. Boa parte dos agricultores, produtores de al-

godão, residia na sede municipal, cidade com 70 mil habitantes,

localizada num importante eixo urbano-industrial do estado de

São Paulo. Como os sítios eram relativamente próximos e os

meios de transporte acessíveis, as relações entre (esse) meio rural

e (essa) cidade eram freqüentes, o que não impedia os agriculto-

res (os homens mais que as mulheres; os adultos, mas não os jo-

vens) de manter suas formas tradicionais de lazer no meio rural,

tais como pescarias, festas religiosas e encontro com os amigos

dos sítios. Posteriormente, quando da aplicação da pesquisa no

Canadá, constatei que os agricultores viviam em suas proprieda-

des, porém com um acesso intenso à cultura urbana, no que se

refere ao uso cotidiano de bens e serviços disponíveis ao conjun-

to da população do país, o que incluía o gozo anual de férias nos

vizinhos Estados Unidos ou mesmo na Europa. Analisando o con-

junto das áreas pesquisadas, percebemos que os agricultores fa-

miliares têm acesso, diferenciado sem dúvida, à cultura urbana e

ampliam seus espaços de interação, para além do âmbito local,

atingindo as esferas regionais e nacionais. No entanto, mesmo na

França e no Canadá, os países mais “modernos” do universo da

pesquisa, o meio rural é para eles o espaço das relações de proxi-

midade e de interconhecimento, que permanece valorizado.

Vivo hoje no Recife, onde continuo exercendo minhas ativi-

dades de professora e pesquisadora, como colaboradora do Pro-

grama de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE e como bolsis-

ta do CNPq. As pesquisas subseqüentes já foram realizadas após

minha instalação no Recife, como um desdobramento dos inte-

resses já assumidos até então, e tinham por objeto, mais uma vez,

a compreensão do mundo rural brasileiro na atualidade e a agri-

cultura familiar.

Apesar da distância, os laços com a Unicamp não se rompe-

ram. Tive a felicidade de poder continuar ligada ao Ceres através

do Projeto Capes/Procad, O Mundo Rural e as Ciências Sociais –

Produção de Conhecimento e Formação de Pesquisadores, que

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3 3

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reuniu numa profícua parceria, de 2001 a 2005, os estudiosos do

mundo rural brasileiro da Unicamp e das Universidades Federais

do Rio Grande do Norte, Campina Grande e Pernambuco. Neste

e em tantos outros espaços acadêmicos, o encontro com os pes-

quisadores do Ceres é, sempre para mim, um momento de ale-

gria, mas também, por que não dizer, de saudade.

MARIA DE NAZARETH BAUDEL WANDERLEY é professora aposentada da Unicamp,colaboradora do PPGS–UFPE.

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A R T I G O S

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TEMPOS E ESPAÇOS NOS MUNDOS RURAIS DO BRASIL

CARLOS RODRIGUES BRANDÃO

R E S U M O Este trabalho é uma espécie de “segunda parte” de um estudo an-

terior, mais teórico e bibliográfico, sobre a questão da existência, vivência e percep-

ção cultural de tempos e espaços no mundo rural. Um trabalho situado entre lei-

turas de geografia e de antropologia. Meu propósito aqui é descrever um pouco das

diferenças existentes hoje entre as diversas modalidades de “experiência de tempos-

espaços” nas diversas modalidades de comunidades rurais (ou relacionadas ao mun-

do rural) por ventura (ou desventura) presentes no Brasil de hoje. Parto do princí-

pio (aliás, evidente) de que o “mundo rural brasileiro” é muito mais diversificado

e polissêmico do que em geral se imagina. Retomo algumas idéias há muito tempo

desenvolvidas por José de Souza Martins em Capitalismo e tradicionalismo e des-

crevo o que me parece mais característico de três formas sociais de viver e trabalhar

no mundo rural.

P A L A V R A S - C H A V E Espaços-tempos rurais; camponeses; mudança

social.

A B S T R A C T This work is a kind of “second part” of a previous study, more

theoretical and bibliographical in nature, on the issues of existence, experience anc

cultural perception of times and spaces in the rural world. It is a work placed between

anthropological and geographical readings. My aim is to describe some of the current

differences between several modes of “experiencing space-times” which prevail in

distinct modes of rural (or rural-related) communities which exist in today’s Brazil,

for better or worse. I start from the (incidentally self-evident) principle that the

“Brazilian rural world” is much more diverse and polysemic than one generally

imagines. I go back to a few ideas developed a long time ago by José de Souza Martins

in Capitalism and Traditionalism to describe what seems to me to be most

characteristic in three social forms of life and work in the rural world.

K E Y W O R D S Rural spaces-times; peasants; social change.

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UM BREVE OLHAR PARA ONTEM

Uma leitura dos estudos que nos últimos 50 anos provem da an-

tropologia, da geografia e mesmo da sociologia haveria de nos lem-

brar que a maior parte dos trabalhos de campo de que resultaram

e seguem resultando artigos, livros, dissertações e teses, em que

questões como as relações culturais tempo-espaço são levadas em

conta, ou são mesmo essenciais, são trabalhos centrados em co-

munidades rurais tradicionais. São os antigos estudos de comuni-

dade (Donald Pearson, Emílio Willems, Eduardo Galvão, Oracy

Nogueira e tantos outros), como as pesquisas pioneiras dos bair-

ros rurais paulistas, de que o recentemente republicado Parceiros

do Rio Bonito, de Antonio Candido, ao lado de Bairros rurais pau-

listas, de Maria Isaura Pereira de Queiroz, são dois excelentes

exemplos. Ou são as várias pesquisas de sociedades camponesas tra-

dicionais, que por um longo tempo têm ocupado o tempo e os es-

tudos de vários cientistas sociais.1

Vistos de cima e de passagem, às vezes parece que as comu-

nidades rurais tradicionais são enfocadas a partir do espaço e da

cultura, ao passo que as frentes pioneiras ou de expansão, as áreas

de conflito agrário, os acampamentos e assentamentos da refor-

ma agrária são estudados a partir do tempo e da história. Tere-

mos então, de um lado, um excesso de cultura (espaço) sem his-

tória e, de outro, um excesso de história (tempo) sem cultura.2

Há muitos espaços sem tempos, de um lado, e muitos tempos sem

espaços, de outro. E é difícil encontrar um ponto de equilíbrio en-

tre essas duas dimensões que tanto na natureza quanto nas socie-

dades humanas não existem nunca em separado.

Com a atenção talvez centrada demais naquilo que se trans-

forma e moderniza no mundo rural da atualidade global e brasi-

leira, Milton Santos quase descreve o campo através do que nestes

últimos anos ele deixou de ser, para ser aquilo em que vertigino-

samente, e, não raro, de maneira lastimável, ele se transforma.

Uma racionalidade empresarial domina todo o cenário da ci-

dade, do campo e das relações entre um e outro. Essa racionali-

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1 Apenas para lembraralguns autores nas ciên-cias sociais: Nice L. Mul-ler, “Sítios e sitiantes noestado de São Paulo”, Bo-letim USP, n. 132, Geo-grafia, 1951; Maria Isau-ra Pereira de Queiroz,Bairros rurais paulistas,Duas Cidades, 1973, eCampesinato brasileiro,Vozes, 1976; AntonioCandido, Os parceiros doRio Bonito, Duas Cida-des, 1971; Emílio Wil-lems, Cunha – Tradição etransição em uma culturarural no Brasil, Secretariade Agricultura do Estadode São Paulo, 1947; Ro-bert Shirley, O fim deuma tradição, Perspecti-va, 1971; José de SouzaMartins, Capitalismo etradicionalismo, Pionei-ra, 1975; Afrânio GarciaJr., Terra de trabalho: tra-balho familiar e pequenosagricultores, Paz e Terra,1983; Margarida MariaMoura, Os herdeiros daterra, Hucitec, 1978; Osdeserdados da terra, Ber-trand Brasil, 1988; Olin-da Maria de Noronha, Decamponesa a “madame”– Trabalho feminino e re-lações de saber no meiorural, Loyola, 1986; Leo-narda Musumeci, O mitoda terra liberta, Anpocs,Vértice,1988;Luiz Eduar-do Soares, Campesinato,ideologia e política, Za-har, 1981; Klaas Woort-mann,“Com parente nãose neguceia”, AnuárioAntropológico, n. 87, 1990;Jadir de Moraes Pessoa,Cotidiano e história, Edi-tora da Universidade Fe-deral de Goiás, 1997;Carlos Rodrigues Bran-dão, A partilha da vida,GEIC, Cabral, 1995.

2 Algo semelhante acon-tece em outros camposde estudos sociais. Nocampo das pesquisas so-bre religiões no Brasil,

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dade de que o “agronegócio” é o melhor (e o pior) espelho altera

estruturas sociais de poder, de apropriação de espaços de vida,

trabalho e produção. Altera – às vezes depressa demais – espaços,

terras, territórios, cenários, tempos e paisagens. Movida pelo pe-

so do capital, pela racionalidade capitalista e por uma tecnologia

industrializada que em poucos meses transforma biomas de cer-

rado no norte de Minas em milhares de alqueires do deserto ver-

de dos eucaliptais e que faz os círculos de plantio de soja em la-

vouras irrigadas chegarem até nas portas de Brasília, além de

alterar a vida de paisagens e de pessoas, das beiras do Chuí às do

Oiapoque.

Por toda a parte estamos envolvidos com novos termos en-

tre a terra e o trabalho, novos conflitos, ou o aguçar dos velhos

conflitos entre antigos e novos personagens rurais ou “no cam-

po”. Uma racionalidade centrada no lucro, na competência espe-

cializada e na competição legitimada como uma forma quase úni-

ca de realização do “progresso” quebra o que resta ainda de visões

e vivências tradicionais de tempo-espaço rural e de modos de vi-

da a que se aferram ainda os índios e os camponeses.

Cria-se, praticamente, um mundo rural sem mistérios onde

cada gesto e cada resultado deve ser previsto, de modo a as-

segurar a maior produtividade e a maior rentabilidade pos-

sível. Plantas e animais já não são herdados das gerações an-

teriores, mas são criaturas da biotecnologia; as técnicas a

serviço da produção da armazenagem, do transporte, da

transformação dos produtos e de sua distribuição, respondem

pelo modelo mundial e são calcados em objetivos pragmáti-

cos, tanto mais provavelmente alcançados, quanto mais cla-

ro for o cálculo na sua escolha e na sua implantação. É desse

modo que se produzem nexos estranhos à sociedade local, e

mesmo nacional, e que passam a ter um papel determinante,

apresentando-se tanto como causa, quanto como conseqüên-

cia da inovação técnica e da inovação organizacional. O todo

é movido pela força (externa) dos mitos comerciais, essa ra-

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3 9

por exemplo, os pesqui-sadores que se dedicamaos estudos dos sistemasreligiosos de tradiçãoafro-brasileira e, em es-pecial, o candomblé, oudo catolicismo popular,em geral “desestorificam”o seu olhar e aprofundammuito uma etnografia demitos, símbolos e sig-nificados profundos. Jáaqueles que investigam oprotestantismo ou a Igre-ja Católica, como umainstituição social com-plexa, “desculturalizam”o olhar e se dedicam aquestões sociopolíticasrelacionadas a organiza-ções formais da Igreja, asituações de conflito e a relações de poder.

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zão do mercado que se impõe como motor do consumo e da

produção.

Nesse mundo rural assim domesticado, implanta-se um im-

pério do tempo medido, em que novas regularidades são bus-

cadas. Muitas delas só se tornam possíveis quando tem êxito

a vontade de se subtrair às leis naturais. O respeito tradicio-

nal às condições naturais (solo, água, insolação, etc.) cede lu-

gar, em proporções diversas, segundo os produtos e regiões, a

um novo calendário agrícola baseado na ciência, na técnica e

no conhecimento.3

O que Milton Santos diz aqui não nos é desconhecido. E, se no

começo do segundo parágrafo ele emprega a palavra “domestica-

do”, eis uma palavra bem-escolhida. Pois de fato bem sabemos que

a junção do capital flexível, as novas tecnologias aplicadas sobretu-

do à pecuária e à monocultura e, como sua “ciência”, sua lógica e

sua ideologia invadem tanto o campo rural quanto todos os outros

campos da vida (no sentido agora conferido por Pierre Bourdieu a

essa palavra), ora propondo e ora impondo uma outra ética dirigi-

da à criação de saberes, valores, sentimentos e sociabilidades que

gerem modos de vida tão “modernos” que terminem, sabendo dis-

so ou não, inteiramente submetidos a essa nova racionalidade.

Como tantos outros estudiosos da “condição pós-moderna”

antecipam há já alguns anos, tanto na cidade quanto no campo,

não são apenas algumas esferas da vida mais diretamente associa-

das ao capital e ao trabalho as que devem enquadrar-se e serem

cada vez mais regidas pela lógica dessa neo-racioalidade e pela éti-

ca e política de seus modos de vida (de sua neocultura, se quiser-

mos), mas todas as esferas, se possível das vidas de todas as cate-

gorias de pessoas, grupos humanos e comunidades sociais.

Juntos, as novas técnicas e o novo capital, deixam de ser, co-

mo no passado, exclusivamente de um domínio particular de

atividade e se espalham por todo o corpo social, tornando-se

verdadeiros regedores do tempo social.4

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4 0

3 Milton Santos, op. cit.,p. 243, cap. 13: “Espaçosda racionalidade”.

4 Milton Santos, op. cit.,p. 246, cap. 13.

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E não apenas nos tempos para pensar e viver a temporalida-

de, mas também uma nova ordenação dos espaços que vão da re-

lação entre os corpos às relações entre os poderes, as proprieda-

des e as classes sociais.

Devemos, no entanto, desconfiar dessa expansão sem limites

e não-questionável, ou fracamente questionadas da lógica do ca-

pital flexível conduzido sobretudo pelas unidades de expansão do

agronegócio em suas diferentes fases e faces. Em primeiro lugar

porque há, diante dela, por toda a parte, uma resistência ativa de

grupos e comunidades expropriados por ela. Em segundo lugar

porque há também uma outra resistência menos ativa, menos mo-

bilizada, mas nem por isso menos “resistente”. Veremos mais

adiante o mesmo geógrafo opondo à “racionalidade do capital” e

da agricultura do mercado uma “outra racionalidade”, ou mesmo

outras “contra-racionalidades”, as do mundo da vida, do trabalho

ou, se quisermos trazer aqui uma feliz expressão de José de Sou-

za Martins, da agricultura de excedente.5

Em todo o Brasil, através de todos os espaços de “sistemas de

objetos e sistemas de ações” e dos mais diversos grupos humanos

e modos de vidas, populares ou não, entrevemos a ação de movi-

mentos sociais do MST ao SOS Mata Atlântica. Pela via da questão

agrária, pela via da questão ambiental, pela via dos direitos hu-

manos ou por outras vias de enfrentamento que a elas se somam

e com elas interagem, são inúmeras as unidades de ações sociais

que se opõem à racionalidade, ao poder e aos interesses da expan-

são globalizada do capital no campo, como propõem, no bojo de

suas diferentes contra-racionalidades, outras e opostas alternati-

vas de gestão social de tempos e de espaços, de vidas e de mun-

dos de vida e de trabalho.

De outra parte, de igual maneira estamos diante de um múl-

tiplo e nada uniforme ou globalizado mundo rural. Somos ali-

mentados por grãos, frutas e folhas que ainda provêm bem mais

da multivariança da agricultura familiar típica do campesinato

tradicional e da expansão (menos visível, mas possivelmente mais

sólida) de novas alternativas de produção e gestão do ambiente e

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5 Ver o seu sempre atualCapitalismo e tradiciona-lismo. São Paulo: Pionei-ra, 1975.

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dos bens da terra, como a agricultura orgânica, a permacultura,

a agrossilvicultura e outras mais. De um lado, as imensas áreas

uniformemente tomadas de pessoas e culturas tradicionais para

abrigarem o gado ou a soja. De outro, a criação recente de áreas

crescentes de produção agropastoril e mesmo madeireira regi-

das por princípios de sustentabilidade e solidariedade. Longe, na

Amazônia, a expansão de experiência dos “povos da floresta”, co-

mo os seringueiros do Xapuri são exemplos de uma fecunda con-

tra-racionalidade.

Onde parece haver uma uniformização crescente e irrever-

sível, podemos estar diante, também, de uma crescente diferen-

ciação de formas culturais de vida e modos sociais de trabalho

no campo. Comunidades indígenas ampliam suas áreas de espa-

ços-reservas homologadas e, pouco a pouco e perigosamente, al-

gumas delas se integram a uma economia regional de exceden-

tes. Comunidades negras rurais quilombolas (bem mais do que

contamos ou imaginamos até agora) conquistam o direito de

existirem em suas terras ancestrais de pleno direito. Comunida-

des camponesas reinventam estratégias para se preservarem,

transformando todo o necessário para que o essencial de suas

formas de vida não se perca. Acampamentos dos movimentos so-

ciais da reforma agrária cobrem de lonas pretas tanto os espaços

estritos das beiras de estradas, quanto as terras de fazendas im-

produtivas e ocupadas. Um campesinato modernizado, em par-

te cativo, mas em parte ainda livre diante do poder do agrone-

gócio, não apenas sobrevive, mas se reproduz com sabedoria.

Ao analisar transformações macroestruturais em todo o

mundo em uma “era de globalização”, Octavio Ianni soma-se a

outros estudiosos “do que está acontecendo”, ao lembrar que,

mesmo nos espaços mais aparentemente dominados pelo gi-

gantismo “do que mudou”, as formas de vida comunitárias e

tradicionais, de ocupação e produção em multiespaços parti-

lhados de vida, labor e trabalho, não apenas resistem e sobre-

vivem, mas, em alguns cenários, elas proliferam, adaptam-se e

transformam-se. Ainda que essa transformação represente uma

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progressiva perda de autonomia em nome dos pólos dominan-

tes de domínio da economia agropastoril. Ianni lembra que o

próprio agronegócio se expande a expensas da pequena agri-

cultura e, mais ainda, em aliança com pequenas e médias pro-

priedades agrícolas modernizadas e a meio caminho entre a eco-

nomia de excedente e a economia de mercado, segundo José de

Souza Martins.6

Sabemos que tudo está mudando, e nada mudou ainda in-

teiramente. A começar pela desigualdade social, a expropriação,

o empobrecimento de quem já era pobre e a expansão da nova

racionalidade de que nos fala Milton Santos. E podemos então

concordar com Vera Salazar, em uma passagem do documento

apresentado em um seminário sobre a reforma agrária, no Insti-

tuto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia.

A revolução tecnológica, expressa na modernização da agri-

cultura, a partir da década de 1970, representa esta transfor-

mação que, no entanto, não alterou significativamente a con-

figuração do quadro agrário brasileiro. A concentração de

terra e de riquezas no campo e na cidade, as disparidades re-

gionais no que tange à renda dos agricultores, ao predomínio

de certos cultivos, visando o mercado externo se mantiveram

(e se mantém) reproduzindo e fortalecendo as distorções es-

truturais que definem e embasa a história da estrutura agrá-

ria brasileira.7

A dupla resistência lembrada linha acima implica aquilo que

mais nos interessa compreender. É que tanto em sua atividade

mobilizada quanto em sua tradicionalidade modernizada existem

diferentes formas próprias ou apropriadas de pensar a vida e o

mundo. Voltemos por uma última vez aqui a Milton Santos.

Ante a racionalidade dominante, desejosa de tudo conquistar,

pode-se, de um ponto de vista dos atores não beneficiados, fa-

lar de irracionalidade, isto é, de produção deliberada de situa-

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4 3

7 Vera Lúcia Salazar Pes-soa, “Entre o rural e o ur-bano – Construindo gru-pos de pesquisas”. Textoelaborado para a Mesa-Redonda III: Grupos dePesquisa – Agricultura eDesenvolvimento Regio-nal: Relatos de Experiên-cias, p. 1.

6 Octavio Ianni, A era doglobalismo. Rio de Janei-ro: Civilização Brasileira,2002.

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ções não-razoáveis. Objetivamente pode-se dizer também

que, a partir dessa racionalidade hegemônica, instalam-se pa-

ralelamente contra-racionalidades.

Essas contra-racionalidades se localizam, de um ponto de vis-

ta social, entre os pobres, os migrantes, os excluídos, as mino-

rias: de um ponto de vista econômico, entre as atividades mar-

ginais, tradicional ou recentemente marginalizadas; e, de um

ponto de vista geográfico, nas áreas menos modernas e mais

“opacas”, tornadas irracionais para usos hegemônicos. Todas

essas situações se definem pela sua incapacidade de subordi-

nação completa às racionalidades dominantes, já que não dis-

põem dos meios para ter acesso à modernidade material con-

temporânea. Essa experiência da escassez é a base de uma

adaptação criadora à realidade existente.8

Formas culturais e populares de racionalidades e de sensibi-

lidades que poderiam parecer anti-racionais e ultrapassadas. Sis-

temas de idéias e estilos de ação fora do tempo e do lugar. No en-

tanto eles podem ser pensados como contra-racionalidades.

Como a defesa de espaços de vida e de trabalho no campo, não

apenas postos à margem, mas auto-situados em zonas de frontei-

ra geográfica, social e simbólica de um processo proclamado por

seus realizadores como algo inevitável, benéfico e irreversível de

“modernização do campo”. Uma modernização insustentável que

traz para o mundo rural escalas e interações de tempo-espaço tí-

picas da empresa fabril moderna. Com a diferença de que “lá”, na

cidade, as fábricas estão ainda repletas de trabalhadores, enquan-

to no campo largos espaços de produção de mercado precisam es-

tar cada vez mais vazios de braços humanos, para dar lugar às

poucas máquinas que, primeiro, substituíram famílias de campo-

neses e, depois, as próprias pessoas de trabalhadores volantes. As-

sim, diante do avanço expropriador e uniformizante do capital

flexível, todas as supostas anti-racionalidades que a ele se opõem

podem ser compreendidas como diferentes alternativas de outras

racionalidades.

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8 Milton Santos, op. cit.,p. 246, cap. 13.

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PROXIMIDADE E DIFERENÇA: SISTEMAS DE PRODUÇÃO, MODOS DE VIDA E VIVÊNCIA DE TEMPOS E ESPAÇOS NOS MUNDOS RURAIS BRASILEIROS

Retomemos de forma mais ordenada aqui os argumentos que

acabam de nos deixar, entre as linhas acima. Seja porque toda a

expansão do poder, dos interesses e da racionalidade do agrone-

gócio provoca a persistência de antigos e a emergência de novos

poderes, modos de vida e racionalidades rurais e populares (Mil-

ton Santos), seja porque, no fim das contas, a expansão do ca-

pital flexível, agropecuário,“não alterou significativamente a

configuração do quadro agrário brasileiro” (Vera Salazar), po-

demos pensar em perguntas opostas às respostas que apontam

para uma uniformização rotinizante dos espaços de vida e de

trabalho dos mundos rurais brasileiros, sob os “novos tempos”

da modernização capitalista. Não estaremos nós diante de uma

persistente e essencial (no sentido de não-marginal) presença de

antigas e novas múltiplas formas de interação entre tempos-e-

espaços, que caracterizam e seguem caracterizando a experiên-

cia pessoal, interativa e social dos diversos atores e dos diversos

modos de vida das diferentes modalidades de presença humana

no campo, hoje?

Quero retomar aqui algumas idéias de José de Souza Mar-

tins em Capitalismo e tradicionalismo. Faço a síntese das que nos

tocam de mais perto aqui. A pequena unidade camponesa de tra-

dicional agricultura familiar não é marginal à expansão do capi-

tal agrário e nem é uma experiência social em extinção. Ao con-

trário, ela é orgânica e essencial à expansão do capitalismo no

campo.

Lembremos José de Souza Martins. Essa agricultura tradicio-

nal não é uma agricultura de consumo, mas uma agricultura de ex-

cedente. Seus produtores geram tanto os bens de consumo fami-

liar quanto, e em múltiplos casos, principalmente o excedente que

é destinado à troca e à venda em mercados vicinais, locais e mes-

mo regionais. Pequenos proprietários e produtores arrendatários

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de terra plantam e criam diretamente para o mercado e, em dife-

rentes situações, tendem a tornar-se “cativos”de produtores maio-

res ou mesmo de empresas que financiam a produção e detêm o

poder de compra de seus produtos. Há um momento em que, des-

crevendo estratégias de produção e venda de produtos da terra

em uma região por onde eu mesmo passei anos depois, em pes-

quisa de campo, ele diz o seguinte:

Vê-se que na montanha, tanto no Alto Paraíba quanto na

Mantiqueira, a população rural produz diretamente os bens

da sua subsistência (feijão) e um excedente de aproximada-

mente 1/4 do produto para semente e comércio. Na planície,

contudo, a população rural produz menos da metade do fei-

jão que provavelmente consome. Mas, na planície e na mon-

tanha (agora apenas o Alto Paraíba) estimo que menos de 10%

do leite produzido destina-se ao consumo dos próprios pro-

dutores. A sua produção tem em vista o mercado.9

Podemos situar essa agricultura rústica, camponesa, familiar,

ou que nome tenha, em diferentes pontos a meio caminho de uma

linha de alternativas que começa, aí sim, em unidades familiares

ou mesmo coletivas de produção de consumo e as unidades em-

presariais de produção de mercado. Concordo com José de Souza

Martins em que, fora o caso das comunidades indígenas – e, mes-

mo assim, nem todas e nem sempre – e fora o caso de algumas

comunidades muito isoladas mesmo de um mercado local, ou de

produção muito limitada, que caracterizariam uma restrita pro-

dução de consumo, na qual se troca e, mais ainda, se vende apenas

o pouco que sobrou do consumo destinado ao grupo familiar ou

à unidade maior, a comunidade, todas as outras constituem as di-

ferentes modalidades de tempos-espaços produtoras de econo-

mias de excedente.

A própria conversa cotidiana, seja entre vizinhos, amigos e

parceiros do trabalho, seja em âmbito familiar (ali onde as opi-

niões das esposas são bastante mais importantes do que se ima-

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9 Op. cit., p. 10, 11. Devodizer que, pesquisandovários anos mais tardecomunidades campone-sas nas mesmas regiõesde montanha (Catuçaba,em São Luís do Parai-tinga, no Alto Paraíba eJoanópolis, na serra daMantiqueira paulista),encontrei dados bastantepróximos. E eles valemtambém para a venda deoutros produtos, comomilho, cebola, porcos egado de corte.

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gina em geral), versa quase sempre sobre assuntos ligados “à lida”

com as plantas e/ou os animais. E, nelas, as questões relativas às

estratégias de comercialização local e regional dos excedentes ga-

nham um lugar cada vez mais central. Economias familiares, de

tipo tradicional camponês, seja na direção de uma ainda maior

tradicionalidade, seja como no caso de alguns assentamentos da

reforma agrária, não situadas à margem de sistemas dominantes

de economias de mercado, mas integradas em e entre os seus es-

paços territoriais de natureza, sociedade e mesmo de cultura.

Podemos concordar com Graziano Neto e também com vá-

rios outros estudiosos dos processos de transformação da agricul-

tura, da pecuária e mesmo de atividades de extração direta dos

bens da terra (indústria madeireira, mineração etc.), quando lem-

bram que a suposta ou real “modernização do campo brasileiro”

foi bastante conservadora. Ela se realiza bem mais no plano agrí-

cola do que no agrário. Ela “moderniza” formas de apropriação e

de concentração da propriedade fundiária e não na direção ver-

dadeiramente moderna. Isto é, a de uma efetiva democratização

social e econômica do acesso à terra e às efetivas condições sociais

e tecnológicas do trabalho com a terra. Modernizamos tecnoló-

gica e capitalisticamente a agricultura, criamos às pressas um mo-

delo importado de agronegócio sem havermos antes procedido a

uma modernização estrutural do campo.10

Os sucessivos “programas de reforma agrária” seguem desti-

nando aos homens da terra porções residuais de “lotes” em assen-

tamentos precariamente assistidos, enquanto se empenham, uns

após os outros, em apoiar os latifúndios de agropecuária de mer-

cado e a incentivar a expansão do agronegócio, à custa de um cres-

cente deterioro das condições de vida de famílias e de comunida-

des rurais e de uma degradação, em vários espaços, irreversível,

do meio ambiente, como vejo ocorrer agora no norte de Minas,

onde trabalho com uma equipe de pesquisa nas duas margens do

rio São Francisco.

Assim, se quisermos estender um olhar geográfico não ape-

nas ao que parece mais visível, mais dinâmico e mais conflitivo

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10 Francisco GrazianoNeto, Questão agrária eecologia – Crítica da mo-derna agricultura. SãoPaulo: Brasiliense, 1982.

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nos diferentes mundos não-urbanos do Brasil (para aí incluirmos

também os territórios e as comunidades das diferentes outras

étnicas no país), poderemos trabalhar com três amplas categorias

de ocupação de territórios, de apropriação da terra, de manejo do

ambiente, de criação de tipos de vida social e suas diferentes

culturas. E, nelas, de diferentes modalidades de experiência, de

percepção-compreensão e de recriação de seus diversos espaços-

tempos. Enfim, daquilo que em boa medida atribui substância

geoexistencial ao que Milton Santos lembrava linhas acima como

as nossas diferentes racionalidades. Pois pensar racionalmente um

mundo começa por criar os padrões tempo-e-espaço, em que su-

jeitos sociais criam os cenários entre a natureza e a cultura, que

os recriam como múltiplos e interativos atores culturais dos dra-

mas de vidas que compartem.

E este seria o momento de lembrarmos uma vez mais que,

tal como acontece em outros campos da experiência humana,

sobram vivências, pesquisas e teorias a respeito da construção

cultural de sentidos de tempo-e-espaço em sociedades indíge-

nas e sociedades regionais tradicionais, entre terras de negros,

terras de santos e terras de camponeses patrimoniais, do que en-

tre unidades rurais modernizadas, quaisquer que sejam as suas

dimensões e vocações de economia. Conheço inúmeras pesqui-

sas sobre o viver, o sentir e o saber de tempos e de espaços em

comunidades indígenas, ou em comunidades étnicas tradicio-

nais (como as da ilha de Bali, estudadas pelo mesmo Clifford

Geertz), do que em áreas de frentes pioneiras e de expansão (em-

prego aqui ainda categorias de José de Souza Martins), em ter-

ritórios de unidades camponesas modernizadas, como tantas no

Sudeste e no Sul do Brasil, em latifúndios de economia de mer-

cado e mesmo em assentamentos e acampamentos da reforma

agrária.

Essa diferença de ênfase de olhares diferentes entre antropó-

logos, geógrafos e outros cientistas sociais por certo acompanha

o que parece de fato “dar-se a ver” na diversidade de nossos ter-

ritórios, paisagens e unidades sociais situadas fora das cidades.

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Acompanha também a própria relação existencial da experiência

pessoal, interativa e social da relação-criação de tempo-espaço.

Em termos que vão de uma geografia das paisagens a uma an-

tropologia dos dramas sociais, podemos estabelecer um gradiente

aliás já sugerido acima.11 De um lado ficam as comunidades so-

ciais e culturas associadas à variedade de produções de consumo,

entre indígenas, quilombolas, camponeses tradicionais e quase

isolados. A meio caminho coloquemos as unidades rurais associa-

das à produção de excedentes. Entre eles, demarquemos posições.

Na linha de fronteira com as “comunidades de consumo”, estão os

outros produtores familiares de padrão camponês tradicional (co-

mo os das culturas caipiras de São Paulo), sejam eles proprietá-

rios sitiantes, moradores agregados, parceiros. A meio caminho fi-

cam os pequenos produtores camponeses, ainda patrimoniais, ou

algo já mais modernizados. Na posição mais próxima às unidades

de produção de mercado, até pelas relações de proximidade, aco-

modação forçada e conflito com ela, ficam os lavradores antigos

e recentes das terras apropriadas pela reforma agrária. Finalmen-

te, no pólo oposto situam-se as unidades típicas da produção de

mercado, caracterizadas hoje pelo agronegócio. Entre os sujeitos

populares, ficam aí pequenos produtores cativos do mercado, pro-

dutores já especializados para o mercado. Estão também todos os

múltiplos trabalhadores rurais, entre condutores especializados de

máquinas agrícolas e trabalhadores volantes.

Bem sabemos que, tanto em casos individuais quanto em ter-

mos de comunidades inteiras, quase já não existem mais “tipos

puros” de sujeitos rurais. Um bom exemplo dessa variância cres-

cente são as comunidades muito tradicionais de pequenos agri-

cultores do vale do Jequitinhonha (e de quantos outros vales no

Brasil), que, justamente para poderem manter a propriedade e a

vida rural tradicional, migram sazonalmente para terras distan-

tes de São Paulo em busca de trabalho assalariado associado à mais

moderna e devastadora produção de mercado.

Deixemos de lado os senhores do poder e do capital e foque-

mos o olhar sobre os outros “homens da terra”, a começar por

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11 Tomo emprestada es-ta categoria que passa doteatro à antropologiaatravés de estudos bas-tante conhecidos de Vic-tor Turner, Drams, fieldsand metaphors: symbolicaction in human society.Ithaca: Cornell Univer-sity Press, 1985.

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pessoas, famílias e comunidades de povos indígenas e quilombo-

las até todos os outros, se possível: os agricultores e pecuaristas,

agricultores camponeses, de produção ainda familiar, pequenos

proprietários, sitiantes tradicionais; os trabalhadores rurais par-

ceiros, “agregados” e “moradores” ou não, trabalhadores parcei-

ros, meeiros e, no limite, arrendatários. Sigamos adiante em di-

reção aos outros “herdeiros”, “deserdados” e expropriados da

terra: os camponeses, os expropriados, os trabalhadores diaris-

tas, volantes, os peões de fazendas, os acampados nas beiras de

estrada e os assentados da reforma agrária, enfim, os homens po-

bres da terra.12

Em que espaços eles habitam, vivem, trabalham, se reprodu-

zem e pensam a vida e o mundo? Em que tempos se movem e co-

mo representam o seu passar? Como, nesta era em que mesmo no

campo tudo muda e permanece como está, tudo se move (a co-

meçar pela vida dos migrantes) e, aqui e ali, parece ainda tão igual

a sempre, tão “parado no ar”? Claro, não chegarei perto de mui-

tas sugestões de respostas a essas perguntas e àquelas que suas res-

postas haverão de reabrir. Creio, no entanto, que poderia ser pro-

veitoso abrirmos nossos horizontes aos seus limites máximos e

realizarmos juntos um exercício de precária classificação das

aproximações e diferenças entre o habitar espaços, criar espaços,

viver espaços e pensar, no tempo, os espaços da vida.

RUGOSIDADES: OS TEMPOS-ESPAÇOS ONDE O RELÓGIOÉ TAMBÉM O SOL

Em um livro que se tornou depois um clássico na antropologia,

após descrever o modo de vida dos Nuer, um povo nilota cria-

dor de gado, entre suas aldeias e os acampamentos, Evans-Prit-

chard conclui um parágrafo, após comentar o viver e o sentir do

passar do tempo deles, com uma frase pouco típica para um in-

glês já habitante de tempos em que os seus pais haviam desco-

berto que “tempo é dinheiro”. Ele conclui dizendo: “os Nuer têm

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12 Será fácil ver que es-tou empregando aquinomes comuns até mes-mo em títulos de livrossobre as diferentes cate-gorias de trabalhadoresdiretos entre os tempos-espaços sociais da terra.

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sorte”. A felicidade deles está em não serem, ainda ou sempre, co-

mo nós somos.13

E o que aproxima comunidades indígenas (entre isoladas,

contatadas, integradas), comunidades quilombolas e as ainda

existentes (e cada vez mais raras), comunidades regionais cam-

ponesas semi-isoladas, é o fato de que, entre elas, para quem o

tempo ainda é mais “comida” do que “dinheiro”, o correr da vi-

da se passa no interior de uma natureza ainda muito pouco so-

cializada. Ainda apenas aos fragmentos realizada e pensada co-

mo cultura.

Como uma boa parte do que se obtém para o sustento fami-

liar e a reprodução da vida coletiva é obtido da natureza, por co-

leta, caça e pesca, os espaços da vida e do trabalho ainda são, em

uma larga medida, os da própria natureza. Depoimentos de se-

ringueiros do Acre revelam um existir no mundo e um viver es-

paços-tempos ao mesmo tempo próximos e bem distantes dos

nossos. Ali, onde a medida de minutos ou de horas pode ser da-

da pelo tempo de coleta da seringa em uma árvore, e a medida de

um dia é a soma das coletas de várias árvores, mais os desloca-

mentos entre a casa (a “colocação”) e elas.

Uma múltipla racionalidade – pois cada etnia é um caso e ca-

da comunidade cultural um outro – convive e representa os es-

paços da vida segundo padrões talvez bastante mais diferenciados

e complexos do que podemos imaginar. Pois muitas das represen-

tações que aos poucos uma cultura “moderna-e-racionalizada”re-

pensa, abole ou simplifica, ainda são essenciais entre indígenas,

quilombolas e seringueiros.

Se eu perguntar a uma estudante de mestrado em geografia

o que é a floresta onde ela está e que formas de existência habi-

tam ali, é provável que ela limite os seus espaços ao que lhe é vi-

sível. Tudo o que existe diante de seus olhos e que, ao redor, não

é nem “cidade” e nem “campo”. A terra, as plantas e, de modo es-

pecial, as árvores que a caracterizam como “uma floresta”. Ou, se

ela for mais rigorosa, “uma extensão territorial de mata atlântica

caracterizada por formações vegetais semidecíduas, característi-

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13 E. E. Evans-Pritchard,Os Nuer. São Paulo: Pers-pectiva, 1978, p. 116.

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cas de algumas florestas de transição”. Eu também tenderia a ver-

e-pensar a floresta como aquilo que eu vejo e percebo como a flo-

resta-diante-de-mim. De uma maneira perceptual e existencial,

uma floresta é o que eu vejo e represento como “esta floresta”.

Um caiapó provavelmente levaria mais tempo para respon-

der o que é uma floresta. Ele provavelmente começaria por indi-

car tudo aquilo que não é visível, pois está “debaixo da terra”, mi-

nerais, águas, raízes, plantas e animais subterrâneos e algo mais.

Depois, ele por certo desdobraria a floresta em vários estratos, seis

ou sete, de acordo com o tipo de vegetais que predominam, de

acordo com os frutos que habitam cada “andar” e de acordo com

os animais que existem em cada espaço. Aquilo que uma botâni-

ca classificaria como vegetação rasteira, sub-bosque, bosque e

dossel, para o nosso caiapó poderia desdobrar-se em outras e bem

mais minuciosas derivações. E a sua floresta não acabaria no dos-

sel das árvores mais altas. Pois muito possivelmente ela se esten-

deria até o espaço acima da floresta onde voam os seus pássaros

que voam mais alto.

Com mais coragens e temores do que nós, ele e também mui-

tos camponeses quilombolas ou caboclos povoariam a nossa flo-

resta “natural” de seres que nem por não serem “da nossa natu-

reza” não seriam menos reais. Seres sub e supernaturais, dos

espíritos dos mortos aos emissários dos deuses, benévolos uns,

terríveis outros. E seres que interagem entre eles, com os animais

e as plantas e até com os seres humanos. De sorte que estar na flo-

resta e obter delas o sustento implica não apenas atos técnicos,

mas gestos entre o mágico e o sagrado.

Os próprios seres da natureza, das águas e do vento às plan-

tas e aos animais, são dotados de identidades, de forças e de for-

mas de interação conosco bem maiores do que poderíamos su-

por. Entre camponeses católicos, os ciclos da vida natural, entre a

floresta, os campos de pastagens, os terrenos de lavouras sazonais

ou permanentes, o pomar ao redor da casa e a horta próxima à

cozinha, são diversos e interligados tempos-lugares regidos pelas

forças da natureza, transformados pelas forças do trabalho huma-

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no e ordenados por princípios e ritmos extranaturais que entre-

tecem a maior parte das atividades agropastoris de tempos, ritos

e gestos ora mágicos, ora religiosos.

Mesmo essas sociedades tradicionais de uma economia de

consumo não vivem exclusivamente dentro de seus limites; pos-

suem sistemas de intertrocas de pessoas, de bens e de mensagens,

que deveríamos mais invejar do que apenas pesquisar.14 E siste-

mas que, mesmo nos espaços menos socializados pelo trabalho

humano na Amazônia, escapam do domínio interno de uma mes-

ma aldeia e geram amplos sistemas de trocas de bens de consu-

mo intertribais.

Embora possa parecer supérfluo aqui, devo lembrar que al-

gumas comunidades não tanto rurais, mais neo-ruralizadas, re-

tornam do mais moderno e urbano e desejos de experiências de

vida e de partilha de tempos-espaços que em vários momentos

lembram os que sumariamente descrevi aqui. Algumas pequenas

comunidades religiosas, tanto as de origem brasileira, como o

Santo Daime, quanto de origem asiática, como os Hare Krishna,

retornam à natureza, voltam “ao campo” e buscam reencontrar,

em uma vida mais próxima do vento e dos deuses do que dos re-

lógios e dos mercados, uma vida ao mesmo tempo sagrada e na-

tural. A começar por uma complexa sacralização da própria na-

tureza. Algumas nas florestas do Acre. Outras compram barato

algumas terras altas na Chapada dos Veadeiros, em Goiás. Outras

vivem ao nosso redor, perto de Parati ou na vizinhança de Pinda-

monhangaba, não muito longe de São Paulo.15 Assim, vivem an-

cestralmente tempos-espaços inseridos ainda nos domínios da

natureza, ou buscam retornar a essa mesma relação com a vida e

o mundo, uns porque são “primitivos” demais e outros porque

cansados demais da complexidade do mundo pós-moderno. Se-

rá que, como os Nuer e bem mais do que nós, de um lado e do

outro... eles são felizes?

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14 Devo lembrar aqui anova edição, e primorosa,do Ensaio sobre a dádiva,de Marcel Mauss, em2004, pela Editora CosacNaify, de São Paulo.

15 E não devemos esque-cer que ainda existe noBrasil uma associação –Abrasca – de comunida-des alternativas, as quais,mesmo quando não tãoassociadas a alguma reli-gião nativa ou exótica,procuram viver “na” e“da” natureza e retornara formas de vida extre-mamente simples e coma menor relação possívelcom o mercado local e,sobretudo, regional. Nãotenho os dados aqui,agora, mas lembro-mede, há muitos anos, terexaminado no Programade Pós-Graduação emGeografia, na Universi-dade de São Paulo, umadissertação a respeito deuma dessas comunida-des alternativas, a Frate-runidade, na serra dosPireneus, em Pirenó-polis, Goiás. Tive naUnicamp uma mestran-da de sociologia que de-senvolveu uma pesquisasobre as relações entre afilosofia vedanta, as co-munidades Hare Krish-na e a ecologia profunda.Creio que tendem a serescolhas de pesquisas ca-da vez mais comuns. Ofato de que uma delas te-nha sido na geografia e aoutra na sociologia bemdemonstra que essa ten-dência pouco tem a vercom as supostas “excen-tricidades dos antropó-logos”.

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RUGOSIDADES E MODERNIDADES: OS ESPAÇOS RURAISONDE O TEMPO É O RELÓGIO E É O SOL

Uma inesperada mas oportuna maneira de procurarmos com-

preender algo das experiências de espaço-tempo entre as comu-

nidades diferenciadamente situadas nos diferentes pontos de in-

tervalo entre as culturas e comunidades de pequena socialização

de espaços da natureza e de uma economia de consumo, ou de tro-

cas de produtos por produtos, dentro de estritas normas e ritos

de intercâmbio entre categorias de produtores-atores, e as que nos

esperam mais adiante seria o começarmos por pensar como cul-

turalmente tais trocas de produtos por produtos, ou de mercado-

rias por dinheiro, são vivas entre os tempos-espaços sociais de co-

munidades camponesas ainda tradicionais, mas já integradas no

mercado como economias de excedente, de acordo com José de

Souza Martins.

Claro, estas já são comunidades rurais onde o trabalho com

a terra é dirigido a produzir, além do consumo, o excedente co-

mercializável. Planta-se, coleta-se e cria-se para viver e para ven-

der. Troca-se, vende-se e compra-se trabalho por bens, bens por

bens, trabalho e bens por dinheiro. E disso se vive a “vida na ro-

ça”. A meio caminho entre uma natureza ainda não inteiramente

socializada e incorporada ao domínio da cultura (aqui num du-

plo sentido da palavra) e a cidade, o lugar-urbano dos “recursos”

e do mercado regional, assim pessoas, famílias e comunidades ru-

rais vivem em espaços cujo lugar mais central é o sítio, a peque-

na propriedade ou posse camponesa, cuja extensão mais familiar

é o bairro rural e seus equivalentes. Uma vida rural a que no li-

mite mais costumeiro cabem qualificadores como “caipira”, “ser-

taneja”, “rústica”, “tradicional” ou “patrimonial”, e a que no limi-

te mais próximo a uma “nova racionalidade” cabem nomes como

“moderno” ou “modernizada”.

Fiquemos com as formas de vida e de trabalho mais típicas

do campesinato tradicional de produção familiar. Entre elas, gra-

máticas sociais que configuram sistemas de valores, de identida-

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de e de princípios étnicos e éticos de interação, envolvendo ne-

las inclusive preceitos que regem trocas, vendas e compras. Sis-

temas tradicionais que prescrevem todo um complexo processo

de transações de bens e de serviços. Intertrocas econômicas pa-

recendo serem apenas comerciais, na verdade são interpessoais,

afetivas, sociais, simbólicas, antes ou ao lado de serem relações

que envolvem dinheiro. Pois, bem mais ali do que em esferas mais

modernizadas de transações, nem tudo o que se produz é con-

sumo, nem tudo o que troca é mercadoria. Mais do que nós, e

com melhores motivos, as pessoas comem comida e símbolos e

trocam bens e sentidos de vida. No que se consome e no que se

troca ou vende, as “coisas” que passam de mão em mão, mesmo

que a troco de dinheiro, variam de acordo com aquele com quem

se troca, com aquilo que se troca e com a qualidade da situação

em que se comercia.

Em um de seus estudos sobre esse assunto, ao recriar o con-

ceito de campesinidade, Klaas Woortmann trabalha com os dife-

rentes sentidos e valores de uma ética camponesa. E, em “Com

parente não se neguceia”, ele descreve os diferentes círculos de in-

terações entre categorias de pessoas e categorias de coisas que se

trocam, vendem e compram. E ele demonstra como a relação fa-

miliar, parental, vicinal e outra mais determinam bem mais o sen-

tido do valor da mercadoria do que ela própria.16

Como costumamos dizer e relembrar sempre na antropolo-

gia, a própria economia é uma das muitas dimensões de uma cul-

tura. Produzimos bens e vendemos trabalho e/ou mercadorias.

Mas, através de pessoas e de coisas (mesmo num mundo onde

pessoas têm valor como coisas e coisas, como pessoas), na verda-

de o que trocamos nos diferentes tempos-espaços dos diversos

mercados possíveis são símbolos e significados, valores e sentidos

de vida. Um mesmo pai-camponês que em novembro se endivi-

da para comprar uma máquina duvidosa, em março duplica a dí-

vida para não deixar de casar a filha caçula com uma “grande fes-

ta”. Modos, políticas, éticas e estéticas de vida que resistem ainda

a uma entrega completa à racionalidade do mundo dos negócios

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16 A respeito dessa ques-tão e de outras, rela-cionadas também demaneira direta a expe-riências e percepções detempo e espaço, queroindicar aqui alguns tra-balhos do “casal Woort-m a n n ”. D e E l l e nWoortmann, “O sítiocamponês”, publicadooriginalmente no Anuá-rio Antropológico, n. 81,de 1983, pela EditoraTempo Brasileiro, do Riode Janeiro. De KlaasWoortmann, além dolongo artigo aqui men-cionado, que foi origi-nalmente publicado non. 69 de um caderno daSérie Antropológica, De-partamento de Antropo-logia, Universidade deBrasília, s/d, um outroartigo “A comida, a famí-lia e a construção do gê-nero feminino”, origi-nalmente publicado narevista Dados, v. 29,n. 1, de 1986, no Rio deJaneiro. Livros posterio-res de Ellen e Klaas reu-niram esses artigos aoutros que recomendotambém enfaticamente.

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apregoa e vende, atribuindo a quem a ela não adere a imagem

do “atraso”.

No interior de “contra-racionalidades”ou de “outras-raciona-

lidades”, segundo Milton Santos (2002), uma cultura derivada de

uma socialização da natureza bastante mais completa e complexa

do que nos casos anteriores ainda olha para o sol, mas já observa

o relógio para sentir o passar do tempo. E tanto pensa em paisa-

gens naturais quanto no valor de mercado do alqueire de terra, pa-

ra pensar os espaços da vida e do trabalho. De outra parte, os bens

da terra são produzidos observando uma mescla de tecnologias pa-

trimoniais (nada indica que as vendas de enxadas tenham dimi-

nuído no mercado brasileiro) e tecnologias modernas e importa-

das.17 Costumes antigos e ritos religiosos ainda estão presentes no

preparo do terreno, nas festas de colheita, em muito maior escala

do que as nossas medidas acadêmicas alcançam. E o passar do tem-

po ainda subordina o relógio ao sol e o calendário oficial ao das

festas populares e às marcações naturais das estações do ano.

Não obstante, mesmo no mundo rural tradicional, os hori-

zontes da vida tornam-se cada vez mais voltados para “o mundo

da cidade”, e cada vez mais as cidades “maiores” dominam as cida-

des menores que, cercadas por áreas rurais, se tornam eixos de re-

ferência deles e um ponto a meio caminho entre o sítio e a “cida-

de grande”. Espaços urbanos tendem a ser, a cada dia mais, o lugar

de destino dos filhos dos homens e das mulheres da terra, quando

não deles próprios. E as músicas sertanejas que versejam sobre a

“saudade da minha terra” são o mais triste e dolente testemunho

disso. Não podemos esquecer que a incorporação da luz elétrica a

um número agora grande e crescente de áreas rurais e a chegada

vertiginosa dos meios de comunicação de massa, em que o “assis-

tir televisão”se associa ao antigo costume de “ouvir o rádio”e com-

pete com este, de uma maneira bastante mais semioticamente

marcada colocam a cidade e a racionalidade mais ilusoriamen-

te moderna dentro até de alguns últimos ranchos de pau-a-pique.

A vida cotidiana, quando medida em seus pequenos ciclos do

passar do tempo – uma semana –, médios ciclos – um ano agrí-

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17 Novas práticas, novastecnologias e novos insu-mos, entre maquináriose produtos químicos nãoraros impostos aos agri-cultores patrimoniaispela mídia a serviço debancos e de empresasmultinacionais, que nãoraro, também, acarretamo endividamento quetorna o produtor pobre,porém livre, em um tra-balhador dos credores desuas dívidas. Não sãopoucos e crescem bas-tante os casos de peque-nos proprietários que“perdem” as suas terrascomo pagamento de dí-vidas.

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cola – e longos ciclos – os muitos anos de uma vida –, em boa me-

dida é ainda centrada no lugar rural onde a vida afetiva e a vida

de trabalho se associam nos espaços consagrados do sítio campo-

nês: a pequena propriedade familiar. Em segundo lugar, em seus

entornos naturais e na comunidade vicinal próxima: o arraial, o

bairro rural, o povoado, a vila, o patrimônio. Mas sítios e povoa-

dos camponeses tendem a ser, mais e mais, espaços-lugares satéli-

tes das cidades, sejam elas a sede do município, as cidades-merca-

do ou mesmo as cidades de romaria e devoção.18 E, bem sabemos,

uma das diferenças de percepção espacial mais importantes será

justamente o deslocamento do eixo das relações, tendo como fo-

co o “lugar onde vivo e trabalho” e a cidade. Entre as comunida-

des mais isoladas de predominância de economia de consumo, o

centro da vida é ainda um espaço natural fracamente socializado,

e a cidade é um referente tempo-espacial difícil e distante. Entre

as comunidades camponesas tradicionais, o centro da vida vivida

e pensada é uma quase sinuosa linha que passa pela natureza, de-

mora no lugar de trabalho e de natureza socializada e termina na

cidade, bastante mais marcada e próxima nas unidades sociais de

economia de excedente do que nas anteriores. Já, entre as comuni-

dades e culturas próximas de ou já plenamente integradas em uma

economia de mercado, o espaço-tempo de referência da vida pen-

sada e vivida é o da cidade-mercado. Os lugares rurais são espaço

de passagem e mais de um trabalho impessoal do que de vida, e a

natureza é um referente ora distante demais, ora hostil o bastan-

te para valer apenas quando dominado, apropriado e destruído.

MODERNIDADES E FALSAS MODERNIDADES: ESPAÇOSRURAIS ONDE O PASSAR DO SOL JÁ NÃO MARCA MAISAS HORAS E NEM A LUA O PASSAR DOS DIAS

O simples viajar e ver desde a estrada longas paragens homogê-

neas de uma paisagem despovoada de bichos (a não ser o gado)

e de pessoas (a não ser os raros e passageiros trabalhadores even-

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18 Das pesquisas decampo que fiz em Goiáse em São Paulo, com co-munidades camponesastradicionais, gostaria deindicar a leitura de al-guns capítulos de livrosderivados de três delas:Plantar, colher, comer.Rio de Janeiro: Graal,1978; A partilha da vida.Taubaté: GEIC, Cabral,1995; O afeto da terra.Campinas: Editora daUnicamp, 1999.

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tuais) permite ao olhar de quem passa a imagem dos espaços de

vida e trabalho de mulheres e homens que são agora os trabalha-

dores das solidões da terra e dos senhores do agronegócio.

As extensões homogêneas dos canaviais, das plantações de so-

ja, dos eucaliptais. As paisagens que foram um dia florestas ou

porções do cerrado, ou mesmo frações bem menores de terrenos

de policultura camponesa. A uniformização quase absoluta da

paisagem, a derrocada da biodiversidade e de uma corresponden-

te humana sociodiversidade. Eis a paisagem múltipla e, no entan-

to, tão uniforme, dessa ilusória socialização extrema de espaços

naturais. Para que a terra produza em excesso – o mito tecnoló-

gico da produtividade –, tanto seres e grupos humanos são reti-

rados das paisagens anteriores, quanto a própria terra é subjuga-

da: tornada plana, vazia do que não sejam os espaços vazios da

produção, exaurida de recursos naturais e impregnada das quí-

micas do agronegócio.

A uma domestificação uniformizante dos espaços naturais,

ou patrimonialmente sociabilizados pelo trabalho da agricultu-

ra familiar, corresponde uma absoluta entrega de tempos-espa-

ços rurais ao domínio da cidade. Entre a máquina e a mídia, o

universo da racionalidade do moderno-urbano domina as pai-

sagens naturais e humanas do campo. Não será ao acaso que a

maioria dos seus trabalhadores braçais ou vivem em cidades-dor-

mitório próximas, ou migram de espaços muito distantes, como

o vale do Jequitinhonha, e vivem provisoriamente na periferia

pobre das cidades.

Trabalhadores sazonais e impessoais. Volantes voláteis que

em geral sequer sabem em que lugar estão trabalhando por uma

manhã, um dia, um par de dias. Não é também ao acaso que em

boa medida o trabalho realizado por essas “turmas” de trabalha-

dores volantes é bem mais o de queimar, derrubar e colher, do que

o de tratar do solo (feito por máquinas) e semear.

A racionalidade empresarial imposta ao campo pouco a

pouco inverte todos os eixos de uma lógica das relações socie-

dade-natureza e de uma ética nas interações entre as diferentes

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categorias de atores culturais envolvidos em suas diferentes eco-

nomias e em seus diversos modos de vida. Os espaços-valor pas-

sam a ser os mais inteiramente entregues às monoculturas de

mercado. Isso em que pese o fato de que um número crescente

de agroempresas redobre retóricas em favor da “preservação do

meio ambiente”. A transferência de símbolos e de significados in-

terativos típicos da fábrica moderna para espaços-tempos rurais,

com foco sobre o binômio competência–competitividade em to-

dos os momentos e lugares da vida de pessoas e de comunida-

des, desqualifica experiências e maneiras de ser e de produzir tí-

picos do campesinato.

No entanto, uma típica e neocapitalística nova racionalida-

de da modernidade no campo brasileiro é falsa e enganosa. Em

quase todas as regiões modernizadas através da expansão de an-

tigas e novas alternativas de unidades de mercado no campo, os

mais arcaicos modos e métodos de expropriação da terra e de

apropriação da força de trabalho disponível, migrante e miserá-

vel, estão ainda em plena vigência. O agronegócio das empresas

agrícolas, pastoris, madeireiras e de mineração preserva e mo-

derniza sistemas de trabalho fundados na escravidão, na semi-

escravidão, na servidão, na exploração do trabalho de mulheres

e de crianças. Isso significa que a absoluta racionalidade da mo-

dernização do campo brasileiro se apóia organicamente em al-

ternativas bastante pré-capitalistas de “conquista” da terra e de

“posse e uso” do trabalho.19

Assim, da mesma maneira como vemos pequenos produto-

res familiares, sitiantes modernizados, em luta contínua para se

apropriarem precariamente de uma semelhante racionalidade e

de equipamentos e padrões de trabalho pelo menos proporcio-

nalmente próximos aos do agronegócio, vemos, de outra parte, as

frentes de expansão capitalistas empregando as mais residuais es-

tratégias de apropriação da terra e do trabalho. E não nos espan-

temos em imaginar que procedimentos semelhantes, com outras

normas, pessoas e palavras, sejam empregados também em unida-

des rurais de racionalidade empresarial no sul dos Estados Unidos

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19 Lembro José de SouzaMartins, uma vez mais:“Embora as relações deprodução indicadas, co-mo as de colonato e dearrendamento em espé-cie não se configuremcomo tipicamente capi-talistas, é preciso não co-meter o engano de atri-buir as tensões da frentepioneira a essa atipici-dade e, portanto, a umantagonismo de outraespécie: capitalismo/pré-capitalismo. Essas rela-ções são, na verdade, aspossíveis e necessárias àacumulação e reprodu-ção do capital. Daí que afrente pioneira tenhasempre se apresentadocomo expressão limitedo capitalismo no cam-po e, ao mesmo tempo,tenha se apoiado em re-lações sociais fundamen-tais não-tipicamente ca-pitalistas: escravatura,colonato, arrendamentoem espécie. Na verdade,o que caracteriza o capi-talismo no campo não éa instauração de relaçõesde produção típicas, for-muladas em termos e decompra e venda de força-de-trabalho por dinhei-ro. O que a caracteriza éa instauração da proprie-dade privada da terra, is-to é, a mediação da ren-da capitalizada entre oprodutor e a sociedade”.Op. cit., p. 49, 50.

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da América. O que seria da produção agrícola de lá sem o traba-

lho clandestino e semi-servil de trabalhadores mexicanos?

Em termos do que se passa na esfera das imagens e idéias de

configurações de culturas e entre culturas, sabemos que, através

de um processo bastante bem-conhecido, em um primeiro mo-

mento as imagens-idéias e as pautas de identidade e de princípios

de relacionamentos entre categorias sociais de/entre pessoas, en-

tre elas e o mundo natural e entre elas e os símbolos e significa-

dos do correr da vida cotidiana, são aos poucos trazidas “de lon-

ge” e propostas e impostas de vários modos. Um estilo tradicional

de vida no seu todo, e em cada um dos seus campos, começa a ser

pouco a pouco desqualificado, quando os agentes do “progresso”

traduzem como “atraso” tudo o que não é o seu espelho. Tais con-

tra-imagens e idéias em que o negócio toma o lugar da vida, en-

quanto o country rotula o “sertanejo” ou o “caipira” como res-

quícios ou reminiscências, a meio caminho entre o “preservado”

e o pitoresco.

Em um segundo momento, padrões e sistemas de tais “novas

pautas do ser, viver, pensar e produzir” são internalizados – a co-

meçar entre os mais jovens, moças e rapazes – pelos atores sociais

populares, e são incorporados como modernos e contraditórios

valores entretecidos com o que é próprio de suas culturas patri-

moniais. Ressalto que as diferenças e as divergências entre gera-

ções, entre pais e filhos, têm aqui um papel muito grande.

Finalmente, um novo campo de símbolos, de sentidos de vi-

da e de significações do mundo (de “racionalidades”, em Milton

Santos) se sobrepõe, tornando artificialmente “moderno” o que

era “tradicional” e transformando em folcloricamente “típico” o

que antes fora “próprio”. O que equivale em transformar, pouco

a pouco, a vida rural em um simulacro da urbana, e o que era ri-

tual da comunidade em espetáculo para uma platéia de “outros”.

Assim, da culinária às crenças religiosas, da vestimenta aos ritos

da comunidade camponesa, das éticas e técnicas do labor e do

trabalho às próprias estéticas da vida, tudo se redefine no todo

ou em partes relevantes e crescentes nas diferentes culturas ru-

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rais que já utilizam o relógio e o trator, mas ainda consideram

importante perguntar aos sinais naturais do tempo como have-

rá de ser o “inverno” que se aproxima.

Mais do que na solidão das áreas de planuras deserdadas da

monocultura, é talvez nos cenários das grandes festas da moder-

nidade rural que as diferenças se tornam social e simbolicamen-

te mais visíveis. Pois aqui as festas comunitárias aos santos pa-

droeiros e aos momentos de celebração da solidariedade familiar

e vicinal transformam-se nas grandes festas de produtos ou nas

grandes “feiras de pecuária” – em que o sucesso é medido pelas

cifras de milhões nas compras e vendas de bois e vacas – ou nas

“festas de peão de boiadeiro”, em que os rituais se transformam

em espetáculos, as tradições em “atrações” e em que os cenários

dos acontecimentos se deslocam dos adros de igrejas e das praças

das pequenas cidades para os grandes estádios consagrados a

eventos regidos por competições premiadas, onde homens e ani-

mais competem entre si e com outros homens.20 Essas grandes

“festas” e feiras em que a máquina e o produto substituem o san-

to e a pessoa são a melhor metáfora da modernização uniformi-

zante do campo.

Mas, se assim é, podemos prosseguir com ela para pensar o

seu outro lado. Longe dos grandes palcos e nos intervalos dos pi-

cadeiros, não são poucas as expressões da vida rural camponesa

que por “ali” também circulam. Onde, a um primeiro olhar, to-

dos os espaços do acontecer parecem dominados por uma mes-

ma cultura de celebração country dos imaginários globalizados do

agronegócio, coexistem inúmeras áreas liminares de fronteira. Um

domínio simbólico uniformizante e cuidadosamente programa-

do é entrecortado todo o tempo e em quase todos os espaços da

cidade e da festa.

De certa maneira algo semelhante ocorre até mesmo nas

áreas rurais do Brasil mais dominadas pela monocultura do

agronegócio. Um inventário criterioso sobre a sociodiversidade

na ocupação de territórios aponta a coexistência supostamente

pacífica e a presença crescente de conflitos; a hegemonia nunca

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20 Ver, como um exce-lente exemplo, O chão é olimite – A festa de peão deboiadeiro e a domestica-ção do sertão, de SidneyValadares Pimentel, pu-blicado pela Editora daUniversidade Federal deGoiás em 1997. Para seter uma idéia da trans-formação de produtosem símbolos de uma so-ciedade através de suasfestas, em Felixlândia, nonorte de Minas Gerais,de uns anos para cá cele-bra-se uma grande Festado Carvão.

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estável e tranqüila dos espaços do agronegócio; a dependência

que a economia rural de mercado tem da vizinhança da econo-

mia de subsistência e também de uma força volante de trabalho

que o avanço da tecnologia agrícola ainda não resolveu; o cres-

cimento das frentes de luta em favor da reforma agrária e da cau-

sa ambiental.

Um olhar algo mais complexo e interativo sobre os horizon-

tes dos mundos rurais deveria convidar-nos a uma leitura não

tanto do que, real ou ilusoriamente, domina espaços e campos de

relações rurais, mas do que, em seus intervalos e de maneira bem

mais ativa e diferenciada do que podemos imaginar, existe ainda,

resiste e se renova, para reocupar espaços e reinventar formas de

ser e viver no campo.

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CARLOS RODRIGUES BRANDÃO é professor visitante do Instituto de Geografia daUniversidade Federal de Uberlândia e do doutorado em ambiente e sociedade da Unicamp e pesquisador do Ceres. Este texto inédito foi apresentado no Encon-tro sobre a Reforma Agrária, em junho de 2006, na Universidade Federal de Uber-lândia.

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MUDANÇA E ÁGUA NO SUL DE PORTUGAL: A BARRAGEM DE

ALQUEVA E A ALDEIA DA LUZ*

CLARA SARAIVA

R E S U M O O projeto de construção de uma megabarragem no Alentejo, uma

zona extremamente árida no sul de Portugal, teve os seus inícios nos anos 50, du-

rante o regime salazarista, mas só se concretizou no início do século XXI. A imen-

sa albufeira1 a que a barragem deu origem inundou uma área que abrangeu a Al-

deia da Luz, que por esse motivo foi inteiramente trasladada para outra localização.

A fecho das comportas deu-se em fevereiro de 2002; no verão e outono do mesmo

ano, a população foi transferida, e, durante 2003, a velha Luz foi completamente

demolida. Hoje em dia, passeia-se de barco por cima do local onde estava a antiga

Luz. Este texto fornece o contexto em que o projeto de Alqueva se desenvolveu, a ca-

racterização geral do clima social que acompanhou o processo e o resumo do que

foram os acontecimentos principais e as vivências no período da mudança e de iní-

cio da adaptação a um novo território e uma nova situação.

P A L A V R A S - C H A V E Portugal; água; barragem; deslocamento de

populações.

A B S T R A C T The project for the construction of a mega-dam, in an extremely

dry area of Southern Portugal had its beginnings in the 50s, under the Salazar

regime. It was only after decades of advances and delays that its construction finally

took place. The huge lake flooded an area which included the Village of Luz, that

therefore had to be entirely moved into another location. The closing of the flood-

gates took place in february 2002; that year the population was transferred, and in

2003 the old Luz was completely demolished. Nowadays, one goes by boat over the

site where the old village once existed. This text provides the general context in

which the Alqueva project was developed and a general description of the social

climate surrounding the process. It also gives a summary of the main events and

experiences during the dislocation period and the initial adaptation to a new

territory and a new life situation.

K E Y W O R D S Portugal; water; mega-dam; population displacement.

6 5

* Uma versão anteriordeste texto foi publicadano artigo “Aldeia da Luz:entre dois solstícios, a et-nografia das continuida-des e mudanças”, Etno-gráfica, v. VII, n. 1, 2003.

1 Represa artificial deáguas pluviais, dos riosou do degelo. Cf. dicio-nário eletrônico <http://www.portoeditora.pt/dol/default.asp?param=08010100>. (N. do E.)

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A MEGABARRAGEM

Quem não ouviu falar

Na Barragem do Alqueva

Pelos jeitos que leva

Nossa Aldeia vai acabar

E nós temos que abalar

Daqui para outro lado

Porque já está marcado

Aonde a outra vão fazer

É verdade podem crer

Estou muito preocupado

João Chilrito Farias2

A Barragem de Alqueva, cujas comportas se encerraram em 2002,

é a maior da Europa, com cerca de 96 m de altura e uma área de

250 km2, no seu nível de armazenamento pleno à cota 152. Albu-

feira e barragem situam-se no rio Guadiana, o grande rio do sul

do país, nessa região extremamente árida que é o Alentejo, na me-

tade sul de Portugal. O empreendimento atinge 19 concelhos do

Alto e Baixo Alentejo; a albufeira tem uma capacidade total de

4.150 milhões de m3 (com 3.150 milhões de m3 de capacidade útil),

e o seu sistema global de rega pretende equipar uma área com cer-

ca de 110.000 ha e será composto por uma rede de canais e condu-

tas que atingirão um desenvolvimento de 5.000 km. Os objetivos

gerais dessa gigantesca estrutura, alterados ao longo de sucessivos

reajustamentos, prendem-se com a constituição de uma reserva

de água vital na luta contra a seca e a garantia do abastecimento

regular de água às populações; a alteração progressiva do mode-

lo de especialização da agricultura no sul do país, disponibilizan-

do 110.000 ha de área de rega; a produção de energia hidroelétri-

ca; o combate à desertificação física e populacional através da

incrementação do mercado de emprego regional, a par da dina-

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2 Poeta local, autor demuitas quadras alusivasao processo de Alqueva e ao abandono forçadoda aldeia.

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mização agrícola, industrial e turística – esta última apoiada no

desenvolvimento de potencialidades turísticas possibilitadas por

um espelho de água com 250 km2 de área e margens que ultra-

passam os 1.000 km de extensão.

Numa zona do país com clima seco e escassez de água, a Bar-

ragem de Alqueva surgiu como um sonho de mudança para me-

lhor, mas transformou-se, ao longo da segunda metade do século

XX, num “elefante branco”, um projeto que avançava e recuava, de

que se ouvia falar, mas parecia nunca se vir a concretizar, mercê de

opiniões divergentes, condicionamentos vários e complexidades

das conjunturas econômicas e políticas que se foram sucedendo.

Os primeiros estudos para um plano de rega do Alentejo

foram efetuados em 1957, e o Convênio Internacional Luso-

Espanhol, celebrado em 1968, previa já a construção da grande

barragem, como elemento fulcral e incontornável de todo o em-

preendimento. Após progressos e retrocessos, em 1975, já após o

25 de abril de 1974, o projeto herdado do Estado Novo é defini-

tivamente reiniciado, com a decisão governamental de lhe dar cor-

po e o início dos trabalhos em Alqueva, em 1976. As obras preli-

minares duraram apenas dois anos, o tempo de construir as

ensecadeiras3 de montante e jusante, o túnel de desvio provisó-

rio do rio, os acessos e as infra-estruturas de apoio, e foram no-

vamente interrompidas em 1978, tendo o empreendimento en-

trado numa fase de avaliações e novos estudos. Com uma nova

decisão governamental de retoma em 1993, é criada a Comissão

Instaladora da Empresa de Alqueva, que preparou e lançou os pri-

meiros concursos públicos internacionais com vista à prossecu-

ção do projeto. Essa comissão dá lugar, dois anos mais tarde, à

EDIA (Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas de Alque-

va S.A., uma sociedade anônima de capitais exclusivamente pú-

blicos), sensivelmente na mesma altura em que se retomam os tra-

balhos em Alqueva. Em maio de 1998, têm lugar as primeiras

betonagens que dão corpo à desejada mas polêmica obra no Alen-

tejo. Em fevereiro de 2002, as comportas são encerradas e inicia-

se o enchimento da barragem.

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3 Tapumes que cercam asconstruções feitas em ní-vel mais baixo que o daágua, para se trabalharem seco.Cf.<http://www.portoeditora.pt/dol/de fau l t . a sp?par am=08010100>. (N. do E.)

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As modificações observadas ao longo dos tempos na listagem

dos objetivos da construção da gigantesca estrutura que é a Bar-

ragem de Alqueva e a sua albufeira prenderam-se não apenas com

as mutações e os avanços tecnológicos operados, mas também

com as contingências da crescente escassez de água potável no pla-

neta e a decorrente mudança no modo de olhar esse elemento,

que passou assim de bem da natureza comum e público a patri-

mônio valorizado. Conseqüentemente, a noção de barragem co-

mo grande geradora de energia elétrica, se bem que não totalmen-

te posta de lado, é suplantada por outras prioridades, como a que

salienta o valor do elemento aquático, a par da intenção de recu-

perar uma região pobre e esquecida, sem alternativas de empre-

go e repulsora das camadas jovens da população. Desse modo, nos

objetivos estruturantes enunciados e publicamente apresentados

pelos dirigentes da Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estru-

turas de Alqueva (EDIA), a “constituição de uma reserva estraté-

gica de água” surge em primeiro lugar, secundada pela “garantia

de abastecimento regular de água” e pela “alteração do modelo de

especialização da agricultura do sul do país”, seguida do “reforço

da capacidade instalada para produção de energia elétrica”, da

“criação de potencialidades turísticas” e da “dinamização do mer-

cado regional e do tecido empresarial” (Serrão, 1999).

Em resposta a pressões e críticas vindas de vários quadran-

tes, ao longo de décadas, que condenavam o poder central pela

fraca atenção dada ao Alentejo, a tônica posta na recuperação so-

cial e econômica dessa região fez com que as parcerias portugue-

sas e comunitárias que se estabeleceram com vista à prossecução

do projeto abarcassem um conjunto de medidas e ações – in-

cluindo a gestão ambiental, o apoio aos setores econômicos e a

formação profissional – que se propunham reabilitar o sul, pro-

movendo uma gestão equilibrada e sustentada de recursos natu-

rais de modo a criar mais-valias para a população residente (Ser-

rão, 1999, p. 21).

Com o avanço do projeto, as dúvidas e as críticas avoluma-

ram-se, em estudos das mais variadas áreas, desde as ciências na-

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turais, aos estudos ambientais, de engenharia e economia, a ou-

tros de cariz mais social e humano. A discussão em torno dos be-

nefícios e malefícios do projeto intensifica-se a partir da retoma

dos trabalhos em 1993 e as críticas e oposições vão num crescen-

do à medida que ele avança e os seus detalhes se tornam públicos

e objeto de discussão nacional e internacional, em que questões

ambientais e patrimoniais adquirem um peso de relevo.

Os estudos e avaliações de impacto, realizados ou encomen-

dados pela EDIA ou outras instituições públicas e privadas en-

volvidas no processo, sucedem-se. Com a consciência de que

uma obra com as dimensões de Alqueva implicaria uma profun-

da alteração na paisagem, nos marcos históricos e na cultura da

região, procurou-se criar compromissos de minimização dos

impactos na zona, através de programas de salvaguarda arqueo-

lógica e ambiental, de âmbito técnico-científico (Silva e Lança,

2001, p. 3).

Sendo a transferência da Aldeia da Luz um dos problemas

mais candentes no nível social e humano, abundaram igualmen-

te os trabalhos com vista à caracterização social, econômica,

demográfica e patrimonial, destinados a avaliar o impacto proje-

tado de todo o projeto sobre essa população e esse espaço. Mul-

tiplicaram-se as informações nos meios de comunicação social,

os colóquios, debates, estudos e as publicações; Alqueva foi-se

paulatinamente instalando na mente dos portugueses como as-

sunto da ordem do dia, e a Aldeia da Luz passou a fazer parte des-

se complexo público: de aldeia perdida do concelho de Mourão,

tornou-se assunto de primeira página dos jornais nacionais e das

notícias das principais cadeias televisivas nacionais.

A VELHA LUZ

Adeus Rua do Rossio

Adeus Sociedade

Adeus Museu de Antiguidades

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Tudo feito com muito brio

Adeus Fonte do Rossio

Adeus Travessa do Caneiro

Ainda digo adeus primeiro

Ao antigo lavadouro

Despeço-me com muito amor

Adeus Rua Sá-Carneiro

Digo adeus à taberna

Do Francisco Carrilho

Seguindo o mesmo trilho

Adeus Café Lanterna

Falando de coisas modernas

Tal como elas são

Tenho a preocupação

Não me esqueça alguma coisa

Adeus café da Lousa

Adeus Rua de Mourão

João Chilrito Farias

A velha Aldeia da Luz, situada a cerca de 9 km de Mourão e per-

tencente ao mesmo concelho, distrito de Évora, estava implantada

numa zona abundante em água nos vales que a delimitavam, a

poente e a sul, onde corriam os rios Guadiana e Alcarrache. Essa

área era por isso rica em vestígios arqueológicos, testemunhos de

uma intensa ocupação humana desde os tempos mais remotos da

idade do cobre, que entraria para a história com a chegada dos ro-

manos e a implantação de estruturas como a do Castelo da Lousa.

A povoação devia as suas origens à implantação do santuá-

rio de louvor a Nossa Senhora, com base na lenda do aparecimen-

to da Virgem a um pastor, num local onde certamente já existiam

cultos mais antigos ligados à virtude das águas. A utilização des-

se lugar deverá ter estado inserida na rota das vias comerciais e de

peregrinação que cruzavam o grande rio Guadiana, ligando o nor-

te e o sul da antiga Lusitânia. Os dados mais concretos são da se-

gunda metade do século XVIII, relativos às memórias paroquiais

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de 1758, que aludem à existência de 31 vizinhos e 117 moradores

na Luz. O documento menciona ainda a importância das visitas

de “romeiros oriundos de Mourão, Reguengos e São Marcos, par-

ticularmente nas sextas-feiras de março e por altura das festas e

missas da Senhora da Luz, no segundo domingo de setembro, o

que motivara a construção de casas de romagem” (Monteiro,

2003, p. 28). A igreja parece então afirmar-se como um

pólo aglutinador das gentes da Luz, bem como de outras pa-

ragens, que associam as vivências religiosas a um quotidiano

ligado às atividades agrícolas, à produção de cereais (trigo,

centeio, cevada), aos olivais, azinhais, ferragiais, à rega e à moa-

gem nos açudes, à pesca (barbo), à construção e manutenção

das casas, aos vários mesteres, gentes que compram e vendem

as suas propriedades, que contraem empréstimos e hipotecam

os seus bens, que freqüentam o ensino elementar na escola

mista, que passam pelos atos simbólicos das suas vidas (bati-

zado, casamento e óbito), passando pela igreja, e que se quei-

xam ainda a 10 de julho de 1877, apesar das leis aprovadas em

nível nacional, da falta de terrenos e de meios financeiros pa-

ra construírem no terreiro da igreja o cemitério que poria fim

aos enterramentos na igreja (Monteiro, 2003, p. 28-9).

Nos finais do século XX, à data em que se iniciou o pro-

cesso de Alqueva, a Luz era uma freguesia pouco povoada e

com características predominantemente rurais. A zona em que

se inseria fazia parte da peneplanície alentejana, com um cli-

ma de afinidades mediterrânicas e continentais; da zona pla-

náltica partiam diversos cursos de água que se iam reunir ao

rio Guadiana e a um dos seus principais tributários, a ribeira

de Alcarrache.

No seio de uma zona do país envelhecida, que sofreu nas dé-

cadas de 60 e 70 a saída para o exterior das camadas mais jovens

da população, a Luz contava em 1991 com 394 residentes (nú-

mero que desceu para 363 em 2001), que se distribuíam em cer-

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ca de 185 parcelas, constituídas por habitações e respectivos ane-

xos, quintais e tapadas.4 Na ocupação agrícola dominava a ex-

ploração cerealífera extensiva de sequeiro,5 intercalada por oli-

vais; a pecuária, assente na criação de bovinos, caprinos e ovinos,

complementava esse sistema. Desse modo, para se caracterizar a

base econômica da população da Luz, tem de se contar com o

cultivo de pequenas parcelas, na maioria com menos de 10 ha,

dedicadas sobretudo ao cultivo de cereais, oleaginosas, produtos

agrícolas, olival e pastagens. Essa agricultura era quase exclusi-

vamente de tipo familiar, desenvolvida em explorações por con-

ta própria e alguns casos de arrendamento, e sobretudo pelos

mais velhos.

Nos quintais adjacentes às casas criavam-se animais de ca-

poeira e cresciam árvores de fruto e, em pequenos canteiros, pro-

dutos hortícolas e ervas aromáticas, importantes na cozinha re-

gional alentejana, como o poejo, os coentros e os alhos. Algumas

famílias possuíam alguma vinha; as hortas, situadas ao longo do

caminho conducente ao lavadouro público, forneciam legumes e

frutos para consumo familiar. Havia cerca de seis casas que se de-

dicavam à criação de gado miúdo (ovino ou caprino) para venda

ou fabrico do queijo; duas dessas unidades tinham também cria-

ção de gado grosso e uma terceira tinha investido no gado suíno.

A falta de capacidade concorrencial das formas de explora-

ção locais (IHERA, 1999, p. 29), aliadas a oportunidades de me-

lhoria das condições de vida noutros setores de atividade e nou-

tras zonas, levou a um reforço do êxodo rural e ao conseqüente

abandono da atividade agrícola. Assim, a juntar à quebra da po-

pulação ativa empregada no setor primário, deu-se o incremen-

to do setor secundário – representado na freguesia pelo empre-

go na construção civil e na indústria de extração de cascalho, areia

e xisto – e do setor terciário, que entretanto se tornou bastante

dinâmico, sendo as duas atividades predominantes o comércio e

a restauração e ainda a área dos serviços.

A situação de relação das atividades agrícolas com a camada

mais idosa da população era também reflexo do referido alto grau

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4 Tapada: mata vedadapor muro, geralmentedestinada à criação decaça; terreno murado. Cf.<http://www.portoedi-tor a .p t /do l /de fau l t .asp?param=08010100>.(N. do E.)5 Sequeiro: culturas semrega; privado de água;terreno de sequeiro, ter-reno sem água. (N. do E.)

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de pluriatividade dessa freguesia, em que grande parte dos pro-

dutores individuais e da população agrícola familiar tinham uma

atividade lucrativa exterior, sobretudo do setor terciário e dos em-

pregos na capital do concelho e outras vilas circundantes; algu-

mas famílias viviam e trabalhavam na área da grande Lisboa, mas

mantinham as suas casas na aldeia, onde volviam aos fins de se-

mana e nos períodos de férias.

Dispondo de um centro de saúde, um centro de dia para os

idosos, uma escola primária e um jardim de infância, além dos

pequenos comércios e cafés locais, era servida por visitas regula-

res de vendedores ambulantes, que percorriam as aldeias da re-

gião em dias diferentes da semana e que constituíam um impor-

tante eixo de ligação ao exterior.

De um modo geral e mesmo tendo em conta o pluriempre-

go à data do fecho das comportas da barragem em 2002, pode-

mos afirmar que a Aldeia da Luz representava, como muitas ou-

tras povoações do interior do país, um resíduo de ruralidade num

país em que o declínio da agricultura se acentuou após a década

de 60 e em que o mundo rural e arcaico que se havia perpetuado

até à primeira metade do século XX desapareceu perante as ino-

vações e mudanças no estilo de vida das pessoas que se deram na

segunda metade desse mesmo século.

Exceptuando dois agregados familiares de proprietários, re-

sidentes na área da grande Lisboa, os habitantes da Luz eram so-

bretudo descendentes de seareiros6 e trabalhadores rurais (na acep-

ção dada por Cutileiro, 1977, na sua monografia sobre a vizinha

Vila de Monsaraz), que trabalhavam nas terras dos primeiros e

sobretudo de latifundiários das zonas circundantes, em cujos

“montes” – núcleos centrais das grandes propriedades agrícolas

– muitos também cumpriam a função de feitor, caseiro, pastor,

maioral ou porqueiro. Outra série de ocupações principais ou

complementares tinha a ver com os ofícios tradicionais ou arte-

sanais de apoio à agricultura que sustentaram um modo de vida

autárquico, que caracterizou o mundo rural português até finais

dos anos 50: moleiro,7 maquilão,8 tosquiador, ferreiro, abegão,9

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6 Arrendatários de peque-nas parcelas que apenastinham direito à seara, enão ao restolho, impor-tante para a alimentaçãodo gado miúdo.7 Dono de moinho,aquele que trabalha emmoagem. Cf. <http://www.portoeditora.pt/dol/default.asp?param=08010100>. (N. do E.)8 Moço de moleiro queleva a farinha aos domi-cílios. (N. do E.)9 Abegão: indivíduo quefaz carros, arados e ou-tros instrumentos agrí-colas. (N. do E.)

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pedreiro, mestre da taipa10 ou dos telheiros,11 entre outros. A es-

tas juntavam-se o fabrico de produtos alimentares locais, como o

queijo de cabra, a caça, a recoleção de espargos e “silarcas” – no-

me local dado a uma espécie de cogumelos enterrados – e a pes-

ca no Guadiana, a que muitos se dedicavam e que significava uma

contribuição importante para a alimentação da casa. A matança

do porco, importante marco no ciclo de vida anual, tinha normal-

mente lugar entre dezembro e janeiro, quando as temperaturas

mais frias permitem realizar calmamente a repartição dos dife-

rentes tipos de carne e o fabrico dos enchidos, postos em seguida

no “fumeiro”, na chaminé da casa.

Algumas famílias de seareiros foram ascendendo, ao longo de

gerações e mercê de seu trabalho e de sucessivos investimentos em

terras, a uma posição social e economicamente confortável. A

emigração para a Suíça e França, sobretudo entre o final da déca-

da de 60 e início da de 80, teve um papel preponderante na evo-

lução da estrutura socioeconômica da Luz. Muitos chefes de fa-

mília trabalharam por períodos mais ou menos longos (5, 10, 15

anos) nesses países, área da construção civil e jardinagem, e con-

seguiram equilibrar orçamentos e fazer poupanças que investi-

ram, muitas vezes, em melhoramentos nas casas, aquisição de ter-

ras ou na ajuda aos filhos, quando estes formaram as suas próprias

unidades familiares autônomas.

Chegamos assim ao fim do século XX, altura em que a Luz

compreendia uma área urbana que rondava os 16 ha. A aldeia e a

sua zona envolvente marcavam a paisagem em sintonia com a na-

tureza, e na sua arquitetura foram utilizados, ao longo de séculos,

os materiais à disposição na região – a terra e a pedra –, obede-

cendo ao padrão da casa térrea e caiada de branco, característica

do sul do país (Oliveira e Galhano, 1992). A maior parte das ca-

sas da Luz, sobretudo as mais antigas, tinham sido construídas pe-

las mãos das próprias pessoas, por vezes com ajuda dos mestres

taipeiros e dos telheiros, constituindo assim exemplos de arqui-

teturas populares que refletiam amiúde as vicissitudes das vidas

das famílias e as dificuldades por que passaram para conseguirem

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10 Taipa: parede feitacom terra argilosa. (N.do E.)11 Operário que faz te-lhas. (N. do E.)

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“a sua casinha”. No verão, as casas abriam-se para o exterior, a rua

passava a ser uma extensão delas, e as sociabilidades femininas

desfilavam ao longo das soleiras das portas, onde as mulheres se

sentavam para conversar.

“O ALQUEVA ERA UM MEDO”

Desde as primeiras referências ao projeto de Alqueva, relativa-

mente ao Plano de Rega do Alentejo, na segunda metade da dé-

cada de 50, que a Luz ouvia falar da possibilidade da barragem

como uma ameaça que pairava sobre o destino da aldeia. Entre

essa data e o decisivo avanço dos trabalhos em 1993, a altura em

que a população teve mais consciência da possível continuida-

de do projeto coincidiu com esse curto período entre 1976 e

1978, em que se iniciaram as obras com vista à edificação da bar-

ragem e se efetuaram os primeiros estudos de carácter social so-

bre a Luz (Fonseca, s.d.). Mas esse período de relativa agitação

foi seguido de um tempo muito mais longo de pausa; a suces-

são de retomas e interrupções dos trabalhos agravaram a des-

confiança e incredibilidade dos luzenses de que “o medo de Al-

queva” se transformasse algum dia em realidade e a aldeia viesse

a ser submergida.

A preocupação com o destino dos habitantes da aldeia a sub-

mergir pelas águas da imensa bacia de retenção esteve presente

desde o começo do projeto. Uma das hipóteses iniciais era a cons-

trução de diques, mantendo a aldeia no seu sítio, mas esta foi de

imediato posta de lado pela população, o que é compreensível,

numa zona onde não se está habituado à convivência com gran-

des massas de água. Assim, as primeiras sondagens visavam saber

se as pessoas preferiam a mudança da aldeia ou uma indenização

pecuniária. Apesar de haver já uma clara preferência pela primei-

ra hipótese (“nós sempre quisemos casa por casa e terra por ter-

ra”),12 em 1993 o então presidente da Junta de Freguesia fez cir-

cular um questionário informal, em que os habitantes deveriam

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12 As pequenas parcelasde terra em torno da al-deia naquilo que foi de-finido como “a unidadeagrícola mínima” foramrepostas com parcelasequivalentes. As proprie-dades de maior dimen-são foram alvo de expro-priação e compensadaspecuniariamente. Estenão é, no entanto, o ob-jetivo deste artigo e nãose vai aqui, por conse-guinte, desenvolver essetema.

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indicar se queriam a nova aldeia construída no perímetro da fre-

guesia ou noutro local.

A junta recebeu cerca de 157 respostas (de um total de 180

famílias), que confirmaram a vontade da Luz se manter una en-

quanto comunidade e de ser reinstalada tão próximo da antiga al-

deia quanto possível. Os trabalhos foram retomados ainda no ano

de 1993; o bloqueio definitivo e legalmente institucionalizado à

dinâmica de crescimento da aldeia concretizou-se em 1995, quan-

do a Câmara Municipal de Mourão e a EDIA publicaram um de-

creto a proibir qualquer construção subseqüente na Luz. As pers-

pectivas de desenvolvimento da aldeia restringiram-se; muitos

casais jovens com planos de aí se estabelecerem viram-se força-

dos a ir para terras vizinhas, desde Reguengos de Monsaraz a Évo-

ra: o atual presidente da junta contabiliza a perda de cerca de 20

casais nesse processo.

De acordo com a opinião local, expressa nomeadamente pe-

las autoridades da aldeia, “as pessoas nunca acreditaram no Al-

queva” e pensa-se que houve um processo de “dissolução de von-

tade”, por parte do poder central, de fazer com que a população

só fosse acreditando paulatinamente nessa nova realidade que se-

ria a barragem, de modo a não oferecer uma resistência franca

(política e social) contra o projeto. Tal terá sido conseguido atra-

vés de uma genérica falta de informação em relação ao projeto e

uma sucessão de dados contraditórios, que numa altura indica-

vam que tudo iria avançar para logo a seguir tudo parar. Essa sus-

peição faz parte de um contexto real em que todo o processo de

Alqueva decorreu, num clima permanente de conflito de idéias,

de fazer e desfazer, de tentativa e erro, muito sentido pela popu-

lação e pela Junta de Freguesia, como intermediária no diálogo da

população com a EDIA e o poder central.

Quando finalmente as obras avançaram e a nova aldeia co-

meçou a tomar forma, as angústias dos seus habitantes irrompe-

ram. Para além do abandono forçado das casas em que os filhos

nasceram e do território familiar das ruas, da transformação ir-

reversível da paisagem, da perda de terrenos, hortas e campos de

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cultivo, foi a gestão da identidade local e dos indivíduos enquan-

to elementos ativos de unidades sociais familiares que surgiu co-

mo questão fulcral e extremamente complexa.

No seio de um clima social e psicologicamente perturbado,

todo o processo de concepção e concretização da nova aldeia foi,

forçosamente, moroso e difícil. Ao longo de anos e de vários con-

cursos públicos, formaram-se diferentes equipes que projetaram

a aldeia, os vários equipamentos públicos e finalmente aquilo

que a EDIA denominou “o espaço monumental”, constituído pe-

la igreja matriz, o cemitério e o novo museu projetado para a No-

va Luz. Para estabelecer uma ponte entre os vários elementos in-

tervenientes no processo – nomeadamente com as diversas

equipes de arquitetos projetistas –, foi criado o GRAL – Gabinete

de Reinstalação da Aldeia da Luz –, o pólo local da EDIA,13 cujos

técnicos passaram a operar na aldeia em estreita ligação com os

habitantes. Após anos de conversações e trabalhos, retrocessos e

atrasos, em 2002, quando as comportas se fecharam, a nova al-

deia estava praticamente pronta a receber os seus ocupantes.

O SOLSTÍCIO DE VERÃO E A TRASLADAÇÃO DOS MORTOS

A mudança de toda a Aldeia da Luz para um novo local acarreta-

va o problema melindroso da trasladação integral da comunida-

de dos antepassados, já que a velha necrópole seria também sub-

mergida pelas águas. O cemitério fazia parte de um conjunto que

distava cerca de 1 km do núcleo populacional e que integrava a

igreja matriz, do século XV (com posteriores acrescentos, visíveis

nas influências góticas dos portais e capitéis e nas características

renascentistas da capela batismal), e a praça de touros: um con-

junto que simbolicamente unia as esferas da morte e da festa, do

sagrado e do profano. O percurso entre a aldeia e o santuário era

marcado pelas cruzes junto às quais se rezavam antigamente os

responsos nos cortejos fúnebres que conduziam os defuntos ao

cemitério; e era também este o caminho percorrido todos os anos

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13 A sede da EDIA é emBeja, existindo igual-mente um pólo da em-presa em Lisboa.

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pela procissão solene em honra de Nossa Senhora da Luz, no pri-

meiro domingo de setembro, e pelas gentes que acorriam à tou-

rada de sábado e à vacada de segunda-feira, integradas nesses fes-

tejos do final do verão em honra da santa padroeira da freguesia.

Tendo sido decidido pelos luzenses que “não abandonariam

as suas alminhas” e que a mudança dos mortos deveria anteceder

a dos vivos, o cemitério foi integralmente trasladado em julho de

2002. No sábado, dia 22 de junho, realizou-se uma missa na igre-

ja matriz, seguida por uma derradeira cerimônia religiosa no ve-

lho cemitério, presidida pelo bispo auxiliar de Évora, em que a

população se despediu desse espaço – as famílias alumiaram as al-

mas dos defuntos, acendendo uma lamparina, e colocaram uma

flor nas sepulturas – e cerrou-se simbolicamente o portão. Este

foi um momento de catarse emocional coletiva forte, em que as

pessoas se sentiram unidas na dor que lhes causava esse abando-

no forçado dos mortos.

Seguiu-se uma romagem até ao novo cemitério, na nova al-

deia, onde se procedeu à bênção do campo sagrado e onde, num

simulacro simbólico do processo que se seguiria – já que nessa al-

tura todas as campas se encontravam vazias – e na seqüência do

que tinham feito no velho cemitério, cada família acendeu igual-

mente uma lamparina e colocou uma flor nos ocos que viriam a

ser a nova morada dos seus antepassados.

Numa comunidade que já se sentia vitimada pela decisão su-

perior da submersão da aldeia, a trasladação do cemitério cons-

tituiu o expoente máximo da violação de privacidade e tocou o

âmago sagrado da relação das pessoas com a morte, vista como

disruptor por excelência da harmonia familiar e social; parti-

lhando as mesmas concepções sobre a morte e a relação com o

mundo do além, a repetição do sofrimento e dos gestos de cada

família funcionou como um meio de reforço da identidade local.

Um desses gestos repetidos foi o “alumiar das alminhas” nos dois

espaços cemiteriais.

A noção de que as alminhas “não se podem sentir sozinhas e

precisam de uma luz para as guiar” é recorrente na relação dos vi-

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vos com os mortos e um exemplo da noção mais geral da neces-

sidade do integral e do cuidado no cumprimento dos rituais, de

modo a que a alma ascenda ao seu lugar devido na esfera do além

e que, desse modo, se mantenha uma boa relação entre os dois

mundos. Nesse caso, ela é ainda correlária da importância dada

ao espaço – real e simbólico – e ao território ocupado pelos de-

funtos, onde, através nomeadamente dos cuidados dispensados

na manutenção e embelezamento das sepulturas, se atualiza fisi-

camente essa relação (Saraiva, 1996). O gesto de alumiar funcio-

nou aqui como alívio no peso de consciência que as pessoas so-

friam por sentirem que estavam a abandonar os seus mortos. A

continuidade dos gestos entre os dois espaços físicos – o velho ce-

mitério onde as almas ficavam e o novo para onde elas iriam –

ajudou também a mitigar a dor sentida pelos luzenses.

Essa data coincidiu com a festa anual em honra do Sagrado

Coração de Jesus. À tarde, na praça de touros por baixo do cemi-

tério encerrado, teve lugar uma das tradicionais vacadas. À noi-

te, no pátio das instalações da junta no centro da aldeia – onde,

na noite anterior, se tinham visto diapositivos que mostravam a

paisagem circundante da aldeia tal como ela tinha permanecido

até fevereiro de 2002 (data do fecho da comportas e do conse-

qüente início da subida do nível das águas) –, a banda tocou e

bailou-se ao som do conjunto Nova Luz, grupo de rock organi-

zado e composto por jovens da aldeia, que nesse dia celebrava o

seu sexto aniversário.

A opção de juntar a festa do Sagrado Coração com as ceri-

mônias de encerramento do velho cemitério e a bênção do novo

provocou alguma controvérsia na aldeia, e muita gente não foi à

vacada por ter achado mal essa junção de celebrações. A justifi-

cativa para a sobreposição de datas (até porque a festa do Sagra-

do Coração costumava realizar-se uma ou duas semanas mais

cedo) dada pela organização e pela Junta de Freguesia prendeu-

se com a preocupação em aliviar e não enfatizar o lado emocio-

nal e negativo do encerramento do cemitério, distraindo as pes-

soas com a festa aliada às celebrações do Sagrado Coração. Esse

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episódio ilustra a complexa gestão de emoções coletivas que tem

pautado todo o processo de concertação e mudança da aldeia, tal

como a noção desenvolvida pela antropologia, que olha as emo-

ções como algo gerido e muitas vezes mesmo controlado social e

culturalmente, sublinha Lutz (1988), Lutz e Abu-Lughod (1990),

Lutz e White (1986) e Rosaldo (1984).

Na semana seguinte procedeu-se aos trabalhos preparativos

da trasladação. A zona do cemitério, que estava já inteiramente

vedada, foi interditada, e a partir daí só a equipe que trabalhou

na processo pôde lá entrar. A trasladação iniciou-se no dia 28 de

junho e durou 13 dias; foram mudados uma média de 12 corpos

por dia. Os féretros saiam em carro fúnebre do velho cemitério e

seguiam por uma estrada exterior ao núcleo populacional, de mo-

do a evitar o trauma coletivo que constituiria o desfile diário de

12 a 20 funerais pelo meio da aldeia.

As famílias aguardavam os seus defuntos no novo cemitério,

onde se procedia à inumação das urnas nos novos ocos. Seguiu-

se um critério de convocação por famílias, em que se tentou que

os defuntos de uma unidade familiar fossem todos mudados no

mesmo dia, de modo a evitar várias deslocações ao cemitério –

propósito dificultado pelo grau de endogamia da Luz, em que

quase todos são aparentados por laços de consagüinidade ou afi-

nidade. O projeto do novo cemitério respeitou as especificidades

da antiga necrópole, com os “ocos” característicos da zona – se-

pulturas exteriores, elevadas em relação ao solo, o que faz com

que a inumação não seja feita, na maioria dos casos,14 na terra e

o processo de decomposição dos corpos seja aeróbio –, onde as

posições relativas de cada sepultura se mantiveram inalteradas. A

manutenção do aspecto físico de cada campa e da vizinhança das

sepulturas visou minimizar os problemas decorrentes da trans-

posição desse campo sagrado para o novo espaço, permitindo às

pessoas uma fácil identificação das suas sepulturas familiares: as

mesmas pedras ou outras semelhantes revestiram os novos ocos,

e todas as cabeceiras de sepultura, lápides, jarras e outras decora-

ções foram igualmente transferidas para o novo cemitério.

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14 Já que muitos dosocos são duplos, o corpoque fica por baixo tempor vezes contato com aterra, o que não acontececom os do nível superior.

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Foram dias difíceis, em que se reviveram as mortes que mar-

caram as vidas das famílias, um trauma aumentado pela repeti-

ção do ato mais de uma dezena de vezes, diariamente. Mexer na

comunidade dos mortos foi também tocar na memória sagrada

de uma aldeia, que ultrapassou os restos mortais individualmen-

te identificados que foram trasladados. Esse processo despoletou

uma catarse coletiva e um sentimento de solidariedade derivada

do sentimento da união na dor. Com os seus mortos no novo es-

paço, só restava aos luzenses aceitarem com resignação que os vi-

vos se mudassem também.

PREPARAR A MUDANÇA

Entre meados de julho e meados de agosto, todas as unidades fa-

miliares que iriam receber habitações na nova aldeia foram con-

vocadas individualmente para uma visita final à casa. Nessa visi-

ta estavam presentes dois elementos da EDIA, dois representantes

da população que tinham acompanhado o processo de concer-

tação e de discussão dos projetos de cada casa desde o início e as

famílias. O objetivo final dessas visitas era, no dizer da empresa,

“a entrega das chaves das casas aos seus proprietários”. Eram pas-

sadas em revista as discrepâncias existentes relativamente ao pro-

jeto aprovado, com as sucessivas alterações a que se tinha chega-

do por acordo entre as partes, e o produto final patente na casa

construída.

Na maioria dos casos, as divergências foram renegociadas,

tendo sido atribuídas às famílias indenizações pecuniárias por ele-

mentos ou detalhes lacunares ou que estavam diferentes do acor-

dado, de montante variável e adequado a cada caso. Quando se

conseguia de imediato um acordo, as chaves eram entregues e as

pessoas podiam começar a proceder a limpeza com vista à

mudança, marcava-se a data para se ir à Junta de Freguesia rece-

ber o cheque referente à indenização e, posteriormente, as pes-

soas eram contatadas pelos serviços centrais da EDIA, em Beja,

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para a marcação da escritura. A partir do momento em que esta

se concretizava, as velhas casas da antiga Luz passavam oficial e

juridicamente para a posse da EDIA.

A questão da data da mudança tinha sido um dos principais

pontos de discórdia e controvérsia na aldeia nos últimos meses.

Uns defendiam que se devia começar a mudar o mais depressa

possível, enquanto outros eram da opinião que a mudança só po-

dia ter lugar após as festas de setembro de Nossa Senhora da Luz.

Muitos achavam uma vergonha a procissão percorrer as ruas que,

ao contrário do que sempre aconteceu, não seriam caiadas, lim-

pas e alindadas para o grande dia da passagem da procissão sole-

ne pelas artérias da velha aldeia, rumando depois à igreja matriz.

A solenidade atual dessa celebração adquiria nesse verão de

2002 uma ênfase acrescida: ao fim de se repetir, desde há cinco

anos, que “esta festa será a última na velha aldeia”, era agora ób-

vio – com as comportas da barragem fechadas, o nível das águas

a subir, a nova aldeia pronta e a maioria das chaves das casas já

entregues aos seus novos proprietários – que esse seria real e de-

finitivamente o último ano da grande festa da santa padroeira na

sua velha morada e na antiga igreja matriz.

É importante perceber o significado simbólico e a importân-

cia dada a esse santuário e à lenda da sua origem, que fazia com

que o sentido de pertença ao território estivesse enraizado no sím-

bolo multivocal representado pela igreja, espaço sagrado de de-

voção mas também gênese do povoado e dos próprios luzenses.

Na década de 80 construiu-se no Largo 25 de Abril, o centro

da aldeia, uma capela – erigida em honra ao Sagrado Coração de

Jesus15 –, onde se passaram a realizar as missas dominicais, nove-

nas de maio, velórios e missas de corpo presente, isto é, os servi-

ços religiosos mais correntes. Do ponto de vista da Igreja Católi-

ca, essa construção deveria ter efeitos positivos na assiduidade dos

luzenses aos serviços religiosos, pela sua localização no âmago da

aldeia, evitando assim a desculpa de que não se ia à missa por ser

a igreja “mú longe”. De fato, esse novo santuário facilitou, em ter-

mos práticos, a vida das mulheres da Luz,16 até por se tornar mais

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15 Foi a partir dessa altu-ra que se começou a ce-lebrar a referida festa emhonra ao Sagrado Cora-ção de Jesus.16 Refiro-me a mulherese não a homens, já que naLuz, à semelhança doresto do Alentejo, a prá-tica religiosa é um assun-to sobretudo feminino(França, 1981). São rarosos homens que assistemàs missas, aguardandonormalmente no exte-rior o término destas. Aparticipação masculinareporta-se sobretudo aotransporte dos grandes epesados andores nas pro-cissões solenes das festasda aldeia.

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fácil encontrar o padre nessa capela central. A igreja matriz con-

servou a sua aura de santuário original e ficou reservada para oca-

siões mais solenes, como casamentos, batizados, cerimônias espe-

ciais e a grande festa de setembro. No entanto, a relação emocional

forte das pessoas da Luz continuou a ser com a igreja matriz, e

não com a capela.

No seio de tanta controvérsia, percebeu-se que não havia

tempo para mudar toda a gente antes da festa, nem fazia sentido

que esta tivesse lugar na nova aldeia, com a maioria da popula-

ção ainda a residir no velho núcleo. Finalmente, algumas famílias

se mudaram antes da festa de setembro17 – deixando, muitas ve-

zes, uma cama ou um colchão na velha casa “para as noites da fes-

ta” –, mas o grosso das mudanças ocorreu nas semanas subse-

qüentes às festas, havendo em alguns dias sete ou oito mudanças

simultâneas ou consecutivas. Esse ritmo começou a diminuir a

partir de finais de outubro.A mudança da aldeia, inicialmente pla-

neada para agosto e setembro de 2002, estendeu-se praticamente

até ao Natal de 2002:18 chegamos assim ao solstício de inverno.

A FESTA DE NOSSA SENHORA DA LUZ

A festa em honra de Nossa Senhora da Luz iniciou-se com a tra-

dicional vacada noturna de sexta-feira à noite, num recinto im-

provisado no largo da escola, no centro da aldeia. No sábado de

manhã, a alvorada foi feita com a banda de Mourão a tocar pelas

ruas da aldeia e uma pequena procissão – em honra de santo An-

tônio – pelas ruas da aldeia. À tarde, houve a atuação dos pára-

quedistas e a tourada na praça de touros; o arraial noturno foi

abrilhantado pela banda de Mourão, pelos grupos corais de Mou-

rão e da Luz e ainda pelos artistas de variedades musicais, segui-

dos pelo fogo de artifício e baile. O domingo foi o dia votado à

devoção da Senhora da Luz, com a procissão pelas ruas da aldeia,

a romagem até à igreja matriz e a celebração de missa solene, em

que o padre invocou as circunstâncias peculiares vividas, a recen-

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17 Uma única família ti-nha sido mudada antesdo início da trasladaçãodo cemitério, por motivode doença de um dosmembros dessa unidade.

18 Algumas famíliasmais renitentes e comquestões por resolvercom a EDIA permanece-ram na velha aldeia atémarço/abril de 2003,mas estes foram real-mente apenas alguns ca-sos isolados.

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te transferência dos defuntos para a nova aldeia, a mudança em

curso e a eminente destruição da igreja e da velha aldeia. Quan-

do terminou a missa, pôde-se assistir ao fogo de artifício, sentados

na bancada da praça de touros. Por trás, o terreno vazio onde an-

tes tinha existido o cemitério e que parecia ter-se desvanecido co-

mo que por ação de um pincel mágico. Os luzenses foram con-

frontados nesse dia com o desaparecimento desse espaço: a grande

maioria das pessoas da Luz não tinham voltado àquele lugar des-

de o dia da derradeira cerimônia de encerramento do cemitério,

em junho.19 Ele tornou-se, durante o período que durou a tras-

ladação, uma zona interdita, repleta de poluição e tabus que se re-

fletiam nos comentários que circulavam na aldeia durante esse

período e que se referiam à pestilência que os ventos traziam des-

se lugar onde os mortos estavam a ser profanados.

À noite, de novo variedades musicais e baile até de madru-

gada; na segunda-feira, último dia da festa, a vacada ao fim da tar-

de, no recinto da praça de touros, e a música e o baile finais.

A grande festa de verão é, à semelhança do que acontece um

pouco por todo o país, o momento por excelência de abertura da

Luz ao exterior. Para além de familiares emigrados no estrangeiro

ou na zona da capital, a fama das festas da aldeia atrai pessoas das

redondezas e de várias outras regiões do Alentejo e é motivo de or-

gulho dos luzenses, sobretudo quando as comparam com as das

aldeias e vilas circundantes e com o prestígio dos artistas que con-

tratam: “Nós temos sempre os melhores! A Mariza vem este ano e

já cá esteve há dois anos e vem também a Ana Malhoa e o pai! E

aqui na Luz é sempre à borla,20 nem fechamos o largo como fa-

zem noutros sítios!” A festa de 2002, anunciada como a derradei-

ra na velha aldeia, foi uma das mais concorridas de sempre.

A efervescência da multidão que assiste ao espetáculo de va-

riedades diminui ao longo do baile da madrugada e, a partir das

3 horas, 4 horas da manhã, o espaço, esvaziado dos “de fora”, é de-

volvido aos locais: as danças que se fazem às 4 horas ou 5 horas

da manhã, com rodas e filas dançantes – como o “paquito” e o

comboiozinho –, espelham relações de familiaridade que se per-

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19 Muitos já se tinhamdeslocado ali no dia an-terior, para assistirem àtourada, mas a afluênciaà procissão e missa foisem dúvida mais repre-sentativa.

20 Borla: gratuitamente;de graça.Cf.<http:// www.portoeditora.pt/dol/de fau l t . a sp?par am=08010100>. (N. do E.)

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petuam entre as gentes da aldeia. Uma outra ocasião importante

e reservada unicamente aos luzenses é o momento de encerra-

mento das festas. Na terça-feira, cumprindo um ritual obrigatório

e costumeiro, o presidente da Junta de Freguesia convidou toda a

população a participar de um almoço comunitário na cooperati-

va da junta. Embora o convite fosse generalizado a toda a gente,

só as pessoas que de algum modo tinham estado ligadas à orga-

nização da festa e a camada mais jovem compareceram. No final,

os jovens decidiram ir tomar café na”nova aldeia”, no único esta-

belecimento aí já instalado – uma forma de marcar um dia dife-

rente, que, como disse a jovem que insistiu em pagar a despesa na

sua totalidade, “há tão poucas vezes em que estamos todos assim

aqui juntos, tem de ser celebrado!” A opção pela escolha do café

na nova e, à altura, pouco habitada aldeia é interessante e pode

ser vista como uma afirmação simbólica da parte dos jovens da

aceitação de um espaço que marcará as suas vidas futuras.

DO VERÃO AO SOLSTÍCIO DE INVERNO: A MUDANÇA DOS VIVOS

Nos meses de setembro e outubro, as dinâmicas das duas aldeias

foram inteiramente pautadas pelo ritmo das mudanças. À medi-

da que se esvaziava a antiga Luz, ia-se enchendo a outra aldeia:

cada dia havia mais casas habitadas e janelas abertas na nova po-

voação. Aos poucos, as portas das antigas ruas passaram a exibir

o dístico que marcava o estigma da casa vazia e que, destinado a

informar o carteiro local, podia também ser tomado como uma

espécie de contagem decrescente conducente ao final da Luz:“En-

tregar o correio na loja da D. Adelina”.

De semana para semana, podia-se observar a diminuição do

movimento nas ruas e a crescente azáfama nas artérias do novo

núcleo. A escola, que abrange o ensino pré-primário e o primei-

ro ciclo, iniciou-se, tal como estava planeado, na data oficial de

abertura do ano escolar, a 15 de setembro. A maior parte das fa-

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mílias com crianças em idade escolar estava nessa altura já a re-

sidir na Nova Luz.

Os dias anteriores à mudança foram sempre marcados por

uma grande azáfama: era preciso embalar os objetos, separar o

que não se queria levar, preparar tudo para o dia da despedida da

velha casa. As etiquetas com as designações das diferentes divisó-

rias da casa eram colocadas nas caixas de modo a facilitar o pro-

cesso de desempacotamento e arrumação na nova casa.

No dia da mudança, tudo era levado – do interior, das di-

versas divisões das casas: mobiliário, roupas, bibelôs e objetos

embalados, candeeiros, eletrodomésticos e esquentadores; dos

quintais e anexos: utensílios agrícolas e outros, plantas, animais

domésticos e as suas respectivas “casas” (gaiolas de pássaros, ca-

sotas de cães etc.), lenhas. Para o transporte das plantas foi ne-

cessário, para muitas casas, um caminhão separado, dada a quan-

tidade e o volume delas, e a vontade expressa pelas pessoas de

“não deixarem lá as suas plantas a apodrecer debaixo de água”.

Após anos, meses de angústia, esses dias finais foram, para

muitas famílias, mais fáceis do que eles próprios esperavam. Vá-

rias pessoas disseram que o que lhes custou mais foi o dia em

que foram ao GRAL marcar a mudança e receber as caixas e as

etiquetas para o empacotamento. Esses atos fizeram com que

realizassem que a tal duvidosa hora da mudança sobre a qual

tanto se havia falado e especulado se tinha, afinal, transforma-

do numa certeza incontornável e contra a qual eles já não po-

diam lutar.

Apesar disso, a despedida da velha morada foi muitas vezes

dolorosa e amiúde as lágrimas caíssem pelas faces de homens e

mulheres ao fecharem pela última vez a porta das velhas casas. Es-

te foi um marco simbólico importante na conceptualização da ne-

cessidade de abandonar a velha aldeia, mesmo se, na realidade, o

abandono se deu de uma forma paulatina. Todas as famílias guar-

daram uma chave e voltavam regularmente à velha casa nas sema-

nas subseqüentes à mudança para irem buscar haveres deixados,

coisas que se pensava originalmente não serem necessárias, para

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levarem as galinhas que se tinham deixado nos quintais, para apa-

nhar os últimos frutos e legumes das hortas que trabalhavam.

No dia da mudança, o contraponto da tristeza de deixar a ve-

lha casa era a chegada à casa nova. Um misto de emoção e de in-

vocação dos aspectos práticos para anular tristezas, já que era ne-

cessário começar a ordenar e a impor algum sentido aos objetos

nos seus novos lugares, fazer o essencial para pôr a casa a fun-

cionar: colocar lâmpadas elétricas ou candeeiros novos previa-

mente comprados, preparar as camas para a primeira noite na

nova casa, começar a pendurar as roupas nos roupeiros. As mu-

danças despoletaram mecanismos de solidariedade familiares e

vicinais – correntes em situações críticas em que as rotinas coti-

dianas são alteradas, como na morte e luto, mas também em al-

turas de cooperação e entreajuda no trabalho, por exemplo –, em

que parentes e sobretudo mulheres mais jovens das famílias vi-

nham ajudar mães, sogras e tias a limpar os móveis, fazer as ca-

mas, trazer comida para as primeiras refeições no novo espaço ou

a convidar os que se mudavam a ir comer à casa deles.

O ritmo de adaptação foi diferente consoante as casas. Algu-

mas, com tudo mais organizado e que dispunham de mais aju-

das, conseguiam em poucos dias ter “a casinha arrumada”; ou-

tras, com mais haveres e com menos auxílios, permaneciam com

as divisões repletas de caixas cujos rótulos exteriores indicavam o

destino próximo do que se encontrava no seu interior: quarto 1,

quarto 2, cozinha 1, cozinha 2, sala, quintal etc.

Com todo o trauma a ela associado, a mudança para a nova

aldeia teve também aspectos positivos: ambiguamente temida e

desejada, ela possibilitou a consagração de um sonho de renova-

ção que para muitos foi importante. Quase toda a gente investiu

na compra de mobiliário novo, pelo menos para algumas divisó-

rias da casa, e foi nítida a ênfase posta nas cozinhas. Mesmo quem

dispunha de parcos meios financeiros comprou candeeiros no-

vos, já que estes eram mais acessíveis e não era pensável ir para

uma casa nova sem coisas novas. A proclamação de que “agora,

com a mudança, são tudo casas de noivas” refere-se não apenas à

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jocosidade com que se desejava felicidade aos casais na sua pri-

meira noite na nova casa (e que era motivo de brincadeira sobre-

tudo entre os casais mais idosos), “uma segunda noite de núp-

cias”, mas também ao fato de a ida para uma casa nova marcar

normalmente uma etapa na vida das pessoas, que corresponde ao

rito de passagem do casamento.

Simbolicamente, a casa na recém-criada aldeia correspondia

a uma noção de revitalização que, no meio de tanta discussão e

tristeza, não deixava de ser apelativa. Submetidos a uma série de

ritos de passagem indesejáveis – de luto pela velha casa e aldeia,

de transição de espaços –, os luzenses juntaram-lhes outros mais

agradáveis: a noção da nova casa e da cama feita de novo para

uma “noite de núpcias” simbólica são alguns desses exemplos.

AO LONGO DO OUTONO

Não foi só a despedida das casas que se deu de forma gradual. A

relação com os espaços públicos foi a mesma e pautou-se por um

constante volver, de modo que estes só muito lentamente foram

sendo abandonados: os poços e as fontes (sobretudo o poço ve-

lho no caminho das hortas) onde se continuou a ir buscar água,

os campos onde se caçou durante todo o outono e onde se apa-

nharam silarcas no inverno.

Na velha Luz existiam três cafés, dois na artéria principal que

ligava a aldeia a Mourão, um num pequeno largo igualmente cen-

tral, e ainda a Sociedade Recreativa Luzense. Um quarto café, lo-

calizado igualmente na rua de Mourão, foi sempre percepciona-

do mais como restaurante do que café e foi este o estabelecimento

que se mudou primeiro para a nova aldeia, ainda antes da festa

de setembro.

Era nesses espaços que se geria a intensa sociabilidade mas-

culina: antes da refeição do meio-dia para se tomar uns copos e

comer um petisco, ritual repetido e prolongado antes do repas-

to noturno e, após este, para beber o café ou os digestivos. O cos-

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tume é realizar-se o périplo pelos vários estabelecimentos, volta

que dura várias horas. Era ainda nos cafés que se viam os gran-

des jogos de futebol e outros espetáculos desportivos de interesse

e que os grupos se juntavam para jogar as cartas ou para outros

entretenimentos, como o caso da sala de snooker e de matraqui-

lhos na sociedade.

Mesmo já com muitas famílias na aldeia nova, o palco das in-

tensas sociabilidades centradas nos cafés continuou focado na ve-

lha aldeia até à mudança desses espaços. Durante todo o mês de

setembro e parte de outubro, depois do jantar, o largo da velha al-

deia transformava-se em parque de estacionamento de todos os

que já residiam no novo núcleo e que “iam tomar o café na al-

deia”. É interessante notar que mesmo as pessoas a habitarem já

nas novas casas continuavam a referir-se à velha aldeia como “a

aldeia” ou “a Luz”, noção expressa em frases como “Queres vir to-

mar café na aldeia?” ou “Vão para a Luz?”. Num esforço para se

manter uma relação identitária com um espaço que se desfazia e

se recriava noutro local, a invocação do nome da aldeia parecia

de vital importância.

Esse panorama só mudou com a transferência dos cafés e da

Sociedade Recreativa, no mês de outubro, o que marcou definiti-

vamente a transposição do pulsar da vida social para a Nova Luz.

A despedida do último café na velha aldeia foi uma longa noite de

festa, em que se cantou, se chorou e se bailou, o grupo coral atuou

e os acordeões soaram até de madrugada. Nessa altura, as casas de

comércio da aldeia – três mercearias e uma padaria – já se tinham

mudado. A partir daqui os resistentes que permaneciam no velho

núcleo sentiam que “realmente aquilo ali já não é vida” e que “até

para comprar uma caixa de fósforos é preciso ir à aldeia nova”.

PENSAR UMA NOVA ALDEIA

Para a reinstalação da aldeia foi preciso repensar um novo aglo-

merado, a partir de 25 projetos-tipo e de alguns projetos especí-

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ficos, que dessem de algum modo conta da diversidade de edifí-

cios; a preocupação da equipe projetista era, na origem e confor-

me foi afirmado em vários dos documentos dela emanados, rea-

lizar uma operação de realojamento que contemplasse não apenas

o patrimônio fundiário, mas espelhasse a identidade da aldeia,

transpondo a imagem de uma povoação alentejana. Não obstan-

te, ao longo dos anos de duração do projeto, geraram-se inúme-

ros conflitos e problemas de difícil resolução.

A ocupação das novas moradias, para além de obrigar as

pessoas a percepcionarem e adaptarem-se a um novo espaço,

confrontou-as com casas recém-acabadas e com os erros de pro-

jeto e de construção que já tinham sido objeto de confronto en-

tre os luzenses e a EDIA ao longo de anos. Apesar de tentativas

iniciais de entendimento entre as pessoas e a equipe projetista

através da criação de uma comissão de luzenses que se reunia

com os arquitetos, a partir de certa altura o diálogo tornou-se

impossível e foi a EDIA, através do GRAL, que ficou encarregada

do contato direto com a população – toda a discussão sobre as

áreas das casas, anexos e quintais, os materiais a escolher para o

revestimento dos chãos, acerca de trocas e negociações referen-

tes a modificações nas casas passou a ter lugar na sede da EDIA

na aldeia, e era aos técnicos do GRAL que as pessoas se dirigiam

para qualquer reclamação.

No produto final e na adequação das casas para as vivências

cotidianas das famílias surgiram inúmeros problemas. Alguns

deles se reportam ao próprio projeto de urbanização, como a

questão do deficiente escoamento das águas pluviais, que pro-

vocou inundações nos quintais de várias casas durante o primei-

ro outono/inverno passado na nova aldeia (2002-2003). Outros,

com uma errada concepção do que é a vida dos habitantes da

Luz, em que uma parte da população se dedica ainda à agricul-

tura, aliada à criação de gado. A Aldeia da Luz faz parte dessa

fração do país que ainda representa o que resta do mundo rural

em vias de desaparecimento (Baptista, 1996). Uma aldeia alen-

tejana em que os rituais da matança do porco, do fumeiro, do

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fazer do vinho e da preparação da azeitona continuam a fazer

parte de um modo de vida que o projeto de arquitetura não en-

tendeu na plenitude.

As modificações introduzidas nos interiores das casas – a

colocação de azulejos decorativos nas paredes dos corredores e

de algumas salas, a introdução de colunas e arcos decorativos di-

visórios entre a cozinha e a sala e o investimento maçico no mo-

biliário das cozinhas são os exemplos mais recorrentes e notó-

rios – prendem-se mais com a necessidade de apropriação de

um espaço estranho, de cada um transformar à sua maneira e

personalizar um território novo, que se quer diferente daquele

do vizinho.

Pelas modificações e decorações inovadoras, construções nas

traseiras – sobretudo nos quintais e tapadas –, por exemplo, de

segundas cozinhas e chaminés destinadas ao fumeiro, fechamen-

to de telheiros, construção de casões para abrigo de alfaias agrí-

colas ou animais, alterações nos muros circundantes das proprie-

dades, entre outros, pode-se afirmar que a tipologia original se

encontra totalmente ultrapassada.

Muitas das modificações realizadas nos exteriores prendem-

se com questões de afirmação social, sobretudo por parte das fa-

mílias mais abastadas ou daquelas que, mercê dos ganhos conse-

guidos com a emigração, tinham feito mais investimentos e

modernizado as suas casas na velha aldeia, num passado recente.

Exemplo disso são os muros exteriores refeitos com vedações em

ferro forjado, complementados com portões no mesmo material.

Mas reduzir toda essa dinâmica aos aspectos da visibilidade so-

cial é, penso, extremamente redutor: muitas vezes a funcionalida-

de, as questões estéticas ou a necessidade de continuar esferas de

sociabilidade que existiam na velha aldeia triunfam, como é o ca-

so de um luzense que baixou o nível do muro do seu quintal,21

para que a mulher pudesse continuar a conversar com a vizinha

sem ter de sair de casa e, também, “para ter vista”. De um ou ou-

tro modo, subjacente está sempre a necessidade de apropriação

simbólica do espaço.

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21 Todas as paredes dedivisória entre parcelassão bastante altas, acimade 2 m.

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“OS DE CÁ” E “OS DE FORA”

A Aldeia da Luz situava-se numa estrada que, vinda de Mourão,

terminava na aldeia, só conduzindo, através de um caminho de

terra batida, ao Castelo da Lousa, uma edificação romana junto

ao Guadiana. Esse monumento arqueológico era o que levava

mais pessoas a passarem pela aldeia, que mantinha um ritmo de

vida bastante pacato. O Alqueva veio revolucionar as vivências da

Luz e devassar intimidades.

A afluência de pessoas “de fora” começou com os primeiros

estudos sobre a barragem e sobretudo com o início do projeto de

construção da nova aldeia. Foram os primeiros inquéritos e os es-

tranhos a porem intermináveis perguntas de porta em porta; os

arquitetos e engenheiros a entrarem pelas casas, a contar e a me-

dir tudo o que era susceptível de ser medido; os cineastas a faze-

rem filmes sobre a aldeia; os fotógrafos a editarem livros e a rea-

lizarem exposições de fotografias; os antropólogos e sociólogos a

inquirirem sobre o processo de mudança.

Além desse primeiro tipo de invasão do exterior, mais rela-

cionada com peritos das diversas áreas do trabalho a realizar, a

Luz habituou-se a dois outros grupos de alógenos desconheci-

dos até então para a grande maioria da população: os imigran-

tes estrangeiros que vieram trabalhar para as obras de constru-

ção da aldeia e os turistas. O primeiro grupo permaneceu na

aldeia durante todo o período de construção e obras, sensivel-

mente desde 1996 até 2003, tendo essa ocupação sido mais inten-

sa entre 1998 e o verão de 2002. A velha Aldeia da Luz transfor-

mou-se num espaço de concentração de pessoas oriundas “dos

quatro cantos do mundo”22 a uma escala verdadeiramente sur-

preendente: havia vários grupos dos países de leste (sobretudo

moldavos e ucranianos), outros dos Palop – guineenses, cabo-

verdianos, angolanos –, de outros países africanos (por exem-

plo, senegaleses) e ainda brasileiros e paquistaneses. A maioria

vivia em contentores e instalações fornecidas pelos empreiteiros

e subempreiteiros das obras, mas alguns tinham alugado casas

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22 Usando uma expres-são amiúde repetida pe-los luzenses quando fala-vam desse fenômeno.

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na aldeia. Vários homens provenientes dos países de leste trou-

xeram as suas mulheres e filhas, o que funcionou como um fa-

tor que facilitou a sua integração. Elas começaram também a tra-

balhar na Luz e foram mais tarde, durante o período das

mudanças, uma mão-de-obra muito valorizada nas limpezas das

casas, no dizer das luzenses: “as ucranianas que limpam muito

bem”. Mesmo os grupos que não moravam na aldeia interagiam

com os habitantes, já que, desprovidos de meios de locomoção

próprios, se abasteciam de víveres nas mercearias e padaria lo-

cais. Muitos luzenses que nunca dali tinham saído se viram con-

frontados com homens de turbante na cabeça, línguas desco-

nhecidas e modos de vida percepcionados como diferentes dos

padrões locais.

O terceiro grupo começou a invadir a Luz sobretudo no úl-

timo ano antes da mudança, e ainda mais a partir do momento

do fecho das comportas e da maior divulgação e presença do ca-

so do Alqueva e da “aldeia que vai desaparecer” nos meios de co-

municação social e, sobretudo, de todo um aproveitamento sen-

sacionalista feito por esse grupo media sobre o caso da Luz.

Durante os fins de semana do verão de 2002, chegavam a entrar

diariamente cerca de 30 autocarros na velha aldeia, e as largas cen-

tenas de automóveis particulares provocavam longas linhas de

tráfego e engarrafamentos a ponto de se ter de restringir a circu-

lação de automóvel e se impor sentidos de circulação únicos. No

Largo 25 de Abril, nas tardes tórridas dos domingos de agosto,

muitas vezes havia mais turistas que autóctones.

Os luzenses viam o desfile de pessoas que para eles olhavam

num misto de orgulho da sua afirmação da identidade local e de

repúdio por um devassar de espaços e privacidades que sentiam

como sua pertença. O orgulho estava aliado à constatação do in-

teresse que os demais manifestavam pela sua aldeia antes desco-

nhecida, pela notoriedade que o seu sacrifício lhes trouxe nacio-

nalmente; mas essa atração pela fama envolve também o outro

lado, uma certa saturação que foi aumentando à medida que os

anos passavam, as obras avançavam e o número de visitantes cres-

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cia, e eles começaram a sentir-se “olhados como se fossem peças

de museu ou animais do jardim zoológico”.

Os turistas iam ainda ao Castelo da Lousa, até à altura em

que este foi coberto de sacos de areia23 e deixou de poder ser vi-

sitado. Essa avalanche de visitantes continuou até as obras de des-

mantelamento terem sido iniciadas e ter sido interditada pela

EDIA a entrada na velha aldeia (fevereiro de 2003); continuou du-

rante algum tempo, para ver a nova aldeia, que passou então a ser

o palco dos engarrafamentos de fim de semana.

CELEBRAÇÕES OFICIAIS E FESTEJOS INFORMAIS

Uma data especialmente importante foi o dia da saída dos santos

da velha para a nova aldeia, ao fim da tarde de sábado, dia 19 de

outubro. A igreja matriz tinha anteriormente sido esvaziada e os

santos levados para a capela do Largo 25 de Abril. Foi daí que saiu

a “procissão do adeus”,24 o cortejo que levou os andores dos san-

tos, a pé, da velha para a nova aldeia, onde ficaram guardados na

nova igreja paroquial, única a ser utilizada para os atos de culto

enquanto se aguarda a inauguração da nova igreja matriz – que

é, aliás, o único edifício de todo esse complexo que foi projetado

e construído como uma réplica do seu antecedente. Da velha igre-

ja foram retirados vários elementos que se transpuseram para a

nova construção – as colunas e outras pedras do alpendre, o pór-

tico frontal e o lateral, o batistério, o púlpito, as pinturas murais

do altar-mor, os altares laterais de madeira, os candelabros e ain-

da outros elementos estruturais e decorativos.

No dia seguinte, domingo, o bispo de Évora realizou uma

missa e procedeu à bênção solene da nova capela. A partir dessa

data, deixaram de haver missas na aldeia antiga, e as mulheres que

lá continuavam passaram a ter de se deslocar à nova aldeia para

assistir aos atos de culto.

A 19 de novembro de 2002, a Nova Aldeia da Luz foi solene-

mente inaugurada pelo primeiro-ministro, já com a grande maio-

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24 Como constava dospôsteres afixados nos co-mércios e cafés locais.

23 Medida decidida pe-los arqueólogos que de-fendem que esta é a úni-ca maneira de se poderpreservar essa edificaca-ção romana para gera-ções futuras, quando, da-qui a umas centenas deanos, as águas baixaremde nível.

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ria da população a viver lá. Para lá das comemorações, dos dis-

cursos e das visitas oficiais, à noitinha houve uma refeição comu-

nitária e um espetáculo multimédia, com som, luz e água. Mas a

população sentiu esse dia, um dia de semana (terça-feira) em que

muitos trabalharam, como aquilo exatamente que ele foi: um dia

de inauguração oficial.

Os luzenses engendraram eles próprios as suas formas de se

despedirem da aldeia. Duas semanas depois da inauguração ofi-

cial, organizaram uma vacada no velho Largo 25 de Abril, que, ao

contrário das suas congêneres das festas de setembro, era destina-

da única e exclusivamente “aos da terra”. As pessoas refugiaram-

se das vacas e dos touros dentro de casas vazias e já sem janelas e

o bar foi improvisado na antiga mercearia do largo, nessa altura

já a funcionar em pleno na nova aldeia.

Durante todo o outono e inverno de 2002, os luzenses deslo-

cavam-se – como as hordas de turistas de fim de semana – para

observarem a subida do nível das águas, que, num ano de pluvio-

sidade elevada, foi aumentando a um ritmo assustador, sobretu-

do no período entre o Natal e as primeiras semanas de 2003. Os

comentários das pessoas denotavam a surpresa por tudo aconte-

cer tão rapidamente: “A fonte santa desapareceu quase de um dia

para o outro... isto está um mar!” Com os seus mapas cognitivos

e memórias da paisagem circundante completamente alteradas, é

às gerações mais velhas que o panorama da águas mais impres-

siona, quando reconhecem que “agora já não me sei bem orien-

tar; procuro coisas que já estão debaixo da água e que dantes a

gente conhecia tão bem!...”

OS JOVENS E OS VELHOS

A adaptação das pessoas aos novos espaços da aldeia foi-se proces-

sando ao ritmo dos acontecimentos e da apropriação dos territó-

rios e das sociabilidades adequadas ao papel de cada um. A pada-

ria, a partir do momento em que se estabeleceu na nova aldeia,

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cumpriu o seu papel de local de intensa interação feminina, onde

se comentam, logo pela manhã, as novidades do dia e da noite an-

terior.O mesmo aconteceu com as mercearias,nomeadamente por-

que o correio foi, durante o lapso de tempo que decorreu entre as

mudanças e a inauguração oficial – data em que foram colocadas

as placas com os nomes das ruas e os números das portas – entre-

gue e subseqüentemente distribuído no estabelecimento que exer-

cia oficialmente as funções de posto de correio local. A ida à quei-

jaria ou à casa de mulheres que têm cabras e fabricam queijos, as

deslocações à escola para ir buscar as crianças, as idas ao café, fo-

ram-se delineando e desenvolvendo à medida que a nova aldeia ad-

quiria corpo. A circunstância das novas casas, do novo mobiliário,

do esmero posto na decoração e das obras e melhoramentos reali-

zados suscitou a multiplicidade de visitas às casas uns dos outros.

O ritmo da ciclicidade anual dos eventos foi trazendo as pes-

soas aos espaços públicos – as celebrações e o madeiro de Natal

no Largo 25 de Abril, a comemoração da passagem do ano, tam-

bém junto ao madeiro, com uma refeição comunitária e fogo de

artifício. O final do ano foi também marcado pela celebração

do primeiro casamento na nova aldeia: num cenário carregado

do simbolismo de um ritual de agregação cumprido num espaço

recém-criado e ele próprio num processo de apropriação coleti-

va, a noiva e seu séquito percorreu, pelas ruas da aldeia e peran-

te o olhar público, a distância entre a casa dos seus pais e a Junta

de Freguesia, no largo principal.

A lenta e difícil apropriação dos espaços públicos reflete, mais

uma vez e à semelhança do que acontece com as casas, um proje-

to de urbanismo que não primou pela reflexão em torno dos mo-

dos de estar e das vivências das gentes da Luz.

Um dos problemas de circulação prende-se com a escala des-

sa nova aldeia, com ruas mais largas e em que as distâncias entre

os seus extremos parecem incomensuravelmente maiores e intrans-

poníveis. O estrato da população que mais queixas tem a esse res-

peito é a faixa etária mais idosa, que é também o grupo que mais

usufrui dos espaços exteriores. Na velha aldeia, o Largo 25 de Abril

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era o ponto de encontro dos homens, sobretudo ao fim da tarde, e

era daí que os diferentes grupos divergiam para o périplo tradicio-

nal pelos cafés, numa partilha de petiscos e copos que acompanha-

vam as conversas. No novo núcleo o largo é um espaço devassado,

sem intimismo, demasiado grande e por isso pouco acolhedor, fa-

to agravado pela ausência de bancos, de árvores e de sombras – a

única oliveira para aqui transplantada não consegue cumprir essas

funções de estabelecer um espaço afável e convidativo, o que ilus-

tra o problema da diminuição dos pólos que favoreciam a convi-

vencialidade e dos espaços de sociabilidade coletiva.

As mulheres também sentem a sua circulação restringida.

Mercê de sucessivas heranças, junção e separação de proprieda-

des pelo casamento, muitas famílias eram proprietárias, na velha

aldeia, de mais que uma parcela. Essa dispersão das propriedades

englobava também os quintais e as segundas cozinhas, onde, no

dia-a-dia, se fazia o fogo e se cozinhava, que, sobretudo na zona

mais antiga da aldeia – a Rua de Trás –, estavam distanciados das

habitações e muitas vezes do lado oposto da rua. Isso fazia com

que as mulheres fossem, na sua azáfama cotidiana, obrigadas a

atravessar permanentemente a rua e a se cruzar com as vizinhas.

Nas novas casas, as segundas cozinhas e quintais situam-se nas

traseiras, mas dentro dos perímetros das casas, não proporcionan-

do essas sociabilidades e encontros femininos.

Outra ocupação dos mais velhos se viu também anulada com

a mudança: as hortas, situadas numa das extremidades da aldeia,

eram trabalhadas por homens e mulheres, que daí extraíam legu-

mes, hortaliças e frutas para o gasto da casa. A maior parte des-

ses espaços não eram pertença de quem os trabalhava, mas sim

por estes arrendados ou simplesmente – na grande maioria – em-

prestados sem encargos, já que os seus proprietários viviam fora

ou deles não se podiam ocupar. O caminho das hortas era ainda

percorrido pelas mulheres que iam aos poços buscar água ou ao

lavadouro lavar colchas e mantas. Essas interações não foram re-

tomadas na nova aldeia, onde as hortas são adjacentes às casas ou

aos casões agrícolas, espalhadas por uma zona mais extensa que

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anteriormente, e o lavadouro não entrou em funcionamento. Nu-

ma zona em que os mais velhos viveram a sua idade juvenil e adul-

ta a trabalhar para os donos das terras, viram os triunfos e as der-

rotas da reforma agrária, e alguns participaram desses triunfos e

dessas derrotas (Drain, 1992), são ainda estes que remodelam as

suas posturas e se adaptam ao novo cenário de vida: vendem-se

ovelhas ou cabras por causa da diminuição dos pastos, vai-se tra-

balhar para as casas que têm mais gado e que podem beneficiar-

se melhor das novas hipóteses a serem criadas pela massa gigan-

tesca de água que se avizinha.

A adaptação foi naturalmente mais fácil para os mais jovens,

a faixa etária virada para o futuro e que melhor aproveitará as si-

nergias possibilitadas pela albufeira. A Luz é uma aldeia com uma

vitalidade invulgar, se a compararmos com outras aldeias do in-

terior do país, que contava, na época da mudança, em 2002-2003,

com cerca de 20 jovens na faixa etária dos 15 aos 25 anos e mais

de 25 crianças entre os 2 e 14 anos de idade. Foram esses jovens

que fundaram a Associação de Jovens e o grupo de rock Nova Luz

sensivelmente seis anos antes. A associação promoveu, nessa al-

tura, uma peça de teatro inteiramente escrita, encenada e repre-

sentada pelos jovens, cujo tema era a barragem e as suas conse-

qüências, um pouco uma sátira com aspetos de comédia e de

drama, em referência ao cenário de perturbação que se vivia na

aldeia – já que coincidiu com o período mais agudo de discussões

acerca dos projetos de execução das casas. Essa performance mos-

trou o quanto o processo afetou também os mais jovens. De igual

modo, do repertório de canções do Nova Luz uma das mais re-

questadas é a que termina com os seguintes versos:

Em nome do que há-de vir Ficas na minha memória

Tu vais partir, alguém te leva Passou à história, já não seduz

Vá lá, diz adeus ao mundo mas enquanto eu viver não te vou

esquecer

Vais para o fundo do lago Aldeia da Luz

de Alqueva

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Alguns dos rapazes que tocam na banda de rock cantam tam-

bém no grupo coral, composto inteiramente por elementos mas-

culinos, seguindo a tradição alentejana, mas com vários grupos

etários, desde os mais velhos aos mais novos. Em todas as atua-

ções do grupo coral da Luz durante esse período conturbado, an-

terior e durante e mudança, havia uma canção que era sempre en-

toada, cuja letra foi composta por um dos seus elementos e que

bem sintetiza a saga por que os luzenses passaram:

Aldeia da Luz querida Muita gente há-de chorar

Não posso nisto pensar Até os que cá não estão

Quando for a despedida Quando for desenterrar

Muita gente há-de chorar Quem está debaixo do chão

Choram novos e choram velhos Aqui nesta ocasião

Choram todos quantos estão Nós teremos de abalar

Tanta gente a chorar Vamos daqui com paixão

Aqui nesta ocasião De não te poder levar

VÍTIMAS OU HERÓIS – O REFAZER DA IDENTIDADE LOCAL

O processo psicológico e social de adaptação à nova situação foi

sempre marcado por uma ambigüidade e um discurso que têm

muitas vezes faces diversas consoante os interlocutores. Ao orgu-

lho sentido pela “nova casinha” aliou-se a noção da penalização

perante uma condição que as pessoas sentem que lhes foi impos-

ta, mas que, no seio de um ethos que prima por um certo fatalis-

mo – e mesmo um “conformismo suicida”, segundo alguns –, se

habituaram a aceitar.

Se o fato de se terem sacrificado pelo bem do país acarreta o

estatuto duplo de vítimas e heróis – fato bem-sentido pelas pes-

soas que se gabam de terem aceitado a cota máxima para o nível

das águas, porque, “já que o país ia gastar dinheiro, então, que se

fizesse bem, mesmo que saiamos sacrificados” –, à medida que o

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tempo passou e o processo de concertação se foi materializando,

os luzenses passaram de vítimas e heróis a reivindicadores; a am-

bigüidade dessas duas posições tem sido, também, a imagem vei-

culada pelos meios de comunicação social. Como em todos os ca-

sos de contestação social, foi necessário encontrar-se um culpado;

nesse caso, a EDIA será sempre, em última análise, o inimigo, a en-

tidade responsável pela desgraça que caiu sobre a Luz.

A complexidade do processo em curso foi (e é ainda), em

grande parte, engendrada e alimentada por um discurso de imo-

lação social, em que, para o exterior, cada um insiste na sua posi-

ção de vítima se comparado com o vizinho do lado, “beneficiado

pela EDIA”. Isso sucede aos vários níveis da consciência pessoal e

social: mesmo as pessoas que sentem que o processo lhes foi fa-

vorável e se consideram contentes e orgulhosos com a sua “nova

casinha” apressam-se logo em seguida a reiterar os lados negati-

vos do seu caso e a afirmar que, no geral, “ficaram pior que os

vizinhos”. Foram sobretudo as famílias com um nível social e eco-

nômico mais confortável e que haviam feito recentes melhora-

mentos nas suas casas que se sentiram mais lesadas com o nive-

lamento social que a imposição de tipologias nos projetos para a

construção das casas deu, e foram também estes que se apressa-

ram a introduzir mais modificações nas novas moradias.

Em termos de estratégias identitárias dos vários grupos so-

ciais, os de estatuto social e econômico mais elevado são os que

tendem menos a desenvolver o discurso da comparação pela

negativa e viram o ônus dos seus dissabores para a EDIA, culpada

de uma tendência para um nivelamento social patente na uni-

formidade arquitetônica das casas que não lhes agrada. Nas

famílias de condição socioeconômica mais baixa, o processo des-

poletou a verbalização de toda uma consciência velada das dife-

renças sociais.

Para uns e outros, de qualquer modo, o bode expiatório de

todas as maleitas reais ou simbólicas por que têm passado foi, e

continua a ser, a empresa responsável por Alqueva. Essa necessi-

dade de objetivar e imputar culpas e ódios se traduziu também

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na proclamação de que “não se deixa lá nada para a EDIA” e, na

prática, na retirada pelos próprios da maioria dos materiais das

antigas casas – portas, janelas e marquises, telhas, vigas e outros

elementos estruturais dos edifícios. O que resultou também num

certo conforto psicológico, já que foram os próprios luzenses os

agentes ativos do início do desmantelamento da velha aldeia.

UMA ALDEIA COM ESPELHO

Da velha Aldeia da Luz, hoje em dia nada resta: tudo foi arrasa-

do, reduzido a escombros ou reciclado – com o fim de preservar

a qualidade da água e o bom aproveitamento da albufeira, mas

também para proteger a memória de um local que as pessoas que-

rem “conservar na lembrança como ele era, e não destruído”.

Apesar de toda a contestação e aspectos necessariamente

complexos num processo dessa envergadura, o realojamento da

Luz refletiu a vontade da população de permanecer una enquan-

to comunidade, ao contrário do caso da Barragem de Vilarinho,

no Minho, em que as pessoas foram desalojadas e se dispersaram

completamente, conforme relato de Novaes (1973), e dos casos

estudados por Reis e Bloemer (2001) nos exemplos de reassenta-

dos devido à construção de hidroelétricas pela Eletrosul, na zona

Sul do Brasil.

Passados quase quatro anos após a mudança, a nova aldeia

está rodeada por um imenso espelho de água, projetos inovado-

res de investimento e desenvolvimento, mas algumas dificuldades

de adaptação e vivências no novo espaço não estão ainda sana-

das. Resta esperar e ver como as pessoas e as coisas recordarão es-

se período conturbado e que indubitavelmente marcará para sem-

pre a Nova Aldeia da Luz e as suas gerações vindouras.

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CLARA SARAIVA é antropóloga social e cultural, investigadora auxiliar, Instituto deInvestigação Científica Tropical, Lisboa, e docente convidada do Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade No-va de Lisboa.

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A FAMÍLIA TAL COMO ELA É NOS DESENHOS DE CRIANÇAS

MARIA APARECIDA DE MORAES SILVA

BEATRIZ MEDEIROS DE MELO

ANDRÉIA PERES APPOLINÁRIO

R E S U M O A partir da década de 1960, assistiu-se à vinda de milhares de tra-

balhadores, de várias áreas do país, para as cidades da região de Ribeirão Preto/SP,

em busca de trabalho nas lavouras de café, cana e laranja. Essa migração foi res-

ponsável pelo surgimento de bairros periféricos, habitados por trabalhadores ru-

rais, que vivem nas cidades e trabalham no campo. Na década de 1990, em virtu-

de do processo de reestruturação produtiva, da precarização e do desemprego, a

situação social dos trabalhadores se agravou muito. O objetivo deste artigo é a aná-

lise dos efeitos desse processo sobre as famílias, a partir das representações das crian-

ças, por meio dos seus desenhos.

P A L A V R A S - C H A V E Desenhos de crianças; gênero; trabalho rural; ex-

ploração econômico-social.

A B S T R A C T Since the 1960’s thousands of workers coming from different

areas of Brazil have rushed into the cities of the Ribeirão Preto region, São Paulo,

looking for employment in its coffee, sugar cane and orange farms. This migration

resulted in the growth of periurban bairros inhabited by workers who live in town

but work in the countryside. In the 1990’s, the plight of these workers has worsened,

due to changes in the productive structure, which resulted in short-term jobs and

unemployment. This article has the goal of analyzing the effects of this process over

families, based in children’s representations as contained in their drawings.

K E Y W O R D S Children’s drawings; gender; rural work; socio-economical ex-

ploitation.

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Assiste-se atualmente ao processo progressivo de precari-

zação do trabalho nas lavouras de cana-de-açúcar e laranja na

região de Ribeirão Preto/SP. O Estatuto do Trabalhador Rural

(1963) operou a individualização do trabalho no campo e a in-

tensificação da exploração da mão-de-obra. A migração para a

cidade resultou na situação de incapacidade de reprodução eco-

nômica por parte desses trabalhadores, conforme já apontado

em outros estudos (Stolcke, 1986, 1993; Silva, 1997, 1999). Pau-

latinamente, foi ocorrendo a “crise do provedor” na unidade

doméstica e a multiplicação das mulheres-chefes-de-família. O

fim do colonato1 indicava a tendência da redução da taxa de

natalidade entre as famílias dos doravante denominados “bóias-

frias”, mas a realidade empírica estudada revela ainda a presen-

ça de um número elevado de filhos, algo que contraria a ten-

dência do país.2

Diante desse contexto histórico, o objetivo deste artigo é a

análise dos efeitos do processo de exclusão-inclusão precária (Sil-

va, 2004), resultantes da implantação da maneira de produzir do

agribusiness, sobre a organização social das famílias de trabalha-

dores rurais, residentes nas periferias urbanas sob a ótica das

crianças, sujeitos geralmente ausentes dos temas da sociologia,

em razão do caráter adultocêntrico desse ramo do conhecimen-

to científico.3 Por meio da combinação de várias técnicas de pes-

quisa, tornou-se possível conhecer as diversas estratégias adota-

das pelas famílias para a garantia da reprodução social e o olhar

das crianças sobre suas próprias famílias. De antemão, ressalta-

mos que a escolha do universo infantil para a análise sociológi-

ca representou um enorme desafio não apenas em virtude de

poucas pesquisas existentes como também dos limites teórico-

metodológicos enfrentados, já que essa problemática não pode

ser encerrada num único campo do conhecimento. A fim de dar-

mos conta dessa empreitada, foram feitos alguns recortes analí-

ticos que privilegiam a criança como sujeito, diferente do adul-

to, dotado de representações específicas, segundo o universo

social no qual está inserida, e o desenho enquanto representação

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1 O colonato reporta-seao sistema de trabalho vi-gente sobretudo na eco-nomia cafeeira desde osfins do século XIX atémeados do século XX.Consistia no trabalho fa-miliar regido pelo chefeda família. As normaseram definidas segundoo contrato de trabalhoque discriminava as tare-fas no cafezal, o direito aouso de pequena roça desubsistência e a proprie-dade de alguns animais.Esse sistema priorizava asfamílias numerosas capa-zes de fornecer o maiornúmero de braços para aslavouras.

2 Em média, as mulheresda pesquisa têm quatrofilhos, cifra muito supe-rior à média nacional.Dados recentes da PNADapontam para o declíniodas taxas de fecundidadeno país. O número mé-dio de filhos por famíliaera 6,2 em 1940 e 1950;6,3 em 1960; 5,8 em1970; 4,4 em 1980; 2,9em 1991; 2,4 em 2000; 2,1em 2004 e 1,8 em 2050(estimativa). Segundo ademógrafa Ana AméliaCamarano, a fecundida-de caiu mais entre as mu-lheres mais pobres. Folhade S. Paulo, Caderno Di-nheiro, B 5, 22 de janeirode 2006.

3 José de Souza Martinsfoi um dos pioneiros amostrar criticamente quea sociologia não estudaas crianças. Ver, a respei-to, Martins (1991). A in-clusão da criança nostemas sociológicos foiobjeto de uma coletânea,publicada recentemente:Faria, Demartini, Prado(2002); na historiografia,destaca-se a obra de DelPriore (1991).

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social. Portanto, as análises da psicologia infantil e da psicanáli-

se que enfocam os desenhos visando aos testes clínicos e níveis

de inteligência escapam aos nossos objetivos. O desenho, conju-

gado a sua leitura feita pela respectiva criança, constitui-se na ex-

pressão e também na percepção que ela tem da família e do mun-

do social que a cerca.

A análise dessa problemática será feita no contexto de algu-

mas questões teóricas que privilegiam as relações entre estrutu-

ra e sujeito. Partimos do princípio de que as estruturas não são

fatos objetivos, independentemente dos sujeitos que compõem

uma dada realidade social. Existe uma relação dialética entre es-

trutura e sujeito, cujo resultado são as relações processuais. Des-

sa sorte, as considerações sobre os espaços sociais das famílias,

necessárias ao entendimento das representações infantis por

meio dos desenhos, serão precedidas por aquelas acerca das re-

lações entre a sociogênese e a psicogênese. Tal procedimento teó-

rico possibilitará a compreensão da particularidade histórica des-

sa realidade social, levando-se em conta os aspectos universais

que fazem parte dela.

Os dados empíricos estão ancorados na etnografia concen-

trada na cidade de Rincão, localizada no interior do estado de

São Paulo (a 280 km da capital), com 10.329 habitantes, e 70%

da população economicamente ativa ocupa o setor primário

(Censo, 2000). Optou-se pela análise etnográfica a fim de ob-

servar em profundidade o comportamento de 15 famílias de

um mesmo quarteirão, localizado num dos limites urbanos da

cidade, no Bairro Jardim Bela Vista. Essa metodologia abarcou

várias técnicas: desenhos de 40 crianças,4 coleta de depoimen-

tos orais com jovens adolescentes grávidas, com mulheres ca-

sadas, com mulheres solteiras com filhos, com alguns homens,

com representantes do Conselho Tutelar, da Creche Municipal,

do Posto de Saúde, além da observação participante. O tema

dos desenhos relacionado à família tinha como pressuposto a

análise das várias formas da estrutura familiar presentes entre

eles. As entrevistas com as mulheres contaram com o apoio de

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4 Os desenhos foram co-letados em duas etapas:num primeiro momen-to, foram reunidas 15crianças na casa do pai deuma das pesquisadoras;num segundo momento,foram coletados 25 dese-nhos na creche munici-pal, ocasião em que sedesenvolveu uma ativi-dade teatral. Em ambos,não havia a presença dosmembros das famíliasdas crianças. Outros de-talhes serão explicitadosadiante.

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uma cartilha sobre corpo e saúde, distribuída pelo Conselho

da Condição Feminina, cujos objetivos eram, por meio de uma

relação dialógica, o conhecimento das práticas reprodutivas,

da sexualidade e das relações de gênero. Com o intento de co-

nhecer as relações de parentesco, vizinhança e compadrio, fo-

ram produzidas fichas de família, cuja leitura preliminar per-

mitiu a caracterização geral dessas famílias, tal como elas são

e não a partir de modelos preexistentes.

Além da realização das oficinas para a coleta dos desenhos,

desenvolveram-se atividades recreativas com representações de

peças teatrais infantis pelas próprias crianças,5 distribuição do

material, papel sulfite, lápis de cor, refrigerante, bolachas e brin-

quedos. Em seguida, foram feitas fichas contendo a leitura de ca-

da desenho, feita pela respectiva criança. Nas fichas há as seguin-

tes informações: nome da criança, idade, etnia, nomes e papéis

das pessoas representadas nos desenhos, além de informações co-

ligidas pelas entrevistas com os demais informantes e das obser-

vações acerca do comportamento da criança durante a atividade.

Os resultados auferidos a partir dessa técnica de pesquisa foram

extremamente ricos para a análise das representações infantis so-

bre a família e também para o entendimento de uma outra lógi-

ca familiar existente entre esses trabalhadores.

PRIMEIRAS IMPRESSÕES

O cenário analisado é um quarteirão que faz limite com os cana-

viais de uma usina situada na região. A cerca é entremeada de ár-

vores, sob as quais foram colocados bancos de madeira, que ser-

vem como pontos de encontro dos moradores e são, na verdade,

espaços de sociabilidade e extensões das próprias casas. Há um

elevado número de crianças em cada unidade doméstica e a pre-

sença de diversas pessoas cuidadoras.

As mulheres trabalham na colheita da laranja, nos empregos

domésticos, no corte da cana e em casa para o sustento dos fi-

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5 O teatro infantil foiorientado pelas pesqui-sadoras Beatriz Medeirosde Melo e Andréia PeresAppolinário, cujos “ato-res” foram as própriascrianças. Foram forneci-dos a elas bonecos defantoche, após ter-lhessido solicitado que re-presentassem pessoas desuas famílias e criassemuma história, baseadaem Rapunzel. A peça foimontada com oito parti-cipantes: o rei, a bruxa,dois personagens femi-ninos, dois personagensmasculinos e tambémum personagem de con-tos infantis, a Rapunzel.Com as crianças senta-das no chão, pergun-tamos-lhes quais per-sonagens eles queriamrepresentar. O elencocriado foi o seguinte: abruxa se transformou naavó paterna; o rei, no pai;uma personagem infan-til de cabelos brancos, naavó materna; Rapunzel,na filha; um boneco, nofilho; uma personagemde cabelos pretos e amar-rados, na mãe. O cotidia-no da mãe de levar ascrianças na creche, ir pa-ra o trabalho e buscá-lasno final da tarde aparecerepresentado, bem comoas “ruindades”da avó pa-terna (bruxa) em relaçãoa elas e às suas mães e asrepresentações acolhe-doras da avó materna. Ospais foram representa-dos como bêbados, amãe que mandou o paiembora por causa da be-bida, a mãe que resolveuficar com a guarda dos fi-lhos e a avó que apanhaas crianças na escola, emfunção do trabalho damãe.

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lhos. Algumas delas são acompanhadas no trabalho agrícola pe-

los filhos maiores de idade ou até mesmo pelos filhos menores.

Dentre as 12 crianças que moram somente com sua mãe, apenas

2 recebem pensão alimentícia do pai. Em apenas quatro das dez

famílias nucleares, a renda do homem é indispensável para a re-

produção material, em duas daquelas as mulheres também tra-

balham e, em uma outra, a renda do filho mais velho pesa mais

que a do pai.

Foi verificada a prática de tomar por padrinho dos filhos os

próprios vizinhos, pessoas próximas que podem dividir a respon-

sabilidade pela criação; há uma relação de troca: os filhos são a

dádiva, e o fato de oferecê-los como afilhados redunda em retri-

buição material ou em forma de favores. A prática da circulação

de crianças,6 com a qual cinco dessas famílias já se envolveram,

baseia-se na mesma lógica. Toda a vizinhança se agrupa num cír-

culo de ajuda mútua sustentado pelas mulheres e crianças.

Outro ponto importante se reporta aos homens. A paterna-

gem não é assumida como valor, como dever ou compromisso.

Ao lado da circulação de crianças, há a circulação de homens, de

uma unidade doméstica a outra. Quanto às mulheres sem os com-

panheiros, elas se fixam nas casas de seus genitores ou nos fun-

dos de seus quintais e contam com a ajuda de parentes e vizinhos.

Esses aspectos são como molduras dos quadros familiares,

cujos conteúdos refletem o estilo de vida, a sociabilidade entre

vizinhos e parentes – muitas vezes, permeada por conflitos –, as

relações entre pais e filhos, homens e mulheres, enfim a vida tal

como ela é. A metáfora do quadro emoldurado nos sugere a pre-

sença de personagens, cenas, paisagens. Por conseguinte, há a ne-

cessidade de um olhar acurado, capaz de perceber os grandes tra-

ços e também os pequenos detalhes. E mais ainda. Enxergar, por

detrás dos cenários, as ausências e os silêncios, enfim, os que não

estão no quadro e cujas revelações se constituem no intento des-

te texto.

Nos desenhos das crianças raramente aparecem as casas. Es-

sa ausência sugere algumas reflexões sobre o espaço geográfico e

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6 Circulação de crianças,expressão utilizada porFonseca (1995), ocorrequando a criança é desti-nada a um lar substitutosegundo as necessidadesde reprodução da família.

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social onde elas vivem. As cidades-dormitórios dessa região são

cercadas pelos canaviais. Os limites do urbano coincidem com as

plantações de cana. As imagens captadas pela pesquisa retratam

os dois mundos – rural e urbano – como espaços contíguos e não

separados. Os bairros habitados por trabalhadores rurais podem

ser considerados como verdadeiras colônias das usinas na cidade.

Esses espaços são entendidos enquanto espaços de sociabili-

dade, onde se acham presentes traços do mundo rural de antes e

do mundo urbano, considerado moderno. O “tradicional” e o

“moderno” se cruzam formando uma verdadeira simbiose. As

imagens dos fogões a lenha, das hortas, das ervas plantadas em

vasos e áreas bem-restritas existem lado a lado com os fogões a

gás, a televisão, a geladeira, os aparelhos de som, os celulares, en-

fim as mercadorias de consumo do mundo urbano.

O espaço da rua não se acha separado do espaço da casa, tal

como foi mostrado por Da Matta (1987). Andando pelas ruas,

vêem-se crianças brincando de “casinha” à frente da casa, na cal-

çada. Sobretudo, nos finais de tarde de sábados e domingos, é mui-

to comum as mulheres se sentarem à frente da casa para conver-

sar.Aliás, é comum a construção de bancos de cimento ou madeira

junto aos muros, o que demonstra que a rua é um espaço que po-

de ser considerado uma extensão da casa, portanto não se acha

em oposição a ela. A pesar dos muros, os vizinhos têm livre aces-

so às casas. Essa realidade é constatada com muita freqüência por

ocasião das entrevistas. Dificilmente, uma entrevista é realizada

sem a presença de outras pessoas, quer sejam da família ou da vi-

zinhança. Esse dado é importante para a análise das relações en-

tre público e privado.

Na verdade, entre esses trabalhadores, essa separação não é

a mesma encontrada em outros universos sociais. As dificulda-

des financeiras conduzem à reprodução das estratégias de sobre-

vivência existentes no mundo rural de antes, assentadas nos va-

lores e códigos costumeiros. Faz parte do costume “pedir

emprestado” não somente alimentos como também outras mer-

cadorias que, porventura, estejam faltando na casa. Outro dado

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constatado pela pesquisa é a livre circulação de pessoas da vizi-

nhança pela casa e o conhecimento que elas possuem de todo o

espaço. Assim, elas têm conhecimento onde estão guardados do-

cumentos, remédios, objetos que fazem parte da privacidade das

pessoas da família.

Não obstante, as relações entre vizinhos não se verificam de

forma totalmente harmônica. Numa das casas vive uma família

cujo contato com as demais pessoas do quarteirão é bastante ra-

ro. Aqui se observa situação encontrada por Schuwartz (1990,

p. 161), cuja pesquisa entre operários no norte da França consta-

tou o confinamento familiar e uma sociabilidade que limita os

contatos com vizinhos, considerados indesejáveis.7Acredita-se

que esses achados forneçam pistas importantes à análise de temas

como privacidade, intimidade, relativos às classes médias e altas

e, freqüentemente, estendidos a todas as camadas sociais. Esses

dados fornecem a dimensão da complexidade da realidade social

e exigem do pesquisador muitos cuidados no momento da aná-

lise e interpretação das informações coletadas.

Os salários baixos, o desemprego e a exclusão social contri-

buem para o agravamento das condições de reprodução social

dessas famílias. Esse fato gera a necessidade de encontrar estraté-

gias de moradia. O aproveitamento do mesmo lote e a construção

de várias casas por parentes e consangüíneos – os puxadinhos –,

além da vinda de mulheres ou homens com seus respectivos côn-

juges (ou não) e seus filhos para a casa dos pais, já idosos. Em

regra, não são os idosos que vão morar com os filhos ou netos,

porém o contrário. Os avós conseguiram após a Constituinte, que

regularizou o direito à aposentadoria dos trabalhadores rurais,

construir suas casas, geralmente pequenas, sob o sistema da au-

toconstrução. Assim sendo, o número de pessoas de distintas ge-

rações nas unidades domésticas é bastante elevado. Essa situação,

muitas vezes, contribui para o agravamento dos conflitos intrafa-

miliares, além dos rearranjos do espaço da casa, por meio da su-

pressão de cômodos destinados à sala, por exemplo, pois é bas-

tante comum a sala “virar” quarto e também a cozinha “virar” sala

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7 Em muitos momentos,as pessoas mantiveramsilêncio sobre essa espé-cie de cordão sanitárioentre si e esses vizinhos,cuja casa sempre estavacom janelas e portas cer-radas e os filhos jovensnão eram vistos circu-lando pela rua. Ver, a res-peito dessas considera-ções, Romanelli (2003,p. 260-1).

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e quarto ou ainda o sofá se transformar na divisória entre sala e

quarto. Acrescente-se a esse quadro a presença de netos, filhos de

mães adolescentes, que passam a morar com os avós. Embora a

aposentadoria seja um benefício justo aos idosos rurais, a reali-

dade encontrada reflete o processo de empobrecimento das dis-

tintas gerações dessas famílias, cujos proventos dos avós têm pa-

pel relevante na sua reprodução social.8

No tocante aos estudos de memória, a presença desse gran-

de número de pessoas na casa, além das crianças, impõe, muitas

vezes, dificuldades à pesquisa, pois o velho nesse ambiente não

possui o necessário tempo de contemplação para o trabalho da

reconstrução das lembranças. Em geral, o tempo presente, carac-

terizado pelas inúmeras dificuldades dos membros adultos e jo-

vens, acaba por influir negativamente na saúde física, mental e

psíquica dos velhos. Para esses velhos, a matéria-prima das lem-

branças, suas próprias experiências, é espoliada. O que o pesqui-

sador consegue registrar são meros fragmentos do passado ator-

mentado pelo presente de seus descendentes e deles próprios.

A FAMÍLIA TAL COMO ELA É

De antemão, nosso objetivo não é adentrar o debate sobre os con-

ceitos de família, a partir dos distintos ramos do conhecimento,

como a sociologia, antropologia, psicologia, história social e de-

mografia,9 nem tampouco analisar os desenhos sob a ótica da psi-

canálise, como já foi dito acima. É necessário estabelecer a distin-

ção entre as noções de família e unidades domésticas. Família diz

respeito ao parentesco, à ideologia e à coabitação; unidade domés-

tica diz respeito à coabitação e cooperação econômica imediata

para esse grupo (Scott, 1990, p. 41). Para fins desta análise, tanto

uma noção quanto outra cabem dentro dos propósitos analíticos.

Partimos do princípio que as crianças têm muito a dizer e, por is-

so, não podem ser descartadas do processo do conhecimento; por

outro lado, não as consideramos como sujeitos abstratos, porém

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8 A assistência previden-ciária aos trabalhadoresrurais só se implantou defato a partir de 1992,com o regime de univer-salização do atendimen-to e a redistribuição deum salário mínimo paraambos os sexos, sob ida-de mínima de 55 anospara as mulheres e 60anos para os homens.

9 Existe uma vasta pro-dução crítica sobre essetema. Ver, dentre outros,Arantes et al. (1993), Ka-loustian (2002), RevistaBrasileira de História,n. 17.

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inseridos em grupos sociais específicos e pertencentes às famílias

de trabalhadores rurais que vivem nas cidades dessa região num

momento de exclusão, desemprego e precarização do trabalho. A

questão norteadora deste artigo é a seguinte: Como esse proces-

so social é experienciado pelas crianças no interior do grupo pri-

mário – a família – ao qual pertencem?

A memória e a história desses trabalhadores são fundamen-

tais à compreensão deles enquanto adultos e também de suas

crianças enquanto projeções de suas vidas. Esse fato é importante

para não considerar essas crianças tão-somente como pertencen-

tes às camadas populares ou de baixa renda ou ainda à classe dos

trabalhadores. Dessa sorte, as famílias são vistas enquanto produ-

toras e reprodutoras da vida biológica e social, em que valores, sím-

bolos e representações sociais constituem o elo entre os membros

que as compõem. Não corroboramos com as denominações de fa-

mílias quebradas, desestruturadas, incompletas, adjetivos que pres-

supõem a existência de um modelo comparativo. Portanto, afas-

tamos da análise essas idéias preconcebidas a partir de tipologias,

cujos vieses ideológicos constituem o partis pris de modelos exis-

tentes na sociedade como um todo (Romanelli, 2003; Sarti, 1996).

As famílias pesquisadas apresentam os seguintes perfis: 1) fa-

mílias relativamente estáveis com a presença do pai, da mãe e dos

filhos; 2) famílias com a presença da mãe e dos filhos advindos de

relações sucessivas com vários companheiros; famílias com a pre-

sença de parentes consangüíneos ou não.

O modelo de família nuclear, característico das classes mé-

dias e altas, não existe, portanto, na totalidade dessa realidade so-

cial. O modelo de família extensa também não é mais amplamen-

te praticado desde o fim do colonato, mas ainda deixa vestígios

da prática e da moral que valorizam o grande número de filhos e

a co-residência do casal junto a eles. Mas o fato que progressiva-

mente cresce entre as novas gerações é o da família não-nuclear

com destaque para o vínculo mães–filhos. Elas ficam com a tute-

la dos filhos, porém seus proventos são insuficientes para a garan-

tia da sobrevivência deles. O modelo do patriarcado10 vigente –

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10 Segundo Saffioti, asrazões do emprego donome patriarcado são:1) não se trata de uma re-lação privada, mas civil;2) dá direitos sexuais aoshomens sobre as mulhe-res, praticamente semrestrição; 3) configuraum tipo hierárquico derelação, que invade todosos espaços da sociedade;4) tem uma base mate-rial; 5) corporifica-se;6) representa uma estru-tura de poder baseada naideologia e na violência(2004, p. 57-8).

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articulado ao de provedor defeituoso, criado pelas atuais condi-

ções econômicas – produz a figura do pai que foi embora. A famí-

lia produz um conjunto de práticas culturais (re)significadas por

meio da criação de laços de reciprocidade, como é o caso do apa-

drinhamento e da circulação de crianças. A base dessas práticas é

o estabelecimento de um círculo de ajuda mútua que envolve,

principalmente, mulheres e crianças da vizinhança.

Assim sendo, os arranjos matrifocais dominam a organiza-

ção dessas famílias. Quanto à matrifocalidade, adotamos a defi-

nição dada por Smith (1973) e utilizada por Scott (1990), cujas

pesquisas foram realizadas com famílias de mulheres pobres da

Guiana Inglesa e da periferia de Recife, respectivamente.

O termo matrifocalidade identifica uma complexa teia de re-

lações montadas a partir do grupo doméstico onde, mesmo

na presença do homem na casa, é favorecido o lado feminino

do grupo. Isso se traduz em: relações mãe-filho mais solidá-

rias que relações pai-filho, escolha de residência, identificação

de parentes conhecidos, trocas de favores e bens, visitas etc.,

todos mais fortes pelo lado feminino; e também na provável

existência de manifestações culturais e religiosas que destacam

o papel feminino (p. 38).

No que tange à chefia feminina, vários autores ressaltam que

chefia não se confunde com focalidade. É preciso levar em conta

que há a coexistência de normas “patriarcais” e práticas “matrifo-

cais”. No caso das trabalhadoras rurais, essa situação é muito pre-

sente. As mulheres assumem a maternagem, enquanto os homens

não assumem a paternagem.A constatação desse fato pode ser vis-

ta na circulação dos homens, já que, quando abandonam ou quan-

do são expulsos da casa pelas mulheres, eles contraem novas

uniões e passam a viver com outras mulheres. A dominação mas-

culina se faz presente nesse momento por meio da geração de no-

vos filhos, pois o poder do homem se realiza por meio da procria-

ção. Vários depoimentos de mulheres revelam que a convivência

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com os parceiros passa pela aceitação de ficarem grávidas. Assim

sendo, a pesquisa constatou a presença de muitos filhos da mes-

ma mulher, porém de distintos pais. O caso de uma trabalhado-

ra rural de Rincão é paradigmático: com quatro filhos de pais di-

ferentes, ela sustentava todos sem o auxílio destes, justificando a

não-exigência do pagamento de pensão como uma forma de evi-

tar a presença dos homens em sua casa e também do controle

exercido por eles sobre sua vida. Seu salário é insuficiente para a

sobrevivência de todas as crianças, por isso recebe o auxílio de pa-

rentes e vizinhos, além de deixar as crianças na creche municipal

durante todo o dia. Vale a pena ainda destacar que a solidarieda-

de, na maioria das vezes, advém de outras mulheres.

Quanto à figura do homem, nos desenhos das crianças, ora

ela aparece como o pai que foi embora, ora diminuída ou do mes-

mo tamanho que a dos demais membros. Esses dois últimos as-

pectos também ocorrem em relação às mães. Levando-se em con-

ta uma análise que se opõe às dicotomias, evita-se o apego à

vitimização das mulheres e à discriminação dos homens. Obje-

tiva-se à compreensão do gênero enquanto categoria de análise

e categoria histórica, portanto, à análise das relações de gênero

entre homens e mulheres pobres, na sua grande maioria não-

branca e constituída de trabalhadores rurais, provenientes de ou-

tras regiões do país. Nesse sentido, esses homens e essas mulhe-

res são portadores de valores e ideologia de gênero, ancorados

nas relações patriarcais. Duas questões podem ser levantadas: a

figura masculina do provedor. Em virtude das dificuldades eco-

nômicas, do desemprego, dos salários baixos, os homens não

conseguem prover suas famílias. A participação no orçamento fa-

miliar de proventos advindos da mulher ou até mesmo dos fi-

lhos retira-lhes parcela de poder que, em outra condição social,

pelo menos teoricamente, eles possuíam (Stolcke, 1986, 1993;

Silva, 1997, 1999). Esse fato conduz a um conjunto de conflitos

nas relações intrafamiliares, quase sempre permeados pela vio-

lência doméstica (de gênero e também geracional). Estas são as

condições para a criação da figura do pai que foi embora.

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Essa mesma situação foi também constatada por Neves em

sua pesquisa com famílias no Morro do Cavalão em Niterói/RJ,

ao revelar que a unidade matrifocal se apresenta como um reor-

denamento de papéis do casal em virtude da impossibilidade de

o marido conseguir reproduzir a família nos níveis culturais de-

finidos pelo grupo (1985, p. 200 e segs.).

A figura do pai que foi embora se situa no contexto do rear-

ranjo das relações de gênero dessas famílias. O homem chefe de

família, o provedor da época do colono já não mais existe. Por

conseguinte, os padrões de masculinidade e virilidade foram pro-

fundamente afetados, de tal forma que a identidade masculina so-

freu profundas fraturas. A virilidade é um atributo sexual, cons-

truída socialmente.

A virilidade é o atributo que confere à identidade sexual mascu-

lina a capacidade de expressão do poder (associada ao exercício

da força,da agressividade,da violência e da dominação sobre ou-

trem), seja contra os rivais sexuais, seja contra as pessoas hos-

tis ao sujeito ou aos que lhe estão chegados e a quem, por sua vi-

rilidade, ele deve garantir proteção e segurança. O parceiro amoroso

de um sujeito viril deve-lhe reconhecimento, gratidão, submissão e

respeito, em troca de serviços (Dejours, 1999, p. 84, grifos nossos).

No entanto, a virilidade possui uma outra face, na medida

em que se transforma num verdadeiro fardo.

O privilégio masculino é também uma cilada e encontra sua

contrapartida na tensão e contensão permanentes [...]. A vi-

rilidade, entendida como capacidade reprodutiva, sexual e so-

cial, mas também como aptidão ao combate e ao exercício da

violência (sobretudo em caso de vingança), é, acima de tudo,

uma carga (Bourdieu, 1999, p. 64).

A única alternativa para a incapacidade de prover a família e

manter os padrões de virilidade, assentados na submissão e res-

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peito, é a saída da casa. Essa partida dá início a um verdadeiro

processo de circulação de homens, pois as relações são, na sua

maioria, muito efêmeras. Para não assumirem publicamente seu

fracasso, eles passam a circular entre outros lares. Repete-se aqui

a mesma situação encontrada por Scott (1990) – as uniões visi-

tantes – e também por Fonseca (2000) e Neves (1985).

A circulação de crianças é outra manifestação desse quadro

social, que está ligado à prevalência do sistema de apadrinhamen-

to, característico da área rural. Os padrinhos são responsáveis pe-

la educação e socialização dos afilhados. O compadrio é pautado

por relações de solidariedade e coesão dos grupos sociais de vizi-

nhança e parentesco. As crianças circulam quando as condições

de sobrevivência põem em risco a vida delas.

As relações de poder são porosas. Dessa sorte a dominação

masculina, ainda que fragmentada, não desapareceu. A matrifo-

calidade não representa a dominação feminina em relação aos ho-

mens. Não houve o processo de inversão de relações de domina-

ção e sim o processo de empoderamento das mulheres, presente

nas relações afetivas com os filhos e também nas decisões econô-

micas e financeiras no interior das unidades domésticas.

As relações patriarcais não devem ser explicadas tão-somen-

te a partir dos níveis particulares e de parentesco. A frase, ruim

com ele, pior sem ele, pronunciada por muitas mulheres que su-

portam os maus-tratos e a violência dos maridos, revela a exis-

tência dos padrões convencionais e universais que estruturam a

sociedade. Esse fato pode explicar as uniões efêmeras e a busca

constante de novos companheiros por muitas mulheres, após o

término de uma relação conjugal. Essas reflexões nos levam a acre-

ditar que as noções de matrifocalidade, chefias femininas, viri-

lidade, precisam ser entendidas vis-à-vis as relações patriarcais

existentes no conjunto da sociedade e nas suas manifestações par-

ticulares. No caso estudado, mesmo que as mulheres não arquem

sozinhas com a reprodução social dos filhos, é em torno delas, en-

quanto mães, avós, tias, madrinhas, que os novos arranjos são te-

cidos, na grande maioria dos casos. Quanto ao lugar das crianças

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nesse contexto, há muitos desenhos que retratam suas ausências

ou até a (des)identificação.

Numa realidade em que a reprodução social – enquanto re-

produção biológica, material e social – é marcada pela complexi-

dade, a criança torna-se a materialização do paradoxo, ou, sob ou-

tro aspecto, a materialização da “vontade divina”, que se faz alheia

a uma vontade deliberada. De todo modo ela é fruto e responsa-

bilidade, em última instância, daquela que a gerou: a mãe.

Fonseca (2000) nos sugere de que forma algumas mulheres

percebem essa “responsabilidade”:

[...] nos grupos populares atuais, certas mães concordam em

ter seus filhos criados por outros porque, para elas, não é es-

ta a questão mais importante [...]. Sua responsabilidade é ga-

rantir bons cuidados à criança, mas outros podem propiciar

tais cuidados tão bem quanto ela (p. 40).

Definitivamente essa afirmação não apareceu no depoimen-

to de nenhuma das mulheres entre as quais questionamos a pos-

sibilidade de “darem” seus filhos a outros em função de impossi-

bilidades materiais de cuidarem elas próprias de seus filhos. A

maternidade enquanto pilar da construção da identidade da mu-

lher faz com que recaia sobre ela o peso de uma responsabilida-

de que assume um sentido moral. E nem sempre a transferência

dessa responsabilidade é aceita pela comunidade moral.

Entretanto, se o fato sugerido por essa autora não é assumi-

do na linguagem – ou, quando é, não o é para toda a comunida-

de –, a observação etnográfica e os diálogos com os vizinhos re-

velam-nos casos recorrentes em que a mulher pensou, durante

toda a gravidez, em dar seu filho para outra família e não o fez

em função do peso da moral que envolve a maternidade ou mes-

mo da incorporação da moral da maternidade, em outros casos

em que ela realmente o fez.

Consolidada ou não a circulação de crianças, o que se ressal-

ta é a presença do sentimento de recusa que o nascimento de uma

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criança – ou de mais uma criança – faz surgir. Se isso pôde ser

percebido através do trabalho etnográfico, foi, sobremaneira, no

desenho das crianças e na reação de algumas delas ao perceber

nosso interesse sobre aquilo que elas podem representar que esse

fato se tornou inegável. Em seus desenhos vimos auto-represen-

tações diminutas, desconexas, fragmentadas, algumas sem boca,

enquanto outros desenhos simplesmente não continham a repre-

sentação de seu criador. Em suas reações durante a atividade, per-

cebemos perplexidade ao redor da causa de nosso interesse sobre

elas e uma subseqüente dificuldade em deixar que fossemos em-

bora, como se houvessem descoberto uma capacidade intrínseca,

prazerosa e antes oculta: a capacidade de atribuir significado. A

maioria das crianças tem pouco tempo de contato com as mães

ou pais. Muitas delas ficam o dia todo nas creches ou escolas, de

onde são retiradas pelas mães ou avós no final da tarde. Por outro

lado, as mães, após o trabalho fora de casa, acumulam a dupla jor-

nada de trabalho, pois, ao chegarem em casa, necessitam desem-

penhar as tarefas domésticas – lavar roupa, cozinhar e limpar –,

não dispondo de tempo para as relações afetivas com as crianças.

Essas mulheres trabalham em geral durante seis dias por semana,

dispondo de apenas um dia de folga, utilizado para a limpeza da

casa e outros afazeres que ficaram pendentes durante a semana.

Tal situação se agrava se elas não obtiverem o apoio de outras

mulheres – filhas, mães, irmãs etc. – para o desempenho de todas

essas atividades. Portanto, o ato de cuidar da criança é pouco pra-

ticado pelas mães em virtude da imposição das relações de traba-

lho pautadas por salários baixos, superexploração e grande ofer-

ta de trabalhadores que acaba contribuindo para as ameaças de

demissão em caso de faltas, cujas conseqüências agravariam a si-

tuação de penúria da família como um todo.

Por conseguinte, o afeto, implícito no ato de cuidar, é rele-

gado, nesses casos, a outras mulheres, parentes ou professoras das

creches e escolas, as quais nem sempre desempenham esse papel.

A carência afetiva presente em algumas crianças11 foi uma das

observações captada durante a realização das oficinas para a

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1 1 9

11 Esse dado não se cons-titui em apanágio dessascrianças,pois é algo cons-tatado em outras famíliasde outras classes sociais.Ademais, o ato de cuidar,segundo os atributos so-ciais engendrados (de gê-nero), cabe, em geral, àsmulheres, e do qual oshomens se declinam. Apaternagem, segundo seobservou, não ocorrenessas famílias. Outros-sim, a mãe é uma figuraque aparece na totalidadedos desenhos, algo quenão ocorre com todos ospais.

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obtenção dos desenhos, algo que também está registrado nas lei-

turas destes pelas crianças.

DESENHANDO A FAMÍLIA TAL COMO ELA É

A análise dos desenhos infantis exigiu a incorporação de outras re-

flexões, a fim de se compreender a ontologia dos socci, entendidos

enquanto classe, gênero, raça/etnia e geração. Dessa sorte, a teoria

da alienação de Marx (1978) e as reflexões de Elias (1990), acres-

cidas àquelas de Silveira (1989), fornecerão os elementos necessá-

rios à compreensão da realidade estudada vis-à-vis o ser social.

Segundo Marx, a sociedade não é uma abstração diante do

indivíduo. O indivíduo é o ser social.

A exteriorização da sua vida [...] é pois uma exteriorização e

confirmação da vida social. A vida individual e a vida genéri-

ca do homem não são distintas, por mais que, necessariamen-

te, o modo de existência da vida individual seja um modo mais

particular ou mais geral da vida genérica [...]. Como consciên-

cia genérica o homem confirma sua vida social real e não faz

mais que repetir no pensar seu modo de existência efetivo, as-

sim como, inversamente, o ser genérico se confirma na cons-

ciência genérica e é para si, na sua generalidade, enquanto ser

pensante (Marx, 1978, p. 10).

Os sentidos – audição, tato, olfato, visão, gosto –, assim como

a subjetividade, não são postos naturalmente para o homem. Por

outro lado, a natureza é o corpo inorgânico do homem, segundo

Marx. Ao retomar as reflexões marxianas sobre a alienação e feti-

chismo, Silveira (1989) mostra que o processo de constituição da

individualidade é um processo histórico que tem início com a cu-

mulação originária, quando se observa a separação entre o homem

e a natureza. Portanto há uma relação entre o desenvolvimento da

história e o desenvolvimento da individualidade.

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De um modo geral, a acumulação originária implica na sepa-

ração do homem (do trabalhador) de seu corpo inorgânico –

a natureza; as perdas do objeto, a alienação, a desobjetiva-

ção: a capacidade de trabalho como “pura subjetivação sem

objeto” (p. 58-9).

Essa separação corresponde ao surgimento do processo de

isolamento social do indivíduo, na medida em que os vínculos so-

ciais prévios se rompem, tanto os vínculos com a natureza como

os de dependência social característicos das formas de produção

que precederam à constituição do capitalismo. É nesse sentido que

o indivíduo surge enquanto força de trabalho, dimensão funda-

mental de sua individualidade.

No que tange às reflexões sobre o fetichismo, esse autor re-

vela que, para Marx, a submissão ao domínio da mercadoria não

é apenas externamente, mas atinge as práticas dos indivíduos e

também sua estruturação psíquica. Para ele, os efeitos desse mol-

damento, das determinações da forma mercadoria, na carne e na

psique dos indivíduos resultam numa dialética conflitiva entre

uma dimensão internalizada do sujeitamento e outra advinda da

subversão desse assujeitamento.

Assujeitamento e amoldamento não são vistos linearmente,

porém enquanto processos conflitivos entre a dominação das re-

lações capitalistas e as determinações, advindas dos próprios su-

jeitos em subverter tais determinações que foram recalcadas, re-

primidas (p. 75).

As mudanças das relações entre as estruturas das relações hu-

manas e a correspondente mudança na estrutura do psiquismo,

a partir de um outro ponto de observação, que não a dialética

marxiana, foram também objeto da análise de Elias (1990), no vo-

lume 2 de O processo civilizatório. Para esse autor, há um constan-

te aprofundamento da imposição social das autocoações, respon-

sáveis pelo chamado processo civilizatório. Para ele, cada vez é

maior o número de pessoas que têm de sintonizar o comporta-

mento pelo das outras. Esse ajustamento é consciente e, ao mes-

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mo tempo, se consolida no indivíduo um sistema de autocontro-

le automático e cego, ou seja, inconsciente (p. 189-90). Esses dois

paradigmas oferecem elementos importantes à análise da forma-

ção da psicogênese e sua relação com a sociogênese.

Elias também associa a violência ao surgimento desse pro-

cesso de moldamento, que, no decorrer do tempo, se transforma

em hábito.12

Da violência armazenada nos bastidores do quotidiano pro-

vém uma pressão constante e regular que se exerce sobre a vi-

da do indivíduo, o qual mal a sente, porque já se habituou a

ela, porque o comportamento e a plasmação das pulsões fo-

ram, desde a infância, ajustados a essa organização da socie-

dade [...]. A verdadeira coação é aquela que o indivíduo exer-

ce sobre si próprio, com base no conhecimento que tem das

conseqüências das suas ações sobre toda uma série de redes de

ações, ou com base em atitudes análogas que observou nos

adultos que modelaram seu aparelhamento psíquico, quando

criança (p. 194).

Entretanto, o amoldamento do comportamento não resulta

apenas em equilíbrio funcional, podendo gerar tensões, desequi-

líbrios constantes. Tais perturbações podem transformar-se, por

sua vez, em fantasias, devaneios e sonhos. Para Elias, parte das ten-

sões e paixões que outrora eram diretamente resolvidas na luta

corpo a corpo é agora dominada dentro de si próprio. Essas re-

flexões não coincidem com a visão psicanalítica, a qual tende,

muitas vezes, a extrair da totalidade da estrutura psíquica um “in-

consciente”, “um id” concebido como a-histórico, abstraído das

condições reais de existência (p. 229).

O que é determinante numa pessoa [...] não é só um “id” nem

só um “ego” ou um “superego”, mas sempre e fundamental-

mente a relação entre esses estratos funcionais de autocoman-

do psíquico, os quais em parte se degladiam e em parte coo-

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12 Para Marx, a violênciafaz parte do processo deacumulação originária,ou seja, no momento donascimento do capitalis-mo. Ver, a respeito, o ca-pítulo sobre a “Acumula-ção primitiva”, no livro Ide O capital.

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peram uns com os outros. Mas essas relações dentro de cada

pessoa [...] transformam-se, no decurso do processo civiliza-

cional, de acordo com a específica transformação das relações

entres as pessoas, isto é, das relações sociais. Poderíamos dizer

que, no decurso deste processo, a consciência se torna menos

permeável às pulsões e as pulsões menos permeáveis à consciên-

cia (p. 230).

A ideologia, ou a superestrutura, não é capaz de explicar to-

das as mudanças. Parafraseando Elias, toda investigação que só

toma em consideração a consciência dos homens, a sua razão ou

as suas idéias, e não leva em conta a estrutura das pulsões, as pai-

xões humanas, é limitada, pois muitos aspectos à compreensão

dos homens não serão vistos (p. 229). Portanto, as relações entre

a infra-estrutura e a superestrutura não são lineares. As mudan-

ças que ocorrem nesta última não são meros reflexos da primei-

ra.A ação dos sujeitos historicamente determinados define a com-

plexidade dessas relações e, pour cause, as mudanças operadas

caracterizam as inúmeras mediações existentes e a produção da

história enquanto processo.

Acreditamos que, nos limites deste texto, essas idéias forne-

çam os subsídios necessários à análise das representações das

crianças, por meio de desenhos, sobre as respectivas famílias de

trabalhadores rurais, sob a ótica do ser social. As transformações

econômicas e a vinda para as cidades foram responsáveis por

grandes mudanças na organização familiar, cujos reflexos se

estenderam ao moldamento dos comportamentos e também à es-

truturação psíquica de seus membros. Esse processo, caracteriza-

do por aceitação–recusa – manifesto no alcoolismo dos homens,

na não-acepção da paternagem, na circulação masculina entre os

diferentes lares, na matrifocalidade –, atinge também as pulsões

psíquicas de adultos e crianças.

Por conseguinte, a abordagem psíquico-pedagógica que visa

tão-somente aos aspectos do desenvolvimento cognitivo da crian-

ça, descontextualizado de seu ambiente social, não faz parte de

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nosso escopo teórico, assim como a abordagem universalizante da

teoria piagetiana. Essa teoria, segundo alguns críticos, teria trans-

formado o processo de construção das estruturas cognitivas,

como ele ocorre no Ocidente, num paradigma para o desen-

volvimento psíquico de todas as crianças (Freitag, 1984, p. 75).

Privilegiamos as diferenças e não a comparação a partir da idade.

Contudo, tomamos cuidado para não cair nas armadilhas do re-

lativismo cultural, segundo o qual cada cultura possui seus esque-

mas cognitivos específicos, posição esta que pode conduzir ao et-

nocentrismo.

As diferenças culturais e socioeconômicas são as que exercem

maior importância no processo cognitivo da criança. Segundo

Freitag (1984, p. 77), na pesquisa intercultural não há menção à

produção material de bens, estrutura de poder, à divisão do tra-

balho, à estrutura social de classes, estrutura familiar, seus dife-

rentes tipos e diferentes processos de socialização.Vale a pena ain-

da lembrar que há inúmeras diferenças culturais em uma mesma

sociedade. São essas diferenças de classe social, de gênero e ra-

ça/etnia que explicam os processos da psicogênese e não somen-

te as manifestações culturais.

A combinação das diversas técnicas de pesquisa descritas

acima foi um instrumento importante à análise dos desenhos no

contexto da realidade social das crianças vis-à-vis a leitura dos

conteúdos manifesto e latente (Leite, 1993). O conteúdo mani-

festo ou expresso se baseia na leitura do desenho feito pela crian-

ça. O conteúdo latente exige o conhecimento do contexto social

no qual a criança se acha inserida. A realidade social possui mui-

tas facetas. Algumas são visíveis, outras são invisíveis, inaudí-

veis, fragmentadas, silenciadas. No conjunto, os desenhos apon-

tam para a produção de um processo de conservação–dissolução,

em que alguns traços dos modelos anteriores permaneceram,

enquanto outros desapareceram. A realidade estudada é revela-

dora da presença do patriarcado, como organização social pre-

dominante, muito embora o homem não seja, na maioria dos

casos, o chefe da família, como já foi revelado acima. As relações

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patriarcais se manifestam por meio das figuras do pai que foi em-

bora e do provedor defeituoso – e não mais da figura do pai pa-

trão –, as quais, last but not least, definem as relações patriarcais

como padrão existente.

Nosso esforço doravante será o de interpretar as representa-

ções das famílias que aparecem nos desenhos e não procedermos

à análise clínica por meio de testes dos desenhos (Cox, 2000). Pa-

ra o desempenho dessa tarefa, optamos pela inclusão de apenas

duas referências específicas sobre desenhos infantis.13 A relação

entre sociogênese e psicogênese será aprofundada por meio da

incorporação das reflexões de Di Leo (1991) e Derdyk (1989), pro-

fissionais das áreas das disciplinas comportamentais, que se de-

bruçaram sobre a interpretação dos desenhos das crianças, pri-

vilegiando seu universo social. Além dessas referências, serão

acrescentadas aquelas cuja preocupação sociológica se voltou pa-

ra a análise dos relatos das crianças, levando-se em conta a im-

portância do universo infantil para a compreensão da realidade

social, a partir das inúmeras mediações e significados existentes

entre a realidade e a imagem que se tem dela.

Di Leo (1991) realizou uma análise clínica de 91 desenhos de

crianças, muitas das quais com problemas psíquicos. Suas contri-

buições são importantes na medida em que, além do desenho, são

incorporados os depoimentos das crianças. Assim, sua interpre-

tação leva em conta a inserção da criança em seu universo social

e familiar. No capítulo referente aos desenhos da família, o autor

chama a atenção para os seguintes itens, os quais fornecerão pis-

tas mais seguras para o caso analisado na presente pesquisa:

• A figura do pai ausente, agressivo, presente no desenho, mas au-

sente nas relações familiares. Muitos desenhos de crianças de

trabalhadores rurais refletem a ausência do pai – o pai que foi

embora –, ou, ainda, este é desenhado do mesmo tamanho dos

demais membros da família.

• Os botões na roupa refletem o poder e a rigidez masculinos. É ne-

cessário lembrar que os desenhos coligidos abarcam crianças de 3

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13 Segundo os propósi-tos deste artigo, a bi-bliografia utilizada paraa interpretação dos de-senhos, aludida maisadiante, não contempla aanálise da psicologia dodesenvolvimento infan-til, sobretudo aquelasvoltadas para os testesclínicos que avaliam a in-teligência e sim aquelasque privilegiam o dese-nho como representaçãosocial, como manifesta-ção do universo materiale simbólico das crianças.

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a 12 anos. Acima de 11 anos, a criança entra na fase da adolescên-

cia, portanto, é necessário levar esse aspecto em consideração.

• A figura desenhada geometricamente, segundo esse autor, reve-

la a ausência de emoção. Trata-se de uma atitude que é racio-

nalmente controlada, sem emoção.

• A ausência de braços revela a incapacidade de ação; as mãos

atrás do corpo sugerem falta de confiança.

• Os tamanhos pequenos sugerem auto-estima baixa; pessoas

desenhadas em espaços cercados, como se fossem caixotes, re-

velam ausência de comunicação entre os membros da família.

• A presença de árvores – as três principais partes da árvore, su-

postamente, se referem aos três maiores campos da personali-

dade: o tronco – a vida emocional; as raízes – a vida instintiva;

a copa – a vida intelectual e social e representa o futuro. Tron-

co com buracos sugere a presença de traumas. O tronco amplo

pode sugerir reação emocional à má condição existente.

• Desenhos de dentes podem sugerir agressão. No entanto, o au-

tor adverte para as armadilhas na interpretação dos desenhos

infantis. É necessário sempre verificar os elementos universais

de interpretação e também a particularidade de cada criança.

Outra armadilha mencionada se reporta ao desmembramento

dos corpos. À primeira vista sugere desagregação, porém é ne-

cessário conhecer a realidade social da criança para chegar a es-

sa afirmação. Em geral, essa separação dos membros ocorre nas

crianças pequenas. Num dos desenhos coligidos pela nossa

pesquisa, há o caso de um menino (J), em que se vê o desmem-

bramento. Ele próprio aparece sem boca, ouvidos, nariz e olhos.

Trata-se de uma criança que estava vivendo com seus padrinhos,

em razão de problemas com seus pais. Nesse caso, o desmem-

bramento é fiel à realidade vigente.

• O autor adverte também para os cuidados em relação à inter-

pretação dos símbolos:

Um símbolo pode ser universal, mas o seu significado é indi-

vidual. Os desenhos devem trazer novos insights; devem con-

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firmar o que é sabido. Tomados fora do contexto, eles podem

enganar (p. 195).

• A casa representa aconchego, afeto, segurança. Os desenhos são

representações e não reproduções. A casa simboliza o lugar on-

de são buscados afeto e segurança, necessidades básicas que en-

contram prenchimento na vida familiar. Animais são seguida-

mente adicionados como parte da família. Árvores, flores e o sol

aparecem como expressão da crescente necessidade por luz, na-

tureza e um mundo além dos confins do lar (p. 52). Ausência

da casa é muito recorrente nos desenhos coligidos.

Derdyk (1989) traz importantes contribuições sobre o dese-

nho enquanto representação social, das quais foram selecionados

os seguintes pontos:

• A criança enquanto desenha, canta, conta história, teatraliza,

imagina ou até silencia. O ato de desenhar impulsiona outras

manifestações, que acontecem juntas, numa unidade indissolú-

vel, possibilitando uma grande caminhada pelo quintal do ima-

ginário (p. 19).

• O desenho manifesta o desejo da representação, mas também o

desenho, antes de mais nada, é medo, é opressão, é alegria, é cu-

riosidade, é afirmação, é negação. Ao desenhar, a criança passa

por um intenso processo vivencial e existencial (p. 51).

• O desenho é uma atividade do imaginário. A criança vive in-

serida na paisagem cultural do adulto. Seria necessária uma

reflexão profunda sobre como essa paisagem interage e se re-

laciona com o mundo da criança, eternamente em transição.

(p. 53).

• O conteúdo manifesto são as imagens presentes no papel e o la-

tente trata das mensagens subliminares, escondidas ali no papel

(p. 54). O mundo para as crianças está em todos os lugares si-

multaneamente.

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O espaço emocional traz para bem perto ou leva para bem

longe os objetos dotados de afeto, independente de sua real

posição física. O espaço emocional dita as hierarquias afetivas

através da dimensão das formas. Por exemplo, o clássico “de-

senho de família”, em que um dos membros é muito maior ou

muito menor quando comparado aos demais. É a expressão do

conteúdo simbólico da criança manifestado pela maneira de re-

presentar, figurar e nos apresentar os membros de sua família

(p. 78-9, grifos nossos).

• O desenho é uma verdadeira “fábrica de imagens”.

(O desenho), “fábrica de imagens”, conjuga elementos oriun-

dos do domínio da observação sensível do real e da capacida-

de de imaginar e projetar, vontade de significar. O desenho

configura um campo minado de possibilidades, confrontan-

do o real, o percebido e o imaginário. A observação, a memó-

ria e a imaginação são personagens que flagram esta zona de

incerteza: o território entre o visível e o invisível (Francastell,

1975, p. 25, apud Derdyk, p. 115).

• É importante salientar, segundo a visão dessa autora, que o dese-

nho lida com os elementos do espaço e também dos tempos –

passado, presente e futuro. Há uma simbiose entre os tempos,

entre a observação (presente), a memória (passado) e a imagi-

nação (futuro). No ato de desenhar, estão várias manifestações

mentais, como imaginar, lembrar, sonhar, observar, associar, re-

lacionar, simbolizar, reapresentar (p. 121).

Na coletânea recentemente publicada, Faria, Demartini, Pra-

do (2002), os autores chamam a atenção para a ausência das crian-

ças nas investigações dos cientistas sociais, talvez com exceção da

antropologia, e se propõem ao enfrentamento dos inúmeros de-

safios que essa tarefa apresenta, em virtude de que as vozes das

crianças não podem ser interpretadas da mesma maneira que a

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dos adultos, dificuldades estas acrescidas ao fato de que o mate-

rial coletado é feito pelos adultos e interpretado por eles.

A fim de facilitar a leitura dos desenhos, que se encontram no

final deste artigo, optamos por analisá-los em conjuntos, por meio

de uma amostra, seguindo a sugestão de Gusmão (1996, p. 181 e

segs.), ressaltando que os desenhos são verdadeiras “fábricas de

imagens”, nas quais se misturam as representações do momento

presente, passado e das expectativas futuras. Os desenhos revelam

e escondem. Assim sendo, o conhecimento da realidade concreta

de seus produtores é fundamental para a interpretação analítica. As

leituras dos desenhos feitas pelas crianças, as análises do conteúdo

manifesto serão os pilares sobre os quais se assentará a análise do

conteúdo latente, cujos contornos teóricos foram definidos acima.

Conjunto 1 – Nº- de desenhos: 6

Características: famílias com a presença do pai e da mãe.

• Em alguns desenhos aparece a casa, em outros, não.

• Em geral, o pai não possui um destaque nos desenhos, ao con-

trário da mãe.

• Os membros da família não necessariamente vivem na mesma

casa. Esse fato demonstra que a percepção de família não se res-

tringe à casa.

A leitura do Desenho 1 feita pela criança (menina de 9 anos)

revela que a mãe – colhedora de laranja – tem um lugar desta-

cado, ao contrário do pai – cortador de cana –, que é represen-

tado do mesmo tamanho dos demais membros. Há também a pre-

sença de um irmão que mora na casa da vizinha, outra que vive

na Cutrale (fazenda), um irmão que mora num quartinho dos

fundos e um irmão já falecido, aos 21 anos de idade.

Nesse desenho, não há a casa, embora a união das nuvens pe-

lo sol represente a união dos pais. As pessoas aparecem próximas e

sorridentes. O pai trabalha na usina e a mãe é colhedora de laran-

ja. Segundo depoimentos de vizinhos, a autora do desenho ficou

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“escondida” até a idade de 4 anos, cujos motivos não ficaram escla-

recidos, havendo muito silêncio a respeito. Durante a oficina, a

criança se mostrou muito tímida.A presença de duas irmãs que cir-

culam, portanto, que se acham ausentes, e do irmão morto aos 21

anos, desenhado no final após o que vive no quartinho, são traços

reveladores das ausências, do conteúdo latente, dos aspectos subli-

minares. Segundo as reflexões anteriores, pode-se afirmar que, na

realidade, se trata de uma família cujos membros estão divididos,

separados, porém unidos na representação, no desejo da criança.

No Desenho 2 feita por uma menina de 8 anos de idade, as

pessoas aparecem no interior da casa. O tamanho da autora do

desenho é maior do que os dos demais, inclusive dos pais. As fi-

guras são retilíneas e aparecem desnudas, embora de mãos dadas.

O pai trabalha no corte da cana e a mãe na colheita da laranja. As

presenças da chuva, das nuvens e do sol, cujos olhos estão aper-

tados entre as nuvens, parecem sugerir a necessidade de luz sobre

a casa.As hierarquias afetivas, traduzidas nas figuras pequenas dos

pais, são indicativas de outros valores, que não aqueles nos quais

o pai é representado de tamanho maior, seguido do da mãe. Nes-

se caso, a mãe é desenhada em primeiro lugar, e o tamanho da fi-

gura do pai é ligeiramente menor do que a dela.

O Desenho 3 é de um menino de 10 anos de idade. O pai é

motorista de caminhão e transporta suco de laranja; a mãe tra-

balha na usina. Moram na casa seis pessoas. As figuras são quase

do mesmo tamanho. A do pai aparece em primeiro lugar. Os

botões da roupa revelam o poder masculino e a rigidez, segundo

as reflexões acima. Alguns membros da família estão ausentes.

Somente o pai tem as mãos. A figura da mãe é singela. A ausên-

cia de braços e mãos pode revelar falta de autonomia e dificulda-

des de ação e falta de apoio familiar. O nome do avô, morto há

três meses, é mencionado. Por outro lado, foi acrescentada a figu-

ra do amigo acima na folha. A casa parece ser grande, mas as pes-

soas não estão no seu interior.

O Desenho 4 é de uma menina de 7 anos de idade, cujos pais

trabalham na colheita da laranja. Aqui também a ausência de bra-

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ços é evidenciada. O que chama a atenção é a figura da mãe ra-

biscada, além de botões nas roupas da autora do desenho e de

uma irmã que fica na creche. A leitura feita pela criança revela

também que a reprodução familiar é em parte assumida pelos or-

ganismos municipais, por meio de creches e projetos para as

crianças maiores.

Em se tratando de uma atividade temporária, a colheita da

laranja emprega as pessoas durante apenas seis meses ao ano. As-

sim sendo, a reprodução física e social dessas famílias é marcada

pela instabilidade financeira e fica na dependência das creches

municipais. A ausência da casa na maioria dos desenhos sugere

que esse espaço não possui para essas crianças o mesmo valor sim-

bólico de crianças de outras classes sociais. A presença da casa va-

zia com as pessoas do lado de fora é um dado que pode ser assim

interpretado: em geral, as casas são pequenas tendo em vista o

grande número de pessoas que nelas vivem. Daí decorrem as con-

siderações acima sobre o espaço da rua ser tomado como uma es-

pécie de extensão da casa. Ademais, o grande número de pessoas

impede a individualização dos espaços da casa, tal como foi mos-

trado. Desse modo, os quadros sociais representados pela casa

possuem outros significados no imaginário dessas crianças, não

necessariamente relacionados à família, sem contar que elas pas-

sam a metade do tempo da vida delas nas creches.

Para fins de comparação, optamos por agregar a esse conjun-

to o Desenho 5 de uma menina de 6 anos do Assentamento Hor-

to Guarani, no município de Pradópolis, próximo à cidade de Rin-

cão. Todas as pessoas estão no interior da casa, que apresenta uma

divisão sexual do espaço em feminino e masculino. A árvore apa-

rece ao lado da casa, além das flores. Sobre a casa, o vôo de uma

borboleta em direção às nuvens, onde está gravado seu nome, se-

paradas pelo sol sugere a percepção da natureza que caracteriza o

espaço rural. As figuras são quase do mesmo tamanho, desnudas

e retilíneas.

Essa mesma menina produziu o Desenho 6, que se reporta à

oca do avô, índio, que vive no mesmo lote da família. As presen-

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ças de répteis – lagarto, cobra –, do gato (Romão), se misturam

àquela do avô dormindo no chão, além das árvores e da presen-

ça da lâmpada colocada pelo pai. Esse desenho é bastante fiel à

realidade vivenciada pela criança.

As reflexões da pedagoga, Márcia Gobbi (2002), ao conjuga-

rem desenho e oralidade como forma privilegiada de expressão

da criança, fornecem subsídios importantes para essas distintas

interpretações. Considerando o mesmo universo social, foram ve-

rificadas várias formas de percepção e representação das famílias

pelas crianças que vivem com os pais. As distintas temporalida-

des – presente, passado, futuro – se mesclam aos espaços sociais,

valores, símbolos, e à cultura. Para essa autora, os desenhos não

são reproduções fiéis da realidade vivida, como se estivessem con-

geladas no tempo e no espaço. Os desenhos contêm imaginação

e sonhos. São frágeis as análises da psicologia do desenvolvimen-

to infantil que conquistaram amplo espaço entre as práticas dos

educadores e educadoras, sendo responsáveis pela construção de

olhares voltados para um trabalho que procura estabelecer as eta-

pas e fases do psiquismo infantil. Estas se tornam prisioneiras de

um olhar já formatado, enquadrado em modelos em que as pro-

duções devam ser encaixadas (p. 74-5).

A incorporação dos desenhos da menina assentada é um in-

dicativo das diferenças espaciais, do mundo vivido, além da di-

versidade cultural por meio da convivência com o avô que prefe-

riu viver na oca, separada da casa da filha. Ao ser solicitada que

fizesse o desenho de sua família, a criança foi fiel a sua realidade

vivida. Portanto, a cultura é uma representação dos diferentes es-

paços e tempos e diz de si, mas diz de seu grupo e da sociedade

em que está e vive (Gusmão, 2003, p. 24).

Conjunto 2 – Nº- de desenhos: 5

Características: famílias com a presença de membros consangüí-

neos de distintas gerações.

• A casa ora aparece, ora não.

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• Há também a ausência de algumas pessoas nos desenhos.

No Desenho 7 de uma menina de 8 anos, cujo pai é varredor

de rua e a mãe é colhedora de laranja, aparecem 11 figuras, todas

do mesmo tamanho, sem roupas, com os mesmos traços retilí-

neos, pintadas da mesma cor, indistintas. A casa é extremamente

pequena para abrigar o número de pessoas. A presença da árvo-

re com frutos sugere que a família também possa dar muitos fru-

tos. Não há hierarquias. A mãe aparece antes do pai. Há primos,

primas, tios e avó. O cotidiano, o momento presente domina to-

da a cena. Não há projeções. O passado, traduzido na presença da

avó, parece indicar que ele é igual ao presente do adulto e tam-

bém ao futuro das crianças no contexto de um vivido sem mu-

danças. O pequeno espaço na parte inferior da folha utilizado pa-

ra o desenho sugere o espaço simbólico das relações de dominação

dessa família no universo social ao qual pertencem. O espaço

emocional é indiferenciado, todos se situam no mesmo plano da

folha de papel, que coincide com o espaço social.

O Desenho 8 é de uma menina de 8 anos. O pai trabalha no

corte de cana e a mãe é empregada doméstica. É filha única. Há

um primo de 12 anos que mora com a família, portanto, trata-

se de uma criança que circula. A figura do pai é menor do que

a da mãe. O primo não é desenhado. Há a figura de uma bone-

ca e um carrinho de bebê. Ao lado da casa, há uma flor e uma

árvore com grande copa e frutos. No alto da folha, muitos cora-

ções coloridos e o sol, fonte de luz e calor. Ao contrário do de-

senho anterior, a casa é grande, tendo em vista o número e o ta-

manho das pessoas. Os corações coloridos no alto podem ser

interpretados como sinais de amor, afeto, embora na esfera do

desejo, dos sonhos.

No Desenho 9 de um menino de 8 anos, cujo pai é cortador

de cana e a mãe é empregada doméstica, tanto a árvore como a

família estão sobre a terra, o que pode revelar o equilíbrio fami-

liar. A avó materna e o tio não residem na casa, embora sejam de-

senhados como membros da família. Todas as pessoas são apre-

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sentadas do mesmo tamanho, algo recorrente em vários casos, o

que indica a ausência de hierarquias e também o lugar “pequeno”

(e em baixo) que o grupo familiar ocupa no universo social. O sol

entre as nuvens sugere que a percepção vai além da situação vivi-

da. Moram, na casa, quatro pessoas.

O Desenho 10 de uma menina de 8 anos de idade retrata a

ausência de muitos membros. A mãe é empregada doméstica. São

registrados apenas o pai (que não reside na casa), a mãe e ela pró-

pria. As demais pessoas – nove residentes na casa – estão ausen-

tes. A avó materna, o tio, o meio-irmão – filho do pai com outra

mulher que reside com ele – não são pintados. No desenho, o pai,

que pega lavagem para os porcos na fazenda, é pintado por últi-

mo, antes dela e da mãe. Além dos traços retilíneos, há indicati-

vos dos órgãos genitais masculinos e femininos nos desenhos.

Além dessas ausências, a casa não aparece, assim como outros ele-

mentos da natureza. As três figuras estão separadas entre si. A ex-

periência vivida do mundo real permite associar significados que

poderiam realizar-se. A ausência desses traços sugere a ausência

de projetos, de expectativas, de transformações. Valeria a pergun-

ta: Onde estão os sonhos dessa criança?

No Desenho 11 da menina de 8 anos, cujo pai trabalha no

corte de cana e a mãe é empregada doméstica, embora as figuras

sejam muito pequenas e também situadas na parte inferior da fo-

lha de papel, elas são pintadas com detalhes: os avós com benga-

las e óculos, o irmão com a bola. Os primos, tios e avós não resi-

dem na casa, porém são percebidos como de sua família. A casa

está ausente. O sol, sem detalhes, surge entre nuvens.

Conjunto 3 – Nº- de desenhos: 5

Características: famílias com o pai ausente.

• Em alguns desenhos, ora a casa aparece, ora não.

O Desenho 12 é de uma menina de 11 anos de idade, em cu-

ja casa vivem seis pessoas. Não sabe dizer a profissão do pai e a

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mãe é trabalhadora rural. Segundo o diário de campo, a mãe é al-

coólatra e, atualmente, todos estão morando com a tia, em vir-

tude de terem sido despejados, por falta de pagamento do aluguel.

A figura da mãe é a maior e aparece entre a dos filhos. Embora o

pai viva com sua irmã, ela o desenhou por último. Um sol triste

está entre as nuvens. A casa e a árvore não aparecem. As figuras

estão separadas umas das outras.

Essa família traduz a miserabilidade que caracteriza boa par-

te desses trabalhadores. Salários baixos, trabalho sazonal, ausên-

cia do pai, são fatores que contribuem para aumentar o sofrimen-

to e as tensões vivenciadas. O alcoolismo da mãe é o resultado

dessa situação social.

No Desenho 13 de uma menina de 9 anos de idade, cuja ir-

mã é autora do Desenho 12, o pai está ausente. A figura da mãe

aparece em primeiro lugar e é a maior. A copa da árvore é gran-

de, com muitos frutos, o que pressupõe o desejo de um futuro

promissor. O tronco é pequeno e as raízes não aparecem. Segun-

do as considerações acima, o tronco representa a vida emocio-

nal; as raízes, a vida instintiva e a copa, a vida intelectual, social

e o futuro.

No Desenho 14 de uma menina de 10 anos de idade, cuja mãe

está desempregada e o pai é colhedor de laranja, as figuras estão

desmembradas. A figura da mãe aparece em primeiro lugar, po-

rém foi pintada com lápis preto. No momento da leitura do de-

senho, a criança disse sobre a mãe: “Ela não é mais porque o pa-

drasto bateu em nós”. A figura do pai, que não vive na casa, está

desmembrada, assim como as dos demais, exceto a dela própria.

A figura do padrasto agressor também não foi pintada. A folha de

papel, dividida ao meio, sugere que a topografia da família é pe-

quena, não havendo a necessidade da folha inteira. Por outro la-

do, o espaço emocional das figuras não obedece às hierarquias dos

modelos, baseadas nos papéis desempenhados pelos membros da

família. A figura de um dos irmãos é maior do que a do pai. É in-

teressante notar que a mãe, embora morando na casa, não é mais

considerada mãe, ao contrário do pai que está ausente da casa,

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mas é presente nas relações familiares, segundo a representação.

Portanto, no nível do imaginário, há a inversão dos lugares e dos

papéis sociais.

No Desenho 15 de um menino de 13 anos de idade, a mãe é

a figura mais representativa. Ela é pintada com as roupas da ro-

ça, pois é uma colhedora de laranja. Trata-se de uma família sob

a chefia da mulher. O autor do desenho não aparece. O menino é

responsável pelos cuidados da casa, realiza todas as tarefas domés-

ticas, enquanto a mãe trabalha na roça. As quatro crianças são de

pais diferentes. Nenhum vive na casa, “todos foram embora”. A

mãe é auxiliada pela família da irmã que mora ao lado de sua ca-

sa. A menina vive boa parte do tempo na casa da tia. A casa é mui-

to precária e não aparece no desenho. Embora sejam bem-feitas

as figuras, não há qualquer traço que se refira ao imaginário, à vi-

da futura. As dificuldades do cotidiano são muitas. A sazonalida-

de do trabalho, os salários baixos, inferiores ao mínimo, impõem

a essa família as necessidades de assistência, advinda da prefeitu-

ra local e dos parentes. Inquirida sobre as razões de não solicitar

judicialmente as pensões dos pais de seus filhos, a mãe respondeu

que sua atitude era para evitar a interferência deles em sua vida.

Esse fato é bastante revelador dos conflitos das relações de gêne-

ro, bem como do empoderamento da mulher que, embora no li-

mite da sobrevivência, prefere resguardar sua autonomia, algo

que, segundo ela, poderia ser posta em risco, na medida em que

eles poderiam fazer-lhe exigências em troca do pagamento das

pensões aos respectivos filhos. Os demais irmãos também dese-

nharam a família. Do mesmo modo, os respectivos pais não apa-

recem, ao passo que a figura da mãe é a maior.

O Desenho 16 de uma menina de 5 anos de idade, cujo “pai

foi embora” e é trabalhador rural e a mãe é empregada domésti-

ca, apresenta a leitura feita pela menina, não somente relatando

os nomes das pessoas. Toda folha de papel é ocupada e as posi-

ções topológicas são distintas. Sem contar que há várias divisões.

No canto superior esquerdo, foram pintados o tio, que sustenta a

casa, a mãe, a tia. No canto superior direito, a avó. No canto in-

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ferior direito, num quartinho separado da casa, mora o avô, al-

coólatra, que briga com a avó. Sobre o pai, a autora do desenho

não fez nenhum comentário.

Essa menina fez outro desenho sobre a família e, nele, ela res-

saltou o papel do tio, como provedor da família, cuja figura está

de braços bem abertos. Relatou também que logo o tio iria casar-

se e não mais sustentaria a casa, pois iria embora. A divisão espa-

cial reflete também o espaço emocional, no qual o avô é excluído

do contato familiar, já que mora num quartinho separado, e as

demais pessoas estão no alto, fora da casa, longe do chão, apre-

sentando corpos disformes, cabelos desalinhados, assemelhando-

se a caricaturas. As condições sociais dessa família são refletidas

nas imagens desenhadas pela criança.

Conjunto 4 – Nº- de desenhos: 5

Características: ausência de muitos membros da família.

• A casa ora aparece, ora não.

O Desenho 17 é de um menino de 8 anos de idade, que es-

tá vivendo com a madrinha, portanto, trata-se de um criança

que circula. O pai trabalha no corte de cana e a madrinha colhe

laranja. No momento da pesquisa, uma vizinha afirmou (pois

não foi possível o contato com a família) que ele seria “devolvi-

do” aos pais, pois se tratava de uma criança muito difícil. O con-

teúdo latente revela que a figura de seu rosto não tem olhos, bo-

ca, nariz, ouvidos, ou seja, é um círculo sem traços, indefinido.

O corpo é disforme. O coração vermelho pintado no alto da fo-

lha, com traços fortes, sugere relações emotivas que estão ausen-

tes nas pessoas, talvez existindo como forma de projeção, algo

abstrato. Durante a realização da oficina, essa criança revelou

ser inquieta, com atos que sempre procurava chamar a atenção

sobre si mesmo.

No Desenho 18 de um menino de 8 anos de idade, cujos pais

trabalham na colheita da laranja, todos os cinco membros da fa-

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mília estão ausentes. Segundo as reflexões acima, a existência dos

compartimentos revela ausência de comunicação entre os mem-

bros. A única figura que aparece é a sua, isolada, com a referên-

cia da creche. No canto inferior direito, uma figura invertida apa-

rece rabiscada, sem identificação. Os “caixotes” vazios podem

sugerir, além da ausência de comunicação entre os membros da

família, o isolamento sentido pela criança, no seu próprio “caixo-

te”, cuja imagem é indefinida e incompleta.

O Desenho 19 é de um menino de 8 anos de idade, cujo pai

trabalha no corte da cana e a mãe colhe laranja. No primeiro de-

senho, ele representou o avô na parte inferior da folha. Os traços

pontiagudos e os botões na roupa indicam agressividade. Na ou-

tra folha, aparecem a casa e a árvore; sua figura é do mesmo ta-

manho da casa; seus membros parecem estar atrofiados. A árvo-

re não possui raízes; o tronco é grande e ela é pintada de preto.

Moram na casa seis pessoas, quatro delas ausentes nos desenhos,

inclusive os pais. Contudo, há o sol, nuvens, pássaros, indicativos

da natureza, além da casa.

O Desenho 20 é de um menino de 11 anos, cujos pais traba-

lham na colheita de laranja e em cuja casa moram 17 pessoas. A

figura desenhada, de um diabo com chifres, atravessada por um

podão de cortar cana, reporta-se ao pai; em sua leitura, ele disse

que a figura não é o pai, porém ele quis colocar pai. Aparece tam-

bém o nome de uma mulher, mãe do colega, seu nome e a pala-

vra “paz” em grandes letras. A ausência de quase todos os mem-

bros da família, aliada a essa representação do pai e a palavra “paz”,

é indicativo de ausência afetiva e violência praticada pelo pai. As

imagens revelam e escondem uma realidade marcada por muitos

conflitos. A figura da mãe, além de ausente, é substituída pelo no-

me da do colega, que possivelmente possa significar-lhe algum

sentimento positivo.

A autoria do Desenho 21 é de uma menina de 12 anos, cujo

irmão é o menino do Desenho 19. As crianças são negras. Duran-

te a atividade de teatro, essa criança representou o papel da avó

materna como aquela que oferecia apoio à mãe, quando esta bri-

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gava com o marido. As figuras estão em compartimentos, o pai

está ausente. As figuras estão desnudas e são retilíneas. A falta de

roupa, traço que surge em outros desenhos, sugere a ausência de

cuidados, de carinho. Se compararmos as interpretações dos con-

teúdos latentes dos desenhos 19 e 21, veremos que a violência e a

ausência de proteção lhe são comuns. Essa mesma situação foi en-

contrada por Riva (2006, p. 113), que utilizou a técnica do dese-

nho para constatar as formas de negligência por parte dos pais

em relação aos filhos. Num dos desenhos, todas as figuras foram

pintadas desnudas.

As pessoas estão no interior da casa e esta é cercada por gran-

des muros, num dos quais aparece a copa de uma árvore com fru-

tos. A bicicleta da irmã é desenhada, o que sugere a raridade des-

sa mercadoria entre essas crianças, tendo em vista o baixo poder

aquisitivo da família.

O ato de desenhar é um ato em que a criança escreve seus

pensamentos sobre a realidade vivida ou imaginária. A família

transfere à criança toda herança cultural; muitos elementos cul-

turais são transmitidos às crianças por meio de relações afetivas.

No Desenho 21, os muros altos da casa podem representar as bar-

reiras enfrentadas pelos negros na sociedade em que vivem. O es-

paço da casa parece configurar o isolamento, o cerceamento das

pessoas que vivem nela em relação ao mundo exterior.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Parafraseando a professora Miriam Moreira Leite (1993), que

analisou fotografias de famílias, poderíamos levantar a questão:

Existiria uma leitura desses desenhos capaz de substituir ou equi-

valer à de documentos escritos ou depoimentos verbais? Diante

das alternativas, ainda nos baseando nessa autora, o documento

escrito e as imagens iconográficas ou fotográficas são representa-

ções que aguardam um leitor que as decifre (p. 23). A imagem não

fala por si mesma. Dessa sorte, tecemos o conjunto de reflexões

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acerca do ser social no intuito de compreender a criança-sujeito,

inserida numa família, cujos padrões de organização passaram

por várias mudanças em função das relações socioeconômicas

existentes na produção do denominado agribusiness sucroalcoo-

leiro e citrícola da região analisada. Tais mudanças, como vimos,

acarretaram a precarização das relações de trabalho, o desempre-

go, sem contar as incertezas do mercado laboral sazonal, cada vez

mais restrito e exigindo mão-de-obra, dotada de força para o dis-

pêndio de enormes energias para o trabalho excessivamente pesa-

do do corte da cana, fato que alija as mulheres e as pessoas acima

de 40 anos de idade da atividade do corte da cana. Restam às mu-

lheres a colheita da laranja, cujos salários são inferiores aos do

corte da cana, ou o emprego doméstico. Portanto, os genitores

dessas crianças estão nas ocupações mais desvalorizadas finan-

ceira e socialmente. A vida deles oscila entre as incertezas do mer-

cado laboral e a exclusão social, recaindo sobre as mulheres, ain-

da, o peso da dominação patriarcal e, sobre os negros, as

discriminações étnicas/raciais. Na expressão de Bourdieu, são vi-

das suspensas por um fio.

O conjunto dos desenhos analisados revela, portanto, outra

maneira de dizer, baseada na descrição da realidade circundante

e também nas representações sociais dessas crianças. O lugar

emocional das pessoas da família aparece ora disforme, ora in-

distinto, retilíneo, sem cores, sem marcas, na parte inferior da fo-

lha sulfite, lugar este que coincide com a escala social na qual se

inserem todos os membros da família. Considerando o ideal

como parte do real, em alguns desenhos a idealização está ausen-

te. Se retomarmos as reflexões sobre o ser social, podemos afir-

mar que o processo dominador imposto aos trabalhadores ru-

rais nestas últimas décadas culminou não somente na introjeção

da autocoação, caracterizado pelos salários baixos, pela miséria

material e incapacidade de reprodução social, pelo alcoolismo

dos adultos, mormente dos homens, como também pela espolia-

ção das lembranças, responsáveis pela negação da memória her-

dada pelas crianças. Partindo do pressuposto de que as distintas

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temporalidades não são lineares, porém se misturam, imprimin-

do umas às outras novos matizes, cujos significados se transfor-

mam no decorrer do tempo e dos espaços vividos, podemos afir-

mar que esse processo, ao atingir a própria essência humana, ao

ser internalizado, pode gerar tanto o amoldamento como a resis-

tência, por meio da dialética conflitiva, segundo as considerações

acima. Assujeitamento e amoldamento não são vistos linearmen-

te, porém enquanto processos conflitivos entre a dominação das

relações capitalistas e as determinações, advindas dos próprios

sujeitos em subverter tais determinações que foram recalcadas,

reprimidas.

Ethel Kosminsky (1998) mostra a importância do desenho

conjugado à oralidade em um estudo de caso de crianças inter-

nadas em instituições assistenciais. Segundo ela, a coleta dos

desenhos exige do pesquisador uma postura que se afaste do pa-

ternalismo, dos preconceitos de classe e etnia e também das ideo-

logias dominadoras. Por outro lado, o fato de o pesquisador não

ser criança é um fato que exige outros cuidados. Nos quadros de

uma sociologia da infância, poder-se-ia perguntar se as crianças

das camadas subalternas apresentam grafismos mais elementa-

res do que as crianças das camadas dominantes. Essa autora ad-

verte para os perigos do reducionismo, aliado à construção de

cânones, ou seja, de critérios classificatórios, de modelos que va-

lorizam as características étnicas e culturais de uma camada da

população, ou da população de um país, em detrimento de ou-

tros, capazes de conduzir ao etnocentrismo e aos preconceitos

classistas (p. 85).

O trabalho etnográfico no quarteirão escolhido pela pesqui-

sa, que durou duas semanas inteiras, além das atividades recrea-

tivas desenvolvidas com as crianças em vários momentos, permi-

tiu não somente aproximação das crianças, como também as

relações de confiança entre pesquisador e pesquisado. Algumas

delas chegaram a desenhar as pesquisadoras em folhas de papel

separado, com trancinhas nos cabelos, como se elas fossem crian-

ças, o que denota a relação afetiva produzida.

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Dessa sorte, ainda que reconheçamos as possíveis limitações

das interpretações dos desenhos, as reflexões acima representam

um duplo desafio. Primeiramente, por adentrar um terreno no-

vo, cujo caminhar exigiu muita cautela. Em segundo lugar, por

tomar consciência de que a exploração e a dominação – de clas-

se, gênero e etnia – atingem a vida dos dominados não somen-

te no que tange a sua materialidade, como também à própria

subjetividade. Desse modo, qualquer práxis que vise acabar com

a situação de heteronomia deverá levar em conta o processo de

alienação, objetivação e assujeitamento de corpos e almas. Por-

tanto, é uma larga tarefa, que não pode ser circunscrita aos mo-

vimentos sindicais. Uma pedagogia, que fosse capaz de inserir

em seus conteúdos a realidade social e cultural da criança, po-

deria ser o caminho para a autonomia e a abolição das injusti-

ças sociais existentes. A concretização dessa utopia necessaria-

mente deverá incluir o sujeito-criança, além de mulheres e

homens adultos.

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MARIA APARECIDA DE MORAES SILVA é professora livre-docente, colaboradora doPPG/Geografia/Unesp/Presidente Prudente, pesquisadora visitante do PPG/Geo-grafia/USP e pesquisadora do CNPq. BEATRIZ MEDEIROS DE MELO é bolsista da Fapesp/Mestrado/Unesp/PresidentePrudente.ANDRÉIA PERES APPOLINÁRIO é bolsista de AT do CNPq.

ANEXO

Desenho 1

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Desenho 2

Desenho 3

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Desenho 4

Desenho 5

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Desenho 6

Desenho 7

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Desenho 8

Desenho 9

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Desenho 10

Desenho 11

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Desenho 12

Desenho 13

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Desenho 14

Desenho 15

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A LONGA EVOLUÇÃO DA RELAÇÃO RURAL–URBANO

PARA ALÉM DE UMA ABORDAGEM NORMATIVA DO DESENVOLVIMENTO RURAL*

ARILSON DA SILVA FAVARETO

R E S U M O Na base da emergência do que se convencionou chamar por “nova

ruralidade” há um deslizamento no conteúdo social e na qualidade da articulação

das suas três dimensões definidoras fundamentais: as relações rural–urbano, a pro-

ximidade com a natureza e os laços interpessoais. Os significados maiores dessa mu-

dança são, de um lado, a erosão do paradigma agrário que sustentou as visões pre-

dominantes sobre o rural ao longo de todo o último século e, de outro, a intensificação

de um longo e heterogêneo processo de racionalização da vida rural. Um processo

através do qual o rural, em vez de desaparecer, se integra por completo à dinâmica

mais ampla dos processos de desenvolvimento, por meio tanto da unificação dos di-

ferentes mercados (de trabalho, de produtos e serviços, e de bens simbólicos) como

também por meio da criação de instituições que regulam as formas de uso social des-

ses espaços, agora amalgamando interesses que têm por portadores sociais segmen-

tos originários também de outras esferas. Este artigo discute algumas dessas idéias,

que conformam a tese de doutorado do autor, a partir de uma análise da longa evo-

lução das relações rural–urbano, contribuindo assim para se pensar os processos de

desenvolvimento rural para além de um viés eminentemente normativo.

P A L A V R A S - C H A V E Desenvolvimento rural; questão agrária; sociolo-

gia rural.

A B S T R A C T Underlying the emergence of what is conventionally called “the

new rurality”, there is a shift in the social context and in the quality of the articulation

between its three defining and fundamental dimensions: rural-urban relations,

proximity to nature, and interpersonal ties. The broader implications of this change

are, on the one hand, the erosion of the agrarian paradigm that supported the

prevailing views of the rural throughout the last century and, on the other hand, the

intensification of a long-term, heterogeneous process of rationalization of rural life.

Along this process, instead of disappearing, the rural becomes wholy integrated into

the wider dynamics of development process, both by means of the unification of

different markets (for labor, products and services, and symbolics goods) and by the

creation of institutions that regulate the forms of social use of these spaces, which

today amalgamate interests whose social bearers are originate in non-rural spheres.

K E Y W O R D S Rural development; agrarian issue; rural sociology.

1 5 7

* Este artigo é uma ver-são modificada de umdos capítulos da tese dedoutorado do autor, Pa-radigmas do desenvolvi-mento rural em questão– Do agrário ao territo-rial. Cf. Favareto (2006).

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INTRODUÇÃO

Desenvolvimento rural é algo que envolve a manifestação de um

processo de características mais gerais, o desenvolvimento, em

um domínio específico, nesse caso, o rural. Compreendê-lo sob

uma perspectiva não-normativa é algo que exige a adoção de dois

procedimentos. O primeiro é entender o desenvolvimento não

como desejo, utopia ou ilusão, pelos conteúdos expressos num

“dever ser” – como é tão comum em situações cotidianas ou mes-

mo em toda uma vertente da bibliografia sobre o assunto (Rist,

2001; Rivero, 2003) –, mas sim como evolução de configurações

determinadas, analisando as interdependências entre estruturas

sociais, meio ambiente e instituições a partir de um enfoque em

sua evolução de longo prazo (Favareto, 2006). O segundo é defi-

nir em que consiste a particularidade desse espaço específico que

é o rural e as decorrências disso para se pensar sua trajetória his-

tórica. Nos tempos recentes tornou-se quase um hábito falar-se

em “novo rural”, em “novas ruralidades”, muitas vezes sem um

esforço analítico em elucidar o que nisso é recente e o que é pro-

priamente permanente. Importa saber, sobretudo, qual a impli-

cação dessa nova situação, insinuada pela adjetivação crescente

vista na bibliografia sobre estudos rurais em termos de instân-

cias empíricas a serem mobilizadas e em termos de articulações

conceituais para entendê-las. Este é o problema a que se dedica

este artigo.

A hipótese que se pretende demonstrar pode ser sintetizada

numa tripla afirmação: 1) o momento atual da ruralidade repre-

senta uma nova etapa em sua longa evolução, na qual, em vez de

desaparecer ou diminuir inexoravelmente, os espaços rurais se in-

tegram por completo à dinâmica mais ampla dos processos de de-

senvolvimento, por meio tanto da unificação de diferentes mer-

cados (de trabalho, de bens e serviços, mas também de bens

simbólicos) como por meio da criação de instituições formais que

regulam as formas de uso social desses espaços; 2) na base da

emergência dessa nova etapa, ocorre um deslizamento no conteú-

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do social e na qualidade da articulação de três dimensões defini-

doras da ruralidade – as relações rural–urbano, a proximidade

com a natureza e os laços interpessoais; 3) um dos significados

maiores dessa mudança é a erosão do paradigma agrário que sus-

tentou as visões predominantes sobre o rural ao longo de todo o

último século.

Para demonstrar essa hipótese, o artigo está organizado em

duas seções principais. Inicialmente, é traçada uma pequena his-

tória da relação campo–cidade com o principal intuito de eviden-

ciar o movimento das contradições entre esses dois pólos. Muito

menos do que um tratamento exaustivo de tão amplo tema, o que

seria impossível nos limites deste texto, espera-se pôr em evidên-

cia os marcos que envolveram o processo de intensa urbanização

ocorrido destacadamente no último século e, junto disso, os si-

nais de permanência do rural nessa nova condição. Na seção se-

guinte, também sem a intenção de esgotar o rico painel de auto-

res que se dedicam às metamorfoses da ruralidade, o objetivo

consiste em apresentar argumentos em torno dos significados

dessa nova etapa. O que esses significados implicam em termos

de instâncias empíricas e de articulações conceituais é objeto de

tratamento na conclusão do artigo, em que são indicados tam-

bém alguns desdobramentos dessas idéias.

UMA PEQUENA HISTÓRIA DA RELAÇÃO CAMPO–CIDADE

A idéia de rural, ou de ruralidade, é similar a tantas outras que

só existem em relação direta com seu par oposto, tal como acon-

tece com o masculino e o feminino, ou com o sagrado e o pro-

fano. Para pensar os termos da relação entre os dois pólos, a

primeira dificuldade que se impõe é justamente sua própria de-

limitação.

Na economia rural, a tradição sempre foi pensar seu objeto

como algo relacionado à agricultura, no mais das vezes incorpo-

rando aspectos que vão além daqueles diretamente relacionados

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à produção primária, mas tendo por universo as famílias ou em-

presas ligadas a essa atividade. É evidente que isso teve durante

determinado período uma base histórica, uma correspondência

no real que lhe sustentava, mesmo que como visão distorcida ou

parcial: o peso determinante do setor agrícola na vida rural.

Na sociologia, a própria criação do ramo dedicado ao rural

veio apoiada na oposição comunidade–sociedade, restringindo

seu objeto ao estudo das várias dimensões da vida social dos pe-

quenos lugarejos, também com forte presença da agricultura na

determinação dos rumos dos indivíduos ou das economias locais,

e sempre pensando essa esfera com uma relativa autonomia e em

aberto contraste com a sociedade envolvente. A clássica definição

de Sorokin elenca os seguintes traços marcantes: as diferenças

ocupacionais entre os dois espaços, com maior peso das ativida-

des primárias no caso dos espaços rurais; as diferenças ambien-

tais, com maior dependência da natureza no rural; o tamanho da

população; a densidade demográfica; o grau de diferenciação so-

cial e de complexidade; as características de mobilidade social; e

as diferenças de sentido da migração.1 São traços que claramen-

te falam mais da condição rural nos anos 30 do século XX, quan-

do tal definição foi formulada, do que exatamente de caracteres

fundamentais da ruralidade.2

O estudo da história urbana, da história das cidades, por sua

vez, rendeu periodizações e tipologias interessantes, que partem

de alguma definição do que pode ser considerado, em perspecti-

va de evolução temporal, uma cidade. Paul Bairoch, num livro

clássico sobre o tema – De Jerico a México: villes et économie dans

l’histoire (Bairoch, apud Bairoch, 1992) –, elenca cinco critérios

mais comuns para se considerar um assentamento humano de-

terminado como uma cidade: existência de um artesanato em

tempo integral, indício de especialização de tarefas; existência de

fortificações por oposição a aldeia, que permanece aberta; tama-

nho e sobretudo densidade populacional; a estrutura urbana de

habitação (casas, ruas etc.); e a durabilidade da aglomeração em

oposição ao acampamento.

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1 Cf. Sorokin, Zimmer-man e Galpin (1986).

2 A respeito da constitui-ção desse ramo discipli-nar e das injunções so-ciais a que ele estavaexposto nesse momento,ver Martins (1986).

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Bairoch adverte que, dependendo da região em questão, al-

guns desses critérios podem perder o sentido estruturante. De to-

dos, a presença do artesanato é o mais importante, por sua rela-

ção com a especialização e o que ela implica para a divisão do

trabalho e a necessidade e possibilidade da troca. Essa conceitua-

ção sustenta uma cronologia de longa duração da relação entre

campos e cidades. Nessa sua história econômica, o autor estabele-

ce uma periodização estruturada em quatro etapas: os primórdios

da urbanização (5000 a.C.); as sociedades tradicionais (de 2700

a.C. à Revolução Industrial); a Revolução Industrial (da Revolu-

ção Industrial ao pós-guerra); e finalmente o período marcado por

aquilo que ele chama de “inflação urbana no Terceiro Mundo”.

Já Max Weber, em A dominação não legítima (Tipologia das

cidades), havia adotado critérios de definição e classificação das

cidades que aliam aos critérios por ele mesmo definidos como

“estritamente econômicos”e “político-administrativos”, outros de

ordem “associativa” (Weber, 1998, p. 408-9). De acordo com essa

idéia, sob o aspecto estritamente econômico, a existência de uma

cidade implicava ter uma sede senhorial-territorial com centro,

para o qual deveriam convergir as demais atividades; a troca re-

gular de bens como componente essencial das atividades aquisi-

tivas; ser um lugar que comporte um mercado, onde a população

local satisfaz uma parte essencial de suas necessidades cotidianas.

Sob o aspecto político-administrativo, a cidade constituiu-se his-

toricamente como uma unidade entre mercado, como decorre das

funções descritas, e fortaleza, guarnição, sede administrativa de

uma determinada abrangência ou domínio. Nessas condições, as

cidades se caracterizaram fisicamente por serem assentamentos

fechados, em oposição à ocorrência de moradias isoladas, e por

serem grandes assentamentos humanos e não-pequenos, onde

predominam os laços de conhecimento pessoal. A esses dois as-

pectos, Weber agrega o elemento associativo, o que em sua teoria

significa mais do que a espontânea ou induzida combinação en-

tre indivíduos numa mesma empreitada ou organização, signifi-

ca mesmo o próprio processo de “associação”, de viver em socie-

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dade.3 E nisso Weber destaca a necessidade de existência de uma

“comunidade urbana”, da qualificação de cidadão com as liberda-

des e direitos que isso comporta, mas também com os constran-

gimentos nisso implicados, tal qual existiu originalmente somen-

te no Ocidente.

No pensamento do grande sociólogo alemão, e de maneira

coerente com seu método dos tipos ideais, em vez de uma crono-

logia tem-se uma tipologia, em que a ênfase no tipo de agentes

por detrás dos processos sociais predominantes dá origem às tí-

pico-ideais cidades de consumidores, cidades de produtores, ci-

dades mercantis e cidades de agricultores, com vários desses tipos

coexistindo em períodos históricos determinados.4

Um diálogo entre essas definições sugere que uma aborda-

gem da história das relações entre campo e cidade deveria combi-

nar a composição de critérios estruturais e funcionais com crité-

rios relacionais, através de um tratamento da longa duração da

contradição entre os dois pólos. É isso o que faz Georges Duby

(1973) analisando a situação européia e francesa em particular, até

chegar a uma tipologia da interação desses espaços. Ou Fernand

Braudel (1979/1995, 1985), que em sua obra clássica confere às ci-

dades – sempre tomadas em relação com os campos – o mesmo

estatuto dado à moeda na evolução histórica da Civilização mate-

rial e capitalismo: ambos são fundamentais para a ampliação das

trocas. E, como diz Braudel, “sans échange, pas de société”.

Nessa longa evolução, cabe perguntar, portanto, o que são os

traços distintivos em uma e outra época e, principalmente, o que

tal trajetória ensina a respeito das características fundamentais e

das possibilidades de desenvolvimento rural no mundo contem-

porâneo.

A divisão espacial do trabalho antes da Modernidade

A relação com o que muito mais tarde a humanidade viria a cha-

mar como campos e cidades começa pela própria essência do nas-

cimento do fenômeno urbano: a formação dos primeiros assen-

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4 Vale lembrar que os ti-pos ideais são um recur-so elaborado por Weberpara contornar os limitesdo pensamento indutivoem ciências sociais. Elesnunca existem enquantotal no mundo real. Sãoconstruções teóricas, ob-tidas a partir da acentua-ção de um ou mais doscaracteres fundamentaisdas realidades em ques-tão, e servem como umamedida aproximativa, apartir da qual pode ava-liar-se o quão próximoou distante determinadasituação está do tipoideal e, em seguida, in-terrogar as razões paratanto. Para um trata-mento mais pormenori-zado, ver Ringer (2004).

3 Ver, a respeito, a eluci-dativa explicação de Ga-briel Cohn na sua intro-dução à edição brasileirade Economia e sociedade(Weber, 1998).

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tamentos de caráter mais permanente a partir da Revolução do

Neolítico, com a passagem da colheita, caça e pesca para a agri-

cultura e a criação. Não se trata de entrar aqui na polêmica que

já consumiu rios de tinta entre os especialistas no assunto sobre

quem determinou o quê na relação entre a sedentarização e a cria-

ção das práticas agrícolas, mas de destacar que o aumento da pro-

dução por superfície de terra teve conseqüências maiores para a

história posterior da humanidade na formação de excedentes in-

tercambiáveis e no adensamento populacional associado ao fim

do nomadismo.5

Para se ter uma idéia do alto grau de interdependência entre

essas duas variáveis, basta lembrar que, para a situação da Europa

no Pré-Neolítico, seria necessária uma área equivalente a “cinco

Suíças ou uma Grã-bretanha” para suportar uma cidade de mil

habitantes, o que tornaria impossível se estabelecer fluxos de troca

(Bairoch, 1992). Por isso não é de se espantar que raras foram as

regiões onde, havendo agricultura, não se formaram cidades no

curso dos milênios seguintes. Quanto mais volumosos os

excedentes agrícolas, quanto melhores as terras, mais precoce foi

o surgimento de assentamentos humanos importantes. Essa

dependência direta foi chamada por Bairoch de “dupla tirania, da

distância e da agricultura”. As possibilidades de desenvolvimento

eram totalmente presas à possibilidade de produção de bens de

subsistência através da atividade primária. E as eventuais trocas

estavam igualmente vinculadas ao êxito em se alcançar um ex-

cedente. Seu intercâmbio, por sua vez, estava igualmente atado à

extensão da distância entre os locais de origem dos dois pólos

envolvidos, já que não existiam condições de transporte e

conservação mínimas.

É evidente que a dinâmica que envolve esta relação entre

agricultura e formação das cidades é algo que implica intervalos

temporais bastante dilatados. Para dar apenas um exemplo,

as primeiras indicações de prática da agricultura datam de

8500-8000 a.C., no Oriente Médio, e as primeiras indicações de

cidades proto-urbanas nessa mesma região remontam a 7800 a.C.

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5 Há uma literatura rela-tivamente extensa a res-peito. Consultar, entreoutros, Boserup (1987),Mazoyer e Roudart(1997/2002),North (1981).

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E é importante também sublinhar que essa mesma relação en-

gendrou padrões espaciais distintos em diferentes partes do

mundo. Novamente para ficar apenas nos limites de um exemplo,

por volta de 1700 a população mundial já estava na casa dos 700

milhões de pessoas, dos quais 60 milhões habitando as cidades.

Nesse momento da história, enquanto a Ásia tinha 33 cidades com

mais de 100 mil pessoas, a Europa contava com apenas 12. Mas

nesta última, contudo, o número de cidades com algo em torno

de 50 mil habitantes havia-se multiplicado enormemente desde o

início do milênio (Bairoch, 1992), denotando um padrão bem

diferente daquele experimentado no Oriente e revelador da

especificidade européia, traço tão destacado por Max Weber.

Segundo ele, foi justamente na Europa que a intensidade das ações

das cidades sobre os campos foi mais positiva para o conjunto da

economia, porque foi ali, naquele continente ou em uma parte

específica dele, que as cidades se constituíram em espaços de

associação menos vinculados às qualificações estamentais que

pesavam sobremaneira nos campos. Weber dedicou uma extensa

pesquisa materializada em vários de seus textos para explicar as

articulações entre idéias, economia e sociedade.6 Sua abordagem

é compreensiva justamente por não conferir uma determinação

única do material para as instituições ou vice-versa, e sim por ver

o real como resultado de composições históricas singulares.

Enquanto no Oriente as cidades se firmaram como extensão dos

domínios de castas e estamentos religiosos, no Ocidente elas

tomaram a forma de espaços de troca mais dinâmicos.

Esmiuçando o pensamento weberiano sobre essa especifici-

dade, Domingues (2000, p. 222) explica que

a cidade configurara-se como espaço da liberdade e da auto-

nomia precisamente porque floresceu em um momento ex-

tremamente peculiar no desenvolvimento histórico do Oci-

dente. Ela inserira-se em um contexto feudal, já em si

contratual, estabelecendo-se um contrato de liberdade entre

seus cidadãos – que formavam uma comunidade em todos os

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6 Para o debate aqui pro-posto são de extrema im-portância os seguintestextos de Weber: o capí-tulo intitulado “Socio-logia das religiões” e aseção Tipologia das cida-des, ambos em Eco-nomia e sociedade; e aparte III: Religião, dosEnsaios de sociologia,além d’A ética protestantee o “espírito” do capitalis-mo. Cf. respectivamenteWeber (1998; 1904/2004).Uma excelente apresen-tação dos textos sobre re-ligião, discutida a partirde sua importância parao processo de desencan-tamento e racionalizaçãodo mundo, pode ser en-contrada em Pierucci(2003).

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planos, inclusive em termos de significação cultural e sentido

da ação: a defesa da liberdade compartilhada entre iguais. Ela

escapara, com isso, paralelamente à sua inserção na tessitura

contratual do mundo feudal, da lógica da dominação que o

estrutura. Ela constituiu-se em momento absolutamente sin-

gular da história universal: estabelecera uma autonomia ante

os estamentos dominantes no contexto societal global do feu-

dalismo, tornando a dominação tradicional “não legítima”. Ao

mesmo tempo, desabrochara em um momento anterior ao de-

senvolvimento do Estado patrimonial, o qual levou à sua su-

bordinação, à dominação racional-legal e, afinal, à perda da-

quela oportunidade histórica única de realização da liberdade.

O credo coletivo da urbe, por seu turno, tecera uma comu-

nhão entre os cidadãos sem que, por outro lado, se rompesse

a efetiva esfera de autonomia de cada indivíduo, malgrado a

profundidade já significativa da racionalização da conduta no

que tange às questões econômicas. Mais ainda, a ação social

não perdera seu sentido coletivo.

Este era o “ar das cidades que torna as pessoas livres”, ditado me-

dieval lembrado por Weber e assim explicado em termos socio-

lógicos.

Isso não é, contudo, um processo que se estabelece de ma-

neira homogênea mesmo no interior daquele continente. O nas-

cimento e a expansão das cidades no norte da Europa não se deu

tão cedo quanto no sul. Influenciaram nisso basicamente dois fa-

tores: o modelo de urbanização – já que em alguns lugares o cam-

pesinato representava um quarto, em outros metade do total de

habitantes –, e os sistemas de produção – nos Países Baixos, por

exemplo, a importação de cereais e a conseqüente diminuição da

demanda por mão-de-obra no campo favoreceu uma mais alta

taxa de urbanização (Bairoch, 1992). Essa condição repercutiu

também no padrão de organização espacial e econômica em am-

bas as regiões. No norte, as cidades se firmaram a partir da rela-

ção com seu entorno, seja na estruturação de uma malha de al-

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deias e pequenas cidades, seja nas interfaces mais estreitas entre

a produção agrícola e o artesanato (Braudel, 1979/1995).7 Nesse

segundo plano, segundo Duby (1973), a relação cidade–campo

se teria estabelecido por meio da disseminação de “lugares me-

diadores”, cuja posição, situada entre a vida citadina e a do villa-

ge, pela atividade de seus notáveis e de seus homens de lei, de seus

pequenos empresários, de seus comerciantes, viria a ser de im-

portância capital até a consolidação da Revolução Industrial. No

outro plano, típico, sobretudo, das regiões mediterrâneas, pro-

cessos históricos impuseram ao campo formas diferentes de so-

ciabilidade com influência urbana: os modos de produção, as re-

lações políticas tinham ares citadinos, mas tratava-se, segundo

suas palavras, de um urbanismo muito antigo. Nele, a posição

privilegiada das cidades litorâneas contribuiu para a moldagem

de uma relação com os campos através das instituições, da eco-

nomia e das estruturas sociais de uma maneira mais hierarqui-

zada e presidida pela possibilidade dos intercâmbios externos

através do comércio.

O rural na “era industrial”

Duby e Bairoch, ao menos, concordam que até o período da Re-

volução Industrial, apesar da antiga e crescente importância das

cidades, durante séculos o motor da história esteve no meio rural

e as cidades se desenvolveram como “parasitas tutelares” (Duby,

1973), expressão que, como sublinha Wanderley (2000), indica a

dependência urbana em relação ao dinamismo econômico vindo

do campo, e ao mesmo tempo um exercício pela cidade de fun-

ções de dominação sobre o meio rural. Com o tempo, o acúmu-

lo de poderes acabou por se inverter e as cidades se tornaram do-

nas de tudo e o campo verdadeiro servo e subordinado. A cidade

passa a reunir os fatores favoráveis à inovação: demanda efetiva,

possibilidade de contatos sociais que favorecem a circulação de

informações, existência de pessoas e coisas dedicadas ao trabalho

não-agrícola.

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7 Para um excelente pa-norama sobre o lugar dascidades na evolução dahistória ocidental se-gundo uma perspectivabraudeliana, consultar oinstigante texto de Mau-rice Aymard (1992).

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Essa idéia é exatamente oposta ao argumento de Jane Jacobs

(1984), para quem, desde as primeiras ocorrências do fenômeno

urbano, teria ficado claro que a evolução dos espaços rurais de-

pendia das cidades, e não o contrário: as economias rurais seriam

sempre tributárias das cidades porque o desenvolvimento é um

processo de mudança intrínseca dentro de um contexto capaz de

suportá-lo, no qual a diversificação e a possibilidade da produção

e disseminação das inovações – ambos vistos como atributos es-

pecíficos das cidades – são determinantes.8

Os argumentos de Jacobs são em parte muito pertinentes,

mas as evidências históricas fazem a balança pender mais para o

lado de Bairoch e Duby. Ela acerta na sua ênfase na diversificação,

mas erra ao ver somente nas cidades o lugar possível para tanto.

Mais interessante do que procurar em qual dos pólos se encontra

a virtude imanente é compreender as múltiplas articulações pos-

síveis entre eles e os resultados que essas interações geram. É pos-

sível identificar situações anteriores ao período de mais intensa

urbanização em que o fluxo cidade–campo se estabeleceu de ma-

neira a gerar impactos negativos para o segundo pólo – como é o

caso emblemático da distribuição gratuita de cereais na Roma an-

tiga. E, inversamente, é possível da mesma maneira divisar situa-

ções em que as condições de maior dinamismo das cidades reper-

cutiram positivamente sobre os campos, por exemplo, através da

metalurgia e de melhoramentos na ferramentaria agrícola, no au-

mento da produtividade, no comércio e na introdução de novas

variedades. Da mesma forma, Mazoyer e Roudart (1997/2000)

mostram claramente como a longa evolução desde a Revolução

do Neolítico até a Revolução Industrial é pontuada por uma sé-

rie nada desprezível de inovações. Os autores não chegam a afir-

mar que boa parte delas teve origem fora das cidades. Mas, con-

siderando a frágil urbanização do mundo nesse longo período, de

um lado, e a riqueza e variedade dessas inovações através da his-

tória, de outro, isso é facilmente presumível.

O que ninguém certamente nega, enfim, é que, na longa

passagem do período feudal para o capitalismo, a cidade se tor-

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8 Uma análise pormeno-rizada do tema na obrade Jane Jacobs foi muitobem-feita por Karin Vec-chiatti (2003).

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9 Cf., por exemplo, Wil-liams (1985).

na gradativamente o pólo dominante, e o faz rompendo pouco

a pouco as limitações de que falava Bairoch. Com a Revolução

Industrial e a urbanização, como foi dito, são solapadas as duas

marcas de todo o período anterior, de resto abaladas já desde o

século XI e mais intensamente desde o século XV: a “tirania da

distância e da agricultura”. Paradoxalmente, no entanto, as cida-

des não desempenharam um papel determinante no déclenche-

ment da Revolução Industrial na Inglaterra, nem nos primeiros

passos de sua transmissão espacial para o resto da Europa. Em-

bora as cidades não estivessem ausentes do processo de criação

de inovações técnicas importantes, um exame da localização das

empresas dos setores motores das primeiras técnicas importan-

tes mostra uma forte predominância, senão do meio puramente

rural, ao menos das regiões de cidades muito pequenas, no limi-

te do rural. Isso se devia ao tipo de energia disponível – já que a

primeira força motriz eram moinhos d’água e a segunda o car-

vão – e a algumas características essenciais da economia – níveis

salariais mais baixos no rural, custo mais baixo de terrenos e

construções nesses espaços e a ausência de regulamentação (Bai-

roch, 1992). As fábricas surgem inicialmente no meio dos cam-

pos, reunindo a justaposição de trabalhadores individuais, e só

depois vão para a cidade, onde se introduz uma mais sofisticada

divisão do trabalho.

Com o passar do tempo, a variável técnica assume maior pe-

so e, com isso, a situação inicial se inverte quase que por comple-

to. As cidades vão gradativamente se tornar o lugar da monetari-

zação das relações, da mobilidade social, da adequação entre oferta

e demanda de mão-de-obra qualificada, da concentração da ren-

da. Tanto é que, no século XVIII, as cidades vão aparecer no ima-

ginário da época associadas à riqueza e ao luxo. No século XIX, à

mobilidade e à formação das massas. E, mais tarde, no século XX,

ainda à mobilidade, ao futuro, mas agora em situações de estra-

nhamento típicas dos grandes e massificados ambientes urbanos.

O rural, por outro lado, vai sendo mais e mais associado ao pas-

sado, ao rústico e ao idílico, à tradição, quando não ao irracional.9

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Analisando as transformações demográficas posteriores à

Revolução Industrial, Bairoch nota que “algo acontece” no sécu-

lo XIX. No século XVIII, a taxa de urbanização européia ficou es-

tacionária, e os efeitos da industrialização, restritos ao Reino Uni-

do. Até então se vivia mais no campo que na cidade, esta última

crescendo principalmente graças à emigração de jovens. No sécu-

lo XIX, com a disseminação da Revolução Industrial pela Europa,

a taxa de urbanização salta de 16% a 40% no início do século XX.

Esse crescimento é interrompido nos anos 30 e no período da Se-

gunda Grande Guerra para voltar a acelerar em seguida. Mas, ago-

ra, não mais no mesmo ritmo do século anterior. Se até a Revo-

lução Industrial apenas uma ou duas cidades passavam da casa

do 1 milhão de habitantes, na Primeira Grande Guerra oito cida-

des passavam dos 2 milhões, e no pós-guerra Nova York sozinha

passa a casa dos 10 milhões, mais que toda a população urbana

da Europa e América do Norte há menos de 500 anos, mais pre-

cisamente por volta de 1600. Não há dúvida, portanto, do quão

intensa foi a urbanização do mundo ocidental ao longo dos últi-

mos dois séculos, a ponto de importantes teóricos passarem a fa-

lar em Revolução Urbana ou em Civilização Urbana (Lefebvre,

1970/2002).

Ao mesmo tempo, não há, contudo, indícios que apontem

para uma intensificação ainda maior ou sequer no mesmo ritmo

nos tempos atuais. Isto é, não se trata de questionar a dominação

urbana do mundo contemporâneo, mas sim de qualificá-la, para

então avaliar seu significado em relação aos momentos anterio-

res e, particularmente, para a permanência ou não do estatuto

empírico e teórico do pólo dominado, o rural. A conformação das

tendências futuras exige uma maior decantação das tendências

demográficas recentes, cujos sentidos atuais são bastante multi-

facetados, comportando distintos padrões de urbanização e de re-

lação entre as cidades e o espaço rural que lhes envolve. Por isso,

antes de passar ao exame do novo estatuto da ruralidade no mun-

do contemporâneo, cabe dedicar algumas linhas à especificidade

latino-americana.

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A peculiaridade latino-americana

No caso específico do chamado “Terceiro Mundo”, seria um erro

analisá-lo como mera extensão ou cópia imperfeita do que ocor-

re nos países do capitalismo avançado. Na América Latina, parti-

cularmente, há livros clássicos que tratam diretamente da pecu-

liaridade latino-americana: José Luis Romero (1976/2004) e, antes

dele, Sérgio Buarque de Holanda (1936/1995) já haviam mostrado

como as cidades se constituíram como porta de entrada e aliada

da colonização.

Numa conhecida passagem de Raízes do Brasil, há uma tipo-

logia das cidades latino-americanas contrapondo o racionalismo

das cidades hispânicas, fundadas sobre um conjunto de prescri-

ções que aparecem no desenho planejado, no traçado reto de suas

ruas e vias, e o barroquismo das cidades luso-brasileiras. Rome-

ro, sob direta influência da metodologia weberiana dos tipos

ideais, classifica cinco tipos de cidades latino-americanas, tipos

que se sucedem e cuja diferenciação é dada pela classe ou grupo

social dominante. A seqüência histórica tem início com o ciclo

das fundações que trouxe a constituição das cidades com suas fun-

ções preestabelecidas pela Coroa, com seus grupos urbanos ori-

ginários e sua mentalidade fundadora, a mentalidade expansio-

nista européia. Nas belas palavras de Romero (1979/2004, p. 96-7),

[...] posicionados em frente ao lugar escolhido, com a mão

apertada na empunhadura da espada, o olhar fixo na cruz e

os pensamentos direcionados para as riquezas que a aventura

lhes proporcionaria, os homens do grupo fundador da cida-

de que já tinha nome, mas da qual nada existia sobre o solo,

deveriam experimentar a sensação de quem espera o prodígio

da criação surgida do nada. Eram europeus em um continen-

te desconhecido, e a criação estava prefigurada em suas men-

tes. Porque esta façanha não era, na verdade, senão um passo

a mais nessa ambiciosa aventura européia de expandir-se, ini-

ciada quatro séculos antes. A terra que agora ocupavam – uma

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terra real com rios e planícies, lagos e vulcões – deveria ser

uma extensão da terra que deixaram no dia em que embarca-

ram em seus navios. [...] A mentalidade fundadora foi a da ex-

pansão européia conduzida por essa certeza absoluta e inques-

tionável da posse da verdade. A verdade cristã não significava

somente uma fé religiosa: era, a rigor, a expressão radical de

um mundo cultural. E quando o conquistador trabalhava em

nome dessa cultura, não só afirmava o sistema de interesses

que ela representava como também o conjunto de meios ins-

trumentais e de técnicas que a cultura burguesa havia acres-

centado à velha tradição feudo-cristã. [...] Os grupos funda-

dores expressavam essa interpenetração feudo-burguesa que

na península ia ajustando as relações entre as classes e tam-

bém entre os fins e os meios. [...] Graças àquela certeza, a men-

talidade expansionista européia havia concebido o projeto de

instrumentalizar o mundo não cristão de acordo com seus

próprios interesses, e afirmou-se nessa convicção cada vez

mais, à medida que os meios iam aumentando suas possibili-

dades: à maior superioridade técnica correspondeu maior cer-

teza da validade de seus fins.

Essa passagem traz, não uma, mas várias significações impor-

tantes. Entre muitas, ela fala da forma de apropriação do espaço

e dos recursos naturais, do tipo de relação entre colonizadores e

colonizados, da extensão que o Novo Mundo representava em re-

lação ao imaginário europeu da época. Fala, em suma, do senti-

do da colonização. Da colonização como instituição, do que ela

representava para as formas de interpretação da relação com o

novo espaço, seus homens e suas coisas. Combinavam-se assim

atitudes senhoriais e atitudes burguesas, por razões que remon-

tam às necessidades de colaboração entre esses dois segmentos da

sociedade européia do período da colonização.

Os cinco tipos que se sucedem desde então são, sempre segun-

do a tipologia de Romero, as cidades fidalgas, as cidades “criollas”,

as cidades patrícias, as cidades burguesas e as cidades massifica-

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das, finalmente, no século XX. Nelas, a cidade que se desenvolve

em razão do comércio vai gradativamente gerando as elites go-

vernantes da época dos processos de independência e, posterior-

mente, os grupos integrados e dependentes do capital internacio-

nal do período de mais intensa industrialização.

No Brasil as cidades de início não alcançaram a mesma im-

portância que nos demais países latino-americanos. É somente

nos meados do século XVIII que há um maior fortalecimento dos

grupos urbanos e das funções intermediárias das cidades. Até en-

tão a sociedade agrária havia imposto sua imagem de realidade.

Novamente nas palavras de Romero (1979/2004),

[...] foram os senhores da terra que esboçaram o primeiro per-

fil do Brasil colonial, ao passo que as populações urbanas –

artesãos e pequenos funcionários, clérigos e pequenos co-

merciantes – foram suplantadas. Até o século XIX, só algumas

cidades – Salvador da Bahia e, sobretudo, a Recife holande-

sa – insinuaram a sua capacidade de influir na poderosa aris-

tocracia fundiária, que amava a vida rural e residia em meio

a suas propriedades.

Isso significava um sentido totalmente diferente para a rela-

ção entre as cidades e seu entorno. Enquanto a Espanha havia ima-

ginado seu império colonial como uma rede de cidades, o domí-

nio português se limitava à exploração econômica. Na raiz dessa

diferença, segundo Romero, estava a experiência de choque com

os muçulmanos, que levou durante bom tempo à ocupação de

parte da Península Ibérica, o que culturalmente se traduzia num

medo terrível da possibilidade da mestiçagem e da aculturação.

Assim, a cidade “racional” da América hispânica era militarizada

e disciplinada para evitar tais riscos, enquanto na América luso-

brasileira as cidades se fundaram por princípios mais pragmáti-

cos. Essa prevalência do rural como centro ideológico do mundo

luso-brasileiro permaneceu até o momento em que as mudanças

acentuadas do capitalismo industrial instituem, sobretudo a par-

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tir dos fins do século XIX, uma sociedade crescentemente urbani-

zada. É assim que a “rede de latifúndios” vai sendo substituída por

uma “rede de cidades”, de maneira similar ao que acontecera na

América hispânica.

O fundamental a destacar é que, tanto em Romero como em

Buarque de Holanda, as cidades e o processo de urbanização, suas

relações com o mundo rural, são muito mais que realidades físi-

cas, são materializações de formas de vida e de mentalidade. Nos

dois autores esse processo de integração leva a uma espécie de

triunfo do mundo urbano, mas numa síntese muito peculiar. Em

Buarque de Holanda, a urbanização tragaria pouco a pouco o “ho-

mem cordial”, criação do mundo rural, agregado, isolado, depen-

dente, incorporando-o como uma espécie de portador do passa-

do agrário. Em Romero, embora haja a constante presença dos

pólos rural e urbano, é neste último que reside o foco dinâmico

da história.

Mas, apesar de tudo isso, também nos dois autores há uma

constante interpenetração entre os dois pólos: na forma das he-

ranças ibéricas que irão traduzir-se no viés patrimonial e patriar-

calista das instituições, segundo o autor brasileiro, na forma de

ideologias contrapostas e que interagem dialeticamente, embora

sempre presididas pelo pólo urbano, segundo o autor argentino.10

Já para outro autor brasileiro clássico, Gilberto Freire, o peso das

polaridades seria simplesmente inverso: as raízes escravistas ori-

ginárias da oposição entre Casa-grande e senzala se teriam esten-

dido para o mundo urbano e se materializado na antítese dos So-

brados e mocambos, segundo livro de sua trilogia, e tenderiam

mesmo a se perpetuar, em Jazigos e covas rasas, título planejado

para o terceiro livro, que nunca foi publicado.11 Não é de outra

coisa que fala Raymundo Faoro em Os donos do poder ou, no ca-

so das estruturas econômicas, as principais obras de Celso Furta-

do e de Caio Prado Jr.12

Essa diluição e persistência do rural no urbano é uma pri-

meira característica marcante da América Latina e do Brasil em

particular. Por certo também na Europa e EUA, mas ali as ruptu-

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10 Um analista da obrade Romero, Gorelik, cita-do na apresentação deseu livro, chega a quali-ficar a postura do autorargentino como umaespécie de “otimismo ur-bano”: “[...] o campo se-ria, assim, para o Rome-ro que lê Sarmiento, abarbárie da necessidadee da liberdade, que comopossibilidade só pode seaninhar na cidade” (San-tos, 2004, p. 18).11 Em seu lugar, e numasubstituição sintomáti-ca, Freire publicou Or-dem e progresso. Ao queparece, Freire não aban-donou a intenção de pu-blicar Jazigos e covas ra-sas, mas esse projeto foiinterrompido com suamorte.12 Num Colóquio sobre“Villes et campagnes”realizado nos anos 50 naFrança, Fernand Braudelchamava a atenção doshistoriadores e geógrafosfranceses sobre a entãorecente produção brasi-leira e sua habilidade emmostrar as permanên-cias do mundo agráriona urbanização crescen-te. Não é mero acaso ofato de ser este um traçofundamental nas trêsobras que Antonio Can-dido considerou seremas leituras indispensáveissobre a formação do Bra-sil: Casa-grande e senzala,Raízes do Brasil e Forma-ção do Brasil contempo-râneo.

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13 Para se ter uma idéiada proporção e magni-tude desses números,entre 1945 e 1970 o cres-cimento foi de 4,5% a.a.,enquanto na Europaentre 1880 e 1905 essepercentual foi de 2% a.a.Detalhe: com a Chinapuxando a média parabaixo (Bairoch, 1992).

ras introduzidas em passagens históricas fundadoras da moder-

nidade nessas nações em alguma medida “resolveu” essa herança,

seja através do protagonismo direto que as populações campone-

sas tiveram em tais eventos, do qual a Revolução Francesa talvez

seja o maior exemplo, seja ainda pela diminuição da hierarquia

social que pesa sobre os habitantes dos dois espaços, o urbano e

o rural, ao longo de toda a história recente daqueles países. Tra-

ta-se, na América Latina, de uma continuidade com viés marca-

damente negativo nas formas de representação social, como he-

rança agrária, patriarcal, escravista, ou como lugar por excelência

da dominação tradicional, da pobreza e da subordinação.

Outra característica é a velocidade e o formato em que se deu

o fenômeno da urbanização. A partir das décadas de 20 e 30 do

século XX, acontece uma progressão sem precedentes na história.

No chamado “Terceiro Mundo”, em 1930, 150 milhões de pessoas

já viviam nas cidades. Mas, pouco mais de meio século depois, es-

se número havia sido multiplicado por dez e chegado próximo de

1,5 bilhão de pessoas em áreas urbanas.13 Salvo exceções, esse au-

mento da população – impulsionado pela introdução de técnicas

médicas e sanitárias ocidentais, pelo descarte da mão-de-obra nos

campos, pela extensão rápida da educação no meio rural criando

um fosso entre duas gerações e por um intenso êxodo rural mo-

tivado pela busca por salários mais altos nas cidades (Bairoch,

1992) – se fez com frágil desenvolvimento econômico, com uma

débil industrialização e, mais grave, sem proporcional aumento

da produtividade agrícola, levando a uma hipertrofia urbana, a

uma superurbanização.

A terceira característica marcante da urbanização do “Tercei-

ro Mundo”, por fim, é a concentração nas cidades muito grandes.

Em 1930, quase um terço da população já estava em cidades de

500 mil habitantes, enquanto na Europa, continente de urbaniza-

ção muito mais antiga, esse percentual era de 20%. Nesse mesmo

momento seis cidades já tinham mais de 1 milhão de habitantes,

número que salta para 20 em 1950 e para 130 em 1980. E, em

1990, oito cidades já estavam com 7 a 10 milhões de habitantes.

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Por tudo isso não é exagero chamar esse processo de “inflação ur-

bana do Terceiro Mundo”; e, como tal, suas conseqüências prin-

cipais não são das mais virtuosas: criou-se uma situação de deficit

alimentar, quando às vésperas da Segunda Grande Guerra havia

excedente, criou-se um deficit de empregos urbanos, e ocorreu

uma hipertrofia do setor terciário (Bairoch, 1992).

Não é de estranhar, portanto, a diferença entre o rural e o ur-

bano nos países do capitalismo avançado e nos países da Améri-

ca Latina, Ásia e África. O fenômeno urbano aqui se constituiu

sobre estruturas sociais e instituições outras porque os agentes e

os processos históricos se compuseram de maneira diferente. A

herança colonial e escravista, associada à hipertrofia urbana e à

vertigem resultante da velocidade com que ela se deu é, a um só

tempo, resultado e causa de um estilo de urbanização que se fez

sem a criação de classes e lugares mediadores, a exemplo daquilo

que os villages e seus respectivos atores representaram na Europa

Ocidental. Por aqui, as técnicas agrícolas, que tiveram nas cidades

uma importante fonte de irradiação, foram importadas dos paí-

ses do capitalismo avançado. O padrão de urbanização, apoiado

em cidades muito grandes, exigiu grandes volumes de importa-

ções, com impactos para o balanço econômico. A monetarização

da vida social significou endividamento e não-liberação dos laços

servis. E a complexidade das técnicas e a integração econômica

mundial tornaram as trocas entre países e regiões mais importan-

tes que as trocas entre cidade e campo. Em síntese, na América

Latina e no restante do chamado Terceiro Mundo, diferente da

Europa, a urbanização tal como se deu foi mais um fator de sub-

desenvolvimento, e não propriamente um trunfo ao desenvolvi-

mento (Bairoch, 1992). Além disso, constituiu-se uma verdadei-

ra ideologia urbana que, em última análise, se traduz como um

“não-lugar” do rural na modernidade, interditando assim a pos-

sibilidade de que seja legítimo preconizar que esses amplos espa-

ços possam ser objeto de investimentos e de expectativas futuras.

As tipologias de Romero e Buarque de Holanda são excelen-

tes para análises de longo prazo, como a aqui empreendida, pois

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sinalizam o sentido mais geral da evolução, os caracteres mais for-

tes que permanecem após sucessivas etapas. Mas trazem consigo

uma dificuldade, que é não permitir uma leitura da heterogenei-

dade interna dessas grandes unidades como países ou continen-

tes num dado momento histórico. Na Europa já há uma tradição

estabelecida em explorar os contrastes espaciais das relações en-

tre cidades e campos, como foi possível observar através das obras

de Braudel, Duby, Bairoch. E nos anos mais recentes vários estu-

dos acadêmicos ou patrocinados pela União Européia ou órgãos

de governo têm elaborado interessantes tipologias e estudos

comparativos.14 Na América Latina, ou ao menos no Brasil, sim-

plesmente não há trabalhos consagrados que explorem as relações

entre o rural e o urbano tendo por objeto o mapeamento e clas-

sificação de um número razoável de realidades. Só muito recen-

temente, nos últimos dez anos, têm surgido programas de pesqui-

sa explorando esse tema sob diferentes enfoques.15

Tanto os achados desses programas de pesquisa como a as-

censão mesmo dos interesses pelas relações entre o rural e o ur-

bano são resultado de um momento particular da história desses

espaços, cujo significado pode ser o fim ou no mínimo um arre-

fecimento da urbanização intensa experimentada até então.

UMA NOVA ETAPA?

Nos anos 70 do século XX, pela primeira vez desde a Revolução

Industrial a taxa de urbanização dos países do capitalismo avan-

çado fica estagnada. Passa-se a falar até em urbanização dos cam-

pos, o que poderia significar tanto uma contradição em termos

como o sinal de dissolução de uma oposição. Os processos sociais

que levam a essa diminuição da distância entre os dois espaços

estão na raiz de uma interrogação formulada por Paul Bairoch:

Trata-se de uma nova etapa? Isto é, fenômenos antes concernen-

tes à urbanização atingem um outro universo sem, no entanto,

fagocitá-lo? Ou esse processo sinaliza uma homogeneização en-

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14 Uma leitura crítica dealguns desses programasde pesquisa pode ser en-contrada em Favareto(2006), especialmenteno capítulo 3.

15 Cf. Projeto CUT,Contag (1998), IBGE/IPEA, Nesur-IE/Unicamp(1999),Abramovay (2002).

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tre os dois pólos forte o suficiente para apagar suas distinções

substantivas?

Estas foram as questões que permearam os debates que se es-

tabeleceram, a rigor, já desde os anos 50, mas mais aprofundada-

mente desde os 70, na Europa. Uma boa síntese pode ser encon-

trada num emblemático número da revista Études Rurales,

organizado por Georges Duby, que trazia por título L’urbanisation

des campagnes.Reunindo textos de alguns dos mais influentes pes-

quisadores franceses da época, a publicação trazia vários artigos

que atestavam e analisavam as características e implicações desse

fenômeno de diluição das assimetrias entre o urbano e o rural na

Europa, e na França em particular. O texto de Julliard (1973), por

exemplo, já apresentava uma tipologia mais complexa, com uma

abertura para diferentes composições entre cidades e campos: ci-

dades rentistas do solo, amparadas em uma relação de parasita-

gem com o meio rural; cidades que cresceram sem laços orgâni-

cos com o meio rural, envolvendo-o, mas esterelizando-o em vez

de fecundá-lo; cidades que associaram sem ruptura o campo a seu

próprio desenvolvimento. O que é quase consensual desde então

é que as transformações econômicas, o processo de modernização

da produção e a crescente integração dos mercados levaram, ao

fim de um tipo específico de ruralidade, aquela que já foi chama-

da por Mendras de “sociedades camponesas”.

Três características importantes desempenharam papel-cha-

ve nessa nova situação. Primeiro, o compromisso institucional

que se criou, historicamente, em torno da garantia da paridade

econômica e social entre os agricultores e os demais setores e que

é muito bem-retratada em Jollivet e Gervais (1976). Isso criou

condições para que se aproximassem as condições de vida em am-

bos os espaços, contribuindo tanto para a vitalidade econômica

do meio rural como para regular o impulso ao êxodo, que até en-

tão era tão forte. Segundo, e em parte motivado pelo elemento

anterior, o padrão de crescimento demográfico que passa a vigo-

rar não aponta mais para o esvaziamento dos campos, mas até pa-

ra a situação inversa, para a atração populacional desses espaços,

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inicialmente através do dinamismo gerado pela equalização das

rendas e, num segundo momento, com o avanço da infra-estru-

tura e das possibilidades de comunicação, com novos habitantes,

sobretudo profissionais liberais e idosos em busca de amenidades

e lazer. Terceiro, a descentralização econômica e política que pro-

piciou tanto o surgimento de novas oportunidades de trabalho

como também a viabilização de equipamentos sociais adequados

a uma população com exigência crescente, esses dois últimos as-

pectos mais destacados por Kayser (1972, 1990).

São evidências empíricas que, sem dúvida, permitiriam res-

ponder positivamente à pergunta de Bairoch: os tempos atuais re-

presentam, por certo, um novo momento, uma nova etapa. Nes-

sa condição, muda a estrutura e a dinâmica das relações entre os

campos e as cidades. A primazia marcante das atividades primá-

rias – agricultura, pecuária, mineração, silvicultura – cede espaço

a uma maior diversificação, com uma crescente heterogeneização

das economias rurais, em que se destaca o crescimento cada vez

maior do setor de serviços. Com isso, mudam as vantagens com-

parativas do rural nas possibilidades de captação das rendas ur-

banas. A localização, a fertilidade e o preço da terra passam a di-

vidir importância com a acessibilidade, a paisagem. Da mesma

forma, a composição do perfil populacional e as tendências de-

mográficas típicas do período anterior são substituídas por um

forte arrefecimento, ou mesmo uma inversão nos fluxos demo-

gráficos. São outros agentes, novas variáveis introduzidas ou tor-

nadas mais relevantes, novos interesses, uma nova estrutura de

oposições e identidades que sustentam a especificidade dessa no-

va configuração da relação rural–urbano. E, para completar, mu-

da também o ambiente institucional que orienta a regulação das

formas de uso social dos recursos naturais. Se é verdade que des-

de a Antigüidade já há leis e sanções que dão os parâmetros para

as formas de apropriação da natureza, o que ocorre a partir de en-

tão é uma mudança também nesse domínio do mundo social: o

acesso à terra, a gestão de bacias hidrográficas, a conservação de

florestas e rios e a valorização da paisagem e da biodiversidade

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passam a ser novos aspectos incorporados aos anteriores. O que

é novo, além da extensão de domínios regulados cada vez mais

por instituições formais, é a forma como isso se dá, menos orien-

tada por decisões do tipo comando e controle, e mais por com-

promissos institucionais. Em outros termos, muda também o es-

tatuto da dominação.16

Mas, pelo ângulo teórico, qual o estatuto dessa nova situa-

ção? Duas são as perguntas, na verdade. Primeiro, é preciso es-

clarecer se a inauguração desse novo momento, dessa passagem,

localizada aproximadamente no último quarto do século XX,

trouxe consigo um fim do rural, se, com o “fim das sociedades

camponesas” de que falava Jollivet (talvez fosse melhor falar em

“sociedades agrárias”), acaba também a relevância histórica e

explicativa da ruralidade. Segundo, caso a resposta à questão an-

terior seja negativa e ainda haja conteúdo compreensivo na dis-

tinção entre o rural e o urbano, cabe interrogar então qual é seu

sentido.

Em dois artigos recentes, Veiga (2004, 2005) vê nas idéias de

Henri Lefebvre e de Bernard Kayser as melhores expressões para

as duas respostas extremas à primeira dessas perguntas. Por isso

vale à pena vê-las um pouco mais de perto.

Lefebvre dedicou parte expressiva de sua obra à produção so-

cial do espaço, inicialmente com uma ênfase em estudos rurais,

que se desloca posteriormente para os fenômenos relativos à ur-

banização. No seu influente livro A revolução urbana, de 1970, ele

a designa como um amplo conjunto de transformações que faria

as sociedades passarem do período em que predominaram ques-

tões típicas da sociedade industrial – como emprego, crescimen-

to e industrialização – para outras, nas quais a problemática da

sociedade urbana ganharia relevo e preeminência. Nessa socieda-

de urbana, típica do período pós-industrial, a urbanização com-

pleta – “hoje virtual, amanhã real”– envolveria e dominaria o con-

junto de esferas do mundo existente, e o destino dos espaços rurais

seria, portanto, a diluição de seus caracteres substantivos nesse

movimento envolvente da sociedade urbana.17

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16 Vários trabalhos abor-dam isolada ou combi-nadamente essas mudan-ças. Ver, entre outros,Kayser (1990, 1993), Vei-ga (1998), Wanderley(2000),Abramovay (2003).

17 Cf. Lefebvre (1970/2002).

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18 No Brasil, ver porexemplo os trabalhos deMonte-Mor (2003). Umaapresentação mais cir-cunstanciada e porme-norizada das idéias deLefebvre pode ser encon-trada também em Mar-tins (1996).

Apenas quatro anos mais tarde, o mesmo autor publicou

outro influente livro, The production of space, em que a hipóte-

se da urbanização completa não tem mais o mesmo caráter de

eixo argumentativo. Esse possível recuo, se não de conteúdo, ao

menos de ênfase, pode ser resultado tanto de uma melhor pon-

deração de Lefebvre – que admitia já no livro de 1970 que tal

idéia deveria ser considerada como hipótese, a fim de não se con-

fundir o categórico com o problemático, o especulativo com o

empiricamente demonstrável –, ou pode ter sido também resul-

tado da constatação, sublinhada por autores igualmente impor-

tantes da época, de sinais de vitalidade ainda emitidos pelo meio

rural.

Essa ambigüidade nos desdobramentos da obra de Lefebvre

não quer dizer que ela tenha sido totalmente deixada de lado, nem

por seu formulador, nem muito menos por seguidores de suas

idéias em vários ramos do conhecimento.18 Mas o fato é que não

há, nesse autor e nem na linhagem que ele inaugura, uma demons-

tração do esvaziamento do conteúdo social e explicativo do rural.

Tal afirmação vem sempre embasada em uma tautologia: a urba-

nização generalizada tem como devir a sociedade urbana, à dinâ-

mica da qual nada escapa.

No extremo oposto, Bernard Kayser lançou suas idéias sobre

esse problema em 1972, mas elas foram mais bem sistematizadas

no livro La renaissance rurale, de 1990. Embora se apoiando so-

bretudo em dados demográficos, Kayser, diferente de Lefebvre, re-

portou-se a situações muito concretas que estariam ocorrendo em

diferentes espaços dos EUA e do Velho Continente e que aponta-

vam para uma revitalização de áreas antes condenadas à estagna-

ção e ao esvaziamento. Um renascimento que teria em sua base

os efeitos do “enriquecimento do conjunto da sociedade”, passí-

vel de percepção através de fenômenos como a atração popula-

cional, o crescimento de atividades não-agrícolas, as iniciativas de

desenvolvimento local e uma mudança no perfil demográfico.

Com isso, em vez de desaparecer, os campos pareciam renascer,

agora integrados complementarmente às cidades: os campos, co-

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mo lugar da liberdade e da beleza, as cidades, como centros de la-

zer e de trabalho (Hervieu e Viard, 1996/2001).

Ao discutir os argumentos desses dois autores, Veiga (2004,

2005) oferece uma terceira hipótese: as mudanças por que vem

passando o rural contemporâneo não dão lugar nem ao fim do

rural, como em Lefebvre, nem a um renascimento, como em Kay-

ser, mas diferente de ambos, ensejam a emergência de uma nova

ruralidade, mesmo termo aliás utilizado por Wanderley (2000)

em um conhecido artigo sobre o tema.

Para contestar os argumentos de Lefebvre, Veiga procede ini-

cialmente a um exercício de demonstração da permanência dos

traços distintivos da ruralidade no mundo contemporâneo, con-

centrando-se, num primeiro instante, no grau de artificialização

dos ecossistemas como critério fundamental de distinção do ru-

ral e do urbano. Ali, pode-se constatar que 50% da área do globo

terrestre, excetuando a Antártida, permanece “praticamente inal-

teradas”, contra 24% “parcialmente alterados” e 22% “fortemen-

te artificializados”. Nessa última categoria, que inclui as áreas com

agropecuária intensiva e assentamentos humanos nos quais foi re-

movida a vegetação primária e onde há desertificação ou outras

formas de degradação permanente, apenas a Europa apresenta um

percentual de área mais expressivo, de 65%. O segundo continen-

te mais artificializado é a Ásia, onde esse número cai para 29%. E

na América do Sul essa fração é de meros 12%. A partir daí Vei-

ga concentra sua análise no continente europeu, por considerar

que o debate sobre a permanência ou desaparecimento da rura-

lidade deve ter por objeto situações em que a urbanização foi mais

longe. Além disso, seria preciso valer-se de critérios não estrita-

mente ecológicos, como aquele expresso no grau de artificializa-

ção dos ecossistemas. Portanto, utilizando então dados da OCDE,

produzidos a partir de um tableau de indicadores demográficos,

ambientais e socioeconômicos, Veiga mostra que nada menos do

que 28% da população européia vive em regiões predominante-

mente rurais, enquanto 40% habitam as regiões predominante-

mente urbanas e 32%, as regiões relativamente rurais. Esses da-

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dos seriam suficientes para, no mínimo, mostrar que não se che-

gou ao grau completo de urbanização de que fala Lefebvre, mas

não seriam suficientes para anular sua hipótese. Os partidários de

suas idéias poderiam argumentar que tais sociedades caminham

para tal padrão, o que já seria possível vislumbrar a partir dos da-

dos de países como Reino Unido, Bélgica ou Holanda, onde as re-

giões predominantemente rurais praticamente deixaram de exis-

tir. No entanto, a análise tendencial dos mesmos dados mostra

uma situação diferente. Quem mais atrai população, aumentan-

do assim seu peso relativo, é a categoria intermediária, formada

pelos espaços “significativamente rurais”. Tanto o “rural profun-

do” como as regiões metropolitanas ou mais densamente urba-

nizadas apresentam declínio. Não há, portanto, evidências empí-

ricas que confirmem o movimento apontado por Lefebvre e

sinalizem um fim do rural.

Quanto ao argumento de Kayser, o estudo de Veiga apresen-

ta uma concordância inicial no que diz respeito à permanência do

rural, mas diverge quando se trata de qualificar seu estatuto nos

tempos atuais. Tendo por base um significativo rol de pesquisas

sobre o rural europeu, Veiga mostra como tal situação não resul-

ta de um impulso que faz voltar os fundamentos da ruralidade pre-

térita, ainda que traços dela persistam e coexistam no novo mo-

mento. Trata-se, sim, de uma nova ruralidade, que se apresenta

metamorfoseada. A novidade está no fato de que “nunca houve so-

ciedades tão opulentas quanto as que hoje tanto estão valorizan-

do sua relação com a natureza”, e isso não somente no terreno das

preocupações com os problemas ambientais, como as ameaças à

biodiversidade ou o aquecimento global, mas também no que diz

respeito à liberdade conquistada com a maior mobilidade e com

o enriquecimento da sociedade e o que isso permite em termos de

aproveitamento das amenidades naturais, seja através da consti-

tuição de novas residências em áreas rurais, seja através das ativi-

dades turísticas. Mesmo as atividades produtivas que não se

apóiam diretamente em novas formas, o uso social dos recursos

naturais guardam com eles estreita correspondências: em inúme-

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ros casos é possível constatar uma descentralização da atividade

industrial, motivada tanto pela capacidade de certas áreas rurais

em atrair potenciais empreendedores devido às características am-

bientais de residência, como pelo dinamismo empreendedor vol-

tado para mercados emergentes e que explora as vantagens com-

petitivas derivadas das melhores condições de vida e de trabalho

dessas mesmas áreas (North e Smallborne apud Veiga, 2004).

Os dados da OCDE (1996), utilizados por Veiga, mostram

mesmo que, nas regiões predominantemente rurais, é raro encon-

trar algum país onde o percentual de ocupados na agricultura su-

pere a casa dos 30%, o que ocorre somente na Islândia e na Gré-

cia. Na maioria, é o setor de serviços que responde pela maior

fatia, chegando a 88% na República Tcheca e, na maior parte dos

casos, situando-se acima do percentual de 50%. Em suma, a vita-

lidade do rural não se resume mais aos campos, como lugar de

realização de atividades primárias, mas a uma trama complexa

envolvendo os campos e suas cidades, com destaque para uma in-

tegração intersetorial da economia e para uma emergência da va-

riável ambiental como elemento-chave. Tudo isso levou Veiga

(2005) a afirmar, em consonância com outros estudos como Wan-

derley (2000) e Abramovay (2003), que se trata efetivamente de

uma nova ruralidade. E que, segundo o autor, se expressa em três

vetores: os desdobramentos paisagísticos dos esforços de conser-

vação da biodiversidade, o aproveitamento econômico das decor-

rentes amenidades naturais através de um leque de atividades que

costumam ser tratadas no âmbito do turismo e a crescente neces-

sidade de utilização de fontes renováveis de energia disponíveis

nesses espaços rurais.

CONCLUSÃO

A longa evolução da relação entre campo e cidade mostra clara-

mente a permanência do fenômeno rural no mundo contempo-

râneo, mesmo no momento e nos países em que a urbanização

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foi mais intensa. A oposição campo–cidade se desloca para a con-

tradição rural–urbano. Enquanto a primeira diz respeito ao con-

traste entre espaços, sendo os campos o lugar de realização de ati-

vidades predominantemente primárias, destacadamente a

agricultura, na segunda o estatuto fundante da distinção, deslo-

ca-se para o grau de artificialização desses espaços e seus impac-

tos para os modos de vida, exigindo assim uma abordagem capaz

de combinar critérios ecológicos com outros de caráter social e

econômico. O rural mostra-se não mais uma categoria passível de

ser apreendida em termos setoriais, e sim territoriais. Duas são as

implicações principais disso em termos de instâncias empíricas a

serem mobilizadas em esforços de compreensão e de articulações

conceituais.

Primeiro, os processos sociais subjacentes àquilo que a lite-

ratura das ciências sociais aplicadas vem chamando por nova ru-

ralidade trouxeram consigo uma erosão das bases empíricas que

estavam na raiz do paradigma clássico de explicação do desenvol-

vimento rural, em cujo cerne estava sua redução aos aspectos agrí-

colas e agrários, ou, em outros termos, à sua dimensão setorial. A

relação entre sociedade e natureza, que encerra um primeiro tra-

ço distintivo da ruralidade, é objeto de um deslocamento em que

as formas de uso social dos recursos naturais passam do privilé-

gio à produção de bens primários a uma multiplicidade de pos-

sibilidades em que se destacam aquelas relativas à valorização e

ao aproveitamento das amenidades naturais, à conservação da

biodiversidade e à utilização de fontes renováveis de energia. As

relações de proximidade, segundo traço distintivo da ruralidade,

também são alvo de um deslocamento: a relativa homogeneida-

de que marcava as comunidades rurais dá lugar a uma crescente

heterogeneização e um certo esgarçamento dos laços de solidarie-

dade que eram a marca da ruralidade pretérita. A relação com as

cidades, último traço distintivo, deixa de se basear na exportação

de produtos primários para dar origem a tramas territoriais com-

plexas e multifacetadas, com diferentes mecanismos de composi-

ção entre os dois pólos, agora baseados em novas formas de inte-

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gração entre os mercados de trabalho, de produtos físicos e ser-

viços e também de bens simbólicos. De exportadora de recursos

como bens materiais e trabalho, os territórios rurais passam a ser

atrativos de novas populações e de rendas urbanas. Em suma, de-

saparece todo o sentido em tratar o rural exclusivamente como o

oposto do urbano, em proclamar seu desaparecimento, ou em re-

sumi-lo a apenas uma de suas dimensões atuais: o agrário. O sig-

nificado maior disso tudo é um certo esboroamento da visão pre-

dominante que sustentou as ciências sociais aplicadas sobre o

rural durante todo o século passado.

A segunda implicação surge como desdobramento da ante-

rior e, por limites de espaço, somente pode ser anunciada aqui.19

Um aspecto marcante do rural contemporâneo é a penetração

crescente em todas as esferas da vida rural de um longo processo

de racionalização que se manifesta em formas cada vez mais de-

sencantadas de condução da vida por parte dessas populações, em

mecanismos e instituições cada vez mais complexos de regulação

desses territórios e das formas de acesso e uso dos recursos natu-

rais e em uma mudança nas estruturas sociais locais com a intro-

dução de novas populações, uma valorização cada vez maior dos

conteúdos técnicos e instrumentais, o estilhaçamento dos interes-

ses e conflitos que antes eram unívocos e tendiam a derivar das

formas de posse e uso da terra. Não se trata de afirmar que toda

a população rural se transformou em calvinistas à imagem webe-

riana d’A ética protestante e o espírito do capitalismo, mas de cons-

tatar que, mesmo sendo o lugar por excelência onde ainda mais

se valoriza a proximidade com a natureza e a tradição, isso se faz

sob conteúdos sociais totalmente novos. Com a racionalização da

vida rural, é todo um universo ancorado na ruralidade agrária que

se dilui, para dar lugar a novas significações. Permanência do ru-

ral, associada à heterogeneização e aos conflitos disso derivados

passam a ser palavras-chave para compreender suas manifesta-

ções contemporâneas.

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19 Essa idéia é desenvol-vida em Favareto (2006),especialmente no capítu-lo “A racionalização davida rural”.

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VEIGA, José Eli. A face territorial do desenvolvimento. 1998. Re-

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WANDERLEY, Maria de Nazareth B. “A emergência de uma no-

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lo: Cia. das Letras, 1904, 2004.

WILLIAMS, Raymond. The city and the country. London: Hogarth

Press, 1985.

ARILSON DA SILVA FAVARETO é sociólogo, doutor em ciência ambiental pela USPe professor da Universidade Federal do ABC. Este artigo é uma versão modificadade um dos capítulos da tese de doutorado do autor, Paradigmas do desenvolvimen-to rural em questão – Do agrário ao territorial. Cf. Favareto (2006).

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R E S E N H A

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Os estudos sobre o manejo de

recursos comuns ou a apro-

priação coletiva de recursos na-

turais têm tomado diferentes

direções na última década, com

a emergência de novas proble-

máticas e o aprofundamento de

antigas questões, ao mesmo

tempo em que esforços inter-

disciplinares de pesquisa são

realizados em todas as regiões

do planeta. A ênfase dada aos

arranjos institucionais e aos di-

reitos de propriedade que mar-

caram as décadas de 1980 e

1990 cede espaço a temas como

identidade, saber tradicional,

globalização, políticas conser-

vacionistas e mudança ambien-

tal, entre outros.

Managing the commons, edi-

tado por Letícia Merino e Jim

Robson, reflete a ampliação das

temáticas atualmente relacio-

nadas aos estudos sobre recur-

sos comuns e se propõe a ofe-

recer um painel abrangente das

questões emergentes e das im-

plicações políticas da produção

acadêmica na área. A obra, or-

ganizada em quatro volumes e

lançada em 2005, sintetiza os

debates ocorridos durante a 10ª

Conferência Bianual da Inter-

national Association for the

Study of Common Property

(IASCP), realizada em Oaxaca,

México, em 2004, que reuniu

centenas de pesquisadores de

várias partes do mundo, com

expressiva participação de paí-

ses da América Latina.

Cada um dos volumes de

Managing the commons é de-

dicado a um tema específico:

direitos indígenas, desenvolvi-

mento econômico e identi-

dade; mercados, cadeias de

comercialização (commodity

chains) e certificação; paga-

mento por serviços ambientais;

e conservação da biodiversida-

de. Para cada volume, foram

elaborados uma introdução ao

MANAGING THE COMMONSLetícia Merino e Jim Robson (eds.)

Consejo Civil Mexicano para la Silvicultura Sostenible A. C., 2005

LUIS HENRIQUE CUNHA

MARISA B. ARAÚJO LUNA

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tema e um comentário final

com recomendações e questões

de pesquisa, acompanhados de

três artigos selecionados entre

os trabalhos apresentados em

Oaxaca.

O volume dedicado a refletir

sobre as relações entre o mane-

jo de recursos comuns e os

mercados é o mais polêmico e,

por isso mesmo, mais interes-

sante. Os estudos sobre apro-

priação coletiva de recursos na-

turais têm dado pouca atenção

ao papel do mercado, visto co-

mo uma força externa que de-

sorganiza regimes de proprie-

dade coletiva. Os artigos deste

volume propõem uma visão al-

ternativa em que os mercados

podem ser também aliados de

iniciativas de manejo de recur-

sos comuns: criando oportuni-

dades para a redução da po-

breza, gerando demanda para

produtos certificados ou atra-

vés da reconfiguração das

cadeias de comercialização. O

volume seria beneficiado por

uma abordagem que enfatizas-

se processos de mudança socio-

ambiental e uma análise sobre

a distribuição desigual de cus-

tos e benefícios nas relações en-

tre populações que manejam

recursos comuns e o mercado.

Mas, sem dúvida, é preciso con-

cordar com Dan Klooster, em

seu comentário final, em que os

mercados integram os recursos

comuns a estruturas globais de

produção e consumo e em que

essa questão merece mais aten-

ção do que tem recebido.

Já o volume dedicado aos di-

reitos indígenas sobre recursos

apropriados coletivamente se

ressente de uma recorrente

“romantização” dos commons.

Populações indígenas que não

reconhecem o conceito de pro-

priedade privada são con-

frontadas a estados nacionais

centralizadores e a processos

nacionais ou globais de privati-

zação dos recursos naturais

representam tanto simplifica-

ção quanto generalização pro-

blemáticas do ponto de vista

teórico e da prática política. O

volume, no entanto, operacio-

naliza conceitos relevantes co-

mo território, governança e

conhecimento tradicional.

Finalmente, os volumes sobre

pagamento de serviços am-

bientais e conservação da bio-

diversidade, apesar de focarem

questões emergentes das mais

relevantes, tanto do ponto de

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vista político quanto acadêmi-

co, com desafios grandes a pro-

jetos interdisciplinares de pes-

quisa, revelam a dificuldade em

assumir uma posição mais crí-

tica e distanciada dos processos

sociais em curso.

Managing the commons é

uma boa introdução ao debate

contemporâneo em torno do

manejo de recursos comuns e

um esforço bem-sucedido de

demarcação de algumas das

questões emergentes nesse

campo. Mas a coletânea não

aprofunda o debate teórico,

destinando-se mais a influen-

ciar políticas públicas do que

em contribuir com a problema-

tização dos conceitos e teorias

que orientam a pesquisa sobre

os recursos comuns.

1. Managing the commons:

payment for environmental

services. ISBN: 968-817-735-0,

paperback, 72 páginas.

2. Managing the commons:

conservation of biodiversity.

ISBN: 968-817-734-2, paperback,

61 páginas.

3. Managing the commons:

markets, commodity chains

and certification. ISBN: 968-817-

736-9, paperback, 76 páginas.

4. Managing the commons:

indigenous rights, economic

development and identity.

ISBN: 968-817-737-7, paperback,

72 páginas.

LUIS HENRIQUE CUNHA é doutor emdesenvolvimento socioambiental e pro-fessor do PPGCS/UFCG.

MARISA B. ARAÚJO LUNA é douto-randa do PPGAS/Unicamp e membrodo Ceres/Unicamp.

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CONTENTS

STATEMENT

BEING A “RURAL WORLD” SOCIOLOGIST AT UNICAMP:

VERY MUCH ALIVE MEMORIES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

Maria de Nazareth Baudel Wanderley

ARTICLES

TIMES AND SPACES IN BRAZILIAN RURAL WORLDS . . . . . . . . . 37

Carlos Rodrigues Brandão

CHANGE AND WATER IN SOUTH PORTUGAL: THE ALQUEVA

DAM AND THE VILLAGE OF LUZ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65

Clara Saraiva

THE FAMILY, AS IT APPEARS IN CHILDREN’S DRAWINGS . . . . . 105

Maria Aparecida de Moraes Silva, Beatriz Medeiros de Melo,

Andréia Peres Appolinário

THE LONG-TERM EVOLUTION OF RURAL-URBAN RELATIONS . . 157

BEYOND THE NORMATIVE APPROACH TO RURAL DEVELOPMENT

Arilson da Silva Favareto

REVIEW

MERINO, LETÍCIA & ROBSON, JIM, 2005. MANAGING THE

COMMONS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193

Luis Henrique Cunha, Marisa B. Araújo Luna

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PROCEDIMENTOS PARA PUBLICAÇÃO

Serão publicados resenhas, traduções e artigos e/ou ensaios iné-

ditos em língua portuguesa e espanhola que cumpram com os

procedimentos aqui especificados.

• Os artigos e/ou ensaios e as traduções devem ter em torno de

25 (vinte e cinco) laudas (incluindo imagens) e 70 (setenta)

toques de 30 (trinta) linhas; as traduções devem vir acompa-

nhadas da respectiva autorização do autor do artigo e/ou do

periódico.

• As resenhas devem conter entre 3 (três) e 5 (cinco) laudas, e o

livro resenhado deverá ter sido publicado (ou reeditado) no

máximo até dois anos, no caso de edição nacional, e cinco

anos, no caso de edição estrangeira.

• Cada artigo e/ou ensaio deverá conter o título e resumo em

português (ou, se for o caso, em espanhol) e inglês (abstract),

com aproximadamente 100 (cem) palavras e, no máximo, 4

(quatro) palavras-chave em português (ou espanhol) e em

inglês (keywords). Na última página deverá constar infor-

mação sobre a formação e filiação acadêmico-institucional

do autor.

• As notas devem vir em tamanho 10 (dez) ao final de cada pá-

gina, não podendo consistir em simples referências bibliográfi-

cas. Estas devem aparecer no corpo do texto com o seguinte for-

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mato: (sobrenome do autor, /espaço/ ano de publicação, /espa-

ço/ páginas), conforme o exemplo: (Weber, 1977, p. 160-2).

• A bibliografia deve aparecer no final do texto, em ordem alfa-

bética de sobrenome, e respeitar o formato da ISO (Internatio-

nal Standart Organization) ou da ABNT (Associação Brasileira

de Normas Técnicas), tal como aparece nos exemplos:

Livro

SAHLINS, Marshal. Islands of history. Chicago: The University

of Chicago Press, 1985.

Coletânea

DOUGLAS, Mary (org.). Witchcraft, confessions & acusations.

London: Tavistock Publications, 1970.

Artigo em coletânea

FERNANDES, Florestan. “Aspectos da educação na sociedade

Tupinambá”. In: SCHADEN, E. (org.). Leituras de etnologia bra-

sileira. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1976, p. 63-86.

Artigo em periódico

LÉVI-STRAUSS, Claude. “Exode sur exode”. L’Homme, Paris,

v. XXVIII, n. 2-3, p. 13-23. 1988.

Monografias, dissertações e teses acadêmicas

ROSA, Marcelo. O engenho dos movimentos: reforma agrária e

significação social na zona canavieira de Pernambuco. Tese de

doutorado em ciências humanas: sociologia. Instituto Universi-

tário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2004.

Documento eletrônico

KOOGAN, A. e HOUAISS, A. (ed.). Enciclopédia e dicionário di-

gital 98. Direção geral de André Koogan Breikman. São Paulo:

Estadão, 1998, CD-ROM.

Homepage

Bireme Centro Latino-Americano e do Caribe de Informações

em Ciências da Saúde. Biblioteca Virtual – BVS. Disponível em

<http://www.bireme.br>. Acesso em 13 fev. 2001.

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• Os anexos, gráficos, quadros e mapas devem ser encaminhados

em folhas separadas, numerados e titulados corretamente, com

a devida referência (se reproduzidos de outra fonte) e com in-

dicação do local de sua inserção no texto. Devem estar confec-

cionados de maneira a permitir sua reprodução direta.

As imagens, fotografias, gráficos, quadros, mapas etc. serão pu-

blicados em preto e branco.

• O envio de textos implica a cessão de direitos autorais e de pu-

blicação à revista. Esta não se compromete a devolver as cola-

borações recebidas.

Cada autor de artigo, ensaio, tradução e resenha receberá dois

exemplares da edição.

• Os originais devem ser encaminhados em disquete de 3,5” ou

CD-ROM, programa Word 7.0 for Windows (fonte Arial, tama-

nho 12, entrelinha 1,5), com 3 (três) cópias impressas, com en-

dereço completo, telefone, fax e e-mail.

• Os autores devem enviar seus textos para:

Centro de Estudos Rurais, IFCH/Unicamp

Rua Cora Coralina, s/n°, CEP 13081-970

Cidade Universitária “Zeferino Vaz”

Barão Geraldo, Campinas, SP, Brasil

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