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Capítulo 2 Pragmática - a constituição do pen- samento histórico na vida prática o God! That one might read the book of fale! Shakespeare, Hellrique IV. I Muitas análises dos fundamentos da ciência da história que pretendem assumir o papel de uma teoria da história e dão valor a uma elaboração sistemática começam com definições genéricas do que é história e tratam, da perspectiva de como os reconhecer, dos princípios mais importantes do pensamento histórico. 2 Tal proce- dimento pressupõe a constituição científica específica do pensa- mento histÓrlcõ'cómo nálural e não pergunta sobre sua orIgem nem" sobre as raZões desua-exIsiêndã:põrque-eIãTasSlITle' não'(fé'õutrâ modo. Ao définii~se, aqur;his'tória como campo de aplicação do conhecimento histórico, trata-se, regra geral, da história entendida como o objeto próprio do pensamento histórico em seu modo espe- cificamente científico. Por que isso se apresenta assim é raramente questionado, pois parece bem plausível que, à vi~ta dos resultados cognitivos obtidos pela ciência da história, se tome por história o que os historiadores, no sentido mais amplo, entendem ser seu ob- jeto. Para se investigar por que o conhecimento histórico assume um modo científico específico e explicar por que sua constituição científica se dá no modo de uma estrutura de pensamento e, ainda, I Shakespeare, Henrique IV, parte 11,ato 3, cena 1, verso 45. 2 Assim, por exemplo, Faber, 17Jeorieder GeschichtslVissellschaft (4).

RUSEN Razao Historica Cap2

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Capítulo 2

Pragmática - a constituição do pen-samento histórico na vida prática

o God! That one might read the book of fale!

Shakespeare, Hellrique IV.I

Muitas análises dos fundamentos da ciência da história quepretendem assumir o papel de uma teoria da história e dão valor auma elaboração sistemática começam com definições genéricas doque é história e tratam, da perspectiva de como os reconhecer, dosprincípios mais importantes do pensamento histórico.2 Tal proce-dimento pressupõe a constituição científica específica do pensa-mento histÓrlcõ'cómo nálural e não pergunta sobre sua orIgem nem"sobre as raZões desua-exIsiêndã:põrque-eIãTasSlITle' não'(fé'õutrâmodo. Ao définii~se, aqur;his'tória como campo de aplicação doconhecimento histórico, trata-se, regra geral, da história entendidacomo o objeto próprio do pensamento histórico em seu modo espe-cificamente científico. Por que isso se apresenta assim é raramentequestionado, pois parece bem plausível que, à vi~ta dos resultadoscognitivos obtidos pela ciência da história, se tome por história oque os historiadores, no sentido mais amplo, entendem ser seu ob-jeto. Para se investigar por que o conhecimento histórico assumeum modo científico específico e explicar por que sua constituiçãocientífica se dá no modo de uma estrutura de pensamento e, ainda,

I Shakespeare, Henrique IV, parte 11,ato 3, cena 1, verso 45.2 Assim, por exemplo, Faber, 17Jeorieder GeschichtslVissellschaft (4).

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por que o conhecimento histórico se dá dessa e não de outra manei-ra, é estritamente necessário ir além dessas constatações e pergun-tar pelos fundamentos da ciência especializada que não se esgotamem sua mera existência factual.

Quem busca tais fundamentos é obrigado a pisar o solo instá-vel da convicção relativamente difusa, pré-teórica e assistemáticados especialistas e encontrar, nele, razões seguras para fundamen-tar a plausibilidade da história como ciência. Tais razões podem serencontradas nos pressupostos do pensamento histórico, que sãotidos pelos historiadores como dotados de certa obviedade.

Não se pode tratar, por conseguinte, na fundamentação que se, busca, do uso exclusivo de determinado saber, que entraria nos-processos de reflexão, por assim dizer, do exterior. Pelo contrário,

,', a questão está em evidenciar o que já se pressupõe como naturalem tais reflexões desde o início e que, por isso mesmo, não recebe

" atenção particular. Esse pressuposto deve ser, pois, explicitado de.tal forma que seja compreendido como algo que sempre se admitiucomo natural- vale dizer, como pressuposto necessário, altamenteconsensual, do pensamento histórico em seu modo científico.

São as .situações genéricas e elementares da vida prática doshomens (experiênCias e interpretações do tempo) que constituem oque conhecemos como consciência histórica. Elas são fenômenoscomuns ao pensamento histórico tanto no modo científico quantoem geral, tal como operado por todo e qualquer homem, e geramdeterminados resultados cognitivos. Esses pontos em comum têmde ser investigados como genéricos e elementares, isto é, comoprocessos fundamentais e característicos do pensamento histórico.Esses processos representam a naturalidade corriqueira que se devesempre pressupor, quando se tenciona conhecer a história cientifi-camente.

A questão que nos interessa aqui pode ser explicitada mediantea seguinte consideração: o pensamento é um processo genérico ehabitual da vida humana. A ciência é um modo particular de reali-zar esse processo. O homem não pensa porque a ciência existe,mas ele faz ciência porque pensa. Se se puder estabelecer que essemodo particular, científico, do pensamento humano está enraizadono pensamento humano em geral, ter-se-á um ponto de partida para

responder à pergunta: por que o pensamento se dá e se deve dar nomodo científico?

Neste capítulo investigar-se-ão os fenômenbs genéricos e ele-mentares do pensamento histórico determinantes da história comociência. _Com..Q.....:.~pensamento'~é visto aqui como especificamentecientífico, pode-se falar em f~!lº!!1_enos.da COll~~.!1ciª.J1ÍstQ!t~ª,A história como ciência deve ser uma realização particular dopensamento histórico ou da consciência histórica - e esse procedi-mento particular deve ser visto como inseRde em seus fundamen-tos genéricos na vida corrente.

Para se saber o que significa conhecer historicamente de modocientífico, é preciso esclarecer o que significa p.~nsar historica-J!l~º!~,_Tenciono, pois, analisar os processos mentais genéricos eelementares da interpretação do mundo e de si mesmos pelos ho-mens, nos quais se constitui o que se pode chamar de consciênciahistórica. Buscar-se-á identificar, nesses processos, os momentosem que a histórica como ciência está "inserida".

OJitulQ ~'P.ragtl1-ª!iç~uer exp~imir que,as operações da coos-çiência na vida corren~ue se tencion~ inv~s_tigar e que se dãosempre. que§e.. p~l1§.ah.!s.tº!!f-ª.!I!ente~º-s.!º _identifica das qu~ndo seanalisª_ª_vJ.çl~Lffilotidia!l:ª_º-º~.hQllte~Qº_.~l!~S.9_ºª_Cl!!ªL!ª!§-ºp~raçºesse!:e~i~~~. A peculiaridade dessas operações da consciência -poder-se-ia designá-Ias também como atos de fala - só se evidenciaquando se reconhece qual sua "inserção na vida": por que ocorrem,que resultados alcançam na vida prática quotidiana dos que as rea-lizam. As funções do pensamento histórico aparecem, à luz de umaanálise desse tipo, não como algo relativo ao campo de aplicaçãoexterior ao saber histórico, mas como algo intrínseco ao pensa-mento histórico, cuja estrutura e forma determinam de maneiramarcante.

Esse tipo de problematização vai além da distinção entre teoriae práxis, entre conhecimento histórico no âmbito da ciência dahistória e aplicação desse conhecimento fora da ciência, e busca aconexão íntima entre o pensamento e a vida, na qual as operaçõesda_COl!§çiê}J,c!ª_º!s.tóri_~asão reconhecidas como produtos da vidaprática concreta. Somente a partir desse plano pode-se explicitar oque é "teoria" no sentido de um saber histórico obtido e constituído

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Considerações sobre ciência
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Que operações da vida quotidiana constituem a consclenciahist6rica como fundamento de todo conhecimento hist6rico? Essa éa questão que orienta a presente tentativa de desvelar os funda-mentos da ciência da hist6ria na vida quotidiana concreta e deconstituir a hist6ria como ciência com base neles.

Para se chegar a esses fundamentos, é preciso demonstrar queo resultado obtido pela ciência da hist6ria, isto é, o conhec.imentohi~!Qrico,é ~m ..Ql9Q9 particular de um processo genérico e ele-mentar do pensamento huma.no. Para tanto, é necessário extrair doproduto cognitivo específicamenfe hist6rico tudo o que for pr6prioà sua particularidade científica; com isso, impor-se-á ao olhar oque nele houver de genérico e elementar. Como resultado desse pro-cesso abstrativo, que deve conduzir aos fundamentos da ciência dahist6ria, obtém-se, como grandeza genérica e elementar do pensa-mento hist6rico, a consciência hist6rica: todo pensamento hist6rico,em quaisquer de suas variantes - o que inclui a ciência da história -, éuma articulação da consciência hist6rica.3 A consciência históricaé a realidade a partir da qual se pode entender o que a história é,como ciência, e por que ela é necessária.

No que se segue, analisar-se-á a. consciência _~j§!.óriqLÇQ1UO

fundamento da ciência da história. Essa análise tem por premissaque nenii~mª. concepçaoparticular da história,. vinculada a tal .ouqua.l cultura, seja-pressuposta como f~l1damento da ciência da his-tóiia{polS:-seass}m fosse, requerer-se-ia aquela concepção pelaqüãr a ciência da história estaria plenamente constituída, o queacarretaria que esta seria o fundamento de si pr6pria). A consciên-cia hist6rica ~~~ ..~alisada como fenômeno do mundo vital, ou~eja,

3 Cf., a esse respeito, sobretudo, Jeismann, GeschichtsbewIIsstsein (6) e tambémU. Becher/J. Rüsen, Geschichtsbewusstsein, em M. e S. Greiffenhagen/R. Praetorius(eds.), HandwiJrterbllch zIIr politischen KIIltllr der Bllndesrepllblik Delltschland,Opladen, 1981, p. 180-183.

como uma forma da consciência humana que está reladonada ime-"tfiata:mente cOiilãVídã·liuíiíaiia·-pfâti~-ã.4-·Ê-êsteõcãSoquanaõSeeDfêiioe~cÕÔsciêõcia-~ist6ri<:J· a~u1l1a_d~s_?xp-e.~açõ:.~.~e~t~iscom as .-9--- os homeils-lilte-"preta~sua ex:pe.!I~!1claAaevoluçaotemporal de SêUinunõõ-êoé srmesmos, de..forma-tal-que'possamorientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo.

Pressuposto dessa definição e pilar de toda a argumentação se-guinte é a tese de que o homem tem de agir intencionalmente parapoder viver e de que essa intencionalidade o define como um serque necessariamente tem de ir além do que é o caso, se quiser viverno e com que é o caso. A consciência histórica está fundada nessaambivalência antropológica: o h01.l1emsó I~oºe.._'Ôye(.Do_mundo,isto é, só consegue relacionai:se cõm -ã nat~reza, com os demàIshomens e consigo mesmo se não tomar 9nlJJJl,dº._e....~_si mesmocomo dados puros, mas sim intêipreiá-Íos em função das-intençÕesde sua ação e paixão,2.em._que.se..represeniaJl1go..que_nãQsã.Q.Comoufrãspaiávras·;-õ agir é um p~oc~dim~nto típico da_vi~a humanana medida em qúe;nele, o homem, com.os objetivos.qu~busca.naação, em princípio se transpõe sempre para além do que ele e seumundo são a cada momento. Na linguagem da tradição filosófica, osuperávit intencional do agir humano para além de suas circunstân-cias e condições foi denominado ~o". Pode-se falar também,contudo, de carência estrutural do homem. Ela se caracteriza pelofato de que a satisfação de determinadas carências é sempre tam-bém um processo de produção de novas carências.5

Pode-se caracterizar e explicar essa constatação antropológicade um superávit de intencionalidade do homem como agente e pa-ciente dê mil e uma lnanéiras. Nosso-íntêfêssé-·ãqui se restringe aofato de que ~sse superávit inclui uma relação do homem com seut~mpo, na qual se enraízam as operações -pfât1C-ãS·da-·consctênciã

cientificamente, em relação e em contraste com a práxis, na qual sefaz uso dele.

Experiência do tempo e auto-identidade - a origem daconsciência histórica

4 Sobre o termo "mundo vital", ver E. Husserl, Die Krisis der europiiischel1Wissel1schaftel1 I1l1ddie transzendentale Phiinomel101ogie, Den Haag, 1962;P. Janssen, Geschichte lllld Lebel1swelt. Eil1 Beitrag zur Diskussiol1 zu HusserlsSpiitwerk, Den Haag, 1970; Berger/Luckmann, Die gesellschaftlicheKonst1'llkfion der Wirklichkeit (6); Schütz/Luckmann, Strukfuren der Lebel1swelt (6).

5 Assim, por exemplo, na antropologia de Karl Marx, como exposta no capítulosobre Feuerbach na "Ideologia alemã" (cf. edição crítica do texto em DeutscheZeitschriftfiir Philosophie, 14 (1966), p. 1.199-1.254, t:specialmente p. 1.211).

Alexandre
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definição de consciência histórica
Alexandre
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A consciência histórica está fundada na necessidade de interpretação do homem do mundo que vive.
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histórica que são pesquisadas. Pois esse superávit tem uma rele-vância temporal: ele se manifesta sempre de modo todo especialquando os homens têm de dar conta das mudanças temporais de sie do mundo mediante seu agir e sofrer. Nesse momento tais mu-danças tornam-se conscientes como experiências perante as quais ohomem tem de formular intenções, para poder agir nelas e por cau-sa delas. O homem necessita estabelecer um quadro interpretativodo que expérim:eíltacomo mudança de si mesmo e de seu mundo,ao lo~go do tempo, a fim de poder agir nesse decurso temporal, ouseja, assenhorear-se dele de forma tal que possa realizar as inten-ções de seu agir. Nessas intenções há igualmente um fator tempo-ral. Nelas o homem vai além, também em perspectiva temporal, doque é o caso para si e para seu mundo; ele vai, por conseguinte,sempre além do que experimenta como mudança temporal, comofluxo ou processo do tempo. Pode-se dizer que o homem, com suasintenções e nelas, projeta o tempo como algo que não lhe é dado naexperiência. (Tomemos um exemplo radical: ele pr~ieta para siuma era dourada e sabe'que vive num tempo de ferro; ou sonhacom sua própria imortalidade, a exemplo dos deuses eternamentejovens, e sabe, pela experiência, que tem de morrer.)

Naturalmente, a jJvergência entre tempo como intenção etempo como experiência não deve ser pensada de forma tão dico-iômica como foi exposto aqui. Na realidade, ambos os momentosmesclam-se; decisivo é que se possa distinguir com clareza, nessamescla, os dois tipos de consciência do tempo (chamados, aqui, de"experiência" e "intenção"). Nessa distinção funda-se uma dinâmi-ca da consciência humana dotêmp9 na qual se realiza o superávitde intencionalidade do agir (e do sofrer) humano mencionado ante-riormente.

A consciência histórica é, assim, o modo pelo qual a relaçãodinâmica entre experiência do tempo e intenção no tempo se realizano proce.§soçla xil!a ~umana .. (O termo "vida" designa, obviamente,mais do que o mero processo biológico, mas sempre também - nosentido mais amplo da expressão - um processo social.) Para essaforma de consciência, é determinante a operação mental com aqual o homem articula, no processo de sua vida prática, a experiên-cia do tcmpo com as intcnçl'>cs110 tcmpo c cstas com aquelas. Essaoperação pode ser descrita como orientação do agir (e do sqfrer)

humano no tempo. Ela consiste na articulação de experiêllCias eintenções com respeito ao tempo (poder-se-ia mesmo falar <letem-po externo e tempo interno): o homem organiza as intenções de-terminantes de seu agir de maneira que elas não sejam levadas aoabsurdo no decurso do tempo. A consciência histórica é o t,abalhointelectual realizado pelo homem para tornar suas intenções de agirconformes com a experiência do tempo. Esse trabalho é efetuadona forma de interpretações das experiências do tempo. Estas sãointerpretadas em função do que se tenciona para além das condi-ções e circunstâncias dadas da vida.

·jPode-se descrever a operação mental com que a consciência( história se constitui também comC!-c.9!!stJtuição~o ~ent(d....?_1.a..e~pe-. riência do tempo. Trata-se de um processo da consciência em que

-áSexpei-lêncTãsdõ' tempo são interpretadas com relação às inten-ções do agir e, enquanto interpretadas, inserem-se na determinaçãodo sentido do mundo e na auto-interpretação do homem, parâme-tros de sua orientação no agir e no sofrer. O termo "sentido" expli-cita que a dimensão da orientação do agir está pvesente naconsciência histórica, pois "~igo" é a_sul11ado~p()ntºs de "vistaque estã()_D.él.paseda decisão sobre objetivos. A consciência histó-ríCãilão se constitui (pelo menos não em primeira linha), pois, naracionalidade teleológica do agir humano, mas sim por contrastecom o que poderíamos chamar de "racionalidade de sentido". Tra-ta-se de uma racionalidade, não da atribuição de meios a fins ou defins a meios, mas do estabelecimento de intenções e da determina-ção de objetivos. .

Pode-se. considerar os resultados interpretativos obtidos pelaconsciência histórica a partir da distinção de duas qualidades tem-porais neles presentes. As experiências do tempo são carentes deinterpretação na medida emque--se'contrapõem ao que o homemtenciona no agir orientado por suas próprias carências. Elas care-cem de interpretação porque são sofridas. O tempo é, assim, expe:-rimentado como um--õbstáéul0 ao -agir, sendo vivido pelo homemcomo uma mudança do mundo e de si mesmo que se opõe a ele,certamente não buscada por ele dessa forma, que, todavia, nãopode ser ignorada, se o homem continua querendo realizar suasintenções. Pode-se chamar esse tempo de tempo natural. Um~x~l11plo radic,al desse tempo im~diente e .resistente é a morte.

Alexandre
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definição de consciência histórica
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a definição de vida como processo social permite pensar esse processo de forma interativa.
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o tempo é experimentado, aqui, como perturbação de uma ordemde processos temporais na vida humana prática, como perturbaçãode uma ordem na qual o homem tem de pensar seu mundo e suavida, para poder orientar-se corretamente. O conceito-síntese de talperturbação, que só pode ser controlada mediante esforço própriode interpretação, é a contingência.

Por 0.E.~~~~,~_a_~~setempo, pode-se chamar, de tempo humanoaquele érnque as intenções e as diretrizes. do agir são i"epresentadase formuladas como um processo temporal organizado da vida hu-mana, prática. Esse tempo, como intenção de um fluxo temporaldeterminante das condições vitais, tem influência sobre o agir hu-mano que projeta, na medida em que os agentes querem afirmar a simesmos mediante o agir e lograr reconhecimento. (Analogamente aoexemplo da morte, referido anteriormente, pode-se mencionar comoexemplos desse tempo os inúmeros símbolos que, na organizaçãocultural da vida humana"representam a intenção de ultrapassar ousuperar os limites de sua própria vida.)

O ato constitutivo da consciência histórica, que consiste nainterpretação da experiência do tempo com respeito à intençãoquanto ao tempo, pode ser descrito, por recurso à distinção básicaentre as duas qualidades temporais, como transformação intelectualdo tempo natural em tempo humano. Trata-se de evitar que o ho-mem, nesse processo de transformação, se perca nas mudanças deseu mundo e de si mesmo e de, justamente, encontrar-se no "trata-mento" das mudanças experimentadas (sofridas) do mundo e de sipróprio. A consciência histórica é, pois, guiada pela intenção dedominar o tempo que é experimentado pelo homem como ameaçade perder-se na transformação do mundo e dele mesmo. O pensa-mento histórico é, por conseguinte, ganho de tempo, e o conheci-ment~ histórico é o tempo ganho.,-1 Põe-se agora a questão acerca do "se" e "como" esse result.adoda consciência histórica pode ser dé~crito como uma ~p~raçãounitár~~_dll.~Q.ns~iên~ia,como um processo coerente de pensamen-

Jo:-EXiste uma interdependência estrutural entre as operações daconsciência, na qual se dã a constituição de sentido sobre a experiên-cia do tempo aqui esboçada? Deve-se tratar de um ato de fala, cujauniversalidade antropológica não pode ser contestada e com res-peito à qual se pode demonstrar ser ela determinante da especi-

ficidade do pensamento histórico e, com isso, da peculiaridade doconhecimento histórico-científico (de uma forma que ainda seabordará). Em um ato de fala desse tipo, no qual se sintetizam, emuma unidade estrutural, as operações mentais constitutivas daconsciência histórica, no qual a consciência histórica se realiza,com efeito existe: a narrativa (histórica). Com essa expressão,designa-se o resultado intelectual mediante o qual e no qual aconsciência histórica se forma e, por conseguinte, fundamentadecisivamente todo pensamento-histórico e todo conhecimentohistórico cientifico.6

É uma questão aberta se e ~t§. que ponto ofundamento do co-nhecimento histórico~(;i~ntífico. na vidaprática.'esfá 'suficientementecobefio-=-p.~f~'.,~~~~!!~ de @ã.!!§) A consciência histórica seéõnstituiria sempre mediante a narrativa? Essa questão não seráexaminada aqui em pormenor. Ao invés, serão destacadas quecondições devem ser satisfeitas, na operação mental da narrativa,para que esta possa ser considerada como constitutiva da consciên-cia histórica. Que fatores participam decisivamente da for"?llção.sfaconsciência históriê<i no processo narrativo?' ESsa questão tem deser posta se se quiser analisar o fundamento do conhecimento his-tórico na vida prática, pois há grande multiplicidade de interpreta-ções da experiência do tempo mediante narrativa que dificilmentese consegue harmonizar com o que se entende por pensamentohistórico em geral e por conhecimento histórico em sua forma cientí-fica específica, em particular. (Assim, por exemplo, a ficçãocientífica é uma forma de interpretação narrativa da experiência dotempo que também pertence, como orientação ficcional no tempo,ao âmbito global da orientação (cultural) da vida humana práticano tempo.)

Para a questão da especificação buscada da narrativa comoconstituição de sentido sobre a experiência do tempo, é relevante adistinção tradicional entre narrativa ficcional e não-ficcional, dis-tinção essa que bem deve corresponder à autocompreensão da

6 Cf. R-V. Gumbrecht, Das in vergangenen Zeiten Gewesene so gut erzahlen, aIs obes in der eigenen Welt ware, Versllch zur Anthropologie der Geschichtsschreibung,in: Koselleck!Lutz/Rüsen (eds.), Formell deI' Geschichlsschl'eibllllK (3), p. 480-513;J. Rüsen, Die vier1)'pell des hislOl'ischell EI'ziihlells, id., p. 514-605.

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Jarn Rüsen

maioria dos historiadores. Com ela obscurece-se, no entanto, o fatode que na historiografia também existem elementosJiccionais.7Além do mais, essa distinção é problemátié'ã-po;q~e o "sentido"que é constituído sobre a experiência do tempo mediante a inter-pretação narrativa e.§.tt!lIéJttgª-di~Ji!l:çãQ.entre ficção e facticidade.Nesse "sentido", como já se indicou, mesclam-se tempo natural etempo humano em uma unidade abrangente.

Em que conteúdo se pensa, quando se fala de constituição desentido sobre a experiência do tempo pela consciência históricahumana mediante uma narrativa que trata de "realidade" e não de"imaginação" (ficcional)? &sa distinção origina-se de uma trípliceespecificação da operação intelectual da narrativa no mundo davida concreta, determinante do que se pode chamar de narrativahistórica como constitutiva da consciência histórica.

(1) ~rrativa_c~:)flstitui (especificamente) a consciência histó-..ri.c--ª. ~!_Ill.ed!daçmque recorre a lembranças para interpretar as_~~p~~e~~la~ ~o tempo. A Ic:mb~ançaé, para a constituição da cons-ClenCla hlstonca, por consegumte, a I:e.IÇlçãodeterminante com ae_~periê_nc.iado teOl,po.,(Esse tipo de relação com a experiência é oque está, afinal, na base da distinção entre a narrativa historiográfi-ca e a ficcional ou "literária" em sentido estrito). Esse recurso àlembrança deve ser pensado de forma que se trate sempre da expe-riência do tempo, cuja, realidade atual deve ser controlada pelaação, mas que também admita ser interpretada mediante mobiliza-ção da lembrança de experiências de mudanças temporais passadasdo homem e de seu mundo. O passado é, então, como uma florestapara dentro da qual os homens, pela narrativa histórica, lançam seuclamor, a fim de compreenderem, mediante o que dela ecoa, o queIhes é presente sob a forma de experiência do tempo (mais preci-samente: o que mexe com eles) e poderem esperar e projetar umfuturo com sentido.

Não se deve entender tudo isso, todavia, como se a constitui-Ç~2dá consciência histórica pela narrativa histórica se limitasse

7 Cf.,.a esse respeito, Hayden White, TIle fictions or factual representation, in: H.Wlute (ed.), Topics o/ discollrse. Essays in cultural criticislll, Baltimore, 1978,p.121-134. ,

à recuperação dO,passado pela le!!!!?!llllSf\'Seja de que modo que aconsciência histórica penetre no passado - por mais longe que suadimensão temporal se estenda nas profundezas do passado ou quepossa ainda parecer que percamos de vista, no itinerário dos arqui-vos da memória, os problemas do presente -, o impulso para esseretorno, para esse resgate do passado, para essa dimensão de pro-fundidade e para o itinerário dos arquivos é sempre dado pelas ex-periências do tempo presente. Não há outra forma de pensar aconsciência histórica, pois é ela o local em que o passado é levadoa falar - e o passado só vem a falar quando questionado; e aquestão que o faz falar origina-se da carência de orientação davida prática atual diante de suas virulentas experiências no tempo.A apreensão do passado operada pelo pensamento histórico naconsciência histórica baseia-se na circunstância de que as expe-rTêllcias do tempo presente só podem' ser interpretadãs -cámoexperiências, e o futuro apropriado como perspectiva de ação, se asexpedêilcTasdo' tempóforem relaeio'riadas 'cõm"âs-ôo)a~sado, oque' se'processa 'na lembrança interpreültivaque as faz presentes;SomenTedessã'fôrma obtém-se'uma'yi~,ãº~~ conjunto das experiên-cias do tempo presente e somente então os interessados podemorientar-se por elas. Elas se tornam referíveis a outras experiências,sempre já interpretadas pela lembrança; sem tal referência seriamelas pura e simplesmente ininteligíveis, orientar-se por elas seriaimpossível e, por conseguinte, tampouco seria possível agir comsentido a partir delas.

A lembrança flui natural e permanentemente no quadro de orien-tação da vida prática atual e preenche-o com interpretações d'otempo; ela é um componente essencial da orientação existencial dohomem. A consciência histórica não é idêntica, contudo, à lem-brança. Só se pode falar de consciência histórica quando, parainterpretar experiências atuais do tempo, é necessário mobilizar alembrança de determinada maneira: ela é transposta para o pro-cesso de tornar presente o passado mediante o movimento da nar-rativa.R A mera subsistência do passado na memória ainda não éconstitutiva da consciência histórica. Para a constituição da consciên-cia histórica requer-se uma correlação expressa do presente com o

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passado - ou seja, uma atividade intelectual que pode ser identifi-cada e descrita como narrativa (histórica).

(2) l.l~a segunda especificação da narrativa como fundamentodo conhecimento histórico na vida prática fica clara quando seexamina mais de perto o processo referido, no qual a memória éP!?priamente induzida pela narrativa (histórica). A narrativa cons~titui a consciência histórica ao representar as mudanças temporaisdo passado rememoradas no presente como processos contínuosnos quais a experiência do tempo presente pode ser inserida inter-pretativamente e extrapolada em uma perspectiva de futuro. AslP:udanças no presente, experimentadas como carentes de interpre-tação, são de imediato interpretadas em articulação com os pro-cessos temporais rememorados do passado; a narrativa históricatoma presente o passado, de forma que o presente aparece comosua continuação no futuro. Com isso a.expectativa do futuro vin-cula-se diretamente à experi~ncia do pa~sado: a narrativa históricarememora o passado sempre com respeito à experiência do tempopresente e, por essa relação com o presente, articula-se diretamentecom as expectativas de futuro que se formulam a partir das inten-ções e das. diretrizes do agir humano. Essa íntima interdependênciade passado, presente e futuro é concebida como uma representaçãoc!acontinuidade e serve à orientação da vida humanâprática atual.9

São pois as representações da continuidade que possibilitam,~o processo de constituição de sentido da narrativa histórica, queas lembranças do passado sejam articuladas com o presente de ma-

l neir.a que as experiências do tempo neste predominantes possam\ser mterpretadas. O modo com que a narrativa histórica mobiliza amemória da evolução temporal do homem e de seu mundo no pas-sado toma possível que as mudanças temporais experimentadas no~resen~e ganhem um sentido, isto é, possam transpor-se P.ªra asmtençoes e as expectativas do agir projetado no futuro. O(el" daligação do passado com o futuro, pelo presente, é forjado pela .nar-~ativa histórica com as representações da continuidade que abran-

9 A esse respeito, cf. o trabalho fundamental de Baumgartner, KOl1lil1uiliil II/ldGeschichle (6).

gem as três dimensões temporais e as sintetizam ~a unidade doprocesso do tempo. Sem essas representações da continuidade, amemória do passado não poderia ser articulada com a interpretaçãodo presente e com a expectativa do futuro, de modo l1luea ~ºr~seja ~fetivamente um elemento integrante daconsçiência humanado tempo. A narrativa histórica toma presente o passado, sempreem uma consciência de tempo na qual passado, presente e futuroformam uma unidade integrada, mediante a qual, justamente,constitui-se a consciência histórica.

Seria totalmente equivocado, pois, entender por consciênciahistórica apenas uma consciência do passado: trata-se de uma cons-ciência do passado que possui uma relação estrutural com a inter-pretaçiio do presente e com a expectativa e o projeto de futuro.A narrativa histórica organiza essa relação estrutural das três di-mensões temporais com representações de continuidade, nas quaisinsere o conteúdo experiencial da memória, a fim de poder inter-pretar as experiências do tempo presente e abrir as perspectivas defuturo em função das quais se pode agir intencionalmente. A nar-rativa histórica constitui a consciência histórica como relação entreinterpretação do passado, entendimento do presente e expectativado futuro mediada por uma representação abrangente da continui-dade.lO Essa mediação deve ser pensada como especificamentehistórica por operar a inclusão da interpretação do presente e dofuturo na memória do passado.

(3) Uma terceira especificação da narrativa como operação in-telectual decisiva para a constituição da consciência histórica dá-sequando se pergunta pelos critérios determinantes das representa-ções da continuidade. Com respeitü·-aque se ·câncebe-ã-cootinuldãàe?6que entra em ação no processo de representação da continuidademediante a narrativa histórica como elemento unificador da relaçãoentre passado, presente e futuro? Do que se trata, afinal, na consti-tuição da consciência histórica, quando se afirma que se deve reali-

10 Que a consciência história seja determinada por uma "relação entre interpreta-ção do passado, entendimento do presente e expectativa do futuro" é ressaltadopor K-E. Jeismann, GeschichlsbewlIsslsein, em Bergmann et alii (eds.): Han-dbuch der Geschichtsdidaktik (2), vaI. 1, p. 42.

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zar, nela, a unidade interna das três dimensões temporais? Essasquestões podem ser respondidas pela remissão à circunstância deque, J.laconstituição de sentido sobre a experiência do tempo mediantea narrativa histórica, se trata afinal de contas dC\identidade ~daque-le.s que têm de produzir esse sentido da narrativa (histórica), a fimde poderem orientar-se no tempo. Toda narrativa (histórica) estámarcada pela intenção básica do narrador e de seu público de nãose perderem nas .mudanças de si mesmos e de seu mundo, mas demanterem-se seguros e firmes no fluxo do tempo.11 A experiênciado tempo é sempre uma experiência da perda iminente da identidadedo homem (também aqui-a experiência mais radical é a da morte).A capacidade dos homens de agir depende da aptidão em fazervaler a si próprios, a sua subjeti"idade, portanto, na relação com anatureza, com os demais homens e consigo mesmos, como perma-nência na evolução do tempo, à qual precisam reagir com suasações e que, simultaneamente, produzem por essas mesmas ações.Os homens têm de interpretar as mudanças temporais em que estãoenredados a fim de continuarem seguros de si e de não terem derecear perder-se nelas, ao se imiscuírem nelas pelo agir, o que pre-cisam fazer, para poderem viver. A resistência dos homens à perdade si e seu esforço de auto-afirmação constituem-se como identi-dade mediante representações de continuidade, com as quais rela-cionam as experiências do tempo com as intenções no tempo: amedida da plausibilidade e da consistência dessa relação, ou seja, ocritério de sentido para a constituição de representações abrangen-tes da continuidade é a,permanência de si mesmos na evolução do

\ tempo. A narrativa histórica é um meio de constituição da identi-, dade humana.

Está respondida, assim, a questão sobre que operações da vidaprática constituem a consciência histórica como pressuposto e fun-damento do conhecimento histórico: a consciência histórica cons-

i f titui-se mediante a operação, genérica e elementar da vida prática,do ..J.li!Wlr,com a qual os homens orientam seu agir e sofrer no tem-

po. Mediante a narrativa histórica são formuladas representaçõesda continuidade da evolução temporal dos homens e de seu mundo,instituidoras de identidade, por meio da memória, e inseridas, comodeterminação de sentido, no quadro de orientação da vida práticahumana.

Quando se reformula a pergunta: "O que é história?" para"Como surge, dos feitos, a história?", não se parte mais do pressu-posto de que exista "a história" como uma realidade pronta e com- \pleta fora da consciência humana, que só precisa ser apreendida e japropriada, cognitivamente, por esta. Analogamente à questão posta Iquanto aos fundamentos do conhecimento histórico-científico navida prática, pergunta-se agora pela constituição do objeto desseconhecimento. Essa questão é eminentemente crítica, pois proble-matiza toda representação ingênua de um conteúdo previamentedado que se chame "a história" e pergunta o que se pode e deve -ou não - incluir nesse tipo de representação.

A pergunta sobre como, dos feitos, surge a história pressupõeque a história é algo que só se constitui dos feitos, ou seja, dasações humanas, uma vez efetivamente realizadas; ela pressupõe,por conseguinte, que a história não participa da mesma realidadeque as ações humanas, das quais, no entanto, se constitui.

Droysen descreveu esse contexto da seguinte maneira:

11 Cf., a esse respeito,Lübbe,Geschic"'sbegrtf! ,md Gescl,ic"'sin'eresse (6); K.Bergmann,Identitlit.in:Bergmann(ed.),Ha"dbllch der Gesc"ic"'sdidak'ik (2),vaI.1, p.46-53;O. Marquard/K.Stierle(eds.),[denlilal, Miinehen,1979.

o agir e o ser em cada presente determinam-sea partir das oca-siões, motivos, finalidades, caraeteres presentes a cada vez; tor-nam-se história, mas não a história. Com outras palavras: asatividades com as quais nossa ciência se ocupa ocorrem, pre-sentemente, sob inúmeras categorias, mas justamente não sobaquela com a qual as consideramos, vemo-Ias como história.Elas só são históricas porque nós as concebemos como históri-cas, não em si e objetivamente, mas exclusivamente em nossaconcepção e por intermédio dela. Precisamos, por assim dizer,transpô-Ias. Ao mesmo tempo fica claro, porém, que somente

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Razão histórica

após essa transposição a partir dos feitos se faz história, isto é,recupera-se para a memória, para a consciência histórica, para acompreensão, o extrínseco, o ultrapassado, segundo outras cate-gorias. Apenas o que é rememorado não passou ...12

~~ s?,as operações de. rem:moração ~iJ6rica oa narrativa).histórIa surge nessa teona, pOIS,de uma mlportação, para o ma-

teria~ da exp.eriência do passado, de valores p~esentes nas intençõesda Vida prátIca atual; somente à luz dessas idpias de valor o passa-do aparece como história. Sem essa luz, ele é obscuro e mudo.

. Essa resposta subjetivista à pergunta sobre o que é "história"como conteúdo da consciência histórica, propriamente, leva emconta o fato de que, no tratamento cognitivo do passado, no qual seconstitui uma representação de algo como "história", intenções notempo desempenham um papel decisivo, que - por definição - vaialém da experiência da evolução temporal do homem e de seumundo no passado. As experiências do tempo só servem para orien-tar a vida prática atual quando decifradas mediante essas intenções.Sem estas, ou seja, tomadas puramente em si, as experiênciasseriam, com efeito, sem sentido.

Contra essa tese de que a ação humana só se torna históricamediante uma reflexão posterior, pode-se levantar a seguinte obje-ção: certos atores recorrem à história para justificar suas açõesatuais e muitos comentadores do agir contemporâneo investem nahistória para destacar a importância da ação ora em curso. Tam-pouco é raro que se tenha a impressão, na própria avaliação dosacontecimentos contemporâneos, de que "está acontecendo histó-ria". O que isso quer dizer? Não acontece justamente assim, quedeterminada ação - embora nem todas - seja história no momento~es.mo em que ocorre? Quem atribui a tal ação essa qualidade,dlstmgue-a assim das demais e empresta-lhe uma propriedade quea faz entrar na história. Essa distinção confirma, no entanto, a dife-rença expost~. acima entre feito~_eJJ.islória.Ela confirma até mesmoârese-dé-que, somente após certo tempo, algo seja visto como"histórico". .

Na constatação aqui efetuada, o ponto de vista posterior é to-mado apenas como um tipo de antecipação fictícia dos próprioscontemporâneos. Os contemporâneos supõem, por conseguinte,que uma ~onsideração posterior do que está acontecendo agora,uma conSideração, portanto, na qual o acontecimento é passado,conduz a uma avaliação que pensam poder antecipar desde já.

. ~e~mo_ assi~, a resposta subjetivista à pergunta sobre' o que éa hlstona nao satIsfaz. O papel desempenhado pela experiência do

~r_ P!tncípio, nega-se aqui à história como suma de todos osobjetos possíveis doconIiecimento histórico qualquer objetividade:

lhistóriaé en~endida como resultado de uma concepção de ações

humanas (feitos) que somente se produz quando essas ações já.ocorreram. Com outras palavras: nem tudo o que tem a ver com oh~~~1!l_e com seu mundo é história sÓ porq~e já ~~onie~eu,· masexclusivame.nte quando se to{na presente, como passado, em umprocesso consciente de rememoração.

. P~rece então necessário concluir que só é história o que oshlstonadores extraem do que aconteceu. Ela não existiria "em si",mas consistiria apenas no que se extrai do passado post festum.Essa conseqüência subjetivista do entendimento gnoseológico, quereconhece ser a "história" constituída só pelas operações da cons-ciência que produzem a instituição de sentido sobre as experiênciasdo tempo, foi extraída, por exemplo, por Max Weber. Para ele,"cultura" (o conjunto universal dos objetos das ciências humanas esociais) é "extrato limitado da infinitude sem sentido do mundorealizado da perspectiva do homem mediante sentido e significad~refletidos".'3 "Em si", ou seja, afastado da atribuição de sentidopela consciência histórica humana, o passado humano não temsentido, isto é, não está estruturado na forma de um constructo que~ossamos compreender com~ história. ~lMJ-º-ªº se tºJllll~i§tó-[!a_.~~~~d.~ expressamente __!!!terpre~!!~º-_c.º01QJal; abstrai ndo-sedessa interpreTã-çâo,"erénáo passa de material bruto, um fragmentode fatos mortos, que só nasce como história mediante o trabalhointerpretativo dos que se debruçam, reflexivamente, sobre ele. Se-gundo Weber, esse nascimento depende diretamente de valores ouidéias de valor que são utilizados pelos respectivos sujeitos daconsciência histórica como pontos de vista para o conhecimentohistórico (nós diríamos: de acordo com os quais esse sujeitos orga-

12 Hislorik, ed. Leyh (4), p. 180.13 Gesammelle AlIfsãlze zllr Wissenschaftslehre (4), p. 180.

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passado na consciência histórica parece subestimado. A experiênciahistórica contém, por certo, o que realmente ocorreu no passado.Essa realidade aparece, na teoria subjetivista da história, do jeitoque se gostaria, como uma peteca entre as intenções de hoje e asprojeções do amanhã. A densidade da experiência, que afirma oque realmente ocorreu (mesmo contra todas as intenções), não ésuficientemente levada em conta.

Diametralmente oposta à resposta subjetivista à questão sobreo que é a "história" como conteúdo da consciência histórica, há a

"resposta ,que reforça seu conteúdo exper·iencial. Nesse caso, alribui-'se à história, por certo, uma qualidade objetiva: história é vistacomo dada nas circunstâncias respectivas em que se dão ou sederam as ações humanas. Nessa perspectiva, os processos funda-mentais de constituição de sentido da consciência histórica aparecemcomo receptores de estruturas previamente dadas, ou seja, comoprocessos de tomada de consciência das circunstâncias temporaisdas ações humanas passadas que, mesmo se ocorridas sem memó-ria específica, podem efetivar-se na memória na medida em queseus efeitos determinam objetivamente o agir atual (seja este histo-ricamente consciente ou não). Se a vida prática humana atual notempo, como ato de constituição de sentido da narrativa histórica, éorientada de forma a levar em conta tais dados (e essa orientaçãoseria a única a permitir que a ação humana intencional seja realis-ta), então os dados reais do passado que ainda agem no presentetêm de ser reconhecidos historicamente e mesmo sustentados con-tra qualquer intenção que os contradiga.

Semelhantemente ~ concepção de história que destaca o papeldas intenções contemporâneas determinantes de valores, que de-semboca no S}!1]jetivismo,a concepção de história que destaca opapel de experiências, valorativamente neutras, do passado desem-boca forçosamente no obj~~ivismo. Para este, as operações funda-mentais da consciência' histórica- nada mais são que um reflexQ dee~truturas temporais do agir humano na consciência dosagentes.Exemplos desse' obJétivlsmõ' estão nas variantes do materialismohistórico, mais particularmente no marxismo-Ieninismo ortodoxo.

Subjetivismo e objetivismo são duas respostas possíveis à per-gunta sobre o que é a "história" como conteúdo da consciênciahistórica. Ambas correspondem a cada um dos fatores que a narra-

tiva histórica insere na unidade do constructo significativo chamado"história": o subjetivismo leva em conta as intenções determinantesdo agir com -relação ao tempo, e o objetivismó, as experiências dotempo determinantes do agir. A parcialidade das duas posiçõesevidencia-se quando as radicalizamos; dessa forma pode-se, si-multaneamente, indicar a direção que se deve seguir para responderà pergunta sobre o que é a história.

Uma teoria subjetivista da história tende para o decisionis11Io,no qual as decisões sobre as perspectivas determinantes da orienta-ção para um agir voltado para o futuro estabelecem o que é histó-.ria. Aqui, a floresta do passado somente ecoa o que se clama paraseu interior. Em tais circunstâncias, a memória histórica acaba sempoder fazer grande coisa diante da supremacia das idéias valora-tivas que lhe são sobrepostas. Os resultados alcançados pelaconsciência histórica são vistos como meras confirmações do quese tenciona realizar na vida prática atual. O que é história depende,em última instância, das chances de sucesso que as perspectivasorientadoras da ação na constituição social do agir humano tenham,com respeito a outras possíveis orientações. A história não passaria,aqui, de uma pirueta cultural por sobre interesses de dominação.

O objetivismo tende, inversamente, para o dogmatismo, noqual assertivas sobre as experiências dominantes do passado comofator determinante do agir estabelecem o que é história. Não sobra,aqui, espaço algum para elaborar, interpretativamente, a experiên-cia do tempo passado no horizonte da orientação temporal da vidaprática presente. No ponto em que se deveria fazer valer a experiênciado tempo passado como condição do agir atual, a consciência his-tórica, pelo contrário, é reduzida a mero reflexo de um estado decoisas acerca do qual nada pode fazer, além de tomar dele conhe-cimento. Como história, o passado diz, por si só; o que ocorreu notempo; ele dá a conhecer o passar do tempo como uma seqüênciatranscorrida de coisas, à qual se deve adaptar, sob pena de ser porela engolfado. A compreensão histórica orienta o agir humanomediante o critério da submissão à necessidade compreendida.Também nessa interpretação da história são interesses de domina-ção que prevalecem, afinal, na determinação do que é história.Esses interesses não se mostram, todavia, como tais (como no de-

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cisionismo), mas escondem-se por trás de pretensões de estritaobjetividade.

É óbvio que na teoria da história se devem evitar tais radica-lismos e buscar um caminho eqüidistante de ambos. Uma posiçãomediana desse tipo poderia, em contraposição ao decisionismo e aoobjetivismo, chamar-se pluralismo do potencial interpretativo daconsciência histórica, que abriria um espaço não arbitrário de in-terpretação do pensamento histórico.14 Tal pluralismo estabeleceriauma relação equilibrada entre memória e experiência. Ele projeta-ria o futuro, como ocasião de novas constelações temporais paraalém das do agir humano passado, e asseguraria, empiricamente,orientações para o agir referidas ao futuro.(.J História como objeto, como conteúdo da consciência histórica,Inão deveria ser reificada como uma grandeza fixa da constelação! temporal do agir humano, que bastaria reproduzir na consciênciaf histórica, nem tampouco ser diluída em um constructo do passado

que o presente elaboraria a seu bel-prazer e à sua imagem e seme-lhança. Propõe-se, com efeito, atribuir à história um caráter "plástico",ou seja, uma posição mediana entre a ausência caótica de qualquerforma (como na teoria do conhecimento de Max Weber) e umaobjetividade rígida (como em algumas variantes dogmáticas domaterialismo histórico ).15 Essa determinação da história comoestado de coisas tampouco convence, pois limita-se apenas a enun-ciar o que a história não é (ou seja, nem puramente objetiva, nemmeramente resultado de atribuição de sentido; poder-se-ia mesmodizer: nem carne nem peixe). Não fica claro, todavia, no que con-sistiria seu estado de agregado meio objetivo, meio não objetivo.Parece que se teria, aqui, uma mera etapa do processo do conheci-mento histórico em direção a uma qualificação substantiva dahistória como estado de coisas, etapa essa na qual começam a sedelinear, na reconstrução dos contextos temporais do agir humanopassado, os elementos básicos do constructo significativo de uma"história", sem que se tenha obtido, ainda, uma determinação defi-

nitiva de tais contextos. Malgrado essa restrição, a tentativa deevitar as posições extremadas - e insatisfatórias - na teoria da his-tória indica a direção em que se deve olhar, se se quiser encontrar aresposta à pergunta sobre como, dos feitos, se faz história.

Trata-se, pois, de identificar a história como estado de coisasjustamente quando a operação de constituição de sentido pela nar--cativa histórica é condicionada, ocasionada, ensejada mesmo pelaexperiência do passado a que se refere. A experiência do passadorepresenta, nesse momento, mais que a matéria-prima bruta dehistórias produzidas para fazer sentido, mas algo que já possui, emsi, a propriedade de estar dotado de sentido, de modo que a consti-tuição consciente de sentido da narrativa histórica se refere direta-mente a ela e lhe dá continuação (decerto com todos os demaisingredientes que as operações conscientes do pensamento históricoengendram). O passado precisaria poder ser articulado, como esta-do de coisas, com as orientações presentes no agir contemporâneo,assim como as determinações de sentido, com as quais o agir hu-mano organiza suas intenções e expectativas no fluxo do tempo,precisam também elas estar dadas como um fato da experiência.

14 Assim, por exemplo, Kocka, 'Sozialgeschichte. Begrif! - Entwickbll1g - Probleme,Gôttingen, 1977, p. 40.

\5 Por exemplo, em H.-U. Wehler, Geschic.hte ais Sozíalll'íssel/schafl, 2ª ed.,Frankfurt, 1973, p. 32.

Há, no~ fUIldamento~ existenciais do conhecimento histórico,uma unldad~prévia entre experiência do passado. e perspectivavaloracta do futuro? Há um fenômeno na vida humana prática em=-_.,.-cujo cerne já esteja embutida a "história" como unidade intrínse~a'e!lJr~_experiência e interpretação do tempo? Existe um ponto emque a experiência do passado e a expectativa do futuro se mesclamdiretamente (mais exatamente: sempre estiveram mescladas)? ~.possível demonstrar isso, ter-se-ia encontrado um fato elementar egenérico da consciência humana, localizado aquém da distinçãoentre os fatos do passado e as intenções interpretativas do presentevoltadas para eles.-... As duas respostas radicais à pergunta sobre o que é a históriacomo conteúdo da consciência histórica, já abordadas, não põemem dúvida que exista tal interdependência intrínseca, mas conce-bem-na como produto de experiência e interpretação, de umamaneira, no entanto, que ou predomina a experiência sobre a inter-

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pretação ou a interpretação sobre a experiência. Essa alternativainsatisfatória deve ser superada por Umprocedimento que não maissuponha um conhecimento histórico prévio, cujos componentesseriam dissecados e cujas interações seriam investigadas. Inversa-mente, esse conhecimento tem de ser pensado como algo queemerge de determinados processos da vida humana prática.

Como já se enfatizou no item precedente, a questão que sepõe, nos processos de constituição de sentido pela consciênciahistórica, não diz respeito sobretudo ou exclusivamente ao passado,mas à interdependência entre passado, presente e futuro, pois sónessa interdependência os homens conseguem orientar sua vida,seus "feitos", no tempo. Como representação de um processo deação que se estende pelo passado, presente e futuro, a própria his-tória faz parte dos "feitos", pois os feitos da vida humana práticapressupõem um mínimo de orientação no tempo. Sobre o fato deque os "feitos", ou seja, os processos concretos da vida humanaprática estão sempre orientados no tempo baseia-se qualquer tipode representação da história. ".História" é exatamente o passado~olm~_º_gtlaLo.s.l1omens têm de voltar o olhar, a fim de poderem ir àfre~te em seu a~~E,__de poderem conquistar seu futuro. Ela precisa-ser concebida como um conjunto, ordenado temporalmente, deações humanas, no qual a experiência do tempo passado e a inten-ção com respeito ao tempo futuro são unificadas na orientação dotempo presente.

A questão de como se constitui a história a partir dos "feitos"pode ser agora precisada mediante uma questão preliminar sobre sejá estaria presente, e de que forma, nos próprios feitos, uma repre-sentação do processo qo tempo, como passad(), presente e futurosempre já sintetizados nos feitos da vida humana prática atual.Poder-se-ia falar, pois, de uma "pré-história" nos próprios feitos(obviamente não no sentido cronológico, mas no sentido de umpressuposto). É nela que teria início o processo de constituição desentido da narrativa histórica e é nela que se estatuiria o constructosignificativo "história" que se efetiva pela narrativa, de modo quenão precisasse ser concebida como produto de uma constituição desentido. Nessa pré-história, o passado ainda não é, enquanto tal,consciente, nem inserido, com o presente e o futuro, no conjuntocomplexo de uma "história". Impossível, portanto, querer antecipar

Ie localizar nessa síntese originária das três dimensões temporais,nessa pré-história dos feitos, todos os resultados interpretativos daconsciência histórica, de forma que não lhe sobrasse, espaço algumpara realizar uma apropriação consciente do passado, reflexiva,interpretativa, pois, no âmbito das referências de orientação da vidaprática contemporânea.

Em uma pré-história desse tipo, ? passado praticamente se ofe-receria a ser lembrado no presente, apresentando-se - ainda antesde ser, como passado, conscientemente tornado presente pela nar-rativa - como uma espécie de forma pré-passac\la (isto é, ativa-mente presente na vida prática), de protonarraViva em que sebaseia qualquer narrativa histórica. Sendo assim, o ofício dos histo-riadores profissionais não pode mais ser entendido como institui-ção autônoma de sentido, e tampouco a história seria apenas o queos historiadores produzem, pois o constructo significativo "histó-ria" não poderia mais ser pensado como algo criado por um atoautônomo, poético ou demiúrgico que seja, mas apenas como algoque sempre já se encontrava instituído na pré-história da vida hu-mana prática. Mesmo com essa "instituição originária", ainda restaaos historiadores muito a fazer, pois é dela que se deve extrair oconstructo significativo de uma "história" e elaborá-Ia explicita-mente.

A questão está, por conseguinte, em saber se já .se encontr.apresente, no agir efetivo, uma orientação (protonarratlva) do agtratual, ainda antes da operação de narrar. Para precisar essa questã~,caracterizemos com mais exatidão o que se entende, aqui, por "agtrefetivo", uma vez que é nesse que estaria realizado o que se conhe-ce como história do passado humano e que a narrativa históricatorna consciente mediante sua instituição de sentido. Nem todaação humana se inscreve automaticamente, no momento mesmoem que ocorre no passado, na história que serve de referência orien-tadora para a vida prática atual. Uma história que incluísse todo oagir humano passado não seria propriamente história, até mesmoporque não se poderia narrá-Ia, pois tal narrativa consumiria todo otempo do mundo. Ser meramente passada não basta, porém, a umaação para conferir-lhe a qualidade de fato histórico. O mero serpassado ainda não engendra a relação específica entre as diversasações que faz o tempo aparecer como processo intencional, como

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continuidade na seqüência das ações humanas no passado. Tam-pouco as ações efetivas e, com isso, passadas, tornam-se automati-camente históricas por serem vinculadas, como conteúdos daexperiência, a carências de interpretação, pois estamos longe depoder afirmar que as orientações práticas de que se sente necessi-dade sejam satisfeitas por elas sem mais nem menos. O simplesf~to, ~e serem consid~ra~as não transforma as ações passadas emhlstona, ne~ lhes atnbUl um potencial qualquer de interpretação.Esse potencial tem de ser desenvolvido, precisa estar presente noolhar. do. observador que se volta para elas. Isso significa, então,que -º.Il.gIrhumano passado já esteja presente no agir presente, ain-da antes do trabalho especificamente interpretativo da consciênciahistórica?

Trata-se do fato de que o !~~!lU.":lano jamais ()corre sem pres-.sup()stos. Em cada ponto de partida de uma ação se encontrameleme.ntos de outras a~es, anteriores, de tal modo que cada açãose ar~lcula com os efeitos de ações já realizadas. As instituiçõesco.~stItuem um exemplo desses elementos de ações aõieriores que,_s.edlmenta~os,s~rvem de plataforma para o agir atual, mesmo quandose tem a mtençao de mudá-Ias. Por intermédio dos elementos ins-titu~onais, as ações pretéritas alcançam imediatamente as açõesatuaiS, a ponto de (co)orientá-Ias. A forma mais direta, contudo,pela qual as ações passadas atingem, com intensidade, as açõespresentes ("com intensidade" no sentido de proximidade das inten-ções det~rminantes do agir) é pelos dado~ Qr~v~º-s..da!radição.

AqUI e no que se segue, entendo "tradição" não no sentido doque se cultiva como tal, isto é, um passado tratado intencionalmentecomo h~st6r~a, mas sim o fato de que, ,antes de qualquer pensa-mento Jú~tónco, o passado está sempre presente nas diversas formasdas i.n1~n,çQ~Qrien~adorasdo agir. Tradição é, por conseguinte, umcomponent~ mtenc~onal prévio d~ agir, que vem do passado para opresente e mfluencla as perspectIvas de futuro no âmbito da orien-taç~~ da vid~ pr~ti~a"atu.al. Para a arg~mentação que se segue, édecIsIvo que tradlçao seja um dado previa do agir, ou seja, que nãopossua desde logo o caráter de um sentido intencionalmente cons-tituíd.opela consciência histórica para fins de orientação existencial.Tra?lçao. é, portanto, a suma das orientações atuais do agir, nasquals estao presentes os resultados acumulados por ações passadas.

Na tradição, o agir passado indica, ao agir presente, a direção; natradição, o agir passado mantém-se presente na forma de uma orienta-ção imediatamente eficaz.

Tradição é, pois, o modo pelo qual o passado humano está pre-sente nas referências de orientação da vida humana prática, antesda intervenção interpretativa específica da consciência histórica.Seu caráter pré-histórico consiste em que, nela, o passado não éconsciente como passado, mas vale como presente puro e simples,na atemporalidade do óbvio. Na tradição, já está presente a orienta-ção que a consciência histórica tem de produzir mediante o esforçoadicional da narrativa: uma mediação consistente entre a experiên-cia do tempo e a intenção no tempo - ou, com outras palavras: umatransformação do tempo natural em tempo humano. Tradição.éa.unidade imediata entre experiência do tempo e intenção no tempo,tradição é o tempo da natureza transcendido em tempo humano, elaê ~r_~~_~p~rª-窺_.doJern{m ._aiml~antesde.quaisquer resgates do

tempo realizaq()s pela consciência histórica. Com ela, a recuperaçãodo tempo passado instala-se no âmbito das referências de orienta-ção do presente, antes mesmo de a consciência histórica iniciar, nopresente, o resgate do tempo. Na terminologia de Droysen, pode-sedizer que a história age na tradição. Nesta, o passado já exerce umafunção de orientação, sem que seja necessária uma reflexão parti-cular sobre ela. Na tradição, o agir passado subsiste por si, encerraem si a marca de sua importância e os elementos do processo tem-poral com os quais co-determina, mediante orientação temporal doagir atual, o curso do tempo presente.

Remetemo-nos à tradição e à contemporaneidade "tácita" dopassado nas condições da vida prática atual para colocar em evi-dência o pressuposto com que a consciência histórica opera paraelaborar sua interpretação do processo pelo qual, dos feitos, se fazhistória. É dessa presença ativa do passado no quadro de referênciasde orientação da vida prática atual que parte toda consciência histó-rica. É nela que a consciência se baseia para relacionar intenções eexperiências, pois tal relação lhe é sempre prévia. A consciêncianão procede de modo algum arbitrariamente, relacionando experiên-

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metas que vão além do que é o caso. A razão disso está no fato deque, nos atos da vida humana prática, há permanentemente situa-ções que devem ser processadas, com as quais não se está satisfeitoe com respeito às quais não se descansará enquanto não forem mo-dificadas. ,

~~cendência fu_n_d_al1:l~n!al_~~vida hUl1:lanaprática ~x~',trai.da prévia traôíçâü-de orientações no tempo a interpretação pelaconsciência histórica e faz com que, dos feitos, se faça história.Que os homens tenham consciência da história baseia-se, afinal, nofato de que seu próprio agir é histórico. Como usam intencionali-dade, os homens inserem, pois, seu tempo interno (sua ânsia deeternidade, sua busca de ultrapassar os limites de sua vida tempo-ral, ou seja lá como se queira caracterizar a dimensão temporal desua existência que tende, sistematicamente, a ir além da natureza)no contato com a natureza externa, na confrontação com as condi-ções e as circunstâncias de seu agir, nas suas relações com os de-mais homens e com si mesmos. Com isso,.-?~k_hll_m_a~oé, em seucerne, histórico. E "histórico" significa, aqui, simplesmente quero )processo temporal do agir humano pode ser entendido, por princí-pio, como não natural, ou seja: um processo que supera sempre oslimites do tempo natural. ~

Justamente por isso é impossível considerar as mudanças dohomem e de seu mundo, essencialmente determinadas pelo agir,como um acontecimento natural, passível de ser reduzido a leisuniversais, com as quais poderia ser tecnicamente controlado. O pen-samento de um controle técnico da história é simplesmente semsentido, pois tal controle seria por sua vez uma ação cuja teleologiavai além do que se controlaria: a intencionalidade da ação, consti-tutiva do caráter histórico do processo temporal da vida humanaprática, escaparia sempre, como móbil da dominação, ao âmbito docontrole.

O superávit de intencionalidade do agir humano constitui, porconseguinte, não apenas a consciência histórica, mas constitui-sesimultaneamente como alavanca da própria vida humana prática.Esse superávit imprime à ação humana, no respectivo fluxo tempo-ral, o exato movimento necessário para situá-Ia, como fato da expe-riência, na consciência histórica, a fim de poder servir à orientaçãoda vida prática atual no tempo. Porque o próprio agir humano pode

cias quaisquer do passado a intenções quaisquer do agir; de outra par-te, ela tampouco é prisioneira das intenções do agir, atribuindo-Ihesuma determinação absoluta proveniente das experiências do passa-do. Em que se distinguem, no entanto, a interpretação elaboradapela consciência histórica e a interpretação ínsita à tradição? Para sepoder responder a essa pergunta, deve-se esclarecer por que a orienta-ção da vida humana prática, no tempo, vai além da orientação efe-tuada pela tradição e por que se tem de fazer esforço de umainterpretação do tempo mediante a transposição narrativa do passa-do para o presente.

As operações da consciência histórica são necessárias sempreque a orientação temporal passada, pela tradição, não basta. Isso é,logo de início, uma situação de fato, pois o conjunto das experiên-cias do presente inclui sempre também experiências do tempo cujainterpretação pela tradição não existe ou não é suficiente para quese possa agir com segurança (ou seja: sem uma reflexão adicional euma constituição específica de orientação). Mas não é só de fatoque as tradições previamente dadas não bastam para a orientação davida prática no tempo. Também por princípio não seriam suficientes,pois o superávit intencional característico do agir humano (a inquie-tude constante do coração humano, como diria Santo Agostinho)'"conduz a intenções do agir que vão além das sendas temporais traça-das tradicionalmente para a vida prática atual.

Esse argumento pode ser expandido, antropologicamente, parauma teoria da historicidade da orientação da existência humana."Historicidade" não significa que o quadro de referências de orienta-ção da vida prática humana se modifique substancialmente ao longodo tempo, mas sim que o constructo significativo "história" repre-senta um momento integrante essencial desse quadro de referências.~ consciência histórica não é algo que os. homens podem ter ouIlão - ela e alg.9universlJlmente humano, dada necess~i~inente juntocom a intencionalidade da vida prática dos homens~ A consciência.histórica enraíza-se, pois, na historicidade intrínseca à própria vidahUmana prãtfcã~ Essa historicidade consiste -no fato de que oshomens, no diálogo com a natureza, com os demais homens e con-sigo mesmos, acerca do que sejam eles próprios e seu mundo, têm

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ser entendido como processo de uma transformação do tempo natu-ral em tempo humano, por isso mesmo pode ser inserido, comofato da experiência do passado, na operação constitutiva de sentidoda consciência histórica, na qual o tempo natural é transcendido notempo humano (mediante a narrativa). A operação interpretativa daconsciência histórica não é, por conseguinte, uma quimera ou fic-ção, na medida em que o agir humano, por princípio, pode ser pen-sado como transformação do tempo natural em tempo humano.Essa transformação operada pelo agir humano por meio do superá-vit de intencional idade que lhe é característico torna necessária,simultaneamente, a interpretação da consciência histórica. Justa-mente porque as experiências do tempo e as intenções no temposão superadas nos processos da vida humana prática, e a orientaçãono tempo por meio dos conteúdos prévios da tradição não basta, éque a consciência histórica se faz necessária.

Que o agir humano seja histórico, uma vez que é determinadointencionalmente em seu cerne, em sua substância, não significaque se torne, no momento mesmo em que ocorre, "história" (con-teúdo da consciência histórica). Justamente porque o agir é históri-co, ou seja, porque - por princípio - vai além do que se busca nasintenções e do que, por meio delas, se consegue fazer, é que suaoperação de transcender realmente as condições e as circunstânciassó pode ser expressa a posteriori na interpretação efetuada pelaconsciência histórica. No ato mesmo do agir, a operação do trans-cender não constitui, como tal, uma experiência direta. O agir estásempre presente quando se realizam intenções que superam suaspróprias condições e circunstâncias, conquanto cego para o quecom ele e por ele de fato ocorre, pelo menos quando o resultadoé diverso do que se esperava. E que as coisas saiam diferentesdo que se planeja é uma experiência quotidiana e repetida no tem-po, que torna necessária a reflexão interpretativa da consciênciahistórica. O agir humano tampouco pode ser tão esperto que acheque já esteja voltando do lugar para onde vai, quando ainda se en-contra no caminho de ida. Só a consciência histórica, mediante seurecurso rememorativo às experiências do tempo passado, forneceao presente uma orientação no. tempo que, no movimento mesmodo agir, não é percebida. .

A consciência histórica é necessária a fim de que o agir (e osofrer) humano não permaneça cego quando seu superávit inten-cional se realiza para além de suas condições e circunstâncias, porassim dizer quando avança na transformação do mundo pelo ho-mem, e se dê na consciência de que esse avanço vai na direçãocorreta. Sem essa determinação da direção, o potencial inovadordas intenções do agir humano não poderia realizar-se; sem o dire-cionamento, esse potencial ficaria desnorteado e não poderiaorientar as ações na forma de intenções - pois intenções nada maissão do que as metas substantivas do agir humano. Essa teleologia émediada pela consciência histórica por meio de seu recurso à expe-riência do agir passado. Com suas interpretações, ela dota a experi-ência do tempo no passado do vetar intencional do agir, pelo qual avida prática atual pode orientar-se, ao avançar no mundo novo dofuturo. Esse direcionamento é produzido pela consciência históricamediante uma representação de continuidade entre as ações dopassado e as do presente, de forma que se abram perspectivas defuturo.

De que modo e como o que a historicidade da vida humanaprática se constitui, no processo de interpretação da consciênciahistórica, em "história" como conteúdo dessa consciência?

Quando as tradições já não bastam mais para orientar a vidaprática atual, então entrou nessa práxis algo mediante o qual sedesagrega a unidade dada, na tradição, entre experiência do tempoe intenção no tempo. O mundo pode ter mudado tanto, por exem-plo, que os homens ressentem novas carências, que ocasionam vi-sões novas do futuro e, conseqüentemente, um novo recuo aopassado, a fim de que as novas perspectivas de futuro possam sergarantidas por uma representação de continuidade histórica, valedizer, sejam sustentadas por uma experiência histórica nova a serrealizada. Isso tudo é operado pela consciência histórica, na medi-da em que se debruça, criticamente, sobre a unidade de passado,presente e futuro na tradição. Essa atitude "crítica" não consiste emnegar a unidade, pois isso apenas acarretaria um isolamento artifi-cial entre as experiências do tempo passado e as perspectivas para

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o tempo futuro, cuja consequencia seria o desaparecimento daconsciência unitária do tempo, em que passado, presente e futuroestão juntos. Uma consciência histórica desenvolvida é justamenteo oposto. Relação crítica com a tradição significa que esta tem deser pensada. (Ela precisa ser refletida porque, como orientação notempo, não basta nem pode ser simplesmente descartada.) Que aconsciência histórica repouse sobre uma crítica da tradição signifíca(rio sentido original da expressão "crítica" como "diferenciação")que as dimensões temporais do passado, presente e futuro, origi-nalme.nte não distinguidas na tradição, passam a ser especifica-mente consideradas e relacionadas umas às outras. Nesse processode reflexão diferenciador e mediador desenvolve-se o "fato histó-ria" como a constelação temporal do passado na qual o passado,como passado, serve para apreender a dimensão temporal da vidaprática atual e também o futuro como dimensão própria a essa prá-xis. Mediante a crítica da tradição pela consciência histórica, avisão do passado como passado toma-se enfim possível. Essa visãonão é de coisas arbitrárias, de modo que o passado como passado jáseria, de alguma forma, história. Ela é uma visão que se volta paraas experiências do tempo passado que podem assumir a funçãointerpretativa que o passado diretamente presente na tradição nãotem como exercer.

A fim de expor como a tradição é "criticada" como história, énecessário distinguir previamente três tipos do "estar presente" dopassado no presente:

como conjunto silencioso das condições do agir, seja demodo ímplícito e natural, como, por exemplo; nas institui-ções, seja nos bastidores dos processos decisórios dosindivíduos (como, por exemplo, no caso das condiçõeseconômicas da vida quotidiana, cuja estrutura interna não étransparente para os que são atingidos por elas).

c) O passado está presente na forma de simples vestígios, quefá não têm mais função alguma para a vida prática atual(por exemplo, na forma de uma estátua ainda enterrada naareia do deserto).

a) O passado está presente como tradição no sentido descritoaCima. Nesse caso, ele é ativo como orientação do agir naperspectiva do futuro, sem que se tenha consciência dopassado como tal e que este seja cultivado como tradição.

b) O passado está presente em todos os resultados das açõeshumanas passadas, que constituem condições de possibili-dade do agir contemporâneo, condições, pois, que têm deser levadas em conta pelos atores do presente, se estes que-rem alcançar alguma coisa com seu agir. Diferentementeda tradição, trata-se aqui de uma eficácia do passado nopresente que não se refere à orientação (intencional) davida prática atual. O passado é eficaz, por conseguinte,

Se a tradição é refletida criticamente nas operações da cons-ciência histórica e diferenciada ("criticada" no sentido de "distin-guida") nas dimensões temporais por esta estabelecidas, o passadopode então ser mais amplamente relacionado, como história, aopresente, diferentemente do que ocorre normalmente na contempo-raneidade imediata da tradição: como passado, ela passa a ser en-contrada também nas condições tácitas do agir em que as açõeshumanas passadas se sedimentaram. Além disso, torna-se tambémpossível descobrir, nos vestígios que dão testemunho do agir hu-mano passado - mesmo sem uma relação direta com o presente -,um passado que, como experiência do tempo, se torna importantepara a orientação temporal no presente. A história emerge de tradi-ções, nas quais os limites da relação do passado com o presente sãoultrapassados: o passado torna-se consciente enquanto tal, adquireuma qualidade temporal em seu conteúdo experiencial, fornecendoassim, com essa nova qualidade temporal, novos elementos decompreensão da dimensão temporal da vida humana prática.

Qual é o passado que pode assumir essa função interpretativa,ou seja, o que, do passado, se torna consciente como históJia, não éprod.U!O_~~_.!1mª.arbitrariedade subjetiva, mas resulta, 10glcamente,d~.prÓpJÍatradição. Nessa questão trata-se, inicialmente, apenas dopassado que sempre está presente na forma da tradição. Esse pas-sado não deixa de ser, pelo ato crítico da consciência histórica queo torna consciente como passado, fator de orientação, mas ganha,com aquele, impulso novo. E isso é assim por que, uma vez torna-da consciente como passado, a tradição pode ser estendida a tudo oque ainda subsiste do passado e que pode ser rememorado, mas que

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ainda não tinha qualquer eficácia na orientação temporal da vidaprática atual.

A consciência história representa, portanto, uma diferenciaçãoe uma expansão da consciência do tempo, realizada na tradiçãocomo orientação temporal da vida prática. Na medida em que sódescobre o passado, como passado, nessa orientação, a consciênciahistórica projeta a orientação temporal da vida prática atual paratrás, de forma que as lembranças possam ingressar nesta a fim desuperar os déficits de orientação temporal intrínsecos à tradição,diante das novas experiências do tempo e expectativas no tempo davida prática atual. O que se considera história, do passado, mede-sepelo critério de sua utilidade (ou inutilidade) para a expansão doquadro de referências de orientação temporal da vida prática atual.A consciência histórica não se caracteriza apenas pela lembrança,mas sempre também pelo esquecimento: somente o jogo do lem-brar e do esquecer fornece as referências temporais que o passadotem de assumir, a fim de poder produzir uma representação decontinuidade instituidora de identidade.

A pergunta inicial, sobre como, dos feitos, surge a históriacomo conteúdo da consciência histórica, pode ser respondida, emsuma, da seguinte forma: a história, como realidade, constitui-senos processos do agir intencional com os quais os homens superamas condições e circunstâncias dadas de sua vida prática, a fim derealizar, na prática, a fransformação do tempo natural em tempohumano. Esses processos só podem ser pensados como conteúdode algo já acontecido, ou seja, do agir passado. Como conteúdo daconsciência histórica, história é a suma das mudanças temporais dohomem e de seu mundo no passado, interpretadas como transfor-mação de tempo natural em tempo humano, vale dizer, como ga-nho de tempo. Como tal interpretação, ela se insere no quadro dereferências de orientação da vida prática atual, no qual pode abrirperspectivas de futuro.

mente de modo científico? De que forma fundamentar a históriacomo ciência a partir das operações existenciais da consciência histó-rica? De que modo a história, como conteúdo da consciênciahistórica, se torna objeto do conhecimento histórico-científico?

Para se poder responder a essas perguntas, importa constatarge que maneira a história, em sua versão científica, se distingue das

. demais formas da consciência histórica, e se e como essa diferençaestaria enraizada nos fundamentos existenciais do conhecimentohistórico. É de se perguntar inicialmente, pois, por que se faz histó-ria como ciência, pura e simplesmente. A resposta a essa perguntàé: porque com a história como ciênda quer-se obter certo resulta-do, um determinado objetivo de validade da narrativa história: averdade de cada história narrada.

A razão da diferença qualitativa da versão especificamente cientí-fica da história com respeito às demais formas da consciência histó-rica surge no momento em que a interpretação produzida pelaconsciência histórica enuncia pretensões de validade. A ciência eri-ge-se sempre com a pretensão de que seus enunciados sobre o passadohumano são universalmente válidos, e de que todos, por princípio,devem acatar o que ela revela, no conhecimento histórico, do pas-sado humano. Ao se querer compreender e fundamentar como epor que as operações intelectuais essenciais à consciência históricasão e têm de ser realizadas sob a forma peculiar de uma ciência,requer-se descobrir em que consistem as pretensões de validadeda história, às quais conduz o trabalho interpretativo da consciên-cia histórica. '

Que momentos das operações narrativas da consciência histó-rica têm importância particular para a versão científica do pensa-mento histórico? Trata-se dos momentos diretamente ligados àspretensões de validade do pensamento histórico. Supõe-se, aqui,que a validade pretendida por um pensamento histórico constituídocientificamente não é exclusiva da ciência, mas pode e deve serhipostasiada, por princípio, a todo pensamento histórico. Não fosseassim, tampouco se poderia falar de validade "universal" do co-nhecimento histórico da ciência da história, pois esta valeria entãosomente para os que fizessem ciência e que, por certas razões, esti-vessem em condições de aceitar a pretensão de validade específicada ciência como coincidente com sua própria pretensão. O pathas

O que significa realizar a consciência histórica de modo espe-cificamente científico e pensar seu conteúdo - a história - igual-

Alexandre
Realce
para pensar no desenvolvimento de história como ciência
Alexandre
Realce
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todo da ciência e, com ele, o que torna compreensível, faz valer apena e justifica toda a mobilização científica, residem na circuns-tância de ambos produzirem resultados sob a forma de um conhe-cimento histórico cuja pretensão de validade tem de ser partilhadapor todos que exigem, das histórias, que elas valham. Justamentepor isso se impõe, ao se tencionar expor o que é a história comociência, que se vá além dela ou para seus bastidores, perguntando-se pelas pretensões de validade do pensamento histórico que seencontram em seus fundamentos existenciais.

Esse "ir além" da ciência não é um processo reflexivo quepossa' restringir ou relativizar a ciência. Ele serve exclusivamentepara permitir entender o que a ciência é; ele serve para fundamen-tá-Ia. No que se segue, examinar-se-ão os fundamentos existenciaisda consciência histórica na perspectiva de evidenciar se e como seenraíza neles o quese pensa, quando se diz que tal história é ver-dadeira e tal outra não.

Histórias são verdadeiras quando seus destinatários crêem ne-las. "Crer" significa aqui - em paralelo com a função existencial -que as histórias exercem como que fatores de orientação, no tempo,da vida humana prática: os destinatários das histórias estão dis-postos a servir-se delas para orientar-se no tempo, pois estão con-victos de que as histórias são capazes de tanto. Como descobrir,porém, o que faz a credibilidade das histórias?

Se não se quiser partir de uma teoria explícita da verdade, omelhor é deixar-se conduzir pela própria história para descobrir emque consiste sua verdade ou inverdade, supondo-se que, nas opera-ções existenciais da consciência histórica, esteja disponível tal in-formação. E isso é o que efetivamente ocorre: as histórias vêmsempre falar de sua própria verdade, quando levantadas dúvidassobre sua credibilidade.

Isso não tem nada de incomum. As histórias não são criàas as-sim sem mais nem menos - elas têm'de ser narradas de modo quepossíveis dúvidas acerca de seu conteúdo já venham previamenteesclarecidas. Tendo-se presente que as histórias tornam conscientea identidade de seus destinatários como permanência no fluxo dotempo e que, mediante essa função, constituem essa identidade, oargumento fica claro. A identidade é, contudo, uma rela~ão doshomens e dos grupos humanos consigo mesmos, a qual se põe, por

sua vez, em relação com os demais homens e grupos humanos.Identidade é um momento essencial da socialização humana. Jus-tamente por isso está exposta às contínuas dificuldades que oshomens encontram consigo e com os demais, quando se socializam. 17

A identidade expressa pela narrativa das histórias não é um con-teúdo fixo e definitivo. O que se é depende sempre do que os de-mais o deixam ser e do que se quer ser, na relação com os outros.Identidade é, por conseguinte, um processo social de interpretaçãorecíproca de sujeitos que interagem entre si. Nesse processo, ossujeitos mesmos debatem-se continuamente entre si, à busca deserem aqueles que querem ser e de não quererem ser aqueles quedeveriam ter sido. A constituição da identidade efetiva-se, pois,numa luta contínua por reconhecimento entre indivíduos, grupos,sociedades, culturas, que não podem dizer quem ou o que são, semter de dizer, ao mesmo tempo, quem ou o que são os outros com osquais têm a ver. Porque isso é assim e porque,as histórias são tam-bém atribuições de identidade (razão pela qual se trata igualmentede uma questão de poder saber quem pode contar a história aquem, história que diz a este quem ele é), não se costuma acreditarcegamente nas histórias. Elas têm de ser narradas de forma tal queas dúvidas que surgem na luta pelo reconhecimento não cheguem aser formuladas ou pelo menos venham logo a ser resolvidas pelashistórias no movimento de sua narrativa.

As histórias previnem as dúvidas à medida que fundamentam.sua credibilidade. Elas fornecem razões para se crer nelas e paraservirem de orientação no tempo. Trata-se, aqui, nesse caso, do quese chama, na linguagem coloquial, de "verdade". "Verdadei'ras"são as histórias com que se pode consentir; consente-se com ashistórias nas quais as possíveis dúvidas surgidas podem ser resol-vidas com as razões que elas fornecem. Sempre que indicarem, pormeio de sua narrativa, o modo de superar as eventuais dúvidas quesusdtem, as histórias sinalizam sua verdade.

Há, no entanto, uma tal quantidade de sinais, que por vezes setem dificuldade em reconhecer, neles, o que de verdade é manifes-tado. O raciocínio que possa levar a dúvidas sobre a credibilidade

17 A esse respeito, ver L. Krappmann, Soz;%g;sc:!7c D;IIICI1S;Ol1cl1 der ldel1l;liil,3'! ed., Stuttgart, 1973.

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das histórias fornece justamente, todavia, um claro delineamentoda verdade na narrativa de histórias. Trata-se, no fundo, de trêsmomentos, nos quais podem surgir dúvidas acerca da credibilidadedas histórias: I) a propósito de seu conteúdo experiencial; 11)sobresua significação; I1I) quanto a seu sentido.

I) As histórias articulam as experiências do tempo passado.Sua credibilidade repousa, por conseguinte, sobre seu con-

. teúdo experiencial. Esta realidade não requer outras expli-cações.

11)Não é apenas sobre isso que repousa a credibilidade dashistórias. Elas relacionam as experiências do passado à in-tenção do tempo presente que se projeta no futuro. Nessesentido, uma história elabora um! significação que repousasobre algo diferente da experiência do passado: como expe-riência, ~ó a relação com as intenções torna-a significativa(poder-se-ia dizer também "relevante", "substantiva", "aptaa ser assumida"). O que, então, torna as histórias signifi-cativas? Elas são significativas à medida que conseguemrelacionar as experiências do tempo passado com as inten-ções projetadas de seus destinatários. As histórias articulam,ademais, o acervo experiencial da memória e o superávitintencional característico da vida prática de seus destinatá·rios, a fim de evitar que desemboquem num futuro vazio,e sim num futuro que, realisticamente, se pode esperar.É isso o que ocorre quando o superávit intencional do agirse concretiza em intenções precisas do agir, com as quaissuas circunstâncias e condições dadas devem ser superadase transformadas. E o que as histórias absorvem, do domíniodas intenções, para obter significação? Têm de ser pontos devista de que resultem os objetivos a serem alcançados pelasintenções do agir - isto é, o que se tem de fazer para mudarcircunstâncias e condições dadas. Esses pontos de vista sãoas normas e os valores. Dúvidas e credibilidade, como ati-tudes que se pode ter diante de uma história, referem-se aessa relação interna com as normas e os valores da vidaprática atual. Pode-se pôr em dúvida que as histórias efeti·vamente atinjam as intenções dominantes, ao relacionarem

as experiências do tempo passado a estas, a fim de imçmir-Ihes um vetor temporal e tornar o futuro esperável rtermos da experiência acumulada. Inversamente, podeperfeitamente aceitar uma história justamente porqueacerta em cheio as normas e os valores com os quais intlções são articuladas com processos temporais futurostransformação do homem e de seu mundo a serem efetimente postos em ação. Em suma: trata-se sempre de nome valores, quando se fala da verdade de uma história.

1II) Dispusemos, até aqui, de dois critérios com relação;quais as histórias podem ser julgadas duvidosas ou (díveis e com os quais elas sustentam sua pretensãoverdade. No entanto, eles não bastam para descreverficientemente a função orientadora que se esperahistórias verazes, pois a interdependência desses dcritérios ainda não está visível, nem a integração, a rdiação, a síntese entre a experiência do tempo passada expectativa do tempo futuro produzida pela opera,intelectual da narrativa de uma história. Experiênciatempo e expectativa quanto ao tempo são fundidas ç

. narrativa histórica na unidade de uma representaçãotempo na forma de uma continuidade das intençdo agir que assegura ao agente, ao mesmo tempo,permanência na evolução do tempo. Com essa propdade, a de representar a continuidade constitutivaidentidade, a síntese entre experiência do tempo e exçtativa quanto ao tempo, produzida pela narrativa de I

história, adquire o caráter de determinadora de sentidcvida prática atual. Como determinadora de sentidc"história ingressa no quadro de referência de orientada vida prática de seus destinatários. Nessa determição culmina o problema da verdade: trata-se da símnarrativa de experiência e norma, que constituí" o stido da história. Analogamente ao conteúdo expericial e à significação de uma história, pode-se falalum conteúdo de sentido, quando se pensa numa me~ção realmente consistente, plena e concludente elexperiência e significado, que "supere" a ambos

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duplo sentido da palavra)IMna unidade de uma repre-sentação de continuidade constitutiva de identidade.

interna, a consistência da orientação existencial humana, o domíniode si e do mundo como pressupostos de qualquer vida prática. A tra-dição filosófica denominou esse ponto de vista "idéia". Poder-se-iafalar, mais modestamente, de uma determinação orientadora dosenso comum, no quadro de referências de orientação da vida prá-tica humana. Pouco importa que nome se dê a essa função, o deci-sivo é que se trata de um fator de orientação da vida humanaprática que opera uma unidade prévia de experiência e norma, deser e de dever, dentro de uma compreensão consistente, pelo ho-mem, de si e do mundo.

Temos circunscritas, assim, as pretensões de verdade das his-tórias. Elas são manifestadas pelas histórias à medida que resolvemou enfrentam as dúvidas. As razões da credibilidade das históriassão indicadas por recurso a: 1) experiências, que preenchem seuconteúdo factual; 2) normas e valores, que preenchem seu conteú-do de significado e 3) determinações de sentido, de acordo com asquais os conteúdos factual e de significado são mediados, narrati-vamente, para formar a unidade de uma representação de continui-dade constitutiva de sentido.

As histórias manifestam essas diversas abordagens de suaaptidão à verdade à medida que resolvem dúvidas e fundamentamsua pretensão de validade de três formas distintas:

o conteúdo significativo de uma história coloca em ação acredibilidade ou o aspecto duvidoso de uma história com respeito àsua capacidade de prover a orientação que sua narrativa tenciona.O conteúdo de sentido de uma história não está dado de imediatocom seu conteúdo experiencial e com seu significado, pois expe-riências do tempo e intenções normativas quanto ao tempo não seintegram automaticamente para formar a unidade de uma repre-sentação de continuidade constitutiva de identidade. A mera arti-culação de experiência, de um lado, e de normas, de outro, aindanão forma história alguma, mas requer-se ainda a mediação entreambas, se se quiser narrar uma história. No princípio (no sentido deorigem) de cada história está seu sentido, e somente na reflexãoposterior se pode distinguir entre o conteúdo experiencial e o nor-mativo. A unidade originária entre experiência e norma está dadano fundamento "pré-histórico" da consciência histórica, ou seja, natradição. A consciência histórica, no entanto, reflete a unidadeprévia entre passado, presente e futuro na tradição e distingue("critica") essas três dimensões, a fim de as mediar, à sua maneiracaracterística, numa interpretação da experiência do tempo vinculadaàs intenções quanto ao tempo. A plausibilidade, a capacidade deconvencimento que uma- história possui, como síntese narrativaentre experiência e norma, depende do princípio unificador, docritério de sentido (ou de um conjunto de critérios) adotado pelanarrativa histórica ou a que ela recorre, quando media a experiên-cia do tempo passado com a experiência do tempo futuro na unida-de de uma história, de modo tal que seus destinatários se valhamdela para se orientar no fluxo temporal de suas vidas práticas, ouseja, para que se auto-afirmem e valorizem.

Com esse critério de sentido, toda história recorre a um pontode vista supremo da orientação existencial humana, situado aquémda distinção entre experiência e norma e que garante a unidade

IR J. Rüsen utiliza, aqui, o termo (//1{/{ellObell no sentido hegeliano: experiência esignificado estão plenamente presentes na unidade sintética da narrativa históri-ca que, no ato de sua representação narrativa, não apenas os "absorve" plena-mente, mas vai além deles ("supera-os"). (N. do T.)

I) As histórias fundamentam sua pretensão de validade aoexpor que os acontecimentos que narram efetivamenteocorreram do modo narrado. Isso se dá, no mais das vezes,pelo fato de que as histórias indicam suas fontes, mencio-namtestemunhas e avalistas, o narrador explicita sua pró-pria condição de testemunha ocular - em suma: medianteuma série de expressões lingüísticas que designam a expe-riência sobre a qual se baseia o conteúdo factual da histó-ria. A verdade histórica jJode ser caracterizada, nessaperspectiva de fundamentação, como pertinência empírica.Histórias são empiricamente pertinentes quando os fatospor elas narrados estão garantidos pela experiência.

lI) As histórias fundamentam sua pretensão de validade aoexpor que oS acontecimentos que narram possuem signifi-cado para a vida prática de seus destinatários. O narrador

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Razão histórica

utiliza normas para fundamentar por que estabelece deter-minadas correlações temporais entre tais ações humanaspassadas e não entre outras, e por que ele as avalia de talou qual maneira e não de outra. Isso aparece nos estilos tí-picos utilizados pelas histórias para articularem-se com asnormas da vida prática de seus destinatários, ou aindaquando elas se referem ou apelam a elas, etc. Encontramo-Ias, por exemplo, nas declarações de intenções didáticas,amiúde também na forma de uma "moral da história" ex-plícita. A verdade histórica pode ser caracterizada, nessaperspectiva de fundamentação, como pertinência normati-va. Histórias são normativamente pertinentes quando osfatos por elas narrados estão garantidos por normas vi-gentes.

III)As histórias fundamentam sua pretensão de validade aomediar a facticidade e o significado do que narram na uni-dade de uma narrativa com sentido em si. Tem-se aqui umcritério de sentido constitutivo de síntese, que dirige o flu-xo narrativo e determina sua direção. Tem-se aqui o pontode partida de uma história: uma determinação orientadorade sentido (idéia) constitui-se simultaneamente como ins-tância suprema decisiva para a verdade de uma história. Ashistórias manifestam-no na medida em que expõem essecritério de sentido (não raro de forma destacada, logo noinício ou na conclusão) por recurso seja aos sentidos cor-rentes na vida prática de seus destinatários, seja aos ele-mentos de senso comum previamente dados na orientaçãono tempo, percebidos por seus destinatários como acimade qualquer dúvida. A verdade histórica pode ser caracte-rizada, nessa perspectiva de fundamentação, como perti-nência narrativa. Histórias são ~1Qrrativamentepertinentesquando º contexto de sentido entre faicis é'ilõÍ'1-'las~poi'elas apresentados·como continuidade no fluXoiemporal,está garantido por critérios de sentido (idéias como pon-tos de vista supremos da constituição de sentido) eficazesna vida prática de seus destinatários.

Com isso estão caracterizadas as pretensões de verdade queaparecem na constituição existencial da consciência histórica e que

as histórias, em geral, têm. Cada história pode ter suas preterde verdade controladas a partir de três critérios distintos. Ess~~critérios de verdade mantêm uma relação complexa entre Si.podem ser aplicados independentemente um d~ outro, se se trafundamentar a aceitação de histórias. Se se aphcar apenas o crda pertinência empírica, a história resumir-se-ia .a uma Iissentenças assertivas e negligenciaria todas as demaiS sentençacomporta. Esse critério, sozinho, não basta para a~ sentenças]ricas: ele vale para todas as sentenças que enunciam fatos oujuntos de fatos, por exemplo: descrições de paisagens, observda natureza relatórios médicos, etc.; ele pertence, por conseg, .aos fundamentos existenciais de quaisquer ciênCias.

Se se aplicar exclusivamente o critério da pertinênci2mativa a história não passaria de uma lista de sentenças solsignifi~ados que os fatos possuem para a ?eter~inação do sendo fim do agir e do sofrer humanos, neghgencI~ndo que ~e~,lida com fatos e com conjuntos de fatos. Tambem esse cntené sozinho, específico das sentenças históricas: ele vale paraa~ sentenças que enunciam sentido ou finalidade do.agir ou ~ohumanos, por exemplo: doutrinas da virtude, preceitos legaIS,costumes, mandamentos divinos, etc.; ele pertence, por canseIaos fundamentos existenciais de todas as ciências normativas.

Somente o critério da pertinência narrativa é específi(histórias. Ele se refere à unidade interna dos fatos e norma5vada pela constituiçflo de sentido produz~da pe~a narrativa 1ca. Tampouco pode ele, contudo, ser aplIcado lOdepe~d~n~~dos demais critérios de determinação da verdade das hlstonasempre de forma tal que se te~ha em vist~ ~ .interdepend~n<elementos que cada um dos dOISoutros cntenos submete a (à verificação e à fundamentação. As histórias podem sertanto empírica como normativamente pertinentes, sem actodavia adesão direta.

Os três critérios de verdade estão, por conseguinte, em •de mediação, na qual o critério da yertinência nar.rativa snum plano superior aos dois outros. E nele que culmll1a a pnde validade que as histórias têm ao dirigir-se àqueles que I

servir-se delas para orientar-se no tempo.