Saberes Caiçaras - a cultura caiçara na história de Cananéia

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Livro produzido pelo Coletivo Jovem Caiçara do município de Cananéia, litoral sul de São Paulo, que relata a história de formação de alguns bairros do município com destaque para representações da cultura caiçara presentes na agricultura, pesca, artesanato, religião, manifestações tradicionais, culinária, entre outras.

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ISBN 978-85-86508-67-7

9 788586 508677 Projeto realizado com o apoio:

SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA

GOVERNO DO ESTADO DE

SO PAULORealizao:

Parceiros:

Saberes Caiaras cultura caiara na histria de Canania Saberes Caiaras - -AA cultura caiara na histria de Canania

Cleber Rocha Chiquinho

Saberes CaiarasA cultura caiara na histria de CananiaCleber Rocha Chiquinho

Ministrio do Meio Ambiente Ministrio da Educao Ministrio da Cultura

GOVERNO FEDERAL

capa saberes.p65

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19/11/2007, 16:17

Saberes CaiarasA cultura caiara na histria de CananiaCleber Rocha Chiquinho

Saberes CaiarasA cultura caiara na histria de CananiaCleber Rocha ChiquinhoOrganizador

So Paulo 2007

PGINAS & LETRAS

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2007, Cleber Rocha Chiquinho Av. Wilson Luiz Barbosa, 935 - CEP 11990-000 - Retiro das Caravelas - Canania - SPOrganizador Cleber Rocha Chiquinho Fotografia Coletivo Executor Reviso Jos Luiz Mathais Coletivo Executor Aldrin Klimke Andr Murtinho Ribeiro Chaves Andrew Ferreira Grube Bianca Cruz Magdalena Bruna Ap. Silva Franco Cleber Rocha Chiquinho Danielle Moreira Cosso Dayane Cristina Almeida Cubas da Silva Denise Antunes Ferreira dos Reis Las Cristine Xavier Lohan Kovacsics Marcli Lucilene da Silva Pontes Talita Alves Shimodaira Thais Cristina de Oliveira William Cunha Gonalves Colaboradores Ado Paiva Ana Maria de Borba Antonio Carlos Diegues Antnio das Neves Augusta das Neves Cubas Benedito Alves Carlos Frana Delfina Ventura Batista Enedina da Costa Barbosa Ernesto Scharmann Fernando Oliveira Francisco de Sales Coutinho Frederico Mandira Idorino Ventura Santana Ivete Mateus Joo Cassiano Martins (Joo da Toca) Joo Cordeiro de Alencar Joaquina Rodrigues Ponte Jan Van Der Heijden (Padre Joo Trinta) Jos Coelho Luiz Camilo Mateus Maria Aparecida Xavier Pontes Maria Juliana Pedro Rodrigues Patrcia Dunker Pedro Costa Quirino Ermes Coelho Roque Mateus Rosalina Gomes da Silva Rosangela Pereira Camilo Salvador Alberto das Neves Salvador Donato Barbosa Slvio Atansio Tereza dos Lemos Santana Zeneide Xavier Pontes Parceiros Associao Rede Canania Coletivo Jovem Caiara Instituto de Pesquisas Canania IPeC Ponto de Cultura Caiaras Sala Verde Canania Projeto e produo grfica Pginas & Letras Editora e Grfica Ltda. Tels. (11) 6618-2461 - 6694-3449 e-mail: [email protected]

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Saberes caiaras : a cultura caiara na histria de Canania / Cleber Rocha Chiquinho, organizador. -- So Paulo : Pginas & Letras Editora e Grfica, 2007. ISBN 978-85-86508-67-7 Vrios colaboradores. Bibliografia. 1. Caiaras - Canania (SP) 2. Canania (SP) - Histria 3. Cultura - Canania (SP) I. Chiquinho, Cleber Rocha. CDD-981.612 ndices para catlogo sistemtico: 1. Caiaras : Cultura : Canania : So Paulo : Estado : Histria 2. Canania : So Paulo : Estado : Cultura caiara : Histria 3. Cultura caiara : Canania : So Paulo : Estado : Histria 981.612 981.612 981.612

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Agradecimentos

todos os caiaras de Canania que nos acolheram humildemente em suas casas! Famlia Lisboa da Veiga Instituto de Pesquisas Canania IPeC Ncleo de Pesquisa sobre Populaes Humanas de reas midas Brasileiras / Centro de Estudos Caiaras (NUPAUB/CEC USP) Parquia da Igreja de So Joo Batista Ponto de Cultura Caiaras Prefeitura Municipal da Estncia de Canania atravs do Departamento de Meio Ambiente, Agricultura e Pesca Governo do Estado de So Paulo atravs da Secretaria de Estado da Cultura

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Apresentao

Este trabalho fruto de uma grande persistncia e confiana no potencial de jovens de Canania na busca de suas razes e de suas identidades. Trata-se de um olhar da juventude sobre os fatos e aspectos ligados ao que um dia marcou (e at hoje marca!) a vida dos moradores de uma das mais antigas e principais cidades do Brasil. A iniciativa do projeto Saberes Caiaras - A cultura caiara na histria de Canania partiu de um grupo de pessoas interessadas em contribuir para o resgate, registro e valorizao da cultura caiara em Canania. Propuseram para isto utilizar latas com um pequeno furo de agulha para o registro fotogrfico do modo de vida caiara1, realizar prticas artsticas, como a dana, para estimular jovens pelo gosto da cultura caiara2 e registrar o saber popular na histria de um povo, como a iniciativa deste livro. O objetivo deste livro contribuir para a valorizao da cultura caiara no municpio de Canania atravs da pesquisa, registro e disseminao do modo de vida caiara dentro da histria de Canania, possibilitando que a comunidade perceba seu pertencimento e co-responsabilidade na manuteno do saber tradicional e da cultura local.

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Projeto O Caiara se Revela no Municpio de Canania que tambm foi aprovado pela Secretaria de Estado da Cultura atravs do PAC Programa de Ao Cultural em seu edital n 17 e que teve como proponente a turismloga Patrcia Dunker. Projeto Danando o Batido Caiara, outro projeto aprovado pela Secretaria de Estado da Cultura atravs do PAC Programa de Ao Cultural em seu edital n 17 e que teve como proponente o arteso Amir de Oliveira.

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O coletivo executor do projeto contou diretamente com a participao de 15 jovens entre 14 e 26 anos que desde junho de 2006 esto organizados atravs do Coletivo Jovem Caiara, grupo informal que vem discutindo, propondo e atuando em prol de melhorias socioambientais e culturais em Canania e que tem como parte de sua misso, promover aes de resgate e valorizao da histria e da cultura caiara de Canania. O livro comea com uma introduo sobre a histria caiara nas palavras sbias de um grande defensor deste povo e de sua cultura, que merece ser aplaudido por tanta dedicao, o Professor Antonio Carlos Diegues. Ele aborda em seu texto a dificuldade de encontrarmos arquivos e documentos antigos que registrem a histria ligada a existncia e aos modos de vida caiara, bem como a influncia que isto teve para a identidade caiara no litoral brasileiro. Finaliza com uma projeo atual das iniciativas no litoral paulista que esto trabalhando com a valorizao da cultura caiara. No segundo captulo, o educador Andr Murtinho Ribeiro Chaves, deixa uma contribuio sobre o universo multicultural em que vivemos atualmente, fazendo uma reflexo sobre as questes sociais, econmicas e polticas que isto nos proporciona, bem como as dificuldades que enfrentamos diante da avalanche de imposies que so estabelecidas e as possibilidades de mudanas atravs da educao crtica e emancipatria. Aborda tambm o acesso e reproduo das informaes atravs da mdia e o valor que isso pode ter para o enfrentamento das adversidades que essas culturas sofrem, entre elas a caiara. Os captulos trs e quatro mostram um pouco da histria caiara nos bairros de Canania e foram escritos pelos prprios jovens. O coletivo optou por escolher apenas alguns bairros, j que o tempo que teramos para realizar o projeto, seis meses, era curto. Com isso, ficaram de fora importantes bairros, urbanos e rurais, do municpio. Foi uma escolha difcil, mas tivemos que optar! A metodologia utilizada para a realizao dos trabalhos contou com uma oficina ministrada pelo Prof. da USP, Antonio Carlos Diegues, que trouxe para estes jovens subsdios para o reconhecimento e registro da cultura caiara. FoiVI

feito um levantamento bibliogrfico sobre a histria e a cultura caiara em livros, artigos e documentos e tambm algumas vivncias prticas, como o reconhecimento do Centro Histrico de Canania, acompanhados da monitora ambiental Ana Borba, uma verdadeira amante de nossa cidade. Atravs de um roteiro elaborado previamente, os grupos, subdivididos por bairros, foram a campo, entrevistaram pessoas, fotografaram e registraram tudo atravs de anotaes, gravaes de udio e fotos. Em posse dos materiais bibliogrficos e das transcries, redigiram os textos finais e escolheram as fotografias que marcaram essa inesquecvel experincia. Os textos escritos por eles sintetizam de forma bem simples as informaes levantadas durante a realizao do projeto e apresentam um pouco da histria de alguns bairros de Canania, destacando aspectos importantes da cultura caiara ligados a agricultura, pesca, artesanato, culinria, manifestaes culturais, festas, causos e lendas, entre outras que eles e elas acharam importantes e merecedoras de registro. O ltimo captulo encerra o livro com uma recordao dos tempos de infncia de um amante da cultura popular e parceiro em todas as encrencas, Fernando Oliveira. Neste texto as lembranas de boas histrias e momentos vividos por ele so evidenciadas de uma forma simples e emocionante. Com isso, ele contribui para mostrar o valor da histria e da cultura imaterial caiara, ou seja, a herana cultural intangvel perpetuada ao longo dos tempos, bem como a importncia dos saberes/fazeres, seu registro e sua reproduo social. O texto fornece tambm um bom referencial terico para aqueles que se interessarem em aprofundar nas diversas nuance da cultura caiara. Como foi visto em muitos trabalhos semelhantes, a pesquisa, reconhecimento e valorizao cultura caiara no est acabada, percebemos que ela deixa de ser contada em livros e perde-se no tempo e na lembrana de poucos. Portanto, fica aqui um pouco de nossa contribuio, pouqussima... mas cheia de surpresas, desafios, expectativas, anseios e desejos de um dia poder colher os frutos de todo nosso esforo em manter viva essa riqussima cultura.VII

A publicao deste livro teve apoio da Secretaria de Estado da Cultura atravs do Programa de Ao Cultural PAC em seu edital n 17 (Concurso de Apoio a Projetos de Promoo da Continuidade da Cultura Caipira, Caiara, Piraquara e Afro), possibilitando a aquisio de materiais, despesas diversas e a impresso dos mesmos. Um agradecimento especial a todos e todas que se envolveram na concretizao deste livro, em especial ao Coletivo Jovem Caiara, que acreditou e descobriu que o trabalho foi muito mais do que a publicao de um livro, por meio dele tivemos uma experincia nica que nos proporcionou momentos de alegria, tristeza, respeito, unio, coletividade, organizao, responsabilidade, realizao, sol, chuva, conhecimento, aprendizado, amizade, desentendimento, atraso, perseverana enfim... Foi lindo!

Cleber Rocha Chiquinho3

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Bacharel e Licenciado em Cincias Biolgicas, docente da Escola Estadual Profa. Yolanda Arajo Silva Paiva, coordenador da Sala Verde Canania e membro do Coletivo Jovem Caiara.

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Sumrio

Agradecimentos ................................................................................................... Apresentao ........................................................................................................ A Histria Caiara de CananiaAntonio Carlos Diegues .............................................................................................................................

III V 1 5 13 31 35 45 53 63 77 93 109 127 143

A Educao como Base para a Manuteno da Cultura CaiaraAndr Murtinho Ribeiro Chaves ...............................................................................................................

A Cultura Caiara na Histria dos Bairros Urbanos de Canania Centro ......................................................................................................... Rocio ........................................................................................................... Carijo .......................................................................................................... Morro So Joo ......................................................................................... A Cultura Caiara na Histria dos Bairros Rurais de Canania Itapitangui ................................................................................................. Mandira ...................................................................................................... Santa Maria ................................................................................................ Ariri............................................................................................................. Varadouro ................................................................................................. Maruj ........................................................................................................ Foles e Cambri ....................................................................................... Uma Memria Curta? Ento, Curta a Memria! A Importncia do Registro do Patrimnio Cultural Imaterial CaiaraFernando de Oliveira .................................................................................................................................

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A Histria Caiara de CananiaAntonio Carlos Diegues1

IntroduoA iniciativa dos jovens de Canania de pesquisar e divulgar a histria e o modo de vida dos caiaras dos diversos bairros rurais e urbanos de Canania uma atividade inovadora que deveria ser seguida por iniciativas semelhantes nos municpios com comunidades caiaras. No se trata somente de resgatar a memria dos tempos passados, mas escrever a histria contempornea dessas comunidades, seu modo de vida, suas aspiraes e vises de futuro a partir delas mesmas. Um pouco de histria caiara Os caiaras raramente aparecem nos arquivos e documentos histricos. como se eles nunca tivessem existido e mesmo os historiadores locais raramente se referem a eles, gente dos stios. Em alguns dicionrios o termo caiara associado pessoa indolente, preguioso. At documentos recentes que se referem, por exemplo, criao de reas protegidas e reservas naturais em territrios sabidamente habitados por caiaras os ignoram ou, s vezes, os classificam como bons1

selvagens, pessoas que viveriam imersas na natureza, sem direitos de cidadania. Os caiaras fazem parte das populaes brasileiras pobres e marginalizadas, apesar de terem mantido relaes sociais e econmicas com as cidades da regio. So poucos os documentos que mencionam a existncia dos caiaras no perodo anterior ao final do sculo XIX e a maioria dos historiadores trabalham sobre documentos referentes, seja fundao das vilas, seja histria das grandes famlias, seus feitos, nmero de escravos etc. Na histria mais recente, importante a contribuio de alguns historiadores locais, como Antonio Paulino de Almeida, de Canania (SP), que recupera, atravs de documentos e de relatos a histria caiara atravs de trabalhos como Usos e costumes praianos (1945), Memria Histrica da Ilha do Cardoso (1946), Memrias Memorveis (da Ilha de Canania) (1948), entre outros. Segundo Paulino de Almeida, em Memrias Memorveis (1948) baseado nos documentos do Livro do Tombo afirma que Canania, vila fundada em 1587 era habitada inicialmente por lavradores e pescadores, parecendo mais esquecidos que lembrados, porm assim mesmo vivio fartos no seu bastante e descansados no seuA Histria Caiara de Canania

Antroplogo e diretor cientfico do Ncleo de Pesquisa sobre Populaes Humanas de reas midas Brasileiras / Centro de Estudos Caiaras (Nupaub/CEC USP).

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descanso. As indicaes do texto abaixo sugerem que o modo de vida caiara teria sido adotado no litoral sul paulista desde o incio da colonizao: de poucos e pobres moradores, parte naturaes deste Brazil (ndios) e parte vindouros das ilhas dos Aores (...) que era pobres de posies e por isso no eram participantes da afluncia do dinheiro, porem ero riqussimos da muita abundancia, que este lugar ento lhes oferecia do seu mar os peixes e dos matos as caas; que lhes no faltaro o seu necessrio, porem cultivando a terra com suas lavouras e exercitando o mar em suas pescarias, assim bem se sustentavo e dos seus sobros negociavam (...) No eram freqentados de amiudado commercio, parecio mais deixados e esquecidos do que lembrados (...) porem assim mesmo vivio fartos no seu bastante e descansados no seu descanso. (pg. 9) Como se observa pela citao acima, as populaes locais, que j poderiam ser chamadas de caiaras viviam bastante isoladas, mas mesmo assim, negociando seu pouco excedente com outras regies: cujo negocio fazio elles com alguma embarcao, que por cauza dos ditos gneros aqui lhes vinha oferecer assim dinheiro, como tambem outros gneros a elles necessrios . (pg. 9) Na Ilha do Cardoso, prxima Canania existiu tambm uma vigorosa colonizao, com mo-de-obra escrava e: era considerada como um dos melhores celeiros do municpio, onde se erguiam as mais prsperas fazendas2 Saberes Caiaras - A cultura caiara na histria de Canania

com seus engenhos de pilar arroz, fbricas de aguardente, olarias e at um estaleiro de construo naval. (ALMEIDA, 1946 : 22). J, no comeo do sculo XX havia somente runas dos sobrados, em meio mata frondosa. (pg. 22) Nos anos de 1930-40, Paulino de Almeida nota que na Ilha do Cardoso somente: podem ser vislumbrados rarssimos casebres de pequenos lavradores, estando a grande ilha quase que inteiramente deshabitada, a no ser nas proximidades do pontal do sul, onde se erguem choupanas de pescadores. (1948 : 22) Est nessa descrio de Paulino de Almeida a base do mesmo processo de empobrecimento econmicosocial que se segue a um perodo de monocultura: sobram os pequenos lavradores-pescadores que formam a populao caiara e que no declnio desses ciclos passam a viver numa quase-subsistncia, apesar de manter laos comerciais com as cidades. Em outro trabalho, Usos e Costumes Praianos (1945), Paulino de Almeida descreve o modo de vida caiara nas primeiras dcadas do sculo XX, definindo o caiara como aquele que vive entre as atividades agrcolas e pesqueiras: Nessa luta terrvel, ora para a terra ora para o mar, consomem toda a energia, julgando-se felizes quando conseguem algumas roas de mandioca e os apetrechos principais para a pesca. (pg. 70) A figura do caiara, no entanto, comeou a aparecer tardiamente, j nos anos 40-50 nos relatos e

trabalhos de antroplogos e gegrafos. Emilio Willems em 1952 escreveu: A Ilha de Bzios: uma comunidade caiara no sul do Brasil (NUPAUB; 2003), sem dvida o estudo mais completo sobre a cultura caiara que adquiriu muito de sua fisionomia cultural nos primeiros 250 anos da histria colonial (pg. 170). Empregando mtodos da histria econmica e social bem como entrevistas e histria oral, Willems indicou um caminho profcuo para o estudo dos caiaras, com um grau de perspiccia dificilmente atingido por pesquisadores que lhe sucederam. Entre os trabalhos antropolgicos de grande importncia nesse perodo destacam-se o de Donald Pierson e Teixeira, em 1947, em Survey de Icapara: uma vila de pescadores do litoral sul de So Paulo; de Maria Conceio Vicente de Carvalho em O pescador do litoral do Estado de So Paulo, em 1944. importante se ressaltar tambm o trabalho de Carlos Borges Schmidt, A lavoura caiara, publicado pelo Ministrio da Agricultura, em 1958. Hoje j existe um conjunto de relatos orais de caiaras de diversas reas do litoral sudeste brasileiro que se constituem em verdadeiros arquivos orais que permitem conservar o rastro de testemunhos de caiaras que nunca escreveram nada sobre suas vidas. Esses arquivos encontram-se, muitas vezes em trabalhos de pesquisa acadmica contidos em teses com pouca divulgao, e tambm em fitas e vdeos parte dos quais foi divulgada recentemente pela Enciclopdia Caiara, em cinco volumes, editada pelo Nupaub/Hucitec. Vrios depoimentos de caiaras indicam que, nos ltimos anos, os caiaras comearam a reafirmar seu papel social e seu territrio frente expulso de suas terras. Um dos temas mais recorrentes na memria

caiara o da perda de suas terras atravs da ao dos especuladores imobilirios, que algumas vezes usaram jagunos para ameaar os moradores e incendiar suas moradias. Esse processo que se iniciou j pelos anos 30-40 lembrado em vrios depoimentos em toda a regio caiara. A partir dos anos 50-60 vrios empreendimentos imobilirios comearam a se instalar em Canania, sobretudo na Ilha do Cardoso, onde compradores conseguiram as terras muitas vezes ludibriando os seus moradores. Um outro processo bastante presente na memria mais recente dos caiaras a implantao de reas protegidas, na qual seu modo de vida se torna invivel pela proibio do exerccio de suas atividades agrcolas e extrativas e mesmo pela transferncia forada de suas residncias por representes dos rgos ambientais do Estado. A implantao dessas reas protegidas se iniciou no litoral com o Parque Estadual da Ilha do Cardoso, criado em 1962, e levou expulso gradativa de inmeras comunidades caiaras restando, hoje, um nmero reduzido de caiaras que moram, sobretudo, no sul da Ilha. Se de um lado as implantaes desses parques constam de documentos oficiais, que apresentam a viso do Estado, so raros os documentos que descrevem os traumas causados pela implantao autoritria dessas reas protegidas, mas constam de inmeros depoimentos orais em toda a extenso do territrio caiara. Esses inmeros relatos no so meras descries da forma com que viviam os antigos moradores caiaras, de seu modo de vida, mas expressam a tristeza e oA Histria Caiara de Canania

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sofrimento associados ao processo de expulso, a angstia em relao ao futuro incerto e vida difcil nas favelas das muitas cidades litorneas e ao descaso mostrado pelo Estado em relao a sua sorte. A identidade caiara A partir do incio da dcada de 80, comea a ser construda uma identidade caiara, fruto dos embates contra a especulao imobiliria e contra o autoritarismo ambiental que no respeitou os direitos dos caiaras s suas terras e modos de vida. Uma outra reao perda do territrio a implantao de reservas extrativistas marinhas; atravs das quais, os pescadores passam a controlar efetivamente o territrio de uso tradicional dos recursos pesqueiros ou de coleta. A Reserva Extrativista do Mandira, em Canania foi a primeira a ser decretada, para o manejo e comercializao de ostras. Vrias outras esto sendo planejadas na regio costeira. O xito da Reserva Extrativista de Mandira, entre outros benefcios como o aumento de renda, o surgimento de lideranas atuantes, tem aumentado a auto-estima e a identidade caiara. Um outro fenmeno recente articulao de comunidades caiaras, realizada por Organizaes No Governamentais ONGs, institutos de pesquisa e associaes locais. Essas instituies tm promovido regularmente Congressos e Encontros Caiaras no Litoral Norte e Sul de So Paulo, com a participao de lderes das comunidades tradicionais, para discusso e soluo de problemas comuns.

Nota-se tambm um renascer de grupos de fandango e danas caiaras tanto no Rio de Janeiro quanto em So Paulo e no Paran. Uma oficina realizada em Canania no Parque Estadual da Ilha do Cardoso, em fevereiro de 2003, reunindo vrios grupos de fandango do litoral paulista e paranaense, alm da constituio de novos grupos de Reisado e Marujada tem servido tambm para mostrar os aspectos culturais comuns a essas regies litorneas. O apoio s organizaes locais, atravs do programa federal de Pontos de Cultura tem tambm colaborado para manter viva a tradio musical caiara. Algumas ONGs locais, como a Associao dos Jovens da Juria, em Iguape, a Mongue, de Perube, a Rede Canania e o Instituto de Pesquisas Canania, em Canania, o Museu Caiara, em Ubatuba, tm incentivado o surgimento de novos grupos culturais que, sem dvida, tem contribudo para aumentar a auto-estima dos caiaras e a sua identidade cultural. Merece destaque o trabalho da Ong Cabur que com seu projeto Museu Vivo do Fandango realizou um levantamento minucioso dos grupos de fandango e propiciou um intercmbio frutuoso entre os fandangueiros do litoral paranaense e paulista atravs de diversos encontros. Hoje o fandango voltou a animar bailes populares em Canania, pela ao da Rede Canania e da Associao de Fandangueiros. Percebe-se, portanto, a construo de uma autoidentificao dos moradores tradicionais caiaras, pela qual eles passam a valorizar suas origens e sua cultura.

4 Saberes Caiaras - A cultura caiara na histria de Canania

A Educao como Base para a Manuteno da Cultura CaiaraAndr Murtinho Ribeiro Chaves1Um pas no vive quando a juventude s tem acesso a valores de outros povos. Ariano Suassuna O universo cultural Quando moleque at uns 16 anos eu era um destes torcedores fanticos por futebol, que sabiam toda a escalao do time e lembrava, sem muito esforo, de todos os gols, datas e histrias dos dolos. Com exceo de Argentina e Uruguai, que tm forte influncia europia, sempre que um time sul-americano jogava com a nossa seleo, eram esperadas goleadas histricas 5, 6, 7... a 0, 1... Quando a Bolvia, por exemplo, arriscava empatar, os locutores, comentaristas, reprteres de campo reagiam com um excessivo preconceito. Desde quando futebol um esporte na Bolvia, diziam. No podemos levar um gol deste timinho. Nos dias que antecediam as partidas, havia um esforo tremendo em desqualificar o futebol dos inimigos. Um dia a Bolvia ganhou. Tragdia nacional... Este era o meu mundo e foi a partir da que eu conhecia o restante da Amrica do Sul. Esta postura preconceituosa da mdia contra povos essencialmente originrios se estendia em relao economia e cultura: segundo se divulgava, no havia riquezas, nem coisas interessantes nestes pases pobres perifricos. Quando falamos que um produto do Paraguai, ainda sinnimo de m qualidade. A imagem que se faz da Colmbia de um lugar onde s existem traficantes e marginais, tudo gente perigosa, como narrado em filmes norteamericanos. A opinio, portanto, que eu tinha e que muita gente tem da Amrica do Sul no europeizada aquela que a televiso passa atravs do circo de suas informaes. Parece verdade. Mas ser que os povos originrios, indgenas, eram por natureza pior do que os invasores europeus? Era uma questo gentica ou algo historicamente construdo? Por que negros e indgenas seriam piores do que os brancos? Um dia aos 24 anos eu consegui chegar na fronteira com a Bolvia. Ainda era Brasil Corumb, no Mato Grosso do Sul e foi por algumas horas, mas minha opinio comeou a mudar. Descobri que os bolivianos eram um povo, diferente sim, mas irmo.A Educao como Base para a Manuteno da Cultura Caiara

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Mestre em Ecologia, docente da Escola Estadual Profa. Yolanda Arajo Silva Paiva e membro do Coletivo Educador de Canania.

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As mulheres se vestiam com trajes andinos, ainda que ao p da sierra. Sentia que, mesmo no meu pas, eu respirava uma outra cultura, a rica cultura indgena sul-americana. Isto me fez bem. A partir da comecei a refletir sobre a minha formao cultural... Voltei no tempo... Nasci em Aracaju, capital sergipana, prximo ao baixo vale do So Francisco. Sempre viajei para o Rio de Janeiro para visitar a minha av e tias. Aos 17 anos fui estudar numa universidade em Campinas. E mesmo com esta mobilidade precoce, o meu universo cultural era essencialmente televisivo, com valores externos insistentemente martelados na minha cabea. Ter cultura era, para mim, saber a cultura dos outros povos, principalmente europeus. Isto era sinnimo de erudio. Assim, eu caminhava para ser ao mesmo tempo erudito e ignorante. Foi s aps algum tempo, a partir dos 20 anos, conhecendo novos lugares e retornando periodicamente minha terra que eu (re)descobri a cultura sergipana: So Cristvo, Itabaiana, Laranjeiras, Japaratuba, Nossa Senhora da Glria, Canind do So Francisco, tantos lugares bonitos e ricos, ficaram 16 anos ali, do meu lado, e eu nunca havia percebido os ritmos, seus cantos, sua histria: bacarmateiros, bumba-meu-boi, dana do parafuso, maracatu. Um novo mundo se abriu. No meio burgus em que cresci, pouco se valorizava esta cultura local. Hoje estou investigando a minha histria. A terra da minha av paterna Porto Real do Colgio, lado alagoano do Rio So Francisco era um territrio dos ndios Kariri-Xoc. Tambm sei que por parte de me, tenho uma ascendncia Bororo, do Mato Grosso. Alm obviamente de genes europeus, que se mesclaram no Par, e genes africanos, mis6 Saberes Caiaras - A cultura caiara na histria de Canania

turados em Alagoas e Sergipe. Toda esta diversidade tnica culminou num encontro nas praias cariocas, do qual o fruto foi produzido em solo sergipano. O encontro de culturas Conto um pouco do pouco que conheo de minha histria para me fazer entender. Sei que muitos jovens que crescem numa rica cultura, como a caiara, no tm a devida compreenso da importncia deste reconhecimento. A paisagem, o jeito de falar, as profisses e vocaes, a culinria, as danas... Como disse o Padre Joo Trinta em entrevista realizada para este projeto: at a dcada de 1960, Canania era uma vila com uma cultura produzida pelo isolamento e que com a chegada de rgos pblicos estaduais e principalmente da televiso, houve um rompimento de valores, que causou uma forte instabilidade. O encontro de diferentes culturas pode ser um rico momento para produzir uma nova cultura, mas acredito que estupro cultural o melhor termo para definir o que tenho ouvido sobre esta poca em Canania. Havia uma grande presso cultural externa, de pessoas e de mdia, para que houvesse uma mudana de comportamento, visando um jeito civilizado. Para ser mais claro: um comportamento presente na zona sul carioca (europeizado) e repetido ininterruptamente nos ltimos 50 anos, atravs da TV e de diversos outros meios de invaso cultural. Caiara, para quem chegava neste velho mundo, era sinnimo de preguioso. Isto gerou um descompasso violento entre a educao dos filhos e a formao dos pais. Somado s polticas de governo, deficiente nos diversos nveis, Canania vive hoje um

momento cultural difcil. O jovem caiara est meio perdido no meio de tanta informao, mas sem muita oportunidade. O que fazer com tanto rudo externo? A situao do jovem em Canania Minha experincia nestes 2 anos e meio de magistrio em solo caiara, me permite ver que a juventude cananeense extremamente criativa e muito inteligente, como disse o Padre Joo Trinta. Mas, com diversas carncias bsicas, que tm influenciado diretamente na sua vida e nas suas opes, impedindo o seu desenvolvimento pessoal e frustrando os seus sonhos. Podemos resumir estas carncias em duas: a) carncia econmica e b) carncia afetiva, ambas resultado de uma falncia estrutural da sociedade. A primeira diz respeito falta de polticas de desenvolvimento, sejam para emprego e gerao de renda, sejam para cultura e educao. A opo econmica diretamente responsvel pela situao educacional. Educao aqui, em termos mais amplos, se refere formao de vida da pessoa, escolar ou no. A educao por sua vez, tambm tem um forte componente afetivo. A estrutura da escola brasileira como um todo e mais especificamente da escola paulista, deficitria e atrasada. Mesmo com os recentes avanos da incluso educacional, esta o foi essencialmente quantitativa, sem prezar pela qualidade do ensino e pelos novos mtodos transformadores baseados na prxis pedaggica e na construo do prprio conhecimento. Como educar ou mesmo instruir um adolescente numa sala com 45 alunos? Como inovar pedagogicamente se no temos acesso facilitado a este conhecimento? Como sugerir

uma nova postura na alimentao (e na vida) se o prprio governo manda comida enlatada e embutida para os alunos? Por mais que haja um esforo dos professores, a escola no tem capacidade fsica e psicolgica de dar conta de tantos problemas familiares. A carncia afetiva das crianas e jovens caiaras est atingindo ndices alarmantes. Muito em razo da (des)estrutura econmica, poucos pais tm tempo disponvel para oferecer o aconchego necessrio para o desenvolvimento cognitivo da criana e do adolescente. A necessidade de permanecer fora de casa, a explorao pelo trabalho e suas conseqncias, so nefastas para a famlia. Alm disso, muitas crianas so frutos de relaes indesejadas, o que muitas vezes causam rejeies do pai, da me, ou do restante da famlia. O crescimento do aluno no meio de abandono um dos motivos que contribuem para a dor de cabea de muitos educadores. Como diversos relatos mostram, alm deste abandono, a convivncia com o alcoolismo e a violncia familiar muitas vezes sexual tambm contribui para um desenvolvimento comprometido (no mau sentido) do jovem. Mas por que esta falta de planejamento familiar? Por que a gravidez na adolescncia tem altos ndices aqui no Vale do Ribeira e especificamente em Canania? Por que o alto ndice de alcoolismo? Por que o abrupto crescimento do trfico? Ser que estas variveis esto relacionadas? preciso investigar mais a fundo e de forma cientfica estas relaes indesejadas, mas posso arriscar algumas hipteses. Uma delas o desemprego e a falta de oportunidades econmicas e culturais, j colocada acima. Talvez s isto no baste.A Educao como Base para a Manuteno da Cultura Caiara

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Outra hiptese complementar: a presso da sociedade do consumo, embarcada pela grande mdia televisada e escrita, colocando na cabea do jovem a sensao de incapacidade de construo do seu prprio destino. O modelo individualista de sucesso colocado como o nico possvel por estes meios, pode levar frustrao precoce e continuada do jovem, o que por sua vez pode levar tristeza e depresso. Como sabemos, a adolescncia um momento de formao e instabilidade entre a vida infantil e a vida adulta. delicado e catico: qualquer alterao nesta fase pode alterar toda uma vida, sem previso. Talvez seja por isto que muitas mes e professores se surpreendam que mesmo irmos at gmeos podem ter comportamentos e escolhas to diferentes. Uma frase, um olhar... o suficiente. Nesta situao de extrema incerteza, muito fcil descambar pelo lado do individualismo, o que gera cada vez mais frustrao. Afinal quando achamos que o sucesso e o fracasso responsabilidade exclusivamente nossa, aumenta a nossa sensao de potncia ou de impotncia, conforme o lado. Como o sucesso dizem os seus defensores para poucos, esta seleo natural resulta numa grande massa descartada e frustrada. O consolo pode estar no lcool e outras drogas. A busca rpida por um casamento pode ser um tipo de venda informal da vida, o que acontece com muitas adolescentes. Esta busca da felicidade, em ltimo caso, pode resultar na prostituio. O acesso informao Em todo este processo e neste meio sobra pouco tempo, energia e interesse para o jovem conhecer a8 Saberes Caiaras - A cultura caiara na histria de Canania

fundo a sua histria, o seu ambiente e mesmo a vocao de sua economia. Qualquer iniciativa que preze por esta busca da identidade sociocultural traz novos elementos para a resistncia de uma vida esmagada pelo gigante do capital. Novos interesses em velhos territrios, formao de novos quadros jovens, busca de novas oportunidades acabam gerando esperana e reconhecimento no jovem caiara. Nos ltimos anos tem havido algumas tentativas neste sentido. Projetos de valorizao ambiental (como o Canania Tem Parque), cultural (Resgatando o Fandango Caiara) e econmico (como os de Turismo Rural e Agricultura Ecolgica) tm prezado pelo desenvolvimento atravs do reconhecimento do modo de ser caiara. Outros projetos educativos de iniciativa governamental como Educao de Chico Mendes, Ponto de Cultura Caiaras, Sala Verde, Coletivo Jovem, Coletivos Educadores e mais recentemente este Saberes Caiaras, mesclados com impulsos locais, tm levado alguns professores e alunos das escolas pblicas de Canania a conhecerem de perto a histria e realidade socioambiental do municpio. Vivenciar este conhecimento local, indo campo, agindo no seu resgate e manuteno, uma maneira de educar esta molecada. Educar no sentido freiriano, de transformar a sua vida para melhor. Aumentar a auto-estima e o conhecimento de sua prpria histria um requisito para um desenvolvimento legtimo. Se o jovem caiara se sente capaz de se posicionar e de produzir (escrevendo, falando, tocando, cantando), necessrio dar capacitao tcnica e ferramentas para que ele atinja seus objetivos. Com estas tcnicas em mos, num meio receptivo, no to difcil escrever um boletim, um zine ou um jornalzinho. Uma rdio

escola ou uma rdio livre (com transmissor simples) tambm no tarefa complicada para jovens de uma cultura tecnolgica (sim) que lida diariamente com a agricultura e a pesca. Padre Joo Trinta coloca com bastante propriedade que a profisso de pescador a mais ampla em conhecimentos, incorporando informaes e prticas de diversas profisses: meteorologia, fsica, navegao, mecnica, biologia, oceanografia e outras reas do conhecimento. Para quem convive com isto, um pouco mais de apoio tcnico na rea de comunicao o suficiente para montar um peridico ou uma rdio. No existe maneira mais legtima de educar do que este processo de produo de um novo conhecimento, vivenciado, com jovens educando jovens, na sua linguagem. A capacidade de ser dono do nosso prprio destino uma qualidade a ser alcanada por todo indivduo e qualquer comunidade, em qualquer idade. preciso ficar claro que quando se fala em resgate de sua cultura, nada impede que conheamos outras culturas. Alis, isto preciso. Poucas pessoas compreendem que um ndio da etnia Mbya Guarani no perde a sua identidade cultural se visita a cidade ou se adquire certos hbitos do ambiente visitado. H um profundo preconceito em algumas posturas. Por que se critica tanto o uso de telefones celulares pelos indgenas? Ns no usamos os seus colares? O mesmo ocorre quando um negro alcana um posto de visibilidade na sociedade. Mas ele no era escravo, pobre? Como pode? A cultura no se perde por trocas, se perde por opresso, quando um grupo se coloca acima de outro. Segundo o professor da aldeia Morros dos Cavalos, em Palhoa, a uns 15 quilmetros de

Florianpolis, Marco Kara Djekup, a nica coisa que uma comunidade Guarani no pode nunca abrir mo da sua Casa de Reza. No importa onde ela esteja. Temos o exemplo de uma aldeia que est na periferia de So Paulo, no meio dos no-ndios. Mas essa aldeia tem sua Casa de Reza e l as pessoas vo escutar as palavras antigas, para que a nossa cultura nunca morra. Assim, todo e qualquer preconceito social mais uma tentativa de manuteno de privilgios de grupos historicamente dominantes, a custo da violncia fsica ou moral contra povos oprimidos. O extermnio dos ancestrais guaranis ainda incompreensvel, ainda como no possvel para os seus descendentes entenderem a expulso dos mesmos de terras a que historicamente lhes pertence. Para estes povos assim como eram para os carijs no existem fronteiras, existe um territrio: Ywy rupa. Se no existem fronteiras, para que guerras? A grande mdia Leio e ouo recentes episdios de ataques ferrenhos da grande imprensa aos povos e cultura tradicional e penso no desservio prestado por estes orgos que deveriam informar criticamente o cidado. Uma reportagem da revista Veja, de maneira preconceituosa, discriminatria e imoral se refere o povo Mbya Guarani (do qual os carijs eram um ramo) como invasor, estrangeiro, Made in Paraguai, como diz o ttulo do artigo. Em matrias veiculadas recentemente e diariamente pelos Jornais da Globo, como Crime no quilombo? Suspeitas de fraude e extrao de madeira de Mata Atlntica , tambm se denigre pessoas e locaA Educao como Base para a Manuteno da Cultura Caiara

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lidades declaradas como remanescentes de quilombos, questionando a veracidade dos pareceres que tornam estas reas de extrema importncia histrica e cultural. Em ambos os casos h um desrespeito profundo por estas etnias, que se estende aos profissionais reconhecidamente idneos de instituies reconhecidas, como a Fundao Palmares. Coincidncia (?) ou no (!), aps esta reportagem televisada do Jornal Nacional, aparece uma pesquisa sobre a miscigenao brasileira amplamente divulgada pelo jornal Estado de S. Paulo, onde negros famosos fazem parte do pblico analisado. Entre eles, Neguinho da Beija-Flor (puxador de samba) e Daiane dos Santos (ginasta) descobrem que mais de 60% do seus genes tm ancestralidade europia. J Sandra de S e Seu Jorge (cantores) tm uma ancestralidade predominantemente negra, cerca de 90%. Quanto aos mtodos utilizados e veracidade das informaes ainda no tive oportunidade de analisar. Mas quanto postura dos editores do Jornal Nacional, posso afirmar que houve manipulao completa, pois s foi divulgado por esta emissora os negros de ancestralidade predominantemente europia, em tom festivo. Sandra de S e Seu Jorge no apareceram na reportagem. Por que relato estes fatos? A grande maioria da populao assiste o Jornal Nacional como se fosse o porta-voz da verdade, guardio da informao. J a revista Veja tida por boa parte dos formadores de opinio como uma referncia. Os jovens e os pais

destes jovens esto sujeitos diariamente a este bombardeio. Se no h um conhecimento da histria e da cultura de sua regio, de forma a permitir que estes espectadores tenham uma avaliao crtica da informao veiculada por estas mdias, o cidado fica sujeito ao que estas empresas querem veicular. Comentrios Finais Uma das poucas formas de enfrentar esta tendncia de extermnio da cultura caiara contribuindo para que os jovens se organizem, descubram e produzam. Neste processo, pode se descobrir ao contrrio do que conta a histria oficial que a cultura caiara o encontro da cultura portuguesa com a indgena, com pitadas africanas, espanholas e alems. Que quem no gosta de trabalhar por trabalhar, no ser preguioso, e sim sbio. Tambm se descobre que, apesar da truculncia dos portugueses que chegaram, temos que aceitar a sua cultura. Assim, como tive que aceitar por muito tempo torcer por um time de futebol, cujo nome representava toda esta violncia: Vasco da Gama. Se o nome do time no dos melhores, sua histria marcante. O Vasco foi o primeiro time brasileiro a aceitar jogadores negros. At ento, o futebol era um esporte da elite europia. Entre a violncia portuguesa e a resistncia negra, existe a cruz de malta, smbolo de Canania.

10 Saberes Caiaras - A cultura caiara na histria de Canania

A Cultura Caiara na Histria dos Bairros Urbanos de CananiaA proposta do nosso trabalho, desde o incio, fazer o resgate da cultura caiara. Porm, s no decorrer do trabalho percebemos realmente a importncia do resgate dessas informaes e a gravidade de estarmos aos poucos perdendo essa cultura, pois vimos a dificuldade dos entrevistados em relatar certos costumes, j que grande parte dos caiaras j no os utilizam. Apesar de ter sido uma entrevista apenas para treinamento, foi muito proveitosa e coletamos muitas informaes importantes. Procuramos abordar as pessoas de maneira clara e precisa, pois antes de comear a perguntar explicvamos que a inteno desse trabalho registrar os costumes para que sejam lembrados e vivenciados pelas futuras geraes. Optamos por ter uma conversa espontnea, o que deixava os entrevistados mais a vontade para contar suas histrias. Foi necessria at mesmo uma explicao mais detalhada com uma monitora ambiental (Ana Maria de Borba), cuja presena foi essencial para o desfecho do captulo. As conversas com os mais antigos, nos revelaram o quanto so sbios, sendo relatadas histrias com muito respeito e verdade. Esperamos contribuir para que a cultura caiara esteja sempre presente em nosso cotidiano, das maneiras mais diversas. A realizao desse livro nos fez mudar o modo de ver nossa regio (...). Tambm nos fez refletir sobre toda nossa cultura (caiara) que est, infelizmente, desaparecendo aos poucos. O que faz a diferena em nosso trabalho o fato de que contado por pessoas que nos contavam com maior entusiasmo sobre suas vidas (algo to ntimo), aprendemos muitas coisas, principalmente valorizar a nossa terra, a nossa cultura e os nossos costumes que nunca iremos deixar se perder.A Cultura Caiara na Histria dos Bairros Urbanos de Canania

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Poema CaiaraRubens Paiva Poeta e Compositor CananeenseTodo dia que Deus d as quatro da madrugada, Pego remo e sambur, E vou dar uma pescada. Pego a tralha e a tarrafa, Vou ver se a mar t boa, Levo gua na garrafa, E uma rede de malha dentro da minha canoa. De lanceio e de currico, vou pescando mar a fora, E quando a pesca farta e boa, Colho tudo e venho embora. Na minha casinha simples, Depois do almoo j feito, Descanso da minha lida e a m de pensar na vida, Na minha rede eu me deito. Quando j pesca esta mais franca, E o peixe magro e sem peso, Tenho que achar um jeito, Passo com gua no peito, Porque tempo de defeso. Ai ento vem a tristeza, E me bate o pessimismo, Sou um pescador seu moo, E pra no passar sufoco, Vou ter que viver do turismo. Nos mares audazes guerreiros, Pescadores de uma fora rara, Em terra, na beno dos lares, O orgulho de ser caiara.

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Centro e RocioCentroDayane Cristina Almeida Cubas da Silva1 Talita Alves Shimodaira2

Rodeado por inmeras construes histricas, que so um grande atrativo de nossa cidade, este bairro onde se encontra o maior ponto comercial, palco das festas tradicionais e religiosas e de grande importncia, no s para o municpio, mas para todo o Brasil.

Imagem de Satlite1 2

Mapa geogrfico do Centro

Membro do Coletivo Jovem Caiara. Estudante do 1 ano do ensino mdio da Escola Estadual Profa. Dinorah Silva dos Santos e membro do Coletivo Jovem Caiara.

A Cultura Caiara na Histria dos Bairros Urbanos de Canania

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Canania atrai gente do mundo inteiro por causa de suas belezas naturais, porm poucos conhecem seu valor histrico e cultural.

Foi a partir daqui que surge o primeiro povoado brasileiro, em meados do ano de 1502. Historiadores afirmam que nessa data aportou em Canania a expedio exploratria dos portugueses Gonalo Coelho e Amrico Vespcio, que do o nome de Barra do Rio Cananor regio. Trazia com eles o Bacharel, Mestre Cosme Fernandes, que foi deportado, mas este local j era habitado pelos ndios tupi-guarani e at mesmo antes pelo homem do sambaqui. De caracterstica nmade, estes habitantes se alimentavam de peixes, moluscos e crustceos e tinham o costume de acumular os restos destes alimentos (ossos e conchas) em um nico lugar. Os sambaquis (samba = concha; qui = monte), como so conhecidos, representam uma grande prova da passagem de seres humanos por esta regio, h mais de 7.000 anos, como comprovada pela datao destes stios arqueolgicos.

Imagem de satlite dos bairrosFamlia Lisboa da Veiga

Imagem do Morro

Imagem do Morro nos dias atuais A Cultura Caiara na Histria dos Bairros Urbanos de Canania

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O povoado inicialmente se instalou ao sul da Ilha Comprida, conhecida como Ilha Branca, provavelmente onde hoje o stio Boa Vista; chamada de Maratayama (valoroso guerreiro, em tupi-guarani) permaneceu ali por cerca de setenta anos. Com o passar do tempo, se tornou notvel a escassez de recursos naturais como gua potvel e terrenos para poder plantar e as pessoas tiveram que se retirar de l. Por isso, vieram para onde hoje Canania; local adequado como estratgia contra a invaso de ndios bravios que queriam extrair dessa terra o que havia de melhor e pelo fcil acesso ao continente. Foi elevada categoria de vila em 1578, com o nome de So Joo Baptista de Canana e, cidade,Arquivos PEIC3

em 1895. A denominao do municpio foi alterada em 1905 abreviando-se o nome de So Joo Baptista de Canana para Canana. J em 1932 acrescentada a letra i ao nome, tornando-se assim Canania.Famlia Lisboa da Veiga

Incio da construo do aterro da Avenida Beira Mar

Embora no existam documentos que informem com preciso a data de sua construo, a Igreja Matriz de So Joo Baptista provavelmente foi construda em meados do sculo XVI, com enormes e fortesFamlia Lisboa da Veiga

Foto area de Canania, mostrando alguns bairros, o Morro So Joo e a Ilha do Cardoso ao fundo3

Ou distrito de paz como tambm encontrado em livros e documentos antigos

Igreja antiga, sem data.

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portes, poucas janelas e com as seteiras (aberturas nas paredes em forma de seta) que serviam tanto para ventilao quanto para quem estivesse dentro poder se defender dos ataques de ndios e piratas, servindo como uma espcie de fortaleza durante as batalhas que eram travadas.

Igreja nos dias atuais

Seteiras

Fachada da Igreja Matriz de So Joo Batista

Antes da bela edificao de agora, existia uma pequena capela com apenas quatro metros de fachada por nove na lateral; feita de taipa, suas paredes eram de cal e areia com estacas e ripas. A cobertura era feita com palha. Em volta existia um cemitrio que foi posteriormente soterrado e por cima dele construda a atual igreja.A Cultura Caiara na Histria dos Bairros Urbanos de Canania

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Missa na praa Martim Afonso de Souza, sem data

A tcnica utilizada para a construo foi trazida de Portugal e baseia-se no uso de pedra e cal. As pedras eram obtidas nos rios e nos morros prximos e a cal tirada dos sambaquis, tudo isso misturado a 4 leo de baleia para dar ligadura e formar uma massa, 5 conhecida como berbigo . Foi feita com a frente voltada para o antigo porto de Canania, na desembocadura do rio Olaria, que ento se localizava onde situada a ponte do Morro So Joo. As grandes embarcaes atracavam s margens deste rio e a tripulao seguia de canoa em direo ao extinto rio Piranguinha, que ficava defronte a igreja e que foi canalizado para as construes das atuais ruas Tales Bernardes e Ernesto Simes.4

Instituto Geogrfico e Cartogrfico de So Paulo

Mapa geogrfico antigo do Centro Histrico

Na Ilha do Abrigo existiu uma armao de baleia que foi utilizada nos sculos XVI e XVII para extrair o leo das baleias e utiliz-lo em construes e lamparinas. As runas esto l at hoje, inclusive um grande tacho de cobre que est submerso, mas com as bordas flor da gua. 5 Nome de um molusco da famlia dos bivalves (Anomalocardia brasiliana).

A igreja passou por trs grandes reformas, a primeira ocorreu em 1723 e foi colocado um assoalho de madeira; a segunda, em 1769, foram construdos os botarus (contraforte de reforo nas paredes) e a terceira, nos anos de 1977-1978 reformou o telhado e o altar.

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Chegou a ter trs importantes sinos que possuam os seguintes nomes: Meo, Sio e Leo, hoje sabemos apenas que foram roubados, assim como a primeira imagem de So Joo Baptista esculpida em madeira e trazida de Portugal, a pedido de Martim Afonso. Com a foto do padroeiro em suas mos nos relata com emoo uma moradora: [...] vocs precisavam ver que beleza que era a igreja no estilo antigo, ela era toda forrada, era de escadaria, o santo ficava l em cima [...] olha este aqui era o santo padroeiro que roubaram [...].

Parquia de So Joo Batista

Interior da igreja atualmente

Antigo altar no interior da igreja, sem data

Imagem roubada de So Joo Batista A Cultura Caiara na Histria dos Bairros Urbanos de Canania

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O milagre de So Joo BatistaNo tempo em que a regio de Canania sofria com as guerras e invases de piratas, muitos navios entravam pela barra e aqui saqueavam, roubavam e destruam tudo o que encontravam pela frente. Os devotos de So Joo Batista afirmam que este santo tinha muita sabedoria e que saiu numa noite escura da igreja e foi at a barra de Canania e l aterrou a entrada impedindo o acesso destes navios baa de Trapand. Contam que o sinal deste milagre estava registrado nos ps da imagem cobertos de lama no dia seguinte.

No altar da igreja existe uma pia batismal, construda em pedra, que utilizada at hoje e est ali desde sua construo. Antigamente as missas eram cantadas, o coral ficava na parte de cima da igreja, o padre apenas complementava com algumas palavras. Hoje em dia ainda existe um coral que realiza apresentaes em datas comemorativas religiosas, como a de Nossa 6 Senhora dos Navegantes (12 de agosto), em que os barcos so enfeitados para a procisso no Mar de Dentro; a de So Joo Batista, So Pedro (padroeiro dos pescadores) e a do Divino Esprito Santo.

Pia batismal Procisso terrestre de Nossa Senhora dos Navegantes, sem data

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O simbolismo da mulher corajosa e orientadora dos viajantes fez com que Maria fosse vista como uma eterna vencedora dos inimigos das tempestades. Costuma-se festejar o dia que lhe dedicado com uma grande procisso fluvial em muitos lugares no Brasil.

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Famlia Lisboa da Veiga

Procisso martima de Nossa Senhora dos Navegantes, sem data

Procisso martima de Nossa Senhora dos Navegantes, agosto de 2005

As festas religiosas ainda tm, no como antigamente, mas tem do Divino Esprito Santo, por exemplo, no dia treze de maio as bandeiras saam para o stio com violas, essas coisas, e eles so esses cantores repentistas. (Relato de uma moradora local)

Chegada da Procisso de Nossa Senhora dos Navegantes, sem data

Ruas enfeitadas para a procisso de Corpus Christi A Cultura Caiara na Histria dos Bairros Urbanos de Canania

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Procisso das bandeiras do Divino Esprito Santo

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A igreja tem uma importncia enorme para Canania, no s por sua arquitetura, mas tambm pelo que tem a nos revelar em seus detalhes e histrias do povo caiara. Com todos os relatos conclumos que as pessoas sentem muitas saudades dos objetos que no esto mais ali, das missas e da religiosidade, que est se perdendo em meio a tantas mudanas. Mas, com todos os esforos, os caiaras no devem desistir nunca e buscar de todas as maneiras manterem vivas suas tradies religiosas. As casas mais antigas situam-se onde hoje a Rua Tristo Lobo, tambm chamada de Rua do Fogo, pois ali passavam os escravos que eram 7 aoitados pelos senhores. Nesta mesma rua tambm era comemorado o entrudo.

EntrudoEm princpio era uma comemorao feita pelos escravos, aps o casamento de um senhor de engenho, uma colheita bem sucedida ou o nascimento de alguma criana importante (rica). Os negros eram soltos nesta rua e saam brincando e jogando farinha uns nos outros, enquanto os ricos ficavam em suas casas; estes juntavam em baldes, gua suja com comida podre e at urina, e jogavam pela janela nos escravos que passavam pela rua. Essa comemorao no possua msica nem ritmo. Os ricos por ficarem dentro de casa tiveram vontade de brincar tambm e comearam a comprar mscaras importadas da Itlia para sarem nas ruas e no serem reconhecidos. Posteriormente, o entrudo passou a ter novas caractersticas com a presena da populao que saa fantasiada de lacaios, diabinhos, frades e at mesmo rapazes com roupa de moa jogando farinha e gua nos transeuntes. Por volta da dcada de setenta eram usadas laranjinhas coloridas, feitas com cera derretida e corante, com perfume dentro. Essas eram vendidas aos folies que jogavam nas costas das pessoas. A comemorao se dava durante o trduo de momo e nas passagens de ano com o bloco Z Pereira, aspirando muita alegria no decorrer de todos os meses.7

Castigados com um instrumento de uma ou mais tiras de couro, flagelados

A Cultura Caiara na Histria dos Bairros Urbanos de Canania

Famlia Lisboa da Veiga

Rua Tristo Lobo vista da igreja de So Joo Batista

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Um dos primeiros sobrados de Canania, localizado na Rua Tristo Lobo

Telhas feitas na coxa

As casas seguiam o mesmo padro de construo da igreja e tinham em seu alicerce pedras, conchas (berbigo) e leo de baleia. As telhas que cobriam estas residncias eram confeccionadas nas coxas dos escravos. Misturava-se o barro vermelho (argila) com gua at obter uma boa consistncia, em seguida, amassava-se com os ps e depois modelavam a massa na coxa e retirava-se o excesso de massa. Colocavase ao sol para secar e, por ltimo, levava-se para perto da fogueira onde a pea era queimada. Suas fachadas mostravam o poder aquisitivo de seus moradores atravs das beiras, que so ondulaes salientes abaixo do telhado, quanto mais beiras a casa possua mais rica era a famlia que ali morava. Muitas dessas casas tambm tinham um lugar reservado, com tanques e mesas, que era chamado eira, onde os escravos preparavam os alimentos para seu24 Saberes Caiaras - A cultura caiara na histria de Canania

dono. Vem da o ditado popular que se refere s pessoas com situao financeira desfavorvel, sem eira, nem beira.

Casas com as beiras

Por questo de segurana, as janelas padronizadas seguiam o modelo europeu e abriam para dentro, s existindo vidro nas casas das pessoas mais ricas, j que eram importados da Europa.

A atual Cmara Municipal localizada na Rua Pero Lobo era uma delegacia onde ficavam detidos em sua maioria pessoas com problemas mentais, loucos, j que o ndice de criminalidade na poca era

Detalhe das janelas das casas A Cultura Caiara na Histria dos Bairros Urbanos de Canania

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bem mais baixo do que hoje em dia, como afirma seu Silvio Atansio, morador do bairro Carijo que foi carcereiro na mesma.

a segunda srie apenas, pois muitas tinham que ajudar os pais em trabalhos dirios. Onde a Escola Estadual Professora Yolanda Arajo Silva Paiva era um pasto de gado, seu terreno abrangia muito mais do que ela ocupa atualmente, quando construda foi considerada a escola mais moderna do estado de So Paulo, o que j faz mais de trinta anos. Este prdio foi o primeiro edifcio da cidade em grandes propores, de acordo com moradores do centro. Palco de inmeras festas, como afirmado anteriormente, aqui o carnaval era festejado primeiramente em casas de famlias, depois que foram criados os dois principais clubes da cidade, primeiro o Clube Unio e depois o Maratayama.

Cmara Municipal em 1938, mostrando a posse do prefeito

O primeiro posto de sade era onde o asilo Amigos da Velhice de Canania, na Rua Tristo Lobo, nessa poca (incio do sculo XX) existia apenas um mdico, o Doutor Paulo Gomes, uma pessoa que estava sempre disposta a atender em sua casa (atual Pousada Carop) ou na casa dos seus pacientes. A Santa Casa s foi construda em 1917 e tanto ela como a antiga escola pertenceram ao caiara mais culto da poca, Antonio Paulino de Almeida. A escola situava-se na antiga sede da prefeitura municipal (atual Departamento de Obras), localizada na Rua Pero Lopes; chamada de Grupo Escolar Martim Afonso de Souza, suas aulas ocorriam de primeira a quarta srie, mas algumas crianas estudavam at26 Saberes Caiaras - A cultura caiara na histria de Canania

O carnaval era como hoje, sendo mais simples, sem tanta baguna, tinha o desfile do bloco, que era bloco, no existia escola de samba, ali do Unio e o bloco do Carijo, era feito o carro alegrico em cima de caminhes com os desenhos da msica e as mscaras, tinha a borrao; entrava nas casas, borravam as moas, todo mundo se escondia, era com farinha de trigo, que era raro, s quem tinha um pouco mais abastado, hoje parece que tem e chamam de Prac. (Dona Maria Juliana) A histria de Canania deixa evidente tambm que a regio passou por vrios ciclos que influenciaram diretamente a ocupao do municpio e principalmente os modos de vida caiara, quer seja em seus aspectos sociais ou culturais. Mouro (2003), faz uma afirmativa dizendo que estes ciclos trouxeram estas mudanas:

Diante destas argumentaes nota-se que o Centro esteve ligado intrinsecamente a estes ciclos econmicos. Durante o sculo XVI e XVII a regio foi muito explorada para a extrao de ouro, evidenciado pelos lugares que ainda preservam caractersticas desta poca, como os municpios de Eldorado, Apia e Iporanga ou aqui, no bairro rural Rio das Minas. Neste perodo muitos moradores partiam em busca deste ouro, deixando para trs sua terra natal.

Fantasias usadas durante carnaval

[...] quer lanando o homem na terra, quer dela o tirando. A passagem para a agricultura, nesta regio, no nos parece que tenha correspondido, mesmo no passado, a um objetivo de vida. Recorre-se agricultura ante o desaparecimento do ouro. Abandona-se a agricultura quando os estaleiros necessitam de madeira. Volta-se agricultura quando a construo naval desaparece. Outros emigram. Abandona-se a agricultura quando o peixe, o palmito e, mais tarde, a caxeta, passam a ter mercado. Com a proibio do palmito e da caxeta, uma parte da populao afeita a essa atividade, como parte dos que dependiam da coleta da ostra de mangue, que est desaparecendo, ou tenta a sorte em outras regies ou, em menor nmero, tenta voltar s pequenas roas quando ainda detm sua posse.

Cachoeira do Rio das Minas

Com o fim deste ciclo ou com o declnio da explorao do ouro, a populao que outrora desbravou essa regio acaba emigrando e boa parte que fica, dedica-se agricultura, sendo que no sculo XVIII inicia-se em Canania um notvel surto da agricultura e o desenvolvimento da construo naval.A Cultura Caiara na Histria dos Bairros Urbanos de Canania

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Em 1711 comeam a operar os primeiros estaleiros . A indstria de construo naval atinge o auge em 1782, existindo nessa poca 16 estaleiros navais funcionando a todo vapor. Exportavam embarcaes para todo o litoral brasileiro, inclusive para Portugal. A fartura provocada pela produo agrcola proporcionou um melhor escoamento dos produtos e um incentivo ao comrcio regional. Junto com o advento da construo naval, Canania caracterizava-se por um equilbrio econmico entre a rea rural e a rea urbana.8

vender seus excedentes e a economia local casse bastante. Muitas famlias acabam abandonando os stios e suas propriedades rurais para tentar melhores condies de vida no centro, trabalhando nos estaleiros e nos comrcios em expanso. Com a decadncia da agricultura, tiveram que vender ou abandonar seus stios para trabalhar na cidade, assim, na pesca tiravam seu sustento, j que a oferta de mercado era grande e recebiam seu dinheiro aps o trmino do servio, o que no ocorria com a lavoura, pois tinham que plantar e esperar o tempo certo para colher. Esse interdito dura pouco tempo, voltando a economia de Canania a prosperar novamente, s que poucos retornam para seus stios e os que l ficaram voltam a produzir para a exportao, mas muitos sitiantes saem do continente para trabalhar no porto. Nota-se no final do sculo XIX e incio do sculo XX grandes exportaes de arroz e farinha de mandioca, como constatado em algumas entrevistas e relatado em outros captulos que tratam de bairros especficos. Em meados de 1820, a produo de barcos entra em decadncia.

Famlia Lisboa da Veiga

Navios na baia de Trapand em 1938

Em 1787 interditaram os principais portos da regio, entre eles o de Iguape e de Canania, e isto fez com que muitos produtores no conseguissem8

Nessa poca, existiam armazns onde se compravam artigos como querosene, sal e demais produtos que no eram confeccionados artesanalmente; muitas casas possuam uma pequena horta com plantas e ervas medicinais e criavam galinhas e porcos para o consumo familiar. No incio do sculo XX (1910 aproximadamente), a pesca transforma-se na principal atividade econmica da cidade (pescados, camares, ostras e

Lugar onde se constroem e consertam diversos tipos de embarcaes e suas peas.

28 Saberes Caiaras - A cultura caiara na histria de Canania

mariscos), facilitada pela introduo do papel moeda e pela pesca comercial. Em 1923, explorava-se muita madeira para a fabricao de barris; a fbrica que se situava na Rua 9 Dr. Alcoforado , atual Avenida Beira Mar, teve muitos empregados, mas fechou por falta de madeira.Famlia Lisboa da Veiga

Em 1958 a maioria da populao que vivia no Centro se dedicava ao comrcio e prestao de servios, especialmente nas fbricas que existiam aqui; destacam-se duas fbricas de conservas localizadas no Morro So Joo, uma de beneficiar arroz, outra de gelo e duas olarias (tambm no Morro). Com toda a sua histria, cultura, magia, encantos, momentos e esquecimentos, Canania tem muito a oferecer aos visitantes, que alm de suas belas paisagens e atrativos, abriga um povo receptivo que est sempre disposto a mostrar o melhor da cultura caiara, com suas crenas, msicas, festas e tradies. Atualmente, o turismo em expanso nos preocupa pelo fato de preservar e no agredir o meio ambiente e muito menos as famlias, especialmente as que residem em reas rurais. possvel conhecer todas as maravilhas deste lugar sem interferir na cultura local e o que ainda existe conservado. Sem dvida o nosso maior patrimnio e para ns possui um valor incalculvel j que como legtimos caiaras valorizamos a nossa origem e a nossa terra. Calmo, tranqilo, indiferente a tudo, de se ver o seu ardor patritico e entusistico regionalismo, quando se refere terra em que nasceu. (Antonio Paulino de Almeida)

Fbrica de barris

Na dcada de vinte poucas estradas existiam, a maioria eram picadas que os prprios moradores abriam no brao, sem uso de qualquer mquina; somente na dcada de trinta que comearam a construir estrada por terra, nessa poca a travessia de Canania para o continente era feita por pequenas embarcaes e depois por balsa, sendo que a ponte s foi construda em 1982.

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Joaquim Guedes Alcoforado (1854 -1906) foi o primeiro magistrado (juiz) da Comarca de Canania.

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Local onde existia uma fbrica de beneficiar arroz, hoje funciona um estabelecimento comercial

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Bairro RocioTalita Alves Shimodaira1

Avenida Independncia1

Estudante do 1 ano do ensino mdio da Escola Estadual Prof. Dinorah Silva dos Santos e membro do Coletivo Jovem Caiara.

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O bairro Rocio est localizado na rea urbana de Canania, seu nome se origina da grande quantidade de plantaes que existiam em seus arredores, no tempo em que as ruas ainda nem tinham pavimentao. Hoje em dia seu aspecto fsico outro, no lugar dos caminhos abertos no meio da mata, que outrora compunham a paisagem local, que por ao dos moradores foram se alargando, existe a Avenida Independncia que cruza toda a cidade. As casas eram de pau-a-pique e entulho, feito com madeira cuja massa usava cal e areia branca, enquanto a cobertura era com a palha gamiova (Geonoma schottiana). Na dcada de 50 as construes mudaram, sendo feitas de madeira, j no incio dos anos 80 se encontravam moradias de alvenaria, assim, ao decorrer dos anos o Rocio vem sofrendo algumas modificaes em relao arquitetura. A principal atividade econmica era a pesqueira, que se estendia do ms de abril a setembro, pois aps esse perodo era interrompida para defeso das espcies marinhas. Havia vrios estilos de pesca como, por exemplo, redes, cercos, tarrafas, espinhis, pit e tacho. Pit, estilo de pescar camaro, era feito atravs de duas canoas lado a lado, que iam com uma espcie de peneira, arrastando os camares. Tacho era colocada a taquara pra ponta da canoa, acesa com uma tocha, um atrs ia remando e o outro ia fisgando os peixes com a lana. (Relato de um morador local)32 Saberes Caiaras - A cultura caiara na histria de Canania

Todos os produtos cultivados nas lavouras serviam para a subsistncia da populao, como a mandioca, o arroz, a cana-de-acar e o feijo. Eram comprados apenas os mantimentos que no podiam ser produzidos, como o sal e a querosene. Um dos melhores lugares para o plantio ficava situado onde hoje a Avenida Independncia, antes chamada de Francisco Chaves. As mulheres, alm de cuidar da casa, ajudavam seus maridos na roa, levando os filhos juntos para a lavoura, mesmo os homens ficando encarregados dos trabalhos mais pesados. Os alimentos tpicos do bairro, fruto da prpria produo local eram: o peixe seco com banana, preparado com banana verde, a batata doce, a abbora, o car, a batatinha desfiada servida com peixe ou ento a caldeirada, preparada com leo de dend, creme de leite, pimento (vermelho e verde), lula, pedaos de polvo, mariscos e outros ingredientes preferncia. A cataia (Drymis brasiliensis), rvore tpica da regio, muito popular no Vale do Ribeira e norte do Paran, possui folhas com propriedades medicinais, era usada para temperar alimentos e fazer ch, alm de ser consumida curtida em cachaa pura ou com mel, que quando submersa na aguardente reduz drasticamente sua acidez, fazendo com que a bebida torne-se saborosssima, por isso tambm chamada de usque caiara ou usque da praia.2

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O nome cataia vem do tupi e quer dizer folha que queima.

O uso de fitoterpicos era muito corriqueiro, sendo que cada pessoa os usava de acordo com seus conhecimentos; os principais problemas de sade 3 enfrentados antigamente eram verminoses , que acabavam ocasionando muitas mortes, pois at os indivduos descobrirem o que tinham, j no havia mais soluo, morrendo sem sequer saber qual doena lhes afetava. A educao era muito rgida, segundo relato de um morador tradicional existia um inspetor de menores, e todos o respeitavam muito. As famlias eram muito unidas, em pocas de festa comemoravam todas juntas. Os jovens trabalhavam com seus pais, faziam suas brincadeiras e tinham suas brigas, porm respeitavam uns aos outros. A cultura caiara era muito mais valorizada antigamente. Havia vrias festas tradicionais que se desenrolavam durante todo o ano; no ms de maro era Festa de So Jos; em maio, Festa do Divino, em que a bandeira do Divino Esprito Santo passava por

todos os bairros da cidade, inclusive os rurais; em junho, precisamente no dia 24, Festa de So Joo; agosto comemorao de Nossa Senhora dos Navegantes; j em outubro, Festa de Nossa Senhora do Rosrio e dezembro, alm das festas natalinas, Festa de So Benedito. O ritmo mais escutado era o fandango, onde se usavam instrumentos feitos artesanalmente como a viola, a rabeca, o cavaquinho, o adufo e o tamborim. Nos ltimos tempos vem se tornando cada vez mais comum, inclusive com a participao de jovens tanto em grupos de tocadores, quanto nas festas em que a msica e dana tipicamente caiara enchem de alegria os sales com seu arrasta p.

Referncias Bibliogrficas MOURO, Fernando A. Albuquerque. Os pescadores do Litoral Sul de So Paulo: um estudo de Sociologia diferencial. So Paulo: Editora HUCITEC/ NUPAUB/CEC/USP, 2003, pg. 131.

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Espcie de infeco intestinal provocada por parasitas. Os principais sintomas relacionados com as verminoses so: clicas abdominais, enjos, mudana do apetite, falta de disposio, fraqueza, emagrecimento, tonturas, vmitos, diarria com ou sem perda de sangue ou fome constante.

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Bairro Carijo e Morro So Joo

Porto do Carijo e Morro So Joo

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Carijo

Andr Murtinho Ribeiro Chaves 2 Lais Cristine Xavier 3 Slvio Atansio 3 Rosalina Gomes da Silva Jan Van Der Heijden3 O Carijo hoje um bairro eminentemente de pescadores artesanais, bem simples, bem pobres, mas que comearam a vender o pescado para o pessoal de Santos. Como mtodo de preservar os peixes no passado, usava o sal. (Padre Joo Trinta) O nome Carijo origina-se dos ndios Carijs que habitavam a regio sul do Brasil, encontrando-se esse povo desde Canania at a Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul. No ano de 1500 estima-se que existiam mais de 100.000 mil carijs, mas em 1700, a etnia carij massacrada e dizimada. Algumas terras que possivelmente abrigaram os carijs em nosso municpio foram o Varadouro, o Taquari, a costa oeste da Ilha do Cardoso (caminho do Canal do Ararapira) e, no Paran, a Ilha do Superagui.1

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O bairro do Carijo se localiza circundando o Morro So Joo e seu acesso pode ser feito atravessando a ponte do rio Olaria, prximo ao centro da cidade. Teve sua formao definitiva em meados de 1902 com pequenas casas construdas pelas prprias famlias que ali chegaram e se estabeleceram em chcaras e stios prximos ao rio.

Mestre em Ecologia, docente da Escola Estadual Profa. Yolanda Arajo Silva Paiva e membro do Coletivo Educador de Canania. Membro do Coletivo Jovem Caiara. 3 Moradores do bairro Carijo entrevistados durante a pesquisa de campo. 4 Tanto o povo como o bairro se escreve da mesma forma: Carij (oxtona). Entretanto, os moradores de Canania historicamente, no se sabem muito os porqus, alteraram a pronncia para Carijo (paroxtona), sem o acento. Isto tambm facilitar a leitura ao diferenciar a etnia indgena do bairro.2

Imagem de satlite Canania A Cultura Caiara na Histria dos Bairros Urbanos de Canania

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ndios Guarani MBya, em Canania existem quatro aldeias onde podemos encontrar esse povo

Imagem de satlite do bairro Carijo

A oferta de numerrio possibilitada pelo pescado e a possibilidade de se receber dinheiro logo aps a pescaria, em vez de ter que aguardar o amadurecimento da pequena colheita que, no mercado de troca, atingia pequeno valor, determinaram a passagem para a pesca, como meio de subsistncia, de cerca de cinqenta famlias que ou venderam ou abandonaram seus stios para se instalarem na cidade de Canania, onde formaram o bairro do Carij, junto do morro So Joo. Mouro (2003)36 Saberes Caiaras - A cultura caiara na histria de Canania

As primeiras famlias que ocuparam o bairro foram a Reis, a Rangel, a Gomes e a Teixeira. Ainda existem familiares delas no bairro, muitas vieram do Araaba (localidade prxima ao Ariri e Varadouro, na divisa com o Paran). Outras moraram um tempo na Praia do Meio (atualmente Bairro do Maruj) na Ilha do Cardoso e depois migraram para o Carijo, formando pequenas chcaras com cerca de cinco casas. O Sr. Silvio Atansio, morador do bairro a setenta e sete anos, j foi vereador, carcereiro e tambm presidente da Colnia de Pescadores e nos contou que quando ele chegou ao bairro, em 1930, [...] morava seis famlias aqui, no tinha gua, no tinha luz, no tinha nada, quem puxou a luz pra c a primeira vez fui eu [...], e salienta que colocou postes de madeira, fez ligaes eltricas e pagou todas as despesas, j que o prefeito nessa poca no disponibilizou nenhum recurso financeiro e muito menos mo de obra.

CarijsCom o naufrgio de um navio portugus na ilha de Santa Catarina seus tripulantes conseguiram alcanar as terras dos guaranis, terras j ento campeadas por eles. Esses homens acabaram se unindo s ndias adotando um novo regime de vida, fator esse que ocasionou o nascimento de inmeros mamelucos (portugueses mais ndios), cafusos (ndios mais negros) e mestios (brancos mais negros); sofreram uma alterao onde mudou completamente o aspecto desses indgenas e desde a, comeou a surgir a etnia carijs, que significa arrancado do branco, mestio. Os Carijs ocupavam o territrio que ia de Canania at a Ilha dos Patos, eles eram sem dvida dceis, trabalhadores e bem intencionados pertencentes ao ramo dos tupi-guaranis (tupi o grande pai ou lder e guarani guerreiro) e esse povo indgena fez um percurso do Paraguai para o sul do litoral brasileiro. As casas que eles construam eram cobertas com cascas de rvores e cultivavam o algodo, este eles usavam pra fazer agasalhos e redes que enfeitavam com plumas e penas, eram um povo muito receptivo a todos os navios, mas, porm um dia foram trados bruscamente e comearam a chamar o homem branco de inimigos. Com relao cura e a bruxaria eles possuam uma sabedoria maior do que a outros nativos. Por exemplo: quando eles queriam matar algum, pegavam um sapo, amarravam a uma rvore e conforme o animal fosse desfalecendo a pessoa tambm iria, ou se desejassem que algum ficasse cego, tinha que enterrar um ovo debaixo da rede, mas se algum descobrisse, a mandinga deveria ser desfeita. Com certeza devemos aos ndios o fato de nossa existncia e principalmente todo o nosso respeito, pois eles obtiveram uma importncia enorme por toda a sua histria, seus conhecimentos... Foi um povo extremamente gentil e disposto a ajudar a qualquer um, ser que nos povos de hoje encontramos pessoas assim???, Seres humanos com toda a sua cultura dispostos a ajudar ao seu semelhante sem receio algum??!! Se deixarmos a nossa ignorncia, veramos que eles so muito mais importantes para ns do que ns para eles.

A Cultura Caiara na Histria dos Bairros Urbanos de Canania

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Silvio Atansio

A Sra. Rosalina Gomes da Silva, graciosamente chamada de Rosinha, moradora a sessenta e quatro anos no bairro, lembra como ele comeou a crescer: Depois de muito tempo que foi crescendo, se formando mais gente [...] Minha me, ela diz que ela mesmo que fez esse caminho pra baixo, que era pouca estradinha [...] eu lembro assim at menina, esse caminho tinha aquela ponte grande que tem l, o porto ns chamava de ponte grande, ali onde tem aquela manilha pra c, mais ali onde tem aquelas coisa da Sabesp agora, ns chamava ponte pequena, j era uma pontinha mais pequena n, ento o caminho era ali mesmo, sabe? Era s um caminho.38 Saberes Caiaras - A cultura caiara na histria de Canania

Ponte sobre o rio Olaria, antigamente chamada de Ponte Grande

As casas eram construdas de madeira cobertas 5 com guaricana (Geonoma schottiana) e o cho de barro, algumas apresentavam o assoalho de madeira, utilizando para tal a canela preta (Ocotea catharinensis), uma madeira muito resistente. Quando eles precisavam de barro iam buscar no morro So Joo, pois o nico local na Ilha de Canania que possui um tipo de solo diferente (argiloso). Dona Rosinha, falando de como eram as casas antigamente, lembra-se de algumas prticas comuns na poca [...] ento quando se quebrava um pedainho de cho minha me pegava a latinha e ia l peg barro pra arrum. A base do sustento que predominava no bairro era a agricultura, dona Rosinha fala que a gente antigamente vivia mais disso ai n, do que plantava n, a gente comia muito car, essas coisas, batata-doce, a gente foi criado mais assim n, nessas coisas do lugar mesmo, fazia farinha, tinha o biju n [...], mas no como fonte de renda, e sim como forma de subsistncia, alm disso beneficiavam muitos produtos comuns na poca, 6 como acar e farinha de mandioca. Nesse sentido nos conta o Sr. Slvio Atansio que ele e sua me faziam acar da seguinte maneira: A gente pegava o caldo da cana punha num tacho grande pra ferv e vai fervendo, at ficar rijo, depois que esfria ele vira melado, rapadura, mas se quiser fazer acar vai batendo mais, at endurecer, endureceu voc tira aqueles tabletes.5

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Esta cobertura de palha possui como caracterstica o impedimento total da passagem de gua e ainda retm calor no inverno e ameniza a temperatura no vero. Principalmente o mascavo, que no passa por processo de refinamento, mantendo assim as vitaminas e sais minerais do caldo da cana.

A Cultura Caiara na Histria dos Bairros Urbanos de Canania

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Atualmente, a pesca a principal fonte de renda e o bairro abriga o maior nmero de pescadores do municpio, cuja profisso requer um amplo conhecimento de prticas e saberes tradicionais, pois depende de fatores como o clima, o barco, o motor, a rede, a procriao das espcies marinhas, a qualidade da gua, enfim uma gama de situaes de mltipla complexidade. Um dos fatores que contribui para a escassez de pescado a pesca de arrasto, que feita com um ou dois barcos que puxam uma rede encostada no fundo do mar, muito eficiente para arrastar tudo o que aparece pela frente e extremamente predatria do ponto de vista ambiental e da conservao dos estoques pesqueiros. Os pescadores tentam interceder para que esta prtica acabe, pois traz grandes prejuzos para aqueles que possuem embarcaes de pequeno porte.

Barcos de pesca no porto do Carijo

Nessa poca, a pesca era pouco praticada e as embarcaes eram bem menores; pescavam em pequenas canoas chamadas canoas de um pau s, sendo que no existiam as peixarias e os pescados eram vendidos para embarcaes que vinham de Santos e Santa Catarina.40 Saberes Caiaras - A cultura caiara na histria de Canania

Embarcao com suas redes de arrasto

CercoO cerco possui uma importncia enorme para a pesca, uma armadilha fixa para reter os peixes. a principal tcnica empregada no esturio; os moradores afirmaram que quem trouxe essa arte para c foi um pescador de Iguape que aprendeu com um catarinense e depois ensinou o pessoal. Feitos com bambu ou taquara mirim e arame sustentado por moures, a forma de colocao do cerco depende do posicionamento das primeiras cinco madeiras na gua, pois a partir delas que ele estruturado. Existem dois tipos de cerco: o de inverno, com a malha maior por causa da tainha (que pescada nesse perodo) e o de vero, com a malha menor (parati, corvina, robalo e a carapeva). A durabilidade do cerco de trs meses, aproximadamente, quando os bambus comeam a se quebrar trocado o arame ou feita a substituio.

evidente a inocncia das pessoas antigamente, algo fantstico e respeitado por todos, crianas, idosos e at mesmo jovens. Dona Rosinha lembra que antigamente tinha a procisso dos mortos, no dia de finados, e colocavam medo na gente, a gente at hoje fala, n: - no deixem a roupa na rua no dia de morto. Dia um para o dia dois no deixava nada fora, os mortos iam passar [...]. Deus me livre, aqui era o caminho (aponta a localidade). Aps trmino do carnaval e por mais quarenta dias (quaresma) ningum podia ir para bailes, danar, cantar e at assobiar, falavam que nascia rabo! Assim, devido ao medo todos seguiam essas orientaes, pois naquela poca as supersties eram tratadas com enorme respeito.

Moradias comuns antigamente no bairro Carijo A Cultura Caiara na Histria dos Bairros Urbanos de Canania

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Lenda da Procisso dos MortosContam que em Canania existiam algumas mulheres que eram vizinhas e que tinham o costume de ficar conversando na rua depois da meia-noite. Elas moravam atrs do cemitrio, num bairro um pouco distante do centro da cidade. Certa vez, numa dessas conversas, exatamente a meia-noite e meia, elas viram a procisso dos mortos vindo do cemitrio, com todos seus componentes vestidos de preto e carregando uma vela nas mos. Elas pararam de conversar e prestaram ateno no cortejo e viram que um dos integrantes deixou uma vela na janela de uma delas. Depois que a procisso passou elas notaram que no era uma vela, mas sim um osso. Diz a lenda que uma vez por ano a procisso passa de madrugada e deixa uma vela na janela da casa das pessoas. Ou ser um osso?

simples, principalmente o arroz com feijo e peixe, j em datas comemorativas existiam acompanhamentos especiais como vinhos e carnes nobres. Dona Rosinha 7 fazia a moqueca da ova de peixe preparada da seguinte forma: primeiro tempera-se bem as ovas amassando todas elas para depois juntar com a farinha de mandioca, para dar consistncia, depois ela ento enrolada numa folha de bananeira e levada para debaixo da brasa do fogo a lenha, onde permanece at o cozimento final; prato esse sempre apreciado nas refeies matinais.

Em relao s festas, a nica comemorada no bairro era a do padroeiro So Pedro, o protetor dos pescadores, pois as outras festividades ocorriam no centro de Canania. O modo de vida caiara sempre foi muito simples, desde suas crenas, usos e costumes at o cuidado com sua alimentao; no dia-a-dia era refeio42 Saberes Caiaras - A cultura caiara na histria de Canania

Dona Rosinha em frente a sua casa

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Eram usados muitos tipos de peixes para as receitas caiaras, mas o que foi citado com muita nfase foi o bagre.

Antigamente no bairro do Carijo no existia rede de esgoto e a gua era retirada de poos ou dos chafarizes que existiam espalhados pela cidade, sendo utilizadas para tudo, desde o preparo dos alimentos, para lavar roupas, beber e at mesmo tomar banho. Com relao sade havia apenas um mdico, que morava no Centro da cidade, onde a pousada Carop, o Dr. Paulo Gomes, assim, com toda essa falta de tratamentos e medicamentos as pessoas notavam que era muito mais fcil cuidar de seus males em casa, cultivando ervas e plantas usadas para curar diversos tipos de doenas, como nos contou seu Silvio Atansio que teve uma doena chamada de 8 Tracoma que quase o deixou cego: Ele s me ensino lava o olho com gua, chama rosa branca, aquela flor da rosa branca, coloca ela num copo com gua, deixa em infuso, depois fica lavando o olho, no prazo de cinco dias tava bom, doena do Tracoma que chama. Outro fator que contribua para a utilizao diria de saberes populares, bem como dos recursos naturais como plantas e ervas medicinais, coincidia com o nvel da educao que existia na cidade. Existia apenas uma escola na cidade, chamada de Grupo Escolar Martim Afonso de Souza e os estudos acabavam na quarta srie, quem quisesse8

prosseguir no tinha alternativa seno ir embora de Canania. Com isso, muitos paravam de estudar e dedicavam-se logo cedo aos trabalhos em expanso no municpio, como a agricultura e a pesca. J os mais aventureiros iam dar aulas nos stios, pois quem tinha at a quarta srie j estava apto para isso, como salientado por Dona Rosinha. A estrutura familiar nunca foi bem definida entre os moradores do Carijo, o papel de cada membro da famlia era pouco estabelecido, a me sempre teve duas representaes, a prpria e a de pai, ao mesmo tempo, j o progenitor poucas vezes tomava a iniciativa de uma conversa entre pai e filho o que tornava a mulher muito mais forte. Como nos disse Dona Rosinha antigamente eu acho que o mundo era melhor, no tinha o modernismo de hoje, mas tambm no tinha violncia. As pessoas podiam pescar, caar e plantar com o mximo de segurana, pois sabiam que no seriam multadas por estarem praticando seu nico meio de sustento, j que esta atividade ocorria apenas para consumo prprio e no para comercializao. Os caiaras muitas vezes so chamados de preguiosos, pois at na definio utilizada pelos dicionrios est indivduo de pouco valor, caipira, mas na verdade ele trabalha para obter apenas a sua subsistncia, no possuam a ganncia que encontramos de querer sempre ter mais e mais dinheiro, para eles, poder sentar-se sombra de uma rvore e conversar sobre qualquer assunto sagrado. Jan Van Der Heijden, conhecido como Padre Joo Trinta, foi vigrio da igreja de So Joo Batista deA Cultura Caiara na Histria dos Bairros Urbanos de Canania

uma doena da conjuntiva (tecido vivo formado por uma substncia fundamental na qual esto inserida clulas e certas formaes especiais ou fibras e que serve de sustentao e, simultaneamente, nutrio e proteo) e da crnea (regio anterior da esclertica, transparente e de maior curvatura do que esta, coberta na sua superfcie exterior pela conjuntiva) que pode levar cegueira.

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Canania por trinta anos e conta que o modo de vida do caiara pode ser exemplificado atravs dos dilogos cotidianos das pessoas, damos nome a essa conversa de ping-pong de idias e ocorre quando existe um intervalo (pausa) entre a conversa de dois ou mais caiaras: cumpadre, o tempo t bom, no t? Mas noite vai esfri! Bem melhor que aquele calor de duas semanas atrs, hein? Sem dvida o povo caiara um povo muito inteligente com todas as suas caractersticas, suas

crenas e seu modo de vida. Isso nos d um enorme orgulho em sermos CAIARAS, pois ser caiara uma maneira de viver que o povo de fora admira, no sabe o que , mas dizem que bonita. Uma cultura produzida pelo isolamento., como lembrado nas sbias palavras do Padre Joo Trinta.

Referncias Bibliogrficas MOURO, Fernando A. Albuquerque. Os pescadores do Litoral Sul de So Paulo: um estudo de Sociologia diferencial. So Paulo: Editora HUCITEC/ NUPAUB/CEC/USP, 2003, pg. 51.

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Morro So JooDayane Cristina Almeida Cubas da Silva 2 Maria Aparecida Xavier Pontes 2 Zeneide Xavier Pontes1

Por do sol atrs do Morro So Joo

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Membro do Coletivo Jovem Caiara. Moradoras do bairro Morro So Joo entrevistadas durante a pesquisa de campo.

A Cultura Caiara na Histria dos Bairros Urbanos de Canania

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O morro So Joo era chamado de Candair; Dona Maria Aparecida Pontes, moradora local h 40 anos, lembra que quando ns viemos pra c, eu acho que s tinha quatro casas e complementa falando sobre alguns residentes como Seu Avelino Pontes, Seu Antenor Godoy e Seu Antonio Moaes, [...] que eram os moradores mais antigos e hoje s tem os filhos, porque eles j faleceram. O nome do bairro vem do fato de sua localizao ser na base do morro So Joo, nico ponto alto de Canania que devido a processos de entemperismos (sol, chuva, vento) foi sofrendo desgaste e formando essa parte onde fica a ilha de Canania, isso no decorrer de milhes de anos. Avanos e recuos do mar tambm caracterizavam esse processo de formaes insulares. Um dia a Ilha de Canania e a Ilha do Cardoso j foram ligadas ao continente, o que leva a comprovar o fato de existirem, por exemplo, animais em muitas ilhas distantes da costa. Como salienta Dona Maria, [...] um bairro pequeno n, ele no cresce mais [...] porque no tem lugar, o morro tombado e realmente no cresce, pois de um lado temos o Morro So Joo e circundando o bairro do Carijo. As casas eram feitas de madeira, depois que foram modificadas e passaram a ser de alvenaria. A origem do bairro devida, principalmente, ao estabelecimento de muitas famlias provenientes da Ilha do Cardoso que saram de l aps o local ter se tornado parque e ocorrido muitas restries ambientais, que impediram, por exemplo, muitas prticas agrcolas.46 Saberes Caiaras - A cultura caiara na histria de Canania

Embarcaes atracadas no bairro Morro So Joo

[...] toda famlia que veio da ilha, veio porque l virou um parque, ento como ns ramos agricultores ns no podamos ficar l, porque tinha que cortar a mata, plantar, n, a ns tivemos que sair, a que a gente saiu e graas a Deus conseguimos lugar aqui, deu sorte[...]. (Dona Maria) Aps se estabelecerem tiveram a pesca como principal fonte de renda, j que as famlias que aqui chegaram, embora fossem agricultores, hesitavam em 3 plantar com medo de que o solo despencasse como afirma Dona Maria. Com isso, muitas pessoas comearam a praticar a pesca embarcada e os que3