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A atriz Walda Maria Franqueira em cena de Sagrada família.

Sagrada família, um filme insuportavelmente belo

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Crônica de Silviano Santiago sobre o filme "Sagrada Família", de Sylvio Lana. Extraída do Suplemento Literário de Minas Gerais, n. 77, páginas 5-7, de novembro de 2001. * Publicado originalmente no Caderno de Crítica, n. 2, Embrafilme, Rio de Janeiro, nov. 1986, p. 50-51.

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A atriz Walda Maria Franqueira em cena de Sagrada família.

Poucos filmes possibilitam uma reflexão sobre a trilha sonora. Os de Godard (em particular os últimos) quase sempre. Sagrada Família, de Sylvio Lanna, tem como proposta ser um marco. A cena é muda (como nos bons velhos tempos do cinema) e a trilha é sonora. Ambas guardam a sua autonomia e percorrem caminhos diversos, divergentes. Nem mesmo as vozes da trilha são as dos atores da imagem. Desencontro entre o percurso da cena e a viagem pela trilha, desencontro revelador dos mistérios do cinema e dos labirintos da década de 70.

O cinema torna-se “falado” com o intuito de emprestar maior realismo às imagens em preto-e-branco, bidimensionais, projetadas numa tela em sala escura. Parecem mais reais os atores quando o movimento dos lábios é acompanhado do respectivo som fonético. O som das vozes serve para legitimar o realismo da imagem nesta modalidade artística, retirando da imagem a sua auto-suficiência narrativa. Qualquer historiador do cinema sabia da reação da melhor inteligência crítica ao “falado”, porque sentia que a imagem, perdendo a exclusividade narrativa, tornava a sétima das artes propícia ao avanço do teatro e da literatura. E não deu outra. O cinema mudo, por sua vez, estava mais para o mistério das sombras e para a linguagem só corporal do mimodrama.

Sagrada família é marco radical na história do cinema falado, e o é por questionar duas coisas capitais ao mesmo tempo. Questiona: (a) a ilusão do real decorrente da invenção do “falado”, emprestando total autonomia tanto à imagem quanto à trilha sonora; (b) e o desenvolvimento do enredo, seguindo ação-e-fala dos personagens, e isso por abrir espaço na imagem para lançar frases “escritas” que redimensionam a sucessão anárquica de imagens a um raciocínio lógico.

No plano da imagem, o filme retoma à condição muda da câmera plantada num tripé que espia sem a intromissão da subjetividade humana o comportamento absurdo dos personagens. Ou então, câmera ainda plantada e imóvel, mas agora plantada num objeto móvel (como um carro em movimento, ah! Entr’acte) e se abre em largo e vazio travelling cuja única imagem é uma estrada desolada interiorana, ou se enrodilha em círculos ao redor de uma praça onde homem e mulher se encontram sentados.

A câmera imóvel, registrando objetivamente os caminhos desencontrados dos personagens, não lembra apenas o cinema mudo, mas também coisas dos anos 70: o plano-sequência teorizado por André Bazin, as “aventuras” de Anotnioni, ou o teatro de Jean Cocteau; lembra, apenas lembra tudo isso, porque deles se distancia pelo silêncio radical, silêncio que torna ainda mais enigmáticas e absurdas as andanças e os gestos mineiros e humanos. Não só mais absurdos e enigmáticos os movimentos humanos, mas também mecânicos: seres se cruzam por esplanadas, assim como carros seguem automaticamente um mesmo percurso

por uma avenida urbana. No way out. Sic transit gloria mundi. Sem saídas ou sem glórias, um eterno fluir de seres e máquinas. Os galardões da viagem na vida moderna.

Essas imagens sem sentido e sobretudo sem filantropia (as imagens do filme são secas e avaras, nenhuma “esmola” conteudística é dada ao espectador para que ele se sinta agradecido pelas cenas que lhe são oferecidas e as retribua com os cruzados da entrada paga em cinema comercial) só podem ser descodificadas logicamente - sem o respaldo realista da fala – por super-leitores: um surdo e mudo leitor do movimento dos lábios, ou um cine maníaco, capaz de ir levantando alusões (e são muitas – olha o ator que se parece com Buñuel e tem uma pasta), para construir uma trama insólita das obras cinematográficas que participaram do universo imaginário do realizador. Se as imagens são avaras de significado, nem tanto é o realizador: com piedade dos infraleitores, legenda ele cenas-chaves do filme, ou desenha com branco o negro da imagem, deixando percorrer um sentido anagramático pelas imagens sem sentido e sem filantropia.

A viagem pela trilha sonora é total: ela é tema, fala e seleção auditiva. Enquanto tema, explicita-se a questão das drogas; enquanto fala, são vozes pastosas, rouquentas e deslumbradas com as glórias e os acidentes do percurso; enquanto seleção auditiva é um ouvido que escuta rádio e ouve discos, aprisionando detalhes de programas ou canções. E finalmente a trilha é também viagem pelas imagens do filme: aqui e ali são comentadas cenas, sem a objetividade glacial da câmera, mas com a ironia pesada de quem sabe, nas entranhas, do absurdo que são as cenas do cotidiano quando observadas sem o menor traço de sentimentalismo. O bom-mocismo não é qualidade da Sagrada família, embora o seja da família sagrada.

A ausência da filantropia, a nível da imagem, se casa aqui com a ironia falante que exprime a falta de bons sentimentos, a falta de piedade diante dos que vivem absurdamente o dia-a-dia. Por isso, a trilha sonora tinha de se impor como autônoma. O filme não podia aceitar um narrador constante, comentando um filme dito mudo, como se a sua fala fossem legendas transplantadas para uma trilha sonora. Mas a trilha apresenta as vozes de múltiplos atores (vozes, repito, que não se casam com os lábios dos atores que estão na imagem) que constroem o conflito palavroso de uma viagem coletiva adentro das portas da percepção.

Sagrada família é um filme insuportavelmente belo. Tem a beleza da vontade radical (o que Susan Sontag chamou nos idos de 60 de “radical will”). E, como tal, se reduz a algumas latas de 35 mm. deserdadas pela instituição agora em Nova República, instituição que procura mais e mais uma “vontade filantrópica”, de retorno garantido em cruzados. Contra o império dos Cruzados, esta Cruzada por um filme insuportavelmente belo. Uma crônica para Sylvio Lanna.

* MINAS GERAIS. Suplemento Literário, Belo Horizonte, n. 77, nov. 2001, p. 5-7