2
O Verão Quente, afinal, não foi em 1975. No corrente ano, sim, as temperaturas subiram até onde nunca tinham subido. Que o digam as centenas de manifestantes que aceitaram o repto da CGTP e foram num sába- do à tarde para a frente do Palácio de Belém protestar contra a falsa saída de cena dos protagonistas dos nossos telejornais. Além do mais, graças às alterações climá- ticas, o Verão é global: uma parte do Brasil, isto em pleno inverno, também está na rua. Este Verão não sabemos se ficará na memória: amo- res de Verão, enterram-se na areia. O que revela este pudor comum em relação a acidentes e horrores, como se o significado do silêncio fosse dizer isto foi tão mau que o melhor é não falar mais disso. A omissão remete as coisas para o purgatório ou directamente para o inferno? Tanto filme e reconstituição histérica sobre as guerras, os golpes, as ditaduras, serão realmente uma confissão de arrependimento colectivo ou apenas um gozo disfarçado de culpa? O teatro é mais real do que a realidade, porque é elevado a dois ou três. O surrealis- mo nasceu nas trincheiras da primeira grande guerra, onde Breton foi médico de campanha. Se continuar assim quente, há-de chegar uma altura em que pedimos os canhões de água. Jorge Louraço Augúrios gregos O seu desaparecimento deixa-nos orfãos de um amigo, de um irmão, de um mestre. Mas Joaquim Benite deixa-nos também o seu Festival, deixa-nos este gosto da paixão e da resistência. Nº 4 | DOM 7 DE JULHO Marina da Silva Só se está bem na praia à noite Habib Dembélé em O Papalagui “I rmãos de muitas ilhas, vou tentar contar o que vi e conheci no País do Papalagui durante esta viagem que levou tantas luas.”, diz Tuia- vii, chefe de uma tribo samo- ana, quando se prepara para contar a história da sua viagem e da sua descoberta do homem branco. Tuiavii observou atentamente os valores e os costumes do es- trangeiro. Tudo é espantoso na sua terra: os “baús” em que vive e onde não entra a luz; o “peso que o Papalagui carrega sobre o corpo”, dividido pelas suas mui- tas “peles”; a sua “necessidade de ter coisas” que só se adqui- rem com “um pedaço de metal redondo ou de papel forte”; o facto de só o ar ser obtido sem pagamento e de as ruas parece- rem gretas, “longas como rios e cobertas de pedra dura”. O Papalagui, que estreia ama- nhã na Sala Experimental do TMJB, foi um dos sucessos do Verão passado, em Avignon. O texto, escrito no início do sécu- lo XX, já foi estudado nas es- colas portuguesas, integrando, actualmente, o Plano Nacional de Leitura. Nele se observam O Papalagui e descrevem, com a mesma mi- núcia, os aspectos sociológicos e espirituais das sociedades ditas “civilizadas”, nomeada- mente a inutilidade de alguns hábitos e a hipocrisia dos ho- mens. É também um “manifesto anti-colonial”, uma crítica àque- les que se julgam sábios e, por isso, em condições de impor ao outro o seu modo de vida. A poesia de O Papalagui reside na simplicidade da sua forma e, ao mesmo tempo, na ingenui- dade do seu contéudo. Ambas tão difíceis de possuir nos nos- sos dias… Advoga a tranquili- dade perante o Tempo, a Morte e a Diferença e a redescoberta daquilo que, nas nossas vidas, é verdadeiramente essencial. Em Scheurmann, o “transcritor dos discursos de Tuiavii”, parecem ecoar ainda as vozes da poesia grega arcaica, singela, repleta de imagens da Natureza e de música. Todavia, a música do Papalagui, apesar de ser “bela como o túmulo de um deus, é um túmulo vazio”. P aís Natal apresenta ama- nhã no Festival uma Gré- cia imaginária, conheci- da dos guias de viagem e dos livros de história, e uma Gré- cia subterrânea, real mas clan- destina, a de Dimítris Dimitri- ádis. O poeta e dramaturgo grego, conhecido em Portugal pela obra Morro Como País, é o autor dos dois textos, Lethes e Nous et les Grecs, a partir dos quais foi criada este espec- táculo franco-helénico. A voz de Lethes, personagem de um dos textos originais, soa como uma Cassandra moderna que conhece tão intimamente o passado da Grécia que conse- gue ver o futuro. E o futuro não promete. Os criadores deste espectáculo justapuseram aos discursos de Dimítris Dimitri- ádis uma série de referências turísticas e populares sobre a Grécia, improvisadas colecti- vamente, que contrastam com a amargura do mau pressen- timento sobre o fim de uma época dourada, tido nos anos noventa pelo autor, e que ago- ra se confirma.

Só se está bem na praia à noite O Papalagui “I · A poesia de O Papalagui reside na simplicidade da sua forma e, ao mesmo tempo, na ingenui-dade do seu contéudo. Ambas tão

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Só se está bem na praia à noite O Papalagui “I · A poesia de O Papalagui reside na simplicidade da sua forma e, ao mesmo tempo, na ingenui-dade do seu contéudo. Ambas tão

O Verão Quente, afinal, não foi em 1975. No corrente

ano, sim, as temperaturas subiram até onde nunca tinham subido. Que o digam as centenas de manifestantes que aceitaram o repto da CGTP e foram num sába-do à tarde para a frente do Palácio de Belém protestar contra a falsa saída de cena dos protagonistas dos nossos telejornais. Além do mais, graças às alterações climá-ticas, o Verão é global: uma parte do Brasil, isto em pleno inverno, também está na rua.

Este Verão não sabemos se ficará na memória: amo-res de Verão, enterram-se na areia. O que revela este pudor comum em relação a acidentes e horrores, como se o significado do silêncio fosse dizer isto foi tão mau que o melhor é não falar mais disso. A omissão remete as coisas para o purgatório ou directamente para o inferno? Tanto filme e reconstituição histérica sobre as guerras, os golpes, as ditaduras, serão realmente uma confissão de arrependimento colectivo ou apenas um gozo disfarçado de culpa?

O teatro é mais real do que a realidade, porque é elevado a dois ou três. O surrealis-mo nasceu nas trincheiras da primeira grande guerra, onde Breton foi médico de campanha. Se continuar assim quente, há-de chegar uma altura em que pedimos os canhões de água.

Jorge Louraço

Augúrios gregos

O seu desaparecimento deixa-nos orfãos de um amigo, de um irmão, de um mestre. Mas Joaquim Benite deixa-nos também o seu Festival, deixa-nos este gosto da paixão e da resistência.

Nº 4 | Dom 7 De Julho

Marina da SilvaSó se está bem na praia à noite

habib Dembélé em O Papalagui

“I rmãos de muitas ilhas, vou tentar contar o que vi e conheci no País do

Papalagui durante esta viagem que levou tantas luas.”, diz Tuia-vii, chefe de uma tribo samo-ana, quando se prepara para contar a história da sua viagem e da sua descoberta do homem branco. Tuiavii observou atentamente os valores e os costumes do es-trangeiro. Tudo é espantoso na sua terra: os “baús” em que vive e onde não entra a luz; o “peso que o Papalagui carrega sobre o corpo”, dividido pelas suas mui-tas “peles”; a sua “necessidade de ter coisas” que só se adqui-rem com “um pedaço de metal redondo ou de papel forte”; o facto de só o ar ser obtido sem pagamento e de as ruas parece-rem gretas, “longas como rios e cobertas de pedra dura”.O Papalagui, que estreia ama-nhã na Sala experimental do TmJB, foi um dos sucessos do Verão passado, em Avignon. o texto, escrito no início do sécu-lo XX, já foi estudado nas es-colas portuguesas, integrando, actualmente, o Plano Nacional de leitura. Nele se observam

O Papalagui

e descrevem, com a mesma mi-núcia, os aspectos sociológicos e espirituais das sociedades ditas “civilizadas”, nomeada-mente a inutilidade de alguns hábitos e a hipocrisia dos ho-mens. É também um “manifesto anti-colonial”, uma crítica àque-les que se julgam sábios e, por isso, em condições de impor ao outro o seu modo de vida. A poesia de O Papalagui reside na simplicidade da sua forma e, ao mesmo tempo, na ingenui-dade do seu contéudo. Ambas

tão difíceis de possuir nos nos-sos dias… Advoga a tranquili-dade perante o Tempo, a morte e a Diferença e a redescoberta daquilo que, nas nossas vidas, é verdadeiramente essencial. em Scheurmann, o “transcritor dos discursos de Tuiavii”, parecem ecoar ainda as vozes da poesia grega arcaica, singela, repleta de imagens da Natureza e de música. Todavia, a música do Papalagui, apesar de ser “bela como o túmulo de um deus, é um túmulo vazio”.

P aís Natal apresenta ama-nhã no Festival uma Gré-cia imaginária, conheci-

da dos guias de viagem e dos livros de história, e uma Gré-cia subterrânea, real mas clan-destina, a de Dimítris Dimitri-ádis. o poeta e dramaturgo grego, conhecido em Portugal pela obra Morro Como País, é o autor dos dois textos, Lethes e Nous et les Grecs, a partir dos quais foi criada este espec-táculo franco-helénico. A voz de lethes, personagem de um dos textos originais, soa como

uma Cassandra moderna que conhece tão intimamente o passado da Grécia que conse-gue ver o futuro. e o futuro não promete. os criadores deste espectáculo justapuseram aos discursos de Dimítris Dimitri-ádis uma série de referências turísticas e populares sobre a Grécia, improvisadas colecti-vamente, que contrastam com a amargura do mau pressen-timento sobre o fim de uma época dourada, tido nos anos noventa pelo autor, e que ago-ra se confirma.

Page 2: Só se está bem na praia à noite O Papalagui “I · A poesia de O Papalagui reside na simplicidade da sua forma e, ao mesmo tempo, na ingenui-dade do seu contéudo. Ambas tão

escola D. António da CostaAvenida Prof. egas monizAlmADA 2804- 503

ReSTAuRANTe DA eSPlANADA

Hoje

Amanhã

30º Festival de Almada – diversidade,qualidade, memória.

* Na gíria teatral, diz-se que os actores “carregam na farinheira” quando exageram. Nós carregamos na farinheira quando a realidade ultrapassa a ficção.

Carregar na farinheira*

AGENDA DE AmANHã

19h00: O PapalaguiTeatro municipal Joaquim Benite

21h30: Sala VIPCulturgest

22h00: País natalPalco Grande da escola D. António da Costa

eSPeCTáCuloS

ColóquioS

SOPA- Caldo Verde

PRATOS- Strogonoff - Lulas recheadas

SOPA- Sopa de grão

PRATOS- moussaka- maionese de pescada

19h00: Teatro meridionalesplanada da escola D. António da Costa

DOrES DE PrODuçãO

A complexidade da gestão de um evento como o FA,

com a pequena estrutura que o organiza, encontra-se qua-se sempre associada a con-tratempos relacionados com o cumprimento de prazos, horários, orçamentos, etc. o humor é, a maior parte das vezes, o bálsamo da tragé-dia, como na correspondên-cia seguinte entre um tradu-tor e a nossa produção:

Tradutor: Tive de novo um problema com o meu PC, que já vinha atrasando o meu trabalho. estava a ten-tar enviar o meu trabalho já completado por e-mail, para ficar com um backup, mas o PC soçobrou de vez. Peço desculpa pelo atraso de novo.

Resposta da produção: Caro Pedro, esperamos que o PC recupere, que bem precisa-mos dele – para o bem do País e dos trabalhadores portugueses. Saudações de-mocráticas.

© l

uana

San

tos

No último dia do primei-ro fim-de-semana do Festival, altura de ba-

lanço: o público de Almada e lisboa teve já a oportunidade de assistir a espectáculos da eslovénia, Finlândia, Dinamar-ca e França, a duas criações portuguesas e à aguarda-da apresentação do espec-táculo de honra 2013, O Sr. Ibrahim e as flores do Corão. o Festival abriu com “um es-pectáculo arriscado”, nas pa-lavras de Rodrigo Francisco, o seu director artístico. mas o público de Almada, disposto a arriscar, encheu o Palco Gran-de para assistir à encenação do bósnio de passaporte cro-ata oliver Frljić, que trata a di-fícil questão do nacionalismo no contexto da dissolução da ex-Jugoslávia. o espectáculo provocador, em que se inter-pelou directamente o públi-co português (evocando, por exemplo, o nosso passado co-lonial), provocou reacções di-versas no público que encheu o Palco Grande. Gente houve que não gostou da nudez in-tegral. que se sentiu ofendi-da pela recordação do difícil processo de descolonização, pelos insultos. Alguns levan-taram-se e saíram do espec-táculo a meio. mas “os insultos não foram gratuitos”, dizia-se à saída. “Diga-se o que se disser,

a verdade é que não se disse mentira nenhuma”.Difícil, enfim, mas não gratuito. o público de Almada conta já com a diversidade artística e com posições polémicas por parte dos criadores que o Fes-tival traz à cidade: “Já estamos habituados a estas apostas”.habituados estamos também à qualidade exemplar, à mestria e ao rigor de emmanuel De-marcy-mota, o encenador de Victor ou as crianças ao poder, que se apresentou ontem na Sala Principal do TmJB. Perante uma sala cheia, que aplaudiu de pé, Demarcy-mota dedicou o seu espectáculo a Joaquim Benite. Sábado foi um dia rico em homenagens: miguel Sea-bra, o criador e intérprete da

comovente história de momo e do Sr. ibrahim – que, como faz disso prova a afluência de pú-blico, continua a suscitar inte-resse e a despertar emoções, mesmo depois de um ano de digressão e de inúmeras apresentações – dedicou o es-pectáculo de honra a Joaquim Benite e ofereceu o prémio à Companhia de Teatro de Al-mada.

Nuno Carinhas

João mota e António GuterresPascal Teixeira da Silva, embaixador de França

21h00: King Size Blues Bandesplanada da escola D. António da Costa

23h30: O doido e a morteesplanada da escola D. António da Costa

múSiCA

TeATRo FilmADo