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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
NOSSOS HERIS NO MORRERAM: um estudo antropolgico sobre formas de ser negro e de ser gacho no
estado do Rio Grande do Sul.
CRISTIAN JOBI SALAINI
Porto Alegre, abril de 2006.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
NOSSOS HERIS NO MORRERAM: um estudo antropolgico sobre formas de ser negro e de ser gacho no
estado do Rio Grande do Sul.
CRISTIAN JOBI SALAINI
Dissertao de mestrado apresentada como requisito parcial para a obteno do grau de mestre em Antropologia Social
ORIENTADORA: PROF DR MARIA EUNICE MACIEL
Porto Alegre, abril de 2006.
2
AGRADECIMENTOS
Agradeo ao Programa de Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul pela oportunidade de realizar este trabalho que contou com o dilogo
com diversos professores e colegas.
minha famlia que, mesmo longe, sempre esteve presente auxiliando
emocionalmente em todos os momentos, bons e ruins. Ela em grande parte a razo
do esforo empreendido. minha me e irm, pela dedicao a mim. Aos meus
sobrinhos, pela alegria. Ao meu cunhado Zilmar pelos ensinamentos morais. Gostaria
de realizar um agradecimento ao meu pai, em memria, pela introduo no caminho do
saber.
Aos colegas de mestrado com quem troquei experincias acadmicas e outras.
Agradeo ao NACI Ncleo de Antropologia e Cidadania pelo papel fundamental em
minha formao acadmica atravs da amplitude de temas de pesquisa que atravessa
o grupo.
Alguns colegas contriburam de modo especial na execuo deste trabalho.
Gostaria de agradecer Ana Paula Comin pela possibilidade de interlocuo e pelo
aprendizado na rea da pesquisa antropolgica. Ao amigo Lucas Graeff, por sua
participao na construo deste trabalho atravs da leitura crtica e das opinies
precisas.
professora Daisy Macedo de Barcellos pelo papel fundamental em minha formao e pela introduo pelos caminhos da antropologia. Outros professores tiveram
3
papel fundamental em minha formao acadmica e pessoal: Veriano Terto Jnior,
Caleb Faria Alves, Denise Fagundes Jardim, Claudia Fonseca. Muito obrigado pelas
conversas e ensinamentos.
minha namorada Mariana Spolidoro, pelo amor, carinho e pacincia.
Aos sempre amigos de todas as horas: Andr Nunes (Buyuh), Henrique Felber,
Paulo Diniz, Carolina Timm, Charles Franken, Renata Conrado, Andra Grazziani,
Marco Natalino, Mrcio Martins, Cristiano Martins, Rodrigo Ferreira, Vinicius Aguiar de
Souza (Pingo), Maria da Graa Pardelhas, Nair Cauduro Negro, Magdalena Toledo e
Bruno Gomes.
s pessoas que estiveram presentes auxiliando em minha trajetria acadmica:
Laura Lpez, Pilar Uriarte, Mariana Ballen, Jlio Sisson, Alexandre Schultz Bier, Lorena
Muniagurria, Vera Regina Rodrigues e Clarissa Azevedo, Vincius Oliveira, Cntia
Beatriz Muller.
equipe Porongos e equipe Mormaa.
A todos os meus senseis.
A todos os informantes e, em especial, ao Razes dfrica pela relao
estabelecida.
minha orientadora, Maria Eunice, pela possibilidade de ampliao reflexiva do
presente objeto de estudo.
CAPES pela criao de condies favorveis execuo do trabalho.
4
Senti o mpeto guerreiro do negro livre paisano
peleando com os brasileiros ao lado dos castelhanos.
Senti o mpeto guerreiro do negro escravo retinto peleando como lanceiro
na guerra de trinta e cinco.
(Dcima do negro peo fragmentos, poeta Oliveira Silveira)
5
RESUMO
Um episdio que ocorreu no final da Revoluo Farroupilha (1835-1845), Rio
Grande do Sul, alvo de polmica de diversos grupos sociais deste estado. Mais
especificamente, o evento em questo apresenta relao com a morte de parte do
Corpo de Lanceiros Negros que lutou ao lado dos rebeldes republicanos em tal
revoluo. A polmica pe em questo a possibilidade do heri farroupilha e
comandante da tropa de negros David Canabarro ter trado os negros que estavam
sob seu comando, j que o Imprio do Brasil no teria a inteno libertar-los ao trmino
da revoluo. Historiadores se envolvem com a questo desde o final do sculo XIX,
porm, recentemente, a polmica tem sido foco de outros grupos do estado que
procuram revisar o local do negro na histria local. As aes localizadas geraram a
possibilidade de construo de um Memorial aos Lanceiros Negros no local da batalha.
O tema ganhou amplitude nacional, tornando-se tema para a execuo do INRC
(Inventrio Nacional de Referncias Culturais) pelo IPHAN (Instituto Patrimnio
Histrico Artstico Nacional). A incorporao em tal iniciativa forneceu o contexto inicial
que expandiu at a presente dissertao. Tal contexto relaciona-se fortemente com
elementos da tradio local, atravs das prticas difundidas pelo Tradicionalismo e/ou
pelo Gauchismo. A inteno deste trabalho apreender - atravs de mtodos
antropolgicos de investigao e anlise - a construo de uma identidade negra e
gacha atravs da ao da memria coletiva e do imaginrio social, e as suas
implicaes do ponto de vista da identidade tnica.
Palavras Chave: identidade, memria, imaginrio, etnicidade, gauchismo, tradio.
6
ABSTRACT
A historical happening during the Farroupilha Revolution (1835 1845), in the
State of Rio Grande do Sul, Brazil, is currently under debate by several social groups in
the state. Specifically, the happening is related with the murder of a part of the Corpo de
Lanceiros Negros (Black Lancers Corps) that fought on the side of the rebels during the
revolution. The debate questions the possibility that Davi Canabarro, the heroic chief of
the black slaves troop, might have betrayed the men under his command, considering
that administration of the Brazilian Empire supposedly did not mean to release them
after the struggle was over as they had promised to. Historians have been studying the
topic since the late XIX century, but only recently the debate has been focused by other
groups in the state that are trying to review the role of the black people along the history
of the state. There are local actions considering the possibility of constructing a Black
Lancers Memorial in the region where the battle took place. The debate turned into a
national issue and became the topic for the execution of the Inventrio Nacional de
Referncias Culturais (National Inventory of Cultural References) by the Instituto
Patromnio Histrico Artstico Nacional (National Historical and Artistic Patrimony
Institute). Its incorporation to such an enterprise supplied the initial research context,
which has expanded to the data of the present thesis. This context is tightly related to
the elements of the local tradition through the practices of the movements for the
preservation of the regional traditions and of the Gauchismo. The universe of the
present research was focused on the celebrations and spaces that celebrate this event
as an emblem. This paper, therefore, aims at apprehend thorugh anthropological
methods and analysis the construction of a black gaucha identitity that takes place in
the midst of the collective memory and of the social imaginary, and its implications from
the point of view of the ethnic identity.
Key words: identity, memory, imaginary, ethnicity, gauchismo, tradition.
7
SUMRIO
LISTA DE ILUSTRAES ......................................................................................................... 10
INTRODUO............................................................................................................................. 12
CAPTULO 1: PREMISSAS EPISTEMOLGICAS E METODOLGICAS............................ 19
1.1 A produo de etnicidades................................................................................................... 19
1.2 Identidade regional e tradio.............................................................................................. 21
1.3 A verdade histrica, a apropriao do passado e o imaginrio social.............................. 24
1.4 O mtodo etnogrfico e seu campo de estudo.................................................................. 27
CAPTULO 2: O CONTEXTO DE PRODUO DO OBJETO................................................. 35
2.1 O Memorial aos Lanceiros Negros o contexto local..................................................... 36
2.1.1 Os Negros e a Revoluo Farroupilha.......................................................................... 36
2.1.2 A Revoluo Farroupilha e o Gauchismo..................................................................... 39
2.1.3 A etnicizao dos lanceiros negros............................................................................... 43
2.2 A politizao da cultura....................................................................................................... 49
2.2.1 O Patrimnio enquanto categoria do pensamento ........................................................ 58
CAPTULO 3: AS CELEBRAES............................................................................................ 61
3.1 Nossos heris no morreram......................................................................................... 61
3.2 A Semana Farroupilha e a memria de Porongos. .............................................................. 74
3.2.1 Ns, os gachos ........................................................................................................ 83
3.2.2 O Grupo Repblica Negra ............................................................................................ 85
3.3 O 19 De Novembro e a Cavalgada da semana da Conscincia negra ................................. 93
3.4 Retornando Porongos As comemoraes de novembro de 2005 ................................ 101
8
3.4.1 Pinheiro Machado....................................................................................................... 102
3.4.2 Caapava do Sul ......................................................................................................... 104
3.4.3 O 14 de Novembro de 2005 em Pinheiro Machado ................................................... 109
CAPTULO 4: A ARTE E A ETNICIDADE ............................................................................. 113
4.1 O Atelier Razes dfrica .............................................................................................. 114
4.2 - Negro ou Gacho? As pinturas do Razes dfrica..................................................... 118
4.3 A Arte e a Educao .......................................................................................................... 125
CONSIDERAES FINAIS ...................................................................................................... 131
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ........................................................................................ 138
9
Lista de Ilustraes
Figura 1: Marco do MTG nas proximidades do Cerro de Porongos. Autor: Lucas Graeff........... 44
Figura 2: Luiz Mendes ao lado de uma representao de Zumbi dos Palmares. Mendes faz parte
do Centro Cultural Cndido Velho, um dos principais responsveis pelas iniciativas em
torno da construo do Memorial aos Lanceiros Negros no Cerro de Porongos. Autor:
Cndido Velho....................................................................................................................... 61
Figura 3: Fotos da pedra fundamental lanada em nov/2004. Autor: Lucas Graeff. .................... 63
Figura 4: Apresentao teatral do Razes d'frica. Autor: Vincius Oliveira. .............................. 68
Figura 5: Fotos do Piquete Mocambo e de uma situao de entrevista com Maria Elaine
Rodrigues. Autor: Lucas Graeff. ........................................................................................... 75
Figura 6: Fotos do Piquete Floresta Aurora. Autor: Lucas Graeff. ............................................... 77
Figura 7: pster de apresentao do Depto. de Tradies Gachas dos Inapirios e foto do
espao interno do piquete. Autor: Lucas Graeff.................................................................... 80
Figura 8: Representao de um Lanceiro Negro baseada na atuao de Sirmar Antunes em "Neto
Perde Sua Alma". Autor: Lucas Graeff. ................................................................................ 82
Figura 9: Fotos do Galpo do Grupo Cultural Repblica Negra e de Jefrson da Costa,
responsvel pelo Grupo. Autor: Lucas Graeff....................................................................... 87
Figura 10: Foto da representao de um "bumbuleguero" junto figura de um negro gacho.
Autor: Lucas Graeff............................................................................................................... 89
Figura 11: Bandeira dos Lanceiros Negros Contemporneos. Autor: Lucas Graeff..................... 96
Figura 12: Fotos da cavalgada dos Lanceiros Negros Contemporneos. A primeira com a
Prefeitura Municipal de Porto Alegre ao fundo e a segunda na Av. Guaranha, local que passa
por um processo de reconhecimento enquanto "remanescente de quilombo". Autor: Lucas
Graeff..................................................................................................................................... 96
10
Figura 13: Monumento aos Lanceiros Negros localizado na praa central de Caapava do Sul.
Autor: Lucas Graeff............................................................................................................. 107
Figura 14: Joo Dornelles cavalo durante as comemoraes da Semana Farroupilha de 2005 em
Caapava do Sul. Autor. Andr Seixas................................................................................ 109
Figura 15: Maria Bernardete, representante da Fundao Palmares, comentando o lanamento do
Edital para a construo do Memorial aos Lanceiros Negros. Autor: Lucas Graeff........... 111
Figura 16: Fotos de Benoni e Rosa Claudete, integrantes do movimento negro de Pinheiro
Machado, e do Grupo Liberdade de Expresso, tambm de Pinheiro Machado. Autor: Lucas
Graeff................................................................................................................................... 111
Figura 17: Fachada do Grupo Cultural Razes d'frica. Autor: Lucas Graeff. ........................... 114
Figura 18: Apresentao da pea "Lanceiros Negros" no teatro da OSPA em 2000. Foto cedida
pelo artista plstico Ney Ortiz. ............................................................................................ 115
Figura 19: Quadros que retratam a participao do negro em episdios da Revoluo Farroupilha.
Autor: Lucas Graeff............................................................................................................. 121
Figura 20: Quadro relacionando elementos africanos Revoluo Farroupilha. Autor: Lucas
Graeff................................................................................................................................... 121
Figura 21: Ney Ortiz utilizando uma mscara retirada de uma tela. Ao fundo, uma lana utilizada
na pea "Lanceiros Negros". Autor: Lucas Graeff. ............................................................. 122
11
INTRODUO
O presente trabalho pretende analisar um processo social que toma como ponto de partida as iniciativas em torno da construo de um memorial em homenagem aos
combatentes negros que participaram de um evento tido como emblemtico da histria
do Rio Grande do Sul: a Revoluo Farroupilha (1835-1845). A formao de uma
Comisso ao Memorial dos Lanceiros Negros, em 2003, articulou diversos atores
interessados em discutir o formato de tal construo e, em 2005, foi lanado um edital
de concurso para a construo de um memorial, na cidade de Pinheiro Machado, assim
como de um monumento, no Parque Farroupilha, na cidade de Porto Alegre1.
Contudo, esta iniciativa insere-se num contexto amplo de discusses que
problematizam o lugar e a participao do negro dentro da sociedade brasileira e
riograndense, desembocando na formulao e reformulao de identidades locais por
grupos e atores de forma ampla pelo estado2. dentro de um quadro de reflexes
promovidas pelas cincias sociais e, mais especificamente, pela antropologia social,
que se pretende dirigir um olhar etnogrfico a este processo social, tendo em mente
seu dilogo com o campo das identidades sociais, da etnicidade, da memria e
imaginrio sociais.
A preocupao principal deste trabalho centra-se em processos de emergncia
identitrias, principalmente na configurao que tomam no sul do Brasil Rio Grande
do Sul. Este Estado brasileiro reconhecido por suas prticas sociais relacionadas s
modalidades existentes no domnio do Tradicionalismo e do Gauchismo (Oliven,
1 Este edital foi lanado na cidade de Pinheiro Machado, em novembro de 2005, durante celebraes dirigidas aos lanceiros negros. A seleo do arquiteto que ser responsvel pela execuo do memorial (Pinheiro Machado) e do monumento (Porto Alegre) ser realizada pela IAB-RS (Instituto de Arquitetos do Brasil Departamento do Rio Grande do Sul). 2 Como veremos adiante, o contexto de memoralizao dos lanceiros negros envolve muitos grupos do estado que no estavam envolvidos nas discusses iniciais em torno da construo de tal memorial.
12
1990, 1992, 1994) e (Maciel, 1994a, 1999). Mesmo que reconhecidas as diferenas
e/ou divergncias internas desta prtica a nvel local, que acaba por evocar atributos
que informam diferenciais tanto em relao a outros grupos sociais do Estado, como
tambm proporciona uma unidade distintiva em relao ao resto do pas. Dentre as
diversas formas de celebrar o ser gacho e o ser negro, encontramos, recentemente,
aquela que ecoa do fato histrico e poltico conhecido como Revoluo Farroupilha (1835-1845).
A pesquisa etnogrfica teve incio em setembro de 2004 e assume como
elemento central as diversas verses sobre um episdio que ocorreu no Rio Grande do
Sul, durante esta revoluo. O episdio ao qual me refiro configurou-se enquanto
desfecho do embate que envolvia republicanos e imperiais, sendo conhecido como O Massacre de Porongos. Este evento, tambm conhecido como Surpresa de Porongos ou Traio de Porongos, revivido com bastante intensidade por diversos
grupos sociais do Estado e, suas implicaes, repercutido de forma ampla pelo pas. O
uso das verses, na atualidade, encontra fundamento nas principais matrizes
historiogrficas que discutem o tema.
De uma forma geral, a questo que envolve tanto a historiografia, como os atores
que revivem o evento na atualidade, relaciona-se com a possibilidade dos lderes
republicanos terem trados os negros que lutavam junto s suas tropas e, desta forma,
os deixado vulnerveis ao ataque das frentes imperiais. Cabe notar que esta questo,
objeto da historiografia, apropriada pelos atores no momento atravs das suas
principais matrizes.
Fundamentalmente, a polmica que paira em torno deste evento, gira em torno
da seguinte pergunta: David Canabarro personagem da histria do Rio Grande do Sul
e comandante do destacamento de negros em questo teria agido em atitude de
traio com relao aos seus lanceiros negros? A historiografia no apresenta um
consenso sobre o fato. Alguns trazem David Canabarro como traidor, j que este teria
recebido, momentos antes da contenda, uma carta endereada pelo lder imperial
Duque de Caxias ao Coronel Francisco Pedro Moringue comandante da fora
imperial que atacou os lanceiros negros no Cerro de Porongos - que continha
instrues referentes ao desarmamento da tropa de lanceiros negros momentos antes
13
do ataque fatal. Outros historiadores defendem o argumento de que esta carta teria
sido forjada pelos imperiais com a finalidade de desmoralizar o general David
Canabarro (Bakos,1985; Leitman,1997; Flores,2001; Pesavento, 1985)
A minissrie A Casa das Sete Mulheres, exibida pela Rede Globo de Televiso
em 2003, representou, em certo sentido, um efervescimento da opinio pblica no que
diz respeito verdade do evento em questo3. Desde 2003 tm acontecido alguns
eventos comemorativos em aluso aos lanceiros negros, como as celebraes que
ocorrem sempre em novembro, na cidade de Pinheiro Machado e no prprio Cerro de
Porongos. Ainda, como j citado anteriormente, haver a construo de um memorial
(Cerro de Porongos/Pinheiro Machado) e de um monumento (Parque farroupilha/Porto
Alegre) atravs de uma articulao realizada entre o movimento negro local, a
Secretaria de Cultura do Estado do Rio Grande do Sul e Fundao Palmares (ligada ao
Ministrio da Cultura).
A participao em projeto que visa a execuo do INRC (Inventrio Nacional de
Referncias Culturais) realizado pelo IPHAN (Instituto Patrimnio Histrico Nacional)4,
tem proporcionado o contato com atores e situaes que apresentam relao com o
tema. Entre eles, Movimento Negro Unificado de Porto Alegre, Movimento Negro de
Guaba (Centro Cultural Cndido Velho), Movimento Negro de Pinheiro Machado,
Grupo Cultural Razes da frica (Porto Alegre), alm de moradores do Cerro de
Porongos (local onde supostamente ocorreu o massacre) e o Movimento Tradicionalista
so algumas das entidades envolvidas neste processo. Podemos dizer que o reviver
relacionado a tal evento farroupilha apresenta relao com a possibilidade de reviso
do local do negro na sociedade riograndense, colocando-o como protagonista dos
eventos emblemticos do estado. Isto apresenta relao com a omisso da presena
do negro por parte da historiografia tradicional (Bakos,1985; Leitman,1997; Flores,2001)
3 Esta minissrie foi baseada no romance de mesmo nome de Letcia Wierzchowski, e foi dirigida por Jayme Monjardim e Marcos Schechtmann. Atravs da exibio dessa minissrie os lanceiros negros so apresentados ao grande pblico em rede nacional. 4 A equipe que vem realizando este trabalho junto ao IPHAN constituda por trs integrantes: Ana Paula Comin, Cristian Jobi Salaini e Vinicius Oliveira. A idia subjacente a este tipo de inventrio focar na idia de referncia cultural do ponto de vista de sua imaterialidade. Outro inventrio vem sendo realizado de forma concomitante nas Misses, interior do Estado.
14
assim como pela excluso do negro das representaes hegemnicas do gacho no
estado (Oliven, 1992).
Tomando o Massacre de Porongos enquanto processo de emergncia de
identidades sociais e etnicidade no Rio Grande do Sul que inscreve-se num campo de
dilogo composto por atores e processos situados em mltiplos nveis, podemos dizer
que o nosso problema de pesquisa gira em torno da construo de uma identidade
negra e gacha a partir da memoralizao deste episdio ocorrido durante a Revoluo
Farroupilha. Ainda, tendo em mente as caractersticas da sociedade brasileira, no que
concerne sua ideologia racial dominante, podemos ainda fazer a seguinte indagao:
Que valores e representaes tornam-se centrais, por parte dos protagonistas, na
construo do Massacre de Porongos enquanto smbolo que translada entre a
identidade gacha e a identidade negra?
A participao em projeto que visa a execuo do INRC (Inventrio Nacional de
Referncias Culturais) realizado pelo IPHAN (Instituto Patrimnio Histrico Nacional)5,
tem proporcionado o contato com atores e situaes que apresentam relao com o
tema. Entre eles, Movimento Negro Unificado de Porto Alegre, Movimento Negro de
Guaba (Centro Cultural Cndido Velho), Movimento Negro de Pinheiro Machado,
Grupo Cultural Razes da frica (Porto Alegre), alm de moradores do Cerro de
Porongos (local onde supostamente ocorreu o massacre) e o Movimento Tradicionalista
so algumas das entidades envolvidas neste processo.
O estudo realizado qualitativo e apia-se em mtodos antropolgicos de
investigao e anlise. Como tcnica so utilizadas a entrevista aberta e a observao
participante. As entrevistas propiciam a construo de narrativas e memrias que
serviro como alicerce no entendimento desta construo de uma memria coletiva
(Halbawchs, 1990), assim como na produo das posies distintas que envolvem a
construo do episdio. Atravs do processo de contar essas estrias relacionadas ao
massacre surge forma de criao identitria que associa-se, simultanemente, com um
imaginrio sobre o negro e o gacho. Os depoimentos, neste sentido, serviro como
5 A equipe que vem realizando este trabalho junto ao IPHAN constituda por trs integrantes: Ana Paula Comin, Cristian Jobi Salaini e Vinicius Oliveira. A idia subjacente a este tipo de inventrio focar na idia de referncia cultural do ponto de vista de sua imaterialidade. Outro inventrio vem sendo realizado de forma concomitante nas Misses, interior do Estado.
15
elementos na compreenso contextualizada de espaos sociais especficos, permitindo
ao informante a construo de uma relao entre a memria social do evento com sua
prrpia trajetria pessoal. Desta forma, a entrevista aberta, a, permitir a liberdade do
informante para decodificar a questo formulada pelo investigador.
A observao participante funciona enquanto tcnica fundamental na construo
do objeto em questo. O contato inicial referido at o momento, foi construdo
principalmente atravs da apreenso de diferentes nveis com os protagonistas
envolvidos. Atravs da participao em celebraes que fazem referncia ao evento
na condio de pesquisador e da aproximao com as pessoas que produzem
alguma verso sobre o fato foi criada a possibilidade da criao de redes sociais que
ligam engrenagens deste processo.
A estrutura desta dissertao obedecer a lgica do contato etnogrfico,
tomando como referncia uma srie de acontecimentos que se desenvolveram
durante nosso contato com este processo. Esta srie pretende ser o fio condutor de
nosso objeto, fazendo parte das escolhas que constituem o universo de pesquisa.
Antes de tudo, porm, o primeiro captulo procura apresentar as especificidades
epistemolgicas e metodolgicas de sua aplicao nesta pesquisa.
No captulo 2, define-se o contexto de produo do objeto de estudo, tendo em
vista as condies do Estado-Nao com relao aos processos emergentes de
identidade, assim como o espao simblico compartilhado pelo gauchismo e/ou pelo
Tradicionalismo. Sero reveladas algumas matrizes historiogrficas que tratam do
episdio de Porongos dando origem discusso chegando, ento, a aspectos
atuais da demanda em torno do tema. Estes aspectos relacionam-se, principalmente,
com o contexto etnogrfico que inscreveu-se dentro da aplicao do INRC e com o
cenrio que constitui as redes de relaes que esto imbricadas neste processo. Neste
sentido, a retrica farroupilha tomada como ponto de partida ao fornecimento dos
elementos estruturais do contexto em questo.
No captulo 3, foca-se o papel de algumas celebraes especficas, tendo em
vista o papel simblico que elas efetivam enquanto difusoras de um imaginrio
especfico. As celebraes em questo dizem respeito ao 13 de novembro, realizado na
cidade de Pinheiro Machado, assim como o 20 de setembro e 19 de novembro
16
(conscincia negra), realizados na cidade de Porto Alegre. A inteno relevar de que
forma e com qual intensidade relativa o tema emerge nestes espaos comemorativos. A
importncia destas situaes reside no fato delas apresentarem-se enquanto
fornecedor simblico que pensam o negro e o gacho no Rio Grande do Sul.
O captulo 4 evidencia a importncia do movimento artstico na construo deste
imaginrio, tomando como pressuposto a relao entre arte e cultura. Mais
especificamente, tomarei parte da produo do Grupo Cultural Razes dfrica, tendo
em vistas as parcerias que este tem realizado com a Secretaria de Cultura desde o ano
de 2000 e, mais recentemente, com a Secretaria de Educao do estado do Rio
Grande do Sul. Estas parcerias ocupam papel relevante no que tange produo em
torno do Massacre de Porongos.
O Rio Grande do Sul possui um contingente bastante expressivo no que diz
respeito s reivindicaes de cunho tnico/poltico. Isto fica evidente atravs do
conhecimento das lutas polticas e judiciais que envolvem quilombos rurais e urbanos
dentro de seu territrio.
Por fim, importa ressaltar que este trabalho est intimamente relacionado s
questes relativas construo de patrimnio neste pas, j que o atual debate em
torno do Massacre de Porongos toma referncia primeira em outros inventrios
culturais ocorridos no Brasil6. Neste sentido, a inteno do atual trabalho contribuir na
compreenso maior do fenmeno tnico no sul do Brasil, assim como trazer tona um
processo de reconstruo identitria que evoca memrias, narrativas, celebraes,
eventos e objetos artsticos, etc., e que tambm passa pelas formas de reconhecimento
do ser gacho e do ser brasileiro.
Sob a luz dos dados antropolgicos e das discusses epistemolgicas que aqui
sero apresentados, assume-se hiptese geral a existncia de uma reapropriao de
sentido que se d atravs dos elementos simblicos que so criados na atualidade e
dialogam com a retrica farroupilha, fazendo com que o Massacre de Porongos
transcenda, pela atuao da memria e do imaginrio social, o seu sentido original
assim como o seu reconhecido local de origem (Cerro de Porongos). Um processo de
6 Podemos citar como exemplo os inventrios realizados pelo IPHAN na Bahia e no Maranho, que apresentam relao, respectivamente, com o Acaraj e com o Bumba-meu-boi.
17
construo cultural que coloca uma possibilidade de reinvidicao identitria pelos
grupos negros do Estado, e que passa, invariavelmente, pelas formas do ser gacho.
18
CAPTULO 1
PREMISSAS EPISTEMOLGICAS E METODOLGICAS
1.1 A produo de etnicidades
Tendo em vista a complexidade envolvida no cenrio que evoca o Massacre de
Porongos enquanto sinal de identidade, deve-se considerar que o desenvolvimento da
etnografia est condicionado a determinados parmetros que esto, em certa medida,
previstos em uma narrativa maior. A etnografia entendida enquanto gnero -
guiada por um modelo prvio, por uma estrutura narrativa implcita (Bruner, 1986). Esta
narrativa relaciona-se s polticas transnacionais e, por extenso, nacionais, que
privilegiam a emergncia de demandas identitrias em nvel local. Assim, entendemos
nosso objeto como dotado de uma especificidade que dialoga com possibilidades
colocadas em um quadro global.
Nossa inteno situar o objeto em questo em um contexto que leva em conta
a apreenso de diferentes nveis que transladam entre estes nveis (global e local). Este
circuito de ao incorpora em sua agenda o tema afro atravs das organizaes
transnacionais e agncias multilaterais, como o Banco Mundial, o Banco Interamericano
de Desenvolvimento, a ONU e a OIT (Lpez, 2005). Neste sentido, podemos entender a
existncia de um contexto farovrel emergncia desse processo de etnicidade, que
estruturado por um campo de polticas e processos culturais.
19
Assim, tomamos como pressuposto, tendo em vista fins heursticos, a
constituio de trs nveis do fenmeno tnico proposto por Barth(1994). O nvel
micro, que se relaciona com o contexto vivido e com os processos de interaes
pessoais. Este nvel pode ser entendido como derivao de outros; o nvel mdio, que
constitui o campo de recrutamento da ao poltica, onde esta toma forma a despeito
da existncia de conflitos internos do grupo produtor da ao; e, por ltimo, o nvel
macro. Este nvel relaciona-se com o espao de produo das polticas estatais e
ideologias no mbito transnacional e internacional. No obstante, os atores procuram
traduzir estas grandes polticas para os universos locais.
Barth(1997) traz uma possibilidade analtica que coloca em evidncia a cultura
como portadora de uma diversidade descontnua e desconexa. Neste sentido, antes de
pensarmos a cultura enquanto produtora de uma consistncia lgica generalizada,
devemos entend-la como um complexo de pessoas que participam de universos de
discursos mltiplos. Os sujeitos so atravessados por fluxos que informam
determinadas posies sociais, no constituindo-se, desta forma, em meros
participantes de culturas. Ainda, retirando de foco vises mais tradicionais que
colocam a etnia como elemento inscrito em uma unidade cultural hermtica, o autor
contribui no sentido de entender o grupo tnico como resultados da interao, da
situao social. O que define o grupo tnico no so limites sociais ou geogrficos, mas
fronteiras variveis, fronteiras que se comunicam e que efetivam trocas de atributos
diversos. Tem isto em mente, o autor entende a cultura enquanto fornecedor de
atributos que sero utilizados e selecionados pela etnia no processo definidor de
diferenciao. Neste caminho, alguns atributos sero escolhidos, outros no. Ento, a
anlise no tem como centro a origem do grupo tnico, mas sim, a manuteno de suas
fronteiras (Barth, 1997).
possvel relacionar a idia de fronteira destacada por este autor com a forma
que a comunidade negra vem apresentando o Massacre de Porongos enquanto sinal
distintivo tnico. A emergncia de etnicidade produzida neste contexto viabilizaria a
organizao de fluxos de cultura que so tomados atravs da releitura da tradio
local e cristalizados nas celebraes da memria dos lanceiros negros que lutaram na
Revoluo farroupilha. Estes sinais que, neste momento, so apropriados pela
20
comunidade negra enquanto sinais distintivos remetem a uma dinamicidade que
informa uma diferena em relao aos demais grupos no negros. O autor, ao remeter
a idia de sinais diacrticos, evidencia a descontinuidade dos traos que colocam-se
como unidades distintivas, formando processos de identidade flexveis e relacionais.
A etnicidade, neste trabalho, ser entendida como elemento dinmico
configurado pela interpenetrao de nveis que atuam na chave da compreenso do
fenmeno pretendido. Ainda, ela evoca um contexto singular de organizao que toma
como ponto de partida um conjunto simblico derivado da possibilidade de reviso do
local do negro no Rio Grande do Sul.
1.2 Identidade regional e tradio
O embate que envolve este evento farrapo dialoga diretamente com elementos
tradio gacha que, como nos traz Oliven(1992), foi em grande parte inventada pelos
precursores do tradicionalismo gacho.7 Eric Hobsbawn, historiador ingls, discute
alguns processos de inveno de tradies na Europa, desnaturalizando a idia de
que algumas prticas relacionadas a estas tradies seriam oriundas de um passado
remoto, tendo em vista uma escala temporal de acontecimentos. Por Tradio
inventada entende-se:
...um conjunto de prticas, normalmente reguladas por regras tcita ou abertamente aceitas; tais prticas, de natureza ritual ou simblica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento atravs da repetio, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relao ao passado. Alis, sempre que possvel, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histrico apropriado. (...) na medida em que h referncia a um passado histrico, as tradies inventadas caracterizam-se por estabelecer com ele uma continuidade bastante artificial. Em poucas palavras, elas so reaes a situaes novas que ou assumem a forma de referncia a situaes anteriores, ou
7 Oliven (1992) traz que dois importantes expoentes nesta inveno da tradio gacha foram os tradicionalistas Paixo Crtes e Barbosa Lessa, criadores do primeiro dos atuais centro de tradies gachas no Rio Grande do Sul, o 35 CTG.
21
estabelecem seu prprio passado atravs da repetio quase obrigatria (Hobsbawn, 1997).
Tomamos a tradio como um ponto de vista, uma interpretao do passado que
se traduz na formalizao de prticas, ritos e comportamentos que so perpetuados
pela repetio (Maciel, 1999). A reinveno da tradio percebida aqui como o
processo atravs do qual os diferentes grupos sociais se apropriam dela, inscrevendo-
lhe novos significados, no interior de arenas de lutas sociais. Entendemos que os
significados dados num certo horizonte de significao, nesse caso da tradio
regional, ao serem atualizados em decorrncia de um evento singular, a construo de
um memorial em homenagem aos lanceiros negros, so colocados em risco na ao
em funo de uma conjuntura histrico-cultural e do valor intencional subjetivo de seu
uso pelos sujeitos ativos. As conseqncias podem ser inovaes radicais pois no
encontro contraditrio entre pessoas e coisas, os signos so passveis de serem
retomados pela conscincia simblica humana. Tudo isso depende da forma como os
grupos lidam com a histria, se de uma forma mais performativa assimilando as
circunstncias contigentes ou de um modo mais prescritivo onde projeta-se sobre um
evento uma ordem de significados j existentes (Sahlins, 2003).
A construo identitria do Rio Grande do Sul e, por extenso, do gacho, so
referenciados atravs de figuras tpicas que apresentam relao com o rural, com o
pampa e com atributos diversos que dizem respeito sua indumentria e aos seus
hbitos alimentares. Mas esta representao geral do gacho no d conta da
expresso identitria de determinados grupos sociais, do ponto de vista da diversidade
cultural interna apresentada neste estado:
Trata-se de uma construo de identidade que exclui mais que inclui, deixando fora a metade do territrio sul-rio-grandense e grande parte de seus grupos sociais. Apesar do enfraquecimento da regio sul do estado, da notvel projeo econmica e poltica dos descendentes dos colonos de origem alem e italiana que desenvolveram a regio norte, da urbanizao e da industrializao, o tipo representativo do Rio Grande do Sul continua a ser a figura do gacho da Campanha como teria existido no passado. Se a construo dessa identidade tende a exaltar a figura do gacho em detrimento dos descendentes dos colonos alemes e italianos, ela o faz de modo mais excludente ainda em relao ao negro e ao ndio que comparecem no nvel das
22
representaes de uma forma extremamente plida (Oliven, 1992, p. 100).
Podemos dizer que o cenrio poltico atual que vem sendo montado em funo
dos 160 anos do Massacre de Porongos, efetua dilogo direto com as tradies
gachas, seja contrapondo-as de forma direta, seja pela apropriao consciente de
determinados smbolos com a finalidade de inventar uma tradio (Hobsbawn, 1997),
que efetive uma slida ligao entre a figura do negro com a histria do Rio Grande do
Sul. Esta inteno fica clara nas metforas utilizadas pelo ator Sirmar Antunes durante
celebrao ocorrida, no dia 13 de novembro de 2004, na cidade de Pinheiro Machado.
Ele diz que momento do Rio Grande do Sul presenciar um batuque com churrasco,
um Ogum comendo churrasco e um batuque de bombacha8
importante perceber que, neste estado, as definies tnicas reconhecidas em
relao aos grupos negros estiveram, de uma forma geral, remetidos a atributos que
evocam elementos diversos, como por exemplo, o carnaval, o futebol, a beleza feminina
e a arte primitiva (Balen ,2000; Barcellos, 1996; Salaini ,2004). Ainda, as formas de
congregao do ser negro, sempre levaram em considerao um passado comum,
seja atravs de uma origem africana, ou atravs de uma origem afro-brasileira, como
fica claro em diversos estudos correlatos. Todavia, a ateno atual em torno do
Massacre de Porongos congrega, enquanto novo elemento distintivo, atores
preocupados em evidenciar a figura do negro gacho, tomando elementos da retrica
farroupilha enquanto sinal emblemtico da comunidade negra.
De fato, o contexto diz respeito luta pela representao legtima que apia-se
em determinados elementos simblicos nesta construo. Este evento histrico, na
medida que evocado, tem a inteno de atualizar, no plano das representaes, a
situao do negro no Rio Grande do Sul. Assim, a referncia a tal massacre e, por
extenso, a demanda atual em torno dele, articula-se com outras demandas tnicas e
8 Sirmar Antunes ficou bastante conhecido por seu trabalho em Neto perde sua alma, onde interpretou o sargento Caldeira. No momento atual Sirmar Antunes ator da rede globo de televiso, atuando na novela Como uma Onda. Esta apresentao ocorreu no dia 13 de novembro de 2004 na cidade de Pinheiro Machado e contou com diversas figuras polticas deste municpio e do estado, assim como diversos representantes da comunidade negra do estado e do pas.
23
sociais do estado e do pas9. Neste sentido, cabe ressaltar que as representaes
ocupam um papel fundamental na busca da realidade que define os grupos. Esta
realidade que pretende ser instituda, depende da eficcia da evocao que realiza
um movimento onde os militantes passam da representao da realidade realidade
da representao (Bourdieu, 1989:118).
1.3 A verdade histrica, a apropriao do passado e o imaginrio social
Tendo em vista que a preocupao geral do presente trabalho gira em torno da
apropriao que os atores fazem de um evento histrico no presente, cabe notar que a
verdade sobre os fatos possui um papel bastante relevante. Todavia, esta verdade
parece estar bastante prxima daquela denominada por Todorov (1989) como
verdade-desvelamento e, posteriormente, apropriada por Oliven (1992) ao tratar a
relao entre crena e realidade:
A verdade-adequao e a verdade-desvelamento, a primeira no conhecendo outra medida que o tudo e o nada, a segunda, o mais e o menos. Que X tenha cometido um crime falso ou verdadeiro, quaisquer que sejam, alis, as circunstncias atenuantes; e o mesmo vale para saber se os judeus partiram, sim ou no, como fumaa pelas chamins de Auschwitz. Entretanto, se a questo trata das causas do nazismo ou da identidade mdia do francs mdio em 1987, nenhuma resposta desse tipo concebvel: as respostas s podem conter mais ou menos de verdade, uma vez que elas aspiram desvelar a natureza de um fenmeno, no a estabelecer os fatos. O romancista no aspira seno a esse segundo tipo de verdade; e ele no tem nenhuma lio a dar ao historiador quanto ao primeiro (Oliven, 1992, p. 24).
9 O Lanceiro negro um signo acionado e atualizado em situaes diversas que, inclusive, extrapolam o contexto inicial que lhe deu origem. O senador Paulo Paim criou, durante o ano de 2004, o trofu e diploma Lanceiros Negros. De uma forma geral, este visa premiar personalidades, entidades pblicas e privadas que apresentam contribuies a campos que apresentam relaes com as demandas polticas dos afro-brasileiras, assim como aos idosos e portadores de deficincia fsica. Em diversas situaes pblicas o senador empunhou uma lana, em aluso aos lanceiros negros. Recentemente, o senador indicou a Famlia Silva comunidade que passa por processo de reconhecimento enquanto quilombo urbano na cidade de Porto Alegre para o recebimento de tal trofu que conferido pelo Senado Federal.
24
Esta apropriao revela-se bastante operacional para o presente objeto de
estudo, tendo em vista a diversidade de atores que vislumbram a possibilidade de
processar a histria mais verdadeira. A questo aqui no gira em torno da verdade ou
falsidade com relao existncia da morte de lanceiros negros na Revoluo
Farroupilha. O que parece estar em jogo so as circunstncias, condies e
argumentos capazes de introduzir elementos de verossimilhana em relao ao tema,
desenvolvendo uma gama de possibilidades explicativas que so, no obstante,
alinhadas com as posies polticas ocupadas pelos grupos sociais envolvidos.
A apropriao do passado constitui-se em elemento fundamental no que
concerne afirmao de posies a partir de verdades. A histria, neste sentido,
constitui-se enquanto forma de atividade legtima que apresenta uma relao direta
com a atividade poltica; a apropriao simblica do passado constitui-se numa forma
de aquisio de status e notabilidade (De LEstoile, 2001). A lembrana, em nosso
objeto de estudo, ocupa um papel central, j que produzida pelos quadros sociais pr-
existentes acionados pelos grupos responsveis pela reproduo de uma memria
coletiva. Ressalta-se aqui a relao existente entre histria e memria coletiva em
nosso estudo, tomando como princpio geral a existncia de grupos sociais que
produzem esta memria e que, contudo, tomam como referncia elementos
pertencentes histria. Segundo Halbawchs:
(...) se conclui que a memria coletiva no se confunde com a histria, e que a expresso memria histrica no foi escolhida com muita felicidade, pois associa dois termos que se opem em mais de um ponto. A histria, sem dvida, a compilao dos fatos que ocuparam o maior espao na memria dos homens. (...) porque a histria comea somente no ponto onde acaba a tradio, momento onde se acaba ou se decompe a memria social. (Halbawachs, 1990, p. 80).
Neste sentido, temos que a memria coletiva apresenta-se diretamente
relacionada com a existncia dos grupos sociais responsveis por sua reproduo.
Argumenta-se que, no caso em questo, a memria coletiva acionada atravs de,
pelo menos, duas maneiras. Primeiro, atravs da criao de espaos de sociabilidade
que cumprem o papel de gerar uma memria vivida, atravs das celebraes, eventos
25
e das discusses de uma forma mais ampla (as entrevistas so uma forma de acesso
memria). As datas elencadas pelos grupos e pelos historiadores - so preenchidas
pela ao da memria coletiva que construda nestes espaos. Segundo, atravs de
uma memria afetiva pr-existente que, ao encontrar este ponto de referncia nestes
quadros sociais do presente, apropria um espao de reconhecimento social. Esta
memria afetiva, como veremos adiante, relaciona-se, de forma geral com determinada
parcela da memria negra do Rio Grande do Sul. Esta distino segue um fim
estritamente operatrio. Em realidade, o contexto que permite a retroalimentao
entre estas camadas de memria o que nos interessa.
Podemos pensar uma produo que se d no campo do imaginrio social. O
imaginrio social, neste sentido, tem o papel de preencher simbolicamente este
espao de construo que evocado pela memria, atuando na produo e reproduo
dos elementos que podem constituir meios de legitimao e eficcia a este
empreendimento social. Pretendemos lidar com o imaginrio enquanto elemento que
confunde-se com o real, sendo elemento indispensvel na constituio de posies
que so, sob diversos aspectos, de natureza poltica. Nosso objeto de estudo foca em
alguns dos instrumentos responsveis pela produo e reproduo que atuam neste
campo especfico do imaginrio social, como as celebraes e produes artsticas
dirigidas ao tema.
Baczko (1985) aponta para o fato de a histria da imaginao ganhar um campo
cada vez mais preciso no que diz respeito sua definio. Imaginrio social, segundo a
tendncia das cincias humanas, cada vez menos entendido como iluso ou como
algo pertencente ao domnio do fantstico. Pelo contrrio, atravs do imaginrio e
do conjunto simblico proposto por ele, que possvel aos grupos e indivduos a
aquisio de posies no mundo. O autor tambm atenta para as tcnicas de difuso
do imaginrio que so enfatizadas dependendo da conjuntura histrica especfica e,
portanto, a elaborao e aprendizagem das prticas e tcnicas de manejamento dos
imaginrios sociais, tm prioridade sobre qualquer reflexo terica (Baczko(1985, p.
299). Segundo o autor, o problema acerca do imaginrio no algo novo e possui uma
natureza interdisciplinar. A questo que move a reflexo do autor parece ser a
reconstruo de um campo especfico do imaginrio. Ele faz aluso Revoluo
26
Francesa como momento privilegiado no estudo do imaginrio, devido intensa
produo simblica que caracterizou este evento histrico:
Recordamos j as pginas em que Marx ope a Revoluo Francesa, que disfarava os seus atores com trajos antigos, sua viso da revoluo proletria, cujos actores dispensariam qualquer mscara. Porm, em nenhum caminho da sua histria, nem mesmo caminhos da revoluo, seja ela burguesa ou outra, os homens passeiam nus. Precisam de fatos, de signos e imagens, de gestos e figuras, a fim de comunicarem entre si e se reconhecerem ao longo do caminho. Os sonhos e as esperanas sociais, freqentemente vagos e contraditrios, procuram cristalizar-se e andam em busca de uma linguagem e de modos de expresso que os tornem comunicveis (Baczko, 1985, p. 321).
Carvalho (1990) demonstra a produo intensa em torno da construo do
imaginrio republicano brasileiro. Este imaginrio, conforme argumenta o autor,
pretende extravasar os limites da elite da poca, indo ao encontro, portanto, do
imaginrio popular. Parte do problema proposto pelo autor, gira em torno da
reconstituio de posies polticas da poca, evidenciando assim, circuitos
diferenciados no que diz respeito produo do imaginrio. Como ele demonstra, pelo
menos trs posies entravam na disputa sobre a definio do novo regime: o
liberalismo americana, o jacobinismo francesa e o positivismo. Destaca a utilizao
de instrumentos nesta construo, apontando para elementos diversos utilizados pelos
idelogos da repblica, como as alegorias, as imagens, rituais e mitos, evidenciando o
papel que a reformulao da poltica cultural da poca teve na produo simblica do
novo regime, atravs da redefinio dos sales artsticos.
1.4 O mtodo etnogrfico e seu campo de estudo Fundamentalmente, o mtodo em questo na presente pesquisa antropolgico
e etnogrfico. Esta modalidade de pesquisa social prev a existncia de uma
aproximao entre sujeito-pesquisador e sujeito-pesquisado. A tradio de pesquisa
27
nesta rea acaba por desembocar em uma problematizao metodolgica que diz
respeito a este contato, levando em considerao de forma reflexiva os pesos polticos,
posies sociais e vises de mundo dos sujeitos envolvidos na pesquisa (Clifford,
1998). Este contato, por sua vez, escoa atravs da escrita do antroplogo, ou, mais
especificamente, atravs da etnografia. atravs desta que evidencia-se o contato
mais expressivo entre os sujeitos, tendo em vista o carter social e simblico envolvido
nas relaes.
Tendo em vista o envolvimento de diversos grupos e atores sociais nesta
construo, uma etnografia deve dar conta das diversas vozes que situam e do as
coordenadas deste processo, valorizando assim, o carter polissmico que gira em
torno deste processo. Ainda, faz-se necessrio considerar o contexto inicial desta
pesquisa, j que o mesmo possibilitou a expanso pretendida para o atual objeto de
estudo. Como j foi colocado anteriormente, a interao com o universo de pesquisa
ocorreu atravs da participao em projeto que tenciona a realizao de um inventrio
cultural sobre o massacre, atravs de critrios especficos metodolgicos estabelecidos
pelo IPHAN.10 Pretendo relatar, neste momento, alguns elementos gerais do contexto
de pesquisa que, parcialmente, foram incorporados ao universo do presente trabalho.
A aproximao que vem acontecendo desde setembro de 2004, atravs da
execuo do INRC, proporcionou um contato prvio com alguns dos agente envolvidos.
Este primeiro contato tambm levou a algumas localidades que apresentam algum tipo
de relao com o tema. As capitais farroupilhas: Pinheiro Machado, Piratini, Caapava
do Sul, Guaba e Porto Alegre so algumas delas. O Cerro de Porongos local tido
como referncia da batalha situa-se h aproximadamente 17 Km cidade de Pinheiro
Machado e, ali, residem moradores que, segundo trazem os relatos, so herdeiros do
General Honrio Brizolara.11 Os moradores desta regio trazem, atravs de suas
memrias, elementos de referncia a batalhas que teriam ocorrido naquele local.
10 Ver Inventrio Nacional de Referncias Culturais. Manual de aplicao. Braslia: IPHAN, 2000. 11 Este General, na ausncia de herdeiros diretos, efetuou uma doao que consiste no local de residncia dos atuais moradores. Este teria recebido essas terras em funo de seus servios prestados ao exrcito. Ele deixou um testamento de suas terras que localiza-se no Cerro de Porongos Arci Viana, Nolberta e Geraldo Vaz (negros).
28
Apesar de no haver consenso a respeito de qual batalha teria ocorrido neste
lugar, h uma idia geral que aloca este lugar enquanto espao de produo de
sentido. A questo referente ao massacre costumou levantar, por parte dos moradores
locais, questes diversas relativas situao do negro: a escravido, a relao entre
brancos e negros e a participao de negros em batalhas. Muitos afirmam a existncia
de corpos de combatentes que estariam enterrados na regio; a isto soma-se as lendas
referente a negrinhos sem-cabea, bolas de fogo e vultos que apareceriam na
regio12. De qualquer forma, o local tomado como local de referncia pelos diversos
agentes envolvidos, como pudemos evidenciar ao longo da pesquisa. Nos momentos
em que ficamos instalados na cidade de Pinheiro Machado, recebemos apoio imediato
da Secretaria de Cultura do municpio, tendo em vista que a nossa presena
representava uma pesquisa sobre os porongos.
importante ressaltar que a questo relativa ao Massacre de Porongos e, por
extenso, aos lanceiros negros, encontra enquanto espao de produo de memria
eventos que ocorrem em datas comemorativas especficas. A Semana Farroupilha,
por exemplo, conta hoje com uma produo bastante especfica no que concerne aos
lanceiros negros, explorando de forma intensa o tema da participao do negro na
formao do Rio Grande do Sul. Piquetes apresentavam o tema dentro do Parque
Harmonia (local onde tradicionalmente realizado o acampamento farroupilha na
cidade de Porto Alegre).
Todavia, evidenciou-se formas de referncia ao negro-gacho fora do espao
deste parque. o caso do Grupo Repblica Negra, como veremos no captulo 3.
Temos tambm a Cavalgada da Semana da Conscincia Negra, organizada pelo
grupo Lanceiros Negros Contemporneos, que ocorre em novembro na cidade de
Porto Alegre. Outros espaos de sociabilidade so criados e acionados em relao ao
j citado tema. O evento que ocorre anualmente, na cidade de Pinheiro Machado, rene
representantes polticos provenientes de diversas instncias: governo federal, estadual,
12 Artmio, morador da regio e integrante do movimento tradicionalista local, encontrou a ponta de uma lana no local, qual reconstituiu dando uma nova haste. Em 2002 Artmio realizou um desfile no qual estavam caracterizados os lanceiros negros. No entanto, discorda com a tese da traio.
29
diversos grupos representantes do movimento negro do estado, grupos artsticos e
moradores locais.
preciso citar o contato com os grupos artsticos que estiveram envolvidos na
representao deste processo at o momento, especificamente com o grupo Razes
dfrica. O contato com este grupo deu-se de forma prvia a meu contato com o
inventrio cultural em questo, durante uma pesquisa anteriormente realizada que
apresentava relao com negro no campo artstico no Rio Grande do Sul (Salaini,
2004). Este grupo tem realizado representaes pictricas relacionadas com a questo
de Porongos, levando em considerao, principalmente, o tema dos lanceiros negros.
Apresentaes teatrais envolvendo o massacre tambm fazem parte do programa
artstico deste grupo que apresenta, como diretor-produtor, o artista plstico Clvis
Moacir Ortiz Ney Ortiz.
Este grupo apresenta uma leitura de carter simblico bastante importante em
relao ao Massacre de Porongos, seja por sua atuao junto aos representantes da
comunidade negra, seja atravs de suas relaes com os circuitos culturais de uma
forma mais ampla13. O Razes d frica faz parte do Projeto Porongos que
organizado pela Secretaria de Cultura do Estado do Rio Grande do Sul e,
recentemente, levanta a questo em escolas do interior do estado atravs de projeto
desenvolvido junto Secretaria de Educao. O grupo tem uma proposta de congregar
artistas que trabalhem dentro de uma temtica africana ou afro-brasileira.
importante notar que, alm da produo que envolve o Massacre de Porongos ou os
lanceiros negros, o Razes da frica produz, desde 1998, pinturas que relacionam-se
com a afro-religiosidade e com a mulher negra, assim como uma pea teatral
relacionada com a Revolta da Chibata, evidenciando a figura do almirante negro Joo
Cndido. Recentemente as peas teatrais do grupo foram veiculadas pela Rede Globo
de Televiso no programa Ao, coordenado pelo apresentador Srgio Groissman. O
programa discutia o sistema de quotas para negros e participao do negro nas artes
cnicas.
13 Ney Ortiz fez parte da Comisso do Memorial dos Lanceiros Negros. Esta Comisso discutia como seria realizada a construo do Memorial aos Lanceiros Negros na cidade de Pinheiro Machado Cerro de Porongos. Enquanto pauta da discusso era presente a preocupao em relao a forma como seria representado um monumento em homenagem aos lanceiros.
30
A cidade de Caapava do Sul demonstrou, durante a pesquisa, ser importante
local de atribuio de sentido. Esta cidade, indicada por alguns dos informantes como
um local de treinamento dos lanceiros negros, ficou conhecida por sua participao na
novela A Casa das Sete Mulheres, exibida pela Rede Globo de televiso durante o
ano de 2003. Conforme as informaes, os produtores da srie televisiva procuraram os
integrantes do CTG Clareiras da Mata por ser reconhecidamente um CTG Negro
detentor de memrias de tal batalha. Aps a exibio desta minissrie, o Clareiras da
Mata desenvolveu um espao no CTG chamado Piquete Lanceiros Negros, sendo
reconhecido, por diferentes agentes, como um dos principais representantes do tema
(em outubro de 2005 o grupo realizou uma cavalgada que teve como origem Caapava
do Sul e como destino o Cerro de Porongos. O objetivo foi acender uma chama crioula
no local). Cabe notar que a praa central desta cidade porta uma escultura em
homenagem aos lanceiros negros.
De uma forma geral, pode-se dizer que integrantes do Movimento Negro de
Guaba, do Movimento Negro de Porto Alegre e do Movimento Negro da cidade de
Pinheiro Machado, tm promovido um debate contnuo a respeito da questo. Oliveira
Ferreira da Silveira - poeta e escritor - tambm tem levantado questes que envolvem o
tema relativo aos lanceiros negros e ao negro no Rio Grande do Sul desde a dcada de
70. O Movimento Tradicionalista envolveu-se na discusso, tendo na figura de Antnio
Augusto Fagundes, um defensor da tese de que David Canabarro no teria trado os
lanceiros negros. O MARS Museu Antropolgico do Estado do Rio Grande do Sul -
tambm teve participao efetiva e, no momento, vem dirigindo um processo de
escavao arqueolgica no local.
Frente a uma ampla produo em torno do tema e, indo ao encontro de nossa
hiptese geral, prope-se uma reflexo metodolgica que encontre lugar na
problematizao da constituio de um campo fragmentado em termos espao-
temporais. Mesmo tomando o Cerro de Porongos como local de referncia da batalha,
os atores envolvidos nesta etnografia localizam-se em pontos distintos do Rio Grande
do Sul e do pas. Os grupos localizados em espaos geogrficos distintos, atravs da
ao da memria social, ligam-se em torno do tema. Neste sentido, tendo em vista o
31
caso presente, em que termos podemos pensar na constituio de um campo de
pesquisa? O que se coloca a forma de representao do outro e sua localizao14:
Some strategy of localization is inevitable if significantly different ways of lyfe are to be represented. But local in whose terms? How is significant difference politically articulated, and challenged? Who determines where (and when) a community draws its lines, names its insiders and outsiders? These are far- reaching issues. My aim, initially is to open up the question of how cultural analysis constitutes its objects societes, traditions, communities, identities-in spatial terms and through specific spatial practices of research (Clifford, 1997, p. 19).15
Partindo das reflexes de Clifford (1997) a respeito das pr-noes que
carregam o campo na disciplina antropolgica, gostaria de realizar algumas
consideraes em relao ao que foi relatado. James Clifford ressalta a existncia de
algumas imagens que foram povoadas pelos etngrafos do sculo XX. Estas imagens
ligam-se com as formas de representao etnogrfica, onde o campo de estudo
relaciona-se irremediavelmente com uma cultura delimitada no espao. Estar em campo
significa estar imerso em uma cultura com fronteiras bem definidas que,
frequentemente, so entendidas como o limite da prpria aldeia. Assim, desde
Malinowski, o full-time imprescindvel no que diz respeito ao entendimento de uma
determinada coletividade. O etngrafo viaja at o lugar, tornando-se um habitante pelo
tempo necessrio apreenso dos elementos culturais. Este tipo de estratgia,
segundo Clifford, acaba por epitomizar o outro, j que toma o particular como
elemento totalizador.
Esta efervescncia que ocorre em funo do Massacre de Porongos
atravessada por diferentes fluxos. Fluxos globais e locais em diferentes nveis. A prpria
14 Minha inteno, neste momento, promover uma noo geral do campo de estudo em termos espaciais e temporais. Muitos dos elementos aqui apresentados dialogam diretamente com o campo emprico do presente trabalho, outros no. 15 Alguma estratgia de localizao inevitvel quando se pretende representar modos de vida significativamente diferentes. Mas "local" em que termos? Como se articula, ou se desafia, politicamente a diferena? Quem determina onde (e quando) uma comunidade traa seus limites, ou seja, define quem que lhe pertence e quem no. Esses assuntos so de longo alcance. Meu objetivo, para comear, trazer tona a questo de como a anlise cultural conforma seus objetos sociedades, tradies, comunidades e identidades. Em termos espaciais e atravs de prticas de pesquisa espaciais especficas (Clifford, 1997: 19).
32
possibilidade atual de construo de um inventrio cultural, nos coloca frente a uma
situao peculiar de contato. No caso especfico de Porongos, onde temos uma
memria coletiva (Halbawchs, 1990) que ativada pelos quadros sociais disponveis,
podemos pensar que, alm dos espaos de produo constitudos por estes grupos,
temos uma produo de memria evocada pelo prprio papel do encontro etnogrfico.
Esta memria que aciona o cone farroupilha enquanto emblema acaba sendo
atualizado diferentemente pelos grupos. No entanto, isso s possvel atravs da
existncia desta memria comum partilhada. Desta forma, o prprio Cerro de
Porongos ganha sentido enquanto local de memria, j que os grupos que o utilizam
como referncia no possuem, na maioria das vezes, uma relao geogrfica direta
com o local16. Na mesma direo, cabe evidenciar que a presente pesquisa teve como
ponto de partida a construo do memorial aos lanceiros negros, porm, a extenso de
seu universo de pesquisa no limitou-se aos agentes diretamente envolvidos nesta
empresa. Isto nos permite entender nosso objeto de forma ampla do ponto de vista
simblico e geogrfico, evidenciando o papel do viajante na construo da etnografia.
No entanto argumenta Clifford o viajante tambm est imerso neste jogo de
relaes. Ao utilizar a figura do viajante, evocamos uma srie de imagens que no so
isentas. Isto porque, historicamente, apenas alguns alcanam efetivamente esta
posio, fato que nos coloca frente a questes de raa, gnero, classe, etc.
A experincia etnogrfica, nesta pesquisa, estava fortemente mediada por uma
figura de pesquisadores do IPHAN, ou, simplesmente, de pesquisadores. Neste
caso, chegar num local significa, muitas vezes, dizer algo sobre ele, ser capaz de
produzir um diagnstico. Isto ficou claro atravs dos diversos questionamentos
colocados pelos informantes a respeito da real existncia de lanceiros negros
enterrados na regio Cerro de Porongos. Estes questionamentos foram intensificados
com a delimitao de um stio arqueolgico no local17. A confirmao arqueolgica
apresentava-se como uma confirmao do fato para muitos. O Cerro de Porongos
tornou-se um palco de investigaes, tendo o prefeito do municpio de Pinheiro 16 Neste sentido, cabe notar que a equipe responsvel pela produo do inventrio tem discutido, junto intituio (IPHAN), novas possibilidades de inventariamento, j que as possibilidades apresentadas em alguns formulrios no do conta da complexidade semntica apresenta em trabalho de campo. 17 Este foi realizado pelo MARS Museu Antropolgico do Rio Grande do Sul.
33
Machado comprado uma parte (3 hectares) das terras pertencentes a este territrio com
a finalidade de delimitar o stio arqueolgico.
Ainda, retomando o problema de Clifford, importante notar que o informante
tambm pode ser entendido como um viajante nestas situaes interculturais. Lida-se
com um processo social onde os atores mobilizam sentidos especficos que so
organizados contextualmente neste momento especfico. Concluindo, a questo no
substituir a figura do nativo pela do viajante, mas estar atento aos modelos
representacionais em jogo, tendo em vista as tenses existentes nestas relaes:
In my current problematic, the goal is not to replace the culture figure native with the intercultural figure traveler. Rather, the task is to focus on concrete mediations of the two, ins specific cases of historical tension and relationship. In varying degrees, both are constitutive of what will count as cultural experience. I am recommending not that we make the margin a new center (we are all travelers) but that specific dynamics of dwelling/traveling be understood comparatively (Clifford, 1997, p. 24).18
Pretendo demonstrar, no decorrer deste trabalho, a construo de uma
identidade tnica que toma como referncia a tradio regional gacha atravs da
celebrao da memria de tal evento em espaos especficos. Tratando-se de um
processo de construo, parto do princpio que ainda est em aberto, elencando
sentidos que so reproduzidos atravs do acionamento de imaginrios sociais
especficos. De qualquer forma, no esforo de cristalizao de determinadas
representaes, que a etnicidade atua como um organizador dos fluxos simblicos.
18 Em minha problemtica atual, o objetivo no substituir a figura cultural do "nativo" pela figura intercultural do "viajante". Ao invs disso, minha tarefa a de focalizar as mediaes concretas entre ambos, em casos especficos de tenso e relacionamento histrico. Em diversos graus, ambos constituem o que ser considerado como experincia cultural. Eu no recomendo que faamos da margem um novo centro (ns somos todos viajantes),mas que sejam entendidas comparativamente algumas dinmicas especficas de habitao / deslocamento (Clifford, 1997:24).
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CAPTULO 2
O CONTEXTO DE PRODUO DO OBJETO
Neste captulo versarei sobre o contexto com o qual o objeto de pesquisa
dialoga, sob dois enfoques principais. Primeiro, tratarei da controvrsia que gira em
torno do Massacre de Porongos e das pautas de reivindicao dos diversos grupos e
atores que, de alguma forma, dialogam com a retrica farroupilha e, por extenso, com
os atributos prprios da figura do Gacho. Assumo como hiptese que os elementos
simblicos presentes nessa retrica so continuamente acionados e manipulados
localmente tomando como referncia dois fenmenos especficos: o Gauchismo e o Tradicionalismo. a partir da etnicizao de elementos presentes nesse contexto que surge a demanda pela construo de um Memorial aos Lanceiros Negros.
Em seguida, relevarei que o processo de patrimonializao do Massacre de
Porongos, atravs da aplicao do INRC (Inventrio Nacional de referncias Culturais)
pelo IPHAN. Este processo, que foi acionado diretamente pelos atores locais do
movimento negro, est diretamente relacionado a discursos transnacionais que vm
definindo os parmetros das aes polticas dos Estados-Nao e das aes locais
ligadas problemtica da etnicidade. O Estado brasileiro produz contornos especficos
em relao visibilizao das diferenas tnicas desde os debates produzidos na
Constituio de 1988. Com isso, ser evidenciado que, no caso desta pesquisa, o
objeto de estudo e o lugar do etngrafo no podem ser dissociados das linhas de fora
culturais e polticas que parecem estar para alm das questes propriamente locais. Ao
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contrrio, a compreenso e a interpretao do objeto de estudo depende de uma
anlise minimamente crtica desses discursos.
Assim, entendo que a busca pelo patrimnio negro no Rio Grande do Sul
atualizado nesse contexto particular relaciona-se diretamente a pautas nacionais e
transnacionais que vm discutindo o papel das diversidades tnicas e culturais nos
Estados-Nao. No entanto, em nvel local, o embate toma como ponto de partida a
retrica farroupilha, depositria de um conjunto de signos que, de forma conflitiva ou
no, se fazem presentes nas reivindicaes dos grupos e atores negros no estado do
Rio Grande do Sul.
2.1 O Memorial aos Lanceiros Negros o contexto local
2.1.1 Os Negros e a Revoluo Farroupilha
Apesar de serem omitidos por grande parte da historiografia tradicional, os
negros tiveram participao fundamental junto s foras rebeldes republicanas que
lutaram contra o imprio. Eles teriam composto, durante a Revoluo Farroupilha, de
um tero metade do exrcito republicano e, foram integrados ao exrcito farrapo em
duas divises: a cavalaria e a infantaria, criadas, respectivamente, em 12/09/1836 e
31/08/1838, sendo denominadas Corpos de Lanceiros Negros (Leitman, 1997).
Estes corpos eram compostos por negros livres e escravos libertados pela
Repblica sob a promessa de libertao ao fim de tal revoluo (Carrion, 2003). Os
negros j haviam desempenhado papel fundamental antes mesmo da criao destes
corpos, como na tomada de Porto Alegre, em setembro de 1835 e a de Pelotas,
ocorrida em abril de 1836. Negros, na condio de libertos e alforriados, assim como na
de fugidos do Uruguai, contriburam na causa farroupilha no apenas como soldados.
Foram tropeiros, mensageiros, campeiros e fabricadores de plvora (Leitman, 1997).
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O Massacre de Porongos, conhecido tambm como Surpresa, Batalha, ou
traio de Porongos ocorreu nos momentos finais da Revoluo Farroupilha, quando
seria assinado o tratado de paz entre republicanos e imperiais conhecido como Tratado
de Ponche Verde. A morte de parte de um dos corpos de lanceiros negros ocorreu na
madrugada de 14/11/1844, no Cerro de Porongos, ento municpio de Piratini,
atualmente pertecente a cidade de Pinheiro Machado.
Este episdio gerou polmica entre historiadores e, atualmente, entre os
protagonistas que revivem tal acontecimento na atualidade. O elemento central da
discusso como vimos anteriormente est na possibilidade do General David
Canabarro ter desarmando e separado os lanceiros negros da tropa momentos
anteriores do ataque imperial. O elemento que vai ao encontro desta tese a famosa
carta que teria sido enviada ao Coronel Francisco Pedro de Abreu (comandante
imperial) pelo lder imperial Duque de Caxias. Este vis interpretativo prev a traio de
Canabarro aos negros que estavam sob o seu comando. Esta traio estaria
relacionada a uma facilitao da assinatura do tratado de paz, j que o Imprio do
Brasil mostrava-se contrrio libertao dos escravos insurretos que lutaram ao lado
dos rebeldes. O outro grupo de estudiosos argumenta que tal carta teria sido falsificada
pelos imperiais com a inteno de desmoralizar o chefe farroupilha e criar tenses no
grupo. Segundo este argumento, tal episdio deveria ser classificado como uma
supresa, e no traio, j que todos (inclusive Canabarro) estariam desprevenidos no
momento do ataque.
Neste momento pretendo localizar de forma panormica algumas das
matrizes historiogrficas que geraram os principais argumentos que so objeto de
ateno pelos atores envolvidos na atualidade. O objetivo aqui no ser o de me
aprofundar nos pormenores historiogrficos, e sim de situar o leitor com as principais
teses envolvidas.
Segundo (Carvalho, Oliveira, 2006) pode-se constatar a existncia de, pelo
menos trs momentos de emergncia da polmica entre os historiadores. O primeiro,
podemos condensar na discusso, ocorrida no final do sculo XIX entre os
historiadores Alfredo Varela e Alfredo Ferreira Rodrigues. Alfredo Varela argumenta
sobre uma traio de David Canabarro em Porongos, dizendo que o autor sabia da
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proximidade das tropas imperiais, mas no tomou as devidas providncias. O segundo
autor remete idia que tal carta, recebida por Francisco de Abreu, teria sido forjada.
(Carvalho, Oliveira, 2006) colocam que a importncia desses autores est no
fornecimento de bases para a constituio de uma identidade rio-grandense, j que
produzem uma verso que acaba sendo amplamente aceita por diversos setores do Rio
Grande do Sul e do pas.
O segundo momento de reflexo historiogrfica seria realocada nas dcadas de
1920 e 1930 atravs de autores como Dante de Laytano, Othelo Rosa, Walter Spalding
e Joo Maia. Conforme demonstram (Carvalho, Oliveira, 2006) o eixo central das
discusses neste perodo no versa sobre a possibilidade de traio ou surpresa,
mesmo que a tendncia seja para o segundo termo. Os autores destacam o papel de
Dante de Laytano como autor que evidencia o papel do negro enquanto etnia no Rio
Grande do Sul, porm, ressaltam que este papel interpretado atravs de uma
democracia racial dos pampas. neste momento que h a emergncia dos primeiros
CTGs (Centros de Tradies Gachas) e tambm a difuso da idia de que a
escravido no Rio Grande do Sul teria sido mais branda do que no resto do pas.
O ltimo momento, diz respeito s dcadas de 1970 e 1980. Aqui, podemos
encontrar autores como Moacyr Flores, Spencer Leitman e Margareth Bakos que
argumentam no sentido de uma traio em Porongos. Conforme salientam (Carvalho,
Oliveira, ano), os historiadores deste perodo esto, de forma geral, preocupados em
discutir o carter abolicionista dos rebeldes na Revoluo Farroupilha. Neste mesmo
perodo encontramos autores que defendem a tese da surpresa em Porongos, como
Claudio Moreira Bento e Ivo Caggiani. fundamental notar que tambm neste
momento que surgem as primeiras apropriaes do Movimento Negro em relao ao
tema, atravs do poeta e escritor Oliveira Ferreira Silveira e do historiador Guarani
Santos. Ambos so tomados frequentemente como referncia ao tema pelos grupos
locais responsveis pela emergncia de memria na atualidade.
O historiador e vereador da cidade de Porto Alegre, Raul Carrion tem participado
das diversas situaes pblicas que envolvem o tema: palestras, eventos, celebraes
e discusses em torno da construo do memorial tendo produzido, em 2003, uma
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discusso sobre o tema intitulada Os Lanceiros Negros na Revoluo Farroupilha.
Neste trabalho o autor argumenta que:
Por um lado, era impossvel obter um mnimo de consenso para consertar a paz sem garantir a liberdade dos negros libertos, que h dez anos lutavam pela Repblica. Alm disso, seria muito arriscado o retorno dos combatentes negros ao trabalho servil, o que poderia levar o fermento da rebelio para as senzalas. Por outro lado, para a ordem escravocrata reinante, tambm era perigoso manter livres um grande contingente de negros com experincia militar (Carrion, 200, p. 15).
E, nesta direo o autor conclui:
Por fim, a investigao nos comprova que o Combate de Porongos decorreu de um acerto entre Caxias e Canabarro, com o objetivo de: 1) Eliminar o maior nmero possvel de Lanceiros Negros, minimizando o problema criado pela exigncia dos lderes farroupilhas de libertao dos negros que lutavam no Exrcito Farrapo; 2) causar uma derrota estratgica s foras republicanas, removendo as ltimas resistncias deposio de armas e concentrao da paz. Impe-se a reparao histrica dessa traio (Carrion, 2003, p. 25).
O que importa, neste momento, ressaltar o papel dessas matrizes na releitura
realizada pela memria social que atualiza as possibilidades simblicas de variao
sobre este tema. O discurso historiogrfico, quando submetido ao do imaginrio
revela um potencial que diz respeito prpria formao de grupos organizados que
celebram a memria do negro na revoluo farroupilha.
2.1.2 A Revoluo Farroupilha e o Gauchismo
O episdio em Porongos incorpora-se no contexto da Revoluo Farroupilha
(1835-1845). Esta revoluo tomada como referncia da memria do Rio Grande do
Sul, sendo anualmente comemorada durante a semana farroupilha, durante o ms de
setembro em atividades que ocorrem simultaneamente por todo o estado. Segundo
Pesavento(2005), a Revoluo Farroupilha constitui-se em episdio constantemente
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trabalhado pela memria local e responsvel pela construo da identidade gacha. A
autora atenta para o fato de ter havido uma centralizao poltica e administrativa por
parte do governo central, logo aps a independncia e a promulgao da constituio
de 1824. Este fato gerou um grande sentimento de injustia nos senhores do sul,
originada pela alta carga fiscal imposta sobre o gado, a terra e o sal.
A revoluo farroupilha est inserida no contexto de revolues brasileiras que
procuraram impor um iderio liberal, minimizando assim, a autonomia do poder
executivo e aumentando a abrangncia do poder legislativo:
O liberalismo brasileiro, assim como o norte-americano, tem suas razes em Locke e Montesquieu, sendo propagado principalmente pela imprensa do Rio de Janeiro e transcrito ou copiado pelos peridicos locais. (...) O liberalismo por ser um movimento de uma minoria prestigiada e dominante, economia e militarmente, era antagnico democracia, pois no aceitava a participao do povo, isto , dos no proprietrios, no governo (Flores, 1985, p. 177-178).
Neste sentido, segundo o autor:
A Revoluo Farroupilha faz parte dos movimentos liberais que abalaram o Imprio do Brasil no perodo regencial, quando explodiram dissenes polticas entre os liberais federalistas e os conservadores unitrios nas provncias do Cear (1831-1832), Pernambuco (1831-1835), Minas Gerais (1833-1835), Gro-Par (1835-1840), Bahia (1837-1838), Maranho (1838-1841) e Rio Grande do Sul (1835-1845) (Flores, 2004, p. 25).
No que diz respeito ao presente objeto de estudo, importa resgatar o papel que a
Revoluo Farroupilha possui dentro das representaes locais enquanto referente de
prticas que so vitalizadas pela memria atravs do iderio do gauchismo. Ressalta-
se o fato de as primeiras iniciativas em torno do culto s tradies gachas estar na
iniciativas de dois grupos que, separadamente, realizavam aes localizadas neste
sentido. Um destes grupos, alunos do Colgio Jlio de Castilhos de Porto Alegre criou
um departamento de tradies no grmio da escola em 1947 e, neste mesmo ano
comemoram o 20 de setembro, aniversrio da Revoluo Farroupilha. Uma das
primeiras atividades do grupo foi receber as cinzas do heri farroupilha David
Canabarro trazidas para Porto Alegre pela Liga da Defesa Nacional. Este fato esta na
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base da criao do 35 CTG (primeiro CTG do estado) e do Tradicionalismo Gacho
(Maciel, 1994a).
A figura emblemtica do gacho representada pelo homem da campanha que
teve na Revoluo Farroupilha o cenrio para as suas faanhas e herosmos. Neste
sentido, esta revoluo se configura num modelo para a exaltao dessa figura, ou
seja, a referncia aos heris farroupilhas se insere na lgica de construo desse tipo
social a ser cultuado (Brum, 2004). em torno desse episdio que se estabelece
simbolicamente relao do gacho com o restante do pas, seja para afirmar o seu
carter autnomo, seja para evidenciar que o mesmo brasileiro por opo
(Barcellos,1997; Oliven, 1990).
No Rio Grande do Sul, os atores oficiais que trabalham em torno da
perpetuao da tradio gacha so os Tradicionalistas (Oliven, 1992). Eles se
constituem em um movimento organizado e atento a tudo que diz respeito aos bens
simblicos do estado sobre os quais procuram exercer seu controle e orientao.
Possuem intelectuais que produzem escritos e que ocupam posies importantes em
lugares estratgicos da sociedade gacha. Para eles de fundamental importncia
demarcar quais so os verdadeiros valores gachos. Em decorrncia disso se
colocam como guardies dessa tradio. Os tradicionalistas, a partir de uma
interpretao do passado da regio, constrem a figura emblemtica do gacho.
As representaes associadas ao gacho construdas pelo movimento
tradicionalista19 foram gradativamente adotadas pelo poder pblico estabelecendo-se
como oficiais (Maciel, 1999). Em 1954, o governo do Estado criou o Instituto de
Tradies e Folclore, vinculado Secretaria de Educao e Cultura. Vinte anos depois
ele foi transformado na Fundao Instituto Gacho de Tradio e Folclore. Durante toda
a sua existncia, esse rgo foi geralmente dirigido por tradicionalistas. Em 1964, uma
lei estadual oficializou a Semana Farroupilha. Desde ento a chama crioula passou a
ser recebida com todas as honras no Palcio Piratini, sede do governo estadual e se
19 Entre as entidades ligadas ao Movimento Tradicionalista Gacho encontramos 14 que utilizam a palavra lanceiros em sua denominao. O movimento tradicionalista colocou um marco em homenagem aos bravos farrapos a beira da estrada dos Cerros de Porongos em 1983 num projeto de levar a chama crioula a diversos pontos do Estado significativos para os gachos. Em 1996, um piquete do municpio de Pinheiro Machado apresentou no desfile de 20 de setembro o tema dos lanceiros negros, causando surpresa e curiosidade no pblico.
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tornaram atividades oficiais os desfiles realizados pelos Centros de Tradies Gachas
e a Brigada Militar no 20 de setembro em vrias cidades do RS. Em 1966,o hino
Farroupilha foi elevado condio de hino do Estado. No ano de 1980, a erva-mate20
tornou-se a rvore smbolo do Rio Grande do Sul. Em 1989 as pilchas (conjunto de
vestes tpicas atribudas aos antigos gachos compreendendo a bombacha, botas,
leno e chapu) se tornaram traje de honra e uso preferencial. A nova legislao
estadual deixou a sua caracterizao a cargo do Movimento Tradicionalista Gacho
(Oliven, 1991). O deputado estadual Giovani Cherini formulou dois projetos de lei que
se referem s tradies gachas. So eles: o P.L. n 50 de 1996 que institui o
chimarro como bebida smbolo do Rio Grande do Sul e P.L. n 70 de 2003 que institui
o churrasco como prato tpico do Estado. Apesar disso o Movimento Tradicionalista
Gacho (MTG) no consegue controlar todas as expresses culturais do Rio Grande do
Sul, nem disseminar hegemonicamente as suas mensagens. Atualmente existem
diferentes formas de ser gacho que no passam necessariamente pelo Centro de
Tradies Gachas. O mercado de bens materiais e simblicos ampliou-se e novos
atores passaram a disputar segmentos dele21.
Maciel(1999) salienta que os poderes pblicos adotaram as representaes
associadas ao gacho22 geradas pelo Tradicionalismo, isto , as tornaram oficiais. No
entanto o gauchismo, enquanto tradio regional, no se limita ao Movimento
Tradicionalista englobando tambm os seus opositores, os nativistas. A autora
demonstra que a palavra gacho, aps um processo de ressemantizao, passou a se
20 Sob a denominao cientfica de "Ilex Paraquariensis", a erva-mate utilizada no preparo do chimarro, bebida quente servida numa cuia de porongo e sorvida por intermdio de uma bomba de metal. O hbito de tomar chimarro considerado como algo tipicamente gacho embora existam variaes dessa prtica em pases que fazem fronteiras com o Rio Grande do Sul. 21 Oliven(1992) analisa essa disputa ao tratar o embate entre tradicionalistas e nativistas nos festivais de msica gacha. 22 Maciel (1999), mostra que o gacho existiu e existe no Uruguai, na Argentina e no Sul do Brasil, fruto de um mesmo processo histrico (gado-guerra), mas assume papel e importncia histrica diferente em cada pas, ou seja, possu um significado distinto em cada local. No caso do Rio Grande do Sul existe uma necessidade de afirmao enquanto gacho, diferente dos habitantes de outros estados brasileiros, e enquanto brasileiro, diferente dos gac