24
Sábato Magaldi/Edla Van Steen e Maria Lêda Sarmento de Medeiros Ivo/Lêdo Ivo, em Nova York, inverno de 1999. As fotos de Lêdo Ivo incluídas neste número da RB integram a exposição Universo poético de Lêdo Ivo, organizada pelo Centro de Memória da ABL em setembro de 2004.

Sábato Magaldi/Edla Van Steen e Maria Lêda Sarmento de ... · O poema é a arquitetura de um ninho. Dizem que o pássaro escolhe os gravetos ... sono gli occhi vuoti delle cornici

Embed Size (px)

Citation preview

Sábato Magaldi/Edla Van Steen e Maria Lêda Sarmento deMedeiros Ivo/Lêdo Ivo, em Nova York, inverno de 1999.As fotos de Lêdo Ivo incluídas neste número da RB integram aexposição Universo poético de Lêdo Ivo, organizada pelo Centro deMemória da ABL em setembro de 2004.

Homenagem aos 80 anosdo poeta Lêdo Ivo

Francisco de Carvalho

I

Pairas no umbral da noite metafísica.Asteróides rastejam no esqueletodo céu. Regressas da Estação Centralpara o Acontecimento do Soneto.

A Cidade e os Dias abrem seus pórticosao fulgor do Crepúsculo Civil.Chove quando anoitece em Nova Iorque.Um fauno afaga a taça de um quadril.

Os emblemas do mar, rosas do mangue,seduzem piratas e canibaiscom seu odor de seios e moluscos.

A escada em espiral finda no cais.Os navios somem no caos. Arbustosde espuma, os dias manchados de sangue.

199

Poeta e ensaísta,com vários livrospublicados,membro daAcademiaCearense deLetras eganhador dosprêmios Nestlé(1982) eFundaçãoBibliotecaNacional(1997).

II

Nas tardes de marulhos e morcegos,pousam gaivotas mortas. O mar pertoe o mar longe são dois cavalos verdessonhados pelas éguas do deserto.

Os trapaceiros são cosmopolitas,têm almas de metal, corpos blindados.O poeta sonha auroras interditas,léguas azuis, sítios hipotecados.

Canta a estátua de bronze de um cavaloque despencou das nuvens. Com certeza,um puro-sangue de linhagem árabe.

A neve cai. O vento sopra forte.O Empire State é uma coivara acesa.Chove quando anoitece em Nova Iorque.

III

O poema é a arquitetura de um ninho.Dizem que o pássaro escolhe os gravetosda mesma forma que o poeta escolheas rimas e vogais para os sonetos.

Chicago. A tarde cheirava a pipocas.Arranha-céus de vidro e seus revérberosde prata. Navios dormem nas docas.Seios no asfalto e coxas de mulheres.

200

Francisco de Carvalho

Teseu do Carmo escreve um labirintode palavras nas lápides dos gregos,nos pórticos de bronze de Corinto.

A neve cai. O vento sopra fortena madrugada espúria dos morcegos.

Chove quando anoitece em Nova Iorque.

201

Homenagem aos 80 anos do poeta Lêdo Ivo

Primeira vinda de Lêdo Ivo àAcademia Brasileira de Letras, comorepórter de A Manhã, para cobrir aeleição de Luís Edmundo em18/5/1944.Ao lado, com Manuel Bandeira.

Abaixo, com Miguel Osório deAlmeida e Múcio Leão.

Poemas inéditos

David Mourão-Ferre ira

Tradução para o italiano de Fernanda Torrielo*

� Vens percorrendo o mundo há muitotempo

Vens percorrendo o mundo há muito tempodescobrindo no tempo muito mundosempre sabendo que se houvera temponão seria preciso tanto mundoUm dia a tua sombra já sem temponão mais há de estender-se neste mundoSomente por ludíbrio do teu tempoa sombra projectaste sobre um mundoonde contam as sombras Mas o tempodo mundo que lateja sob o mundoé um tempo sem tempo para o temponem mundo para sombras deste mundoE se algum tempo resta do teu temponenhum mundo te fica do teu mundo

* Fernanda Toriello, do Instituto de Língua e Literatura Espanhola e Portuguesa, daUniversidade de Bari, Itália, é escritora, tradutora e editora.

DavidMourão-Ferreira(Lisboa,1927-1996), poeta,ficcionista e ensaístalusitano, sóciocorrespondente daAcademia Brasileirade Letras (Cadeirano 5).

202

� Stai percorrendo il mondo già da tempo

Stai percorrendo il mondo già da tempoesplorando nel tempo tanto mondosempre sapendo che se avessi tempoinutile sarebbe tanto mondoUn giorno l’ombra tua già senza tempopiú non s’allungherà su questo mondoSoltanto per ludibrio del tuo tempohai proiettato l’ombra sopra un mondodove contano le ombre Ma il tempodel mondo palpitante sotto il tempoè un tempo senza tempo per il temponé mondo per le ombre di tal mondoE se del tempo resta del tuo temponon un mondo ti resta del tuo mondo

203

� Buscas molduras perdes os retratos

Buscas molduras perdes os retratosJuntas retratos faltam-te as moldurasMais foscos que os fantasmas dos retratossão os olhos vazados das moldurase mesmo assim persegues em retratosa cegueira implacável das moldurasSe teus actos retractas os retratosservirão a teus actos de moldurasNem basta que retrates nos retratoso que pensaste ser Vê que moldurasde repente molduram os retratosde quem virás a ser já sem moldurasA menos que espezinhes os retratosOu que a cinza reduzas as molduras

204

David Mourão-Ferre ira

� Cerchi cornici smarrisci i ritratti

Cerchi cornici smarrisci i ritrattiTrovi ritratti non hai le corniciPiú foschi dei fantasmi dei ritrattisono gli occhi vuoti delle cornicie pur cosí insegui nei ritrattil’orrenda cecità delle corniciSe i tuoi atti ritratti i ritrattifaranno ai tuoi atti da corniciNé basta che ritratti nei ritratticiò che credevi d’essere Cornicivedi ora incorniciano i ritrattidi chi diventerai senza corniciSalvo che tu calpesti i ritrattiO in cenere riduca le cornici

205

Poemas inéditos

� Tão-só com as lombadas destes livros

Tão-só com as lombadas destes livrosdialogando ao longo destas noitesa ti mesmo perguntas quais os livrosonde lateja a luz das tuas noitesNão a da lua que vive em tantos livrosNão a do sol que morre em tantas noitesAntes uma nascida aquém dos livrosou mais outra queimando além das noitesos espectros anónimos dos livroso sudário paupérrimo das noitesDe noites não será nem já de livrosa tua imensa fome nestas noitesem que o pulsar do coração dos livrossó se escuta no pulso de tais noites

206

David Mourão-Ferre ira

� Soltanto con i dorsi dei tuoi libri

Soltanto con i dorsi dei tuoi libridialogando a lungo in queste nottitu ti domandi in quali quali libripulsi la luce delle tue nottiNon della luna che vive in tanti libriE non del sole che muore in tante nottiMa una spuntata di qua dai librio un’altra che di là dalle nottibrucia i fantasmi anonimi dei libriil misero sudario delle nottiDi notti non sarà né piú di librila tua immensa fame in queste nottiin cui il battito del cuor dei librisi sente al polso sol di queste notti

207

Poemas inéditos

� Recusas pedra e nuvem Mas a pedra

Recusas pedra e nuvem Mas a pedravai ganhando o contorno de uma nuvemnesse teu coração feito de pedraà luz das mãos que tens feitas de nuvemBem quiseras que tudo fosse pedraextraída de quanto foste nuvemSabes porém que a pedra mais que pedrase dissolve na nuvem mais que nuvemOutras nuvens buscaste Eram de pedraAtingiram-te pedras que de nuvemnem mesmo a forma tinham Pedra pedraE tu clamando nuvem nuvemNem hás de ter um túmulo de pedraSó um anjo a velar-te Uma nuvem

208

David Mourão-Ferre ira

� Rifiuti pietra e nuvola Ma la pietra

Rifiuti pietra e nuvola Ma la pietrava assumendo il profilo di una nuvolain questo tuo cuore fatto di pietrarispetto alle tue mani fatte di nuvolaVorresti tanto che tutto fosse pietraricavata da quanto fosti nuvolaE però sai che la pietra piú pietrasvanisce nella nuvola piú nuvolaHai cercato altre nuvole Erano pietraTi hanno colpito pietre che alle nuvoleneppure assomigliavano Pietra pietraE tu che imploravi nuvola nuvolaNeppure un tumulo tu avrai di pietraTi veglierà un angelo Una nuvola

209

Poemas inéditos

Georgina de Albuquerque (1885-1962)Dia de verão (1926)Óleo s/tela 130 x 89 cmMuseu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro – RJ

Poemas

Ruth Sylvia de Miranda Salles

� Chuva

Todo o verde da chuva amadureceu para hoje, no dia pesado equieto, espécie de noite afastada do próprio escuro.

Os quatro horizontes oprimiram-se nas nuvens. O sol perdeu-se,desencontrou-se, raiz partida.

Os frutos novos estão nos caules do vento, a desfazer a espera, adialogar com as árvores e com as primeiras gotas, grandes, esse

murmúrio.Súbito, mas vagarosamente, traçam-se os riscos das águas, que

se avolumam, se embaralham, ferem todos os silêncios.É a chuva. Renovação do tempo. Floração forte.

211

Poeta edramaturga,participa, em SãoPaulo, doProjeto Dom daPalavra, que levaa arte do teatropara a escola.Publicou oslivros de poesiaPastoral (1954),Parcéis (1961) eSem símbolosnenhuns (1982).

� Águas livres

Quantos dragões em guarda espiam, quietos...E meu escudo, meu espelho onde olhar?É lá no lago, longe, o seu reflexoou ele mesmo já perdido?Que mente é esta que comanda, dura e morta?Quero meu corcel de antes, o pronto, o apto,o baile do corpo (antes de nascer a mente rígida),o baile do corpo livrede quem salta nas nuvens e fala com as fontes antes de jorrarem.Livre, eu fluía como as águas nos seixos;embora fossem pedras, eu os arredondei.Não criei estes rochedos de hoje.Foi a cabeça do dragão fremente que os pôs em meu caminho.Rolo nos seixos redondos o meu pranto,mas ele não se transforma de novo em minhas águas livres.Luz, para a estátua de sal que andou sempre olhando para trás!A dor se enrola como uma cobrae se apronta para dar o bote.Quem fui? Quem deixei de ser?Quem seriase fosse ainda como as águas livres fluindo?Sou tudo isso e, desse terrível amálgama,tenho de ver renascer o primeiro esboço da forma pura.E saltar com ela no espaço!

212

Ruth Sylvia de Miranda Salles

� Espaço

Claro rapto de luz,dúbio achego de sombra.

Tensões entre os átomos, astros.Por entre o amor plasmado em tochas,atração-distância na harmonia exata.

� O quatro

Três medidas de espaço e uma de tempo(para o homem medir os próprios feitos)

Três medidas de espaço e uma de tempo(para o homem saber ler os eventos)

Três medidas de espaço e uma de tempo(para o homem caber em seu momento)

Três medidas de espaço e uma de tempo(para o homem cerrar as coisas dentro)

Três medidas de espaço e uma de tempo(para o homem romper, estando atento)

213

Poemas

� Preparação

Eis o portal de ausentestempo e espaço.E como transpô-lo absortano tocável pedaço?

Dessa porção de eternotenho a senha.E como pronunciá-lacom esta boca pequena?

Do silêncio do corposinto a espreita.E como escutar a horaem rumores desfeita?

Mas o real me atrai.Sei que transponhoum dia o portal, pensandoembora que foi sonho.

214

Ruth Sylvia de Miranda Salles

� A paixão do homem

– Pai perdoa-me, porque ainda não sei bem o que faço.Eu ouvi a verdade em Mim ensinando-me o caminho do Som bendito.No entanto, minha teimosa mão guerreira, espírito-criança,não tentou decepar-me a orelha com que ouvia?“Mete tua espada na bainha” – eu disse –“pois então não hei de beber o cálice que já está à minha mesa?O caminho é este, e eu estou pronto.”

– Pai, perdoa-me, porque ainda não sei bem o que faço.São tantas as minhas vozes lutando contra a verdade em Mim:“Es tu o Filho do Som bendito?”“Eu o sou.”“Pensas que és Rei desta terra que é nossa?”“Tu o disseste.”“Pois então crava esta coroa na cabeça,cobre-te com este manto de púrpurae põe em tua testa este letreiro do que pensas que és,espírito blasfemador!Ouves tuas próprias vozes como te combatem, como te açoitam

e te maltratam?”– Pai, perdoa-me, porque ainda não sei bem o que faço.Meu reino não é desse modo.Ser rei é ser servo.Ah, como me fere esta coroa,trançada por todos os meus pensamentos duros e mesquinhos.E este manto abafa a liberdade nascente do verdadeiro Som em Mim...

– Filho, esse é o manto do iludido rei que te imaginas.Agora podes sentir que ele pesa como um lenho nos teus ombros.

215

Poemas

Leva-o mais um pouco.Ainda estás preso a ele pela própria lei das pedras do caminho.

– Pai, o manto é espesso.Eu não o via bem e agora vejo.Pesa, sim, e fere o ombro,mas o bendito Som ressoou mais pertoe o tornou leve por instantes...

– Paciência, Filho, está próxima a hora.Ouve:tua múltipla voz já lamenta seu pequeno reino perdidoou te condena pelo caminho que persegues.

– Pai, perdoa-me, porque ainda não sei bem o que faço.Eu não me percebia assim tão preso a este lenho, a este manto...Ele funde-se ao chão da terra como um troncoe minhas mãos, meus pés estão cravados nele...Não posso agir,dar cumprimento à minha e tua Vontade livre;só a meus pequenos desejos apegado.Também tenho a cabeça tão oprimida pela coroa,que só consigo pensar com os Pensamentos baços do homem velho.Ó Pai, perdoa, mas a verdade em Mim se sente só e abandonada.

– Filho, ela foi abandonada,mas pelo murmúrio de tuas próprias múltiplas vozese pelo grito de soberania que imaginavas ter sobre elas.É a hora.Escuta o silêncio em Ti, ouve somente o Som bendito.

216

Ruth Sylvia de Miranda Salles

– Pai, em tuas mãos entrego minha verdadee atrairei a este caminho todas as veredas.Está consumada minha Busca.No entanto,como desprender-me deste lenho, deste manto,desta coroa fixa em mim?

– Filho, coragem!Lanceta o peito com força guerreirae dele sente fluir, terra adentro, teu Amor.Ele te soltará.Ele te descerá ao chão,onde teu velho ser deitará raízese te dará, como planta, a experiência que tiveste.Dela renascerás,o novo,o transvivido,o verdadeiro ser do Som bendito.

217

Poemas

Rembrandt (1606-1669)O Bom Samaritano (1633)Gravura. Nova York, Pierpont Morgan Library

Dois poemas

Pedro Ernesto de Araújo

� No trem da Central

Os corpos se estendem,os corpos se entendem,os corpos se rendemno trem da Central.Os corpos se esfregam,se integram, se entregam,arfam, escorregamda regra moral.

Os corpos se abraçam,se cansam, se caçam,se abrasam, se amassamno trem da Central.Tímidos pudoresfundem-se em suorese notem as floresda flora carnal.

219

Publicou oslivros de poesiaPoemas sem futuro(1974) e Opapagaio que nãoquer ser verde(1987).

Os corpos se encontramou se desencontramporém jamais contamdo trem da Central.Nos vagões escurosprocura-se o duronos corpos madurospra entrega total.

O corpos soçobram,sobram, se desdobramferos ventres obramno trem da Central.Cevam-se os malditos.Seus corpos aflitoscelebram os ritosdo amor marginal.

Alem da política,do eclipse, da crítica,da flor sifilítica,no trem da Centralos corpos se negam,se afirmam, se apegame afinal sossegam.Estação final.

220

Pedro Ernesto de Araújo

� Velho na praça

Aprecio a velhota a dar milho aos pombos.Eu dei sonhos aos tombos.Recolho o que ficou de meus próprios escombros:um pouco do poeta, um pouco do canalhae este velho sentir de um coração de palha.Apanho uns lírios mortos caídos na calçadae armo uma guirlanda com o que restou do nada.A cidade me perde. Esta tarde me mói,mas apesar do tédio o canto se constrói.Bípede bipartido embutido no mundo,faturo a solidão e um sonho vagabundo.Deus senta junto a mim e me diz boa tarde,mas a tarde é de pedra e o fogo já não arde.Os pombos certamente não darão milho a mim,pois já não tenho asas e não sou pombo, enfim.Eis que súbito pousa o vento nos meus ombrose me leva pra casa com meus anjos e assombros.

221

Dois poemas