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1 SAFARI - conto – 2006 CAMILA APPEL * todos os direitos reservados. texto registrado no Escritório de Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional*

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SAFARI

- conto –

2006

CAMILA APPEL

* todos os direitos reservados. texto registrado no Escritório

de Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional*

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Campainha anuncia novo amante. Pára diante da porta

fechada, aspira perfume dele. Imagina a roupa que veste,

desenho do corpo, se têm mãos nos bolsos, unha na boca,

anel de noivado com outra, vai saber. Campainha toca de

novo na hora em que ela abre a porta. Ele se intimida,

É... desculpe, achei que podia não ter escutado. Beijo no

rosto casual. Tremem.

Restaurante charmoso pede aconchego. Velas, sofá

para dois, mesa baixa que não ocupa atenção. Ela, vestida

como quem não esconde o que quer. Meia-calça preta fio

15, saia curta e sapatos altos. Ele sorri, imaginando as

longas pernas descalçando a moral dele. Conversa combina

no primeiro tom, ele vibra sem respirar. Se amor é isso,

não tem mais porquê procurar - ele seguro da decisão.

Ela cai na afirmação. Finalmente amor que se diz.

Ela merece?

Não pedem prato principal. Ansiedade tira fome e

libera bebida. Bebem tanto quanto falam. Da conta paga

para o carro, dois bambus dançando ao vento. Carro é

perspicaz, vai direto à casa dele. A moça se finge de

bêbada para aliviar culpa do movimento. Mas ela sabe sim,

o que pode acontecer. Tudo o que ela quiser.

Ela merece?

A casa acende com a entrada do beijo. Ela vai

descobrindo os objetos pelos tropeços que dão. Abajur no

chão ao lado direito, quadro na parede esquerda, de

moldura pontuda, sofá ao fundo. Paixão no centro.

Tombados na cama, panela untada, se escorregam. Ele

levanta a blusa dela, mas não tira. Vai devagar

explorando o que imagina ser a revelação dos deuses. O

primeiro seio se mostra, tamanho e formato perfeitos,

como ele sonhava. O toque dele foi como ela imaginava.

Ele ajoelha na frente dela, levanta uma das pernas,

estendendo-a em cima dele, pernas agora dele. Tira a

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meia-calça, passa mãos hidratando a pele. Carinho

sincero. Dobra a curva do pé no queixo. Escuta o coração

dela pelos pés. Beija a sola com entrega que não

considerava ter. Se pé estremece, imagina o resto do

corpo? Sente a barba por fazer roçando na camada fina que

a protege da vida. Cumplicidade nunca atingida. Ela

murmura de prazer contido, teme não caber dentro de si,

não merecer amor assim. Não merece.

Ele pensa na promessa que fez: só vou beijar o dedão

do pé da minha futura mulher. Olha para ela estendida na

cama, perna ao alto entregue a ele, engole o dedão. Onda

de prazer começa nas entranhas e quando chega aos pés, dá

coice. Ele cai da cama. Estratégia de amor? Não. Ela não

merece.

A mulher gata se levanta, chuta o homem que ousou

amá-la. Pisa no peito, cospe no chão, vai embora. Anda

pela calçada descalça. Bolsa de um lado, sapatos e meia-

calça do outro. Pés beijando o chão imundo. Ela merece.