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SABERES E PRÁTICAS DE REZADEIRAS E BENZEDEIRAS EM COMUNIDADES DE CAMAÇARI: DIÁLOGOS ENTRE SABERES POPULARES E EDUCAÇÃO FORMAL 1 MIGUEL ANGELO VELANES BORGES 2 O Brasil é um país rico em saberes populares, tradições, sincretismos e diálogos entre as várias vertentes civilizatórias que aqui se encontraram. Desde a colônia, esses conhecimentos se entrecruzam formando uma rede complexa, o que sugere uma escola informal de saberes populares. Nessa rede, os saberes africanos e indígenas se destacam para esse trabalho. No contíguo espaço desse artigo, darei ênfase aos saberes populares em saúde, os quais Elda Rizo de Oliveira (1985, p. 16), denomina “Medicinas Populares”, para ela: “Tais práticas são revestidas de inúmeras formas, apresentando uma gama de significados, isto é, são caracterizadas por uma heterogeneidade de recursos e usos. Possuem, por isso, lógicas internas, uma dinâmica que lhe é própria e sent idos distintos”. Como existe um repertório muito vasto abrangendo esses saberes, me ocuparei das práticas de rezadeiras e benzedeiras, como delimitação do campo. Antes porém, farei uma síntese de como a educação formal se estabeleceu no Brasil, desde os tempos coloniais, apresentando logo após, um breve diálogo entre a educação formal e os saberes populares em saúde. É difícil Falar sobre educação sem fazermos uma discussão sobre diversidade e multiculturalidade. Por isso, o conceito de educação de Brandão (2003, p. 9), nos é pertinente: “Não há uma única forma nem um único modelo de educação; a escola não é o único lugar onde ela acontece e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o professor profissional não é o seu único praticante”. Porém, os debates historiográficos contemporâneos ainda não contemplaram, de forma satisfatória, a História da Educação como uma área a ser estudada de forma específica. Fonseca, discutindo as relações entre História da Educação e História cultural, afirma que existe um problema comum entre campos de investigação, objetos e abordagens que emerge dos estudos da História cultural, para ela, Mais problemático ainda é constatar que a História da Educação (...) não é considerada como 1 Este texto emerge das discussões e debates realizados na disciplina História da Educação e do Ensino de História, ministrada por Solyane Silveira Lima, Doutora em Educação (UFMG), no Mestrado em História da África da Diáspora e dos Povos Indígenas (UFRB), entre os meses de março e junho de 2017. 2 Aluno regular do Mestrado Profissional em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

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SABERES E PRÁTICAS DE REZADEIRAS E BENZEDEIRAS EM COMUNIDADES

DE CAMAÇARI: DIÁLOGOS ENTRE SABERES POPULARES E EDUCAÇÃO

FORMAL1

MIGUEL ANGELO VELANES BORGES2

O Brasil é um país rico em saberes populares, tradições, sincretismos e diálogos entre

as várias vertentes civilizatórias que aqui se encontraram. Desde a colônia, esses

conhecimentos se entrecruzam formando uma rede complexa, o que sugere uma escola

informal de saberes populares. Nessa rede, os saberes africanos e indígenas se destacam para

esse trabalho. No contíguo espaço desse artigo, darei ênfase aos saberes populares em saúde,

os quais Elda Rizo de Oliveira (1985, p. 16), denomina “Medicinas Populares”, para ela:

“Tais práticas são revestidas de inúmeras formas, apresentando uma gama de significados,

isto é, são caracterizadas por uma heterogeneidade de recursos e usos. Possuem, por isso,

lógicas internas, uma dinâmica que lhe é própria e sentidos distintos”. Como existe um

repertório muito vasto abrangendo esses saberes, me ocuparei das práticas de rezadeiras e

benzedeiras, como delimitação do campo. Antes porém, farei uma síntese de como a educação

formal se estabeleceu no Brasil, desde os tempos coloniais, apresentando logo após, um breve

diálogo entre a educação formal e os saberes populares em saúde.

É difícil Falar sobre educação sem fazermos uma discussão sobre diversidade e

multiculturalidade. Por isso, o conceito de educação de Brandão (2003, p. 9), nos é pertinente:

“Não há uma única forma nem um único modelo de educação; a escola não é o único lugar

onde ela acontece e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o

professor profissional não é o seu único praticante”. Porém, os debates historiográficos

contemporâneos ainda não contemplaram, de forma satisfatória, a História da Educação como

uma área a ser estudada de forma específica. Fonseca, discutindo as relações entre História da

Educação e História cultural, afirma que existe um problema comum entre campos de

investigação, objetos e abordagens que emerge dos estudos da História cultural, para ela,

“Mais problemático ainda é constatar que a História da Educação (...) não é considerada como

1 Este texto emerge das discussões e debates realizados na disciplina História da Educação e do Ensino de

História, ministrada por Solyane Silveira Lima, Doutora em Educação (UFMG), no Mestrado em História da

África da Diáspora e dos Povos Indígenas (UFRB), entre os meses de março e junho de 2017. 2 Aluno regular do Mestrado Profissional em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas da

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

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nenhuma delas, a não ser em textos escritos por pesquisadores diretamente nela envolvidos,

mas não no conjunto da produção historiográfica” (FONSECA, 2008, p. 50). A preocupação

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da autora se mantém e, mais adiante, ela completa; “A História da educação não

aparece nem como território, nem como campo de investigação, sequer como tema.” (Idem, p.

52). Essa lacuna, existente na historiografia brasileira, parece persistir, apesar dos novos

pressupostos teóricos e metodológicos, e das novas abordagens no estudo da história. Desde

as origens da educação brasileira, as elites dominantes do Brasil, reforçam a ideia de que a

única educação viria das escolas formais que, convenientemente, reproduz a sua ideologia.

Por isso, a Companhia de Jesus esteve presente, impondo uma educação religiosa cristã,

ligada ao estado Moderno Português, como afirma Veiga (2000, p. 51), “Apesar da

característica universalista de sua doutrinação religiosa, a ação católica associou-se aos

interesses políticos e econômicos dos colonizadores portugueses”.

Tomando-se como ponto de partida a multiplicidade de etnias presentes na

colonização brasileira, é possível ter uma ideia das dificuldades de uma educação que não se

pretendesse plural. Além de um número elevado de etnias indígenas, o tráfico de africanos

trouxe uma gama imensa de experiências culturais, línguas e “habitus”, que acabaram por se

“chocar” com os povos europeus que buscavam um lugar na exploração da América

Portuguesa. Segundo Greive (2007, p. 52),

A primeira coisa a se considerar é o número significativo de etnias

indígenas, portadoras de múltiplos costumes – o que inclui os modos

diferentes de conceber a educação e a formação das novas gerações nas

respectivas tradições, linguagens e rituais. (...) Outro aspecto fundamental a

considerar é a transferência de nativos africanos escravizados para a colônia

a partir do final do século XVI. (...) quanto à colonização europeia, além dos

portugueses, vieram franceses, holandeses, alemães e espanhóis – e junto

com eles, seus costumes e idiomas.

Podemos propor um diálogo de todas essas etnias, com seus costumes, hábitos culturais,

línguas, e principalmente suas formas de ensinar e aprender, únicas. Se fizermos isso,

estaremos tratando de um problema bem complexo. Obviamente, como veremos, a

predominância do modelo lusitano, tentou sufocar outros modelos educacionais, a começar

pelos nativos das nações indígenas, anteriores à colonização.

“Brasil colonial”: predominância da educação católico – cristã

Como apontamos no início, os jesuítas já estavam presentes na colonização desde o

início, com a chegada de Tomé de Souza em 1549. Mas – fato pouco divulgado nos estudos

de História da educação – outras ordens religiosas estiveram presente e impuseram suas

formas de ensinar e aprender, se valendo do modelo religioso cristão, como único a ser

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seguido. Greive aponta que estiveram presentes na educação colonial: Franciscanos,

carmelitas, beneditinos e oratorianos. A autora faz um apanhado das atividades dessas ordens:

Os franciscanos trabalharam tanto entre os índios – na catequese e ensinando

a ler e escrever, a fazer contas e a cantar – quanto na formação de membros

do clero e na educação de leigos. (...) a ordem dos carmelitas se instalou no

Brasil em 1538 (...) além de cuidar da formação dos integrantes da própria

ordem, os carmelitas também realizaram ações de catequese na região

amazônica. Já os beneditinos se estabeleceram inicialmente na Bahia e no

Rio de Janeiro, no século XVI, (...) enquanto que os oratorianos chegaram no

século XVII. Ambas as ordens dedicaram-se de início à formação de seus

membros e mais tarde abriram colégios para externos (Idem, p. 64).

Dessa forma, a educação brasileira está – ainda hoje percebemos esse traço – desde os

primórdios, impregnada de elementos religiosos ligados à ideologia cristã. É fácil ainda hoje,

vermos escolas abrirem os trabalhos do dia com a cultura do “Pai Nosso”, para citar apenas

um exemplo. Ao chegarem para as aulas, geralmente no turno matutino, são encaminhados

para a capela da escola para recitarem as orações habituais3. Essa homogeneização religiosa

está presente também em escolas das redes públicas estaduais e municipais, conta-se a esse

problema, a exclusão das religiões de matriz africana.

Principais ações da Companhia de Jesus

Por questões de síntese, nessa sessão do artigo, darei ênfase às ações catequéticas dos

jesuítas. Gonzaga Cabral (Apud Greive), resume o objetivo da educação da Companhia de

Jesus em uma via de mão dupla: ir e ensinar, com o objetivo final de cristianizar. “De acordo

com Gonzaga Cabral, o ‘ir’ significava o triunfar das distâncias, o ‘ensinar’ significava o

triunfo da inteligência e o objetivo final, ‘cristianizar’, o triunfo da vontade” (Idem, p. 54).

Esse é o primeiro aspecto a se considerar sobre a ação dos jesuítas. Outro aspecto está

interligado com o primeiro, resultou, segundo Greive (idem, p. 56) em integrar-se “à

perspectiva colonial de reordenar espaços e transformá-los em locais de fixação material e

cultural” (...). Dessa ação resulta uma série de movimentos voltados a atender os objetivos da

Companhia, desde a edificação de igrejas e escolas, e outras construções e instituições, até a

“posse de fazendas, engenhos e oficinas” (idem). Para se relacionarem com as populações

indígenas, os padres da Companhia, aprenderam o tupi-guarani e o denominaram de “língua

brasílica”. Como estratégia para facilitar a catequização, utilizaram a oralidade, já que os

3 O problema da homogeneização religiosa nas escolas públicas gera tensionamento entre os adeptos das

religiões de matriz africana. O tema em si, já daria um bom objeto de estudo. Não apenas alunos e familiares,

mas muitos professores, contribuem para uma unilateralização das relações entre os conteúdos religiosos nas

escolas. É também muito comum nas escolas públicas, as rezas, carurus, trezenas e outras atividades, voltadas

para a devoção ao panteão católico cristão.

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povos nativos não dominavam a linguagem escrita. Outro ponto interessante da relação dos

catequistas com os indígenas, se refere à educação do corpo. Além da alma, “o corpo dos

indígenas também foi ‘educado’, não apenas pela imposição de trabalhos e pela vestimenta,

mas pelas encenações dramáticas e coreográficas” (Idem, p. 57). A ação da Companhia

investiu duramente contra as tradições, os hábitos e o modo de vida das sociedades indígenas,

ao impor uma “nova” forma de viver e de se relacionar com o mundo. Aos poucos, a memória

social e ancestral dos indígenas foi sendo apagada e “substituída” pelas noções do pecado

original e dos princípios de relação cristãos. “Para tanto foi necessária a desorganização dos

rituais, crenças e costumes que conferiam identidade grupal e ancestral aos indígenas” (Idem,

p. 62). Foram combatidas a antropofagia, a poligamia, o ócio e o nomadismo, práticas

milenares das sociedades e nações indígenas.

Discutindo uma epistemologia dos Saberes populares

Chama a atenção a variedade de saberes comumente denominados de “sabedoria

popular,” cujo alcance atinge todas as regiões Brasileiras, e não se insere em nenhuma

categoria de saberes acadêmicos ou oficiais. Para exemplificar, os exemplos de Ático Chassot

(1994, p. 177-178), são interessantes:

A cozinheira, que antes de descascar cebola a coloca no congelador para prevenir

que os produtos voláteis lhe irritem os olhos, conhece a teoria da pressão do vapor,

ou estudou como se dá o arraste de vapores por correntes líquidas, quando opta por

descascar a cebola próximo a uma fluxa de água? Qual o conhecimento matemático

do carpinteiro, quando usa relações trigonométricas (que nem sempre um estudante

de 2º grau conhece) para construir uma casa? [...] quais os conhecimentos de

anatomia que possuem esses personagens tão presentes nas cidades do interior, os

“arrumadores” ou “encanadores” de ossos?

O texto dá uma breve ideia da imensidade de conhecimentos desenvolvidos com a “lida” da

vida, na observação e no fazer cotidiano. Nessa mesma linha, Brandão (1982, p. 31) discorre:

Os “causos” contados durante o dia e na festa: mitos, estórias, lendas, narrativas

antigas, perdidas no tempo, transmitidas de uma geração a outra sem que ninguém

se lembre de um autor ou de uma origem. Os costumes e as crenças do lidar com a

natureza, tanto no trabalho da lavoura quanto no artesanato do algodão. (...) os ditos

dos provérbios com que as pessoas memorizam a sabedoria codificada, mas não

escrita. O saber que há em todas as formas rústicas do trabalhador; na roça, na

cozinha, no tear. (...) da mesma maneira, as bonecas de pano das meninas, a colcha

de algodão das fiadeiras (...) como a um sistema que a tudo unifica e dá sentido

próprio, original: o modo de vida camponês (...).

O aprendizado desses saberes é perpassado de geração para geração através da tradição oral,

havendo poucos registros oficiais. Esses conhecimentos independem de uma educação formal

ou de escolas instituídas, e se dinamizam em seu próprio fazer e refazer. Podemos citar,

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também como exemplo, as nações africanas e suas tradições orais de transmissão de

conhecimentos, o que se caracteriza por uma educação informal, como afirma Nyerere Apud

Gadotti (1995, p. 210-211):

O fato de a África pré-colonial não possuir “escolas” – exceto por curtos períodos de

iniciação em algumas tribos – não implica que as crianças não fossem educadas.

Elas aprendiam vivendo e fazendo. Nas casas e nas fazendas ensinavam-lhes as

habilidades da sociedade e o comportamento esperado de seus membros. Através do

contato com os mais velhos no trabalho, aprendiam que tipos de gramíneas eram

adequadas a este ou àquele propósito [...] Ouvindo as histórias dos mais velhos

aprendiam a história tribal e o relacionamento da sua tribo com outras tribos e com

os espíritos. Assim, e pela adaptação ao costume de compartilhar, eram transmitidos

aos jovens os valores da sociedade.

Esse “vivendo e fazendo” ao qual o autor se refere, está na base das culturas e das tradições

ancestrais dos povos não letrados. Anteriormente ao domínio português, esse conhecimento é

originário das sociedades indígenas. Com a chegada de portugueses e africanos, tal rede de

saberes se interliga e torna esse universo muito mais complexo diverso. Apesar de serem

desprovidas de uma escola ou de uma educação formal, nem por isso, os seus sistemas

educacionais deixavam de ser eficientes. Nesse sentido, o autor continua: (...) “A educação

era, portanto ‘informal’” (...) “Porém, essa falta de formalização não significava que não

havia educação, nem isso afetava sua importância para a sociedade” (Idem). Faundez (Idem,

p. 214), vai mais além na questão da oralidade e da escrita:

Um povo iletrado não é um povo ignorante. O conhecimento que acumulou por

meio da produção de sua vida social se transmite fundamentalmente através da

oralidade e da ação. (...) De um lado se ignora – e, em muitos casos, se nega – a

oralidade como meio privilegiado de expressão comunicativa e, de outro, se ignora e

se nega o conhecimento acumulado e transmitido através da oralidade.

No Brasil, As curas populares, estão presentes desde o domínio da América Portuguesa. Com

a mudança dos tempos, as estratégias de dominação se sofisticam. Avançando um pouco o

tempo, chegamos ao processo higienização, cujo início data da segunda metade do século

XIX, e tinha o objetivo de se contrapor e regular as práticas de cura alternativas. Conceição

(2011, p. 49) esclarece que:

(...) Os órgãos públicos estatais buscavam formas de inserir novas práticas e saberes

médicos entre a população com o intuito de frear a propagação desses rituais de

cura. Essa realidade já se instalara no sudeste e começava a se propagar para as

outras regiões do país. É sabido que os procedimentos de higienização, por exemplo,

já haviam contemplado a região Sudeste do país, desde o final do século XIX se

estendendo até o século XX, contudo, passaram a invadir o recôncavo baiano a

partir dos anos 1940 como o decreto-lei 11.682, que deliberava as intenções do

Governo baiano em regionalizar seus serviços de saúde, bem como instituir

obrigatoriedade para alguns procedimentos na prevenção de doenças, como a

vacinação.

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Nota-se que há uma preocupação das autoridades oficiais em reduzir a atuação das práticas de

cura popular. Podemos inferir que, no universo das benzeções revela-se não apenas o ato em

si de curar, mas uma verdadeira rede de interações sociais que conecta as pessoas, esse

aspecto sempre preocupou o poder instituído. Esses procedimentos fazem parte da

“medicalização” da sociedade. Denilson Lessa dos Santos explica bem esse termo:

Medicalizar é um conceito forjado pelo teórico Michel Foucault. Caracteriza-se pela

presença cada vez maior do Estado nas políticas de saúde, sejam elas, preventivas,

educativas, higiênicas ou curativas. O objetivo dessas políticas era normatizar e

moldar hábitos e comportamentos da população de um modo geral em relação aos

cuidados com a saúde. (2013, p. 148).

Porém, mesmo com a intervenção oficial, mais dura, nas questão dos saberes populares de

cura, a população não deixou de buscar os serviços das rezadeiras e benzedeiras. Essas

curandeiras populares gozavam, e ainda gozam, de um status social difícil de ser desfeito

apenas com decretos e leis oficiais e os exemplos de resistência são inúmeros na história

brasileira. Fato interessante, refletia em ações dos poder local nesse contexto: apesar de os

principais beneficiários dos serviços oferecidos estarem ligados às classes populares, a

questão das trocas e a oferta de serviços extrapolavam essa esfera. Pode-se perceber a

inserção de indivíduos de classes sociais abastadas, no universo das rezas e benzeções, o que

gerava maior respaldo e respeito entre curandeiras e os pares da sua própria comunidade,

refletindo inclusive em decisões dos poderes públicos. Um bom e recente exemplo disso se

encontra na decisão da Câmara Municipal do Município de Rebouças do Paraná:

Um mapeamento feito em 2009 pelo Movimento Aprendizes da Sabedoria (Masa)

identificou em Rebouças, no centro-sul do Paraná, 133 benzedeiras. Segundo o

Censo de 2010, 14.176 pessoas vivem na cidade. O levantamento foi encaminhado

para a Câmara Municipal de Vereadores e deu origem a um projeto de lei para

regulamentar a prática. O texto foi aprovado pelos parlamentares e sancionado pelo

prefeito Luiz Everaldo Zak (PT). Rebouças é o primeiro município do país a

oficializar a prática de benzedeiros, curadores, “costureiro de rendiduras” ou

“machucaduras”. (G1 2012)

Essa citação nos leva a inferir que projetos dessa natureza são viáveis e tendem a beneficiar as

comunidades de diversas regiões do país, através da conservação da memória individual e

coletiva, gerando uma visibilidade maior para os sujeitos envolvidos. Por isso, a investigação

da memória individual desses sujeitos, desagua na memória social, conectando o tecido do

grupo para compreender as relações sociais que se estabelecem a partir desses saberes.

Litoral Norte da Bahia: um laboratório pouco explorado

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No contexto da historiografia brasileira, os estudos sobre os saberes e práticas de

rezadeiras e benzedeiras é recente. Até pouco tempo, as intenções de pesquisa voltadas para

essas temáticas, eram vistas com desconfiança e até ironia. Alguns programas de pós –

graduação em História, ainda hoje, não vêm com bons olhos os temas voltados para esse

campo, e atribuem esses territórios aos estudos folclóricos. Porém, indo na contramão dessas

concepções, percebemos que esse universo se constitui como parte de um legado histórico,

presente em diversas regiões do nosso estado, testemunho da permanência das culturas

africana e indígena que ao longo dos séculos sofreram forte combate seja pela vertente

religiosa, onde sobreviveu aos ataques de cristãos, ou dos sistemas oficiais de saúde, onde

foram criminalizadas a partir do movimento higienista surgido no século XIX. Esses saberes

são parte de uma rede maior denominada “medicinas populares” (Oliveira, 1985). Para ela

não existe apenas uma medicina popular, mas várias formas de cuidados populares com a

saúde, reza e benzeção, seriam, pois, apenas uma parte.

Ao voltarmos o olhar para as comunidades rurais espalhadas por todo o Litoral Norte

da Bahia, chama a atenção o fato de elas se apresentarem-se como verdadeiros arquivos vivos

das experiências do passado indígena e afrodescendente da sociedade brasileira. Muitas

experiências nomeadas pejorativamente como “primitivas” ou “inferiores”, incluindo-se as

práticas voltadas para o universo da saúde física e psíquica do ser humano, continuam levando

bem estar e amenizando o sofrimento de muitas pessoas. Porém, ainda se constitui desafio

considerável rastrear a história religiosa dessas comunidades. Representadas por seus anciãos

e anciãs que guardam as memórias ancestrais, individuais e coletivas, das realizações e

práticas culturais, torna-se imprescindível o estudo da oralidade desses representantes para se

compreender o contexto em que estão inseridos, bem como este os influencia. Ki Zerbo

(2010, p. 56) afirma que:

A história falada constitui um fio de Ariadne muito frágil para reconstituir os

corredores obscuros do labirinto do tempo. Seus guardiões são os velhos de cabelos

brancos, voz cansada e memória um pouco obscura, rotulados às vezes de teimosos

e meticulosos (...) ancestrais em potencial...

Em um exame mais próximo da ancestralidade dessa comunidades, percebe-se que as

iniciativas do poder instituído deixam a desejar no que concerne ao estudo e apoio às

tradições desses grupos que, aos poucos, vão sofrendo rupturas, não desaparecendo por

completo em virtude do esforço de Ongs e de grupos locais que insistem em não abandonar

suas tradições preservando o pouco que ainda resta de sua ancestralidade. De fato, dos

poderes instituídos, não se espera grandes contribuições em relação às tradições ancestrais das

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populações afrodescendentes e indígenas – incluindo sua oralidade e suas práticas culturais e

religiosas – que são seus patrimônios históricos. Esse de fato parece não ser de interesse dos

poderes públicos. Na verdade, “O Estado jamais passa de instrumento da classe dominante; as

iniciativas dos poderes públicos, as decisões dos governos são apenas a expressão da relação

de forças”. (REMOND, 1996). Nessa perspectiva, torna-se um desafio o reconhecimento de

benzedeiras e rezadeiras como sujeitos atuantes no processo de valorização de elementos da

cultura em que estão inseridas.

Um mergulho na historicidade desses processos pode se caracterizar como valiosa

contribuição para a compreensão de um universo ainda tão presente e representativo em nossa

cultura quanto a medicina oficial. O fato de não existir uma tradição sistematizada de saberes

populares, nos faz inferir que esses conhecimentos, cedo ou tarde acabam por se perder ou

pelos menos, grande parte dos seus conteúdos identitários. Essa tarefa torna-se, portanto um

desafio, no sentido de registrar e disseminar esses saberes. Porém, não se trata de uma

sistematização mecânica e “fria”, mas uma busca subsídios nas vivências dos próprios

construtores desses conhecimentos para que se possa traçar um panorama humanizado e

inclusivo desse universo em que o sujeito, o ser humano, é mais importante do que uma mera

sistematização. Em todo esse contexto, chama à atenção a escassez de documentação sobre o

Litoral Norte. Em um exame superficial sobre a questão, encontram-se diminutas referências

a seu respeito. No entanto, a região apresenta-se como um acervo ainda a ser explorado, com

imensas potencialidades de estudo e pesquisa. Em uma análise do Catálogo de Culturas

populares e Identitária da Bahia, organizado pelo Governo do Estado, no capítulo 5, dedicado

à “benzedura, cura, parto e reza”, o Litoral Norte do Estado é completamente invibilizado,

ainda que eventos como a tradicional Lavagem da Igreja de São Francisco em Monte Gordo já

apareça no calendário anual de festas populares da Bahia. Ainda assim, mesmo com o

abandono e o descaso dos poderes públicos, os saberes e práticas de reza e benzeção ocupam

um lugar de destaque nas comunidades da região. Para muitas pessoas que fazem uso das

“medicina populares”, a doença significa muito mais que uma mera debilidade física, apenas

um estado do corpo como entidade material. Os processos de reza e benzeção trazem consigo

um complexo sistema de trocas simbólicas que se expressam nas relações de solidariedade,

construídas a partir dos diálogos entre os detentores dessas práticas e seus beneficiários. Sobre

essa relação, Oliveira (1985, p. 9), esclarece que, (...) “a benção é um veículo que possibilita a

seu interlocutor estabelecer relações de solidariedade e de aliança com os santos, de um lado,

com os homens de outro, e entre ambos simultaneamente”. Na maioria das vezes a produção

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dessa relação se dá entre sujeitos do mesmo grupo social procurando se expressar através da

religião a que pertencem. Nesse mesmo contexto, Conceição (2011, p. 61) afirma: “o ato de

rezar traz consigo grande simbologia, sobretudo quando levado em consideração o seu teor

suplicante e solidário, no qual se objetiva proteger o enfermo das mazelas físicas ou

simbólicas que o estão assolando.” Ouvir os sujeitos da região consiste, portanto, em perceber

olhares voltados para a questão da relação saúde-doença que partirão dos fazedores de uma

proposta de cura oposta ao que se determina por leis rígidas e autoritárias. Repensar as

questões estabelecidas pelo sistema de saúde oficial significa questionar métodos, técnicas e

práticas que, apesar de legitimados e regulamentados pelo poder público instituído, nem

sempre levam bem estar às populações que se estabeleceram nesses espaços. Repensar a

questão dos saberes populares de cura, especificamente a reza e a benzeção, permite que

questões silenciadas desse contexto venham à tona, reforçando e fortalecendo o debate sobre

tais saberes na sociedade contemporânea.

As curas populares e educação formal: diálogos possíveis

A proposta dos mestrados profissionais parte de um diálogo entre os saberes

acadêmicos e a educação básica. Para isso, um universo de temas têm vindo à tona,

produzidos por alunos egressos desses programas. Em minha experiência pessoal no Mestrado

Profissional em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas, da Universidade

federal do Recôncavo da Bahia, tenho me deparado com vários desafios, alguns de difícil

superação. Na construção da minha proposta de trabalho, visando a apresentação de um

produto didático, incitou-me a ideia de conectar os saberes populares de cura, da região

estudada, com as escolas da educação básica. Para isso, desenvolvo a pesquisa em três

distritos do município de Camaçari: Barra do Jacuípe, Monte Gordo e Barra do Pojuca. Nessa

região, além das práticas de cura popular, encontram-se, em determinadas épocas do ano,

vários outros saberes, conectados à memória individual e coletiva de afrodescendentes e

indígenas. Com isso, proponho um mapeamento dessas manifestações, com ênfase para as

benzedeiras e rezadeiras e o alcance social do seus saberes e fazeres. Penso que, como

“professoras da cura”, essas anciãs podem trazer uma gama de experiências educacionais

informais para o cotidiano da sala de aula beneficiando, não só os alunos das instituições

públicas de ensino, mas todo o entorno social que os envolve. Devemos lembrar que muitos

desses estudantes são filhos, netos, bisnetos de rezadeiras, benzedeiras, raizeiras e parteiras,

podendo, eles mesmos trazerem, suas experiências para dialogar com as trajetórias do ensino

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de História na região. Dessa forma, os próprios sujeitos, fazedores das suas próprias

experiências cotidianas ganham voz e visibilidade, eles mesmos quanto alunos e alunas, e

suas “mâes/avós anciãs” que, por muito tempo sofreram e sofrem com as tentativas de

silenciamento e ocultamento.

REFERÊNCIAS

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Educação. São Paulo: Brasiliense, 2003.

__________, O Que é Folclore. São Paulo: Brasiliense, 1982.

Governo do Estado Da Bahia. Catálogo Culturas Populares e Identitárias da Bahia.

Salvador: Assessoria de Comunicação da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, 2010.

CHASSOT, Ático. A Ciência através dos tempos. São Paulo: Moderna, 1999, p. 177-178.

CONCEIÇÃO, Alaíze dos Santos. “O santo é quem nos vale rapaz! Quem quiser

acreditar, acredita!”: práticas culturais e religiosas no âmbito das benzeções.

Governador mangabeira – Recôncavo Sul da Bahia (1950-1970). Dissertação (mestrado),

Salvador: UFBA, 2011.

FAUNDEZ, Antônio. Oralidade e Escrita, São Paulo: Paz e terra, 1989.

FONSECA, Thais Nívea de Lima. História da Educação e História Cultural. In:

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