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Súmulas Vinculantes e Democracia: a verticalização das decisões judiciais e a neutralização do espaço público 1 Taiz Marrão Batista da Costa Sumário: 1. Introdução 2. A teoria do discurso e o paradigma procedimental do direito: o modelo procedimentalista ou deliberativo de democracia 3. O papel da jurisdição constitucional segundo o paradigma procedimental 4. O artigo 103-A da CRFB de 1988 e a EC 45/04 5. A incompatibilidade do procedimento das súmulas vinculantes com o modelo habermasiano de democracia 1.Introdução: Este trabalho visa analisar o instituto da súmula vinculante em sua incompatibilidade com a democracia, concebida aqui sob o enfoque do modelo deliberativo ou procedimental elaborado por Jürgen Habermas. Primeiramente, procederemos a uma exposição acerca do paradigma procedimental do direito, bem como sobre o modelo deliberativo de democracia apresentado por Habermas. Com este pano de fundo fundamental para o 1 O presente trabalho é apresentado como requisito para conclusão da matéria “Epistemologia do Direito” no Programa de Mestrado em Direito Constitucional e Teoria Geral do Estado do departamento de direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

S Mulas Vinculantes - Habermas

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Smulas Vinculantes e Democracia: a verticalizao das decises judiciais e a neutralizao do espao pblico

Taiz Marro Batista da CostaSumrio:1. Introduo 2. A teoria do discurso e o paradigma procedimental do direito: o modelo procedimentalista ou deliberativo de democracia 3. O papel da jurisdio constitucional segundo o paradigma procedimental 4. O artigo 103-A da CRFB de 1988 e a EC 45/04 5. A incompatibilidade do procedimento das smulas vinculantes com o modelo habermasiano de democracia 1. Introduo:Este trabalho visa analisar o instituto da smula vinculante em sua incompatibilidade com a democracia, concebida aqui sob o enfoque do modelo deliberativo ou procedimental elaborado por Jrgen Habermas.

Primeiramente, procederemos a uma exposio acerca do paradigma procedimental do direito, bem como sobre o modelo deliberativo de democracia apresentado por Habermas. Com este pano de fundo fundamental para o estudo do tema ora em pauta, poderemos nos concentrar precisamente na delimitao do papel da jurisdio constitucional segundo o paradigma procedimental e no seu confronto com o previsto pelo artigo 103-A da CRFB de 1988, trazido pela EC 45/04.

Para atestar a incompatibilidade do procedimento das smulas vinculantes com o modelo de democracia habermasiano diagnosticaremos a sua inadequao ao modelo dialgico proposto pelo autor, uma vez que o instituto da smula vinculante, ao estabelecer um monoplio interpretativo do Supremo Tribunal Federal, desgua inevitavelmente em um monlogo da Corte Suprema, semelhante operao do princpio monolgico da teoria do direito solipsista de Dworkin, que em tudo incompatvel com o modelo deliberativo de democracia proposto por Habermas, o qual pressupe a formao horizontal da vontade pblica por via comunicativa. Poderemos, enfim, compreender que a conseqncia desta final opinion do Supremo Tribunal Federal a neutralizao do espao pblico e a obstruo da democracia, inclusive, devido s nefastas conseqncias sobre um dos princpios mais caros ao Estado democrtico de direito brasileiro: o princpio da independncia funcional do juiz.Ademais, perceberemos que o mecanismo da smula vinculante opera com a tenso entre facticidade e validade, mas no elaborando-a como faz o paradigma procedimentalista, mas suprimindo a facticidade em prol da validade. Assim, a deliberao democrtica com o fortalecimento da racionalidade da jurisdio, oriunda da aceitabilidade racional, fica prejudicada com o recurso das smulas vinculantes, devido super valorizao da segurana jurdica que este opera ao conferir um monoplio interpretativo ao STF.

Visto que a democracia depende da conservao de um momento de facticidade, de imanncia e de soberania popular (institucionalizada e no institucionalizada), no sentido da autonomia dos cidados politizados, que em um dilogo ininterrupto participam dos discursos racionais que visam conferir legitimidade atravs do assentimento racional de todos os possveis atingidos pelas normas (Princpio D), a super valorizao do princpio da segurana jurdica, da legalidade e da validade ocorre em prejuzo da legitimidade democrtica da formao da vontade pblica por via comunicativa, e, portanto, da democracia.

A super valorizao da validade suprime justamente este momento de facticidade, de gnese democrtica da poltica, de autonomia, transitividade e imanncia. Por tudo isso, podemos concluir que deciso/interpretao final do STF representa uma transcendncia, um engessamento da dinmica transitiva do mundo da vida, isto porque o Pai-Tribunal em seu monoplio interpretativo opera uma heteronomia que acaba por neutralizar a autonomia pblica dos cidados.

2. A teoria do discurso e o paradigma procedimental do direito: o modelo procedimentalista ou deliberativo de democracia O direito formal burgus e o direito materializado do Estado social constituem os dois paradigmas jurdicos mais bem-sucedidos na moderna histria do direito, continuando a ser fortes concorrentes. Interpretando a poltica e o direito luz da teoria do discurso, eu pretendo reforar os contornos de um terceiro paradigma do direito, capaz de absorver os outros dois. Eu parto da idia de que os sistemas jurdicos surgidos no final do sculo XX, nas democracias de massas dos Estados sociais, denotam uma compreenso procedimentalista do direito.

Com o objetivo de superar a tendncia a idealizaes (como a teoria do direito dworkiana solipsista do juiz Hrcules), bem como aquilo que identifica como os paradigmas jurdicos do liberalismo e do Estado social, Habermas apresenta o paradigma procedimentalista do direito, que visa justamente absorver os outros dois ao mesmo tempo em que, enquanto paradigma, atenua as exigncias ideais que cercam a teoria do direito.

Habermas prope uma teoria da argumentao jurdica ou discursiva do direito para assumir o fardo das exigncias ideais que Dworkin atribuiu a Hrcules e reinterpreta, assim, a teoria construtivista do direito vigente de Dworkin de acordo com seu modelo procedimentalista. Assim como Dworkin, Habermas releva a necessidade de racionalizao das decises e rejeita, por conseguinte, as concepes positivistas de sistema fechado de regras e de poder discricionrio judicial em sentido forte (que solapa inevitavelmente a democracia pelo exerccio de um decisionismo irracional).

Todavia, a teoria construtivista habermasiana apia-se no modelo procedimentalista ou discursivo do direito, em superao aos modelos liberal e do Estado social, no qual a reconstruo do direito vigente no levada a cabo pela idealizao de um juiz com saber sobre-humano, por uma construo terica realizada monologicamente, mas pelo agir comunicativo ou pela prtica da argumentao de uma comunidade aberta dos intrpretes da constituio, no dizer de Peter Hberle, enfim, pela intersubjetividade da coletividade deliberativa.

Hoje em dia, a doutrina e a prtica do direito tomaram conscincia de que existe uma teoria social que seve como pano de fundo. E exerccio da justia no pode mais permanecer alheio ao seu modelo social. E, uma vez que a compreenso paradigmtica do direito no pode mais ignorar o saber orientador que funciona de modo latente, tem que desafi-lo para uma justificao autocrtica. Apos esse lance, a prpria doutrina no pode mais evadir-se da questo acerca do paradigma correto (...) E o paradigma procurado tem que adequar-se descrio mais apropriada das sociedades complexas; deve fazer jus idia original da autoconstituio de uma comunidade de parceiros do direito, livres e iguais; e superar o propalado particularismo de uma ordem jurdica que perdeu o seu centro ao tentar adaptar-se complexidade do contexto social, a qual no foi bem compreendida e faz com que (o direito) se dissolva no momento em que recebe um incremento (...) Na medida em que funcionam como uma espcie de pano de fundo no temtico, os paradigmas jurdicos intervm na conscincia de todos os atores, dos cidados e dos clientes, do legislador, da justia e da administrao. E, com o esgotamento do paradigma do Estado social, vieram tona problemas relevantes para os especialistas em direito, levando-s a pesquisar os modelos sociais inseridos no direito. As tentativas da doutrina jurdica visando superar a oposio entre Estado social e direito formal burgus, criando relaes mais ou menos hbridas entre os dois modelos, promoveram, ou melhor, desencadearam uma compreenso reflexiva da constituio: e to logo a constituio passou a ser entendida como um processo pretensioso de realizao do direito, coloca-se a tarefa de situar historicamente esse projeto. A partir da, todos os atores envolvidos ou afetados tm que imaginar como o contedo normativo do Estado democrtico de direito pode ser explorado efetivamente no horizonte de tendncias e estruturas sociais dadas. Ora, a disputa pela compreenso paradigmtica correta de um sistema jurdico que se reflete como parte na totalidade de uma sociedade , no fundo, uma disputa poltica. No Estado democrtico de direito, esta disputa atinge todos os envolvidos, no podendo realizar-se apenas nas formas esotricas de um discurso de especialistas, isolado da arena poltica. Pois, graas s suas prerrogativas de deciso e graas s suas experincias e conhecimentos profissionais a justia e a doutrina jurdica participam de modo privilegiado dessa disputa pela melhor interpretao; porm elas no tem autoridade cientfica para impor uma compreenso da constituio, a ser assimilada pelo pblico de cidados.

Habermas diagnostica que ambos os paradigmas precedentes, o do liberalismo e o do Estado social, compartilham a imagem produtivista de uma sociedade econmica de capitalismo industrial e concebem apenas o status negativo das pessoas do direito em seu papel de destinatrias da ordem jurdica (garantia da autonomia privada atravs de direitos liberdade liberalismo ou garantia da autonomia privada atravs da materializao dos direitos de liberdade atravs de prestaes sociais Estado social).

Em resposta, no paradigma procedimentalista do direito a autonomia privada e a pblica se entrelaam necessariamente em uma auto-organizao da comunidade jurdica. O paradigma procedimentalista do direito ressalta o status das pessoas enquanto autores da ordem jurdica da qual so destinatrios e deita a legitimidade do direito justamente nesta autonomia das pessoas privadas, posto que segundo uma compreenso ps-metafsica do mundo, a legitimidade do direito vigente pode pretender residir to somente na formao discursiva da opinio e da vontade de cidados livres e iguais. Desta forma, as expectativas de racionalizao e legitimao do direito (pela aceitabilidade racional) se localizam nas formas de comunicao, enquanto estruturas abstratas de reconhecimento mtuo.

Diante da crise o paradigma de direito do Estado social, Habermas rejeita a alternativa neoliberal de retorno ao paradigma anterior, o do estado liberal, por entender que o crescimento e a mudana qualitativa das tarefas do Estado trouxeram a necessidade de uma legitimao de tipo diverso, pela gnese democrtica do direito atravs de um processo poltico com condies procedimentais de normatizaes legtimas levado a cabo por uma sociedade jurdica que se organiza a si mesma.

Habermas explica que os elementos normativos e descritivos do paradigma jurdico procedimentalista so: a teoria do direito fundada no discurso, segundo a qual o Estado democrtico de direito configura uma institucionalizao de processos e pressupostos comunicacionais constitutivos de uma formao discursiva da opinio e da vontade que viabiliza o exerccio da autonomia poltica e a criao legitima do direito; a teoria da sociedade fundada na comunicao, na qual o sistema poltico estruturado como Estado de direito to somente um sistema de ao entre outros; uma determinada concepo de direito, que entende a comunicao jurdica como um medium atravs do qual as estruturas de reconhecimento concretizadas no agir comunicativo passam do nvel das simples interaes para o nvel abstrato das relaes organizadas.

Pelo exposto, pode-se inferir que o objetivo do paradigma procedimentalista do direito superar a crise e a controvrsia entre os paradigmas precedentes e fornecer uma legitimao suplementar, ou aquele outro tipo de legitimao necessrio em vista das mudanas j apontadas nas tarefas do Estado de direito, uma legitimao com base na gnese democrtica do direito atravs de uma esfera pblica politizada na qual os lugares abandonados pelo participante autnomo e privado do mercado e pelo cliente de burocracias do Estado social passam a ser ocupados por cidados que participam de discursos polticos.

Habermas destaca que o ncleo do paradigma procedimentalista do direito reside na combinao universal e mediao recproca entre a soberania do povo institucionalizada juridicamente e a no-institucionalizada enquanto chave para o entendimento da gnese democrtica do direito. Assim, ressalta que o substrato social necessrio realizao do sistema de direitos formado pelos fluxos comunicacionais e influncias pblicas que emergem da sociedade civil e da esfera pblica poltica transmutados em poder comunicativo pelos processos democrticos. Neste sentido, a esfera pblica apresenta-se como ante-sala do complexo parlamentar e como periferia que inclui o centro poltico. Atravs dos processos democrticos a opinio publica se converte em poder comunicativo, que tanto autoriza o legislador quanto legitima a administrao reguladora e impe obrigaes de fundamentao mais rigorosa a uma justia engajada no desenvolvimento do direito.

Alm da dimenso procedimental ou formal, que Habermas aponta como a nica adequada ao mundo secularizado ps-metafsico e s sociedades complexas onde no existe um nico ethos compartilhado, o paradigma procedimentalista traz uma dimenso de sociabilidade ou solidariedade social pela prtica da autodeterminao comunicativa enquanto processo intersubjetivo de exerccio da autonomia pblica e privada. Nele, a sociedade civil e a esfera pblica poltica adquirem posio de destaque no processo democrtico, modificando-se a concepo estanque de outrora de uma sociedade civil com status somente negativo apartada por completo de um Estado limitado.

Um tal paradigma procedimentalista do direito baseado, como vimos, na teoria do discurso, traz a necessidade de uma concepo tambm procedimentalista de democracia, enfim, de um modelo deliberativo de democracia, no qual o processo da poltica deliberativa constitui o mago do processo democrtico.

O modelo deliberativo de democracia apresenta-se como uma tentativa de medio entre os modelos de democracia liberal e republicano. Tal qual o paradigma procedimentalista do direito operou a sntese e a superao dos modelos do Estado liberal e do Estado social, o conceito procedimental de democracia intenta combinar caractersticas dos dois modelos de democracia em disputa para fornecer um modelo mais adequado s democracias das sociedades complexas atuais.

Segundo Jos de Albuquerque Rocha, o modelo deliberativo habermasiano uma espcie de traduo poltica da teoria da ao comunicativa, pois vincula as decises dos conflitos polticos a prticas argumentativas nos diversos espaos pblicos, que constituem a esfera pblica, fonte da opinio e da vontade poltica informal. O modelo deliberativo de democracia, em consonncia com o paradigma procedimentalista do direito, concebe, pois, o Estado como ancorado ao modelo comunicativo no qual se desenvolve o processo poltico, cuja pretenso de racionalidade reside justamente na formao discursiva da opinio e da vontade.

Neste sentido, ressalta que o que o modelo deliberativo opera uma conciliao dos dois modelos anteriores de democracia, compatibilizando a autonomia privada e a pblica que se complementam (conforme o paradigma procedimental do direito) e substituindo a concepo liberal do Estado como ente em separado da sociedade adstrita atividade econmica privada que contra ele possui liberdades negativas (adicionando a dimenso de solidariedade, em conformidade com o paradigma procedimentalista do direito) e a concepo republicana do Estado enquanto comunidade tica, que torna o processo democrtico dependente do agir conjunto de cidados virtuosos (que por sua incompatibilidade com as sociedades complexas do mundo ps-metafsico se torna irrealizvel enquanto calcado em uma cidadania capaz de agir coletivamente e que deve, pois, ser substitudo por um modelo de legitimao democrtica que resida na institucionalizao dos processos e pressupostos comunicacionais e no jogo entre deliberaes institucionalizadas e opinies pblicas que se formam de modo informal).

Aps analisar detalhadamente os modelos liberal e republicano, Habermas destaca as vantagens e desvantagens do modelo republicano e sugere seu modelo procedimentalista ou deliberativo de democracia como um terceiro modelo, como uma alternativa que combina as dimenses mais vantajosas das outras duas. Em consonncia com a necessidade de superao do paradigma liberal do direito pelo paradigma procedimentalista devido j mencionada crise do primeiro com as mudanas no papel do Estado advindas do Estado social, Habermas aproxima seu modelo de democracia do modelo republicano, mas o adapta realidade das sociedades complexas e plurais contemporneas, libertando-o de seu estreitamento tico.

Aponta como vantagem o sentido radicalmente democrtico que reside na auto-organizao da sociedade pelos cidados em mtuo acordo pela via comunicativa. A desvantagem, por sua vez, residiria na excessiva idealizao que tornaria o processo democrtico dependente da virtuosidade de cidados orientados ao bem comum, ou seja, pelo foco exclusivo nos acordos mtuos de carter tico. Assim, conclui que o erro republicano consiste em uma conduo estritamente tica dos discursos polticos.

Um conceito de democracia adequado s sociedades complexas, nas quais o horizonte tico dos cidados na maioria das vezes no compartilhado, deve, pois, ser um conceito de poltica deliberativa que faz jus justamente s diversidades e divergncias prprias dessas sociedades, pelo deslocamento da razo prtica dos direitos universais do homem ou da eticidade concreta de uma determinada comunidade para se instalar na estrutura de comunicao lingstica.

Assim o reconhecimento mtuo e a dimenso de solidariedade como fonte de integrao social fazem parte do modelo procedimentalista de democracia, em consonncia com o paradigma procedimentalista do direito, mas no da mesma forma que no modelo republicano de democracia, pois no se trata da reflexo acerca de um contexto de vida tico comum, mas na deliberao poltica intersubjetiva voltada legitimao democrtica pela aceitabilidade racional de todos os possveis atingidos.

Importante ressaltar, enfim, que, como no modelo liberal, o limite entre Estado e sociedade permanece respeitado, mas no se configura mais como um esquema de compartimentos fechados de forma estanque, posto que sociedade civil opera como fonte de legitimao democrtica enquanto fundamento social das opinies pblicas autnomas. Desta forma, o poder socialmente integrativo da solidariedade se autonomiza e se contrape ao outros dois poderes (dinheiro e administrao), sendo a fonte de racionalizao discursiva das decises polticas. Portanto, o modelo deliberativo no dispensa a democracia liberal que o marco dentro do qual se desloca.

3. O papel da jurisdio constitucional segundo o paradigma procedimentalAo estabelecer suas polticas, o legislador interpreta e estrutura direitos, ao passo que a justia s pode mobilizar as razes que lhe so dadas, segundo o direito e a lei, a fim de chegar a decises coerentes num caso concreto. Isso vale tambm, como vimos, para as interpretaes construtivas de um tribunal constitucional, cujo papel alvo de restries por parte de uma compreenso procedimentalista do direito. O paradigma prodecimentalista do direito procura proteger, antes de tudo, as condies do procedimento democrtico. Elas adquirem um estatuto que permite analisar, numa outra luz, os diferentes tipos de conflito. Os lugares abandonados pelo participante autnomo e privado do mercado e pelo cliente das burocracias do Estado social passam a ser ocupados por cidados que participam de discursos polticos, articulando e fazendo valer interesses feridos, e colaboram na formao de critrios para o tratamento igualitrio de casos iguais e para o tratamento diferenciado de casos diferentes. Na medida em que os programas legais dependem de uma concretizao que contribui para desenvolver o direito a tal ponto que a justia, apesar de todas as cautelas, obrigada a tomar decises nas zonas cinzentas que surgem entre a legislao e a aplicao do direito -, os discursos acerca da aplicao do direito tm que ser complementados, de modo claro, por elementos dos discursos de fundamentao. Esses elementos de uma formao quase-legisladora da opinio e da vontade necessitam certamente de um outro tipo de legitimao. O fardo desta legitimao suplementar poderia ser assumido pela obrigao de apresentar justificaes perante um Frum judicirio critico. Isso seria possvel atravs da institucionalizao de uma esfera pblica jurdica capaz de ultrapassar a atual cultura de especialistas e suficientemente sensvel para transformar as decises problemticas em foco de controvrsias pblicas.

Conforme se pode inferir do trecho reproduzido acima, Habermas no nega, luz de sua concepo de democracia, a interpretao construtiva do tribunal constitucional, especialmente porque concebe o princpio da separao de poderes de forma diversa da esposada pelo modelo liberal. No obstante, seu paradigma procedimentalista do direito, bem como seu modelo deliberativo de democracia, impe restries funo de interpretao construtiva do tribunal constitucional. Isto porque, o paradigma procedimentalista tem como principal objetivo a proteo das condies do procedimento democrtico.

Ao realizar em sua teoria uma abordagem reflexiva, e no concretista, Habermas, em consonncia com seu paradigma procedimentalista do direito, concebe diferentemente o esquema clssico da diviso de poderes, que provm do paradigma liberal que pretende ver superado. O esquema clssico do modelo liberal parte da premissa, j apontada no tpico anterior, da separao total entre Estado e sociedade civil, ignorando as relaes intersubjetivas e a autonomia pblica dos cidados, que possuem apenas liberdades negativas. O positivismo, com sua concepo ficcional do ordenamento jurdico como um sistema de regras fechado e completo e a separao de poderes concebida de forma absoluta ou inflexvel so sintomas desta viso de mundo.

A necessidade de uma reinterpretao do princpio da separao de poderes advm justamente da crise, j apontada, do paradigma de direito do Estado social, que operou a materializao do direito e com isso sua indeterminao, consoante o ponto de vista do paradigma liberal positivista. Conforme outrora aludido, Habermas rejeita a alternativa neoliberal de retorno ao paradigma anterior, o do estado liberal, por entender que o crescimento e a mudana qualitativa das tarefas do Estado trouxeram a necessidade de uma legitimao de tipo diverso, pela gnese democrtica do direito atravs de um processo poltico com condies procedimentais de normatizaes legtimas levado a cabo por uma sociedade jurdica que se organiza a si mesma.

E justamente essa tomada de posio pela manuteno do compromisso com o Estado social, e pela conseqente rejeio proposta neoliberal, que traz a necessidade de uma nova concepo da relao entre Estado e sociedade civil, da Constituio e do princpio da separao de poderes. Habermas vislumbra que a sada para a crise reside justamente no deslocamento do foco concretista que encarcera o direito e a poltica no Estado para uma compreenso reflexiva do direito e da poltica alocada tambm na sociedade civil politizada e autnoma privada e publicamente.

Conforme j abordamos na exposio acerca do paradigma procedimentalista do direito, um dos elementos deste paradigma jurdico a teoria da sociedade fundada na comunicao e segundo este postulado, o sistema poltico estruturado nos moldes do Estado de direito apenas um sistema de ao entre outros, inserido no mundo da vida por meio de uma esfera pblica que se ancora em uma sociedade civil. Eis a superao, viabilizada pelo paradigma procedimentalista, da separao absoluta entre Estado e sociedade, axioma do paradigma liberal, e do conseqente encerramento da poltica no Estado operado por ela.

O avano do direito regulativo oferece apenas a ocasio para a dissoluo de uma determinada figura histrica da diviso de poderes no Estado de direito. Hoje em dia, o legislador poltico tem que escolher entre o direito formal, o material e o procedimental: tudo depende da matria a ser regulada. Da a necessidade de uma nova institucionalizao do princpio da separao de poderes. Pois o manejo reflexivo de formas jurdicas alternativas probe que se tome a lei geral e abstrata como o nico ponto de referencia para a separao institucional entre instncias que legislam, que executam e que aplicam o direito. Mesmo durante o perodo liberal, a separao funcional no coincidiu perfeitamente com a separao institucional de poderes. No entanto, as diferenas surgiram claramente no decorrer do desenvolvimento do Estado social.

Isto dito, podemos inferir que o paradigma procedimentalista confere e endossa uma posio ativa por parte do judicirio e do tribunal constitucional. Isto porque a materializao do direito operada pelo Estado social no pode ser simplesmente ignorada com o retorno ao paradigma liberal anterior. A remoralizao do direito ocorrida com a introduo de normas de princpio que ora perpassam a ordem jurdica gera uma indeterminao do direito ou uma necessidade de concretizao dos programas legais que obriga a justia a tomar decises nas zonas cinzentas que surgem entre a legislao e a aplicao do direito. Desta forma, patente que o ordenamento jurdico no pode mais ser concebido como um sistema fechado e auto-referenciado de normas, o que, por sua vez, traz a necessidade de uma interpretao construtiva do direito.

Neste sentido, Habermas concorda com Dworkin ao compreender que a existncia de princpios e a incompletude do ordenamento, que se traduzem em zonas cinzentas para as quais as regras em sentido estrito no apresentam respostas prontas, demanda do julgador uma postura mais ofensiva que a de boca da lei, classicamente a ele atribuda pelo modelo liberal. Habermas concorda com Dworkin tambm quanto necessidade de racionalizao das decises judiciais com a rejeio possibilidade de exerccio da discricionariedade nos casos de lacuna, por ser a fundamentao racional pressuposto essencial da democracia.

Contudo, justamente na forma de racionalizao que Habermas se afasta de Dworkin. Enquanto Dworkin, ainda atrelado ao paradigma liberal, concebe o juiz Hrcules como o nico ator responsvel pela tarefa monumental de reconstruo do direito vigente (foco exclusivo no Estado de direito, como nico espao poltico), Habermas apia sua teoria construtivista no modelo procedimentalista ou discursivo do direito, em superao aos modelos liberal e do Estado social, no qual a reconstruo do direito vigente no levada a cabo pela idealizao de um juiz com saber sobre-humano, por uma construo terica realizada monologicamente, mas pelo agir comunicativo ou pela prtica da argumentao de uma comunidade aberta dos intrpretes da constituio, no dizer de Peter Hberle, enfim, pela intersubjetividade da coletividade deliberativa.

Portanto, Habermas concebe as pessoas como cidados com autonomia privada e pblica e, neste sentido, com direitos positivos de participao. Os papis centrais desempenhados pela sociedade civil e pela esfera pblica politica no modelo procedimentalista de democracia habermasiano denotam tal concepo. E por tudo isso que o paradigma procedimentalista, baseado na teoria do discurso, apesar de conceber o papel ativo do tribunal constitucional, pela necessria reinterpretao do principio da separao de poderes, ao mesmo tempo restringe este ativismo pela exigncia de legitimao racional das decises da corte pela gnese democrtica do direito.

O ativismo da corte constitucional, portanto, limitado, sob a tica do paradigma procedimentalista do direito e do modelo deliberativo de democracia, pela autonomia pblica dos cidados que, enquanto titulares de uma esfera pblica jurdica politizada, fazem parte de uma coletividade deliberativa, de uma sociedade jurdica que se organiza a si mesma atravs intersubjetividade do agir comunicativo.

O reconhecimento mtuo e a dimenso de solidariedade como fonte de integrao social, que fazem parte do modelo procedimentalista de democracia, em consonncia com o paradigma procedimentalista do direito, enquanto deliberao poltica intersubjetiva voltada legitimao democrtica pela aceitabilidade racional de todos os possveis atingidos, operam, pois, como elementos da teoria habermasiana que permitem o deslocamento do foco concretista que encarcera o direito e a poltica no Estado para uma compreenso reflexiva do direito e da poltica alocada tambm na sociedade civil politizada e autnoma privada e publicamente.

A teoria da sociedade fundada na comunicao, por sua vez, ao conceber o sistema poltico estruturado nos moldes do Estado de direito apenas como um sistema de ao entre outros, inserido no mundo da vida por meio de uma esfera pblica que se ancora em uma sociedade civil viabiliza a superao da separao absoluta entre Estado e sociedade, axioma do paradigma liberal, e do conseqente encerramento da poltica no Estado operado por ela.Este fortalecimento do papel da cidadania, da sociedade civil e da formao da opinio e da vontade por meio do agir comunicativo com o entrelaamento entre mundo da vida e sistema, entre autonomia privada e pblica, entre soberania popular institucionalizada e no institucionalizada, impede o ativismo judicial pleno porque isto significaria uma absoro do mundo da vida pelo sistema, pela (re)construo (ilegtima) de um direito ilegtimo, de gnese no democrtica. Desta forma, o empowerment das pessoas privadas impede um paternalismo do tribunal constitucional de todo inadequado com o modelo deliberativo de democracia.

Isto porque, como j afirmado, no paradigma procedimentalista do direito a autonomia privada e a pblica se entrelaam necessariamente em uma auto-organizao da comunidade jurdica. O paradigma procedimentalista do direito ressalta o status das pessoas enquanto autores da ordem jurdica da qual so destinatrios e deita a legitimidade do direito justamente nesta autonomia das pessoas privadas, posto que segundo uma compreenso ps-metafsica do mundo, a legitimidade do direito vigente pode pretender residir to somente na formao discursiva da opinio e da vontade de cidados livres e iguais, pelo que as expectativas de racionalizao e legitimao do direito (pela aceitabilidade racional) se localizam nas formas de comunicao, enquanto estruturas abstratas de reconhecimento mtuo.

O que Habermas rejeita o paternalismo do tribunal constitucional porque o paradigma procedimentalista, apoiado na teoria do discurso, entende a poltica deliberativa como constitutiva e, portanto, exercitada de forma contnua e permanente, como modo normal/regular do exerccio do poder constituinte e no como um estado de exceo, como concebe o republicanismo, atrelado concepo tica da autonomia do cidado. Habermas explica que tal concepo excepcionalista da prtica poltica, qual a tradio republicana adere por ligar a prtica poltica dos cidados ao ethos de uma comunidade na qual a poltica fica dependente do agir de cidados virtuosos, leva necessidade de um lugar-tenente pedaggico, a atuar como regente durante o tempo em que o povo soberano se concentra no seu modo normal de privatismo cidado e justamente para compensar o desnvel que se forma entre o ideal republicano e a realidade constitucional. Isto porque, a imputao de virtude como requisito para o exerccio da poltica deliberativa leva a que se perceba o processo democrtico real como uma poltica desvirtuada ou decada. Somente as condies processuais da gnese democrtica das leis asseguram a legitimidade do direito. Partindo dessa compreenso democrtica, Possvel encontrar um sentido para as competncias do tribunal constitucional, que corresponde inteno da diviso de poderes no interior do Estado de direito: o tribunal constitucional deve proteger o sistema de direitos que possibilita a autonomia privada e pblica dos cidados. O esquema clssico da separao e da interdependncia entre os poderes do Estado no corresponde mais a essa inteno, uma vez que a funo dos direitos fundamentais ao pode mais apoiar-se nas concepes sociais embutidas no paradigma do direito liberal, portanto no pode limitar-se a proteger os cidados naturalmente autnomos contra os excessos do aparelho estatal. A autonomia privada tambm ameaada atravs de posies de poder econmicas e sociais e dependente, por sua vez, do modo e da medida em que os cidados podem efetivamente assumir os direitos de participao e de comunicao de cidados do Estado. Por isso, o tribunal constitucional precisa examinar os contedos de normas controvertidas especialmente no contexto dos pressupostos comunicativos e condies procedimentais do processo de legislao democrtico. Tal compreenso procedimentalista da constituio imprime uma virada Terico-democrtica ao problema de legitimidade do controle jurisdicional da constituio.

Habermas adota uma compreenso procedimetalista da constituio, mas como j delineado, a depura da limitao gerada pela concepo republicana excepcionalista da deliberao poltica. Ele reformula a proposta de Ely reproduzida no trecho acima justamente por conceber a autodeterminao dos cidados como autonomia pblica exercida continuamente enquanto processo de formao de opinio e de vontade poltica por via comunicativa. Assim, no concebe que o tribunal constitucional, ao exercer o controle abstrato de normas, possa apelar para uma autoridade derivada, inferida do direito de autodeterminao do povo, pois este se exerce continuamente e no funcionamento regular do processo poltico, j que o processo democrtico no configura um estado de exceo.

Disto resulta que legitimao da jurisdio constitucional no depende da latncia da poltica deliberativa de cunho popular, a qual substituiria em sua autodeterminao, como um regente substitui um sucessor menor de idade. A legitimao do tribunal constitucional, ao contrrio, depende da efetivao e da manuteno da poltica deliberativa, para cuja proteo existe, enquanto guardio dos direitos fundamentais garantidores da autonomia poltica dos cidados e da gnese democrtica do direito, que pode, portanto, atuar no mximo como um tutor que vela pelo implemento das condies possibilitadoras de um tal processo.

A funo do tribunal constitucional consiste, pois, na proteo da poltica deliberativa e neste sentido ele deve garantir suas bases de funcionamento, as condies pragmtico-formais possibilitadoras de uma poltica deliberativa, fonte de racionalidade e de legitimao democrtica. O tribunal constitucional deve garantir, pois, que a pratica da autodeterminao deliberativa desenvolva-se nos fluxos comunicacionais entre a formao institucionalizada da opinio e da vontade e a formao da opinio e da vontade nos crculos informais da comunicao poltica (ncleo do paradigma procedimentalista entrelaamento da soberania institucionalizada e da no institucionalizada). Neste sentido, a Corte suprema deve buscar constantemente a incluso das vozes ausentes, a efetivao da democracia pela amplitude crescente do espectro de intrpretes da constituio. 4. O artigo 103-A da CRFB de 1988 e a EC 45/04Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poder, de ofcio ou por provocao, mediante deciso de dois teros dos seus membros, aps reiteradas decises sobre matria constitucional, aprovar smula que, a partir de sua publicao na imprensa oficial, ter efeito vinculante em relao aos demais rgos do Poder Judicirio e administrao pblica direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder sua reviso ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

1 A smula ter por objetivo a validade, a interpretao e a eficcia de normas determinadas, acerca das quais haja controvrsia atual entre rgos judicirios ou entre esses e a administrao pblica que acarrete grave insegurana jurdica e relevante multiplicao de processos sobre questo idntica.

2 Sem prejuzo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovao, reviso ou cancelamento de smula poder ser provocada por aqueles que podem propor a ao direta de inconstitucionalidade.

3 Do ato administrativo ou deciso judicial que contrariar a smula aplicvel ou que indevidamente a aplicar, caber reclamao ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anular o ato administrativo ou cassar a deciso judicial reclamada, e determinar que outra seja proferida com ou sem a aplicao da smula, conforme o caso.Acerca da dinmica de funcionamento do expediente das smulas vinculantes, Lus Roberto Barroso explica que, na prtica, as smulas prestam-se a veicular o entendimento do Tribunal acerca de qualquer questo constitucional. E acrescenta: Isso porque, estabelecida uma interpretao vinculante para determinado enunciado normativo, a conseqncia ser a invalidade de qualquer ato ou comportamento que lhe seja contrrio, oriundo do Poder Judicirio ou mesmo de particulares.

Neste sentido, o autor chama ateno para o fato de que o uso da smula vinculante no se limita ao controle incidental de constitucionalidade, mas pelo contrrio, permite que o STF confira eficcia vinculante a qualquer tese jurdica, ficando o entendimento da corte cristalizado em um enunciado dotado de eficcia geral. Desta forma, afirma que decises produzidas em controle abstrato podem vir a ser sumuladas com eficcia vinculante.

Fica claro, portanto, que o instituto trazido pela EC 45/04 ao sistema brasileiro de jurisdio constitucional confere ao STF o poder de determinar Administrao Pblica e aos demais rgos do Poder Judicirio, bem como j mencionamos, segundo Lus Roberto Barroso, at mesmo aos particulares, a observncia compulsria de sua jurisprudncia.

As razes trazidas pelo autor para justificar o instituto das smulas gravitam em torno dos benefcios da celeridade e da eficincia na administrao da justia, com a diminuio do nmero de recursos que chega ao STF, bem como pela compreenso renovada em torno da interpretao jurdica, que no mais pode ser concebida como uma atividade mecnica de revelao dos contedos das regras jurdicas, mas de esclarecimento quanto aos contedos cada vez mais abertos (indeterminados) do direito, tais como termos polissmicos, princpios gerais e conceitos jurdicos indeterminados.

Quanto ao argumento do eficientismo, com a simplificao do processo decisrio pela centralizao da tarefa interpretativa na corte constitucional que gera, sem dvida, maior celeridade, devemos, neste primeiro momento, ressaltar que ele parte da premissa de que em uma sociedade de litgios de massa, no possvel o apego s formas tradicionais de prestao artesanal de jurisdio. O papel da sociedade civil aparece claramente desprestigiado, bem como desprestigiada fica a concepo da cidadania jurdica como entrelaamento da autonomia privada com a pblica. A massa que necessita do paternalismo pela centralizao decisria no , portanto, concebida como uma esfera pblica jurdica politizada, como cidadania que se transformou na comunidade dos intrpretes da constituio.

J em relao ao argumento segundo o qual a atividade interpretativa no mais se coaduna com a funo mecnica de aplicao pura e simples da lei, como explicado ao longo de nosso desenvolvimento acerca da teoria habermasiana, de fato, a materializao do direito trazida pelo paradigma do Estado social, exige uma interpretao construtivista do direito vigente, mas isso no significa que o intrprete possa criar direito novo sem qualquer base de legitimidade democrtica, partindo to somente de uma compreenso semntica da textura aberta da norma.

A teoria habermasiana, ao atribuir ao tribunal constitucional a tarefa de velar pela prtica da autodeterminao deliberativa a desenvolver-se nos fluxos comunicacionais entre a formao institucionalizada da opinio e da vontade e a formao da opinio e da vontade nos crculos informais da comunicao poltica (ncleo do paradigma procedimentalista), restringe o tribunal constitucional em sua funo criativa do direito no apenas no sentido de um dever de observncia, mas tambm de um dever de promoo da poltica deliberativa, pois nisso residiria sua prpria legitimao democrtica. Devemos observar, ademais, que isto implica uma concepo procedimentalista da constituio, o que deve excluir a possibilidade de uma jurisprudncia de valores a ser ditada pelo pai-regente tribunal aos filhos de menoridade. Por fim, deve-se ter em mente que a teoria habermasiana objetiva a maior racionalidade e legitimao do direito pela ampliao do nmero de intrpretes da constituio, objetivo este que, inclusive, o tribunal constitucional, segundo o paradigma procedimentalista, deve garantir enquanto guardio das condies do procedimento democrtico.

Vale ressaltar que as smulas vinculantes podem ser editadas, revistas ou canceladas to somente pela deciso de dois teros dos ministros do STF. Alm disso, como observa Lus Roberto Barroso, A Constituio e a lei no especificaram o numero de decises que deve anteceder a medida e nem seria o caso de faz-lo. Portanto, na prtica, fica ao alvedrio do STF o poder de decidir quando uma questo constitucional foi suficientemente objeto de reiteradas decises a ponto de se justificar sua cristalizao em smula vinculante.

Por fim, cabe ressaltar que para evitar o esvaziamento do instituto por eventual insubordinao dos rgo que deveriam aplicar as smulas, o 3o do art. 103-A previu a possibilidade de reclamao contra a deciso judicial ou ato administrativo que no aplique smula vinculante que deva ser aplicada ou que aplique smula de forma indevida. O STF poder anular o ato administrativo desrespeitoso ou cassar a deciso judicial, determinando sua substituio pela deciso que o tribunal reputa adequada.

Quanto EC 45/04, que trouxe o instituto jurdico da smula vinculante jurisdio constitucional brasileira, vale reproduzir aqui os lcidos comentrios de Claudio Baldino Maciel. Sua anlise critica da Reforma do Judicirio nos ser til quando do estudo, no tpico que se segue, dos reflexos das smulas vinculantes sobre o princpio da independncia funcional do juiz.

Cludio Baldino Maciel analisou sob o ponto de vista da globalizao e do neoliberalismo a reforma do Judicirio brasileiro para concluir que se trata, na realidade, de um fenmeno que vem ocorrendo na maior parte dos pases em desenvolvimento, nos quais o Poder Executivo vem ampliando cada vez mais a sua atuao em detrimento dos demais Poderes. Expe o autor seu entendimento no seguinte sentido:

Pois sendo o Judicirio o poder controlador da rea de atuao dos demais poderes, sobremodo do Executivo, est a sofrer tentativas de reformas em muitos pases. Vm elas postas coincidentemente no mesmo momento histrico. Tais reformas, no Brasil, nitidamente procuram diminuir a expresso poltico-institucional do Poder Judicirio e, com isso, transform-lo em menor obstculo para o exerccio das atividades do Poder Executivo nas suas polticas governamentais.

Buscando a raiz deste fenmeno, o autor atenta para o fato de que o documento do Banco Mundial O setor judicirio na Amrica Latina e no Caribe Elementos para reforma (produzido nos Estados Unidos em meados de 1996) prev a necessidade de reformas nos Poderes Judicirios da Amrica Latina e do Caribe para quebrar a natureza monopolstica do Judicirio, melhor garantir o direito de propriedade e propiciar o desenvolvimento econmico e do setor privado.

Assim, o autor conclui que a reforma na realidade parte de um projeto global que visa fragilizar a expresso institucional do Poder Judicirio, que passaria a ter uma atuao menos contundente enquanto garantidor dos direitos e liberdades, permitindo o trnsito livre de percalos para o capital internacional, para o qual um ambiente favorvel e, principalmente, previsvel mostra-se essencial em termos de desenvolvimento.

5. A incompatibilidade do procedimento das smulas vinculantes com o modelo habermasiano de democracia

O artigo 103-A autoriza o Supremo Tribunal Federal a criar smulas vinculantes que so normas gerais, conforme demonstrado no captulo I, ns. 4 e 5. A criao de normas gerais e abstratas impondo ou proibindo condutas s pessoas em geral, vale dizer, disciplinando a conduta do povo, reservada de modo absoluto pela Constituio lei, isto , aos representantes do povo. Como sabemos, se a Constituio reserva uma determinada matria lei, significa excluir a competncia de todos os outros rgos para regular essa matria. A razo disso est no princpio democrtico consagrado na Constituio que, em essncia, significa que a validade das normas depende de que tenham sido estabelecidas com a participao de todos os que podem ser potencialmente afetados por elas (...) Entretanto, como mencionado tantas e tantas vezes, o artigo 103-A da Constituio, acrescentado pela Emenda Constitucional n. 45, de 8/12/2004, outorga poderes (competncia) ao Supremo Tribunal Federal para produzir enunciados de smulas vinculantes para todos os rgos do Poder Judicirio e administraes pblicas de todas as espcies, nas trs esferas estatais e, implicitamente, para a populao que, sabendo que so de aplicao obrigatria pelos rgos do Poder Judicirio e administraes publicas, procurar cumpri-las, at por razes estratgicas para fugir das sanes que sua desobedincia poder acarretar. Obrigando a todos, entidades pblicas e sujeitos privados, como resulta da literalidade das disposies do referido artigo 103-A, as smulas vinculantes configuram verdadeiras normas jurdicas gerais e abstratas, de hierarquia superior prpria lei, uma vez que ditam o sentido em que as disposies legislativas (leis) devem ser entendidas, o que d aos onze ministros do Supremo Tribunal Federal, escolhidos e nomeados pelo presidente da Repblica, ratificada a escolha burocraticamente pelo Senado Federal, mais poder do que o conferido ao legislador democrtico, pois quem tem autoridade absoluta para atribuir sentido lei , sob todos os aspectos, o verdadeiro legislador, e no quem escreve o texto da lei (...) Diante disso, verifica-se que h um conflito de competncia entre a disposio do artigo 5o, n. II, da Constituio que reserva lei, isto , ao legislador democrtico, com exclusividade, a competncia para prescrever normas gerais sobre a conduta do povo, e o artigo 103-A que outorga ao Supremo Tribunal Federal idntica competncia a ser exercida atravs da emisso de enunciados de smula vinculante, que podem ter por objeto qualquer matria, j que no h aspecto jurdico da vida humana que no encontre fundamento na Constituio. Por conseguinte, o artigo 103-A inconstitucional por atribuir ao Supremo Tribunal Federal a competncia (o poder) para emitir enunciados de smulas vinculantes sobre a conduta das pessoas, o que ofende o direito fundamental de liberdade, matria que a Constituio reserva lei de modo absoluto (artigo 5o, n. II) (...) Como as normas jurdicas implicam limites liberdade, essa limitao s pode ser aceitvel se as pessoas participam ou tm a possibilidade de participar de sua produo, embora indiretamente como nas democracias representativas, o que no ocorre com as smulas vinculantes.

Apesar de Jos de Albuquerque Rocha intencionar a demonstrao da incompatibilidade do procedimento das smulas vinculantes com a Constituio brasileira de 1988 e este trabalho ter por objetivo a concluso da incompatibilidade deste procedimento com a teoria habermasiana, especialmente no que tange ao seu modelo de democracia e seu paradigma procedimentalista do direito, a reproduo do trecho acima afigura-se bastante vlida por diversos motivos. Antes de enumer-los, porm, fundamental ressaltar que o autor realiza uma aproximao entre o modelo de democracia adotado pela Constituio brasileira e o modelo habermasiano, o que permite nossa apropriao de algumas de suas lcidas concluses, aps, lgico, as devidas adaptaes ao escopo de nossa exposio.

O principal motivo reside no fato de ter o autor conseguido captar de forma contundente a magnitude e a amplido do poder que as smulas vinculantes conferem ao STF, principalmente, atravs do diagnstico de que as smulas tratam-se, na verdade, de normas gerais e abstratas cogentes, inclusive, perante a populao.

Alm disso, o autor percebe a ofensa liberdade que o instituto promove, justamente por entender liberdade enquanto liberdade no s negativa, mas, antes de tudo, positiva, no sentido de autonomia pblica. Desta forma, o autor atesta que as smulas impedem o exerccio da democracia deliberativa, enfim, da auto-regulao expressa pelo princpio D.

Como no intencionamos concluir pela inconstitucionalidade do artigo 130-A, mas sim pela incompatibilidade deste dispositivo com o modelo deliberativo de democracia, analisado no item 2 deste trabalho, e com o papel que o paradigma procedimentalista atribui jurisdio constitucional, analisado no item 3 deste trabalho, devemos alargar o espectro de nossa abordagem, a fim de que pontos fundamentais no contemplados pela anlise de Jos Albuquerque Rocha (porque repita-se o escopo de seu trabalho era outro) venham luz.

Tomando as concluses do autor como pressupostos para nossa argumentao, bem como ancorados em tudo o que foi dito acerca da teoria habermasiana nos itens 2 e 3 desta apresentao, podemos facilmente compreender que as smulas conferem corte uma funo inadequada ao seu papel no esquema da democracia enquanto processo deliberativo e com isso prejudicam o processo democrtico.

Tanto pelas concluses de Lus Roberto Barroso, quanto pelas de Jos Albuquerque Rocha, podemos entender que a smula vinculante confere um monoplio interpretativo ao STF e, mais do que isso, permite que o tribunal legisle, uma vez que seus enunciados correspondem a normas gerais e abstratas com eficcia erga omnes.

Diante deste quadro, uma srie de incompatibilidades com a teoria habermasiana podem ser apontadas. Abordaremos, no exaustivamente, os seguintes temas, tendo em mente que todos possuem implicaes recprocas: o monoplio interpretativo do STF monlogo e juiz Hrcules, agir comunicativo e retroalimentao do sistema pelo mundo da vida, final opinion; o foco no Estado (viso concretista) supresso da dimenso de solidariedade, supresso da autonomia pblica da sociedade civil politizada, neutralizao do espao pblico, retorno separao absoluta entre Estado e sociedade (alternativa neoliberal), aprisionamento da poltica no Estado de direito, pessoas concebidas apenas com status negativo (massa); o papel da jurisdio constitucional a interpretao construtiva restringida pela poltica deliberativa, admisso de uma postura ativa do tribunal por conta da indeterminao do direito operada pela sua materializao cujo limite a liberdade positiva dos cidados (reinterpretao da separao de poderes), paternalismo do tribunal, heteronomia, supresso da facticidade, transcendncia; legitimidade dos enunciados sumulados, a legitimidade do direito reside na formao discursiva da opinio e da vontade dos cidados livres e iguais, a democracia pelo agir comunicativo da comunidade aberta dos intrpretes da constituio, princpio D e legitimidade pela gnese democrtica do direito; EC 45 segurana jurdica em detrimento da democracia, validade em detrimento da facticidade, concentrao do poder na cpula do judicirio com seus reflexos sobre o princpio da independncia funcional do juiz, caractersticas do modelo liberal em detrimento das do republicano, reaproximao do modelo liberal e do positivismo jurdico, sistema fechado e auto-referencial com o poder de reviso das smulas nas mos do STF (qurum qualificado).

Quanto ao primeiro ponto levantado, o monoplio interpretativo do STF, o instituto da smula vinculante, ao estabelecer uma vinculao dos demais rgos ao entendimento do tribunal, desgua inevitavelmente em um monlogo da corte suprema, que suprime a polivocalidade e a divergncia e que, por isso, opera de forma semelhante ao princpio monolgico da teoria do direito solipsista de Dworkin, que, como vimos, incompatvel com o modelo deliberativo de democracia proposto por Habermas, o qual pressupe a formao horizontal da vontade pblica por via comunicativa.

Conforme j apontado, o direito, no paradigma procedimentalista, deve funcionar como medium, como meio de integrao social que viabilize a autocompreenso de uma comunidade solidria. Neste sentido, vimos justamente que, nas sociedades complexas, as relaes de reconhecimento mtuo, que se produzem em formas de vida concreta atravs do agir comunicativo, s se deixam generalizar abstratamente atravs do direito.

A teoria da argumentao jurdica deve, no paradigma procedimentalista, como j explicamos, assumir o fardo das exigncias ideais atribudas por Dworkin ao seu juiz Hrcules e, assim, a necessidade de legitimao do direito deve ser suprida pelo agir comunicativo orientado aceitabilidade racional de todos os possveis atingidos (horizontalizaro do processo de tomada de decises) e no pelas habilidades sobre-humanas de um juiz ou de um corpo especializado de 11 juzes de forma solitria (verticalizao das decises). A aproximao entre o colegiado da Corte Constitucional brasileira e o juiz Hrcules dworkiano enquanto modelo ideal de julgador solitrio no , pois, mera coincidncia.

O dilogo politico deve operar-se de forma contnua e ininterrupta, fazendo jus facticidade inerente ao exerccio do poder constituinte. E exatamente por isso, Habermas aponta que no h um fim natural no encadeamento dos possveis argumentos substanciais e que para se apagar esse derradeiro momento de factididade, preciso encerrar a srie de argumentos de um modo no puramente ftico, mas sim atravs de uma qualquer idealizao.

O sistema fechado de normas do modelo positivista, sob a gide do paradigma liberal do direito, operou uma tal fico metafsica, e, da mesma forma, tal idealizao heternoma e transcendente pode ocorrer por meio de uma aproximao da cadeia de argumentos (infinita e ininterrupta por natureza) de um valor limite ideal, que pode muito bem ser o entendimento sumulado com efeito vinculante pela Corte Constitucional em exerccio de um monoplio interpretativo (juiz Hrcules). Desta forma, a smula vinculante faz as vezes de uma final opinion que captura o dilogo de sua imanncia natural, fechando, atravs de uma interveno autoritria, as comportas que retroalimentam o sistema pelo mundo da vida.

Tal operao, por sua vez, acarreta uma separao absoluta entre Estado e sociedade civil e um aprisionamento da poltica no primeiro. Eis o nosso segundo ponto de atrito entre o instituto das smulas e a teoria habermasiana: as smulas s podem operar dentro de uma viso concretista similar do paradigma liberal do direito, onde o foco da poltica reside to somente no Estado.

Ao invs da nfase no ancoradouro da poltica simultaneamente no Estado e na sociedade civil, no sistema e no mundo da vida, que retroalimenta o primeiro pelo agir (poder) comunicativo , que, quando ocorrido segundo processos democrticos de formao da opinio e da vontade no espao pblico poltico, se transforma em poder administrativo pelo medium do direito, as smulas vinculantes permitem a supresso da dimenso de solidariedade, pela supresso da autonomia pblica da sociedade civil politizada e pela conseqente neutralizao do espao pblico politico.

Isto tudo aproxima as smulas de um mecanismo prprio de uma alternativa neoliberal, e no de uma alternativa procedimentalista. Com o aprisionamento da poltica no Estado de direito, as pessoas so concebidas, tal qual o eram no liberalismo clssico, apenas com status negativo, o que se torna evidente pela utilizao do termo massa quando da referncia sociedade civil. A autonomia poltica pblica e a possibilidade de uma auto-organizao democrtica de uma sociedade civil politizada so descartadas por uma viso de mundo como esta, implcita no instituto das smulas vinculantes.

Conforme j abordamos na exposio acerca do paradigma procedimentalista do direito, um dos elementos deste paradigma jurdico a teoria da sociedade fundada na comunicao e segundo este postulado, o sistema poltico estruturado nos moldes do Estado de direito apenas um sistema de ao entre outros, inserido no mundo da vida por meio de uma esfera pblica que se ancora em uma sociedade civil. Esta concepo de poltica viabiliza a supresso da separao absoluta entre Estado e sociedade (axioma do paradigma liberal e neoliberal), e do conseqente encerramento da poltica no Estado operado por ela. J a concepo implcita no mecanismo das smulas opera justamente o contrrio: o retorno separao e autonomizao do Estado, que se descola do social, em detrimento da autonomia da sociedade civil.

O paradigma procedimentalista traz uma dimenso de sociabilidade ou solidariedade social pela prtica da autodeterminao comunicativa enquanto processo intersubjetivo de exerccio da autonomia pblica e privada. Nele, a sociedade civil e a esfera pblica poltica adquirem posio de destaque no processo democrtico, modificando-se a concepo de uma sociedade civil com status somente negativo apartada por completo de um Estado limitado ativa e autnoma politicamente. este o quadro poltico e social de democracia deliberativa que o procedimento das smulas vinculantes inviabiliza.

Quanto ao papel da jurisdio constitucional, o paradigma procedimentalista concebe que o tribunal supremo promova a interpretao construtiva, mas restringe este ativismo pelo dever de respeito e de promoo de uma poltica deliberativa (vide item 3). Esta admisso de uma postura ativa do tribunal ocorre, como j apontamos, por conta da indeterminao do direito operada pela sua materializao e o seu limite reside na liberdade positiva dos cidados.

O ativismo da corte constitucional, portanto, limitado, sob a tica do paradigma procedimentalista do direito e do modelo deliberativo de democracia, pela autonomia pblica dos cidados que, enquanto titulares de uma esfera pblica jurdica politizada, fazem parte de uma coletividade deliberativa, de uma sociedade jurdica que se organiza a si mesma atravs intersubjetividade do agir comunicativo.

J esclarecemos que, assim como no modelo liberal, o limite entre Estado e sociedade permanece respeitado no modelo procedimentalista de democracia, mas no mais se configura como um esquema de compartimentos totalmente fechados, posto que sociedade civil opera como fonte de legitimao democrtica enquanto fundamento social das opinies pblicas autnomas. Os papis centrais desempenhados pela sociedade civil e pela esfera pblica poltica no modelo procedimentalista de democracia habermasiano denotam tal concepo. E por tudo isso que o paradigma procedimentalista, baseado na teoria do discurso, apesar de conceber o papel ativo do tribunal constitucional, pela necessria reinterpretao do principio da separao de poderes, ao mesmo tempo restringe este ativismo pela exigncia de legitimao racional das decises da corte pela gnese democrtica do direito. Este fortalecimento do papel da cidadania, da sociedade civil e da formao da opinio e da vontade por meio do agir comunicativo com o entrelaamento entre mundo da vida e sistema, entre autonomia privada e pblica, entre soberania popular institucionalizada e no institucionalizada, impede o ativismo judicial pleno porque isto significaria uma absoro do mundo da vida pelo sistema, pela (re)construo (ilegtima) de um direito ilegtimo, de gnese no democrtica. Desta forma, o empowerment das pessoas privadas impede um paternalismo do tribunal constitucional de todo inadequado com o modelo deliberativo de democracia.

O que Habermas rejeita o paternalismo do tribunal constitucional porque o paradigma procedimentalista, apoiado na teoria do discurso, entende a poltica deliberativa como constitutiva e, portanto, exercitada de forma contnua e permanente, como modo normal/regular do exerccio do poder constituinte e no como um estado de exceo, como concebe o republicanismo, atrelado concepo tica da autonomia do cidado, que leva necessidade de um lugar-tenente pedaggico, a atuar como regente durante o tempo em que o povo soberano se concentra no seu modo normal de privatismo cidado.

Disto resulta que legitimao da jurisdio constitucional no depende da latncia da poltica deliberativa de cunho popular, a qual substituiria em sua autodeterminao, como um regente substitui um sucessor menor de idade. A legitimao do tribunal constitucional, ao contrrio, depende da efetivao e da manuteno da poltica deliberativa, para cuja proteo existe, enquanto guardio dos direitos fundamentais garantidores da autonomia poltica dos cidados e da gnese democrtica do direito, que pode, portanto, atuar no mximo como um tutor que vela pelo implemento das condies possibilitadoras de um tal processo.

Justamente pela funo do tribunal constitucional consistir na proteo da poltica deliberativa pela garantia de suas bases de funcionamento, das condies pragmtico-formais possibilitadoras de uma poltica deliberativa, enquanto fonte de racionalidade e de legitimao democrtica, o tribunal constitucional tem o dever de garantir a prtica da autodeterminao deliberativa a desenvolver-se nos fluxos comunicacionais entre a formao institucionalizada da opinio e da vontade e a formao da opinio e da vontade nos crculos informais da comunicao poltica.

Neste sentido, a Corte suprema deve buscar constantemente a incluso das vozes ausentes, a efetivao da democracia pela amplitude crescente do espectro de intrpretes da constituio. O STF, ao elaborar smulas monologicamente, e impor seu entendimento de forma erga omnes descumpre precisamente este dever de promoo da democracia deliberativa, na medida em que no promove a autonomia poltica dos cidados e nem a incluso dialgica, mas, ao contrrio, cria direito independente de uma base de legitimao democrtica, atua como regente e concebe a sociedade como um sucessor menor de idade. Seu paternalismo fere flagrantemente, pois, o papel atribudo jurisdio constitucional pela teoria habermasiana.

Em nome da celeridade e do eficientismo na administrao da justia, com a simplificao do processo decisrio pela centralizao da tarefa interpretativa na corte constitucional, o papel da sociedade civil claramente desprestigiado, bem como desprestigiada fica a concepo da cidadania jurdica como entrelaamento da autonomia privada com a pblica. A massa que necessita do paternalismo pela centralizao decisria no , portanto, concebida como uma esfera pblica jurdica politizada, como uma cidadania com poder de auto-organizao que se transformou na comunidade dos intrpretes da constituio.

O ativismo judicial do STF, atravs do mecanismo das smulas vinculantes, ultrapassa escandalosamente as amarras e restries do paradigma procedimentalista. verdade que a atividade interpretativa no mais se coaduna com a funo mecnica de aplicao pura e simples da lei, visto que a materializao do direito operada pelo paradigma do Estado social exige uma interpretao construtivista do direito vigente, mas isso de forma alguma significa que o intrprete possa criar direito novo sem qualquer base de legitimidade democrtica, partindo to somente de uma compreenso semntica da textura aberta da norma. Isto poder discricionrio em sentido forte tal qual o admitido pelo positivismo jurdico.

Uma vez que a legitimidade do direito para o paradigma procedimentalista reside, portanto, na formao discursiva da opinio e da vontade dos cidados livres e iguais, pela democracia deliberativa do agir comunicativo da comunidade aberta dos intrpretes da constituio, conforme o princpio D, os enunciados sumulados somente podem ser tidos como direito ilegtimo. A gnese democrtica do direito exige dilogo e participao inclusiva de intrpretes, o que por bvio no promovido pelo mecanismo da smula.

A teoria habermasiana objetiva a maior racionalidade e legitimao do direito pela ampliao do nmero de intrpretes da constituio, objetivo este que, inclusive, o tribunal constitucional, segundo o paradigma procedimentalista, deve garantir enquanto guardio das condies do procedimento democrtico. O STF ao editar smulas vinculantes no cumpre sua funo democratizante e o direito que cria, pois, carece de legitimidade por carecer de base democrtica.O ltimo ponto a ser abordado funciona como sntese e concluso deste trabalho, j que todas as incompatibilidades entre o instituto das smulas vinculantes e o modelo procedimentalista de democracia podem ser reconduzidas a uma nica constatao: o mecanismo das smulas vinculantes est em conformidade com o escopo geral da chamada reforma do judicirio operada pela EC 45, qual seja, o de privilegiar a segurana jurdica em detrimento da democracia. A deliberao democrtica com o fortalecimento da racionalidade da jurisdio, oriunda da aceitabilidade racional, fica prejudicada com o recurso das smulas vinculantes, devido super valorizao da segurana jurdica que este opera ao conferir um monoplio interpretativo ao STF. Por todo o argumentado ate aqui, inferimos que o mecanismo da smula vinculante opera com a tenso entre facticidade e validade, mas no elaborando-a como faz o paradigma procedimentalista, mas suprimindo a facticidade em prol da validade, atravs de uma idealizao semelhante quela que o modelo liberal, por meio da fico do sistema, sustentou.

As smulas vinculantes s podem existir em um modelo que privilegie as caractersticas do modelo liberal em detrimento das do republicano, ao invs de sintetizar os melhores aspectos de cada um como faz o modelo procedimentalista. A tomada de posio pela manuteno do compromisso com o Estado social, e pela conseqente rejeio proposta neoliberal, faz com que o modelo procedimentalista conceba a relao entre Estado e sociedade civil de forma reflexiva com o deslocamento do foco concretista que encarcera o direito e a poltica no Estado para uma compreenso reflexiva do direito e da poltica alocada tambm na sociedade civil politizada e autnoma privada e publicamente. Por fazer justamente o contrrio, podemos concluir que o mecanismo das smulas est comprometido com uma proposta neoliberal e afastado, por isso, do modelo procedimentalista de democracia.

Visto que a democracia deliberativa depende da conservao de um momento de facticidade, de imanncia e de soberania popular (institucionalizada e no institucionalizada), no sentido da autonomia dos cidados politizados, que em um dilogo ininterrupto participam dos discursos racionais que visam conferir legitimidade atravs do assentimento racional de todos os possveis atingidos pelas normas (Princpio D), a super valorizao do princpio da segurana jurdica, da legalidade e da validade ocorre em prejuzo da legitimidade democrtica da formao da vontade pblica por via comunicativa, e, portanto, da democracia.

A super valorizao da validade suprime justamente este momento de facticidade, de gnese democrtica da direito, de autonomia, transitividade e imanncia e esta operao de aprisionamento da democracia em prol da segurana pode ser melhor compreendida luz dos objetivos que estiveram por traz da emenda 45. Como j reproduzido em tpico anterior, Claudio Baldino Maciel analisou criticamente a reforma do judicirio, sob o ponto de vista da globalizao e do neoliberalismo, e concluiu que esta foi parte de um fenmeno mais amplo que vem ocorrendo na maior parte dos pases em desenvolvimento, nos quais o poder Executivo vem ampliando cada vez mais a sua atuao em detrimento dos demais Poderes.Segundo ele, o documento do Banco Mundial O setor judicirio na Amrica Latina e no Caribe Elementos para reforma (produzido nos Estados Unidos em meados de 1996) prev a necessidade de reformas nos poderes Judicirios da Amrica Latina e do Caribe para quebrar a natureza monopolstica do Judicirio, melhor garantir o direito de propriedade e propiciar o desenvolvimento econmico e do setor privado.

Portanto, a reforma seria parte de um projeto global que visa fragilizar a expresso institucional do Poder Judicirio, que passaria a ter uma atuao menos contundente enquanto garantidor dos direitos e liberdades, permitindo o trnsito livre de percalos para o capital internacional, para o qual um ambiente favorvel e, principalmente, previsvel mostra-se essencial em termos de desenvolvimento. Pode parecer um contra-senso porque afinal o poder do STF foi estupendamente aumentado, mas na realidade o que no falta lgica, posto que o fortalecimento da cpula ocorreu em detrimento do restante do poder judicirio, com a limitao aguda da independncia funcional dos magistrados pela exigncia de obedincia ao supremo pai-tribunal. Basta lembrarmos que os ministros do STF, longe de alarem ao cargo por meio do mecanismo democrtico do concurso pblico de provas e ttulos, so indicados pelo chefe do poder Executivo, pelo que a corte um rgo mais poltico que jurdico e mais afeito ao poder executivo que ao judicirio.Somente um juiz independente ser verdadeiramente capaz de agir com imparcialidade na formao de sua livre convico. Apenas um juiz independente pode exercer a funo constitucional de garantidor dos direitos fundamentais, que, conforme j apontamos, precisamente a posio do juiz dentro do Estado Democrtico de Direito.

Os juzes, portanto, aps a reforma do Judicirio trazida pela Emenda 45, possuem salvo-conduto, protegidos pela vinculao normativa s decises do Pretrio Excelso determinada pelo mecanismo das smulas vinculantes, para seguirem cegamente o pai-tribunal, expediente que inclusive facilita o exerccio da funo por aqueles juzes mais inseguros, mas que, em todos os casos reduz sensivelmente a independncia do intrprete e que, no conjunto, frustra o ideal democrtico da comunidade aberta dos intrpretes da Constituio.O que se observa, em ltima anlise, que o pensamento dos Tribunais se dogmatiza e substitui inclusive a lei e, como conseqncia, tolhe em definitivo a criatividade do operador jurdico.

Quando uma deciso vale porque proferida por este ou aquele tribunal, e no porque uma boa deciso, passa-se a ser um mero repetidor acrtico e autofgico, impedindo qualquer espcie de evoluo.

Por tudo isso, podemos concluir que a deciso final e vinculativa do STF representa uma transcendncia, um engessamento da dinmica transitiva do mundo da vida. Assim, o Pai-Tribunal em seu monoplio interpretativo opera uma heteronomia que acaba por neutralizar a autonomia pblica dos cidados e diminuir o espectro de intrpretes da Constituio, inclusive com a neutralizao no apenas do agir comunicativo no institucionalizado, ao adotar uma concepo de sociedade civil enquanto massa de menoridade carente de regncia permanente, mas tambm pela neutralizao da autonomia dos demais integrantes do poder Judicirio, que possuem mais legitimidade democrtica que a cpula politicamente formada e dos demais poderes pela exigncia obedincia da administrao e pelo monoplio na conferncia de sentido s normas legislativas.

O paternalismo e o monlogo aproximam o STF de uma instituio mais afeita ao modelo liberal e ao positivismo e, portanto, mais prxima de uma agenda poltica neoliberal. As smulas vinculantes tornam o sistema jurdico fechado e auto-referencial, o que se agrava ainda mais pelo fato de que o poder de aprovao, reviso e cancelamento das smulas est concentrado nas mos do prprio STF com a exigncia adicional de quorum qualificado de dois teros dos ministros da corte. No devemos esquecer ademais da possibilidade de reclamao ao STF por qualquer desobedincia dos demais poderes s smulas vinculantes, o que transmite uma idia de subordinao inaceitvel em um modelo poltico verdadeiramente democrtico.

A opo pela segurana jurdica e pela validade em detrimento da facticidade e da democracia inegvel. A concentrao do poder na cpula do Judicirio configura, pois, um autoritarismo incompatvel com um verdadeiro regime de democracia deliberativa. Na tenso entre facticidade e validade, poder constituinte e poder constitudo, as smulas no apenas representam uma ntida opo pela validade e pelo poder constitudo, mas, mais do que isso, uma verdadeira tentativa de suprimir, atravs de um sistema de reviso judicial super forte, a dimenso de facticidade, o poder constituinte, enfim, a democracia.Bibliografia

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As objees at aqui levantadas contra o sentido e a viabilidade de uma teoria do direito ideal, capaz de proporcionar a melhor interpretao judicial dos direitos e deveres, da histria institucional, da estrutura poltica e de uma comunidade constituda segundo o direito do Estado constitucional, partiram da premissa de que essa teoria possui um nico autor o respectivo juiz, que escolheu Hrcules como seu modelo. Ora, as prprias respostas que Dworkin deu, ou poderia dar, a seus crticos levantam as primeiras Duvidas com relao possibilidade de se manter esse princpio monolgico. Pois o ponto de vista da integridade, sob o qual o juiz reconstri racionalmente o direito vigente, expresso de uma idia do Estado de direito que a jurisdio e o legislador poltico apenas tomam de emprstimo ao ato de fundao da constituio e da prtica dos cidados que participam do processo constitucional. Dworkin oscila entre a perspectiva dos cidados que legitima os deveres judiciais e a perspectiva de um juiz que tem a pretenso de um privilgio cognitivo, apoiando-se apenas em si mesmo, no caso em que a sua prpria interpretao diverge de todas as outras (...) Precisamente o ponto de vista da integridade teria que libertar Hrcules da solido de uma construo Terica empreendida monologicamente. Dworkin, imitando Parsons, entende o direito como meio de integrao social, mais precisamente, como um medium que permite manter a autocompreenso de uma comunidade solidria, numa forma por demais abstrata. Nas sociedades complexas, essas relaes de reconhecimento mutuo, que se produzem em formas de vida concreta atravs do agir comunicativo, s se deixam generalizar abstratamente atravs do direito (...) Entretanto, Possvel ampliar as condies concretas de reconhecimento atravs do mecanismo de reflexo do agir comunicativo, ou seja, atravs da prtica de argumentao, que exige de todo o participante a assuno das perspectivas de todos os outros. O prprio Dworkin reconhece esse ncleo procedimental do princpio da integridade garantida juridicamente, quando v o igual direito s liberdades subjetivas de Ao fundadas no direito s mesmas liberdades comunicativas. Isso sugere que se ancorem as exigncias ideais feitas teoria do direito no ideal poltico de uma sociedade aberta dos intrpretes da constituio, ao invs de apoi-las no ideal da personalidade de um juiz, que se distingue pela virtude e pelo acesso privilegiado verdade. HABERMAS, Jrgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Volume I. 2a edio. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 276-278.

A critica teoria do direito solipsista de Dworkin tem que situar-se no mesmo nvel e fundamentar os princpios do processo na figura de uma teoria da argumentao jurdica, que assume o fardo das exigncias ideais at agora atribudas a Hrcules. Ibid. p. 280.

A correo de juzos normativos no pode ser explicada no sentido de uma teoria da verdade como correspondncia, pois direitos so uma construo social que no pode ser hipostasiada em fatos. Correo significa aceitabilidade racional, apoiada em argumentos. Certamente a validade de um juzo definida a partir do preenchimento das condies de validade. No entanto, para saber se esto preenchidas, no basta lanar mo de evidencias empricas diretas ou de fatos dados numa viso ideal: isso s possvel atravs do discurso ou seja, pelo caminho de uma fundamentao que se desenrola argumentativamente. Ora, argumentos substanciais jamais so cogentes no sentido de um raciocnio lgico (que no suficiente, porque apenas explicita o contedo de premissas), ou de uma evidencia imediata (a qual no se encontra em juzos de percepo singulares e, mesmo que fosse, no deixaria de ser questionvel). Por isso, no h um fim natural no encadeamento dos Possveis argumentos substanciais; no se pode excluir a fortiori a possibilidade de novas informaes e melhores argumentos virem a ser aduzidos. Em condies favorveis, ns s conclumos uma argumentao, quando os argumentos se condensam de tal maneira num todo coerente, e no horizonte de concepes bsicas ainda no problematizadas, que surge um acordo no coercitivo sobre a aceitabilidade da pretenso de validade controvertida. A expresso acordo racionalmente motivado pretende fazer jus a esse resto de facticidade: ns atribumos a argumentos a fora de mover, num sentido no-psicolgico, os participantes da argumentao a tomadas de posio afirmativas. Para apagar esse derradeiro momento de factididade, ser preciso encerrar a srie de argumentos de um modo no puramente ftico. Ora, uma concluso interna s pode ser atingida atravs de idealizao: seja fechando circularmente a corrente de argumentos atravs de uma teoria, onde as razes se interligam sistematicamente e se apiam mutuamente como era o caso do conceito metafsico de sistema; seja aproximando a cadeia de argumentos de uma valor-limite ideal daquele ponto de fuga que Peirce caracterizava como final opinion. Ibid. p. 282.

D: So vlidas as normas de Ao s quais todos os Possveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais. Ibid. p. 142.

Ele no pode assumir o papel de um regente que entra no lugar de um sucessor menor de idade. Sob os olhares crticos de uma esfera pblica jurdica politizada da cidadania que se transformou na comunidade dos intrpretes da constituio -, o tribunal constitucional pode assumir, no melhor dos casos, o papel de tutor. A idealizao desse papel, levada a cabo por juristas ufanos, s faz sentido quando se procura um fiel depositrio para um processo poltico idealisticamente acentuado. Essa Idealizao, por sua vez, provm de um estreitamento tico de discursos polticos, no estando ligada necessariamente ao conceito de poltica deliberativa. Ela no convincente sob pontos de vista da lgica da argumentao, nem exigida para a defesa de um princpio intersubjetivista. Ibid. p. 347.

Se a deciso de um caso luz de uma norma superior significa que um sistema de normas vlidas esgotado da melhor maneira Possvel, tendo-se em conta todas as circunstancias relevantes; e, se esse sistema se encontra em constante movimento, porque as relaes preferenciais podem modificar-se com cada nova situao que surge: ento, a orientao por um ideal to pretensioso ir sobrecarregar, via de regra, uma jurisdio profissionalizada. Por isso, a complexidade dessa tarefa , de fato, reduzida atravs da compreenso jurdica paradigmtica que prevalece num determinado contexto. No lugar dos ideais, entram paradigmas, nos quais normas, que temos como vlidas aqui e agora, foram trazidas para uma ordem transitiva. Dado que tal ordem pode ser construda sem relao com possveis situaes de aplicao, esses paradigmas contm descries generalizadas de situaes de um determinado tipo (...) Juntamente com outro saber de orientao cultural, esses paradigmas fazem parte da forma de vida na qual ns nos encontramos. Exemplos histricos de tais ideologias do direito so os modelos sociais do direito formal burgus e do direito materializado pelo Estado socialista, que se cristalizaram, no primeiro caso, em torno dos direitos subjetivos do participante privado do mercado e, no segundo caso, em torno das pretenses a realizaes sociais de clientes de funcionrios de um Estado de beneficncia social. Tais paradigmas aliviam Hercules da super complexa tarefa de colocar a olho uma quantidade desordenada de princpios aplicveis somente prima facie em relao com as caractersticas relevantes de uma situao apreendida do modo mais completo possvel. A partir da, as prprias partes podem prognosticar o desenlace de um processo, na medida em que o respectivo paradigma determina um pano de fundo de compreenso, que os especialistas em direito compartilham com todos os demais parceiros do direito. Ibid. p. 274-275.

Ibid. p. 242.

Ora, interessante constatar que o elemento capaz de aumentar a segurana do direito e de atenuar as exigncias ideais que cercam a teoria do direito o mais propenso formao de ideologias. Os paradigmas se coagulam em ideologias, na medida em que se fecham sistematicamente contra novas interpretaes da situao e contra outras interpretaes de direitos e princpios, necessrias luz de novas experincias histricas (...) Paradigmas fechados, que se estabilizam atravs de monoplios de interpretao, judicialmente institucionalizados, e que podem ser revistos internamente, somente de acordo com medidas prprias, expem-se, alem disso, a uma objeo metdica, que recoloca em cena o ceticismo jurdico realista: ao contrario da exigida coerncia ideal do direito vigente, as interpretaes de caso coerentes permanecem, em princpio, indeterminadas no interior de um paradigma jurdico fixo; pois elas concorrem com interpretaes igualmente coerentes do mesmo caso em paradigmas jurdicos alternativos. Isso j uma razo suficiente para que uma compreenso procedimentalista do direito delineie um nvel no qual os paradigmas jurdicos, agora reflexivos, se abram uns aos outros e se comprovem na pluralidade de interpretaes da situao. Ibid. p. 276.

Dworkin exige a construo de uma teoria do direito, no de uma teoria da justia. A tarefa no consiste na construo filosfica de uma ordem social fundada em princpios da justia, mas na procura de princpios e determinaes de objetivos vlidos, a partir dos quais seja Possvel justificar uma ordem jurdica concreta em seus elementos essenciais, de tal modo que nela se encaixem todas as decises tomadas em casos singulares, como se fossem componentes coerentes. Dworkin sabe que, para desempenhar essa tarefa, preciso pressupor um juiz cujas capacidades intelectuais podem medir-se com as foras fsicas de um Hrcules. O juiz Hrcules dispe de dois componentes de um saber ideal: ele conhece todos os princpios e objetivos vlidos que so necessrios para a justificao; ao mesmo tempo, ele tem uma viso completa sobre o tecido cerrado dos elementos do direito vigente que ele encontra diante de si, ligados atravs de fios argumentativos. Ambos os componentes traam limites construo da teoria. Ibid. p. 263.

Dworkin caracteriza se procedimento hermenutico-crtico como uma interpretao construtiva que explicita a racionalidade do processo de compreenso atravs da referencia a um paradigma ou a um fim (...) Como auxlio de tal procedimento da interpretao construtiva, cada juiz deve, em princpio, poder chegar, em cada caso, a uma deciso idealmente vlida, na medida em que ele compensa a suposta indeterminao do direito, apoiando sua fundamentao numa teoria. Essa teoria deve reconstruir racionalmente a ordem jurdica respectivamente dada de tal modo que o direito vigente possa ser justificado a partir de uma srie ordenada de princpios e ser tomado, deste modo, como uma encarnao exemplar do direito em geral. Ibid. p. 260-261.

Uma vez que o ideal absolutista da teoria fechada no mais plausvel sob condies do pensamento ps-metafsico, a idia reguladora da nica deciso correta no pode ser explicitada com o auxlio de uma teoria, por mais forte que ela seja. A prpria teoria do direito , atribuda a Hrcules, teria que ser revista como uma ordem de argumentos por enquanto coerentes, construda provisoriamente, a qual se v exposta critica ininterrupta. Ibid. p. 282.

HABERMAS, Jrgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Volume II. 2a edio. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 129-132.

O erro do paradigma jurdico liberal consiste em reduzir a justia a uma distribuio igual de direitos, isto , em assimilar direitos a bens que podem ser possudos e distribudos. No entanto, os direitos no so bens coletivos consumveis comunitariamente, pois s podemos goz-los exercitando-os. Ao passo que a autodeterminao individual constitui-se atravs do exerccio de direitos que se deduzem de normas produzidas legitimamente. Por isso, a distribuio equitativa de direitos subjetivos no pode ser dissociada da autonomia pblica dos cidados, a ser exercida em comum, na medida em que participam da prtica de legislao. O paradigma do direito liberal e o do Estado social cometem o mesmo erro, ou seja, entendem a constituio jurdica da liberdade como distribuio e a equiparam ao modelo da repartio igual de bens adquiridos ou recebidos. Ibid. p. 159.

Um ordem jurdica legtima na medida em que assegura a autonomia privada e a autonomia cidad de seus membros, pois ambas so co-originrias; ao mesmo tempo, porm, ela deve sua legitimidade a formas de comunicao nas quais essa autonomia pode manifestar-se e comprovar-se. A chave da viso procedimental do direito consiste nisso. Uma vez que a garantia da autonomia privada atravs do direito formal se revelou insuficiente e dado que a regulao social atravs do direito, ao invs de reconstruir a autonomia privada, se transformou numa ameaa para ela, s resta como sada tematizar o nexo existente entre formas de comunicao que, ao emergirem, garantem a autonomia pblica e a privada. Ibid. p. 147.

A atual critica ao direito, num Estado sobrecarregado com tarefas qualitativamente novas e quantitativamente maiores, resume-se a di pontos: a lei parlamentar perde cada vez mais seu efeito impositivo e o princpio da separao de poderes corre perigo. Enquanto a administrao clssica podia concentrar-se em tarefas de ordenao de uma sociedade econmica, entregue auto-regulao econmica, ela s devia intervir, em princpio, quando a ordem garantida pelo Estado de direito e pelo direito constitucional fosse perturbada. A lei geral e abstrata, que traduz fatos tpicos em conceitos jurdicos determinados e os associa a conseqncias jurdicas claramente definidas, tinha sido concebida em funo desses casos; pois o sentido da ordem jurdica consistia em proteger a liberdade jurdica das pessoas contra intromisses de um aparelho de Estado limitado manuteno da ordem. To logo, porm, a administrao do Estado social foi tomada para tarefas de estruturao e de regulao poltica, a lei em sua forma clssica no era mais suficiente para programar a prtica da administrao (...) O leque das formas do direito foi ampliado atravs de leis relativas a medidas, leis experimentais de carter temporrio e leis de regulao, de prognstico inseguro; e a insero de clusulas gerais, referencias em branco e, principalmente, de conceitos jurdicos indeterminados na linguagem do legislador, desencadeou a discusso sobre a indeterminao do direito, a qual motivo de inquietao para a jurisprudncia americana e alem. Ibid. p. 173-174.

certo que o paradigma do direito fornecido pelo Estado social no consegue mais convencer plenamente. Mesmo assim, as dificuldades desse novo paradigma, que Bckenfrde analisa com grande acuidade, no constituem razo suficiente para a restaurao do antigo. HABERMAS, Jrgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Volume I. 2a edio. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 312.

HABERMAS, Jrgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Volume II. 2a edio. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 171.

Alm do mais, o paradigma procedimental do direito resulta de uma controvrsia acerca de paradigmas, partindo da premissa, segundo a qual o modelo jurdico liberal e o do Estado social interpretam a realizao do direito de modo demasiado concretista, ocultando a relao interna que existe entre autonomia privada e pblica, e que deve ser interpretada caso a caso. Ibid. p. 181-182.

Ibid. p. 181.

Ibid. p. 183. Ainda: E, para impedir, em ltima instancia, que um poder ilegtimo se torne independente e coloque em risco a liberdade, no temos outra coisa a no ser uma esfera publica desconfiada, mvel, desperta e informada, que exerce influencia no complexo parlamentar e insiste nas condies da gnese do direito legtimo. Ibid. p. 185.

O conceito de soberania popular para o modelo procedimentalista, em decorrncia da teoria do discurso, reside no povo, mas no da forma concretista concebida pelo modelo republicano, mas na comunidade jurdica que se auto-organiza absorvida pelas formas de comunicao destitudas de sujeito (uma sociedade descentrada, portanto). Neste sentido: Para quem adota a premissa questionvel de um conceito de Estado e de sociedade delineado a partir do todo e de suas partes onde o todo constitudo pela cidadania soberana ou por uma constituio o republicanismo e o liberalismo constituem alternativas completamente opostas. Todavia, a idia de democracia, apoiada no conceito do discurso, parte da imagem de uma soc