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1 Sá Maria dos pintos- Uma história contada de costas pra lá,,, Lucas de Arcanjo

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Sá Maria dos pintos- Uma história contada de

costas pra lá,,,

Lucas de Arcanjo

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Eu sou Sá Maria, Sá Maria dos pintos e conto esta

história de costas pra lá...

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Sumário

1º Ato – A infância................................................06

2º-Ato- A juventude..............................................15

3º Ato- O amor......................................................28

4º Ato- A desilusão...............................................30

5º Ato- O castigo...................................................34

6º Ato-A esperança...............................................37

7ºAto- A revolta....................................................40

8ºAto- A Partida....................................................41

9ºAto- A procura..................................................46.

10ºAto- O ódio......................................................53

11ºAto- A perseverança........................................62

12ºAto- A coragem...............................................73

13ºAto- A persistência..........................................81

14ºAto- A espera...................................................89

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15ºAto- A providência divina...............................94

16ºAto- A caridade................................................97

17ºAto- O perdão................................................102

18ºAto- Os caminhos..........................................105

19ºAto- A bondade..............................................108

20ºAto- 0 Valor...................................................117

21ºAto- A recompensa........................................124

22ºAto- A paixão.................................................130

23ºAto- A responsabilidade................................131

24ºAto- A força de vontade.................................132

25ºAto- O reencontro..........................................136

26ºAto – A paz....................................................141

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1º Ato:

Nasci muito pobre e pobre vivia,

sem sonhos... sem sonhos... “trabáio” é que

tinha. Meu pai era preto, minha mãe era

parda, nasci meio negra, me chamaram

mulata. Mas isso é o de menos, no tempo

sozinha, quem é que eu era?

-Ninguém me espera!

Cresci no roçado, na cozinha, na

lida, lavava de dia, limpava de noite. A

tapera era longe, no alto da serra, andava

descalço, não tinha sapato.

A serra era linda com flores bonitas,

crescendo nos cantos das pedras rosadas. A

estrada comprida, com marcas profundas,

fendida de rodas de carros de boi.

Embaixo no campo do vale

encantado, da Vila da serra, só tinha

sobrado. A estrada era longa, com muitos

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pedrados, cascalhos rolados, que cortam os

pés.

E todos os dias, dezena de negros

saiam cantando, cantigas de “nêgo”. No sol

que nascia na quina do morro, nas sombras

desenhos, de enxada no chão.

E todos os negros de Vila da Serra,

cantando seguiam pra roça do torto.

Andando e andando, por mais de uma hora,

capinando ficavam e de noite voltavam.

Andando e andando por mais de

uma hora, chegavam cansados, com mais

uma história. A história de “nêgo” é dura e

pesada, de porões de navios a cabo de

enxada.

A dona Isabel com pena de ouro,

nos fizera um favor, de livrar-nos do tronco.

Mas casa não dera, nem lugar na escola, nas

ruas ficamos pedindo esmolas.

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A roça era tudo que tinha na vida,

cantiga e “trabáio” e coisas pequenas. O

armário vazio e muito o “trabáio”, enxada

de novo, não tinha salário.

E o povo de lá, de outras terras

chegaram e eram tão brancos, mas eram tão

pobres. No Brasil que chegaram, no

trabalho que tinham, ganhavam salários, em

cultivo de terras.

Nas terras que outrora, era braço de

“nêgo”, sem nada ganhar, nem ao menos

sossego. Agora estrangeiros, capinavam

ligeiro, plantavam colhiam, ganhavam

dinheiro.

E o “nêgo” na rua era bicho do

mato, se tinha “trabáio”, era pouco o

salário. Na rua ou nos becos de grandes

cidades, viviam aos montes pedindo

socorro.

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O “trabáio” na roça era duro e

pesado, capina de dia, estrada de noite.

Matula de lado e pé no estradão, era longo o

caminho, e tão pouca ilusão.

Os negros da serra cantando se iam,

madrugada findando e o dia na lida. No

meio de junho, em fogueira de tronco,

cantavam mulheres e meninos felizes.

O mundo era mágico, de sonhos

fantásticos, mas o dia seguinte só tinha

“trabáio”.

E tinha quentão, canjica e doces, de

pé de moleque, moleques travessos. Pulava

fogueira, dançava na roda, cantava cantigas

de todas as modas.

O fogo “incrispava” e quente ficava,

e todos os meninos na cama urinavam.

Rodeando a fogueira cantavam

felizes, negrinhos saudáveis, cantigas de

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“vó”. No meio da noite, José, “preto véio”,

contava histórias de muito terror.

E todos dormiam, com medo da lua,

do uivo do lobo e das sombras disformes.

Lukinhas corria, de um lado pro

outro, fazendo firulas, travesso negrinho.

Maria gostava de vê-lo brincar, alegre e

“lampreiro”, no jeito de olhar.

-Ei, pequenino! Dizia Maria.

-Ei, Maririnha! Respondia Lukinha.

- Que bom que voltou! Acenava

Maria.

- Queria brincar! E seus contos

ouvir!

Dizia Maria, pois quando lhe via,

brincando no campo, histórias contava.

-Ei Maririnha!

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-Pequena florzinha! Falava Lukinha

cantando cantigas.

-Eu venho do vale, da onça “Jumá”!

Contava Lukinha com fogo no olhar.

- Eu trouxe uma flor, de brilho

azulado, florzinha mais rara, pra “mode”

alegrá!

Dizia Lukinha pulando e brincando,

cantando versinhos para conquistar.

E todos os dias o pequeno Lukinha

alegrava Maria com o seu meigo olhar.

E todos os dias uma rosa trazia, da

roça pequena que tinham por lá. Morava

bem longe, depois doutra serra, no vale do

monte, da onça “jumá”.

Lukinhas pintava por todos os lados,

montava cavalos, em burro e em boi. Não

tinha nem medo, de cobra ou de gente,

pivete esperto, de bom coração.

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Nunca se esquecia de Maria da

serra e todos os dias, na tapera passava. E

todos os dias lhe trazia uma flor, a flor que

trazia, lhe trazia alegria.

Mas semanas passaram, não tinha

mais flor, a flor que trazia, que trouxera

alegria. O coração de Maria se desencantou,

faltava a flor que trazia alegria.

Maria andou, por mais de seis horas,

querendo saber das notícias de lá. Porque

seu Lukinha, alegre e singelo, não vinha

mais vê-la, trazendo a flor.

E quando chegou no vale do monte,

da onça pintada, da onça “jumá”. Notícia

tristonha de muito pesar, lhe arrancara

tristeza do fundo da alma.

O pequeno Lukinha, quis a onça

enfrentar, ferido de morte lhe deixou a

vagar. Um golpe certeiro no peito da bicha,

Lukinha ferira a onça “juma”.

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A onça e o Lukinha, caíram

prostrados, não tinham ciência de tanto

perigo. Lukinha pequeno, mas muito

esperto, confiou nos seus truques, de

travesso irrequieto.

A onça pintada achando-se a fera,

pensou que Lukinha era lanche na certa. Os

dois enganados, de suas certezas, feriram de

morte seus peitos viris.

- Perdi o Lukinha! Chorava Maria.

-Que meu, era afeto! De puro amor!

-Negrinho risonho, alegre e

contente!

- Saudades deixara, no peito da

gente!

Dizia Maria, com lágrimas quentes,

saudosa e ferida, lembrança presente. De

todos os dias, trazer uma flor, a flor que

trouxera, trouxera o amor.

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Chorou Sá Maria por dias e dias

esperando uma flor e um versinho de amor.

Maria crescia sozinha e sem graça,

não tinha uma flor, nem um verso de amor.

Só tinha “trabáio”, desgosto e tristeza de

vida de “nêgo”, de vida sofrida.

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2º Ato

Fui ficando mocinha, meus peitos

cresciam, meu vestido pequeno, agora

“cingia”. Os moços da roça, peões,

boiadeiros, agora me viam, com fogo

“lampreiro”.

Sorriam pra mim, me chamavam

princesa, me ajudavam na roça, eram tão

cavalheiros! Mas tinha um tal moço, que

brilhavam meus olhos, de nome só Pedro, o

resto não tinha.

O chamavam brincando, com muita

“zueira”, de Pedro de nada, sorrindo e

dizendo:

- Mais nada?

Pedro nervoso virava do avesso, não

dava conversa pra “nêgo folgado”. Pedro

era bom, um “nêgo” de brio, de pouca

conversa e muito “trabáio”.

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Enamorava Maria com muita

paixão, a timidez lhe tolhia toda emoção.

Pedro de Nada, não tinha outro nome, era

filho da terra dos cantos do mundo.

Mas nada era muito, em meu mundo

pequeno, de roça e “trabáio”, de lida e

tristeza. Tristeza de pobre, tristeza de

“nêgo”, em cantos saudosos, em tristes

olhares.

Um dia cheguei, bem perto de

Pedro, nos olhos olhei, ele foi cavalheiro.

Deu-me uma flor, que puz no cabelo, sorri

meio tímida, o amor despontou.

Um sorriso me dera e um beijo

também, um beijo na testa, com muito

carinho. Quem dera nos lábios, estava à

espera, a espera de um anjo, que me tirasse

da serra.

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Por que “trabáio” é que tinha,

tristeza era muita, de dia roçava, de noite

lavava.

Sozinha rodava, daqui e dali,

colhendo florzinhas, cantando letrinhas. Os

sonhos sonhados, a esperança esperada, nos

poucos descansos da vida servil.

A tapera era fria, minha mãe

Madalena, o pequeno José, meu pai

Joaquim. Nós todos servimos de esteio pro

mundo, de moleira em sol quente, e de calo

nas mãos.

Pois “trabáio” é o que tinha...,

sossego não tinha..., alegria de “nêgo”, era

descansar desta vida.

Fui crescendo na roça, no meio dos

pastos, nas idas e vindas, da vida contada.

Madalena na cama, Joaquim no “trabáio”,

na cozinha eram minhas, as mão no fogão.

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Fazia a “janta”, coava o café, fazia

marmita, pra Joaquim e José. José tão

pequeno já tava na lida, na escola não ia,

não tinha futuro.

Seu futuro era a roça, “matula” e

“Paçoca”, com passos pequenos, seguia na

“tropa”. Dormia tão pouco, comia tão

pouco, seu corpo pequeno, tão frágil

criança.

Mas “trabáio” é que tinha, sossego

não tinha, os sonhos de dia era enxada no

pasto.

Na noite deitado, sem sonhos

bonitos, depois do “trabáio”, o corpo

cansado. Madalena deitada, sem cor de

saúde, no dia após dia, sem brilho no olhar.

Chamava-me “Dinha”, às vezes

“Didinha”, carinhoso apelido, dos lábios

cativos. Gostava de ouvir, de minha

mãezinha, agora sofrida, cansada da lida.

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Balbuciava palavras, sem terminar

as letrinhas, o olhar tão distante, sua voz

não se ouvia. Sua voz embargada, um

sorriso no olhar, para os braços do mestre,

ela foi descansar.

Mas seu amor me ficava, na

lembrança da vida, no caminhar sem os

sonhos, de sair desta serra.

Mamãezinha foi embora, quando as

chuvas passaram, era noite de lua, eu lavava

o terreiro. Meu sono não vinha, solteiro ou

casado, acariciar os meus sonhos, me levar

pro outro lado.

Acordada escutara, com tristeza

pungente, o derradeiro suspiro, de minha

mãe já demente.

Que partiu desta vida, desta vida

contada, de dor e “trabáio”..., de dor e

“trabáio”...

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Esta vida de pobre, esta vida sofrida,

esta vida de “nêgo”, esperando a partida.

O velório era em casa, na sala as

visitas, e um caixão sem calor, sem calor

desta vida. Desta vida sofrida, desta vida de

dor, de dia “trabáio”, de noite cansaço.

Por que vida de “nêgo” é assim sem

valor, “trabáio” era tudo, que o mundo os

legou. Servia bolinhos, para todos da vila,

da vila da serra, os vizinhos de amor.

Os que eram parentes, os que eram

presentes, na roça, na lida, na vida da gente.

E ficaram ali, chorando e velando, o corpo

inerte, de mãezinha querida.

Por que mesmo cansados, da vida na

lida, do “trabáio” pesado, deixavam pesares.

Mamãezinha se foi, fiquei eu e

Zezinho, Papai no “trabáio”, e depois no

boteco. Mais tarde xingando, vomitando e

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caindo, batia na porta, como “louco

varrido”.

Os dias passavam, a bebedeira

aumentava, papai sem dinheiro, a dispensa

vazia. Então resolvi, criar muitas galinhas,

vender ovos e frangos, ganhar muito

dinheiro.

Por que Zezinho coitado, era muito

fraquinho, precisava cuidado, de descanso e

brinquedos.

Mas só tinha “trabáio”, só tinha

“trabáio”, tão jovem e pequeno, só tinha

“trabáio”.

E o tempo passou e plantei minha

horta, criava galinha, vendia franguinhos.

Eu colhia ovinhos, muito alface e tomate,

alimentava Zezinho, que continuava

fraquinho.

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Mas papai não tardou, em conhecer

companheiros, que lhe pagavam cachaça e

lhe davam conselhos. Mas “trabáio” é que

tinha, e não tinha sossego, era dia ou noite,

o vizinho a chamar.

Virava-me daqui, me virava dali,

não deixava faltar nem sapato pra andar.

-Joaquim! Joaquim!

-Vou casar sua filha, com meu filho

Manuel!

- Manuel da ladeira!

Dizia Germano, fazendo zueira, arrancando

risadas, risadas “treteiras”.

Joaquim só sorria, com os olhos vermelhos:

-Se pagar minha pinga, sejam meus

companheiros!

- E pra acabar com a conversa, de

“lampreiro” fogoso, pra minha filha casar!

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-Só se for generoso!

Dizia e dizia, bebendo e fumando,

em conversa fiada, no boteco do Armando.

Foi o tempo passando, foi a vida levando, e

só era importante o boteco do Armando.

E Joaquim foi levando, o seu resto

de vida, do dinheiro trocado, do dinheiro

guardado. Em casa dormia e pouco comia,

mas cachaça tomava e pro boteco voltava.

Assim o tempo passava, e era o dia

inteiro, de tarde era pinga, e de noite o

“puteiro”. Comia às vezes, se Maria lhe

dava, em caneca de sopa, ou em prato de

louça.

Maria plantava, colhia e cuidava, os

seus afazeres, eram sempre esmerados.

Cuidava e cuidava, do sensível Zezinho,

mas “trabáio” é que tinha, não dava

descanso.

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E Zezinho fraquinho, franzino e

sozinho, não crescia direito, era tão

pequenino. Os dias passavam e passavam

ligeiros, sem coisas formosas, tal corredeira

de rio.

Zezinho coitado, amarelo e franzino,

no dia após dia, continuava magrinho. E um

dia sentado na porta dos fundos, com os

olhinhos perdidos, nas nuvens vagava.

A cozinha pequena e o chão de

tablado, Maria na lida, plantava e plantava.

Na horta plantava, verduras e flores, olhava

de longe, Zezinho ao sol.

Com carinho de mãe lhe sentiu a

distância, um semblante vazio de sensível

criança. Zezinho sentado no chão de

tablado, cantava versinhos e falava

baixinho:

-Dói-me muito a cabeça!

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-Minhas pernas, não sinto!

Dizia Zezinho, sozinho, baixinho.

Deitou no tablado e suspirou

sufocado, tão pouco vivera e muito sofrera.

Seus poucos momentos de vida sofrida,

deixara um alento de amor desmedido.

-Mamãezinha querida, a senhora voltou?

-Sentia saudades!

-Mas agora passou!

Dizia Zezinho, sua voz embargada, com

olhos sentidos, se calou num suspiro.

-Estou bem aqui!

-Meu amor pequenino!

-Tristeza e dor não irá mais sentir!

-No meu colo será para sempre acolhido!

-E carinho de mãe, lhe darei desmedido!

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Respondeu Madalena, num brilho de

luz, nas nuvens chegou e Zezinho levou.

Maria cantava, cantava feliz, colhera

de tudo para a canja quentinha. Queria

Zezinho, mais forte e tenente, depois na

escola, ser dono das horas.

Mas ao vê-lo deitado, imóvel e sem

vida, deixou tudo de lado e chorou

entristecida.

Gritava e cantava com Zezinho nos

braços, de joelhos olhava, cada lágrima

caída.

-Por que tu partistes?

-De mim tão criança?

-Não teve alegria, somente a dor!

-Meu peito tristonho, tomam minha mente!

-E sinto tua falta, com todo calor!

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-Oh, Deus!

- Não me deixes, tão só e doída!

-Sem meu pequenino nesta serra tão triste!

Gritava Maria com ele em seus

braços, levando pra dentro da tapera vazia.

Mais um triste destino, de vida de

“nêgo”, de “trabáio” e “trabáio” e de

simples enterro. Era outro velório, na tapera

da serra, mais um “nêgo” menino que se

fora tão cedo.

Minha dor só crescia, só andava pra

frente, minha pouca alegria, foi levada

pequena. E papai não chegava, era pinga

demais, no boteco do Armando, desejava

morrer.

Mais um dia passava e agora

sozinha, enterrara Zezinho, meu pequeno

bebê. Cada dia na serra era um dia perdido,

do destino da gente, não brotava semente.

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3º Ato

Mas um dia eu vi, descendo a serra,

num cavalo alazão, era Pedro de nada. Me

olhou tão faceiro, me trouxera um buquê,

eram rosas vermelhas, e um beijo na boca.

Um sonho vivido, em um dia

sentido, ele foi cavalheiro, me fazendo

mulher.

Mas no dia seguinte, numa briga de

bar, foi o Pedro alvejado, só por me

cortejar. E um tiro certeiro, lhe tirara a vida,

foi o Paulo matreiro, o algoz da batida.

E já era esperado, uma briga no bar,

pois o Paulo matreiro era o “mau” do lugar.

Na vila era fato, não tinha mais

“vê”, que o Pedro de nada, era bom

companheiro. Fora Pedro tirar, Joaquim da

cachaça, prometera Maria que seria bom

moço.

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Estava tudo acertado, ia casar com

Maria, e em casa seria, um esposo fiel. De

Joaquim cuidaria, e de Maria também, e a

vida na serra seria feliz.

Mas foi tudo pro brejo, nem

Joaquim, nem Maria, eram tantas feridas

desta sina da serra. O amor se perdera por

uma besteira, na vida da gente, só ficara a

semente.

Pedro de Nada se foi de repente, e

Maria chorava, mais um corpo na sala. Num

caixão sem calor, nesta vida de dor, desta

dor que de “nêgo”, só tira proveito.

E dois meses passaram, e três meses

também e Maria engordara, e ficara doente.

Vomitava e engordava, e o corpo doía,

comia e cuspia, menos limão e pimenta.

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4º Ato

Todo tempo em casa, estava Paulo e

Joaquim, depois das pingas no Armando,

Paulo tomara lugar. E Joaquim sempre

bêbado, não era pai protetor, Maria, negra

mulher, era só seu valor.

O dinheiro não tinha, para cachaça

beber, foi tratando com Paulo, a sua filha

vender. E negócio fechado, a maldade no

olhar, a cachaça no copo e a risada matreira.

O cavalo lhe dera e dinheiro também

e Joaquim lhe vendeu, sua filha servil.

Paulo sem coração, não perdeu um instante,

fora logo tomar seu produto comprado.

O corpo comprara, o amor não

ganhara, mas o coração bem ruim, se

saciava com a dor. Ao cruzar o portão, com

o rosnar de um cão, trouxe ódio no olhar e

violência nas mãos.

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Mas Maria lhe dera muitos tapas e

chutes, mesmo assim não contivera sua

força estradeira. Fora jogada na cama, lhe

rasgada a roupa, sua intimidade violada e

tomada à força.

Ele não teve piedade, lhe batera no

rosto, lhe marcara o pescoço, lhe deixou

desmaiada.

-Vagabunda! Vadia!

-Você é minha mulher!

-Não vai ser um Pedro de nada, a

impedir meu intento! Gritava, gritava e

gritava o maldito.

-Eu sou Paulo Matreiro!

-O demônio estradeiro!

-Sou o rei destas bandas!

-Se o negócio é mulher!

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-Pra saciar minha vontade!

-Mando logo “pro” o inferno,

qualquer pretendente!

Sem remorso dizia aquele covarde,

lhe rasgando a roupa lhe deixando

prostrada.

E batia e, batia e, batia com força,

saciando a sede, de demente animal.

A noite chegara, e chegara ligeiro,

Maria acordara de susto e de dor. Sem saber

onde estava, era muita tristeza, o seu corpo

marcado, surrado e vendido.

E Joaquim beberrão, sentado na

sala, com o seu companheiro, bebia e

fumava. Ao olhar de soslaio, era Paulo

matreiro, o agressor que tirara seu descanso

e paz.

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Seu algoz companheiro, que matara

seu Pedro, era agora seu dono e fiel

escudeiro.

-Não se avexe Joaquim!

- Pode tomar que eu pago!

- Só não abuse demais!

-Que não carrego “coitado”!

Dizia Paulo Matreiro sorrindo

sempre entre os dentes, e Joaquim sempre

bêbado agora era parente.

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5º Ato

Mas seu pai não tardara, a cair do

cavalo, o seu novo alazão era bravo e

tinhoso. Era como o dono, que sabia jogar,

com a vida dos outros e sempre ganhar.

O alazão a galope, com Joaquim a

montar, numa curva da estrada, de repente

parou. Joaquim foi voando, como um

passarinho, foi parar lá no pasto com o

pescoço quebrado.

Mais um dia de luto, no “taperão” lá

da serra, desta vez pouca gente, estavam

todos com medo. Paulo matreiro e maldoso,

sorria como demônio, seus dentes de

carniceiro, eram seu patrimônio.

Sá Maria mostrando estado

interessante, ninguém mesmo sabia, era

Pedro o importante. Paulo era só dono do

corpo de Sá Maria, Sá Maria dos pintos,

sem esperança e sem sonho.

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Paulo era só um demente, também

tinha poucos parentes, Solange, a irmã

sorridente, também já estava doente. Seu

primo esperto, Nestor, apelidado

“Porvinha”, falava alto e tossia, era ladrão

de galinha.

-Que coisa boa, meu primo!

-Farei-te sempre visita!

Dizia Nestor, o “Porvinha”, alegre

fazendo fita.

Não respeitava Joaquim, não

respeitava Maria, não respeitava o morto,

não respeita mais nada. E acrescentando a

pedida de malandro, sempre esperto:

-Aqui tem muita galinha!

-Dá para fazer um guisado!

Dizia “porvinha” com sua esperteza,

achando que Paulo era mais uma presa.

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-Esta casa é só minha!

-Não quero muita visita!

Respondia Paulo Matreiro,

dispensando a fita.

Solange então se fechou, não sorria

pra Paulo, sabia que espaço não tinha, para

trazer sua família. Maria olhava de longe,

escutando o palavrório, tomaram tudo que

tinha, até seus poucos lençóis.

Paulo Matreiro bandido, não tinha

medo de nada, estuprara Maria, em sua casa

entrara. Maria não tinha ninguém, nem ao

menos Joaquim, como todos se fora, pro

horizonte sem fim.

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6º Ato

E tudo agora era triste, exceto o

filho no ventre, era o tesouro mais caro, era

de Pedro de nada. De todo amor que

tiveram no pouco tempo de sonho, na mente

a sua lembrança, mas no seu corpo a

semente.

E mais um ano se foi, como uma

escrava em casa, Paulo mandava em tudo, e

a noite toda a usava. Maria calada ficava,

sem gemer ao menos pouquinho, não tinha

forças pra nada, Paulo se saciava sozinho.

Maria queria o filho, já não tinha

mais nada, e com carinho esperava, a vida

que lhe sobrava. Era de Pedro de Nada, mas

era tudo que tinha, desta mulata vendida,

por um bocado de pinga.

Mas foi debaixo de chuva, Maria

pedira socorro, numa charrete da vila, de

seu compadre Vespúcio. Pedrinho estava

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nascendo, chutava, fazendo bagunça, queria

ver sem demora, a luz do alvorecer.

Na maternidade, barulhos, eram

pequenos rebentos, que desafiam a vida em

meio ao sofrimento. Pedrinho nasceu

diferente, tinha uma marca na testa, diziam

ser marca dos anjos, que protegiam pra

sempre.

Maria já estava feliz, de ver o amor

florescer, um pouco de Pedro de nada, e

muito do amor que deixou.

Ao chegar do hospital, a esperar no

portão, estava Paulo Matreiro, com sua

cinta na mão. Perguntara o nome, de seu

rebento querido, ao ouvir que era Pedro,

com a cinta acertou seu ouvido.

Maria caiu protegendo o seu

filhinho Pedrinho, e apanhou mais que tudo,

mas não estava sentindo. Felicidade é assim

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quando faz parte do amor, nos deixam

fortes e imunes ao mal que causa terror.

Vida de “nêgo” é assim, “trabáio” e

dor pela vida, sem esperança, sem sonho,

mais dor, às vezes, que “trabáio”.

Ela caiu no quintal, mas arrastou pra

cozinha, mas foi num golpe de soco, que

desmaiada ficara. Paulo Matreiro malvado,

levou Pedrinho no colo, vendeu na vila do

“corgo”, pra um estrangeiro do norte.

Maria acorda de noite, seus olhos

roxos ficaram, onde estaria Pedrinho, Paulo

malvado o levou. Enlouqueceu de tristeza,

de ira e desespero, ao saber que Paulo

vendera todo o amor que tecera.

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7º Ato

O sangue quente ficou, fervera em

todas as veias, com um porrete na mão,

partiu de Paulo a moleira. Ele caiu no

tablado, o sangue corria vermelho, e mais

um golpe levou e este foi derradeiro.

-Sou Sá Maria!

- Sou Sá Maria dos pintos!

-Assim, eu sou chamada, aqui na

vila da serra!

-Agora tudo mudou! Mudou a

minha toada!

-E nesta vida sofrida!

-Serei eu, a “marvada”!

Sá Maria enfezada, dizia com todas

as letras, queria seu filho de volta, e mataria

por isso.

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O sangue jorrava vermelho, do

“coco” de Paulo matreiro, sua cabeça

partida, tingia todo o tablado. E num

suspiro de alívio, Maria saiu da tapera,

fechou a porta ao passado, do que passou no

sobrado.

Maria saiu de partida, como uma

mãe dividida, em amorosa procura, do fruto

do seu querer. E Para trás prometera, nunca

olhar novamente, enquanto Pedro nos

braços, tivesse colo quentinho.

Queria Pedrinho de volta, queria

seu único amor, que do seu ventre saíra,

brotando como uma flor. A flor do sonho

sonhado, que na tapera plantou, do amor

por Pedro de Nada, de todo bem que

deixou.

E saiu Sá Maria, Sá Maria dos

pintos, atrás do filho Pedrinho, sem menos

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tempo tardar. Queria de volta o amor, o

amor divino e marcado, por um anjo do céu.

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8º Ato

Saiu sem mala e sem rumo, seu

rumo agora era Pedro, era o seu filho

nascido. Procurou, então, por Vespúcio, que

sabia tudo de lá, das tretas lá do boteco, lá

do boteco do Armando:

- Me diz meu “cumpadre”!

-“Cumpadre” Vespúcio!

-Onde está o meu filho!

-Meu filho Pedrinho!

Pergunta Maria com dor sem alento,

em lágrimas quentes, de amor Maternal.

-Não sei Sá Maria!

-Mas sei lá da vila!

-Que fora vendido por pouca

quantia!

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-Tem um forasteiro que compra

negrinhos!

-Que leva pra longe em terras

distantes!

Respondeu “cumpadre” com

lágrimas frias, não era seu filho, tão pouco

seu ventre.

-Cuidado Maria!

-Com o povo da vila!

-Pois todos tem medo de Paulo

Matreiro!

Retrucou “cumpadre”, tremendo nas

bases, não tinha coragem nem pouco

respeito. Era um sem vergonha, sem muita

valia, esperava sentado, “cumadre” na lida.

-Não se avexe “cumpadre”!

-Com o Paulo Matreiro!

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-Por que nesta vida não faz mais

maldade!

-Não bate em mulher, nem vende

criança!

-Ele foi pro inferno e lhe manda

lembrança!

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9º Ato

Saiu Sá Maria, andando pra vila, pra

vila do “corgo”, pra vila bandida. Em cada

esquina, dizia Maria, um verso sofrido de

puro amor:

-Eu sou Sá Maria!

-Sá Maria dos pintos!

-Procuro meu filho!

-Meu filho Pedrinho!

- Ele é pequeno!

-Não tem mais de mês!

-No meio da testa!

-Uma marca de anjo!

- Procuro meu filho!

-Que é tudo que tenho!

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-Perdi meu Zezinho, meu pai, minha

mãe!

-. Procuro Pedrinho!

-Que veio do ventre!

-Que é fruto da vida!

-Do amor maternal!

- Ele foi me levado por um

forasteiro!

-Que veio do norte!

-De terras alheias! .

-Se tiver notícia, me diga ligeiro!

-Eu Sou Sá Maria, Sá Maria dos

pintos!

-Eu sou lá da vila!

-Da vila da serra!

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-E conto esta história, de costas pra

lá!

-Procuro meu filho!

-Meu filho Pedrinho!

-Meu único alento, nesta vida de

dor!

Desceu Sá Maria, a rua da vila, da

venda do Armando, boteco maldito.

Perguntou Maria, pra todos os bêbados,

prostitutas, vadias e até pro Armando:

- Eu sou Sá Maria!

-Sá Maria dos pintos!

-Procuro meu filho!

-Meu filho Pedrinho!

- Ele é pequeno!

-Não tem mais de mês!

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-No meio da testa!

-Uma marca de anjo!

- Procuro meu filho!

-Que é tudo que tenho!

-Perdi meu Zezinho, meu pai, minha

mãe!

-Procuro Pedrinho!

-Que veio do ventre!

-Que é fruto da vida!

-Do amor maternal!

- Ele foi me levado por um

forasteiro!

-Que veio do norte!

-De terras alheias! .

-Se tiver notícia me diga ligeiro!

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- Eu Sou Sá Maria, Sá Maria dos

pintos!

-Eu sou lá da vila!

-Da vila da serra!

-E conto esta história, de costas pra

lá!

-Procuro meu filho!

-Meu filho Pedrinho!

-Meu único alento!

-Nesta vida de dor!

Respondeu Seu Armando,

com muita gagueira, a história

contada pra todos peões:

-Eu sei Sá Maria!

- Que Paulo Matreiro!

-Passou por aqui!

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- Com um Embrulho, ligeiro!

-Correu lá pra vila!

-Pra vila do “Corgo”!

-Pra casa Vermelha!

-Do “puteiro” da Dora!

A Dora era “kenga”, do brejo do

torto, mais uma das vilas, que não tinha

conforto. Tinha fama de bicho, de cobra,

Serpente, vendia de tudo, que achava na

frente.

Não tinha nem filhos, amigos,

parentes, tinha o coração negro e sangue

nos dentes. Medo não tinha, amor também

não, e Paulo matreiro, era seu irmão.

Maria não tinha, mais medo de nada,

queria Pedrinho, amor verdadeiro.

Perguntou pra todos, na vila do “corgo”,

mas foi no “puteiro” que teve notícias.

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Dora dizia com olhos distantes, com

coração frio e riso de “iena”. Seu cheiro era

forte, fumava cachimbo, com unhas

vermelhas e dedos compridos:

-Eu vendi o negrinho!

-Por pouca quantia!

-Era tarde da noite!

-E ganhara pouquinho!

Respondeu a Dora, dona do

“puteiro”, com palito nos dentes, cuspindo

no chão.

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10º Ato

Sá Maria chorou, de raiva e tristeza,

só via maldade naquele olhar. Olhava pra

Dora, magrela e esguia, com corpo marcado

pela vida bandida.

O ódio tomou cada canto do corpo,

Sá Maria, de novo, pediu com humildade:

-Eu sou Sá Maria!

-Sá Maria dos pintos!

-Procuro meu filho!

-Meu filho Pedrinho!

- Ele é pequeno!

-Não tem mais de mês!

-No meio da testa!

-Uma marca de anjo!

- Procuro meu filho!

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-Que é tudo que tenho!

Perdi meu Zezinho, meu pai, minha

mãe!

-. Procuro Pedrinho!

-Que veio do ventre!

-Que é fruto da vida!

-Do amor maternal!

- Ele foi me levado por um

forasteiro!

-Que veio do norte!

-De terras alheias! .

-Se tiver notícia, me diga ligeiro!

-Eu Sou Sá Maria, Sá Maria dos

pintos!

-Eu sou lá da vila!

-Da vila da serra!

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E conto esta história, de costas pra

lá!

-Procuro meu filho!

-Meu filho Pedrinho!

-Meu único alento!

-Nesta vida de dor!

Sá Maria implorava, soluçava e

chorava, com os olhos vermenlhos, em

prantos de dor. Mas a Dora maldita, a

fumaça soprava, e sorriso lhe dava com o

canto da boca:

-Mas preto é igual!

-Em todo lugar!

-Quando temos valor, é pra

“trabaiá”!

-O valor é pequeno!

-Não tem discussão!

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-E sem pechinchar!

-É pra “mode” vendê!

Respondeu dona Dora, Dona do

“puteiro”, sem brilho nos olhos, sem medo

no olhar. Maria perdeu o brio de outrora, a

ira e o ódio tomaram lugar.

Com um grito avisou, a Dora

maldita, lhe dando a chance de se redimir.

-Cuidado Maldita!

-Sua puta, Vadia!

-Ao falar de Pedrinho, meu fruto de

amor!

-Eu Sou Sá Maria!

-Não vim pra vingar!

-Procuro meu filho!

-E quero levar!

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Gritou Sá Maria, Sá Maria dos

pintos, pegando uma corda dentro do

“imborná”.

Era corda de fita, da manta azul,

enxoval de Pedrinho, pequeno bebê. Pulou

Sá Maria, nas ventas de Dora, com a fita

enrolou, o pescoço magrelo.

E na ira dos anjos, perguntou mais

valente, sem medo de errar, com vingança

nos dentes:

-Eu sou Sá Maria!

-Sá Maria dos pintos!

-Procuro meu filho!

-Meu filho Pedrinho!

- Ele é pequeno!

-Não tem mais de mês!

-No meio da testa!

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-Uma marca de anjo!

- Procuro meu filho!

-Que é tudo que tenho!

-Perdi meu Zezinho!

-Meu pai, minha mãe!

-. Procuro Pedrinho!

-Que veio do ventre!

-Que é fruto da vida!

-Do amor maternal!

- Ele foi me levado por um

forasteiro!

-Que veio do norte!

-De terras alheias! .

-Se tiver notícia, me diga ligeiro!

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-Eu Sou Sá Maria, Sá Maria dos

pintos!

-Eu sou lá da vila!

-Da vila da serra!

- E conto esta história de costas pra

lá!

-Procuro meu filho!

-Meu filho Pedrinho!

-Meu único alento!

-Nesta vida de dor!

E Dora malvada, com o pescoço

enrolada, falava em sussurros, com sangue

nos lábios.

-Eu vendi o negrinho!

-Pro Alemão do carpelo!

- Forasteiro da cidade!

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-Lá do porto vermelho!

Respondeu Dona Dora, com o

pescoço emplumado, com as mãos de

Maria, de tão roxo apertado.

Sá Maria não largou, de maldade

sabida, Dora do “puteiro”, irmã de Paulo

Matreiro. Sá Maria em ira, em vingança

bendita, apertava a fita, nesta “guela”

maldita.

E a Dora Maldita, enrolada na fita,

esbugalhando os olhos, deu adeus ao

“puteiro”. Esganada caíra, das mãos de Sá

Maria, e para junto de Paulo, foi embora a

tal, dita.

Sá Maria apressou, em continuar seu

caminho, era apenas um porco, no chiqueiro

da vida. E olhou para as putas com os olhos

vidrados, e dizendo baixinho, deixou ali seu

recado:

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-Está carne é estragada!

-É de Negra safada!

-Tantos filhos perdidos!

-Foram por ela vendidos!

-E não sintam tristeza!

-Deste corpo caído!

-Muitos corações de mães!

-Foi por ela entristecido!

Disse Maria em risos, às putas de

Dora, virando as costas depressa, deixou

para trás a escória.

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11º Ato

E andou sem medida e rumo, sem

sono e sem ilusão, atrás do filho perdido e

do alemão forasteiro. Não podia mais

perder tempo, era precioso demais,

Pedrinho estava em perigo, num mundo tão

perigoso.

Até o porto vermelho, Maria andou

sem resposta, pegou carona em charrete, em

barco, em lombo de burro. Em todo canto

que ia, favelas e vilarejos, no caminho o

verso dizia, até o porto vermelho.

Pedia à todos notícias, do alemão

forasteiro, e que comprara seu Pedro,

pagando pouco dinheiro:

-Eu sou Sá Maria!

-Sá Maria dos pintos!

-Procuro meu filho!

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-Meu filho Pedrinho!

- Ele é pequeno!

-Não tem mais de mês!

-No meio da testa!

-Uma marca de anjo!

- Procuro meu filho!

-Que é tudo que tenho!

-Perdi meu Zezinho, meu pai, minha

mãe!

-. Procuro Pedrinho!

-Que veio do ventre!

-Que é fruto da vida!

-Do amor maternal!

- Ele foi me levado por um

forasteiro!

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-Que veio do norte!

-De terras alheias! .

-Se tiver notícia, me diga ligeiro!

- Eu Sou Sá Maria, Sá Maria dos

pintos!

-Eu sou lá da vila!

-Da vila da serra!

-E conto esta história, de costas pra

lá!

-Procuro meu filho!

-Meu filho Pedrinho!

-Meu único alento!

-Nesta vida de dor!

Desceu Sá Maria, no bonde do

Porto, do porto vermelho, do alemão

“trambiqueiro”. E várias vezes em versos,

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notícias pedira, do catador de papel aos

marinheiros do cais.

Andou para um lado e para outro,

não via alguém conhecido, era um mundo

obscuro de medo e desespero. Era um amor

tão teimoso que lhe trouxera esperança, e

num caminho perdido, era só sua balança.

E na calçada abatida, chorou de dor

e tristeza, e da lembrança modesta, por um

anjo marcado na testa.

E na calçada sentada, de fome,

cansaço e tristeza, dormira um sono pesado,

sonhou com Pedro ao seu lado. Até que

uma voz estridente lhe chamou a atenção

pertinente, num beco escuro e vazio, dois

meliantes em prosa.

Ouviu ligeiro a conversa, o que

falavam era fato, era o alemão forasteiro,

era o falastrão revoltado. Tramavam de

novo outro golpe, mais um trabalho

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maldito, vender um negro menino, por

pouco dinheiro ou valor.

-Que fácil é esse trabalho!

- Vender um negro pequeno!

-Pouco dinheiro é de fato!

- Mas prejuízo não tem!

-É machucar uma negra!

-Que está com filho nos braços!

-Tomar o pequeno rebento!

-Vender no cais de partida!

- Não sei pra que serve os

negrinhos!

- Vendidos, se juntam aos montes!

-São muitos no navio escondidos!

- Pra onde vão, eu não sei!

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Responde Alemão forasteiro, que

nem demonstra piedade, por dentro é tanta

maldade, nem lhe faz mal, o veneno.

-E se morrerem por lá?

Pergunta Rodolfo assustado, o seu

comparsa teimoso e com remorso a sentir.

-Eu tenho dó dos pequenos!

-Não sabem por que estão lá!

-Lá no escuro, sozinhos!

-Sem mãe pra leite lhe dar!

No coração já sentindo, tristeza de

abandono, quando ele mesmo menino,

perdera a mãe e seu lar.

-Não se preocupe com negros!

-É mercadoria vendida!

-Dinheiro é que é importante!

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-Pra eles ninguém já mais liga!

Respondeu o maldito Alemão, com

seu cabelo vermelho, sujo de pó de asfalto,

mascando fumo de rolo.

Sorri e acena pra todos, que passam

em porto vermelho, esperando os seus

companheiros, tratara mais um ataque.

Rodolfo seu novo comparsa, não se

interessa no assunto, e destratando o

negócio, a sua desculpa vai dando:

-Não posso roubar de uma mãe!

-Filho pequeno e indefeso!

- De pobre negra e feliz!

- Que deu a luz tão recente!

Retrucou Rodolfo menino, novo

comparsa medroso, não sendo frio e

perverso, pensou sair deste mundo:

-Este serviço não presta!

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-Não me agradara o feitio!

-De bandido malvado e perverso!

-Quero distância de metro!

-Sou só ladrão, não sou mau!

- Não me acostumo com a morte!

-Com esta vida bandida!

- Não quero viver com remorso!

-Acostumar nesta lida!

Retruca o comparsa medroso,

dizendo não ser tão valente, de bater em

negra indefesa e roubar seu filho doente.

-Você é um frouxo, pirralho!

- Precisa comer e dormir!

- Se tem o dinheiro no bolso!

-Então, é melhor me pagar!

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Retrucou Alemão sem demora, o

forasteiro e perverso, no pescoço lançou a

peixeira, Rodolfo se pôs a tremer.

Rodolfo ao sentir sua lâmina, na

pele querendo entrar, afiada como gilete,

arrepiou de medo e pavor.

-Não fique nervoso, Alemão!

-Eu tenho o dinheiro a pagar!

- No bolso de minha bombacha!

-Alguns trocados roubados!

-Pode pegar sem demora!

-Não jogo conversa fora!

-Eu não darei mais problemas!

-Seu, o dinheiro é agora!

Respondeu Rodolfo menino, com

suor na testa a pingar, prevendo a morte nas

mãos de Alemão matador.

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-Desapareça daqui!

-Magrelo, lerdo e feioso!

-Pivete muito medroso!

-Amigo de negro fedido!

-Não quero te ver mais aqui!

-Na vizinhança a vagar!

-Roubando aleijados e putas!

-E velhos desajustados!

Disse Alemão em dois gritos,

cuspindo fumo no ar, deixou Rodolfo

menino, na calça, de medo a urinar.

-Eu já me vou sem demora!

-Não fique zangado, Alemão!

-Eu vou pro lado de lá!

-Daquele velho sobrado!

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-Longe de todo seu reino!

-Da praça de porto vermelho!

- Não me verá mais por perto!

-Da vizinhança do cais!

-Não lhe darei mais trabalho!

-Nem pra limpar sua peixeira!

-Serei fantasma agora!

-Eu já me vou sem demora!

-Saiu correndo de lá, sem olhar pra

trás ou pros lados, nem resmungando ficou,

para “mode” motivo não dar.

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12º Ato

Maria de olho na prosa, ouvia tudo

atenta, de Alemão o demente, e de Rodolfo

o comparsa. Alemão que era o mandante no

cais de porto vermelho e de Rodolfo o

comparsa, apenas um “trambiqueiro”.

Não tinha mais outro jeito, e

precisava saber, onde estava Pedrinho, o seu

pequeno bebê.

Foi perguntar pra Alemão, este

macabro e perverso, com muito medo e

cuidado, mas com esperança contida.

Chegou bem perto e chamou, com timidez

esperada, o Alemão a olhou, com um ligeiro

desdém.

-O que você quer, sua negra?

-Sua vadia fedida!

-Não tenho nada trocado!

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-Melhor!

-Desvia o caminho!

-Não desperdice meu tempo!

-Tenho dinheiro a ganhar!

-Se tens mais um pequenino!

-Não vou querer barganhar!

Com sua frieza exclamou, sem medo

e sem serventia, o forasteiro Alemão,

demônio, perverso e maldito. Maria então

esperou, com um pedido sincero, tirar

daquele infeliz, um pouco de caridade.

-Eu sou Sá Maria!

- Sá Maria dos pintos!

-Procuro meu filho!

- Meu filho Pedrinho!

- Ele é pequeno!

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-Não tem mais de mês!

-No meio da testa!

-Uma marca de anjo!

- Procuro meu filho!

-Que é tudo que tenho!

-Perdi meu Zezinho, meu pai, minha

mãe!

-. Procuro Pedrinho!

-Que veio do ventre!

-Que é fruto da vida!

-Do amor maternal!

- Ele foi me levado por um

forasteiro!

-Que veio do norte!

-De terras alheias! .

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-Se tiver notícia me diga ligeiro!

- Eu Sou Sá Maria, Sá Maria dos

pintos!

-Eu sou lá da vila!

- Da vila da serra!

-E conto esta história de costas pra

lá!

-Procuro meu filho!

-Meu filho Pedrinho!

-Meu único alento!

-Nesta vida de dor!

Disse Maria de novo, seu coração a

se abrir, querendo um pouco tocar, a alma

do dito rapaz. Ele levou com frieza em seu

mundo cínico, sem paz e respondeu o que

devia, sua natureza tenaz.

-Se manda sua fedida!

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-Não sou alguém de brinquedo!

-Sou dono de toda essa doca!

-E não devolvo dinheiro!

-Se quer de volta o seu filho!

-Deve pagar bem mais alto!

-Quero dinheiro na hora!

-Eu nunca vendo fiado!

Sá Maria tentou sem sucesso,

reclamar Pedrinho de volta, mas não recuou

Alemão nem mesmo por compaixão.

-Não tenho dinheiro, Alemão!

-Já não me resta mais nada!

-A não ser o pequeno Pedrinho!

-O meu fruto do amor!

-Devolva meu filho, Alemão!

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- E lhe dou a minha certeza!

-Que não mais verá o meu rosto!

-Em seu mundinho temido!

Dissera Maria coitada, derretendo

em lágrimas quentes, implorando alemão

forasteiro, o seu filhinho entregar. Mas

bandido é mesmo bandido, só pensa em

dinheiro em mais nada e o Alemão

forasteiro, continuou a andar.

-Não vire as costas, maldito!

-Seu malvado “branquelo”!

-Devolva meu filho querido ou eu

lhe chamo a “jongonça”!

Exclamou Maria querendo gritar,

chamar a policia daquele lugar. Alemão

forasteiro não se intimidou, respondeu a

ofensa com muito rigor:

-Vadia, Safada, Crioula fedida!

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-Divido com os guardas, o lucro das

vendas!

- É para não ver espancar uma

negra!

-Tomar o seu filho e vender pra

quem queira!

Pegando o cabelo de Maria dos

pintos, jogou o seu rosto ao encontro do

muro. Cuspindo os dentes, com sangue nos

olhos, deixou Sá Maria, no chão,

desmaiada.

Sá Maria acordou toda inchada e

banguela, mais um dente cuspiu, no passeio

molhado. Veio do alto da serra mineira pra

apanhar na calçada, do porto vermelho.

Era tanto caminho, tanta andança e

cansaço, que sem volta ficara, sem levar seu

pequeno. Queria Pedrinho de volta e nada

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lhe impediria que não fosse a morte ou o

sucesso da busca.

Levanta com dores e roxos, lhe doía

todos os lados. Procurou um canto afastado,

que não tivesse molhado.

Pediu um pão seco ao mendigo, ali

do lado deitado. Comeu com o sangue nos

lábios, em meio a dentes quebrados.

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13º Ato

Descansou pelo dia e de noite

seguira, atrás de alemão seu carrasco

estradeiro. Andou toda noite e a madrugada

perdida e achou alemão num boteco da

esquina.

Eram muita gente, mas todos

errantes, da noite escura, estranhos

semblantes. Maria sabia da cumplicidade,

das broncas “treteriras” de Alemão

forasteiro.

Não queria apanhar, mas precisava

saber, o destino final de seu pequeno bebê.

Um litro vazio de cachaça pegou, num

canto escuro, pertinho dali.

Na esquina sorriam bandidos e

putas, dos crimes, das obras, que o diabo

mandou. E foi sorrateira sua chegada

faceira, que alemão se espantou, com a

negra espancada.

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Não teve tempo de olhar, com

desprezo e desdém, ignorar uma mãe

decidida a matar. Parado um instante no

repente do tempo, esperou o destino traçado

no olhar:

-Eu sou Sá Maria!

- Sá Maria dos pintos!

-Procuro meu filho!

- Meu filho Pedrinho!

- Ele é pequeno!

- Não tem mais de mês!

- No meio da testa!

-Uma marca de anjo!

- Procuro meu filho!

-Que é tudo que tenho!

-Perdi meu Zezinho!

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-Meu pai! Minha mãe!

-. Procuro Pedrinho!

-Que veio do ventre!

-Que é fruto da vida!

-Do amor maternal!

- Ele foi me levado por um

forasteiro!

-Que veio do norte!

-De terras alheias! .

-Se tiver notícia me diga ligeiro!

- Eu Sou Sá Maria, Sá Maria dos

pintos!

-Eu sou lá da vila!

- Da vila da serra!

-E conto esta história de costas pra

lá!

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-Procuro meu filho!

-Meu filho Pedrinho!

-Meu único alento!

-Nesta vida de dor!

Sabendo Maria de sua fraqueza não

quis mais conversa, naquele lugar.

Quebrando a garrafa na quina da mesa, com

as pontas cravou, o pescoço atrevido. E

todos correram no mesmo sentido, ficando

alemão, lá no chão estendido.

Maria com pena de tê-lo ferido,

pediu de outra vez mais notícias de Pedro.

Aquele bandido, deitado escorrido, falava

entre letras, mas não dava o serviço.

-Ele foi embora!

-Pro mar do infinito!

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-Negrinho vendido, é dinheiro

perdido!

Respondeu o monstro, com sangue

no olhar, cinismo e maldade, a resposta a

lhe dar.

-Me diga, Alemão!

-Ou lhe furo mais vezes!

-Quem foi que levou meu neném pra

outras terras?

Maria gritava e gritava de dor, de

dor de lembrança, e esperança perdida.

-Não sei nem o nome!

-Nem mesmo a distância!

-De quem o levou, pro o outro lado

do mar!

- Mas negrinho é negrinho!

-Não serve pra nada!

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-Nem mesmo vendido!

-É pouca a quantia!

Respondeu cuspindo, o sangue

engasgado, não tinha remorso, era bicho do

mato. Maria enfiou a garrafa quebrada, até

não sobrar mais espaço a cortar.

-“Negrin” sem valor!

-Já valeu outras vidas!

-Você é uma delas!

-Mas não vale a medida!

-Medida de um palmo de amor desta

vida!

-De vida de “nêgo”, de vida sofrida!

-A morte é o esteio!

-De vida bandida!

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-Nas mãos que reclamam justiça e

paz!

-Mas como não tenho!

-Meu caro Alemão!

-Decida você se levanta ou não!

- Agonia terá se escapar desta quina!

-De vidro quebrado cravado na

espinha!

-Mas se a morte lhe for como eu

generosa!

-Pro inferno levar-te, irá sem

demora!

Maria virou-se e partiu sem destino,

agora a esperança bem longe ficara,

Pedrinho se foi pelo mar desta vida, em

uma velha barcaça de produto a vender.

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-Tristeza de pobre e tristeza de

“nêgo” !

-Permeiam seus filhos, inocentes

crianças!

- Nas mãos de pessoas que trazem

maldade!

-São almas bondosas no inferno a

sofrer!

Gritava Maria andando e falando em

cada cantinho de porto vermelho. Procurou

Pedrinho, em todo lugar em barcos navios,

e fundos de bar.

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14º Ato

E dias e anos andava e falava, o

tempo passava e a esperança esgotava:

-Eu sou Sá Maria!

-Sá Maria dos pintos!

-Procuro meu filho!

- Meu filho Pedrinho!

-Ele é pequeno!

- Não tem mais de mês!

-No meio da testa!

-Uma marca de anjo!

- Procuro meu filho!

-Que é tudo que tenho!

-Perdi meu Zezinho!

-Meu pai, minha mãe!

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-. Procuro Pedrinho!

-Que veio do ventre!

-Que é fruto da vida!

-Do amor maternal!

- Ele foi me levado por um

forasteiro!

-Que veio do norte!

-De terras alheias! .

-Se tiver notícia me diga ligeiro!

-Eu Sou Sá Maria, Sá Maria dos

pintos!

-Eu sou lá da vila!

- Da vila da serra!

-E conto esta história de costas pra

lá!

-Procuro meu filho!

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-Meu filho Pedrinho!

-Meu único alento!

-Nesta vida de dor!

-Onde está meu filho?

Chorava Maria, deitada nos becos,

falando sozinha, em cantos de dor.

Delirando ficava e o tempo passava, e um

dia um anjo lhe apareceu.

-Eu lhe darei paz!

-Eu guardei vosso filho!

-Em terra estranha terá meu alento!

- E quando voltar lhe trará alegria!

-E um neto virá e será seu contento!

-E nos teus mamilos terá o seu leite

quentinho!

- O amor que carrega alimento será!

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Despediu-se o anjo e Maria

dormiu, cantando letrinhas que

ninavam Pedrinho.

No mar bem revolto, Pedrinho

embalado no porão tão gelado, em trapo

enrolado. Pequenos rebentos unidos a

jovens, no escuro do mundo bem longe dos

pais.

Alimento era pouco e nada de

sonhos, a fome trazia o sono e a paz. E dias

passaram nas vagas da vida, no mar que

circunda estas dores da gente.

Pedrinho dormira e dormira

tranqüilo, nos braços de um anjo que

alimento lhe dava. Embalando o sustento de

tua lembrança, escutava sorrindo, Maria a

cantar.

Nas terras distantes, do lado de lá,

famílias criavam escravos, sem lei. Mas a

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alma bondosa que veste um manto, cuidada

por Cristo pra sempre será.

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15º Ato

Em meio a perversos e seus

capatazes, outra alma bondosa agradou de

Pedrinho.

Num lance mais alto, parou o leilão

e aquele rebento trocara de mãos. Um lindo

sorriso cativo e sincero, brilhou outros

olhos de amor maternal.

Uma outra Maria alegre ficou, Era

Mary Dantez, espanhola abastada. Sua vida

de luxo, dinheiro e poder, desencanto lhe

trouxe, sem a magia do parto.

Mas Pedrinho, negrinho dos olhos

cativos, o seu sonho de mãe lhe sorriu sem

medida. E aquela alma boa de outros cantos

do mundo, lhe fez todas as honras que lhe

permitia o amor.

Um amor encontrado de ambos os

lados que o destino traçou, nas tristezas do

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mundo. Um mundo distante de homens sem

alma, sem pena e sem paz entre guerras

medíocres.

E Mary Dantez se curvou ao amor e

uma benção de mãe lhe trouxera dos céus.

Nos seus peitos de mãe, Pedrinho mamou e

o leite saiu, pra matar sua fome.

E Mary Dantez, chorou sem medida,

e o rebento levou, na nobreza a viver. E o

tempo passou nos dois lados do mar, e

Maria dos pintos, não deixou de esperar.

Mas o alivio que o anjo lhe dera no

sonho, lhe embalava o sono, nas calçadas

geladas.

E o tempo passara e passara e

passara e Maria dos pintos, desolada ficara.

Um “trabáio” aqui, um “trabáio” ali, nos

mercados rendera uns poucos centavos.

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Comia a metade, e metade guardava,

mas o ganho era pouco, pro barraco não

dava. Foi ficando nas ruas, nos cantos e

becos, e doente ficara, num mês de

dezembro.

As chuvas eram tantas, não tinham

marquises, que lhe desse aconchego,

estavam todas lotadas. Os mendigos e

bêbados, não lhe deram lugar, e na chuva

ficou até o alvorecer.

A fome e a febre tomou-lhe o corpo

e nem pra levantar-se coragem tivera.

Delirando e gemendo de dor e fraqueza,

uma mão estendida lhe trouxera aconchego.

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16º Ato

Maysinha Cabral, carinhosa e

alegre, lhe chamou com cuidado lhe

cobrindo o corpo. Um abraço sensível de

amor e de paz, trouxe graça e conforto, a

uma mente incapaz.

Sá Maria, um canto agora teria e

cuidados de filha Mayza daria. Sá Maria

demente, repetindo ficara, sempre só e

perdida em seu mundo a sofrer.

E dizia e, dizia e, dizia e, dizia...

-Eu sou Sá Maria!

- Sá Maria dos pintos!

-Procuro meu filho!

- Meu filho Pedrinho!

- Ele é pequeno!

-Não tem mais de mês!

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-No meio da testa!

-Uma marca de anjo!

- Procuro meu filho!

-Que é tudo que tenho!

-Perdi meu Zezinho!

-Meu pai! Minha mãe!

-. Procuro Pedrinho!

-Que veio do ventre!

-Que é fruto da vida!

-Do amor maternal!

- Ele foi me levado por um

forasteiro!

-Que veio do norte!

-De terras alheias! .

-Se tiver notícia me diga ligeiro!

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- Eu Sou Sá Maria, Sá Maria dos

pintos!

-Eu sou lá da vila!

-Da vila da serra!

-E conto esta história de costas pra

lá!

-Procuro meu filho!

-Meu filho Pedrinho!

-Meu único alento!

-Nesta vida de dor!

Maysinha Cabral lhe levara pra

casa, uma casa pequena, mas com amor que

sobrava. Tinha cama e comida, e “trabáio”

mais leve, era muito conforto, para um

corpo surrado.

Surrado da vida do passado e da

lida, das histórias das ruas desalentos e

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dores. Mais os anos passavam nesta espera

doída, mais um ano nascido, comemora

Maria.

-Quantos anos terá, o seu filho

agora?

Perguntava Maysa puxando

conversa.

-É um rapaz tão bonito, educado e

singelo!

-Com o coração puro, de um homem

feliz!

-Não sei mais quanto tempo ele está

lá fora!

-Mas sei, não demora voltar pro seu

lar!

Respondeu Sá Maria sorrindo com

os olhos, no semblante a tristeza,

perturbando ficava.

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-Ele um dia vai vir!

-Para um abraço me dar!

-Antes de partir para junto de Deus!

Um sorriso se abriu em seus lábios

sofridos, e falhas mostrara, seus dentes

perdidos. Nas lutas das ruas com seus

desafetos, na procura incessante da

esperança distante.

E distante dali, no mar de outras

terras, Pedrinho ganhara outro nome bonito.

Uma casa e um lar muito amor e carinho,

educado e viril era um nobre menino.

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17º Ato

No passado abastado, de nobreza e

luxo, tinha Mary Dantez se afogado em

mágoas. Entre guerras e intrigas, de

ganância e morte, foram tantas as dores que

tivera no amor.

Na riqueza ou pobreza, a maldade é

um nó, que sucumbem os bons, que se

esquecem da fé. Foram sonhos perdidos na

nobreza de Mary, ela perdera seus pais

quando ainda era jovem.

Um casamento arranjado com outro

nobre e idoso, lhe deixaram mais rica e

mais só em seu leito. Mas o jovem Felipe,

rei de Brum e Algarves, lhe ganhara o amor,

mas pedira um filho.

Tão feliz e contente, um casamento

carente, não pudera ter filhos no seu ventre

doente. O jovem rei tão demente, da doença

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terçã, que da orgia surgiu, de repente o

levou.

Fizera-lhe tantas maldades, lhe

traíra o leito, suicidou-se tão novo com uma

espada no peito. Um destino cruel para uma

senhora tão bela, tanto orgulho e graça, não

devia ser dela.

Pedrinho ganhara outro nome, um

nome fogoso, de tamanho e nobreza de filho

de rei. Era José Alberto de Bragança e

Sevilha, que de Espanha herdaria bem mais

que uma ilha.

Mary Dantez orgulhosa, como mãe

adotiva, lhe contou toda a história, de sua

vida sofrida. Contou-lhe assim seus

segredos, e seu encontro com Pedro, na

chegada no cais, em um barco pesqueiro.

Sua carta leilão lhe entregara

deitada, em seu leito de morte, no final da

estrada. Nesta estrada da vida, alegria lhe

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dera, todos os anos vividos, fora mãe com

fervor.

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18º Ato

E Pedrinho, o José que agora

herdara, toda fortuna e amor de sua mãe

emprestada.

Mas curioso estava de conhecer as

origens, o seu passado distante, e sua mãe

verdadeira. E preparou uma viagem, pras

terras de além mar, pras terras de Sá Maria,

para o Brasil das gerais.

Não suportava a distância, perder

mais tempo ausente, de uma verdade

presente, no coração a doer. A sua mãe de

outras terras, talvez tivesse morrido, mas o

amor era tão forte que lhe chamara nos

sonhos.

Aqueles sonhos perdidos, de uma

sina cruel, sentia dor e saudade, de sua mãe

que o gerou.

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Sem tardar ordenou, em preparar o

navio, que partir já iria para o país tropical.

E no Brasil aportara em pomposa manobra

era José Alberto de Bragança e Sevilha.

O Pedrinho perdido, que pequenino

se fora, aportara pomposo, aqui em porto

vermelho. Nesta viagem tão grande, às

vezes mundo pequeno, em coincidências

incríveis, voltar ao cais de partida.

Partiu do cais tão pequeno, saindo

de porto vermelho, e sem cuidados e cores,

voltara um nobre doutor. Em belos trajes

chegara, com boa fala cantada, com seus

leais professores, os mais famosos do

mundo.

Em restaurantes, hotéis e nos teatros

mais caros se via Pedro o José lá de

Bragança e Sevilha. Um negro todo bonito,

pele emplumada de cores, de todas as

honras e glórias de seu herdado poder.

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Por todos os lados se via em

reverências servis, brancos de todas idades,

como escravos gentis. E bajulado, ele era,

por brancos, pardos e negros, mas o que

mais lhe agradava era um elogio sincero.

Hipocrisia sentia, sorrisos fartos

inglórios, em muitos gestos, lugares, em

muita gente feliz. Tudo movia em seu

mundo, em benefícios e serviços, notícias,

contos e velas de todo lado se vinha.

E da Janela mais cara, do luxuoso

hotel, O Caballeiro Del Vista, que abrigava

a nobreza. Este tomara lugar daquela

simples tapera, que outrora fora distante,

um quase lar que tivera.

Do luxuoso hotel, em aposento tão

nobre, ele avistou bem distante um gesto

simples de amor. Lá no final da estrada, em

meio a grande pobreza, tinha uma alma

bondosa que espalhava ternura.

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19º Ato

Era Maysa Cabral, tratava a fome

dos pobres, dos pobres, velhos e enfermos,

que caminhavam por lá. Pedro o José de

Bragança e de Sevilha também, mui curioso

ficou, em conhecer tal senhora.

Imediata ordenança, mandou buscar

sem demora, o seu transporte mais nobre,

para poder conhecê-la. Queria seu mundo

olhar, e descobrir seus segredos, em

conhecer tal bondade, saber se era verdade.

Mas ao chegar e aportar, em seu

lugar avistado, não encontrara Maysa,

estava de volta ao seu lar. E perguntou

desolado a todos ali recostados, quem era

aquela alma boa, que lhes tirara a fome.

-Quem é esta moça?

- Que vi trazendo agasalho!

-Comida e roupas bem secas?

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-Acaso ela é tão nobre?

-Com posses e muita riqueza?

-Para cuidar de tanto pobre!

-Com amor e tanta presteza?

-Que gesto é este tão nobre?

Pergunta Pedro o José, que intrigado

ficara e com tamanho interesse, com tal

beleza tão rara.

Na mesma frase em resposta, como

em coro formado, mendigos e velhos

gritaram com os semblantes felizes.

-Era a pequena Maysa!

-A Maysinha Cabral!

-Fada madrinha da gente!

-Que apareceu no quintal!

-Coisa mais bela e perfeita!

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-Em tempos muito difíceis!

-Toque de amor neste mundo!

-De coração tão presente!

Pedro ficou tão contente, ver elogios

tão raros, a uma mulher que tão jovem,

cuidara tantos destinos.

-Preciso saber agora!

-Onde mora esta senhora!

-Porque nem mais sem demora!

- Mais um pedido farei!

-Procuro por uma negra!

-Que deu me um nome qualquer!

-Que nome agora eu não sei!

-Mas saberei se puder!

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Exclama Pedro o José com água

clara nos olhos, olhos distantes no tempo,

no cais do porto a vagar.

-Eu sei que hoje ela irá!

-Pra outra banda da serra!

-Dentro de Minas Gerais!

-Bem, lá pro lado de lá!

Respondera alegre, um deles,

enrolado em trapos de lã, com sua pinga de

lado, comendo um “naco” de pão.

-E como eu faço, amigos?

-Pra nesta serra chegar!

-Nessas Minas Gerais que é lá do

lado de lá?

Perguntou grão José já muito aflito

e nervoso, querendo logo saber, a que

destino tomar.

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-Siga esta rua, direto da praça!

-Verás a estação, e o trem a parar!

Respondeu outro negro velho,

sentado, bem perto querendo um gole de

pinga.

-As serras de Minas são muitas e

grandes!

- Como saberá que lugar procurar?

Perguntou um negro, bem velho e

doente, num canto, demente em seu mundo

a vagar.

-Eu sei que sou negro!

-Com uma marca na testa que todos

me dizem ser marca de anjo!

-Minha mãe, ao me ver, no olhar

certamente!

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-Pela marca do anjo reconhecido

serei!

Retrucou o jovem Pedro, o José de

outras terras, que queria saber do seu

mundo real.

-Eu já escutei à anos atrás!

-Uma negra e louca dizer algo

assim!

Disseram dois bêbados, do tempo

surrados, os dentes levados, pela vida cruel.

-E quem era a louca!

-A negra maluca!

-Andarilha e demente que me dera a

luz?

Perguntou Pedrinho, agora contente,

com aquela notícia, uma luz despontou. Um

começo de sonho, de um mundo perdido,

revelado seria, para a glória do amor.

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-Um versinho cantava, conhecido

por todos, de tanto falar, nos deixava tão

loucos!

Mais um dos mendigos sentados,

dissera , pensando saudoso naquele refrão.

E todos falavam pausados ou não, a letra da

negra, que andara por lá:

-Eu sou Sá Maria!

- Sá Maria dos pintos!

-Procuro meu filho!

- Meu filho Pedrinho!

- Ele é pequeno!

-Não tem mais de mês!

-No meio da testa!

-Uma marca de anjo!

- Procuro meu filho!

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-Que é tudo que tenho!

-Perdi meu Zezinho,meu pai, minha

mãe!

-Se tiver notícia me diga ligeiro!

- Eu Sou Sá Maria, Sá Maria dos

pintos!

- Ele foi me levado por um

forasteiro!

-Que veio do norte!

-De terras alheias! .

-Se tiver notícia me diga ligeiro!

- Eu Sou Sá Maria, Sá Maria dos

pintos!

-Eu sou lá da vila!

-Da vila da serra!

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-E conto esta história de costas pra

lá!

-Procuro meu filho!

-Meu filho Pedrinho!Meu único

alento!

-Nesta vida de dor!

-Mas não se avexe, meu jovem

mancebo!

-Com o fim da história, que vamos

contar!

Disseram que fora pros braços do

mestre, descansar desta vida de dor e

“trabáio”.

José que era Pedro ao ouvir se

revolta, do destino mal dito, de não

conhecê-la. E saiu sem um rumo pro lado

da praça, com seus capatazes, seguranças

armados.

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20º Ato

Sentou-se num banco num canto da

praça, de onde se via o trem na estação.

Seus sonhos sonhados com triste esperança

lhe trouxera a lembrança que nunca tivera.

Com um prego na mão escrevia

chorando, seu verso de dor, iluminando o

caminho. Ao olhar para chão estava escrito

em rabisco aquele versinho de amor

desmedido.

Alegria tivera, seu nome era Pedro,

mas o que não sabia, sua mãe é Maria.

Sá Maria dos pintos, do Vale da

Serra, lá das Minas Gerais, que era dor e

“trabáio”. Sentiu um alento, num pulo

desperta, comprou a passagem e fora

ligeiro.

Pras terras de Minas, pra vila da

serra, pra Maria dos pintos sua mãe

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verdadeira. E pegara o trem na estação de

manhã como todos na fila sem diferença ou

valor.

Ao ver uma jovem com malas

enormes, socorreu bem ligeiro, como um

cavalheiro. Um sorriso lhe dera com muito

agrado, e José que era Pedro, lhe seguiu

com o olhar.

A jovem Maysa, tão linda princesa,

que levara Maria, para sua casa morar.

Trocaram olhares, em vários lugares, na

estação, nas paradas, no vagão restaurante.

Desceram em Minas, em Belo

Horizonte, Maysa pra um lado e Pedro pra

outro. Maysa viera comprar muitas coisas,

sapatos e roupas e ver sua família.

Deixara Maria em mãos cuidadosas,

da amiga Jandira de terra formosa. Jandira,

cuidava, penteava e limpava, e Maria

sorrindo, agradecida ficava.

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E foi com alegria de ovelha

desgarrada, voltando ao grupo, com pé na

estrada. Que Pedro ou José procurava

Maria, Sá Maria dos pintos, Sá Maria da

serra.

E quando chegou, com a pinta de

nobre, a serra parou para vê-lo passar. Sua

pele era negra, seu olhar era sobrio, seu

coração era puro, era filho da serra.

Num versinho pedira de todos

notícia da velha Maria, da Maria da Serra.

-Eu sou o Pedrinho, que partiu para

longe!

-Bem longe no mar, em terras

distantes!

-Sou filho da serra!

-De vila da serra!

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-Minha mãe Sá Maria, Sá Maria Dos

pintos!

- Se notícia tiver!

-Me diga ligeiro!

-Eu sou o Pedrinho, da Maria dos

pintos!

- Procuro minha mãe!

-Que é tudo que tenho!

-Perdi meu alento, e vivo sozinho!

-Sem alento e sem paz, neste mundo

de dor!

- Procuro Maria, o meu ventre de

amor!

Em todos os cantos que ia e que

vinha, seguido por todos, Pedrinho seria. E

todos queria notícias lhe dar, esperando

agradar e trocados ganhar.

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A pobreza era muita, dos negros da

serra, de “trabáio” e cansaço, era o dia e a

vida.

Por que “trabáio” é que tinha,

alegria não tinha, Porque “trabáio” é que

tinha, alegria não tinha.

E nos olhos de todos de Vila da

Serra, ele vira a dor desta lida pesada. De

“trabáio” e cansaço, de dor e cansaço, de

vida de “nêgo”, sofrida e sofrida.

Dos olhos minaram, lágrimas sem

par, e Pedrinho de nada, encontrou seu

lugar. Um abraço gostoso, dava no povo

sofrido, e trocado as crianças, que virava

alarido.

Sorrisos e lágrimas e o vento a

soprar, tantos olhos tão negros, com ternura

a olhar. Um filho que fora e voltara tão

nobre, era orgulho de todos, do mundo, os

mais pobres.

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E negros pisados sofridos, cansados,

da vila da serra eram todos condenados.

Mas não para Pedro, que agora José, era

rico e abastado, nas terras de Espanha.

E toda a serra comprou, para o povo,

para os negros da vila, um doce desejo.

Quão grande a festa em sua partida, fizeram

os negros cantando cantigas.

Na tapera da Serra, de Maria e

Pedro, onde o amor fora puro e lhe dera a

vida. Mandara fazer um linda igreja, onde

os negros sofridos encontravam a paz.

A vida na Vila, na Vila da Serra, não

era mais dor e “trabáio” forçado. Agora

“trabáio” era mesmo trabalho e dignidade

era fruto do amor.

Lavrando e cantando no próprio

roçado, colhendo os frutos do próprio suor.

O mundo sorria com graça e vida pro

“nêgo” da roça de história sofrida.

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E Pedrinho contente, despediu-se de

todos, seu povo da Vila, dos negros da

Serra. Na estação tanto choro, ao partir

Grão José o Pedro da vila, o orgulho dos

pobres.

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21º Ato

E voltou para o cais, para Porto

Vermelho, e no trem encontrou Maysinha

Cabral. A flor que sorrira, na outra viagem,

chamou atenção de seu coração.

Coincidentes, singelos, encontros

formosos, Maysa tivera com Pedro o José.

José já sabia, em seu coração, escrito na

palma, os mistérios da alma.

E com Maysa flertou e várias vezes

sorriu, e a timidez foi embora, quando o

trem apitou. Na estação, coincidente, num

esbarrão displicente, um lindo sorriso de

Maysa Cabral.

E num pequeno encontro, dois

destinos se cruzam, Maysinha e João

deixaram fogo no olhar. Numa pequena

conversa, apresentados ficaram, e o

endereço longínquo, era ao lado do mar.

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Maysa, princesa, sorriu com alegria,

com gosto e sem pressa, enamorada ficou.

Pedrinho partiu, para terras distantes,

levando o semblante de Maysa Cabral.

Não encontrara Maria, não

encontrara sua mãe, uma dor que doía lhe

deixara solidão. Mas seu nome era Pedro e

sua história real, e um anjo encontrara era

Maysa Cabral.

Apaixonado ficara com seus olhos

tristonhos, os seus lábios carnudos, o seu

cheiro de rosas. Em seu sonho lhe abraçava

e beijava teu corpo, e no alvorecer lhe

deixava seu gosto.

E o sol despontava a brilhar no seu

rosto e a noite em teu quarto seu semblante

encantava. Maysa lhe trouxe o alento e a

paz e José que era Pedro encontrou seu

lugar.

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No sofrimento de mãe, tudo fizera

sentido e pela felicidade de um filho toda

mãe é igual. Se no mundo tiver um amor tão

contido, não haverá coração que suporte a

dor.

O tempo passou e passou bem

ligeiro e por cartas falavam, Maysa e José.

E em poucas palavras se amavam em letras

e não contara o segredo de sua origem na

serra.

Sua princesa Maysa tão longe

tivera, numa fração brasileira, cultivando o

amor. E um anjo guardara os caminhos das

vidas, de duas crianças, crianças queridas.

A vontade crescia de vê-la de novo,

aquele rosto singelo, brasileiro e formoso.

Maysinha contava a Mãezinha Maria, que

se sentia feliz com seu novo namoro.

E o romance bonito dos pequenos

rebentos de Sá Maria dos pintos, ia aos

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poucos crescendo. E um convite chegou pra

conhecer um castelo, e Maysinha sentiu que

agora era sério.

Suas Malinhas fizera, por que o

navio esperava, com o melhor aposento,

que o dinheiro pagara. Maysa chorou

despedindo contente de Sá Maria dos

pintos, de Sá Maria da Serra.

E Sá Maria chorou, por sua filha

querida, que era tudo que tinha, amor puro

e divino.

Do outro lado do mundo, ansioso e

nervoso, estava Zé que era Pedro, num

castelo formoso. E Maysinha descera do

outro lado do mundo, no cais do porto

bianco, outras terras Sevilhas.

Pedrinho agora era duque, tinha

poder e imponência, dono de solos

distantes, de terras, portos navios. E recebeu

Maysinha, com festas e cantorias, muita

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bebida e docinhos e muitas flores

vermelhas.

No cais a festa foi grande, com

muitas cores e brilhos e Mayzinha menina,

virou duquesa mulata. José lhe fora Cortez,

anfitrião de seu reino, lhe dera toda atenção,

pois era grande a paixão.

E três semanas ficaram em risos,

passeios e contos e indecisos olhares se

amaram feito crianças. Falaram e nada

disseram, eram amantes novatos nas terras

vastas do amor, que como sede brotara.

E nos jardins se encontravam,

colhendo flores e lírios e entre sorrisos

ficaram em nome do amor que nascera. Mas

numa rosa vermelha pequeno espinho

fincara o dedinho de Maysinha que muito

triste chorou.

E José, um beijo lhe dera, em seu

dedinho ferido, e com carrinho soprou pra

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dor do espinho passar. Olhando os olhos

pedintes, que de José despontou, dos lábios

quentes vermelhos, um beijo doce ganhou.

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22º Ato

E nos seus corpos bem juntos em

seu calor de paixão, deixaram tudo de lado,

numa profunda emoção. Maysa toda

empolgada deixou o vestido cair e o seu

corpo entregou ao fogo desta atração.

O amor revela o desejo da carne e o

do coração que no suor escorria de seus dois

corpos em ação. Maysa gozou o seu gozo,

de amor e pura paixão, José num longo

suspiro realizou seu desejo.

E semanas passavam em delicias e

os corpos sedentos se saciavam em

orgasmos. Mas Maysinha, Maria deixara e a

saudade doída apertava em seu peito.

A saudade cortava o coração de

Maysa, de sua mãe Sá Maria, Sá Maria dos

pintos.

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23º Ato

E num acesso de angústia de tudo

tão lindo, sentiu que outras vidas sofriam

sua ausência perene. Pediu a Pedro mais

tempo, de conhecer seu destino, que seu

amor era puro, mas seu trabalho divino.

Ela voltou pros seus pobres, mas só

pensava em Pedro, chorava às vezes

sozinha, mas seu orgulho era nobre. Pedro

ficara mais firme e seu desejo maduro,

queria casar com Maysa e construir o seu

lar.

E de noivado mandara um lindo

pedido, e num navio chegara num cavalo

alazão. Descera nobre, vestido, e procurou

sua morada, ajoelhado e gritou com o anel

em sua mão.

Maysa quase em desmaio, correu

aos braços do amado e num beijo tão doce

aceitou se casar.

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24º Ato

Maysa pobre menina, nasceu nas

Minas Gerais, na linda Belo Horizonte, num

bairro afastado. E num pequeno casebre, era

sua mãe e seu pai, vivendo como podiam,

num mundo sem paz.

Ela tivera um filho quando ainda

menina, sua intimidade violada assim como

Maria. Tivera filho solteira, de seu vizinho

Walmir, que mais que Paulo Matreiro era

tão mau seu porvir.

Ele a tomara a força, na vizinhança a

brincar, não tinha nada a perder, um

beberrão a vagar. E fora toda marcada, mas

a justiça foi feita, seu pai ao vê-la tão triste,

matou Walmir seu algoz.

Mas como negro é que sofre, seu

pobre pai fora preso. E na justiça dos

homens sofrera como animal. Num belo dia

de sol, fora espancado por praças, porque

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Walmir era um deles, de todos era

comparsa.

E a “policia” , maldita, que só queria

poder, matou seu pai Jõao Alfredo, por

proteger seu bebê. E sua mãe ficou triste

deste destino cruel, morreu bem pouco

depois, desgosto é como fel.

Ficou sozinha Maysa com seu

rebento nos braços, mas o pequeno menino,

morreu depois de nascer.

Ela foi embora pra longe, nunca

tentou esquecer, pra não sofrer mais um

pouco, o seu passado perverso. Se dedicou

aos mais pobres, aos indefesos, coitados,

que caem pelas calçadas e são por ricos

pisados.

Mas o senhor nosso Deus, que

sempre tudo observa, em seu caminho tocou

o coração de Pedrinho. E num pequeno

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detalhe de sua vida de dor, guardou a

felicidade de seus filhinhos do amor.

Maysa tinha parentes, mas não lhe

deram guarida, e nos seus dias de choro, foi

pelos pobres atendida. Quando encontrara

Maria, de sua mãe relembrou, em seu

abraço sincero, veio o consolo de amor.

Chorou por ser recebida, nos braços

de Sá Maria, e tudo que a entristecia, foi

embora sem despedida. Sua mãezinha

querida era Maria das Dores, eram Marias

suas mães em suas dores de parto.

Como Maria sofrera por Jesus Cristo

menino, sofreram tantas Marias, nas mãos

do duro destino.

José o Pedro menino, do outro lado

do mar, filho de Mary Dantez, fora mimado

bebê. Criado com todo zelo, com grande

amor e carinho, de sua mãe adotiva, ganhou

bem mais que amor.

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Seu grande gesto de nobre com o

povo pobre da vila, lhe demonstrou o

caráter que Deus lhe dera pequeno. A

gratidão estampada em seu semblante ficou,

a pele negra marcada deixou ali seu valor.

Para o mundo medíocre que põe na

cor o caráter, Pedro o José se mostrou,

muita humildade e saber. Com seu poder e

dinheiro, duque de terras e mares, veio catar

as raízes de seu caminho escondido.

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25º Ato

O casamento marcado, José o Pedro

pequeno, filho de Pedro de nada e Sá Maria

dos pintos. Era também abastado José

Alberto de Bragança e Sevilha, de uma

duquesa cativa de terras de além mar.

Ele rendera seus dotes de homem

culto e fino, mas o que importa é o amor,

sabia desde menino. E visitava Maysa e no

portão cortejava, sua beleza tão doce aos

poucos lhe embriagava.

Mas nunca pode entrar, enquanto

noivo estivesse, Maysa assim lhe ordenara,

como uma espécie de prova. E ansioso

ficara e cada dia aumentava, e nem um

beijo lhe dera, Maysa falava sério.

E restaurantes bonitos e os teatros

mais caros ele levava Maysa, mas isso não

lhe agradava. E numa noite bonita, a lua

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estava tão clara e um mendigo chorava,

sentado a beira do cais.

Ela pediu ao cocheiro que de

imediato parasse e correu em seu socorro

sentando perto, ao seu lado. José ficou a

olhar com um suspiro guardado, e quando

viu um sorriso, ele se pôs a chorar.

Um riso alegre e vazio sem nem um

dente na boca, era o mendigo chorando que

agora estava sorrindo.

Maysa então lhe abraçou e levantou-

lhe dali e trouxe perto de Pedro:

-Este é o amigo Eli!

Ele sorriu mais um pouco e ofereceu

o seu pão, Pedro chorando aceitou e lhe

chamou de irmão. Pedrinho então entendeu

onde o amor existia, no coração de Maysa

toda pureza do mundo.

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A noite clara ficou, por que já clara

estava, a lua linda no céu e o olhar de

Maysa. José levou Maysinha e em sua casa

a deixou, e com seu novo amigo, voltou pro

seu caro hotel.

E o mendigo sorrindo, fora barrado

na porta e um semblante fechado o recebeu

sem resposta. José entrou em defesa e uma

briga formou, os seus capangas armados

deixaram muitos deitados.

Gritos dos brancos, dos ricos de

marginais abastados, dos imorais, sem

respeito e dos burgueses racistas. Queriam

fora o mendigo, queriam-no longe dali,

porque era pobre e preto e o seu cheiro

grotesco.

-O cheiro e a cor repugnam!

- Gritava um branco “branquelo”,

Cheio de ouro e medalhas que era de venda

de negros.

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-Negro vai ser sempre escravo!

Dizia outro branco atrevido, bebendo wiskie

importado em copo caro de vidro.

Com seu refrão empolgado, dava

risada o safado, mas num segundo instante,

levou um soco no olho. E um tumulto

seguiu, e muito coro e pancada, Pedrinho e

os fortes capangas, muita vantagem

levavam.

Bateu com gosto e coragem, num

bando de podres racistas, quando a

“jongonça” chegou, já estavam fora de

vista. Pedro entendeu o sofrimento e o

recado divino, de tal mazela dos negros,

jovens e pobres meninos.

A noite clara chamava pra mais um

longo passeio e resolveu caminhar sentir um

pouco de paz. Numa prainha pequena, ali

bem perto do cais, ouvindo o mar e as vagas

e proseando ficou.

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E ser de Eli companheiro e sua vida

entender, viu a tristeza do negro, neste teu

pátrio poder. Bebeu de gole a cachaça,

conversou sobre seu povo, da vida dura de

negro, de sofrimento constante.

De desrespeitos constantes, de

covardia e “trabáio”, neste país de

hipócritas e de horrendos nazistas.

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26ºAto

E na manhã do outro dia, acordando

na praia, com areia entre os dedos, Eli

trouxera o café. E todo o dia passaram

andando em porto vermelho e conheceram

outros negros em suas vidas de “nêgo”.

Carros passavam bem novos,

charretes puxadas por burros, e assim Eli

lhe falava, o que era o futuro do mundo.

Agora negro é ninguém, apenas filho de

escravo, mas como tudo evolui, um dia vai

ser doutor.

E todo aquele que um dia veio

botar-nos pra fora, vai ter um filho ou um

neto tratado por um de nós. E nesse mundo

pequeno, de preconceito e maldade, verão

que negro é só cor, pois somos filhos de

Deus.

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Pra todo branco “branquelo”, um

“nêgo” preto terá e nunca mais nos dirão a

que destino levar.

José passou no hotel pra roupa nova

trocar, depois no banco passou pra suas

contas contar. E num pequeno relance na

bolsa de Nova York, trouxera mais capital

que é para coisas comprar.

Investidores fiéis trouxeram a

papelada, na mesma hora cantou, a sua frota

pesada. Comprara tantos navios quanto

coubesse o porto e na tacada final levou

também o hotel.

O seu hotel caballeiro agora era

pensão de todos negros bastardos que lá

dormiam no chão.

E só queria contar para Maysinha

depressa, que agora o negro mendigo teria

cama e comida. E no caminho encontrou

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mais uma vez seu Eli, que mui contente

acenou, com seu sorriso sem dente.

José bateu campainha e Maysinha

atendeu e um versinho lhe disse pra sua

história contar:

-Eu sou o Pedrinho menino!

-Parti para longe de lá!

-Que é bem longe no mar!

-Em terras firmes distantes!

- Eu sou um filho da serra, ali de vila

da serra!

- De minha mãe Sá Maria, de Sá

Maria Dos pintos!

-E se notícia tiver , você me diga

ligeiro!

- Eu sou o Pedrinho menino, de Sá

Maria dos pintos!

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- Procuro sempre minha mãe!

-Ela é tudo que tenho!

-Perdi o alento e a paz, agora vivo

sozinho!

-E sem alento e sem paz e neste

mundo de dor!

-Procuro mãe Sá Maria, que é meu

ventre de amor!

-Mas se ela tivesse lhe visto, neste

mundinho pequeno!

-Ela diria, sem pressa! Boa escolha é

Maysa! Mas ...

Ao ouvir este versinho, de ternura e

muito carinho, Maysinha chorou, com um

soluço contido. Lá no fundo uma voz

ressoou com eco divino e outro pequeno

versinho respondeu com amor, seu menino:

-Eu sou Sá Maria!

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-Sá Maria dos pintos!

-Procuro meu filho!

- Meu filho Pedrinho!

- Ele é pequeno!

- Não tem mais de mês!

-No meio da testa!

-Uma marca de anjo!

- Procuro meu filho!

-Que é tudo que tenho!

-Perdi meu Zezinho!

-Meu pai! Minha mãe!

-Se tiver notícia me diga ligeiro!

- Eu Sou Sá Maria, Sá Maria dos

pintos!

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- Ele foi me levado por um

forasteiro!

-Que veio do norte!De terras

alheias! .

-Se tiver notícia me diga ligeiro!

- Eu Sou Sá Maria, Sá Maria dos

pintos!

-Eu sou lá da vila!

-Da vila da serra!

- E conto esta história de costas pra

lá!

-Procuro meu filho!

-Meu filho Pedrinho!

-Meu único alento!

-Nesta vida de dor!

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José deu um pulo, assombrado,

pudera o susto tomado, não tinha certeza de

ouvir, dizer aquele bocado. Maysa olhava,

encantada, de forma terna e surpresa,

Pedrinho, o filho perdido, de volta estava ao

seu lar.

De novo ouvira Maria, em seu

versinho a dizer, por longo tempo em

silêncio em seu desejo a sofrer. Chorou de

alegria e saudade contida em todos seus

sonhos, passados em água corrente em que

vivera distante.

Caminha e chora baixinho com

passos firme, pequenos e encontrou com

Maria, a Sá Maria dos pintos. Um abraço

meigo sereno e de saudade apertada, por

entre lágrima quentes Maria abraça

Pedrinho.

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E Maysinha sentada sorria meio

engasgada, agradecida por Deus, neste

reencontro da estrada.

Pedrinho chorando pedira Maria a

mão de Maysa, um casamento feliz com a

sua filha querida. Soluços, choro e alegria

que estavam à muito contidos, deixaram

toda a tristeza de Sá Maria esquecida.

Sorria as dores doídas, de todas as

dores sentidas, com as mãos por sobre as

cabeças abençoava os meninos.

É o que quero na vida, o que sonhei

com carinho, é toda benção do mundo,

nesta aventura de dor. De dor e muito

“trabáio”, mais dor às vezes que “trabáio”.

E agora livre em teus braços, me

sinto tão pequenina, no colo tu me carregas,

é o meu pequeno bebê.

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Casaram Pedro e Maysa, e o filho

viera depois, e era o neto querido de Sá

Maria dos pintos. Pedro José era o nome de

seu netinho mais novo e amamentou como

mãe em seu mundinho esquecido.

Sá Maria então chorou de alegria

agradecida, de novo o amor floresceu em

seu canteiro de flores.

E Sá Maria dos pintos, deixara tudo

pra trás e encontrou seu Pedrinho que de

seu nada era tudo.

E seu versinho sofrido foi por cristo

respondido, e o seu sonho de mãe, realidade

tornara:

-Eu sou Sá Maria!

- Sá Maria dos pintos!

-Procuro meu filho!

- Meu filho Pedrinho!

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- Ele é pequeno!

-Não tem mais de mês!

-No meio da testa!

-Uma marca de anjo!

- Procuro meu filho!

-Que é tudo que tenho!

-Perdi meu Zezinho!Meu pai! Minha

mãe!

-Se tiver notícia me diga ligeiro!

-Eu Sou Sá Maria, Sá Maria dos

pintos!

- Ele foi me levado por um

forasteiro!

-Que veio do norte!

-De terras alheias! .

-Se tiver notícia me diga ligeiro!

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-Eu Sou Sá Maria, Sá Maria dos

pintos!

-Eu sou lá da vila!

- Da vila da serra!

-E conto esta história de costas pra

lá!

-Procuro meu filho!

-Meu filho Pedrinho!

-Meu único alento!

-Nesta vida de dor!