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CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. 61, p. 63-79, Jan./Abr. 2011 63 Christopher C. Taylor SACRIFÍCIO REI, ESTADO RUANDÊS E GENOCÍDIO Christopher C. Taylor * Em contraste com as análises do genocídio ruandês de 1994, que privilegiam o político, este artigo sustenta que o poder e a política durante o tempo que precedeu o genocídio foram afetadas por noções ruandesas específicas de cosmologia e ontologia. Para entender esse com- ponente “imaginário” da violência, precisamos examinar atentamente as crenças e práticas relacionadas com a instituição da realeza sagrada em Ruanda. Embora essas crenças e práticas foram oficialmente encerradas em 1931, quando o último rei de Ruanda sagrado foi deposto e substituído por seu filho educado por missionários, a sua matriz cosmológica manteve-se em tempos recentes. Isto pode ser visto na literatura popular de rua Ruandesa, que circulou ampla- mente nos dias que antecederam o genocídio. Nessa literatura, o então presidente Juvenal Habyarimana era comparado explicitamente a um rei ruandês. Mais importante ainda para os objetivos deste artigo, foi a comparação mais difusa, implícita, e simbólica entre Habyarimana e um rei sagrado. Em particular, alguns dos elementos-chave neste simbolismo iluminam (e mostram a importância da persistência) da imagem de como um rei (ou presidente) deveria se comportar. Como havia muitos jornalistas ruandeses reacionários (e racistas) que tinham co- meçado a duvidar da capacidade do presidente Habyarimana de ser um “bom rei”, seu “sacrifício”’subseqüente estava, em um sentido simbólico, fortemente predestinado. Palavras-chave: simbolismo, genocídio Ruanda, realeza sagrada. DOSSIÊ INTRODUÇÃO O conceito de Estado foi empregado com frequência em contextos em que caberia usar o ter- mo “governo”, como já observou Radcliffe-Brown (1940) há algum tempo. Autores mais contemporâ- neos, que estudam questões relativas ao estado, tais como Abrams (1988) ou Trouillot (2001), estão de acordo com a observação de Radcliffe-Brown, pois ambos apontam para o modo como o poder, consi- derado em termos mais abrangentes, tem se mostra- do um tema central para a compreensão do Estado. Ao situar o poder no cerne de sua análise, esses autores seguem o caminho traçado por Michel Foucault (1977). Para Foucault não há sujeito indi- vidual construído na ausência de poder, assim como não há instituições sociais, nem construções cultu- rais, que não tragam as marcas de confrontos histó- ricos pelo poder. Em síntese, podemos dizer que o poder aparece como componente essencial tanto na constituição, no nível micro, da subjetividade hu- mana, bem como, no nível macro, da ação coletiva. De acordo com essa perspectiva, o poder permeia de tal modo a experiência humana, que parece não haver lugar para uma instância inter- mediária, pois nada haveria entre os níveis micro e o macro, sem que o poder seja a variável determinante. Por conseguinte, não haveria a ne- cessidade de se lidar analiticamente com nada mais além do poder. O poder está aqui, o poder está ali. Está em toda parte. A história, nesse caso, seria a crônica da luta pelo poder entre indivíduos e gru- pos. Levada à sua consequência lógica, essa pers- pectiva sobre a vida social humana nos parece muito próxima da abordagem Hobessiana da “guer- ra de todos contra todos”. Contudo, é bem possível que essa visão seja inspirada por uma cultura fortemente assentada na ontologia individualista da sociedade capitalis- ta ocidental. Poderíamos questionar se o poder, realmente, cobre todos os fatos, se nos diz tudo de que necessitamos saber para a análise social. Para antropólogos tais como Pierre Clastres, é bastante evidente que alguns povos rejeitam a organização da sua sociedade tendo como único eixo o poder, * Doutor em Antropologia Social pela Universidade de Virginia. Especialista em antropologia simbólica e médica. 4167 - Cliff Road South. Birmingham. AL 35222. USA [email protected]

SACRIFÍCIO REI, ESTADO RUANDÊS E GENOCÍDIO DOSSIÊ · “sacrifício”’subseqüente estava, em um sentido simbólico, fortemente predestinado. Palavras-chave:€ simbolismo,

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Christopher C. Taylor

SACRIFÍCIO REI, ESTADO RUANDÊS E GENOCÍDIO

Christopher C. Taylor*

Em contraste com as análises do genocídio ruandês de 1994, que privilegiam o político, esteartigo sustenta que o poder e a política durante o tempo que precedeu o genocídio foramafetadas por noções ruandesas específicas de cosmologia e ontologia. Para entender esse com-ponente “imaginário” da violência, precisamos examinar atentamente as crenças e práticasrelacionadas com a instituição da realeza sagrada em Ruanda. Embora essas crenças e práticasforam oficialmente encerradas em 1931, quando o último rei de Ruanda sagrado foi deposto esubstituído por seu filho educado por missionários, a sua matriz cosmológica manteve-se emtempos recentes. Isto pode ser visto na literatura popular de rua Ruandesa, que circulou ampla-mente nos dias que antecederam o genocídio. Nessa literatura, o então presidente JuvenalHabyarimana era comparado explicitamente a um rei ruandês. Mais importante ainda para osobjetivos deste artigo, foi a comparação mais difusa, implícita, e  simbólica entre Habyarimanae um rei sagrado. Em particular, alguns dos elementos-chave neste simbolismo iluminam (emostram a importância da persistência) da imagem de como um rei (ou presidente) deveria secomportar. Como havia muitos jornalistas ruandeses reacionários (e racistas) que tinham co-meçado a duvidar da capacidade do presidente Habyarimana de ser um “bom rei”, seu“sacrifício”’subseqüente estava, em um sentido simbólico, fortemente predestinado.Palavras-chave:  simbolismo, genocídio Ruanda, realeza sagrada.

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INTRODUÇÃO

O conceito de Estado foi empregado comfrequência em contextos em que caberia usar o ter-mo “governo”, como já observou Radcliffe-Brown(1940) há algum tempo. Autores mais contemporâ-neos, que estudam questões relativas ao estado, taiscomo Abrams (1988) ou Trouillot (2001), estão deacordo com a observação de Radcliffe-Brown, poisambos apontam para o modo como o poder, consi-derado em termos mais abrangentes, tem se mostra-do um tema central para a compreensão do Estado.Ao situar o poder no cerne de sua análise, essesautores seguem o caminho traçado por MichelFoucault (1977). Para Foucault não há sujeito indi-vidual construído na ausência de poder, assim comonão há instituições sociais, nem construções cultu-rais, que não tragam as marcas de confrontos histó-ricos pelo poder. Em síntese, podemos dizer que opoder aparece como componente essencial tanto naconstituição, no nível micro, da subjetividade hu-

mana, bem como, no nível macro, da ação coletiva.De acordo com essa perspectiva, o poder

permeia de tal modo a experiência humana, queparece não haver lugar para uma instância inter-mediária, pois nada haveria entre os níveis microe o macro, sem que o poder seja a variáveldeterminante. Por conseguinte, não haveria a ne-cessidade de se lidar analiticamente com nada maisalém do poder. O poder está aqui, o poder está ali.Está em toda parte. A história, nesse caso, seria acrônica da luta pelo poder entre indivíduos e gru-pos. Levada à sua consequência lógica, essa pers-pectiva sobre a vida social humana nos parecemuito próxima da abordagem Hobessiana da “guer-ra de todos contra todos”.

Contudo, é bem possível que essa visão sejainspirada por uma cultura fortemente assentadana ontologia individualista da sociedade capitalis-ta ocidental. Poderíamos questionar se o poder,realmente, cobre todos os fatos, se nos diz tudo deque necessitamos saber para a análise social. Paraantropólogos tais como Pierre Clastres, é bastanteevidente que alguns povos rejeitam a organizaçãoda sua sociedade tendo como único eixo o poder,

* Doutor em Antropologia Social pela Universidade deVirginia. Especialista em antropologia simbólica e médica.4167 - Cliff Road South. Birmingham. AL 35222. [email protected]

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rejeitando também a ideologia de senhor e escra-vo, bem como as narrativas que lhe são correlatas(1974). A partir do seu trabalho com povos daAmazônia, Clastres mostra que muitos povos recu-sam a dicotomia mandar e obedecer, e o poder deum sobre muitos. Os caciques Guayaki, por exem-plo, têm prestígio e podem praticar a poliginia, po-rém devem ser eloquentes, persuasivos e genero-sos. Ainda assim, apesar dos seus dons de orató-ria, seus discursos usualmente são ignorados e, porconta de sua generosidade, normalmente eles estãoentre os membros mais pobres das suas comunida-des. Para esses povos, aquilo que sempre tem sidovisto como ausência, a falta de Estado, deveria servisto como uma presença, a escolha de uma vidaem que nenhum ser humano detém o poder sobreo outro. Apesar de essas sociedades terem política,é um tipo de política indissociavelmente vinculadaao social. Usando os termos de Clastres, essas sãosociedades contra o estado (1974).

Paralelamente a Clastres, no trabalho deMarshall Sahlins sobre os “modos de produçãodomésticos” (1972), vemos que, em contraste comtodas as descrições das economias “primitivas”,vistas como economias de privação, as pessoas queefetivamente vivem nessas sociedades conseguemgarantir sua subsistência trabalhando, em média,menos de três horas por dia. Trata-se de economi-as enraizadas e incorporadas no social, sendo essefator social sua força motriz, ao invés de ser o seuresultado. São economias contra o economicismo.

Segundo trabalhos mais recentes deSahlins, a preocupação de inspiração foucaultianacom o poder é influenciada por uma noção do in-divíduo caracterizado como perenemente inadequa-do, algo que encontra sua origem e ímpeto nacosmologia judaico-cristã (1996). Sahlins afirma queesses pressupostos, vinculados à cultura ociden-tal, subjazem aos modelos utilizados pelas ciênci-as sociais, baseados em considerações axiomáticasacerca do indivíduo, visto como um ser que pos-sui necessidades que lhe são inerentes. Socieda-de, então, torna-se ou o instrumento pelo qual asnecessidades individuais podem ser satisfeitas –como em Malinowski – ou o mecanismo através

do qual demandas individuais conflitantes podemser reguladas e mantidas sob controle por cons-trangimento coletivo e pressão – como emDurkheim. Noções similares são retomadas porFoucault e outros autores, que consideram o con-flito como o fundamento de toda a interação hu-mana. De acordo com essa visão, lutamos uns contraos outros na vida social e lutamos mesmo conosco,pois a consciência de cada indivíduo seria tam-bém marcada pela divisão e pelo conflito. EmboraFoucault se distinga de Durkheim em muitos as-pectos, ambos compartilham essas noçõesontológicas. Em Durkheim, a base da moralidadeestá no coletivo, enquanto, para Foucault, os cha-mados discursos morais não existem fora do eixode poder e conhecimento, par que reflete e repro-duz as clivagens entre os poderosos e os destituí-dos de poder. Ainda que possa haver diferençaem suas posições acerca dos mecanismos de re-pressão, os dois compartilham de uma visão fun-damental: para Durkheim, as representações cole-tivas são coercitivas e subjugam os indivíduos; paraFoucault, a sociedade é um dispositivo discipli-nar. Nos dois casos, o self continua a ser o lócusdo desejo, e o coletivo, o lócus de regulação dessedesejo ou de seu controle. Se Clastres e Sahlinsestão corretos, e eu penso que estão, deve haver,além de sociedades que recusam categoricamenteo Estado e aquelas que recusam o economicismo,sociedades com Estado que, no entanto, não po-dem ser adequadamente compreendidas através dalente do Homo Economicus ou Homo Politicus

universal. Tais sociedades podem ter sido bemnumerosas no mundo não-ocidental, e é provávelque a sociedade pré-moderna do Ruanda fosse umadelas. Além disso, meu segundo argumento é que,se quisermos compreender as especificidades soci-ais e culturais da deflagração de uma guerra e comoela acontece em tais estados não-ocidentais, preci-samos ter em conta não apenas os próprios aconte-cimentos da guerra, o cálculo político e econômicodos indivíduos e os seus discursos conflitantes.Precisamos entender também os fundamentosontológicos da personalidade moral nessas socie-dades e como ela se revela em tempos de guerra.

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Neste caso específico, tentarei mostrar que os ecosdessa personalidade moral, tal qual evidenciadosna instituição da realeza sagrada e nos rituais doEstado ruandês pré-modernos, foram ouvidos naguerra genocida conduzida pelo moderno Estadoruandês contra seus cidadãos tutsis. É importantefrisar que ocorreram muitas transformações emRuanda ao longo dos últimos cem anos, resultantesda experiência do colonialismo, da evangelizaçãocristã, e de sua integração na economia capitalistamundial. Isso não significa, entretanto, que todasas noções pré-coloniais de pessoa tenham sido apa-gadas, em especial quando elas dizem respeito àrelação do líder com a sua base política.

A VIOLÊNCIA E O ESTADO

Quando a violência é conduzida pelo Esta-do, não se medem esforços para legitimá-la de acor-do com as concepções morais locais, que estão emharmonia com os códigos culturais subjacentes.Isso significa que, em um nível, a violência organi-zada pelo estado é institucionalizada e sustentadapor ideologias que justificam atos destrutivos doestado como necessários à manutenção do bem-estar coletivo. Frequentemente, os rituais públicosservem como os meios pelos quais essas ideologi-as são validadas e comunicadas à massa de cida-dãos. Em outro nível, mais importante para osnossos propósitos, esses rituais veiculam mensa-gens – que não são tão facilmente apreensíveis –que refletem desejos e sentimentos profundos dacomunidade. Esses últimos são menos acessíveisà percepção consciente, sendo mais arquetípicospor natureza, e menos susceptíveis de serem in-terpretados pelos atores sociais como sendo porta-dores de conteúdo ideológico óbvio e claro.

Seguindo a discussão de Aijmer sobre vio-lência, (2000), cujo esquema de análise assemelha-se ao utilizado por Godelier (1996) em um assuntoaparentemente sem conexão – as ambiguidades não-resolvidas no debate de Mauss sobre o dom –, pode-se postular a existência de três dimensões na vio-lência do Estado e nos rituais políticos que a

performam ou servem para justificá-la: o imaginá-rio, o simbólico e o real. O nível menos apreensívelé o que Godelier denomina de “imaginário”. O ima-ginário consiste em símbolos icônicos, mais oumenos organizados em códigos culturais difusos.Tais códigos constituem a base do imaginário socialde mundos possíveis. Esse material é apenas intui-tivamente conhecido pelos atores sociais e consisteno que Roy Wagner (1986) chamaria de “símbolosque se mantêm por si mesmos”, ou, em outras pa-lavras, símbolos que não são facilmente traduzíveisnuma linguagem verbal ou discursiva. Tais símbo-los e códigos difusos constituem o corpo dos pres-supostos tácitos de qualquer comunidade sobre simesma e sobre o mundo, ao mesmo tempo em quesutil e quase imperceptivelmente revelam seus me-dos e desejos mais profundos. Esse nível é o me-nos acessível aos próprios atores sociais e à suaexegese. Quando alguém de fora indica sua formamaterial para os atores sociais que efetivamente ovivenciam, suas respostas verbais tendem a tomar aforma de racionalizações ad hoc ou elaborações se-cundárias (Aijmer, 2000). Apesar da relativainacessibilidade desse fundamento icônico do ima-ginário para as pessoas que o encarnam, ele prece-de e condiciona suas reflexões mais conscientes. Aeste respeito, Godelier explicitamente marca seu afas-tamento tanto de Lacan quanto de Lévi-Strauss, queveem o simbólico como logicamente anterior tantoao imaginário quanto ao real (1996).

No nível seguinte, que Aijmer denomina de“discursivo” e Godelier de “simbólico”, elementosverbais são mais importantes. É nesse nível que osfenômenos de agência se manifestam, quando osatores sociais verbalizam suas intenções e encenamessas intenções em consonância com os fins prag-máticos declarados. Esse é o domínio da lingua-gem, do discurso e da narrativa. As pessoas geral-mente são capazes de identificar e verbalizar as ide-ologias de seus partidários e opositores, assim comopodem explicar os fins pragmáticos de um enunci-ado ou ação específica. Nessa instância, as estraté-gias são mais aparentes, os atores sociais avaliam asconsequências de um curso de ação comparando-ocom outros, e depois agem em conformidade com

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seu julgamento. Esse é também o nível em que de-sacordo, conflito e luta são mais evidentes.

O nível mais visível da violência do Estado éo que Aijmer chama de “etológico” e quecorresponde ao que Godelier chama de “real”. Aviolência tem efeitos físicos e psicológicos muitoreais sobre as pessoas contra as quais é aplicada –sofrimento, dor, ferimentos e morte. No entanto,mesmo esse nível depende de sua interação com osoutros dois para que os atos violentos possam atin-gir a plena amplitude de significados sociais. Podenão ser suficiente, por exemplo, matar o oponente;pode ser necessário mutilar, destruir, ou alienar ocorpo de tal forma que o espírito da vítima nãoretorne para se vingar do autor da violência. Comoafirma Aijmer, enquanto a morte física pode serirrevogável e inegociável, a morte social não (2000).

Embora tanto Godelier quanto Aijmer argu-mentem em favor da primazia do imaginário, certa-mente esses três níveis não são hermeticamente iso-lados uns dos outros. É possível que as pessoastomem consciência dos símbolos icônicos que cons-tituem o seu imaginário. Alguns membros de umacoletividade – como acontece com os indivíduos napsicanálise – podem ter um “prise de conscience”,em que os níveis mais profundos de seus medos edesejos socialmente compartilhados se manifestam.Quando isso acontece, o icônico entra no domíniodo simbólico e torna-se suscetível à verbalização. Opré-discursivo passa para o discursivo. De modosimilar, esse processo pode seguir o sentido inver-so: um material discursivo que foi verbalizado soba forma de enunciado ideológico e certas narrativaspodem se converter em algo tão habitual que se tor-nam quase inconscientes. O que um dia foi ditoexplicitamente e foi debatido torna-se tácito e implí-cito, unindo-se à série de outros fenômenos queconstituem o habitus ou as “coisas que não preci-sam ser ditas” (Bourdieu, 1977). Finalmente, é igual-mente possível que, no nível do real ou da etologia,o desempenho da violência radical re-constitua aordem social e cultural. Nesse caso, as ideologiasmais antigas e as camadas culturais mais profundaspodem perder a sua relevância, sendo substituídaspor algo novo. É por isso que precisamos tanto de

análises históricas quanto de análises sociais. Nocaso de Ruanda, a fim de compreendermos, aomenos parcialmente, a mudança do imaginário parao simbólico e o real, precisamos conhecer algo so-bre sua história como estado.

O ESTADO PRÉ-MODERNO DE RUANDA

A entidade política Ruanda tem sua funda-ção como Estado no século XVII, quando RuganzuNdori, vindo de Karagwe-Ndorwa (atual Tanzânia,leste e sudoeste de Uganda), adentrou a região cen-tral do que é hoje Ruanda e aí estabeleceu um rei-no (Vansina, 2000). Antes de sua chegada a Ndori,existiam nessa área pequenas organizações políti-cas independentes. Eles consistiam tanto de soci-edades sem Estado quanto de estados como o deRenge, supostamente o mais antigo, quecorrespondia à maior parte da atual Ruanda, comexceção da área situada no leste (Mamdani, 2001,p.60-63). Por fim, Ruanda acabou por absorveressas organizações políticas para se constituir noestado que agora conhecemos, com seus atuais li-mites, ainda que, ao norte e ao leste, a atuação deforças coloniais tenha sido necessária para sua efe-tiva integração (Nahimana, 1993). O reino deRuanda existiu até a abolição da monarquia em1962. Os reis em Ruanda, durante o decorrer des-ses quatro séculos, foram sempre membros do gru-po dominante, os pastoralistas Tutsis.

De acordo com Jan Vansina, a existência deestratificação social era uma característica presenteem muitos países da África Central antes do séculoXVII (Vansina, 2000). Na época da conquista Ndorios sistemas políticos da região já se caracterizavampor uma considerável presença de diferenciaçãosocial: achados arqueológicos mostram diferençasno uso de cerâmica entre membros da elite e aque-les que supostamente eram plebeus (2000, p.30).Com o estabelecimento do reino Nyiginya sob do-mínio de Ruganzu Ndori e a incorporação das áreasvizinhas, essas tendências hierárquicas foram acen-tuadas (2000). Os processos de diferenciação nointerior do Estado ruandês produziram três grupos

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étnicos distintos, com diferenças de status entre eles,bem como dentro de cada um deles. Twa, grupo decaçadores-coletores e ceramistas, era o mais desva-lorizado entre eles. O grupo Tutsi, que formava aclasse dominante, era, sem dúvida, o mais privile-giado. Pastores tutsis de estrato mais baixo poucose diferenciavam, em termos de riqueza, da grandemassa de Hutus, que eram agricultores. Porem oshutus do início do século XIX eram pouco favoreci-dos em termos de privilégios políticos e foram sub-metidos a uma forma de trabalho do tipo corveia(regime de trabalho forçado) conhecida comouburetwa, que exigia dois de cada quatro dias deseu trabalho. Por isso, os hutus eram mais vulnerá-veis a catástrofes ecológicas, bem como àquelas cau-sadas pelo ser humano. No momento em que oseuropeus entraram nessa região no final do séculoXIX, as diferenças sociais em Ruanda tornaram-semais acentuadas; muitos hutus não tinham terra ese encontravam em situação de pobreza (Vansina,2000). O colonialismo não induziu o processo deetnogênese, mas contribuiu para deteriorar as coi-sas ao adicionar a ideologia do determinismo bio-lógico à situação. Ruanda, nessa época, possuíamuitas das características implícitas e explícitasapresentadas no retrato negativo do estado pintadopor Pierre Clastres.

Entretanto, havia também em Ruanda, noperíodo pré-colonial, espaço para a emergência deprocessos nacionalistas que geravam solidarieda-de. Uma “comunidade imaginada”, no sentidousado por Anderson (1991) estava sendo forjada,mas ela se cristalizava em torno de um núcleoontológico do holismo e da hierarquia (Kapferer,1988). Nesse sistema social, cada pessoa avaliavaprimeiro sua própria posição hierárquica em rela-ção às de outras pessoas, interagindo de acordocom essa relação. Sem dúvida, algumas das con-dições mencionadas por Anderson não se apli-cam à antiga Ruanda: não havia nada parecido como “capitalismo editorial”, por exemplo, antes dachegada dos missionários católicos europeus. Noentanto, uma linguagem vernácula, Kinyarwanda,era amplamente empregada na área e no processode substituição de outras línguas. Além disso, mui-

tos ruandeses, fossem hutus, tutsis, ou twas, ser-viram no exército e participaram nas guerras deexpansão do reino, beneficiando-se materialmentedelas. No entanto, seria errado deduzir, com baseno que foi exposto anteriormente, que o Estado-nação de Ruanda pré-colonial, uma quase-nação,deveria ser entendida exclusivamente pelas lentesdo poder e da ideologia. Centrar a análise apenasna competição entre indivíduos e grupos envolvi-dos na luta pelo poder não permite que tenhamosuma compreensão mais aproximada dasespecificidades culturais do Estado ruandês.Tampouco revela as dimensões ontológicas maisprofundas, responsáveis pela construção do ser eda noção de pessoa nesse Estado. Muitosruandeses, por exemplo, acreditavam na eficáciaritual da instituição da realeza e seus efeitos sobrea fertilidade agrícola, bovina e humana, estando orei investido de responsabilidades rituais impor-tantes. À semelhança do que Sahlins e Clastresobservaram com a economia e a política em outrassociedades não-ocidentais, a política em Ruandaestava profundamente enraizada no contexto soci-al e não poderia ser vista separada da religião e dacosmologia. É somente pela compreensão dessesaspectos que podemos entender plenamente a na-tureza da violência dirigida pelo Estado ruandês.

VIOLÊNCIA E IMAGINÁRIO EM RUANDA PRÉ-COLONIAL

O rei ruandês infligia morte aos inimigosdo reino, tanto dentro como fora de suas frontei-ras, mas de igual importância eram suas ações ri-tuais, consideradas capazes de controlar a chuva etrazer fertilidade para a terra de Ruanda, seu gadoe seus cidadãos. De acordo com as noçõescosmogônicas ruandesas, o rei era responsável porassegurar a descida do imaana à terra. Segundod’Hertefelt e Coupez, imaana refere-se a:

Uma poderosa qualidade, a principal dinâmicada vida e da fecundidade, da qual os ruandesestradicionais procuravam se apropriar por meiode técnicas rituais adequadas. Em alguns contos

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cosmogônicos, esta mesma força é concebida comouma entidade volitiva consciente, que poderia senomear de Divindade. Mas nenhuma religião sedirige a esta hipóstase antropomórfica precisamen-te porque o termo imaana não se refere principal-mente a um ser pessoal a quem se deve honra esúplica, mas um fluido difuso que deve ser captu-rado. A qualidade da imaana está associada a umavasta categoria de pessoas e objetos através de cujamediação ruandeses tradicionais achavam quepodiam canalizar seus efeitos. Imaana era tidocomo investido em certas árvores e plantas, resi-dências reais e túmulos, animais e objetos usadosna adivinhação, assim como em talismãs de pro-teção. Adivinhos, especialistas em rituais e espí-ritos ancestrais também eram considerados comoencarnando o imaana. Mas, de acordo com as con-cepções dos ruandeses, é o rei quem é o detentorsupremo do líquido fecundante, imaana; o ritualreal nada mais era do que a descrição das técnicasque lhe permitiam dirigir os seus efeitos para be-neficiar todo o país (1964, p.460).

O desejo coletivo pela fertilidade da terra,das pessoas e dos animais teve precedência sobretodos os outros, e o papel do rei em assegurar afertilidade era percebido como indispensável. Atra-vés dos rituais prescritos pelo código dinástico(ubwiru), o mwami presidia a descida do imaanado céu à terra. O poder do rei estava subordinadoa essa realização, ao grau em que ele conseguiaencarnar imaana e servir como seu condutor. Issose manifestava em sua relação com os líquidos,principalmente em seu papel como homem dachuva (rainmaker) para o reino; em caso de secaprolongada ou de alagamento, ele se arriscava aperder o trono. Esperava-se dele que mantivesse apureza ritual, erradicasse a impureza (ishyano) epossuísse um corpo percebido como adequado paraservir como canalização para o imaana. Aquelesque, dentro do reino, eram considerados comopessoas que atuavam como obstáculo ao imaana,“seres bloqueados”. Mulheres que tinham atingi-do a idade de procriar sem desenvolvimento demamas (impenebere) ou aquelas que nunca tinhammenstruado (IMPA) eram tidas como inimigas dorei, sendo sua responsabilidade eliminá-las. Gadoe leite emanavam do rei tal qual um avatar doImaana na terra. A produção de mel dependia desua intervenção ritual. Os líquidos do seu corpotambém eram tidos como poderosos. Sua saliva

era o mais importante repositório de imaanadivinatório do reino (Heusch, 1982, p.118).Ritualistas especiais estavam encarregados de ob-ter e guardar a saliva real, inserindo-a seguidamentena boca do touro sacrificial usado no processo deadivinhação. Seu sêmen estava investido de po-der, como pode ser visto a partir dos inúmeroscasos de cópula ritual nos rituais reais. Mesmoquando os reis morriam, seus corpos continua-vam a possuir imaana e a transferi-lo para Ruanda;por isso, as tumbas reais estavam localizadas emuma colina cujos inúmeros córregos confluíam paraformar a nascente do rio Nyabugogo, que possuíagrande importância ritual. Com a dissolução doscorpos dos reis, sua imaana era reciclada no rioNyabugogo, e essas águas eram dadas ao gado realdurante o ritual da “rega” (Taylor, 1988). Final-mente, o sangue do rei também era lócus de po-tência, pois o mwami era o último recurso em ter-mos de vítima sacrificial do reino.

Um rei sacrificial, ou um substituto paraele, era chamado de umutabazi (libertador). Essafunção foi iniciada por um antepassado de Nyiginyachamado Ruganzu Bwimba, que escolheu sacrifi-car-se para salvar Ruanda da conquista pelo reinovizinho de Gisaka (Coupez; Kamanzi, 1962, p.87-104). Touros substituíam o rei em sacrifícios co-muns. Mas houve momentos de perigo ritual tãoextremos, que nem o sangue de boi real, nem osangue dos mortais comuns podiam manter aber-to o canal de beneficência entre o céu e a terra.Eram momentos em que a sobrevivência da Ruandainteira estava em questão. Nesses casos, adivinhosdeterminavam quem, entre o círculo real, devia sesacrificar para o bem da Ruanda. Muitas vezes, asorte caia sobre o próprio rei, pois seu sangue erao mais poderoso. O derramamento do sangue realsobre o território inimigo tinha com o objetivo en-venenar o território para seus habitantes, tornan-do-o presa fácil para sua conquista por Ruanda.Com efeito, o sangue de um umutabazi iria “com-prar” a terra para Ruanda.

O efeito de sangue real derramado em sacri-fício, portanto, assemelhava-se ao de duas figurasmalditas: impenebere (mulheres sem mamas) e do

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IMPA (mulheres com amenorreia), cujo sangue,quando derramado sobre território inimigo, era tidocomo empecilho à fertilidade, Em certos casos,portanto, o rei pode ser considerado o repositóriofinal de ishyano (impureza). Parte desta impurezaera resultante da associação entre a realeza e o in-cesto. Por exemplo, os primeiros reis de Ruanda,reis míticos de origem celeste, eram tidos comoadeptos do incesto entre irmãos. Essa prática dehiper-endogamia manteve o sangue da realeza flu-indo dentro de um circuito fechado. Também ex-cluiu a possibilidade de partilha dos privilégiosda elite com elementos de fora. Mais tarde, outrorei mítico, chamado Gihanga, instituiu a práticade hiper- exogamia, ao se casar com mulheres defora de sua própria classe celestial. Os primeirosdescendentes de Gihanga continuaram essa práti-ca, casando com mulheres dos três clãs autóctones(abasangwabutaka): Zigaaba, Singa, e Gesera. Devi-do a esses reis exogâmicos, o sangue, que até entãoestava restrito a um padrão de consanguinidade real,começou a fluir de forma mais aberta (Taylor, 1988).Ruganzu Bwimba deu fim a essa prática, quando oirmão de sua mãe, um Singa, se recusou a se sacri-ficar para o bem de Ruanda, apesar de ter sido es-colhido para fazê-lo através da adivinhação. Parasalvar Ruanda, Ruganzu Bwimba ofereceu-se no seulugar, mas, pouco antes de sua morte sacrificial, eledecretou que nunca mais os futuros reis da Ruandadeveriam casar com grupos que eram de origem au-tóctone. Como resultado dessa ruptura repentina entreseres celestiais e autóctones, o sangue deconsanguinidade real, depois Ruganzu Bwimba,voltou a fluir dentro de um circuito fechado. Ruandatinha definitivamente dado as costas à possibilidadede igualdade entre “seres celestiais” e “autóctones”.

A lenda do Ruganzu Bwimba mostra que o“celestial” Nyiginya teve de enfrentar o problemada legitimação perante uma população jáestabelecida. Ao casar com alguém desse grupo –representado pelos clãs autóctones, Singa, Zigaabae Gesera –, Nyiginya poderia finalmente reivindi-car a existência de laços de parentesco que o enrai-zariam na terra. Contudo, pretendendo limitar aposição privilegiada a uma classe restrita, por fim,

foi necessário que renunciasse à sua aliança comautóctones, assim que seu domínio sobre a terratornou-se seguro. Como compensação por essaredução na partilha de sangue real, RuganzuBwimba introduziu o ritual de derramamento dosangue real para o bem de toda Ruanda. O objeti-vo dessa inovação pode ter sido o de colocar arealeza acima das veleidades, das rivalidades e dasalianças entre clãs, mas também teve comoconsequência o isolamento da realeza ruandesa ede sua política, algo que a aproximou de um Esta-do-nação; uma abstração pela qual cada cidadão,seguindo o exemplo do rei, deveria estar dispostoa sacrificar-se. O sangue de Ruganzu Bwimba su-postamente salvou Ruanda de Gisaka,1 mas tam-bém contribuiu para a criação de uma identidadecoletiva em Ruanda, uma identidade baseada narígida divisão hierárquica, de base étnica, dos pri-vilégios políticos.

As responsabilidades rituais do rei ruandêsincluíam aqueles relacionados à guerra e à violên-cia. O sucesso nesses esforços também dependiado grau em que o rei representava adequadamentesua relação com imaana. Ruanda pré-colonial es-tava localizada em uma área onde havia outros es-tados. Esses estados competiam pelo controle daterra e invadiam uns os territórios dos outros pararoubar gado. A guerra era, por conseguinte, umadas principais preocupações do Estado ruandêse, possivelmente, uma de suas principais forçasde sustentação. Alianças entre estados nunca fo-ram respeitadas por muito tempo, e alguns esta-dos, como Ruanda e Burundi, pareciam estar qua-se perpetuamente em guerra. No entanto, todosesses estados compartilhavam instituições estru-turais similares às da realeza sagrada e todos elesrealizavam rituais em que o uso ocasional de vio-lência desempenhava um papel importante. Entreos rituais da realeza em Ruanda, havia vários es-pecificamente voltados para a guerra, tais como o

1 Embora muitas das lendas que contam esse evento lou-vem o sacrifício de Ruganzu Bwimba como o eventoque salvou Ruanda de Gisaka, na verdade, o que aconte-ceu realmente foi uma derrota de Ruanda, na qual o reifoi morto e o trono de Ruanda foi assumido por Gisaka(Vansina, 1962).

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enfeite do tambor real com os órgãos genitais deinimigos mortos (d’Hertefelt; Coupez, 1964). Emoutros rituais da realeza, ainda que não direta-mente relacionados à guerra, combates rituaiseram travados contra um governo vizinho, nosquais um pequeno número de habitantes da re-gião era capturado e sacrificado.

Figura 1.1 Ingratidão Tutsi “Habyarimana morrerá em marçode 1994” (Kangura, Dezembro 1993, n. 53, p. 3)Kagame: Vamos para Kigali

Habyarimana: Fiz de tudo para contentar os Tutsis Kagame: Equem pediu para você fazer?

O IMAGINÁRIO VIOLENTO NO ESTADORUANDÊS MODERNO: King Habyarimana -umutabazi?

O evento inicial que desencadeou ogenocídio de Ruanda foi o assassinato do presi-dente Juvenal Habyarimana, quando seu aviãoparticular foi abatido perto do aeroporto de Kigalipor um míssil do tipo superfície-ar. Embora ogoverno de Habyarimana estivesse em guerra há

quase quatro anos com a Frente PatrióticaRuandesa, esse evento transformou a dinâmicadas hostilidades, que passou de um processo si-métrico esquismogênico (Bateson, 1958) a umprocesso assimétrico. A dinâmica tácita subjacenteà violência tinha sido, até então, “Daremos o tro-co”. Subitamente, tornou-se: “Vamos eliminar to-

dos vocês.” Precedendoessa mudança e, até certoponto, catalisando-a, esta-va o simbolismo da reale-za e sacrifício umutabazi.

Ninguém jamais as-sumiu a responsabilidadepela morte do Presidente,mas as duas hipótesesmais plausíveis atribuema responsabilidade a extre-mistas hutus, seguidoresdo próprio Habyarimana,ou a membros do gruporebelde na época, a FrentePatriótica Ruandesa (RPF).Felip Reyntjens, porexemplo, antigo adepto datese que culpabiliza extre-mistas hutus, mais recen-temente tem dado o cré-dito à tese RPF (Reyntjens,

1999). Embora eu me incline mais para a expli-cação que responsabiliza extremistas hutus, atese da responsabilidade do RPF também trazelementos que merecem consideração. A mortedo presidente Habyarimana poderia ter servidoaos interesses políticos dos extremistas, assimcomo conviria também aos interesses do RPF.Muitos dos extremistas, por exemplo, estavamconvencidos de que Habyarimana tinha se tor-nado “brando” com relação aos tutsi e que preci-sava, portanto, ser substituído por alguém maisinequivocamente “genocida”, como vimos namensagem veiculada na charge anterior. Quantoà RPF, ela via o presidente como um obstáculo,pois ele seria responsável pelo atraso na plenaaplicação dos Acordos de Arusha, o que impe-

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dia sua participação em um governo de coalizão.Nos dois anos anteriores à morte de

Habyarimana, o caminho estava sendo preparadona mídia impressa de Ruanda para o sacrifício“rei”. Vemos os primeiros indícios disso na im-prensa de oposição, que retratava o presidente comoum governante tirânico e incompetente do qual opaís faria bem em se livrar. Posteriormente, até osextremistas hutus começaram a abandoná-lo, comoé mostrado no desenho reproduzido, impresso darevista extremista hutus Kangura, que prevê a mortedo presidente com quatro meses de antecedência!Jornalistas ruandeses atacavam o presidente de umaforma que representava uma ruptura radical com atimidez que havia prevalecido durante a décadade 1980. A mudança de tom se devia, em parte, àiniciativa de democratização apoiada pela França eoutras potências ocidentais, que começou duranteo final da década de1980 e com a qualHabyarimana e o MRND foram forçados a concor-dar no início da década de 1990.2 A imprensatornou-se livre e aberta, mas a flexibilização sú-bita das restrições não coincidiu com um au-mento correspondente da preocupação com ospadrões jornalísticos. Insinuações e calúnias, ve-ladas e não tão veladas, bem como chamadaspara o assassinato, caracterizaram a mídia im-pressa e falada dessa época (Chrétien, 1995).Frequentemente, os seguidores do presidente,que ocupavam muitas das posições-chave namídia nacional, incluindo o controle da infame

estação “radio do ódio”, Rádio e Televisão Livrede Mille Collines (RTLM), faziam uso do artifí-cio e do exagero em notícias contra os críticosdo Presidente e seus rivais. Os críticos do presi-dente, por sua vez, não agiram de um modo muitodiferente, fazendo uso de campanhas de difa-mação, da obscenidade, utilizando-se de modobastante pródigo da desinformação (1995).

A comparação entre Habyarimana e umrei tradicional sagrado na literatura popular po-lítica não era sem ironia, pois o Presidente erahutu (todos os reis anteriores tinham sido tutsi)e muito da ideologia declarada do seu partido, oMovimento Nacional Revolucionária pour leDevelopement et la Démocratie (ECRM),3 eraantimonarquista e, ao menos superficialmente,igualitária. No entanto, muitas das representa-ções do presidente Habyarimana e outras figu-ras políticas importantes na literatura popular(entre 1990 e 1994) mostram a influência da ins-tituição da realeza. Retrospectivamente, não édifícil perceber alguma equivalência entre a pre-sidência de Ruanda e a antiga monarquia do país.Quando comecei meu primeiro período de tra-balho de campo em Ruanda, em1983, por exem-plo, rapidamente tornei-me ciente do “culto dapersonalidade” em torno do presidenteHabyarimana e da natureza autocrática do seuregime. Na época, Habyarimana era candidato àreeleição, e os seus partidários estavam muitoocupados com a campanha do MRND, emborahouvesse pouca chance de perder a eleição, poisele era o único candidato, e o MNRD, cuja basede poder se concentrava no noroeste de Ruanda,na região natal de Habyarimana, era o único par-tido legalizado no país. No entanto, os resulta-dos das eleições de 1983 surpreenderam e desa-fiaram a credulidade dos observadores, princi-palmente dos críticos, pois Habyarimana foi de-clarado vitorioso com o incrível percentual 99%dos votos. Naquele momento e nos anos seguin-

2 A iniciativa de democratização promovida pelas potênciasocidentais durante os anos 1980 e 1990 também afetouRuanda. Percebendo que teria de abrir seu sistema políti-co, a fim de continuar recebendo ajuda dos doadores oci-dentais, Ruanda permitiu que outros partidos políticosalém do MRND viessem a existir, embora o poder conti-nuasse a ser monopolizado pelo presidente e seu partido.Muitos partidos políticos diferentes foram fundados, masos principais, além do MRND, foram: o MouvementDémocrate Républicain (MDR), Parti Liberal (PL), e o PartiSocial Démocrate (PSD). Em uma tentativa de confundir asituação e usar o multipartidarismo para seu beneficio, oMRND criou partidos que eram efetivamente seus clones,tais como o Partido Ecologista. O partido CDR, Coalitionpour la Défense de la République, era um partido dissi-dente do MRND, que foi mais abertamente anti-tutsi e anti-RPF que o MRND. Mais tarde, na década de 1990, o presi-dente Habyarimana e outros extremistas Hutu consegui-ram separar facções anti-RPF do MDR e do partido PL, oque ficou conhecido como facções “hutu Powa” (poderhutu). Muitos adeptos, depois do genocídio, foram recru-tados de grupos do “hutu Powa”.

3 O Mouvement Revolutionnaire pour le Développement ouMRND mudou seu nome em 1991 para MouvementRevolutionnaire pour le Développement et la Démocratieapós a democracia multipartidária ser autorizada emRuanda, mantendo a sigla MRND.

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tes, parecia que Habyarimana e o MRND ocupari-am o poder para sempre.

Ruanda era uma ditadura militar estreita-mente controlada na época; poucas pessoas ousa-vam levantar a voz para discordar. Raramente seouvia o murmúrio de uma palavra crítica contraHabyarimana e contra o controle do Estado ruandêspelo exército. Aqueles que se opunham ao presi-dente, em palavras ou ações, geralmente acabavamna prisão ou morriam em circunstâncias misterio-sas. Na capital Kigali, a presença do exército e daguarda civil era generalizada. Mostrar o apoio aogoverno era obrigatório. Mesmo a maioria dostutsis, na década de 1980, apoiava Habyarimana,pois seus integrantes relembravam que, em 1973,quando Habyarimana e o exército entraram emcena, fizeram cessar a violência contra os tutsise, em seguida, tomaram o poder do então presi-dente Kayibanda e seus defensores hutus do cen-tro e sul do país.

Naquela época, a adoração a Habyarimanaera uma exigência para todos os ruandeses, cons-tituindo-se em um elemento-chave na expressãode sua civitas. Praticamente todos tinham um re-trato do presidente pendurado na parede da casa,e muitos usavam o botão do partido MRND emsua camisa ou blusa. Sem dúvida, muito desseexcesso de lisonja envolvia interesses pessoais. OEstado, com Habyarimana à frente, foi a principalfonte de clientelismo do país. Mostrar apoio aoEstado e ao seu líder nunca prejudicaria a carreirade ninguém. Mesmo em contextos em que nãohavia nada óbvio a ser ganho, muitos manifesta-vam sua admiração pelo presidente do país. Algu-mas pessoas faziam comentários sobre como o nomede Habyarimana, – de kubyara e imaana, que, emconjunto, pode ser traduzido como: “É Deus quemdá vida” – era muito apropriado. Com efeito, nadapoderia ser considerado mais adequado em umacultura católica, anti-aborto, e basicamente pró-natalidade. Além disso, poucos nomes soavamtão bem entre os mais “tradicionais”, afeitos atemas como fertilidade, prosperidade e boa sor-te, como manifestações do “fluido difuso fecun-dante”. À época, tal culto parecia verdadeiro.

Durante a maior parte da década de 1980, Ruandaestava bem economicamente (em comparaçãocom os países vizinhos), e muitos ruandeses atri-buíram isso à boa administração de seu presi-dente. As múltiplas manifestações de carinhodirigidas a Habyarimana, embora contassem comcerta dose de teatralidade, também refletiam al-guma estima sincera.

Associar estreitamente a fertilidade e a pros-peridade do país com a pessoa do presidente nãoera, de nosso ponto de vista, a única manifestaçãoda permanente influência das representações darealeza sagrada. Às vezes, a comparação deHabyarimana a um rei sagrado ruandês era explí-cita; em outros momentos, era mais implícita,no limiar do inconsciente. Em muitos casos, aassociação pretendia ser lisonjeira; em outras ins-tâncias, tinha a intenção de ser crítica. Vemos ainfluência da instituição realeza em referênciasaos rios do país, ao corpo, e à violência.

Uma referência aos rios de Ruanda, quecontém uma associação explícita à realeza sagrada,apareceu na revista popular política Zirikana, emum artigo escrito por Bonaparte Ndekezi intitulado:“Hagati Habyarimana ya nd MukungwaNyabarongo” (Zirikana, 30 jan. 1993, p.4-6). Essarevista, Zirikana, apoiava o ponto de vista de umgrupo conhecido como Coalizão pela Defesa daRepublica, o infame CDR, um partido formado apartir de elementos de extrema-direita do MRND,conhecido por sua postura anti-RPF e por suasposições racistas contra os tutsis (Chrétien, 1995,p.386). Ndekezi também era conhecido pelo seuextremismo. O título de artigo traduzido era:“Habyarimana entre o Mukungwa e o Nyabarongo”,e refere-se a um rio situado no norte da Ruanda, oMukungwa e ao principal rio da Ruanda central,o Nyabarongo, que, nos tempos antigos, dividi-ram o reino de Ruanda em duas metades sagra-das. O artigo mencionado pode ser interpretadode várias maneiras. Em um nível, e esse é o temamais desenvolvido no próprio texto, no qual seassegura que Habyarimana, naquele momento, seencontrava em uma situação delicada e com pou-ca margem de manobra política. O artigo des-

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creve Habyarimana como um bom líder, porémum pouco brando com seus adversários, especi-almente o RPF, dominado pelos tutsis e pela opo-sição hutu interna. Em outro nível, menos explí-cito, é possível interpretar o fato de Habyarimanaestar entre o Mukungwa e o Nyabarongo como oconfinamento do seu ser no interior da partemais sagrada do seu “reino”, o norte, a parte daRuanda limitada pelo Mukungwa ao norte e peloNyabarongo ao centro, onde se encontra seu elei-torado natural. A afirmação de que o autor sereferia à Ruanda antiga, dos dias da realeza sa-grada, e a Habyarimana como um rei sagrado seevidencia de modo claro em uma das fra-ses do autor: “No nível da autoridade, nãohá diferença entre ele [Habyarimana] e osprimeiros reis tradicionais de Ruanda, só ofato de que ele não nasceu agarrando oimbuto (sementes mágicas de fertilidade),em sua mão” (1995, p.4).

A alusão aqui à realeza sagrada tradi-cional ruandesa é interessante, pois se desti-nava a bajular Habyarimana. Isso é irônico,até mesmo paradoxal, devido à sua fonte, osextremistas hutu da Coligação pela Defensada Republica (CDR). Afinal, foram hutusruandeses os que derrubaram a monarquiaem 1961. Estsa aparente contradição se des-faz, em alguma medida, se temos em contaque o CDR não era realmente contrário aosautocratas, ditadores, ou mesmo aos monarcas; aquestão que realmente era importante para elesera a oposição à etnia tutsi e ao RPF.

O CORPO E SUA VIOLAÇÃO, ADORNANDO OTAMBOR REAL, A CASTRAÇÃO

Raramente encontramos uma coerênciaideológica entre os vários usos dos símbolos doreinado antes do assassinato de Habyarimana.Cerca de oitenta revistas populares, cada umacom um ponto de vista diferente, surgiram noperíodo entre 1990 e 1994, fato bastante extra-ordinário para um país com uma população de

cerca de sete milhões de habitantes. Algumasdessas revistas, mas não todas, empregavam sím-bolos da realeza, mas era mais frequente o casode jornalistas extremistas hutus explicitamenteacusarem a Frente Patriótica Ruandesa de que-rer restaurar a monarquia, seus adornos, e seusrituais.4 Rotineiramente, os jornalistas extremis-tas hutus se referiam aos membros do RPF como“feudo-monarquistas.” Vários de seus desenhoslembravam o antigo costume de castrar os ini-migos mortos e, em seguida, usar essas partesdo corpo para adornar o tambor real, como, porexemplo, na charge reproduzida a seguir.

Um civil que apoia o RPF [à esquerda]: ‘Mate este Hutu

estúpido e depois lhe corte os órgãos genitais, para pendurá-

los no nosso tambor.Ndadaye [no centro]: “Mate-me, mas você não vai exterminar

todos os Ndadayes no Burundi.Kagame (antigo general do RPF, agora presidente da Ruanda)[à direita]: “Mate-o rapidamente. Você não sabe que em Byumba

Ruhengeri tivemos muito trabalho? Nós retiramos os bebês dos

úteros das mulheres, dos homens, tiramos os olhos”No tambor: “Karinga do Burundi”.

4 Como parte dos acordos de Arusha, o RPF tinha sido auto-rizado a manter um batalhão de suas tropas em Kigali, a fimde proteger os seus representantes políticos. Embora osprimeiros incidentes violentos que se seguiram ao assassi-nato do presidente tenham sido desferidos contra adversá-rios hutus que gozavam de alguma proeminência e contraalguns tutsis, a guarnição do RPF foi atacada no início dodia 07 de abril de 1994. Em seguida, pediu e recebeu per-missão da Missão das Nações Unidas para Ruanda parasair dos limites da sua guarnição, a fim de se defender.

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Nessa charge, extraída de uma revista deextremistas hutus, La Médaille-Nyiramacibiri,soldados RPF são retratados crucificando,empalando e castrando Melchior Ndadaye, pri-meiro presidente hutu eleito democraticamentedo vizinho Burundi. Após sua eleição, em outu-bro de 1993, foi morto por oficiais do exércitotutsis do Burundi, em uma tentativa de golpe deEstado abortada.5

Nos anais do extremismo hutu ruandês,poucas imagens condensam tanta violência sim-bólica quanto essa. Em um nível, vemos uma clarareiteração da acusação feita pelos extremistas hutusde que o RPF era constituído de “feudo-monar-quistas”, cuja intenção era de restaurar a realezae os rituais reais, além do principal emblema damonarquia – o tambor chamado Karinga. Outrasacusações ideológicas são feitas quando se des-crevem as vítimas hutus do RPF como mártiresde Cristo, pois Ndadaye está sendo crucificado.Sob essas alegações, porém, outra mensagem quetoca no imaginário está sendo veiculada. Aoempalar Ndadaye, os torturadores RPF estãotransformando seu corpo em um canal obstruídoe, como tal, estão transformando a sua pessoa emum corpo inadequado e indigno de imaana. Emépocas anteriores, os ruandeses matavam os la-drões de gado dessa maneira (Taylor, 1999, p.136-140). No plano ideológico, a síntese era forjada,nessa charge, entre símbolos especificamenteruandeses, que possuem raízes históricas profun-das, com outros que são produto mais recente daevangelização cristã, um recurso que apela paraduas camadas da memória coletiva de Ruanda.Mais sutil, porém, é o apelo do artista para o ima-

ginário ruandês, pois é como se o cartunista esti-vesse advertindo os hutus contra a (i)lógica insi-diosa e a posteriori do RPF: Ndadaye, como canalobstruído, merece sua punição.

Muitas das referências, na literatura po-pular, à instituição antiga da realeza são ideolo-gicamente motivadas e isso explica as diferençasobservadas entre as várias facções políticas deRuanda em sua representação de Habyarimanae outros. Outras referências não podem serexplicadas apenas como ideológicas, pois ape-lam para um nível mais profundo, maisontológico (Kapferer, 1988). Na verdade as vári-as facções em Ruanda contestavam quem iriacontrolar o poder do Estado, mas a disputa eratravada através da mediação de um corpo co-mum de símbolos. As imagens do corpo do reicomo canalizador se apresentam como um pon-to de passagem, em que a motivação ideológicacede lugar a um modo de pensar especificamen-te ruandês, que tem a ver com a forma segundose imagina o corpo, como um ser no tempo e noespaço, um ser que condensa processos fisioló-gicos e sociais, carregados de reminiscências deimportância cosmológica – um ser através do qualo imaana deve passar em sua descida do céu àterra. Embora a próxima charge (“Comer merda”,de Umurangi, número 14, de 10 de dezembro de1992), assim como a anterior, mostre o padrãosimbólico de “corpo como condutor”, é acrescen-tada, à repetição do padrão, sua negação. Nessecaso, os adversários hutus de Habyarimana retra-tam seu corpo como um canal que transformatodos os fluxos de volta para si.

Há muitos elementos concentrados nessailustração. No nível ideológico, Habyarimana eseus os seguidores do MRND e do CDR são mui-to claramente igualados a ladrões de gado. Asfolhas de bananeira em torno da cintura e em-baixo do seu boné do MRND sugerem uma asso-ciação com selvageria, uma possível associaçãocom os coletores Twa (mpunyu Batwa), e atémesmo participação na prática do ocultismo re-ligioso ruandês, conhecido como kubandwa, algoque muitos cristãos ruandeses considerariam um

5 Melchior Ndadaye foi o primeiro presidente democratica-mente eleito do Burundi e o primeiro presidente hutu.Eleito em junho de 1993, Ndadaye foi preso no final deoutubro e depois executado (não por empalamento) poroficiais do exército tutsis do Burundi em uma tentativa degolpe. Quase universalmente condenado por outras na-ções, o golpe acabou fracassando, mas não sem antes pro-vocar, em represália, assassinatos de milhares de civistutsis e a violência contra-represália, em que milhares dehutus foram mortos. O golpe e a morte de Ndadaye servi-ram à causa extremista hutu em Ruanda muito bem, e osextremistas não perderam tempo em explorá-lo. Infeliz-mente, o argumento dos extremistas hutus de que os tutsisnunca poderiam ser parceiros confiáveis em uma demo-cracia ganhou enorme credibilidade em Ruanda, nasequência da morte trágica de Ndadaye.

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comportamento atávico para um líder moder-no. É também evidente que, de acordo com seusdetratores, o presidente é um homem que comeexcrementos. Existem outros elementos ideoló-gicos nessa ilustração. O que serve como localpara pôr os dejetos para Habyarimana é a Ruandae a sua desafortunada população. A colher que étrazida de seu ânus em direção à boca é rotuladacom a palavra “impostos”. Os impostos do povo

de Ruanda são engolidos por Habyarimana,excretados pelo próprio Habyarimana, apenaspara ser mais uma vez engolidos por ele. E ape-nas seus seguidores têm a chance de conseguiralgo para comer, tal e como acontece com osseguidores do CDR e os membros do partidoMRND, que conseguem agarrar o ocasional mem-bro decepado, o excremento ocasional errante.

A manchete: “No MRND, continuam a excretar no prato.”À esquerda , um jovem da Interahamwe6 segura uma perna decepada e diz: “Vamos matá-los, vamos nos livrar deles, vamoscomê-los.”Habyarimana responde: “Sim, vamos descer em todos eles direito.”À sua direita, um homem do CDR e outro que é do MRND exclamam sarcasticamente: “Na Ruanda da paz, com certeza há ummonte de comida deliciosa.”Embaixo dos desenhos animados, há a seguinte frase: “A política dos ladrões de gado causa problemas”

6 Interahamwe significa “aqueles que atacam juntos”. Amaioria dos partidos políticos de Ruanda tinha gruposjuvenis. No caso do partido MRND (o partido no poderna época do genocídio), a sua facção juvenil era aInterahamwe. Recrutados em grande parte entre jovensdo sexo masculino, desempregados ou subempregados quetinham migrado para as cidades de Ruanda, osinterahamwe receberam formação política e de uso de ar-mas por oficiais do partido MRND, soldados ruandesesde Governo e possivelmente também por conselheiros doexército francês. Praticamente todos os bairros urbanospossuíam pelo menos um membro da Interahamwe. Nocaso das áreas rurais, cada colina tinha um membro. Elesajudaram o aparelho pré-genocida a manter listas regular-mente atualizadas de todos os membros da oposição dopartido e de todos os ruandeses tutsis. Antes da eclosãodos massacres em grande escala, a Interahamwe intimida-va as pessoas que constavam de suas listas através do uso

efetivo de violência ou de ameaças e extorsão de dinheirode alguns delas. Mesmo antes do genocídio, a Interahamwetinha, por vezes, a autorização para realizar blitzes e rou-bar, bater, e às vezes matar as pessoas capturadas, ou rou-bar ou danificar seus veículos. Em duas ocasiões, escapeipor pouco de ser preso em uma dessas blitzes, e, em umadessas ocasiões, um tijolo bateu no meu veículo logo abai-xo do para-brisa. Em outra ocasião, em uma pequena bar-reira criada com uma motocicleta, em uma viela de Kigali,eu e um amigo tutsi fomos pegos e importunados durante20 minutos ou mais por um grupo de milícias Interahamwe,na presença de dois policiais ruandeses. Após longas ne-gociações com os policiais, que estavam provavelmenteperplexos com a presença de um estrangeiro, osInterahamwe liberaram meu amigo, embora não antes derealizar um corte no seu rosto perto do olho. Durante ogenocídio, as armas preferidas da Interahamwe foram ofacão, o cassetete cravejado de pregos e as granadas.

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No entanto, existem outros elementos des-sa ilustração que são menos diretamente ideoló-gicos, e alguns que sequer são lógicos no seu sen-so comum. Se os impostos são como excremento,e Habyarimana come seu próprio excremento,então não seria o país poupado da sujeira? Tal-vez, mas observe-se que Habyarimana inverte ofluxo de beneficência. Ao invés das dádivas des-cerem do céu e, através de seu corpo, chegaremà terra e às pessoas, os benefícios se movem debaixo para cima, das pessoas ao governante. Umavez chegando lá, a maior parte é continuamentereciclada em um circuito fechado e estéril den-tro do seu corpo. O pouco que ele deixa passar édevorado por seus lacaios. No nível do imaginá-rio, é esboçado um sentimento mais profundodo que a mensagem ideológica sobre o egoísmoda “política da barriga” de Habyarimana. Trata-se do sentimento de dúvida sobre a adequaçãoHabyarimana ou, mais corretamente, uma insi-nuação de sua inadequação para servir como umcanal adequado do imaana. Em vez de um orga-nismo capaz de realizar o “fluxo de circuito aber-to”, o corpo do rei Habyarimana realiza um “flu-xo de circuito fechado”. Em vez de um parceirobom, um doador, e não simplesmente um recep-tor de presentes, Habyarimana é um receptorousado, a personificação da ishyano (impurezaritual). Ele não é digno de ser um rei. Mesmo quetodos os reis participem da vida selvagem atravésdo incesto e assassinato, isso é demais:Habyarimana é um selvagem entre os civilizados.Os desenhos parecem estar dizendo, em um ní-vel subterrâneo ainda mais poderoso do que oideológico: “Habyarimana deve ser sacrificado”.

CONCLUSÃO

Neste artigo, tentei mostrar que, apesar dasalterações introduzidas pelo colonialismo, aevangelização cristã e a independência pós-colo-nial, existem linhas de continuidade entre o pe-ríodo pré-moderno de Ruanda, quando o Estadoera liderado por um rei sagrado, e o moderno,

em que a chefia do Estado cabia a um ditadormilitar, o presidente Juvenal Habyarimana, emtermos da conceituação da guerra e do próprioEstado. Essas linhas de continuidade podem serdiscernidas através de uma análise do imaginá-rio de Ruanda e de como ele é acessível em re-presentações visuais e verbais do presidente ede outras figuras políticas que apareceram namídia popular durante os anos do pré-genocídio,entre 1990 e 1994.

O argumento apresentado aqui se opõe àperspectiva que concebe o Estado principalmentecomo um aparato de poder produtor de subjeti-vidades individuais, que devem então concor-dar com a hegemonia indesejada do Estado ouresistir a ela. As análises do Estado centradas naquestão do poder tendem a reproduzir pressu-postos ontológicos ocidentais sobre o ser e a pes-soa, postulando a existência de indivíduos cal-culistas, que tentam maximizar seus ganhos, e acoletividade seria, nesse caso, a instância regula-dora da concorrência entre eles. Esse tipo de aná-lise privilegia o nível do discurso e tende a negli-genciar o nível do imaginário. Embora sejamnecessárias, essas concepções não permitem umaplena compreensão de estados não-ocidentais eseu uso da violência. Não podemos compreen-der plenamente o Estado, nem mesmo comoportador de poder e de força destrutiva, sem acompreensão das bases ontológicas ecosmológicas determinantes, nas quais o poderestá incorporado, implantado e interpretado. Osrituais de Estado oferecem um meio de acesso aesse domínio.

Uma das noções cosmológicas centrais dasociedade pré-moderna ruandesa era o deimaana, traduzido de várias formas como um“fluido fecundante difuso”, como ser supremo,ou, mais geralmente, como formas diversas depotencialidade tidas como encarnadas em deter-minadas pessoas, objetos e substâncias que asse-guravam a fertilidade e prosperidade. As quali-dades difusas e flexíveis dessa noção atestam suaspropriedades como sendo mais do campo doimaginário do que do campo do discursivo. A

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encarnação humana mais importante do imaanaera o rei ruandês, sagrado ou umwami. Entendero imaana requer a compreensão dos rituais da rea-leza sagrada e sua ênfase sobre os líquidos e osseus fluxos. Perturbações nos fluxos líquidos de-veriam ser evitadas. Uma das responsabilidadesdo rei sagrado era catalisá-los, dirigi-los e controlá-los. Com efeito, ao agir como o ponto focal huma-no da política, vista como processo cosmológico,o rei tornava os fluxos de dádivas tangíveis evisíveis. O corpo do rei funcionava como umasinédoque: ele era a parte do todo que se asse-melhava ao todo. Seu corpo era o conduto doimaana em sua descida do céu à terra. Contudo,o rei corria o risco de ser visto como a partedefeituosa, como responsável pela cessação com-pleta do fluxo benéfico em tempos de crise, casoem que ele poderia ser julgado como umaencarnação de imaana inadequado e, portanto,passível de ser eliminado. No entanto, a memó-ria coletiva de tais eventos, nas histórias dinásti-cas, geralmente seguia o modelo de sacrifícioumutabazi, em que a tragédia e a derrota erammascaradas, e a eliminação do soberano,subsequentemente, apresentada como uma mor-te heroica e abnegada.

Durante sua história o Estado ruandês en-frentou uma série de tensões e contradições: 1)sociabilidade da dádiva versus a sociabilidade dasmercadorias; 2) holismo hierárquico (autocracia)versus noções de individualismo igualitário (de-mocracia); 3) noções negociáveis de etnia versus

noções de hereditariedade da etnia. Nesse proces-so, um Estado baseado na ditadura militar subs-titui um estado com base em uma realeza sagra-da. No entanto, a julgar pela iconografia de mídiaruandesa popular, nos anos prévios ao genocídio,a Ruanda imaginária não foi completamente apa-gada: noções ontológicas e elementos de umacosmologia pré-moderna coexistiam com as forçasda modernidade e da globalização. Vemos essasíntese na pessoa do Presidente Habyarimana ena insinuação de que ele viria a se tornar, comoalguns reis sagrados do passado, uma umutabazi.Também percebemos isso nas acusações veladas,

veiculadas pela mídia, de que Habyarimana tor-nara-se um “rei” inadequado – um soberano queinvertia os fluxos, obstruindo o que devia fluiratravés dele. Como um entrave à descida deimaana, ele tinha se tornado um candidato à eli-minação. Depois de sacrificado, no entanto, elese tornou um mártir da causa extremista hutu.

Em tudo isso, vemos a força persistente doimaginário de Ruanda e do encapsulamento dopoder por noções cosmológicas e ontológicasruandesas que preexistiam na encarnação do po-der sob a forma de guerra e genocídio. O poder,então, mesmo na sua manifestação mais eviden-te, que surge do cano de uma arma, foisubsumido, nesse caso, por outras noções. Umaguerra de sentidos foi travada na mídia popularruandesa antes do genocídio, em que pratica-mente todas as possíveis posições ideológicas re-ceberam voz. Contudo, a dissensão entre essasvozes dependia de um corpus comum e parti-lhado de entendimento imaginário. Os símbolosicônicos que serviam de veículo a esses entendi-mentos não eram simples instrumentos do po-der conduzidos ao campo de batalha como ban-deiras ou emblemas: seu papel era mais funda-mental. Eles forneceram a base a partir da qualo poder foi imaginado e a matriz interpretativaatravés da qual as ações específicas foram julgadascomo poderosas ou como impotentes. Como ou-tros exemplos de guerra mostram, tais como ainvasão do Iraque pelos EUA, a natureza do po-der pode parecer óbvia para aqueles que acredi-tam que o estão exercendo, mas os seus efeitos delongo prazo são sempre vividos, experienciados,e interpretados por meio de sistemas locais designificação sendo, em última análise, esses sig-nificados os definidores do que é poderoso e doque não é.

(Recebido para publicação em outubro de 2010)(Aceito em dezembro de 2011)

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La Medaille-Nyiramacibiri. Rwandan popular politicalmagazine.

Umurangi. Rwandan popular political magazine.

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KING SACRIFICE, THE RWANDAN STATE,AND GENOCIDE

Christopher C. Taylor

In contrast to analyses of the 1994 Rwandangenocide that privilege the political, this papermaintains that power and politics during the timepreceding the genocide were embedded in andconditioned by specifically Rwandan notions ofcosmology and ontology. In order to understandthis “imaginary” component to the violence, weneed to closely examine Rwandan beliefs andpractices related to the institution of sacredkingship. Although these beliefs and practiceseffectively terminated in 1931 when the last sacredRwandan king was deposed and replaced by hismission-educated son, their cosmological matrixendured well into recent times. This is seen in thepopular Rwandan street literature which circulatedwidely in the days leading up to the genocide. Inthis literature, then President Juvenal Habyarimanawas explicitly compared at times to a Rwandan king.More importantly for the purposes of this paper,was the more diffuse, implicit, and symboliccomparison of Habyarimana to a sacred Rwandanking. In particular, some of the key elements inthis symbolism adumbrate (and show thepersisting importance of) an image of what amorally positive king (or modern president)should be like. Because there were many reactionary(and racist) Rwandan journalists who had begun todoubt President Habyarimana’s adequacy as a ‘goodking,’ his subsequent ‘sacrifice’ was in a strong,though symbolic sense, preordained.

KEY WORD: symbolism, Rwandan genocide, sacredkingship

Christopher C. Taylor - Doutor em Antropologia Social pela Universidade de Virginia. Especialista emantropologia simbólica e médica, tendo realizado pesquisas em Rwanda, Kenya e Costa do Marfim. Seu livrosobre a violência genocida de Rwanda de 1994 “Sacrifice as Terror” (Berg Publishers 2001), resultado de suasexperiências durante uma pesquisa de campo na região antes e durante o massacre, o levou a se tornarespecialista em análise da violência dentro da Antropologia Política.

SACRIFICE ROI, ÉTAT RWANDAIS ETGÉNOCIDE

Christopher C. Taylor

Contrairement à l’analyse du génociderwandais de 1994, où le politique est mis en avant,cet article démontre que le pouvoir et la politique,au cours de la période qui a précédé le génocide,ont été marqués par des notions rwandaises decosmologie et d’ontologie. Afin de comprendre cettecomposante ‘imaginaire’ de la violence, il nous fautexaminer attentivement les croyances et les prati-ques liées à l’institution de la royauté sacrée auRwanda. Même si ces croyances et ces pratiquesont été officiellement supprimées en 1931, lorsquele dernier roi sacré du Rwanda a été détrôné etremplacé par son fils élevé par des missionnaires,sa matrice cosmologique a subsisté jusqu’à unepériode récente. On peut le constater dans lalittérature populaire du Rwanda qui circulaiténormément dans les jours qui ont précédé legénocide. Dans cette littérature, le président del’époque, Juvenal Habyarimana, était comparé demanière explicite à un roi rwandais. Ce qui estencore plus important pour nous, dans cet article,c’est cette comparaison plus diffuse, implicite etsymbolique entre Habyarimana et un roi sacré.Certains éléments-clés éclairent toutparticulièrement ce symbolisme (et montrentl’importance de la persistance) de l’image selonlaquelle un roi (ou un président) devrait secomporter. Comme il y avait de nombreuxjournalistes rwandais réactionnaires (et racistes)qui doutaient des capacités du présidentHabyarimana d’être un ‘bon roi’, son ‘sacrifice’ultérieur était, dans un sens très symbolique,fortement prédestiné.

MOTS-CLÉS: symbolisme, génocide Rwanda, royautésacrée.