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1 SAMUEL RAWET – AALMA QUE SANGRA Perola Engellaum Aluna do curso de doutorado em Teoria Literária (Ciência da Literatura) Texto final apresentado à Banca Examinadora para obtenção do título de doutor em Teoria Literária UFRJ – Faculdade de Letras Segundo Semestre de 2006

SAMUEL RA WET – A ALMA QUE SANGRA - O Programa · Em nenhum momento neguei o judaísmo e minha origem, como Rawet o fez, mas os laços que me ligavam a ele eram bastante tênues

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SAMUEL RAWET – AALMAQUE SANGRA

Perola Engellaum Aluna do curso de doutorado em Teoria Literária

(Ciência da Literatura)

Texto final apresentado à Banca Examinadora para obtenção do título de doutor em Teoria Literária

UFRJ – Faculdade de Letras Segundo Semestre de 2006

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“A ironia do escritor é a mística negativa das épocas sem Deus”. Luckás

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In Memoriam

Samuel Rawet

Tally Engellaum Cuperstein

Para Pedro, filho, amigo e razão de existir plenamente.

Para Ilan, sobrinho amado.

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SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS ............................................................... 5 RESUMO ................................................................................ 6 ABSTRACTS ........................................................................... 7 RESUMEN .............................................................................. 8 SINOPSE ................................................................................ 9 APRESENTAÇÃO ...................................................................... 10 INTRODUÇÃO .......................................................................... 13 SEÇÃO UM – Abordagem teórica ........................................... 15 SEÇÃO DOIS – Fortuna crítica ............................................... 30 SEÇÃO TRÊS – Confrontando vida e obra .............................. 37 SEÇÃO QUATRO – Abama: Obra representativa ...................... 50 SEÇÃO CINCO – Viagens de Ahasverus à terra alheia em

busca de um passado que não existe porque futuro é de um futuro que já passou porque sonhado ............ 75

CONCLUSÃO .......................................................................... 87 ANEXO À SEGUNDA E TERCEIRA SEÇÕES ..................................... 91 BIBLIOGRAFIA ........................................................................ 99

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AGRADECIMENTOS

– André Bueno, orientador impecável e flexível, estimulador nas horas de desânimo e, sobretudo amigo

– D. Clara Apelbaum, irmã de Rawet, que tornou esta tese possível, ao me ceder todos os livros de nosso escritor.

– Prof. Ronaldo Lima Lins que com seu entusiasmo pelo nosso trabalho, em muito me estimulou.

– Francisco, amigo e companheiro nesta aventura condenada.

– Minha irmã, Janete Engellaum Cuperstein, pelo eterno entusiasmo em relação a todas as minhas iniciativas profissionais

– Meu cunhado, Israel Segal Cuperstein, sempre disposto a contribuir com minhas pesquisas.

– Meus pais, amigos e entusiastas com todas as minhas iniciativas. Sempre presentes, na alegria e nas dificuldades.

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RESUMO

Esta tese tem como um dos objetivos fazer renascer o interesse pela leitura da obra de Samuel Rawet, cuja obra foi em parte republicada em finais de 2004 pela editora Civilização Brasileira. E despertar nos meios acadêmicos o desejo de melhor entendê­la.

Na primeira seção lançamos as diretrizes básicas que nortearão nosso enfoque, do ponto de vista teórico , no qual tentamos combinar sempre que possível, elementos histórico sociais da época em que nosso escritor viveu com as questões pertinentes da expressão da identidade judaica diaspórica na referida obra.

No segundo capítulo abordamos a fortuna crítica de Rawet, que não é vasta.

Na terceira seção apresentamos conjugação entre vida e obra. Na quarta seção apresentamos reflexões minuciosas sobre a

novela Abama. Na quinta seção com o mesmo cuidado escrevemos sobre Viagens

de Ahasverus. É claro que estão presentes as necessárias Introdução, Conclusão

e Bibliografia. Apresentamos ainda um Anexo, que julgamos enriquecer a

compreensão das segunda e terceira seções.

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ABSTRACTS

This essay has as one of its objectives to stimulate the renewing of an interest for the work of Samuel Rawet, whose work has been partially republished in the end of 2004 by the publisher house Civilização Brasileira and to awaken the desire in the Academy to understand it better.

In the first section, we put forth the basic guidelines that will guide our approach, from the theoretical point of view, in which we try to combine, whenever possible, historical and social elements of the time when our writer lived with pertinent questions about the expression of the Jewish identity in the Diaspora in the work of the author.

In the second section, we approach Rawet’s fortunate critique, which is not broad.

In the third sections, we present the conjunction of life and work. In the fourth section, we present detailed reflections about the

novel Abama. In the fifth section, with the same level of detail, we write about

Viagens de Ahasverus. Naturally, Introduction, Conclusion and Bibliography are

included in the essay. We also present an Annex, which we believe to enrich the

comprehension of the second and third sections.

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RESUMEN

Esta tesina busca, como uno de sus objetivos principales, reavivar el interés por la obra de Samuel Rawet, parcialmente republicada en finales de 2004 por el editorial Civilização Brasileira. Además de eso, intenta despertar en los medios académicos el deseo por mejor entenderla.

En la primera sección lanzamos las directrices básicas que norteararán nuestro enfoque, de punto de vista teórico, en el cual intentamos reunir siempre que posible, elementos históricos sociales de la época en que vivió el escritor con las cuestiones pertinentes de la expresión de identidad judía diaspórica en la referida obra.

En el segundo capítulo abordamos la fortuna crítica de Rawet, que no es extensa.

En la tercera sección presentamos la conjugación entre vida y obra.

En la cuarta sección presentamos reflexiones minuciosas sobre la novela Abama.

En la quinta sección con la misma atención escribimos sobre Viagens de Ahasverus.

También están presentes las necesarias Introducción, Conclusión y Bibliografía.

Aun presentamos un Anexo, que creemos enriquecer la comprensión de las segunda y tercera secciones.

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SINOPSE A raiz teórica deste trabalho centra­se sobretudo no estranhamento, na sensação de não­pertinência a qualquer lugar, do judeu diaspórico, mrginalidade e visões de outsiders de que caracterizam a identidade judaica. Pinçamos duas obras que julgamos destoantes do conjunto da obra rawetiana. Nestas duas acontecem encontros inusitados e insólitos, em Abama o protagonista encontra­se com seu demônio e em Viagens de Ahasverus, há encontro entre autor e protagonista. Esses encontros são raridade numa obra impregnada pela incomunicabilidade e solidão. Cabe finalmente notar que Rawet no conjunto de sua obra deu voz aos marginalizados, aos apartados da sociedade, tanto judeus ou não.

Palavras­chaves: Identidade – estranhamento– outsider– marginais – a falta de comunicação – o vazio da existência – solidão – a falta primordial.

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APRESENTAÇÃO

Antes que o leitor entre em contato com nossa tese, gostaríamos de esclarecer as motivações e o processo inicial que nos levaram à eleição do tema e seu enfoque.

O leitor é, evidentemente, livre para fazer sua leitura, mas esperamos que esta seção facilite o entendimento de muitas questões que perpassam a Tese.

Em primeiro lugar, há leituras e leituras. Algumas são descobertas, outras, revelações. Não que eu tenha uma concepção mágica da literatura. As leituras­descobertas nos abrem para novos mundos, novas concepções, novas formas de tratar a linguagem. Mas as leituras­ revelações nos levam ao nosso interior de forma magistral, revelando­ nos aspectos que estavam guardados ou escondidos do consciente. E há leituras que conseguem aliar ambos os aspectos. Esta foi minha relação com a obra de Moacyr Scliar na dissertação de mestrado, como também está sendo motivação na tese de doutorado. Scliar foi descoberta; Scliar é constante revelação. Rawet é descoberta, revelação de seu “eu” e de meu próprio eu. Rawet é a constante problematização do judeu e da condição humana de maneira geral.

Embora tenha sido educada em colégios israelitas e feito um ano de shnat em Israel aos 17 anos, pelo movimento sionista Hashomer Hatzair, depois de meu regresso meus laços com o judaísmo foram se tornando cada vez mais frágeis, devido às opções de vida que fiz. Em nenhum momento neguei o judaísmo e minha origem, como Rawet o fez, mas os laços que me ligavam a ele eram bastante tênues.

Após os trinta anos, meu processo de vida me levou à terapia, em cujo desenvolvimento descobri o quanto de judaico havia em mim. O problema é que não conseguia definir por onde passava a judeicidade em meu interior e foi a leitura da passagem a seguir, em um livro de Scliar, que veio esclarecer meu enigma:

Minha ligação com o judaísmo não se baseia na fé nem no orgulho nacional. Tentei suprimir em mim os sentimentos de exaltação nacionalista, por prejudiciais e injustos: serve­nos de advertência o exemplo de muitos povos entre os quais vivemos. Sinto, contudo, uma atração irresistível pelo judaísmo e pelos judeus, resultante de forças emocionais difíceis de expressar em palavras, mas nem por isso menos poderosas; de uma clara consciência de identidade; da familiaridade com as estruturas psicológicas do judaísmo. 1

1 FREUD, Sigmund, apud SCLIAR, Moacyr. Se eu fosse Roths child. Porto Alegre: L&PM., 1993, p. 136.

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Só tenho a acrescentar que lamento não ter escrito esse fragmento. Nunca encontrei tão precisa definição para o meu sentimento de pertencer ao povo judeu.Pertencer ao povo judeu para mim significa uma enorme admiração pela cultura hebréia; sou judia por perceber que há em mim uma psique que posso, sem medo de errar, dizer que é judaica. Enfim, Freud esclareceu­me que minha judeicidade reside fundamentalmente em meu psiquismo cultural.

Descobrir o mundo e as personagens de Scliar no mestrado e agora, no doutorado, descobrir a melancólica linguagem de Rawet foram formas de reviver esse psiquismo, de me auto­explicar tantas coisas, de enxergar em mim virtudes e neuroses, minha paranóia judaica etc.

Desde 1994, quando tomei contato com a obra de Scliar, ao ler A festa no castelo, passei a ser uma voraz leitora do autor. Esta leitura cumpria uma dupla função: descansar das leituras obrigatórias dos créditos do mestrado e escolher uma ou duas obras que viessem a se constituir no corpus central da dissertação. Após ler o segundo livro, A orelha de Van Gogh, já havia decidido fazer a dissertação tendo como tema uma obra de Scliar.

Meu primeiro contato com a obra de Rawet foi a leitura de seu livro de estréia, Contos do imigrante, que me encantou, em 1998. Consegui obter quase toda sua obra graças à generosidade da Sra. Clara Apelbaum, irmã de Rawet, que me forneceu cópias da maior parte.

Assim, este trabalho é uma das formas de resgate de minha judeicidade. Estudar a literatura judaica no Brasil é para mim uma prática de judaísmo.

E por que Rawet? Ele expressa em sua trajetória meus mais profundos conflitos, meus profundos temores. Enquanto lia Os sete sonhos e Abama, passei a respirar, a viver minha ancestral melancolia judaica, e estas são as melhores obras, sejam filmes, livros ou músicas, aquelas que nos levam aos nossos limites. Este o sentido mais panorâmico da leitura­revelação.

Enfim, li quase todas as obras de Rawet, como também quase todas as de Scliar, inclusive as ensaísticas. Foi um processo que durou anos, em contato permanente com a produção desses inadjetiváveis escritores.

Foi tão importante conhecer o trabalho de Scliar, escrever minha dissertação, e agora conhecer Rawet e sua obra e fazer este texto quanto ter vivido um ano em Israel. Exclua­se, por favor, qualquer leitura nacionalista. Falo da importância de minha experiência pessoal

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no Estado judeu, independentemente de qualquer posição política professada. Israel não significou aprendizado do sionismo, ao contrário, foi muito mais aprendizado de vida.

Portanto, como é óbvio, este trabalho é uma volta necessária às raízes ancestrais e por isso talvez esteja um tanto inflacionado de matéria judaica. Estou fazendo um esforço para combater este tipo de inflação literária.

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INTRODUÇÃO

Nossa idéia inicial era basear nosso enfoque das obras aqui comentadas tomando por referencial teórico os ensaios de Samuel Rawet, o que é possível realizar com a literatura existencialista, por exemplo. No entanto, ao travarmos contato com os referidos ensaios, nos surpreendemos com uma reflexão muito subjetiva e com profundos traços de lirismo.

Concluímos que a decisão inicial era inviável. Optamos então por uma abordagem social e psicológica de nosso corpus. Esta forma está apresentada na seção primeira deste trabalho, que foi construída com o objetivo de situar os possíveis leitores acerca dos pilares teóricos que fundamentam nossa crítica das obras.

São basicamente três os pilares de nossa reflexão: inicialmente, o momento histórico da chegada de Rawet no Brasil, e a época em que aqui viveu. O segundo pilar apóia­se na visão da identidade judaica, como complexa, multifacetada, na qual a melancolia está sempre presente, combinada ao estranhamento e à solidão, elementos que marcam intensamente a obra de nosso escritor.

O terceiro pilar remete­nos à afinidade da visão de mundo de Rawet com existencialistas e o plano maravilhoso que pontua a obra de Franz Kafka. Entre muitas obras de escritores judeus que conhecemos, o absurdo e as marcas do surreal podem ser encontradas, uma expressão do estranhamento de si e do mundo.

As duas obras aqui abordadas são parte de uma trilogia na qual se inclui Crônicas de um vagabundo. As duas que pinçamos são talvez as mais significativas da abordagem, da solidão, da dor e a decorrente incomunicabilidade, universalizadas pelo autor através de personagens marginais, que assim o são ou por opção ou por condições concretas de nossa sociedade.

Cabe ressaltar que nestas duas obras ocorre algo que não é comum no conjunto de textos de nosso escritor: o encontro, o qual se apresenta como insólito e, podemos dizer, esdrúxulo, parcial, precário, mas é um encontro, amenização da solidão. Em Abama, Zacarias, busca desesperadamente encontrar o seu demônio, que é Abama, o que ocorre no desfecho, sendo o clímax da narrativa. Em Viagens de Ahasverus, o clímax se dá de forma bipartida, primeiro Ahasverus se transmuta em Samuel Rawet, pouco depois Ahasverus descobre sua forma definitiva e cessam as metamorfoses, enfim Rawet encontra­

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se consigo, apazigua­se, supomos que momentaneamente. Nesta obra, em particular, é clara a fusão entre narrador/autor e protagonista.

O crítico Assis Brasil, ao comentar esta obra, no prefácio, diz: (citação) “Note­se que essa fusão ficção, existência é típica do Romantismo, o que não significa de maneira alguma que Rawet seja um autor romântico, no sentido de estilo literário. Sua linguagem e visão de mundo cáustica e corrosiva nada têm em comum com o Romantismo, que transforma a melancolia em lirismo.”

Podemos afirmar que há uma poética rawetiana, assim como há uma poética kafkiana, e não são idênticas, de forma alguma.

Em Rawet há um lirismo sombrio, dolorido, gritando pela libertação da alma que sangra.

Sintetizando, o que há em essência de comum entre os autores românticos e Rawet é viver realmente a dor e o ostra­cismo de seus personagens. Na acepção de Michael Lowy, que é o eixo de Romantismo e melancolia, os românticos criam um projeto de mundo com seu regresso para o passado, em Rawet, essa fuga se dá, mas não para uma projeção de mundo, a fuga é mergulho nos abismos da incomunicabilidade e a decorrente solidão. Como os românticos, Rawet expressa seu desconforto em relação às engrenagens da modernidade. Expressa também sua indignação com a hipocrisia da comunidade judaica de sua época, que viveu um período de ascensão graças ao desenvolvimentismo do governo JK.

Esse brado de inconformismo e revolta atravessa todos os movimentos críticos da modernidade, seja artística ou politicamente. Seguindo essa trilha de rebeldia e dor, Rawet foi um outsider que não só universalizou em seus personagens, e em sua própria forma de existência, a dor calada dos oprimidos e dos marginalizados, como deu também uma tonalidade especial ao estranhamento dos judeus libertários.

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SEÇÃO UM: ABORDAGEM TEÓRICA

Nesta seção apresentaremos alguns pressupostos teóricos que fundamentam nossa análise posterior.

1.1 – Situação Histórica do País

Todo artista, intencionalmente ou não, expressa no conjunto de sua obra as mentalidades sociais de seu tempo. No caso de nosso autor, ele foi marcado desde a infância, quando aqui chegou, ainda menino, da Polônia, por circunstâncias históricas bastante peculiares:

Após a Segunda Guerra Mundial (1945), Getúlio Vargas foi deposto, da mesma forma que chegara ao poder, através de um golpe militar apoiado pelo imperialismo norte­americano. Já não interessava ao imperialismo a manutenção de regimes ditatoriais como era o de Vargas, de 1930/1945. Assim, o mundo e o Brasil voltaram a respirar a busca de governos democráticos. Em nosso país uma nova Constituição, a de 1946, estabeleceu novo pacto social, que atendia aos interesses políticos da burguesia industrial, que nascera com a industrialização oriunda da política de substituição de importações implementada por Vargas em seus 15 anos de governo. Era necessária uma nova Carta que legitimasse, politicamente, esta nova burguesia no país. É possível afirmar que o primeiro governo Vargas teve o mérito de consolidar o capitalismo no Brasil.

Esta carta estabeleceu liberdade de organização partidária, eleições diretas e secretas... a euforia democrática durou pouco: os ventos da Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética atingiram nosso país. Voltaram as perseguições e a censura aos meios de comunicação, nos moldes da exercida durante o Estado Novo. Se no Brasil isto representou a cassação do registro do PCB e de seus parlamentares, nos EUA, foi o macarthismo, política persecutória levada a cabo pelo senador norte­americano Joseph McCarthy, quem promoveu uma verdadeira caça às bruxas aos intelectuais, artistas e políticos de esquerda.

No pós­guerra, aparece a geração de 45, que procurou recuperar procedimentos poéticos muito tradicionais e até mesmo defasados da época. Em termos da prosa, reaparece com ênfase a experimentação literária. A tendência experimentalista prossegue na década seguinte, quando Rawet lança seu primeiro livro, em 1956, Contos do imigrante,

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seguindo, conscientemente ou não, uma clara perspectiva inovadora na temática e na linguagem, como veremos adiante. Esta postura experimental continua na década de 60 – período de euforia desenvolvimentista do presidente Juscelino Kubitschek – através de correntes artísticas de vanguarda, as quais procuraram reativar os preceitos da primeira fase do modernismo, de 1922 a 1930.

Getúlio Vargas retomou o poder em 1950, apresentando novas nuances políticas; desta vez, chegou ao governo através de eleições diretas. Sensibilizou os trabalhadores com uma plataforma eleitoral que defendia ideais nacionalistas apoiando­se nas bases populares. Um dos grandes lemas que marcou este período foi “O petróleo é nosso”. Seu nacionalismo desenvolvimentista não foi visto com bons olhos, particularmente pelos EUA, sobretudo porque este nacionalismo se apoiava nas classes trabalhadoras. Sua política de fortalecimento do sindicalismo também era vista com desconfiança pelos setores patronais, nacionais e estrangeiros, pelo risco de se perder o controle das demandas populares. Vargas nesse momento parece ter menosprezado a força do imperialismo norte­americano.

Com a nova partilha do capital internacional, os EUA haviam se consolidado definitivamente como a grande potência mundial. Haviam sobrepujado os capitais ingleses e alemães. Os Estados Unidos haviam se tornado a superpoderosos; a Roma do século XX.Durante a guerra, e no momento que a precedeu, a indústria norte­americana havia se voltado para uma intensa produção armamentista. Na segunda gestão de Vargas já não era mais possível desenvolver uma política econômica nacionalista de substituição das importações. A conjuntura mundial não permitia que ela se desenvolvesse. Os EUA estavam com todos os seus tentáculos estendidos sobre o mundo, inclusive sobre a destruída Europa, onde as batalhas da guerra se travaram.

O imperialismo norte­americano se aliou à parte golpista do exército e da burguesia brasileira para derrubar Vargas, que se vê impossibilitado de seguir adiante e se suicida, em agosto de 1954. Assumiu o poder no ano seguinte, após um período de instabilidade política, Juscelino Kubitschek de Oliveira, através do voto universal. JK implementa uma política desenvolvimentista, financiada pelo capital financeiro internacional, marcadamente o norte­americano. Veio a indústria automobilística e foram impulsionadas as indústrias de base. E marco­síntese da esperança de modernização, construiu­ se Brasília no planalto central do país (1960), projetada por Oscar Niemayer, em cuja equipe Rawet trabalhou como engenheiro calculista, a convite do poeta e também engenheiro Joaquim Cardoso,

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que era amigo muito próximo de Rawet. Com Brasília podemos afirmar que tivemos a maior realização do urbanismo e da arquitetura do Modernismo brasileiro.

As imagens esperançosas e otimistas eram mostradas pela recém­ introduzida televisão. A euforia das elites se espraiava por todo o país. Nas artes em geral, tivemos construções bastante significativas: surge a Bossa Nova, com João Gilberto, o Cinema Novo dá seus primeiros passos com Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, surgem várias companhias teatrais, como o Opinião, o Oficina, com José Celso Martinez Correa. É a época do experimentalismo literário, marcado sobretudo pela obra de Rawet e João Guimarães Rosa. Foi o tempo em que surgiram formas de expressão artística altamente críticas e profundamente impregnadas de cunho social. Estavam plantados os germens de um novo teatro, da nova música popular. Nasce neste momento um pensamento cultural novo. A sociedade fervilha...

Entretanto, esse avanço econômico, que teve como expressão cultural todos os movimentos artísticos que apontamos, teve como contrapartida o agravamento das tensões sociais; enquanto alguns setores se beneficiavam da conjuntura reinante, como é típico do capitalismo terceiro­mundista, os trabalhadores da parte inferior da pirâmide social estavam excluídos do desfrute das conquistas do momento. Como sempre, os que criavam a riqueza não tinham acesso a ela. Estes setores se mobilizavam, reivindicando melhores condições de existência, gerando grande tensão política e social.

Esse tensionamento perpassa o governo de Juscelino, adentra o curto período de Jânio Quadros, o presidente seguinte, o qual se vê numa situação limite e renuncia, sendo substituído pelo seu vice, João Goulart, em cujo governo as tensões se agudizam ainda mais e o movimento popular se fortalece e avança progressiva e rapidamente, até o golpe militar de 1964, realizado pelas mesmas forças que dez anos antes haviam levado Vargas ao suicídio.

Nos dois primeiros governos militares, paradoxalmente, as artes se beneficiaram devido ao influxo anterior. Foi um período de produções importantes com caráter político e social. Antônio Callado publicou Quarup em 1967. Os festivais de MPB mostravam Chico Buarque de Holanda, Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, entre outros. Paralelamente, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto lançam o Tropicalismo, que retoma uma perspectiva experimental, tanto na música quanto nas letras, uma espécie de atualização e releitura do

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movimento antropofágico, do início do Modernismo, capitaneado por Oswald de Andrade.

Toda essa movimentação cultural expressava o descontentamento e a rebeldia dos jovens em relação à ditadura militar. Em 1968, esse movimento contestatório ampliou­se por toda a sociedade. O golpe de 64 necessitava ser reforçado, era preciso massacrar definitivamente os movimentos sociais. O governo decretou o AI­5, que conferiu poderes absolutos ao chefe de Estado. Irromperam de um lado os movimentos de guerrilha urbana, de outro a repressão aos meios de comunicação, a perseguição aos opositores recrudesce. Na TV as imagens eram de ufanismo do país, o “Brasil Grande”, a conquista da Copa do Mundo em 1970 servia de válvula de escape para o descontentamento e para fortalecer o ufanismo.

Os militares rapidamente demonstraram a que vieram. Houve um desenvolvimento industrial fabuloso, às expensas do imperialismo. A indústria de base cresceu, assim como a classe operária ampliou seu contingente. Novos padrões de consumo atraíram a classe média (carros, TV em cores, financiamento imobiliário), garantindo seu apoio ao regime. Para a classe trabalhadora, restou o arrocho salarial. Essa a essência do “milagre econômico”. O Estado promoveu o surgimento de um grande parque industrial, tendo São Paulo como ponta–de­ lança da modernização, mas sempre subordinado aos interesses do capital financeiro internacional, marcadamente o norte­americano.

Surgiu uma imprensa alternativa e uma clandestina, produzida pela esquerda. Na poesia, surgiu a chamada poesia marginal, realizada por jovens, estudantes em geral, para os quais o mercado editorial cerrava as portas. Este movimento procurava resistir à adversidade da época, utilizando­se de mimeógrafos, pequenas publicações, pôsteres etc.

Como conseqüência do conflito entre Israel e os países árabes, os preços do petróleo sobem violentamente, trazendo uma crise cambial para o Brasil. O aumento da gasolina traz de volta a inflação – contida no governo Médici (70/73) – e nas eleições de 74 para a renovação da Câmara e de parte do Senado a ditadura foi derrotada.

A modernização do parque fabril paulista gera uma nova classe trabalhadora, que irrompe em 1978, realizando as maiores assembléias sindicais do mundo, no estádio de Vila Euclides(80 mil pessoas), em São Bernardo.

Este movimento foi aprofundado pelas mobilizações de todos os setores oprimidos da sociedade, gerando um grande ascenso na década de 80.

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Toda esta instabilidade social, política e econômica, alternada por momentos de democracia e períodos ditatoriais que vimos anteriormente, se expressa de maneira bastante peculiar na obra de Rawet. Pensamos que o painel de época apresentado foi determinante na formação de ser no mundo e de artista solitário e melancólico. Nosso autor era um exilado como o eram vários de seus personagens, não só os que abordaremos neste trabalho, mas também outros que atravessam sua obra. O profeta, chamado por Saul Kirschbaum por profeta da alteridade, que dá título a sua dissertação de mestrado, é um exemplo típico. Judith, renegada por sua família judaica por ter desposado um não­judeu e que por isto enfrenta apuros e solidão, entre outros exemplos do livro de contos Que os mortos enterrem seus mortos.

Dissemos que a época se expressa de maneira singular no conjunto da obra de nosso autor, pois em nenhum momento de sua vida e em sua produção artística Rawet cedeu às ilusões de euforia da era JK, apesar de ter se envolvido profissionalmente no projeto mais ambicioso deste presidente, a construção de Brasília. Rawet também não compactuou em vida e em sua arte com as ilusões do milagre da ditadura militar, e esta dignidade não decaiu no período em que sua família se beneficiou do Milagre Brasileiro.

Rawet se resguardou nas paredes de seu exílio. Embora não tenha deixado um legado literário exatamente político, como o fizeram Antônio Callado, Graciliano Ramos, entre outros, Rawet deu voz àqueles que, por opção ou por falta de saída, se colocaram à margem das roldanas sociais, principalmente os vagabundos, que na sua forma de existência são uma afronta e uma denúncia desse maquinismo apodrecido. Ressaltamos outra vez, apesar de ter participado da construção de Brasília, sua alma continuou até o fim de sua vida a de um exilado e marginalizado, por opção pessoal, enfim, sempre remou contra a maré. É por meio destes setores que fez, de uma maneira contraditória, o aspecto social entrar em sua obra. Rawet estranhava até mesmo seus colegas de trabalho, como veremos adiante. Manteve­ se em seu exílio, em sua melancolia, em sua rejeição às normas do mundo. Rompendo suas relações com seus familiares e com a comunidade judaica em geral, o autor morreu solitário, vivendo em dificuldades financeiras. Seu corpo foi encontrado alguns dias após sua morte.

Eram, esta melancolia e exílio voluntário, posturas de coragem para um judeu que durante a maior parte de sua vida estranhou o mundo e a humanidade. Deu voz aos exilados como ele e a seu próprio

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isolamento, consciente e escolhido. Esta forma de estar no mundo de Rawet poderá ser mais bem compreendida se abordarmos algumas características da identidade judaica dos judeus na Diáspora. O próximo item desta seção abordará questões sobre esta identidade. Trata­se de fragmentos retirados de nossa dissertação de mestrado, cujo tema foi a combinação do realismo maravilhoso com a complexidade da identidade judaica dos judeus na Diáspora na obra de Moacyr Scliar.

1.2 – Identidade J udaica – uma identidade problemática

A identidade está conjugada à mitologia bíblica do Velho Testamento. O estabelecimento destas questões relativas a esta identidade. Partimos do pressuposto de que esta identidade não é unívoca, mas múltipla, variando no espaço e no tempo, configurada por diversos fragmentos, assim como várias visões de mundo, as quais são plurívocas e por vezes paradoxais; essa plurivocidade perfaz multifaces de uma identidade perplexa de si, o que leva o indivíduo a debruçar­se constantemente em seus abismos interiores.

Encarar esta identidade como uma essência pode nos levar a adotar uma postura irreal e desfocada com relação a ela. Mesmo fragmentada ela sobreviveu ao cativeiro da Babilônia e do Egito, claro que se adaptando e incorporando elementos destas culturas. Sobreviveu à Inquisição, ao Holocausto, sempre se refazendo, respondendo às transformações objetivas sociais e históricas com as quais deparava.

Após a Segunda Guerra Mundial houve uma retomada política, uma tentativa de estabelecer uma identidade primordial identificatória em bases territoriais com a criação do Estado de Israel. Contudo a continuação da Diáspora não é fato desprezível e, nesse universo da dispersão, o pluralismo desta identidade é ainda mais marcante. Surge uma nova contradição, a existência de uma identidade dos judeus em Israel e a identidade dos judeus diaspóricos.

Dizemos que a identidade diaspórica é multifacetada e paradoxal porque advém do encontro de paradigmas simbólicos auto­ ordenadores, resultantes, por sua vez, do imprevisível das contingências reais e históricas. A persistência da identidade étnica dos judeus pode ser medida pela representação permanente de seus paradigmas primordiais e ordenadores quando colocados em xeque pela realidade geral circundante, tanto social quanto espacial.

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A narrativa bíblica é a fonte primitiva da qual podemos retirar a maior parte dos paradigmas simbólicos que perfazem a tradição judaica. Ela é, ao mesmo tempo, uma construção consciente de valores étnico­normativos e também uma narrativa histórica e lendária, o que confere plurivocidade à narrativa bíblica, tornando­a passível de múltiplas interpretações, que foram de fato construídas ao longo dos séculos.

A cada época se produziu uma ou várias interpretações das narrativas bíblicas, novos comentários e abordagens, sem que o enunciado sagrado e suas máximas deixassem de ser atribuídos a um único Deus. É possível também abordar essas narrativas como fonte sociológica, que conta sobretudo ações humanas em toda sua riqueza e diversidade. Os atos humanos através dos quais conhecemos a história do povo hebreu são articulados a atos divinos narrados em discurso direto, com enunciados metafóricos e alegóricos.

Ao intérprete do texto bíblico apresenta­se um complexo mosaico de aspectos lendários, históricos, religiosos, sociais e políticos que transbordam dos atos humanos e dos divinos. Consideramos que há, no mínimo, duas abordagens interpretativas centrais. A primeira, de natureza mais genérica, universal, que define o homem bíblico como o homem genérico e o mundo da narrativa como totalidade indivisível e não contraditória. A segunda, denominada particularista, voltada para as singularidades que a representação bíblica pode sugerir, acentua as fragmentações do mundo bíblico, o pecado original, sendo a antropogênese sua primeira fragmentação.

Seguindo uma leitura genérica encontramos um Deus que foi postulado como universal e que, para expandir a crença em si, elege um povo que terá como uma das missões fundamentais espalhar a fé nesse Deus. Esse caráter universal e messiânico permitiu a absorção e a expansão posterior do monoteísmo.

Ressalte­se que o pluralismo da identidade judaica foi parcialmente resultado de circunstâncias espaciais e históricas, sem esquecer que os judeus, mesmo na velha Palestina, eram minoria demográfica antes da primeira Diáspora; defrontavam com a disputa de outros povos na região.

É possível afirmar que a identidade étnica judaica se configura numa identidade problemática por ter sempre estado sujeita às tensões da memória histórica de várias perseguições sofridas pelos hebreus, os dois cativeiros da Babilônia, o cativeiro do Egito, a Diáspora após a destruição do segundo templo, a Inquisição, o Holocausto. Essas marcas tornaram o perfil psicológico dos judeus marcado por fortes

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traços persecutórios, como legado de seu passado histórico, o qual se conjuga com a presença marcante da religiosidade. Esses elementos fazem dela uma identidade mítica. Mas é importante demarcar sua pluralidade, pois estes traços variaram na Diáspora de acordo com as circunstâncias culturais e sociais do lugar em que os judeus estivessem vivendo, absorvendo traços da cultura em que estavam imersos. Portanto, a identidade judaica esteve e está em constante diálogo com a cultura e com outras identidades.

Este fato acarreta um autoquestionamento constante, a busca de aceitação pela comunidade mais ampla. O judeu está, pois, sempre revendo, readequando suas tradições para ajustar­se à realidade que o cerca, a qual lhe parece, na maioria das vezes, estranha e incompreensível, potencialmente ameaçadora, já que ele é visto como um ser exótico e diferente; e a diferença realmente existe. Sente­se sempre como estrangeiro, mesmo que não o seja, não completamente ajustado e, mesmo tendo nascido na Diáspora, seu olhar para o mundo é sempre de perplexidade e estranhamento, formulando, constantemente, dúvidas, indagações com o espírito arguto para si mesmo e para tudo que o cerca.

Cabe notar que a tradição que configurou os aspectos religiosos aproxima o judaísmo do plano maravilhoso, pois o mito está umbilicalmente entranhado na religião, assim como a tradição narrativa é marcante na cultura judaica. Não por acaso, os judeus são conhecidos como “o povo do livro”, devido ao seu apego milenar à Torá e a elaboração dos Talmudim, conjunto de múltiplas interpretações e releituras da Lei Mosaica.

Atualmente, as comunidades na Diáspora e seus intelectuais, excetuando­se talvez a comunidade judaica dos Estados Unidos, não têm realizado esforços significativos para atualizar e reavivar a tradição mosaica e talmúdica, visando compreender e inserir o judaísmo na contemporaneidade.

Apesar do judaísmo ser uma tradição de quase seis milênios, ele hoje requer uma releitura, com normas específicas para realizá­ la. Muito pouco se pensou, por exemplo, até o momento, em como a criação do Estado de Israel contribuiu para o redirecionamento da identidade judaica, em Israel e na Diáspora. Este Estado passou a ser um forte elemento no oferecimento de segurança para os judeus diaspóricos e o judaísmo voltou a ter sua nação, quesito elementar de que este povo se achou privado durante milênios. Hoje a existência da nacionalidade é um fator de homogeneização e coesão grupal, apesar do fato de que o Estado judeu tenha nascido num momento

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histórico de crise da nacionalidade, com a internacionalização do mundo promovida pelo imperialismo. Deu­se também com seu surgimento uma sionificação do judaísmo mundial. Um exemplo lamentável disso é o desaparecimento do ídiche no ensino das escolas judaicas, pois neste dialeto foram escritas obras literárias fantásticas da literatura hebréia, além de ser uma forma de matar uma antiga tradição. O ídiche era o dialeto de comunicação entre os judeus no shtetl, sendo o hebraico tão­somente a língua religiosa. Assim o ídiche deixou de ser o dialeto de comunicação entre os judeus na Diáspora, papel que ocupou largamente, no caso do Brasil, até meados da década de 60. O que impulsionou esta ocorrência foi a retomada do hebraico como língua oficial de Israel.

A necessidade de situar outra vez o judaísmo nesta virada de século assemelha­se, para o povo hebreu, em sua devida medida, ao impacto que a chegada à América provocou no continente europeu, que se viu necessitado de elaborar novas categorias para conhecer o mundo recém­descoberto.

1.3 – A identidade problemática na contemporaneidade

A identidade judaica nos novos tempos em que vivemos não é mais uma marca indelével, resultado de uma supostamente indestrutível tradição, mas, ao invés, torna­se matéria de juízo e vontade. O processo de assimilação dos judeus com o decorrente abandono das tradições ancestrais foi e tem sido muito intenso em nossa época, coincidindo com a formação e a consolidação do Estado nacional moderno.

É na esteira deste Estado que, no século XIX, desponta o projeto sionista de cunho secular e inspiração nitidamente nacionalista, com um caráter claramente não­assimilacionista. Este projeto significou a retomada do sonho da “terra prometida” como a única possibilidade de sobrevivência da identidade judaica. Realizada a conquista da terra dos judeus, estes e o judaísmo estariam a salvo de qualquer ameaça à sobrevivência do povo “eleito”. Sabemos, contudo, que o desenrolar da política internacional, particularmente no Oriente Médio, não permitiu que o grande sonho judaico se realizasse plenamente. Sabemos que na virada para o século atual o sionismo em Israel passa a adquirir contornos fortemente religiosos, com a ascensão a cargos­chaves do governo de sionistas religiosos ortodoxos, cuja orientação política é nitidamente de direita e que desejam eliminar o

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caráter secular do sionismo; tendo já obtido importantes vitórias, religião e Estado progressivamente se umbilicam em Israel. Este fato tem conseqüências sérias para os judeus diaspóricos que acabam confundindo o direito do Estado judeu existir com as políticas sionistas de direita e não seculares dos religiosos ortodoxos, que participam ativamente do governo. Enfim, o sionismo assumiu um caráter vinculado à religiosidade e está abandonando progressivamente seu caráter secular. Assume­se um nacionalismo perigoso...

Atualmente já não podemos mais definir de maneira unívoca a identidade judaica; o que podemos dizer é que ela permanece viva, com facetas diversas e ainda fragmentada, como nos idos da antiguidade do povo hebreu. Bernardo Sorj sintetiza muito precisamente o judaísmo na atualidade:

...o Holocausto, a criação do Estado de Israel e o novo contexto do mundo pós­moderno levaram ao fim o judaísmo moderno, gerando as condições para recuperar a variedade de conteúdos da cultura judaica, mas numa situação onde inexistem a vida comunitária e os laços de convivência e solidariedade do mundo pré­moderno. Assim no mundo pós­moderno o judaísmo perde igualmente o seu caráter de conjunto diferenciado como no judaísmo rabínico, e de discurso ideológico doutrinário como no judaísmo moderno, para transformar­se numa experiência fragmentada, vivida com mais ou menos intensidade em momentos circunstanciais, geralmente através de ritos que procuram dar sentido a situações existenciais particulares. 2

Desde o processo de emancipação dos judeus, iniciado com a Revolução Francesa, a problematização da identidade judaica não amenizou; a necessidade de ser aceito pelo “mundo exterior” complexifica ainda mais as características desta identidade tão singular, processando uma espécie de adequação tensa entre os valores judaicos tradicionais com ininterrupta e efervescente transformação do mundo.

É importante demarcar que esta identidade, apesar de problemática e permeada de conflitos do “mundo interior”, paradoxal, plurívoca, manteve a coesão dos judeus na Diáspora espalhados por todo o planeta durante quase seis mil anos. Com o processo de globalização e o acirramento da ação da mídia no sentido de uniformizar as formas de pensar, de visões de mundo, as etnias

2 (SORJ, Bernardo, Judaísmo e modernidade, Rio de Janeiro, Imago, p. 9).

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mundiais resistem a este processo empobrecedor da consciência humana, reafirmando sua cultura. Esse fenômeno pode ser observado também entre os judeus diaspóricos.

Outro elemento que perpassa o perfil das etnias espalhadas pelo mundo é o conflito entre internalidade e externalidade, possivelmente provocado pela tentativa de uniformização das formas de viver e ver o mundo. Esse conflito, na verdade, subjaz a todo indivíduo. Seguindo o raciocínio de Freud, em Mal­estar na civilização, todo homem sofre uma coerção social para que a civilização possa se estabelecer, as pulsões primitivas precisam ser reprimidas pelo superego para que a sociedade não mergulhe num estado de animalidade (Freud, Sigmund. Mal­estar na civilização, in Freud, Os pensadores, São Paulo: Abril, 1978).

Se para as pessoas em geral esse conflito torna o ego social diferente do id, para os setores minoritários, que vivem em constante processo de readequação, particularmente na etnia judaica o estranhamento social e o auto­estranhamento, esse conflito é mais agudo e gritante.

A seguir faremos uma conexão entre Rawet e sua obra com as características gerais da identidade problemática:

1.4 – Rawet e a Identidade problemática

Em Rawet a complexidade da identidade problemática aparece de forma marcante, especialmente nas duas obras que este trabalho aborda ela está marcadamente presente. Em Ahasverus, que é a simbolização lendária do judeu errante, podemos afirmar que não há exatamente um enredo bem contornado, o que vemos são as metamorfoses do protagonista situadas em lugares diversos. Essas transmutações permanentes expressam o intenso estranhamento de Ahasverus/Rawet, diante de si e perante o mundo que o cerca, as transmutações são tantas e algumas são fantásticas. Por sua vez as metamorfoses são a concretização de uma alma conturbada, cujo estado de confusão beira a neurose esquizóide. No entanto, na obra encontramos um fio de esperança: Ahasverus se transforma em Rawet e a partir da escritura de Viagens... Ahasverus encontra sua plenitude possível, a de um judeu condenado a sempre viver, mesmo que psiquicamente, a ancestral errância de seu povo. Suas transmutações são assim uma forma de errância, não espacial mas interior. Vejamos a passagem final da obra:

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...E Ahasverus foi Samuel Rawet com plenitude, escreveu VIAGENS DE AHASVERUS À TERRA ALHEIA EM BUSCA DE UM PASSADO QUE NÃO EXISTE PORQUE É FUTURO E DE UM FUTURO QUE JÁ PASSOU PORQUE SONHADO, e como Samuel Rawet sondou o mundo. E Ahasverus, farto de metamorfoses, realizou a mais dura, a mais penosa, a mais solene, a mais lúcida, a mais fácil, a mais serena. Metamorfoseou­se nele mesmo, AHASVERUS. As caixas altas são reproduzidas do texto original. 3

Pela citação acima nos é possível perceber que narrador e protagonista se misturam. Como também é possível notar que, apesar de conhecedor de várias formas de existência, só é possível ao autor viver em meio a sua errância judaica. Rawet é um judeu­não­judeu em seu extremo. E seu traço de messianismo, típico nos judeus­não­ judeus, é, como apontamos anteriormente, o fato de seus personagens anteciparem as mentalidades do neoliberalismo, o qual o autor não vivenciou em toda sua plenitude, já que morreu em meados da década de 80.

Camus diz: “É assim o homem, caro senhor, com duas faces; não consegue amar sem se amar...” 4

Os personagens rawetianos não podem amar, porque não se amam, estão presos numa cela de solidão e estranhamento, sempre desconfiando de si próprios e dos outros...Enfim, nosso autor pinta a alma daqueles que jamais conheceram o amor. Será possível que nós mesmos, atualmente, o desconheçamos?

O mesmo defeito de criar personagens que não sabiam amar fez de Rawet um autor magnânimo com a literatura, pois desnudou a alma dos excluídos, que se assemelha muito à dos judeus na Diáspora. Rawet não vestiu nenhuma máscara, não encarnou nenhum papel social. Ser engenheiro tinha meramente o objetivo de sobreviver. Viveu desnudado, estranhado, estranhando­se envolvido na melancolia de seu auto­exílio. Viveu sua felicidade clandestina de uma busca constante de autoconhecimento, outra característica do judeu na Diáspora, mais especialmente dos intelectuais judeus­não­judeus. Seu lema era: “Ai de vós quando todos os homens vos louvarem”... 5

A máxima de Camus de que “cada homem é testemunha do crime de todos os outros”... 6 se aplica muito bem a Rawet, sua vida foi um testemunho de inocência e crime, de coragem e ousadia como artista. Ele como homem se negou com fé a seguir o rebanho de uma humanidade subjugada pela força das falsas ilusões.

3 (RAWET, Viagens..., Rio de Janeiro, Olive Editor, p. 65). 4 (CAMUS, Albert, A queda. Rio de Janeiro: Record, 2002, p.27). 5 (CAMUS, A queda, Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 67).

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Retomando novamente Camus:”... Cultivamos o hábito de viver antes de adquirir o de pensar”... 7 Em Rawet, viver estava umbilicalmente ligado ao pensar, fazer literatura para se auto­conhecer. Este é outro traço relevante do intelectual judeu liberal ou de esquerda na Diáspora. A estranheza do e no mundo é correlata ao absurdo do existencialismo. É importante ressaltar aqui que gostaríamos de ter cotejado as características do absurdo estranhamento inerente à identidade judaica e o estranhamento embutido no absurdo do existencialismo, o que, no entanto,exigiria um desvio para cuja realização não haveria tempo hábil.

Voltemos ao nosso breve cotejamento entre Rawet e Camus; em O mito de Sísifo, p.100, Camus diz: “... consciente de que não posso me separar de meu tempo, decidi me incorporar a ele. Por isso se dou tanta importância ao indivíduo é porque ele me parece ridículo e humilhado...” 8 Rawet também não consegue se incorporar ao seu tempo, contudo sua decisão é de mostrar através de personagens humilhados e pungentemente dramáticos, seu vazio, sua busca infindável através de marginalizados como ele.

Para finalizar esta seção, faremos um breve cotejamento entre Kafka e Rawet, partindo da obra Sonhador insubmisso, de Michael Lowy; utilizaremos algumas citações da referente obra, através das quais podemos observar a vizinhança entre ambos os escritores judeus.

Segundo Lowy, “É evidente que Kafka só vivia para a literatura: ela era sua

salvação. Ela constitui sua resposta a um mundo malogrado...” 9 Como veremos no decorrer de nosso trabalho, também para

Rawet a literatura era forma de salvação para sua solidão, apartamento do mundo que o rodeava e da comunidade judaica de sua época, que lhe causavam repulsa e indignação. Rawet viveu e morreu solitário, como a grande maioria de seus personagens.

Contudo, há uma diferença marcante entre Kafka e Rawet; enquanto o primeiro participou dos círculos anarquistas e socialistas libertários de sua época, Rawet, por seu turno, não exerceu nenhuma atividade diretamente política. Contudo, há uma dimensão subversiva na obra de nosso autor.

Para Breton e Lowy a obra de Kafka comporta uma dimensão onírica e poética (Lowy, p.13). Contudo, o sonho na obra rawetiana aparece sob a forma de pesadelos árduos de suportar, como era para ele a vida.

6 (Op. cit., p.83). 7 CAMUS, Albert. O mito de Sísifo, Rio de Janeiro: Record, p.21 s/d). 8 (Op. cit., p.100).

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Lowy coloca também que para Kafka “...um livro só tem interesse quando é um soco no crânio que nos desperta (...) uma machadinha que rompe em nós o mar de gelo...” 10 Quem vier a ler apenas uma obra de Rawet poderá constatar que nela há um apelo à insubmissão, um grito de basta, ao pesadelo das relações sociais e pessoais hipócritas e alienantes.

Para Kafka “... o capitalismo é um estado de mundo e da alma...” 11 no qual o poder subjuga a todos, inclusive aos poderosos. Podemos dizer que este aforismo aplica­se também aos personagens insurgentes de Rawet.

Se Lowy define o pensamento de Kafka como expressão de um socialismo romântico, podemos, de nossa parte, afirmar que o legado de Rawet contém um conteúdo também libertário, porém não de cunho romântico, mas sim uma busca desesperada e corrosiva da alma de romper as correntes que a aprisionam. Se há algo que aproxima Rawet dos primeiros escritores românticos é a fusão entre vida e obra; em Rawet, as angústias e buscas desesperadas de seus personagens se confundem com o que foi a busca que marcou sua vida e seu trágico fim.

Se Buber aproxima Kafka do judaísmo e posteriormente do sionismo, em Rawet, que reconhecidamente foi influenciado por este filósofo judeu, a influência determina um afastamento irreversível da comunidade judaica. Se Rawet demonstrou algum tipo de traço judaico foi através de seu próprio estranhamento do mundo, que se expressa claramente em sua obra. O eterno judeu estrangeiro e solitário. Equilibrando­se sobre um fio de dúvidas e angústias que tensionam seus personagens e ele mesmo.

Há, em ambos os escritores, o que diz Lowy sobre Kafka: “uma sede infinita de liberdade em todas as direções” 12 Podemos dizer que assim como Kafka recusa veementemente qualquer forma de autoritarismo, Rawet, por sua vez, rechaça profundamente as formas de alienação que nos são impostas. Há aqui novamente uma confluência entre ambos. Assim como Kafka vivenciou a tragédia das formas autoritárias da modernidade, também Rawet expressa a tragédia da reificação da condição humana na modernidade. O pessimismo de ambos expressa uma intensa inquietude, não só do judeu excluído, mas a inquietude universal do ser no mundo moderno.

9 (LOWY, Michael, Sonhador insubmisso, p.10). 10 (Op.cit., p.15). 11 (Op. cit., p.29).

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Se na obra de Kafka encontramos uma poética próxima do maravilhoso, em Rawet encontramos uma obra que associa o maravilhoso ao corrosivo estranhamento.

Para Hugo Bergman “... é tarefa do ser humano não ser mais uma cisterna, simples recipiente de água estrangeira, mas tornar­se uma fonte que faz jorrar sua própria água...” 13 Em outras palavras, emancipar­se, libertar­se de todos os aprisionamentos e ciladas impostas.

12 (Op. cit., p.55). 13 (in Lowy, op.cit., p. 140).

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SEÇÃO DOIS: FORTUNA CRÍTICA

Diante da plurivocidade que marca e dá importância à obra de Samuel Rawet, optamos por construir um texto um tanto livre que mesclasse reflexões e conclusões. Procuramos ouvir atentamente a voz dos textos, como perseguimos com a mesma atenção a voz da crítica. Nesta segunda seção é na crítica que vamos nos debruçar, fazendo um levantamento do que nos foi possível conhecer sobre a obra de Rawet.

Aqui é importante marcar que a escritura de nosso autor combina recursos do discurso indireto livre, dando­lhe um caráter impressionista, com recursos claramente expressionistas, tornando sua obra de difícil classificação. Estes recursos se combinavam para descrever estados de alma angustiados ou solitários, ou até mesmo desesperados.

Decorrido algum tempo da morte de Rawet, presenciamos agora uma tímida e esparsa recuperação da importância do escritor para nossa literatura e para os escritores judaico­brasileiros. Bella Josef assim como Berta Waldman assinalam sua importância para a ruptura tradicional machadiana do conto brasileiro.Sem querermos menosprezar o grande avanço que significou para a literatura brasileira suas inovações na construção dos personagens e do espaço social, Machado ainda perseguia uma cronologia tradicional de espaço e tempo. Rawet introduziu no conto o que podemos chamar de uma certa liricização da linguagem. Os contornos psicológicos dos personagens, assim como o tempo vivenciado, precisam ser escavados pelo leitor do fundo de uma linguagem hermética e melancólica e de um espaço vago, sem contornos e até mesmo sombrios, caracterização que poderia ser aplicada também à obra de Clarice Lispector.

Alfredo Bosi indica que a prosa de Rawet toca experiências inovadoras do monólogo interior e aponta Contos do imigrante como “signo de que esta (a ficção intimista) vem entrando numa era de pesquisa estética e de superação de um ‘realismo’ menor, convencional”. 14

Na parte sobre Rawet, de Imigrantes judeus, escritores brasileiros, Regina Igel atribui a ele papel de proa na literatura brasileira como um todo, considerando­o um verdadeiro revolucionário do conto no Brasil.

14 BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1997, s.p.

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Seu profundo mergulho no espírito humano, sua tenebrosa intimidade com a angústia e, sobretudo, sua poderosa habilidade no uso da linguagem, fazem dele uma figura emblemática na literatura brasileira (...) A estatura literária de Samuel Rawet o coloca em posição pioneira na nomenclatura ficcional judaica no Brasil, por seus propósitos, refinamento estético e persistência profissional. 15

Outra pesquisadora que não pode ser omitida e que também escreveu artigos importantes sobre nosso autor é a professora Berta Waldman, que aponta a dupla pertinência. Aqui gostaríamos de precisar o que entendemos por dupla pertinência: Rawet consegue, no conjunto de sua obra, dar vida ao deslocamento dos imigrantes judeus vindos para o Brasil, conseguindo também abranger as dificuldades vivenciadas por outros imigrantes, de outras etnias. Por levantar essa questão, é importante frisar que Rawet, tanto em sua vida quanto em sua obra, recusa­se a aceitar a pecha de vítima. Ele crê que é possível viver a vida com dignidade.

Berta Waldman escreveu artigos sobre Abama e Viagens de Ahasverus. Entre suas colocações, cabe notar: “É no vazio de Deus e da tradição que a escritura de Rawet prossegue sua errância coordenando sujeito e linguagem. ”16 E diz também:

A economia do estilo, a elipse, a organização sincopada da frase, a tendência abusiva que remete a sentidos fora das margens do texto formam um sistema cerrado que espanta o leitor habituado a ser conduzido pela mão.(...) a errância de sentidos e o judeu errante formam um território único na novela, fundindo­se um no outro através da palavra... 17

Ressalte­se também a dissertação de mestrado de Saul Kirschbaum, defendida em 2000, na USP, intitulada: Samuel Rawet: o profeta da alteridade, na qual faz uma abordagem temática e lingüística de Contos do imigrante, primeira obra de Rawet, além de um interessante levantamento biográfico do autor. 18

Mas o ponto máximo da análise da obra de Rawet encontra­se no livro Jewish voices in brazilian literature – a prophetic discourse of alterity, de Nelson H. Vieira, editado pela Brown University, na Flórida. Nele, Vieira aponta o vértice do deslocamento da alteridade, dizendo que a

15 IGEL, Regina. Imigrantes judeus, escritores brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1997, p. 190.

16 WALDMAN, Berta. A literatura de imigração judaica no Brasil. In: Três casos. São Paulo: FFCHL, USP, s.d., s.p.

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(...) experiência ontológica de Rawet como um judeu da diáspora que questiona a natureza do ser e de seu destino de exilado perpétuo impregna de forma opressiva sua presa, e freqüentemente aponta o conflito ou colisão que se tornam os catalisadores desta interrogação. 19

É importante ressaltar que Vieira analisa também a obra de Moacyr Scliar e de Clarice Lispector.

Vieira enuncia da seguinte forma o que vê como central na obra de Rawet.

(...) suas figuras marginais como o imigrante, o vagabundo, o marginal, encarnações modernas do judeu errante, predominam nas suas ficções justamente para dramatizar a descontinuidade interior sentida pelo homem na complexidade da sociedade contemporânea, onde é fácil o homem sentir a fragmentação, divisão, duplicidade e viver despojado de coerência e integridade – uma condição e estado de ser incompletos e caóticos que relembram o drama do judeu errante e ao mesmo tempo a expressão de deslocamento que a literatura contemporânea denomina “Pós­moderna”. 20

Aqui cabe ressaltar que, com todo respeito à pesquisa de fôlego de Nelson Vieira, não entendemos a obra rawetiana de forma alguma como inserida na visão de pós­modernismo. Não cabe aqui uma exaustiva discussão sobre a pós­modernidade, registrando­se apenas nossa discordância quanto ao uso do conceito para explicar Rawet. Ele funda uma tradição intensamente reveladora do mal­estar humano na civilização do capital, tradição esta, cuja herdeira mais brilhante é Clarice Lispector.

Outro nome que merece destaque por sua contribuição de análise e divulgação da obra rawetiana é o crítico Assis Brasil, que, estupefato com a pouca repercussão da morte de Rawet, busca resgatar sua importância literária, destacando seu deslocamento étnico e familiar. Diz Brasil:

Ele carregava nas costas um sortilégio étnico, uma forte incompreensão familiar em relação a ser um escritor (...) sem família e sem pátria, sentia­se, como ele mesmo declarava e retratava em seus personagens, um vagabundo, um errante e toda a sua obra de ficção

17 WALDMAN, Berta. Op. cit. 18 KIRSCHEBAUM, Saul. Samuel Rawet: profeta da altridade. São Paulo: Mimeo, FFCHL, USP, 2000.

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e ensaística é uma procura de identidade.Homem culto, como o foi João Guimarães Rosa, espírito superior e universalista, do porte de um Borges, de um Beckett, exilado num país de fachada dúbia e primária. 21

A morte de Rawet em agosto de 1984 ficaria praticamente despercebida não fosse a dedicação de alguns amigos. Um artigo não assinado faz uma espécie de necrológio, destacando: “Viveu solitário, como a absoluta maioria dos personagens de seus contos.” Alguns dias depois, Carlos Menezes noticia sua morte afirmando que “Samuel Rawet foi um dos mais importantes escritores modernos do Brasil”.

Em 1982, Danilo Gomes prefaciou 10 Contos Escolhidos com um texto intitulado “Uma introdução muito pessoal”. Nesse estudo introdutório, constata que Rawet ainda não tivera a divulgação merecida, não obstante “sua obra ficcional ser das mais importantes da literatura brasileira contemporânea”. E assim caracteriza a temática da obra de Rawet: “Como outros já perceberam o pathos próprio da dicção desse importante autor brasileiro: a solidão, a incompreensão entre os seres humanos, a carência constante de afinidades eletivas, os passos que se distanciam, sozinhos, a ânsia de fuga à sufocante realidade circundante, o homem ilhado em si mesmo – metálico, egocêntrico; a angústia da adaptação a ambientes alienantes. Vez por outra, contudo, permite­ se o autor uma breve comunhão com o humor e o lirismo.” 22

Há críticos entusiásticos de Rawet. Em 1968, Urbano Tavares Rodrigues coloca­o ao lado de Jorge Luís Borges, Julio Cortazar e Alejo Carpentier, considerando Os sete sonhos “uma das grandes obras da literatura contemporânea”. 23

Há também a crítica altamente negativa; em 1977, Beth Brait comenta o lançamento da segunda edição de Diálogo, acusando Rawet de repetitivo: “As reflexões constantes e as repetidas descrições impressionistas impedem que cada conto mantenha sua individualidade. As estórias são diferentes, mas o discurso mantém­ se inalterado e por esta razão precocemente envelhecido.” 24 Mesmo assim, no mesmo texto, reconhece que “é necessário destacar da mediocridade permitida os trabalhos que de alguma maneira contribuem de forma positiva para o panorama da literatura contemporânea”. 25

19 VIEIRA, Nelson. Jewish voices in brazilian literature – a prophetic discourse of alterity. Gaisneville: University Press off Florida, 1995, 1 a edição, p. 17.

20 VIEIRA. Nelson. Op. cit., p. 17.

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É importante destacar o papel controverso que ocupou Contos do imigrante no percurso crítico da obra rawetiana; a crítica não especificamente judaica atribui à obra amplos méritos, como informa o próprio Jacó Guinsburg, acrescentando às críticas positivas também as suas:

Uma obra que conduz de maneira tão feliz do acidental para o essencial, sem atentar a especificidade artística, de utilizar um instrumental literário de grande precisão. E de fato, manejando com segurança a difícil arte do conto, Rawet infundiu às suas narrativas a densidade psicológica e a interiorização subjetiva que as situam entre frutos da experiência da sensibilidade, o que constitui, como o demonstram os mestres da moderna ficção, a condição necessária para a genuinidade da obra de arte e para a presença autêntica, em literatura, do ser humano e de suas dimensões espirituais. 26

À promissora estréia de Rawet comContos do imigrante, segue­ se uma paralisia. Rawet “anula­se” em função de outros possíveis caminhos, escreve pouco e não publica coisa alguma até 1963, quando lança Diálogo. Desta vez a crítica aparentemente o ignora, quando não é negativa como já visto. A seguir, publica Abama, em 1964, Os sete sonhos, em 1967, O terreno de uma polegada quadrada, em 1969, alguns ensaios e obras de ficção que raramente ocuparam espaços críticos em jornais ou revistas. Nesta época, nosso escritor se coloca à margem dos meios intelectuais, denunciando o que chamou de “charlatanismo da erudição”; desentende­se com editores por questões de direitos autorais e financia a edição de seus livros com recursos próprios, obtidos com a venda de um apartamento no Rio de Janeiro.

Em 1977, sentindo­se desprezado pela comunidade judaica, proclama seu desvinculamento completo e total de qualquer aspecto relacionado com a palavra “judeu”. Refere­se a Kafka, dando a entender que isso se aplica a ele mesmo, Rawet:

Creio que a vítima deve ter sempre razões fortes para um maniqueísmo primário e simples. Um pai que não é pai, uma mãe que não é mãe, irmão que não é irmão, noiva que não é noiva, casa que não é casa, amigo que não é amigo, probleminhas miúdos referentes a despesas, dinheiro, futura herança, cunhados, e um pato ali ando sopa com seu universo estratosférico, e ainda descrevendo de modo crítico e sarcástico. 27

21 BRASIL, Assis. Teoria e prática da crítica literária. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995, p. 278.

22 KIRSCHBAUM, Saul. Op. cit., p. 13.

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É importante assinalar outra crítica de Jacó Guinsburg, que aponta em Contos do imigrante o brilhantismo do Rawet estreante e a necessidade de divulgar a obra, que assinala a imigração judaica no Brasil em nossas Letras. Nesse sentido, podemos dizer que Rawet abre os caminhos para Scliar, que trabalhamos em nossa dissertação. Scliar, anos mais tarde, entre outras questões, também vai abordar este texto. Contudo, o livro de estréia de Rawet não foi bem recebido pelos leitores, talvez porque a questão da imigração seja abordada sob uma ótica realista, que não vitimiza o judeu. Ou então pelo seu já afastamento da comunidade judaica, quando da publicação da obra. Rawet comenta em depoimento a Flávio Moreira da Costa: “Eu não freqüentava mais os clubes da colônia, meu contato com ela era relativo. Não houve portanto repercussão dentro da colônia. Fiquei apenas conhecido como contista, um autor que está começando, mais nada, apenas isso.”

Ainda quanto à repercussão de Contos do imigrante declara Rawet:

Foi uma das poucas surpresas que tive na vida. Alguns artigos arrasaram o livro, que aquilo não era conto, que não era isso, não era aquilo, mas confesso que me chocou mais – eu não estava preparado para tanto – foram os artigos que elogiaram o livro. Principalmente de Jacó Guinsburg, no Paratodos, aí por 1958. Fiquei meio tonto. Eu não estava mais vinculado ao livro, estava parado, frustrado em relação ao teatro e furiosamente entregue à vida profissional. 28

O crítico Renato Jobim, à época do lançamento de Contos do imigrante, alinhava­o com Guimarães Rosa, opinando que o livro de Rawet seria difícil para o público em geral, pois este quer uma mensagem clara e de fácil entendimento: “O esforço para a subversão dos valores estilísticos tradicionais, pseudoletristas incorporados à novíssima família dos escritores brasileiros, que manipulam a língua numa dimensão diferente a que estamos acostumados.” 29

Os dois autores poderiam estar sendo saudados como os pioneiros de uma nova fase da literatura brasileira, de amplos desdobramentos.

Cabe notar que antes da publicação de Contos do imigrante, Rawet já desenvolvia atividade literária apreciável. Começou a escrever para teatro aos 15 anos, época em que assistia teatro intensamente, fascinado com as atuações de Bibi Ferreira, Paulo Porto, Ziembinski, Nicette Bruno, Paulo Goulart e outros da época. Neste

23 RODRIGUES, Urbano T. Apud KIRSCHBAUM, Saul. Op. cit., p. 14. 24 BRAIT, Beth. Apud KIRSCHBAUM, Saul. Op. cit., p. 12.

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período escreveu mais de dez peças, uma das quais, Os amantes, chegou a ser montada por Nicette Bruno e Paulo Goulart. Aos 16 anos, aprovado em concurso para a Rádio Ministério da Educação, faz pequenas pontas em rádio­teatro e redige pequenos programas. A partir de 1951, aos 22 anos, passa a ter seus contos publicados em suplementos literários. Mas de toda essa fase não se conhece qualquer manifestação da crítica. Os críticos só se dão conta de sua existência com a publicação de Contos do imigrante em 1956. Apresentando­ se como vimos de forma muito dividida; uma parte o exalta, outra o execra.

25 BRAIT, Beth. Apud KIRSCHBAUM, Saul. Op. cit., p. 12. 26 GUINSBURG, Jacó, Viagens de Ahasverus. Prefácio, p. 7. 27 RAWET, Entrevista a Moreira da Costa. 28 RAWET, apud Kirschaubaum. 29 JOBIM, Renato Jornal Correio da Manhã.

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SEÇÃO TRÊS: CONFRONTANDO VIDA E OBRA

Escreve Freud emEscritores criativos e devaneios: “existe uma classe de seres humanos a quem, não um deus, mas uma deusa severa – Necessidade – delegou a tarefa de revelar aquilo de que sofrem e aquilo que lhes dá felicidade. São as vítimas de doenças nervosas, obrigadas a revelar suas fantasias, entre outras coisas ao médico por quem esperam ser curadas através de tratamento mental.” 30 – Cremos não ser excessiva pretensão propor um paralelismo entre as “vítimas das doenças nervosas” e os artistas, alargando essa “classe de seres humanos” a que se refere Freud e nela incluindo aqueles, também vítimas de necessidade, que precisam expor suas fantasias e alegrias, não o fazendo ao médico, mas ao espelho, que é a folha branca, à tela nua, ao gesso informe, à câmera atenta. Queremos com tal paralelismo discutir a complexa questão proposta por Freud, de que a Arte é apenas sublimação? Ou anunciar o intento de discutir o interminável tema do sutil limite entre o artístico e o psicótico? Não, pois para tal nos faltariam as ferramentas teóricas; queremos, sim, na medida de seca imanência, apresentar o quanto a obra rawetiana é fértil no que tange a tais questões.

Longo é o processo de entrega ao texto, lenta e dolorosa a liberdade à qual o escritor se acostuma a deixar fluir todas as múltiplas vozes que o habitam, de permitir a fala dos “outros” que são as personagens.

Escrever implica calar se, escrever é, de certo modo,fazer se silencioso “como um morto”, tornar se o homem a quem se recusa a última réplica, escrever é oferecer desde: o primeiro momento, essa última réplica ao outro. 31

No exílio da página, na busca gradativa e persistente da expressão, o criador convive com seus fantasmas e elabora sua fala, sua literatura. No exílio de seu estado psíquico, o psicótico pode, como tantas vezes já foi estudado, produzir arte. Qual a fórmula mágica que nos ensinará a separar, em certos momentos, arte de psicose manifestada em algum suporte?

Em “Kafka e a exigência da obra”, 32 M. Blanchot afirma que a arte é, em primeiro lugar, a consciência da infelicidade não a sua compreensão. A arte que produz Samuel Rawet, movido pela necessidade, e a maneira como deixa que os inúmeros “outros” que o habitam surjam nas narrativas são frutos de um homem infeliz,

30 FREUD, Sigmund. Gradiva de Jensen e escritores criativos e devaneios. Imago, Rio de Janeiro, 1976, p. 104.

31 BARTHES, Roland. Crítica e verdade. Perspectiva, São Paulo, 1982, p.15.

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que não crê na felicidade como um estado possível aos seres humanos. Os “outros” revelam se nos textos como diferentes vozes que dizem a mesma mensagem: o autor e todos os homens são, serão sempre, outsiders, o sentimento de pertença é utópico. Conscientemente, Rawet mostra se pelo avesso. O avesso, como se sabe, não é belo e harmonioso. Ao escrever suas obras, nosso autor esmiúça a infelicidade, a condição dos diferentes no seu sentido mais amplo; neste sentido, faz arte, não no sentido tradicional de busca estética.

A ficção de Rawet é a caminhada por entre os becos escuros e sem saída da mente de um ser marcado. Junto com Narradores que se entrelaçam aos protagonistas, que falam quase sempre com uma voz dual, somos guiados através do terreno estranho, sinistro, sórdido, dos pensamentos e da realidade de seres marginalizados.

Por que nos sentimos tomados pelo unheimliche, expressão muito típica do discurso psicanalítico e que expressa nossa angústia, a estranheza de nós mesmos frente ao mundo, devido ao inevitável mal­estar numa civilização que nos aliena e nos degreda, ameaçados em nosso bem estar, ao acompanharmos as caminhadas das personagens rawetianas? Porque tais personagens constituem exposição visceral da situação humana. Porque, ao seguirmos o fluxo de seus pensamentos, por meio da consciência do narrador, passamos a temer o eco de algo ao mesmo tempo familiar e estranho, que nos envolve e asfixia: o espectro da loucura, o questionamento da lógica comum, a sensação de queda continuada em abismos reiteradamente mais profundos. Nada mais inquietantemente próximo – unheimliche do que o fantasma da loucura. Nada mais similar à divina possessão do que a loucura. Para ler Rawet, devemos nos munir de todas as precauções: é preciso recuperar a lógica a cada passo, a cada frase; estamos em território onde os limites não possuem contornos bem definidos.

Sua obra é duplamente estranha e inquietante porque o autor conheceu o “lado de lá”, esteve nas profundezas que desconhecemos.

Porém, os textos de Rawet não são apenas exposições de “fantasmas” ou explosões irreprimíveis de “fendas” esquizóides: são elaborações artísticas que nascem da “consicência da infelicidade”, como nos disse Blanchot, e não de uma simples compensação da infelicidade (como o faz a literatura de mero desafogo), ou de uma patológica compensação (os textos dos psicóticos a quem se lhes deu papel; as telas dos alienados que meramente expõem a nudez de sua cisão).

32 BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rocco, Rio de Janeiro, 1987, p 69.

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Este trabalho trata a obra de Samuel Rawet como produto de diversos tipos de exílio e procura demonstrar o quanto a página em branco é o cenário ideal para que contracenem as múltiplas vozes de nosso autor. Herói que se aventura por obscuros labirintos, que evidencia em sua escritura o intenso convívio com material inconsciente, Rawet é inseparável de suas personagens; sua vida é de tal forma próxima ao que se poderia imaginar como a de um anti­ herói trágico, que poderemos até mesmo dizer que é possível, através de seus escritos, ensaios, contos, novelas, buscar uma trilha única na literatura brasileira.

2.1 – O judeu polonês­brasileiro ensaísta

“Nesse dia eu estava no começo de uma fossa, que se revelou mais funda que os abismos do Pacífico. Entro, ele está deitado num sofá cama. Começo a conversar, me queixo, não me sinto bem. Resposta: “Prostitua se!” Fico imaginando a que tipo de prostituição ele se entregava.”

“(Angústia e conhecimento – p.21)”

“A convivência familiar abaixo de qualquer padrão mínimo de equilíbrio e decência.”

(idem p.15)

“(...) minha mãe ia à sinagoga nos dias de Ano­Novo e do Perdão com um bracelete de quatro ou cinco dedos de largura de ouro.”

(idem p.16)

“Muitas vezes, logo depois da refeição, corria para o banheiro com diarréias fantásticas. Provavelmente eu sofria de alguma coisa, intestinos, vesicular.”

(idem p.19)

“Creio que foi através de Buber que aprendi os primeiros elementos positivos do judaísmo. A experiência concreta só me havia mostrado os elementos negativos.

(idem. Prefácio)

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O entrechoque cultural e racial, se é que isso tem sentido, se dá em qualquer parte... Meu maior conflito, e não sei se isso me enriquece ou empobrece, é pessoal e ligado à minha condiçãodejudeu, oude ex judeu, que mandou judaísmo e ambiência judaica às favas. De repente percebi que estava sendo vítima de minha própria chantagem afetiva: O judeu, a eterna vítima de perseguições injustas, um mártir do nazismo alemão, o horror dos campos de concentração etc. etc... Isso me fazia aceitar muita coisa como uma espécie de desculpa para certos comportamentos, e me fazia aceitar muita coisa naquela base do imigrante pobre que chega, luta e vence. Admirável! Apoteose final de alguma superprodução de algum Ziegfeld qualquer. Hoje não sei distinguir bem o nazismo alemão e o nazismo judaico.” 33

“Se o mundo me aterroriza, só há um lugar onde posso vencer o terror – o mundo.”

(Eu­Tu­Ele, p.31).

Escrevo em português, no Brasil. Não domino bem a língua, ainda. E dominá­la não é ser fiel a preceitos gramaticais é manifestar espontaneamente o miolo da língua, suas raízes populares, na gênese simultânea de idéias e emoção da consciência. Tive muitos problemas com esse fato. Como imigrante, vivendo parte do meu dia em ambiente em que essa apropriação consciente da linguagem é mais ou menos simples: utilizar uma língua em suas tonalidades afetivas para efeitos de visão do mundo é bem complexo. Conseguir me situar na literatura brasileira, como temática, foi terrível. 34

“Na verdade nunca me senti mal, porque nunca me senti bem.”

(Angústia e conhecimento, p.19)

33 RAWET, Depoimento a Danilo Gomes in Escritores brasileiros ao vivo, INL pp. 167­8.

34 Arte e Ciência, O Globo, RJ 18/4/1970).

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Eu não acredito em Deus. Acho a noção de Deus fundamental para compreender o fenômeno da consciência humana. E é essa experiência de Deus, feita pela consciência no tempo e no espaço, ou no espaço tempo, se preferirem, que me parece fundamental para vislumbrar.. . o fenômeno consciência em ação. 35

A idéia ingênua de Deus oferecida à criança me parece mais perniciosa do que qualquer outra. A idéia refinada de Pura Transcendência uma alienação que dá, em bloco, no ponto de partida para a pior incompreensão, a não compreensão de que é a própria consciência a criadora da idéia da Pura Transcendência. 36

“A experiência de Deus é: a experiência da consciência de Deus. No limite a consciência é Deus. A experiência de Deus, também, fundamentalmente, a experiência da morte.”

(idem, p .58).

(...) lembro de uma observação de que Deus seria uma experiência do não­eu. Creio, por experiência pessoal, que Deus é uma experiência do eu, em sua expressão limite, e essa experiência tem um valor importantíssimo na análise dos sonhos, e na compreensão de certos comportamentos normais e patológicos. 37

Os trechos citados pertencem majoritariamente a três dos livros de ensaios de Rawet: Angústia e conhecimento (1978), Consciência e valor (1970) e Homossexualismo, sexualidade e valor (1970). Nosso objetivo não é analisar a obra ensaística de Rawet, mas, como se pode observar, com a leitura das citações, nela é fundamental a questão da etnia e do exílio familiar, geográfico ou metafísico, que são, igualmente, temas fundamentais, em sua narrativa, o que justifica o interesse.

É pertinente notar que iniciamos este item transcrevendo trechos de Rawet, evitando digressões biográficas. Sua história está entretecida no texto de sua ensaística; é a partir das observações que elaborou como judeu, imigrante e mal integrado no núcleo familiar, que ele desenvolve uma postura existencial e filosófica. Daí a opção pelo depoimento literário que o autor dá de si.

35 RAWET, A experiência de Deus, in Alienação e realidade, p. 55. 36 idem p. 50. 37 RAWET, Alienação e realidade, p. 46.

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O que a ensaística evidencia é confirmado por sua ficção; a sensação de desgarramento, de absoluta inadaptação ao meio, de permanente enfrentamento com o vazio. Obra cética, irônica, onde não há espaço para o belo, para o prazer, que provoca extrema sensação de desconforto; lê la é penetrar incessantemente, significante após significante, no nó da Falta.

Cedamos a palavra a outro judeu, Renato Mezan, filósofo e psicanalista, que, emPsicanálise e judaísmo – Ressonâncias – procura analisar o “ser” judeu:

(...) uma criança, para se tornar um judeu, necessita identificações com este conjunto de significações que é “ser” judeu, significações que vão lhe ser transmitidas pelos agentes sociais apropriados, que no caso costumam ser os pais. Isso tudo poderia ser apenas um modo bastante embrulhado de dizer que judaísmo se aprende em casa, se não fosse por um elemento muito importante, e que sem a psicanálise nós não saberíamos que existe: a saber, que a identificação é um processo consciente, e que seus alvos privilegiados são o pai e a mãe de cada um de nós... Se o judaísmo chega à criança através dos pais, como qualquer outro conteúdo identificatório ele vai estar incluído na rede de desejos e fantasias que constituem o complexo de Édipo. Ser judeu não é um desejo primário do inconsciente, portanto é algo que precisa ser investido pela criança. Sua identificação com este “ser judeu”, digamos com este atributo, vai depender então de vários fatores. Um deles é a forma como se estrutura seu complexo de Édipo: é isto que vai determinar como ela vai se relacionar com seus pais e portanto o que vai aceitar e o que vai recusar daquilo que eles lhe oferecem como modelo identificatório. Outro fator é evidentemente o modo pelo qual estes pais se relacionam com o fato de serem judeus...permanecer judeu era uma das formas de ser igual ao pai (de identificar se com ele), enquanto abandonar o judaísmo poderia ser uma das formas em que se expressava o ódio pelo pai ou a rebelião contra a sua autoridade. 38

Muito da postura pessimista, iconoclasta, de Rawet, deve se à falta absoluta de identificação com o pai; sendo o lugar do pai um lugar vazio, nada mais natural do que passar a odiar seu povo, rejeitar sua cultura. Nas citações retiradas de seus ensaios, percebe se a profunda mágoa, a intensa carência afetiva de um homem que, quando

38 MEZAN, Renato. Psicanálise e judaísmo: ressonâncias. Escuta, São Paulo, 1987, p. 49 e 50.

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criança, nada internalizou de positivo no que se refere aos sentimentos estruturantes que são o amor e a bondade. Ouçamos, mais uma vez, Mezan: “Toda pessoa necessita de imagens positivas acerca de si mesma, adequadamente investidas, para poder funcionar de modo não psicótico.” 39

Os três ensaios da década de 1970 são desorganizados, passionais, com momentos de profunda irracionalidade, com uma escritura que oscila entre o cientificismo muitas vezes sem base e o delírio anarquista, mesclados a um fundo contraditório de brilhantismo e perturbação mental. Nos ensaios, como um todo, Rawet ataca Husserl, Freud, Sartre, Heidegger, enquanto ao mesmo tempo os admira violentamente este é o termo, violentamente.

Em Consciência e va lor , Alienação e rea lidade e Homossexualismo, sexualidade e valor, Rawet, o ensaísta, nega radicalmente a psicanálise, enquanto seu texto revela, sem que ele o queira ou perceba, a evidência de uma grave problemática pessoal de base inconsciente. Ataca Freud e deixa transparecer sua identificação com ele, seu desejo de possuir o distanciamento crítico, a objetividade que Freud desenvolveu para tratar dos problemas do homem. Faz observações absurdas, destituídas de qualquer lógica, e se “trai” como uma criança, propondo se, por exemplo, a “... esmiuçar particularidades... a título de hipótese” sobre o mecanismo dos sonhos em Alienação e realidade.

Em Eu Tu­Ele, que se propõe em determinado momento a ser científico, a definir idéias filosóficas como “campo eidético” e “espaço eidético”, a tratar da questão do real, do problema do conhecimento, observa se uma mescla das mais raras entre ensaio científico e literatura. O livro começa em tom poético, com quatro frases que abrem e fecham o texto: “Sou homem de crepúsculos. De transições. De nascimentos e mortes aparentes. E foi um crepúsculo vivido apaixonadamente que me deu o início deste livro.” 40

Nesta obra, parece nos chave para compreender o “enigma” Rawet a seguinte afirmação: “Meu nome, entre outros, é Narciso. Não faço versos. Sou Poeta, um homem que se dá uma visão autêntica da realidade, inacessível ao homem da ciência...” 41 Sem dúvida, para Rawet ser escritor foi o caminho para seu autoconhecimento, como ele próprio o declarou. Negando se à psicanálise, sem percebê lo, fazia do papel a sua escuta, “tratava” de seus fantasmas criando personagens. Neste sentido, compreendemos a menção a Narciso. Depois surge a aparente contradição. “Não faço versos. Sou Poeta.” Com a leitura de sua obra ficcional, vê se a profunda verdade de tal

39 Op. cit., p. 74. 40 RAWET, Eu­Tu­Ele, p. 7. 41 Idem., p. 8.

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afirmação; Rawet, sim, um poeta, um poeta do que se poderia chamar a triste e suja poética da modernidade.

Sem fazer versos, com sua prosa crua, obcecada, sintética e elíptica, ele faz poesia em prosa do gênero da que está presente em certas obras cinematográficas o olhar dos Narradores e, algumas vezes, o ritmo da narrativa de Rawet são muito cinematográficos – análogos ao verdadeiro cinema de arte, como os de Wim Wenders, os de Fassbinder, entre outros.

Seguindonasconsideraçõessobreo trecho selecionado, chamamos a atenção para o ponto central da “questão”: “Sou poeta, um homem que se dá uma visão autêntica da realidade...” Sim, exatamente a estranheza que nos provoca esta afirmação na primeira pessoa do singular, seguida da referência a “um homem” e do pronome da primeira pessoa são a chave a que nos referíamos.

Os psiquiatras provavelmente achariam o trecho índice significativo da cisão psicótica; colocaremos apenas que a afirmação contém o indício de que o autor sabe de uma dualidade básica em sua constituição. Do mesmo modo, confirma o que o todo dos textos rawetianos demonstra: uma luta entre um e outro, entre talvez aquele “um judeu”, quase condenado historicamente à inteligência cartesiana do mundo, à agudez de raciocínio e que deseja intensamente fazer filosofia, e investidas científicas em seus ensaios e o “outro”, o que é, sobretudo, um artista, um poeta, um melancólico. Esta dualidade, nunca resolvida em Rawet, é causa não só de sua profunda angústia, como da diferença de qualidade em sua produção: os ensaios são falhos, embora interessantes; a ficção é rica, original, profunda.

Além do mencionado “exílio” com relação a seus pais, que se iniciou em 1929, em Klimontow, na Polônia, onde Samuel nasceu, e, portanto, além do “exílio” em relação ao judaísmo que, evidentemente, só explodirá mais tarde , é fundamental lembrar o fato de que os Rawets falavam ídiche em casa, e não o polonês. Conseqüentemente, desde “sempre”, Rawet teve a vivência de não possuir uma referência única segura, abarcadora, que é a língua e, portanto, a plena inserção que uma cultura oferece. Sua história e a de sua família não se continham apenas na Polônia, a língua que falavam era outra, a língua em que foi alfabetizado era outra. Desde cedo, a radical vivência da alteridade. Mesmo na Polônia, embora polonês, ele era estranho. Moacyr Scliar, outro representante judeu que possuímos na literatura brasileira contemporânea, em um livro intitulado A condição judaica, faz um comentário perspicaz:

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(...) o estranho tem debilidades e forças que o nativo não tem. O estranho é frágil como uma larva; treme por qualquer coisa, vive assustado. Não fala a língua do lugar, à luz clara é objeto de deboche pior, um freqüente bode expiatório. Mas ele espia e expia. É aí – no olhar – que está o primeiro poder do estranho. Ele vê o que os outros não vêem. 42

Depois de vivenciar na Polônia, na primeira infância, o problema da 1íngua a 1íngua que a psicanálise nos ensina ser uma das referências fundamentais transmitidas à criança , ao chegar ao Brasil, enfrenta, aos sete anos, novo choque. Aqui, no Rio de Janeiro, sua diferença é acentuada. Pois agora, além de judeu, passa a ser imigrante. Exilado da terra, exilado das línguas (agora há uma terceira), criança não­ identificada com o núcleo familiar, passa a enfrentar os subúrbios cariocas. Neles, “espia” e “expia”. Nestas trajetórias de exílios, encontra se o germe daquele a que nos referimos como “anti herói trágico”, germe de suas personagens.

Esta dualidade vivenciada desde a infância é exposta em sua obra, seja em tentativas teóricas em torno da relação com o outro, “no caso, ele desenvolve teorias” em torno do “terceiro elemento”,a terceira consciência que observa a relação de outras duas (e é inevitável pensar em Freud...), seja em sua narrativa de ficção, por exemplo em Eu­Tu­Ele: “Eu não tem medo de O mim não conhece palavras. Para o mim há. A entrega ao mim não significa passividade nem quietismo. A visão esquemática do ocidental acentua o eu. O mim não é ocidental nem oriental. O mim é...” 43 Importante perceber os trechos anteriormente transcritos auxiliam o quanto esta definição do mim se assemelha ao conceito que Rawet tem de Deus. Talvez daí a afirmação que faz de que “... Deus é uma experiência do eu”, o que, conforme vimos, é subdividido, ou seja, Deus é uma possibilidade do sujeito, um terceiro elemento.

Angústia e conhecimento é o mais bem logrado de seus ensaios, tratando se, de fato, de sua auto­biografia. É o menos pretensioso, o mais corajoso e, significativamente, o último deles, escrito seis anos antes de sua morte, ocorrida em Brasília, no ano de 1984. Na presente obra, sua doença é mencionada como “colapso” e as menções à família são explícitas, mas se trata, fundamentalmente, de um exercício muito particular de pensar a consciência, a dor, a ética. Nesta obra e nos outros ensaios, estranhamente sofrida é sua tentativa de compreender a esquizofrenia, os estados de perturbação mental. Como um Quixote, luta, sozinho, para vencer a si mesmo, para controlar e compreender

42 SCLIAR, Moacyr. A condição judaica, L&PM, Porto Alegre, 1985, p 93. 43 RAWET, Eu­Tu­Ele, p. 36.

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seu lado escuro; Rawet termina Angústia e conhecimento com frases de melancólica impotência, finalizadas por uma questão eminentemente zen­budista, filosofia pela qual estava sendo atraído há alguns anos:

Impossível chegar à compreensão do que há de eterno no homem por via especulativa. O máximo que eu posso perceber é uma frase pronunciada com intenção oposta. Como perceber o silêncio interior que envolve os ruídos. 44

Concluindo este item, que aborda as dificuldades de Rawet enquanto ensaísta, parte­se da hipótese de que tais dificuldades têm raízes na profunda cisão entre o artista, judeu desenraizado em luta com seu eu profundo porque sua estrutura profunda é, possivelmente, psicótica ou esquizóide.

A preocupação com o eu em confronto com o outro, a situação existencial do homem, a luta pela liberdade de existir, se são temas tratados de forma assistemática, simplificadora e, ao mesmo tempo, delirante, em várias passagens de seus ensaios, são, por outro lado e de outra forma, desenvolvidos a contento pela prosa de ficção. Nela, sem pretender “criar” teorias, ou contestar os grandes pensadores que o marcaram (por coincidência, dois deles judeus: Marx e Freud), apenas perseguindo as “vozes” de seu inconsciente, Rawet cria, com seus personagens, tipos inesquecíveis, anônimos, semelhantes em um traço essencial: todos são caminhantes solitários, como, aliás, ele já foi chamado.

2.2 – A Falta. A hiância. A Coisa.

“Nada entendo de matemática. Na verdade, não entendo nada de nada. Registro apenas com o intuito de me libertar de algumas idéias obsessivas.” 45 (Consciência e valor) Rawet, ao dizer nada entender de matemática, está se auto– ironizando e ao mesmo tempo dizendo uma grande verdade a seu respeito. Auto ironiza se porque, formado em Engenharia Civil, especialista em cálculo de concreto, tendo feito parte da equipe de Niemeyer (foi Rawet quem calculou o prédio do Congresso Nacional), o mínimo que se espera é que ele soubesse muito de matemática. Diz uma grande verdade porque, se pensarmos na matemática conforme, por exemplo, típica definição simplista ao estilo do século XIX: “ciência que tem por objeto a

44 RAWET, Angústia e conhecimento, p. 39. 45 RAWET, Consciência e valor, p. 38.

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medida e as propriedades das grandezas”, concordaremos com a idéia de que Rawet, em sua dualidade permanente, não poderia afirmar saber tal ciência pretensamente destinada a tudo medir, a ter função basicamente utilitária.

O Rawet engenheiro conflita com o Rawet artista, poeta do desconstruído, do fluido e não do concreto, do labiríntico e não do lógico. Da matemática, “limitada”, instrumento para a construção do real, Rawet sabe o suficiente para erigir edifícios; da matemática abstrata, da ciência que prescinde do real para elaborar suas teorias, que constrói redes imaginárias, que exigem, como única condição necessária a sua perfeição, a coerência entre as relações de conceito, desta Deusa, Rawet, com autocrítica e humildade, diz nada saber.

E por que Rawet tornou se engenheiro? Escolhe a engenharia como profissão, é o jovem homem que traz a marca da falta da simbolização da metáfora paterna, que não possui “ponto fixo” e que encontra na matemática a sedução de fórmulas fixas que se “impõem às realidades naturalmente instáveis”. Seu inconsciente e o desejo o encaminharam para a profissão de engenheiro (fixas estruturas que calculava, estaria a concretização do pai nunca integrado, a sua objetivação). Amar a matemática no que ela tem de “poder de encadeamento”, de “movimento inexorável”, o que é diferente de deter um suposto saber. Sobre ela; amá la é, poderíamos arriscar dizer, necessitar amorosamente escrever contos e novelas que se encadeiam perfeitamente e se dirigem inexoravelmente para um mesmo centro; o do desejo de um significante que falta. Somos arrastados para este centro pela estruturação da ficção de Rawet, que é como um lento e inexorável desenrolar de um longo fio. Fio constituído por histórias que dizem, embora com diferentes enredos, sempre a mesma coisa, por significantes repetitivos, por personagens que, fechadas em si, falam da condição do homem: a solidão. Narrativas que lembram desenhos de Escher, que lembram os caminhos do inconsciente. Esses significantes obsessivos, que enfeitiçam, são as “idéias” de que Rawet diz querer libertar se, por meio da escritura.

Ouçamos Rawet, em Consciência e valor, quando afirma: “Eu vivo sob o signo dos sonhos” (p.38); “... o processo esquizofrênico, definido como divisão, começa quando a criança dá o primeiro choro na maternidade...” (p.30) Em certa entrevista, declara: “Acho que sempre falta tudo ao homem, daí a sua grandeza. Ele tem que conquistar a cada minuto a sua realidade.” Lacan, ao definir o inconsciente diz:

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O inconsciente primeiro, se manifesta para nós como algo que fica em espera na cerca, eu diria algo de não nascido. Que o recalque derrama ali alguma coisa, isto não é de se estranhar. É a relação da fazedora dos anjos com os limbos... Nunca é sem perigo que se faz remexer algo nessa zona de larvas (...) 46

E mais adiante, lembra Freud, chamando o inconsciente de “umbigo de sonhos” e identifica o com a já mencionada hiância. A sensação de estranheza da narrativa rawetiana deve se ao fato de sempre estarmos como que pressentindo esse “algo que fica na espera” e que, seguidamente, o recalque ou a arquitetura do autor faz com que escape do limbo, venha à tona nos textos, e nos premie com uma linguagem constituída por significantes plenos do sentido da falta. Se a linguagem rawetiana é assim tão encadeadamente semelhante à que Freud diz ser a do inconsciente constituída de deslocamentos e condensações, sincrônica e fragmentada , por ser fruto de um escritor, talvez psicótico, é uma questão em aberto. De todo modo, há uma consciência evidente de dessemelhança; quando diz “eu vivo” eu faço etc. Está sempre autocomparando se com o outro, com os outros. Esta percepção da diferença, aliada à consciência da Falta, contribuem radicalmente para a elaboração de uma escritura vertiginosa.

Falta a Rawet o que Lacan chama de “objeto perdido” objeto que estaria, em outros termos, presente no paraíso anterior ao nascimento: o da vida uterina. Nosso inferno é o desejo, assim já dizia Buda e dirão também Freud e Lacan para quem vive apenas com a absoluta falta de desejos poder se á chegar ao Nirvana.

As personagens de Rawet, as histórias em que as coloca, que são como busca de utópico tesouro, são seres que não sabem exatamente o que desejam, mas que buscam incessantemente. Precisam de cigarros, de dinheiro, de hotel, de ônibus, de sexo, de álcool, sem que nunca possam sentir se satisfeitos. Sempre perambulando ou vagabundeando, muitos deles têm consciência de que estão permanentemente em fuga.

O homem Samuel Rawet, arrastando consigo seus fantasmas, perseguia um algo. Não o encontrou. Suas reflexões ensaísticas demonstram enorme ansiedade por reconhecer, compreender, desvendar o mistério do homem a partir de si próprio. Sua “metodologia”, se é que tal substantivo pode ser usado em relação a sua obra, consistia na observação direta, íntima da vida, no misturar se com os protagonistas da tragicomédia humana, formando uma personalíssima filosofia da existência. Dessas observações nascem

46 LACAN, Jacques. O seminário, Livro 11: os quarto conceitos fundamentais da psicanálise. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1974, p. 28.

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personagens encurraladas, envolvidas na mesma busca de seu criador, descomprometidas eticamente com o mundo; espectadores quase sempre passivos de uma sociedade em crise.

Nenhum dos personagens rawetianos crê no Bem Supremo, embora alguns tentem. Dilacerados, intuem a inexistência da possibilidade alentadora de tal Bem, nem mesmo no gozo crêem. Sua única realidade é a do grande buraco negro.

O exilado Rawet produziu textos de exílio. A escritura serviu lhe de escuta e salvação. A familiar estranheza, o unheimiliche, se nos depara a cada página, a cada pontuação, a cada corte da seqüência narrativa, a cada descrição, sendo por vezes a continuação da leitura um ato asfixiante. O estilo, a falta de “belo” estilo em Rawet, é, intuitiva ou propositadamente, a trilha perfeita traçada por um autor que pretende expor o cerne do horror da condição dos exilados, sejam eles todos nós, mortais, sejam os psicóticos, aqueles que carregam na fala a cisão interna, que expõem a fragilidade do humano.

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SEÇÃO QUATRO: ABAMA: OBRA REPRESENTATIVA

Samuel Rawet demonstrou através de sua obra ser um indivíduo extremamente angustiado e marginalizado. Escolhemos para este trabalho Abama, pois ela combina duas grandes temáticas de Rawet, a abordagem do marginal e a questão do judeu que estranha a si e ao mundo. Há nela a marca de outra temática rawetiana, a impossibilidade do encontro com o outro, só que em Abama ela aparece às avessas, mostrando como único encontro possível aquele com o nosso demônio individual.

Pretendemos mostrar não só a estranheza da temática em si, como a estranheza da organização do discurso rawet iano. Pincelaremos também como a identidade judaica através do personagem central se constrói na obra, ofertando ao leitor um excelente perfil do judeu diaspórico.

3.1 – Algumas reflexões

Abama, novela de 1964, tem como título um significante em princípio vazio. Abama é alguém, é algum lugar, algum deus ou personagem mitológico?

Após depararmos com o título enigmático, somos surpreendidos por uma massa textual continuada, ininterrupta, com a ausência absoluta de parágrafos. Massa compacta que nos faz lembrar o antológico monólogo de Molly Bloom, embora no texto de Rawet permaneçam os sinais de pontuação, que inexistem em Joyce.

O título misterioso e o aspecto visual das páginas do livro, como se fossem escritas num jorro só, haviam nos feito pensar em uma narrativa que seria desenvolvida na primeira pessoa; engano nosso. O narrador de Abama situa se num nível extradiegético.

Nas ocasiões em que o Narrador emprega focalização externa é que se estabelece uma espécie de dialética entre o ver e o visto, o interior de quem contempla e o exterior contemplado, a subjetividade do narrador que, ao escolher certos dados do real e, sobretudo, ao sintetizá los e descrevê los com o protagonista, sujeito da diegese, fazendo com que sua voz seja dual; seu discurso é bastante avaliativo o que é patenteado pela adjetivação e intercalado por muitas digressões. Todos os diálogos são transpostos, via o crivo da subjetividade do

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Narrador, o que se pode entender como índice estilístico do desejo do Autor de dizer da falta de individualização das personagens, desde que o diálogo direto, forma canônica da interação verbal, não ocorre no texto.

O enredo de Abama basicamente é o seguinte: Zacarias, o protagonista, após caminhar por longo tempo decide encontrar seu demônio particular; por “acaso”, encontra se com um velho conhecido, de quem nem o nome se lembra, que insistentemente convida o à casa, onde se comemora o aniversário do filho. Após a festa, onde várias cenas curiosas são inseridas, Zacarias volta à rua.

Em um bar, presencia cena de violência na briga entre dois homens; novamente na rua encontra se e ambos fazem que não se vêem com amigo antigo, que lhe traz à memória outros tempos. E a história de cada um dos companheiros daquela época, nenhum deles, aparentemente, realizado. Em uma fila de ônibus, presencia cena entre pai e filho, na qual aquele narra uma pequena história, que evidencia o império de Tanatos e Eros; Zacarias não suporta permanecer na fila e toma o primeiro ônibus que encontra, sem saber a direção. No ônibus, reflete inúmeras coisas enquanto hipnotizado observa a paisagem da janela. Vai até o cais; aí, lembra se de outro momento de seu passado.

Dirige se a um café, onde lhe vem o desejo de encontrar Urias, amigo judeu como ele; vê sombras e morte dentro e fora de si. Novamente na rua, Zacarias tem associações relativas à infância, o que o faz mover se apressadamente. Em outro ônibus, enquanto perde se a olhar a cabeleira de um sujeito à sua frente, lembra da época de sua vida, quando decidira ser pintor. Na rua, anseia por conhecer a “forma” do demônio que decidiu encontrar; lembra se de quando foi internado em um sanatório, e do amigo que lá fez, Ismael. Zacarias chega à casa de Urias, a quem encontra acidentado. Regressando, Zacarias solta seus pensamentos a partir do que as ruas lhe sugerem. Pára em outro café, onde presencia o assassinato de uma mulher. Outro ônibus, novas ruas e, finalmente, regressa a sua casa. Banha se e, por fim, sente a aproximação do “outro”, do demônio que decidira buscar e que todo o tempo estivera com ele; senta se e escreve o seu nome Abama enquanto sente o outro colar se a si. O dia amanhece, o “corpo.. de Abama desvanece se”.

Conforme pode ser percebido por meio da síntese da trama, trata se de uma longa caminhada que, no nível da diegese, seria de aproximadamente dez horas do início da noite ao início do dia; a linha única e compacta formada pelo texto é como se fosse a própria

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estrada por onde perambula Zacarias, em busca de seu demônio, em busca dele mesmo figurado como “outro”. O tema da novela, portanto, é a busca do encontro consigo mesmo.

Ao longo das situações que se vão formando na narrativa, ficamos sabendo que Zacarias é judeu, solteiro, vendedor de aparelhos eletrodomésticos. Esses são os dados objetivos que o Narrador nos dá da personagem, os demais, como a postura ideológica de Zacarias, são deduzidos a partir do discurso do Narrador ou de falas transcritas e ações relatadas no presente ou no passado da diegese. Zacarias é personagem altamente individualizado, que nos surpreende várias vezes ao correr da narração, configurando­se como personagem redonda elaboradamente construída.

De maneira muito original, pois Abama é uma novela psicológica, há uma intriga que se desenvolve: o nó da intriga é a busca do demônio, o clímax, é o encontro de Zacarias com Abama; e, no desenlace, Abama desvanece se e Zacarias vê o dia trazer a cotidianidade e se desfazerem as sombras. A narrativa é, porém, estruturada de modo complexo, compõe­se de vários planos: o do presente da diegese; o do passado do protagonista, bem como o passado de outras personagens e figurantes introduzidos pelas analepses (ou flashbacks), a do futuro, representada pelo saber ulterior do narrador, que conhece o que sucederá a Zacarias e, por momentos, menciona este saber que é o de que o protagonista vencerá o desafio que a si mesmo propôs. No plano do presente da diegese, enquanto ação, a narrativa tem sua velocidade diminuída muitas vezes para que o narrador relate os pensamentos de Zacarias a respeito do que observa; configuram se, então, as cenas, que são muito interessantes para a compreensão da obra.

Nenhuma cena está no texto “por acaso”, todas remetem ao tema principal e aos subtemas, conforme será explicitado. Há níveis hipodiegéticos instaurados pelas histórias dentro da história, e todas essas histórias secundárias remetem ao mesmo centro, são índices fundamentais do significado.

Além do já dito, há que se salientar a ambigüidade de muitas passagens, instaurada a partir evidentemente da linguagem.

Dividiremos a narrativa em quatro seqüências, a fim de poder melhor estudar as cenas, nas quais se evidenciará o que já foi dito. Nesta obra de Rawet, pretendemos demonstrar o quanto os subtemas tratados nas histórias inseridas na diegese nos aproximam, por meio das vivências das diferentes personagens e situações desenvolvidas, do nó da condição humana.

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1 a seqüência do início da narrativa (p. 1 a p. 27)

O narrador inicia o relato com a frase “Deu­se um dia após...” que será repetida mais três vezes, numa composição; na quarta colocação, anuncia se o propósito que direcionará o protagonista (herói que deverá passar pela prova, pela iniciação: “Deu se que resolveu descobrir seu demônio particular.” Chama a atenção nesta página e meia de texto a repetição da palavra linha, que, como já vimos, remete ao aspecto gráfico na novela como um todo: uma linha continuada. Dentro da economia da ficção rawetiana, tal substantivo tem o significado de limite, de cisão, e, no presente caso, de ultrapassagem. “Zacarias, o homem que naquele instante resolveu avivar a memória, andara o dia todo”. O narrador nos diz, então, que descobrir (o demônio) está para avivar(a memória). E são empregados os verbos localizar e conquistar como sinônimos para descobrir. Andando, seguindo a sua linha de Ariadne, Zacarias retira do que vê, do real, significantes que interagem com sua busca interior, inconsciente.

Pequenos incidentes de compactas realidades, nenhuma delas a sua, assim desgarradas, disformes e sem proporção, dentro do que viera antes e do que viria um instante após. Mas o instante era o de sua passagem, e com a descida, talvez nunca mais voltasse àquela rua, arrastava a coisa com dois olhos e dois ouvidos os fiapos que o acaso lhe lançara, e que, provavelmente algum dia, devolveria com um grito, assim como o grito de parturiente, ou o grito de dor de quem está sendo aliviado de terrível mal, devolveria com um grito um vasto manto tecido de longas caminhadas e de noites vazias. 47

Observamos, no trecho acima, a intensificação do subtema introduzido por avivar a memória; “o que viera antes e do que viria um instante após” remete à questão fundamental da passagem do tempo, que o protagonista espera o ajude a coser, a compreender os acontecimentos. Compreender, porém, traz em seu bojo um grito (“de parturiente”): parir/parir se partir/partir se.

Zacarias observa os carros, os letreiros, as vitrines, os prédios: “Eram ainda calmos os seus passos, bem medidos, bem controlados por longos exercícios cuja única finalidade era evitar que sem mais nem menos saísse correndo...” 48 Os passos de Zacarias, que se alteram de acordo com a velocidade de sua angústia, serão um dos motivos livres mais indicativos da tormenta interior da personagem.

47 RAWET, Samuel. Abama. Edições GDR, Rio de Janeiro, 1964, p. 13­14. 48 Op. cit., p. 15.

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Na noite, surgem as sombras e, na descrição que delas faz o narrador, de repente, um desses significantes (sombra) está no singular, referindo se, evidentemente, não só aos lugares escurecidos, mas também à subjetividade do narrador: “Sombra afugentada, perseguida mas insistente e subterrânea, insinuando se nas mínimas frestas de luz.” 49 A adjetivação nunca é inocente. Embora ainda não tenhamos sido informados de que Zacarias é judeu, o emprego da cadeia de significantes afugentada­perseguida­insistente­subterrânea, nos faz, imediatamente, pensar no povo judeu; não obstante, desde a criação do Estado de Israel e da afirmação do sionismo, tal situação se tenha transformado e mesmo invertido.

Imediatamente após o trecho da sombra, o narrador descreve a imagem que ocorre a Zacarias: uma mesa posta para oito pessoas. Apenas os objetos são detalhados e das pessoas à mesa apenas se mencionam as mãos. Em seguida, a luta do protagonista com suas memórias: e tudo poderia ser verdade. Entre dois pensamentos que se anulam, Zacarias não consegue mexer se. O significante mesa, tão importante para as famílias judaicas, está, portanto, para a família, passado “o que poderia ter sido e não foi”. Estático, Zacarias é “despertado” por um homem a quem não recorda: “Mas nada lhe trazia à memória o lugar em que provavelmente mantiveram relações.” 50 Note se a ambigüidade instalada pela expressão manter relações.

O homem, que é um antigo conhecido de Zacarias, leva o para casa, onde o filho comemora aniversário. Zacarias, impotente frente à receptividade do outro, está perplexo, pois aquele homem de quem nem se lembra o nome trata o como se ele lhe significasse algo: “Habituara se a perturbações leves em sua ronda, nunca uma assim tão longa, e tão sem propósito.” 51 Curiosa a inserção do substantivo ronda que traz em si o sentido de zelar pela tranqüilidade pública. Zacarias “patrulha” quem, o quê? Outro fator a ser notado é o de que o substantivo é empregado no singular e não no plural, como seria de esperar se: as várias rondas que estariam como sinônimo de caminhadas, as quais, evidentemente, não poderiam ser ininterruptas. Porém, o narrador fala de uma ronda, como se o protagonista percorresse uma linha sem corte, fizesse uma volta sem descanso, como se sua vida fosse uma ronda, uma busca. Daí o singular.

O diálogo dos “amigos” é transcrito de forma indireta pelo narrador e, quando cede a voz à personagem (o “amigo”), o faz sem empregar travessões; como já foi dito, não há espaços em claro no

49 Op. cit., p. 17. 50 Op. cit., p. 19. 51 Op. cit., p. 19.

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texto. No elevador, enquanto olha o outro, Zacarias, envolto em silêncio, sente que “... o demônio particular se insinua”: 51

Vem com a mansidão das coisas inexoráveis, filtradas lenta e suavemente pelos pequenos acontecimentos, alçando se como que por capilaridade aos gestos mais comuns, aos tiques, aos hábitos. Como a primeira fenda num solar antigo, a gota d’água que cai do teto, ou o primeiro som articulado pela criança. 52

Chegam à casa do anfitrião. A descrição do grupo, como em uma pintura, é perfeita. O estranho em meio ao núcleo familiar, o poder devorador dos olhares, a cena que se forma em torno das calças do protagonista sujas pelas mãos de um menino.

Com duas manchas de talco nos joelhos, um prato de doces na esquerda, um copo de guaraná na direita, viu se abandonado, só entregue à contemplação de uma ilustração emoldurada e presa à parede defronte por um cordão dourado. Abaixo do quadro uma fila de cadeiras silenciou e puseram se todos a observá lo. Sabia que o observavam embora não tirasse os olhos de certo regato que cascateava espuma entre uma vegetação aveludada. 53

As pessoas não existem, são uma “fila de cadeiras”; esse “certo regato” um desses aquários extremamente kitsch que possuem cenários em seu interior passa a ser o “objeto de apoio” de Zacarias, a linha de fuga possível frente à naturalidade da cena festa familiar que o incomoda intensamente. Zacarias recusa se a ser simpático:

A recusa, o adensamento do corpo estranho. Nas feições ainda serenas que o circundavam adivinharia se quisesse ímpetos de garras. Criaria para si a ilusão de que ele fora sempre esperado, ele, um estranho qualquer, um homem que se aguarda para quebrar a monotonia e romper o tédio, um acontecimento, um desequilíbrio. Era isso, um desequilíbrio. 54

Além do tema do estranho, do diferente, central na narrativa de Rawet, conforme já abordamos, note se a referência à animalidade dos outros simbolizada pelo significante garras, imagem muito desenvolvida em Os mortos enterrem seus mortos; Zacarias imagina sua “função – ali, como a de romper o equilíbrio: quebrar a linha,

52 Op. cit., p. 20. 53 Op. cit., p. 23. 54 Op. cit., p. 24.

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instaurar a desordem”. Porém não é Zacarias quem rompe o equilíbrio da tarde festiva, mas um homem à sua esquerda que sofre de gases e instaura uma conversa inusitada, em meio à deglutição prazerosa de bolos e doces: surgem como assunto a digestão, o desarranjo intestinal, a prisão de ventre. O arranjo familiar é desarranjado por um prosaico emitir de gases. Enquanto o outro fala de sua situação intestinal, Zacarias deixa se “perder” no aquário, em outras “águas interiores”; a narração concomitante dos dois fatos assume um tom entre o surreal e o humorístico, o narrador mesclando a fala da personagem que sofre de gases com o movimento do olhar do protagonista:

Devia ter bebido só água filtrada e fervida. As pedras estão lavadas, lisas, sem arestas, amontoam se segundo uma ordem precisa, as menores, as maiores, os contornos arredondados se acasalam. Outro som cavo. Gases, nem se pode conversar. Volta à Cascata e ao que bóia, a espuma. Depois, quando penso que tudo está em ordem, o desarranjo. A forma um pouco mais escura que a espuma é lenticular . O senhor quer saber de uma coisa, não tem mesmo jeito, com gases e tudo vou comer um pedaço de bolo, com licença. 55

Na ordem do aquário, o contraponto à desordem de Zacarias que está na festa sem nem mesmo saber porquê. Quando escuta a frase “O homem que não desenvolve suas potencialidades é um alienado” 56 , Zacarias levanta se e sai da festa. O significante alienado é­lhe insuportável.

2 a seqüência Inicia se com a saída do protagonista da festa (p. 27 a p. 42).

Na rua, Zacarias pensa em seu demônio: Ainda não está com condições de imaginá­lo – ou de permitir que ele se ofereça com uma face e um nome. Ocorre lhe então que ambos tinham um caminho a percorrer, ele, Zacarias, no sentido de localizá lo com precisão, o outro de um limbo provável à forma com que seria descoberto. 57

A rua “se oferece com toda a atração”, monotonia (p. 29): O narrador faz uma digressão: a rua (as ruas) como cenário quase estático “mãe” receptiva e aberta para os atos dos homens. A rua parece ser a casa do Protagonista:

55 Op. cit., p. 26. 56 Op. cit., p. 30. 57 Op. cit., p. 28.

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Enquanto caminha, Zacarias redescobre o sabor de outras caminhadas, e ao superpor passadas antigas às de agora, ele, que pouco lia, entrevê em si mesmo uma personagem lugar comum de romance moderno, personagem que nunca seria, porque a pouca gente interessava seu pensamento, porque a ninguém o comunicou, e porque o seu ramo era outro, vendia geladeiras (...) 58

Dois pontos a notar: a ironia do autor ao fazer com que Zacarias veja se como personagem em romance moderno e não acredite nesta visão o que de imediato nos remete a um discurso velado com os narratários da obra, nós leitores, gente que dificilmente interessar se á por Zacarias e o emprego irônico do substantivo ramo, como se ser personagem de romance moderno fosse, igualmente,um ramo, um emprego. Zacarias e igualmente o narrador e o Autor , portanto, é um ser irônico, surpreendente, pois o que até agora o temos visto pensar não corresponde ao que dentro da ordem natural existe mas não estamos nesta ordem! Zacarias nos disse: ele é um desequilíbrio, pensaria um simples vendedor.

Zacarias escuta um palavrão vindo de um café e dirige se para lá. Senta se à mesa para “... acompanhar de perto a discussão”(p.31) entre dois homens. Um deles é miúdo e efeminado; o outro, robusto e maduro. O narrador descreve detalhadamente os dois: as roupas, a linguagem, os gestos, bem como os silenciosos fregueses do bar. Zacarias assiste a fala do “miúdo”, escuta lhe o grito de parto, de liberação:

De repente o miúdo soltou com a voz ainda fina, mas igual, sem ambigüidades, tudo o que provavelmente vinha represado há muito tempo, e vinha com tanta energia que o outro não moveu um dedo. Todas as possíveis obscenidades, todas as palavras na aparência comuns, mas ali expelidas com os acentos pornográficos, todas as partes do corpo humano saturadas de carga erótica, todas as inserções possíveis, todas as aproximações apenas imagináveis, todos os apêndices, todos os orifícios, numa sarabanda de sugestões de cópula. E os lábios se contorciam de ódio e a língua produzia grotesca contrafação de

58 Op. cit., p. 31.

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membro. Zacarias tentou uma explicação para a ausência de nojo. Não a encontrando fixou se com mais atenção no miúdo. 59

Não há nojo porque há identidade entre o desejo de Zacarias e a catarse do “miúdo”. Pela descrição do ódio do “miúdo” feita pelo narrador, percebe se, também, a solidariedade deste com aquele. O narrador sabe, igualmente, o que é ódio:

puro, como as águas do esgoto tratadas e filtradas, imaterial como a face de um santo após a flagelação, ódio trazendo a nostalgia de outro ódio, elementar, desvinculado de afrontas, puro, imaterial, sem compromissos nem antecedentes, um ódio difícil ele encontrar em um adulto. Farto de ódios, o corpo franzino se agita e transpira a negação de tudo que lhe foi negado. Maré de ódios, despeja espuma e detritos do acaso. Zodíaco de ódios, oferece em cada morada uma chaga, e em todas o mesmo ódio adaptado às circunstâncias. Talvez isso explique a falta de riso, a ausência de gracejos. Montado no ódio, o animal híbrido de potro e corça se apruma. Atrelado ao ódio, o desequilíbrio do que participa de duas formas se mantém instável em novo equilíbrio, e dura apenas o que dura o ódio. 60

Para corroborar a hipótese da identificação de Zacarias com o homenzinho, parece nos chave o emprego, para descrevê lo, do substantivo “desequilíbrio”, que, como já vimos, foi o mesmo que o protagonista empregou para si. Ou seja,o miúdo”participa de duas formas (potro/corça/masculino/feminino); Zacarias quer conhecer seu demônio, seu outro eu, sua forma, caminha em meio à noite decidido a encontrá lo, encontrar se, com, quem sabe? eis a ambigüidade maior do texto encontrar alguém no real, alguém concreto que não está dentro, aprisionado em seus fantasmas, mas que possa estar fora, alguém que venha a ser o “objeto” de seu prazer?

No desenrolar da presente narração, chega um momento em que deparamos com o seguinte: “Fui criado fezes e de fezes me nutro. Quando se tornarão esterco, quando adubo? Zacarias poderia ter ouvido essa frase se a linguagem utilizada fosse crua e não essa outra, figurada, mascarada de pornografia; e pretensamente objetiva.” 61

Quem teria pensado a frase que só o narrador escuta, único conhecedor, decifrador do universo diegético? o “miúdo”? Temos

59 Op. cit., p. 33. 60 Op. cit., p. 34. 61 Op. cit., p. 35.

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de acreditar no narrador quando nos fala dos sentimentos do “miúdo”, seu ódio, embora não lhe dê voz, não nos permite ler as palavras “figuradas”, “mascaradas” que diz serem as empregadas pelo personagem.

Narrador soberano, tão poderoso que começamos a supor se não será ele próprio o herói da história narrada e não apenas o sujeito da narração. Zacarias será o narrador que se mascara em segunda pessoa?

O “miúdo” é esbofeteado, chora, alguém diz uma frase, todos riem, restabelece se a normalidade no café. Zacarias, ao lembrar do respeito que o ódio do “miúdo em sua explosão de palavras havia provocado” (...) “lamenta que um mínimo de dignidade só se possa conseguir com ódio”.

O calor cresce a sua volta, em sua descida aos infernos; a identificação com o homenzinho é o primeiro degrau. Zacarias pensa, e o narrador narra na primeira pessoa do plural o que auxilia a dar um tom de discurso abstrato, no qual o narrador anuncia uma verdade as reflexões daquele após haver reagido rispidamente a um homem que, aparentemente, pedia lhe dinheiro. Atentemos para o eco bíblico das palavras do narrador:

Passamos a vida inteira à espera de um homem que nos diga algo de fundamental, e quando percebemos vagamente que talvez ele já nos tinha procurado não podemos deixar de concluir com amargura que nós não o soubemos ouvir. E muito menos identificar. Esperávamos sem estar preparados para a espera. Por acaso, esse homem foi talvez o único a quem humilhamos. 62

Conforme dissemos anteriormente, a figura de Cristo, a idéia de Deus, fascina Rawet e assumirá maior relevo e significado ao longo da análise deste trabalho.

Novamente, a ironia: Zacarias diz estar “desiludido consigo mesmo” por seus pensamentos “... não eram próprios de quem se interessava apenas por artigos elétricos”. Sabemos que tal afirmação é falsa: quantas máscaras usa nosso “herói”. Vejamos o que se segue:

“Precisava de uma boa dose de paciência para não se deixar envolver por eles (os pensamentos), e ser arrastado a um labirinto do qual, mesmo conhecido nos menores detalhes, não conseguiria se libertar. A saída, um outro caminharia por ele, e não ele. O problema é não ser o outro.” 63

62 Op. cit., p. 38. 63 Op. cit., p. 39.

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O conhecido labirinto nos traz à mente o conceito de unheimliche tratado anteriormente, é a familiar estranheza, o sinistro, o labirinto do qual Zacarias não poderia libertar se: quem o consegue é um outro. Mas este outro está em Zacarias: o vencedor é o demônio, aquele com o qual Zacarias quer encontrar se, fundir se? Freud diz, em um ensaio, que o unheimliche, que o alienado é outro, está separado, é estranho a seu meio e a si mesmo. Zacarias é um alienado? E em que sentido do termo, social, ideológico, mental?

A seguir, o narrador nos conta a história da carreira de Zacarias como vendedor, como empregou sua inteligência para convencer os outros. Zacarias sente a aridez de sua situação, vê se obrigado a “moer o grito, agora, precisamente agora”. O grito que o “miúdo” dera.

Porém, de novo se eleva a vocação interior. Zacarias sabe que de sua parte um trecho do caminho já foi percorrido: como saber o mesmo do outro? E se o demônio lhe aparecesse agora, imaturo como estava, saberia identificá lo? Talvez precisasse disso, de um signo só dos dois e que não gerasse dúvidas... Ao mesmo tempo verifica que a resolução inicial de procurar seu demônio era um pouco mais do que uma resolução, talvez já o primeiro passo dado pelo outro? 64

O primeiro significante que nos chama a atenção é vocação e sua possível conotação no texto. Assim como, anteriormente, ramo, o termo vocação parece impregnado de uma ambigüidade desconcertante quando colocado como paradigma possível do “demônio”, o qual, inclusive, está imaturo. O que é este demônio abstrato e personificado, alegórico e simbólico, a Coisa?

3 a seqüência da p. 42 a p. 66.

O protagonista encontra um velho amigo e ambos fingem não se reconhecer. Zacarias deixa desfilar por seu pensamento um “rol de nomes”de ex­companheiros. Em nenhum encontrou o que buscava.

Na fila de ônibus, Zacarias escuta os comentários de dois meninos com seu pai, após assistirem a um documentário:

Uma águia mata uma cobra, uma cobra come um rato, as salamandras devoram as rãs, e os ursos os peixes. O mais novo tem nos olhos um espanto é nele que Zacarias se concentra. Vence o mais forte, cada um precisa comer, a natureza é sábia. 65

64 Op. cit., p. 41. 65 Op. cit., p. 44.

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A frase, pronunciada pelo pai, espantou Zacarias. Nela, o eco mais direto do arrivismo social, vence o mais forte. Zacarias, fraco, afugentado, como uma sombra, entra no primeiro ônibus que lhe aparece: “o movimento acalmava o, o sentimento de que ia em alguma direção dava segurança.”

Zacarias dirige se para o cais, lá estão os navios, e com eles os sonhos. O protagonista de agora enfrenta se com o homem que foi; a diferença está em como encaram os sonhos.

Mas até os sonhos pediam um suporte de pedra, água, corpo. Sangue. Olha com calma, agora. Já olhou transido de aspirações, numa outra praia, seta de sonhos ele mesmo, e ele mesmo a corda retesada de um arco de embriaguez .66

“Nos ‘sonhos’, surgem os temas do tempo, da maturação, da transformação. Zacarias passa a lembrar se e a narração emprega o presente de outra vez, em outra praia, em que, bêbado, chegara ao fundo de seu desespero, concretizando no vômito, na coisa que dentro dele fora expelida, a expulsão do inominável mal: estirado no banco, e através de um espelho de pranto, vê a única prova, o único resultado de um caminho impossível. O que fora sonho, vagido, aspiração, uma gosma informe e repugnante, alimento mal digerido envolto no que tinha de mais profundo e interior.” 67

Ainda no bar, Zacarias lembra se de quando conheceu Urias, “Judeu como ele, que do judaísmo só sabia isso, que era judeu...”. O tema do judaísmo, sempre tratado de forma não caricatural ou apologética nos contos as personagens judias são tudo, trivialmente humanas ,é bem menos palpável em Abama. Sabemos ser o protagonista um judeu, mas não que “espécie” de judeu; podemos, no entanto,deduzi lo por meio de sutis comentários ou associações (lembremos as já comentadas, as sombras), com as quais é feito Urias. Saber do judaísmo só o fato de ser um judeu pode querer dizer várias coisas: ser judeu, para o protagonista, é como uma marca que se sabe, porque se a tem visível no nome, no corpo, mas é algo sobre o qual Zacarias não reflete, com o qual não se compromete; ou, ser judeu, para ele, é negar uma evidência, temer conhecer se por meio da necessária aceitação de suas origens. Ouçamos um pouco do que diz Sartre acerca do judeu que se nega judeu em “Reflexões sobre a

66 Op. cit., p. 47. 67 Op. cit., p. 47.

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questão judaica”; inúmeras personagens de Rawet estão descritas nestas palavras:

Assim, faça o que fizer, o judeu inautêntico é habitado pela consciência de ser judeu. No momento mesmo em que se esforça por toda sua conduta para desmentir os traços que lhe consignam, crê reencontrá­los nos outros e, por aí, encontra­se indiretamente em si mesmo. Busca seus correligionários e foge deles; afirma que não é mais do que um homem entre os outros, como os outros, e no entanto sente se comprometido pela atitude do primeiro passante, se este for judeu; é anti semita para romper todos os vínculos com a comunidade judaica e, sem embargo, torna a encontrá la no âmago de seu coração, pois experimenta em sua própria carne as humilhações que os anti semitas infligem aos demais judeus. E constitui precisamente uma característica dos judeus inautênticos esta perpétua oscilação do orgulho do sentimento de inferioridade, da negação voluntária e apaixonada dos traços de sua origem à participação mística e carnal com a realidade judaica..

Tal é, pois, este homem acossado, condenado a escolher­se à base de falsos problemas e numa falsa situação privado do sentido metafísico pela hostilidade ameaçadora da sociedade circundante, encurralado num racionalismo de desespero. Sua vida não passa de­ uma longa fuga diante dos outros e de si mesmo. Alienaram­lhe até o seu próprio corpo, bipartiram sua vida afetiva, reduziram­no a perseguir, num mundo que rejeita, o sonho impossível de uma fraternidade universal. Por culpa de quem? São nossos olhos que lhe devolvem a imagem inaceitável que ele quer dissimular a si próprio. São nossas palavras e nossos gestos nosso anti­semitismo, mas também nosso liberalismo condescendente que o envenenaram até a medula somos nós que o forçamos a escolher­se judeu quer ele se evada quer ele se reivindique, somos nós que o encurralamos no dilema da inautenticidade ou da autenticidade judaica. Nós criamos esta espécie de homens que não têm sentido senão como produto artificial de uma sociedade capitalista, ou feudal, que não tem outra razão de ser exceto servir de bode expiatório a uma comunidade_ ainda pré lógica. Esta espécie de homens que testemunham sobre o homem mais do que todas as outras porque nasceu de reações secundárias no interior da humanidade, esta quintessência do homem, desvalida, desarraigada, originalmente votada à inautenticidade ou ao martírio. 68

68 SARTRE, J. P. Reflexões sobre o racismo. Difusão européia do livro, São Paulo, 1960, p. 70­71.

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Urias, o amigo judeu de Zacarias, assim que o conhecera, afirmara: “Há uma aceitação da vida sem grande valor, resultado de inércia e não de renúncia.” (p .47) Contraditório, nosso protagonista segue em sua caminhada rumo à casa de Urias, e pensa:

Noite. Morte. Há um trecho de rua a vencer, e a nostalgia da morte sem mitos nem lendas. Morte fim. Sem frases. Sem angústia. Morte de homem que se vira no leito, dá as costas. 69

À família diz, vou morrer. Morre. Sem remorsos, que o que está feito, fica... Não há mistérios nas sombras. Há sombras... Seus passos são mais rápidos agora... Seus músculos protestam vigorosos, as articulações respondem precisas, as mãos se agitam ao ritmo dos passos, e remos de carne fendem o ar. Das órbitas uma infância ainda não de todo expelida reclama uma justificativa... A infância sonho nem hoje existe. Reinventa a. E peça um seio na hora da agonia. E sugue sangue amargo da culpa inexistente, e sugue vidro e sucata de outras culpas confessadas, e farto desse mel, tenha ao menos a coragem de não avacalhar o tom solene que a hora exige. E morra. Enfim, a avenida. Um farol de carro ilumina lhe meio corpo, vira se para que o resto se limpe do pó das sombras. Precisa de mitos, de lendas, de frases, angústias, remorsos, cansaços, mistificações, fantasias, mistério, absurdo, ilusão. Se tomasse um ônibus agora ainda encontraria Urias acordado. 70

Nada há nas sombras, mas é preciso limpar se do pó delas. Há no anseio pela morte sem mistificações, sem angústia, mas a confissão da necessidade de mitos, angústias, etc... infância adulta, o impossível seio onipotente, antigo grande consolo, agora só oferece sangue, sucata, vidro. O seio mau, a mãe, o buraco. E as ordens peça/sugue/ tenha/morra , quem as dá? Zacarias a si mesmo? O narrador a seu personagem principal? O narrador aos narratários?

Zacarias entra no ônibus que o levará a Urias, o semelhante que não vê havia dois anos. No ônibus, Zacarias impressiona se com a cabeleira de um homem, e nela chega a ver, novamente, um seio. Com o pensamento cada vez mais desordenado, embora o narrador não lhe conceda um monólogo em primeira pessoa (há um sentido nesta voz dual), é como se acompanhássemos o descarrilhar do fluxo interno de Zacarias, que, em certo momento, aglutina idéias, suprime indicações que tornariam seu discurso mais claro.

Certamente, o “demônio” está muito próximo:

69 RAWET, Samuel. Abama. Edições GDR, Rio de Janeiro, 1964, p.p. 45. 70 Op. cit., pp. 50­51.

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casas de mulheres da vida que a essa hora deviam estar sendo procuradas por todos ateus em toda a cidade; precisavam com urgência o excesso de energia inútil. Não ser um anormal por estar exigindo muito, esse muito é pouco, um mínimo que um homem deveria exigir. Uma porta,janela. Seios. Pernas entreabertas e o constante mecanismo de farsa e aceitação de farsa, álcool, podridão, penumbra. Eternas e melancólicas risadas, os mesmos ditos, as mesmas mulheres, os mesmos homens. O cheiro de axila, o pêlo raspado, a falta de um dente. O efeminado no corredor a providenciar uma toalha. A velha gorda e loura numa cadeira de canto teria também a oportunidade. Detestar, detestar sempre. 71

O horror da desagregação da linguagem, o pensamento fluindo como Zacarias não queria, o labirinto presente, inexoravelmente. A frase “Será que esse ônibus vai até o fim da linha”, que será repetida várias vezes, traz em si a marca da duplicidade de seu significado. O narrador emprega esse ônibus e não este. O ônibus a que Zacarias se refere não é apenas aquele onde ele está transitoriamente sentado (o que estaria para este ônibus), mas o veículo que sua mente abre, nesta passagem da diegese, para todos (omnis é o dativo latino “para todos”, de onde se origina a palavra ônibus). Seus contraditórios pensamentos, sua queda mais funda, encontro que Zacarias quer e teme:

Bom se esse ônibus for até o fim da linha. Há qualquer coisa de belo nessa mulher. É bem capaz de ir até o fim da linha (...). É esse ônibus vai até a fim da linha... Bem capaz de ir até o fim da linha. 72

Zacarias passa a lembrar se de seus tempos de pintor “Entre as muitas coisas que fez antes, e as muitas depois, fez também isto” (p. 56) devido à presença de uma mulher bela no ônibus, que lhe trouxe a recordação de outra bela mulher, que posara para ele. A impossibilidade de retratar a beleza da modelo, a angústia frente à sua impotência como artista, paralisou o: 73

E tentou desenhar lhe o rosto, os ombros, as mãos, as covas. Estava nua diante dele, e serena, e sugeria com a boca e os olhos uma confiança desconhecida. De nada lhe serviam as manchas, de nada a rapidez da pincelada, nem mesmo o impulso de sucessivas, frustrações. Simplesmente não sabia desenhar. 73

71 Op. cit., pp. 52­53. 72 Op. cit., pp. 56­57. 73 Op. cit., p. 56

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A reação do protagonista frente à mulher é muito semelhante à de outros personagens de Rawet, que vêem a mulher bela como a Mulher, distante e ameaçadora, reflexo, talvez, de uma mãe absoluta que é, conforme já foi visto, uma das “encarnações” da Coisa. Nosso herói surpreende nos mais uma vez: um artista frustrado, por pânico inconsciente à medusante mulher, ou por pura incapacidade...

A impossibilidade de retratar a mulher que dele se aproximara fez com que em Zacarias desencadeasse um surto de loucura. Observemos, no trecho abaixo transcrito, o uso que faz o narrador dos tempos verbais ao relatar fatos do passado da diegese, empregando o presente histórico e o passado simples:

Trabalha, fuma e sonha. Mas não havia pausa para ele. Os sonhos eram a exata repetição de seus atos diurnos, e nem lhe tocavam o consolo de simbólicas aventuras. Certo dia a empregada o encontrou com um pedaço de carvão entre os dedos, parado no meio do quarto a repetir belo belo com a voz alterada. Em todas as paredes, de alto a baixo, uma cabeça de mulher como as que desenham as crianças: tem até hoje a impressão de que depois do espanto a empregada chegou a dizer qualquer coisa à dona da casa, enquanto o levavam para a sala, e telefonavam para um médico. Desenho tão bonito do senhor Zacarias. Depois o sanatório. 74

Na narrativa, a constatação de que o ônibus vai até o fim da linha significativamente se insere em seguida ao trecho acima. Entre as lembranças, agora destravadas, a observação dos passageiros e a lenta passagem cinza que se desenrola, Zacarias busca a

forma do demônio. Urgentemente a Forma. A forma para enfrentá lo. Talvez a forma da dor. Mas seria uma abstração, Fantasia, nunca viria daquilo que participa da natureza essencial das coisas... Se há um demônio particular, é fruto ou autor da experiência individual, incomunicável, portanto. Toda busca no passado seria vã. Fundá lo nos lugares comuns da tradição é mistificar­se. 75

Significativamente, o protagonista nega que a compreensão de seu passado, como indivíduo e etnia, possa auxiliá lo a enfrentar o demônio. Zacarias penetra em seu inferno a narrativa em seu clímax expõe mais e mais seu demônio ao buscar sua forma. O demônio já

74 Op. cit., p. 56. 75 Op. cit., p. 59.

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veio até ele: expele se por meio de seu discurso, é a desorganização, a fragmentacão, o centro de sua loucura. Loucura da qual ele foge, labirinto que conhece nos mínimos detalhes, mas no qual sabe ainda poder perder se, por isso o medo de se deixar levar pelas palavras, perigosas linhas que recuperam, mas que também desvelam a cisão.

Busquemos acompanhar nosso, por que não dizê lo, trágico herói: saber exatamente a forma do demônio, está para enfrentar se com a loucura, com a Coisa afastada,por um Zacarias guerreiro, que se entrega aos eletrodomésticos e, tem êxito, diz ser um excelente vendedor e às caminhadas obsessivas, na tentativa de distrair se do poço. Porém hoje, conforme nos avisara o narrador no início da história, Zacarias decidiu enfrentar­se, enfrentando o, enfrentando a. Usar, talvez, a forma da dor para enfrentá­lo não é usar um escudo, mas abrir o peito. Zacarias, porém, conclui que seria uma fantasia buscar sua forma, ele não tem forma, é da natureza essencial das coisas. E então, a queda, muitos círculos abaixo, muito próximos do centro: o demônio é fruto ou autor, criador ou criatura, sujeito ou objeto. O Caos é o que nos gerou, ou somos nós que nos explicamos a partir do Caos? Mas a experiência individual não é incomunicável, só o é no centro, no núcleo do inferno, no nó da loucura, onde as palavras, o discurso, não nos ligam ao mundo a nossa volta, retendo nos no imaginário, terra, de sonhos e pesadelos, onde não é necessária a linguagem verbal: lá, imperam os signos, as imagens, a confluência, a atemporalidade, a coesão de todos os espaços. A busca do passado, se não esgota o homem, explica o na maior parte; a história, tanto entendida antropologicamente (a tradição) quanto no cadinho da individualidade, é, sim, instrumento para o conhecimento do homem. Não necessariamente recorrer a lugares comuns é mistificar se: o fundamental no psiquismo do homem são lugares comuns, conforme nos ensina Freud.

Zacarias, muito a propósito, passa a lembrar de seus tempos de sanatório, do amigo que lá fizera, Ismael. Ouçamos o narrador:

Ismael aproximou se com um sorriso aberto no rosto miúdo. A transparência da manhã arrancara­o de uma enfiada de dias sombrios em que moía seus ódios e depressões com a cabeça no travesseiro, irritando enfermeiros que lhe arrumavam a cama e traziam refeições, e médicas que dele se aproximavam na ronda habitual. Até hoje Zacarias não conseguia relacionar as duas coisas. Culpa do torpor, talvez, ou não havia relação, fazia parte dos imprevistos de Ismael. Ou então delírio. Um menino entra na sala onde se

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encontram pai, tios, avós, primos e anuncia que viu um anjo na janela de seu quarto. Riem, acham curioso, um deles arrisca mesmo que o menino seria poeta. O menino insiste com o ar de ironia dos adultos que concordam em acompanhar crianças em suas fantasias, foram com ele até o quarto. E de fato, na janela estava um anjo. Retiraram­se, deram uma surra no menino, e em alguns o desprezo durou muito tempo. 76

Bem mais curiosa do que a história, na qual se revela facilmente a equação identificatória menino=louco (Ismael) adultos=médicos, que contém a pergunta de onde está o limite, a linha entre o real e o imaginário, entre a sanidade que comporta a Poeticidade e a loucura – que também comporta a poeticidade bem mais curiosa é, repetimos, a oscilação do narrador. Inicialmente, nos diz devemos confiar totalmente nele, enquanto condutor da enunciação que Zacarias até o momento presente da diegese “... não conseguia relacionar as duas coisas”, talvez por culpa do torpor. Desânimo do protagonista frente a uma analogia tão simples? Em seguida, o narrador se torna ambíguo: quem acha que pode não haver relação, ser um delírio, Zacarias ou o narrador? A dúvida é de um só ou de ambos?

O narrador nos conta a história de Ismael e, logo em seguida, transcreve o conselho que aquele dera ao protagonista: “Utilize a doença, Zacarias, não a despreze, utilize a doença como a forma de conhecimento das coisas inúteis.” 77

A expressão coisas inúteis nos traz, de imediato, a reflexão de Zacarias quando se imaginara personagem de romance moderno e desistira, chegando à conclusão de que ninguém se interessaria por seu pensamento. Pensamentos inúteis a um vendedor comum; mas Zacarias é um desequilíbrio, ser consciente de sua cisão, sabedor dos detalhes do labirinto que conhecera no período de internamento. Um desequilíbrio que busca como pode o equilíbrio através da busca do autoconhecimento, por mais ameaçador que ele seja; Por mais que isto signifique encarar sua loucura fora do sanatório enquanto o vendedor que tenta engajar se com o real, interagir no simbólico até o 1imite do suportável.

Zacarias, caminhando, sente um nojo que se reflete em seus passos. Passos que, como dissemos, diminuem, aumentam de velocidade, de intensidade, conforme o fluxo de pensamentos do personagem: “Seus pés calculam com violência a terra solta de beira de vala.” (p 65). O círculo é quente, Zacarias empapa se de suor. Lembranças vagas ocorrem lhe à mente:

76 Op. cit., pp.61­63 77 Op. cit., p. 63.

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Os vários cômodos e a mesma sucessão de crueldades com a forma de afagos reprimidos. Um gesto. Um golpe. Uma vocação feita de ausências. Uma forma humana degradada. Uma forma humana degradada. Uma forma humana degradada. Uma forma humana degradada. Posso lhe dizer uma palavra? 0 cheiro da cachaça barra lhe o caminho e as idéias. 78

No círculo quente, a palavra: “Que venha a palavra” (p.66). Zacarias se refere a ela como a “palavra tão prometida”. De onde esta ânsia pela palavra, por quem prometida? Seria ela a sonhada porta mágica para a integração, a ponte com o Outro? A palavra vem: Protosofia. Neologismo, só podemos aproximar nos dela pela divisão proto Sofia. Em grego, é sabedoria e Proto,primeiro, principal, primitivo. Haverá uma primitiva sabedoria, oriunda do instintivo? Um saber/sabedoria proveniente da Relação com o que é inicial, primeiro. Qualquer sentido que resolvamos privilegiar remete à Coisa primeira; e o início, além da mãe, e o Nada, o inexplicável:

Na ausência de outras (palavras), esta serviria de tema para um regresso a seus passos de agora, e adiaria a resposta urgente a reminiscências. 79

4 a seqüência p. 67 ao fina1.

Por fim, Zacarias chega à casa de Urias. Ouçamos a descrição:

O corpo é todo ele gordo, as pernas mal se ajustam aos tacos, as coxas,unidas, fazem pensar em um peixe, um peixe gordo, e percebe que os olhos acentuam ainda mais a comparação. O brilho da pele não chega a ofuscar o reflexo do tecido, e é completado pelas cintilações da calva mal disfarçada por raros cabelos. Uma infelicidade, o senhor nem queira saber. Que grau de estupidez deve ter alcançado para pronunciar as palavras com um riso de satisfação na boca e na testa? Nas pausas trançava os dedos ou punha se a mirar com delicadeza as unhas polidas, e havia então uma seqüência fulgurante de minúsculos reflexos, ampliada quando o ângulo era favorável ao fino anel coroado de brilhantes ao redor de uma pedra mais alta, avermelhada. Se a tradição é este monte de merda, é puxar a descarga. 80

78 Op. cit., p. 66. 79 Op. cit., p. 66. 80 Op. cit., p. 69.

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Urias, o semelhante, mostra se dessemelhante. Sua carnalidade enjoa Zacarias. Todo ele brilha; mas é o anel Urias, formado em Direito , símbolo de um saber, de um status o que centraliza o desencanto do protagonista:

O suor escorre por dentro da roupa e transparece nos joelhos das calças. Secas as cascas das maçãs na fruteira a cômoda, seco o bule a mesinha de centro posta num canto, secas as paredes de um azul tímido e enrugado. Um galho iluminado pela janela aberta mantém se imóvel e imóveis suas folhas. As duas moscas exaustas de trocarem maçãs vão à aventura. E com elas o último vestígio de movimento capaz de alterar o calor. Ele não chega a odiar me neste instante. Ainda não, falta lhe alguma coisa, energia talvez, ou a lucidez necessária para tanto. Mas de uma coisa estou certo, nesse momento,precisamente agora, eu o odeio, pelo silêncio que passa entre os dois, pelo que não há de dizer. 81

Além da natureza morta descrita, onde falta qualquer tipo de vida até as moscas se vão, a morte/a falta está no silêncio como evidência externa da diferença. Falta a palavra por que esta Palavra, mágica, lhe preencha o desejo da interseção absoluta com o Outro, não existe:

Ambos se abstêm de recolher o suor que se avoluma na Posta e escorre a pele. Ao atingir os lábios ressuscita o gosto do aviltamento pelo trabalho, e substitui a lágrima. Ou a lágrima autêntica, não chorada, expelida por todo o corpo, pois o soluço seria um grito tão intenso que uma boca não bastaria para contê lo. Lágrimas de todas as ruas, praças, valas, morros, paralelepípedos. Lágrima de sola roendo o calçamento ao peso de todas as frustrações. 82

O trabalho de Zacarias: vender eletrodomésticos, empregar palavras para convencer os outros do que nem mesmo ele está convencido. O trabalho de Urias: empregar palavras para defender direitos ou acusar em nome da Lei. Ambos, aviltados. Nos tempos modernos, iniciou se a acentuação da escravidão do homem pelo trabalho, do pouco espaço para o trabalho como realização essencial do homem, como uma ética gratificante. A frustração do protagonista universaliza se, suas lágrimas são as de todos os marginalizados, de todos os que rõem os calçamentos em busca de trabalho, casa, amor, ilusão:

81 Op. cit., p. 71. 82 Op. cit., p. 71.

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Vá embora, seu filho da puta. O corpo de Urias estremece e os ombros se erguem um pouco do travesseiro... Frases, vocês querem frases, pois tomem: vá embora seu filho da puta. Regresso à terra que margeia a vala, regresso ao caminho encharcado de insegurança, agora, mais denso de ansiedades e revolta. Os primeiros passos vêm com o impulso dos malditos, dos que desconhecem o alcance de uma frase – de um gesto, porque algo de elementar lhes foi negado... Uma frase longamente esperada e que apesar disso desce como lâmina e sangra. 83

A palavra, a frase esperada, terá sido a agressão pronunciada pelo velho amigo,do qual Zacarias queria solidariedade? Zacarias o justifica: foi assaltado, espancado, humilhado e está preso às suas quatro paredes por algum tempo. Urias, o judeu gordo, como ele Zacarias, um peixe fora d’água, espancado por um bando de moleques. Por que Zacarias é um “filho da puta”? Por ser, como ele, Urias, um judeu, um estigmatizado? Malditos historicamente, malditos individualmente? A maldição de Zacarias, explica­nos o narrador, é devida a “... algo de elementar” lhe ter sido negado. Algo primeiro, principal, primitivo.

“Toda a rua é uma chapa aquecida, e as portas e janelas bocas de fornalhas.” O inferno. A percepção de que seu “demônio interior” 84 não é apenas a loucura, mas o Outro, este Outro que Lacan chama de pré histórico e de inesquecível. Outro que é encarnação do elemento que falta. Falta que nos últimos trechos tem sido indiciada, no nível sintagmático, pelo significante boca (imagem que Lacan constrói, entre outras, para a hiância, sinônimo da Falta e que, é interessante notar, em latim significa ação de abrir a boca): boca, palavras, frases, valas, janelas, buracos, silêncios.

Outro aspecto importante a ser apontado na citação da página 72 é o fato de o narrador dirigir se a nós, narratários: “Frases, vocês querem frases, pois tomem...” 84 Dirige se aos leitores agressivamente, repete nos a frase como se atirasse pedras. Pedras que devem afastar­ nos da narração? Arrepende se o narrador de nos haver conduzido com ele à descida a seu inferno (Deveríamos dizer de Zacarias? Inferno?

Aquele que foi tão humilhado e que inspirava compaixão, à força de humilhações se degradou, e na degradação nada mais tem que desperte compaixão... A sugestão da frase seria a lenta caminhada do demônio?(...) 85

83 Op. cit., p. 72. 84 Op. cit., p. 72. 85 Op. cit., p. 74.

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O emprego do pronome aquele é transparente. O narrador não se refere apenas a Zacarias, a Urias, mas faz com que se escute a presença do povo judaico. Demônio, já tão encontrado, como nós o sabemos, será agora figurado pela própria etnia. Eis a última brincadeira do demônio:

No balcão de um café, os dedos agarrados à colher e girando a lentamente na xícara, não vê no rosto do espelho o que procura. Não é um desconhecido, o seu próprio rosto. Identifica se. A fronte, as sobrancelhas, o nariz, a boca, O queixo, o contorno das faces. Talvez os olhos, as pupilas. A imagem nas pupilas. Deveria estar vendo o seu avesso. Eu ainda mato essa mulher. O crioulo recua violento e derruba a cadeira. 86

O que procura será algum dia visto em um espelho? Identifica se, nomeando partes que todos temos, sem qualquer individualização: “Talvez os olhos. Por quê? Por eles não refletirem uma outra imagem, a do seu avesso.

A frase imediatamente posterior, o avesso, causa impacto, por mais que já estejamos acostumados ao fluxo ininterrupto da narração. A mulher que alguém quer matar. A mulher, contrário, “avesso” do homem, como querem a anatomia e a filosofia oriental, ou a mulher misturada com o homem na assexualidade do inconsciente, como quer a Psicanálise? A Mulher, a Mãe, a Coisa, a que leva a Falta incrustada em seu próprio corpo deve ser morta, enquanto evidência primeira da angústia? Na diegese, o crioulo acha que sim e lhe dá um tiro. Na associação do narrador Zacarias, a mulher, este significante tão carregado, seria seu duplo, seria a imagem da Mãe que sempre retorna? Zacarias toma outro ônibus; sua ronda parece estar chegando ao fim:

E entre solavancos e curvas bruscas arrasta o sabor de um duplo regresso. Regresso de um negrume, de um avesso. A palavra avesso insiste doloridamente e impede o aparecimento de qualquer outra. 87

Regresso a casa e regresso da entrega ao fluxo dos acontecimentos desatrelados pelos encontros, no real, que ativaram associações delirantes. Atos inesperados.

86 Op. cit., p. 76. 87 Op. cit., p. 70.

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nada o arreda dos golpes desferidos pela sola no calçamento... o corpo se desloca como um bloco de pedra que talhasse no calor da noite o caminho e a sua forma. E ao chegar ao apartamento uma lâmina de suor de alto a baixo lhe dá a certeza de que algum trabalho foi feito. 88

Zacarias banha­se, troca de roupa, senta se frente a um bloco de papel e espera,

surge um nome a folha de papel e um ser à sua frente. Não bem a sua frente, mas quase, um ser sua figura, envolvendo a, integrando a, como se recompusesse um conjunto antigo, desfeito pelo acaso ou pela necessidade. Abama. Nome e demônio surgiram ao mesmo tempo. Sua forma, a forma dupla do avesso da forma humana. 89

Um conjunto antigo, desfeito. A quebra da complementaridade com a mãe e a perda do paraíso. A perfeição imaginária do andrógino desfeita pela bipartição?

O diálogo que se estabelece entre Zacarias e Abama é mudo. Diálogo de consciências silenciosas, que não necessitam, segundo o narrador, de palavras. Conhecem se desde sempre, porque são uma só, embora duas. Os opostos complementam se. Abama multiplica­ se “...e cada um deles projetava um lamento em paisagem diversa. Desertos, dunas, sóis, vilarejos, casebres, palácios, palmeiras, carvalhos, tamareiras, lágrimas, choro, pranto”. 90

Abama multiplicado por todas as paisagens, pelos diversos espaços, tempos através do qual o homem tem construído sua história. Em todos eles, a dor. A dor como inerente ao homem, desgarrado do paraíso para sempre.

Zacarias, neste seu delírio com Abama, antevê a morte mas continua vivo, relacionado ao externo, atento. A jornada ao Hades havia terminado:

E de novo a sós Zacarias e Abama, num clima de contornos definidos, em que não se distingue bem vida e sombra de vida. Havia uma pergunta entre eles. Por que transformar em palavreado complexo o que era simples e não precisava de definição? E algo assim como uma luta principiou. Abraçados os três, Zacarias e Abama,os golpes se resumiram apenas a compressões mais ou menos violentas, às vezes imobilizados, outras em círculo, numa ciranda maciça. Não havia ruídos

88 Op. cit., p. 71. 89 Op. cit., p. 71. 90 Op. cit., p. 81.

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91 Op. cit., pp 81­82. 92 Op. cit., p. 81.

quando parados, mas um esforço em difícil equilíbrio, com intenções de anular qualquer diferença entre eles. E quando a tensão pareceu máxima a Zacarias, teve um vislumbre de regresso total, regresso a uma anulação completa que poderia ser o início de um destino diverso. Mas não foi. Veio um golpe, o único, e bem violento; repelido com um gesto que poderia significar horror, asco, equívoco, Zacarias tombou de novo a poltrona. O rosto voltado para a janela captou a primeira claridade do dia, e ao contato dessa luz ainda sombra, o corpo de Abama se desfazia. E com as descargas dos banheiros, as torneiras de pias e lavatórios, o chocalhar das garrafas no caminhão de leite, veio o dia. Findara a busca, e talvez houvesse no rosto de Zacarias uma expressão não bem definida, mas que, com um pouco de esforço, se poderia aproximar de alguma, Piedade, talvez. 91

Pode ser impossível a equilibrada relação com o real com o que “se reencontra sempre no mesmo lugar – como diz Lacan, para um sujeito exposto à Coisa, como Zacarias, cara a cara com seu Outro, enquanto a própria loucura, a viagem na linguagem da desagregação. O que distingue contornos, estabelece formas, diferencia luzes e sombras, estabelece laços com o que está aí, no mesmo lugar, com a Lei que permite a relação no plano do simbólico e não mais unicamente do imaginário, é a linguagem.

Entre Zacarias e Abama, uma frase interrogativa: Qual o sentido da fala? Fora da fala, não há sentido possível. O que é “simples”? A interação Zacarias/Abama enquanto “mágica”, estado silencioso, uterino de um consigo mesmo? 0 “palavreado” é complexo porque este estado de aparente interação não é “simples”, porque a suposta plenitude não é simples, nem possível.

Abraçados os três: Zacarias, Abama e a Fala, a Pergunta, o Significante. Será possível anular qualquer diferença entre eles, prever a integração do sujeito? Não será absolutamente necessária a dialética conflituada do sujeito, que luta permanentemente entre as pulsões do inconsciente e a lei do Super Ego. O “regresso total” seria morte. Zacarias, em vez da “anulação completa”, tem a experiência da queda no real, nos objetos:

Veio um golpe, o único, e bem violento; repelido com um gesto que poderia significar horror, asco, equívoco, Zacarias tombou de novo a poltrona. 92

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Com a queda no cotidiano, a caída em si, nosso herói finda sua busca, a travessia de seu inferno, seu outro, ele mesmo, Abama. Após permitir se a entrada no temido labirinto do qual pensava não sair, Zacarias escreve o nome Abama. Estaria aí a chave do mistério de nosso narrador? Seria a narração da busca de Abama a “grande saída” de Zacarias, sua recriação, na página salvadora, da trajetória da noite? Seria o narrador o instrumento da objetivação possível de nosso dilacerado Zacarias, si mesmo?

Procuramos inesgotavelmente um possível significado para a palavra Abama. No exame de Qualificação do qual participou a professora doutora da UERJ Helena Lewin, esta sugeriu que Abama seria uma corruptela de ABA e Ima que em hebraico significam, respectivamente, pai e mãe. Esta é uma explicação bastante plausível, ao nosso parecer. Contudo, preferimos adotar uma explicação que se aproxima mais da psicanálise, que já expomos acima. Sendo o triplo abraço entre Zacarias, seu Outro, que é o próprio Demônio, e a impossível comunicação através do terceiro, a Palavra, a linguagem, o Demônio assim faz Zacarias retornar a sua inesgotável solidão.Enfim, o Outro só existe enquanto incomunicabilidade.

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SEÇÃO CINCO: VIAGENS DE AHASVERUS À TERRA ALHEIA EM BUSCADE UM PASSADO QUE NÃO EXISTE PORQUE FUTURO E DE UM FUTURO QUE JÁ PASSOU

PORQUE SONHADO

Esta obra foi editada em 1970, ano em que, coincidentemente, o autor também produziu três volumes de ensaios, ano em que os temas obsessivos da alienação, da loucura, do homossexualismo, da consciência, perseguem­no. Portanto, na ficção e na ensaística, o que é permanente em Rawet é o fato dele ser seu próprio laboratório. Seu corpo, suas percepções, seus sentimentos constituem a base empírica a partir da qual o autor especula a realidade em seus ensaios, bem como elabora seu universo ficcional.

Esta obra fecha a trilogia iniciada com Abama. Recordemos, ainda que sinteticamente, o ciclo formado pelas três narrativas: Abama, Crônica de um vagabundo e esta última obra que estamos tratando nesta seção.

Viagens... tem como protagonista um ser múltiplo, que se metamorfoseia conforme seu desejo em qualquer ser vivo, este personagem tem um nome legendário, o do judeu errante Ahasverus. Vejamos o que diz o verbete do Dicionário judaico de lendas e tradições:

Judeu errante – as histórias sobre o judeu errante são baseadas em antigas lendas medievais sobre um judeu chamado Assuero (Achashverosh), que descria de Jesus e zombava dele. Ele foi avisado por Jesus de que seria amaldiçoado a não morrer jamais e a perambular até o dia da volta de Jesus, só descansando o bastante para comer suas refeições. A história tem afinidades com a do bíblico Caim, que se tornou errante como castigo por seu pecado, e na mente cristã simbolizava a condição do povo judeu, que devido ao seu pecado, de ter rejeitado Jesus, perambula para sempre, sem conhecer descanso e testemunhando a verdade do cristianismo. A lenda supriu também uma fundação anti­ semítica para a expulsão dos judeus dos países cristãos. Em diferentes épocas e países, pessoas alegavam ter encontrado Assuero em sua perambulação; ainda em 1868, um mórmon o encontrou em Salt Lake City, nos EUA. Sua aparição era considerada precursora de calamidades ou alguma catástrofe natural. 93

93 Verbete do Dicionário de lendas e tradições judaicas, p.140.

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Ahasverus é uma obra síntese de Rawet, não só pela reunião dos temas obsessivos, mas sobretudo pelo fôlego com que é desenvolvida a narrativa. É um texto de referências explícitas em seu intertexto a suas obras já criadas, é portanto uma intertextualidade consigo próprio, melhor colocando, com sua própria criação.

Pode­se observar que a questão do nome é reiterada nas três obras: aquele que tem um nome normal, ou o vagabundo que erra pelo mundo, ou Zacarias de Abama. Assim, o sofrimento aparece não por parecer­se duplo, mas triplo, no vagabundo, ele é um zé­ ninguém, mas em todos ele é um errante. Ahasverus é uma espécie de síntese de todos eles, e seu nome é propositalmente simbólico. Em suas metamorfoses pode adquirir qualquer nome. Nenhum dos protagonistas, frutos das transmutações, tem a tranqüilidade de um nome próprio bem assumido.

O autor designa a referida obra como novela. Singular novela é efetivamente Ahasverus, o qual se reparte em identidades únicas, diversas e profundas, com formas não plenamente configuradas.

Há na obra uma pluralidade dramática na sucessão dos eventos narrados, o deslocamento contínuo da personagem, o predomínio da ação interior do protagonista e da verdade imaginativa observada, o ritmo acelerado e cinematográfico e o ponto de vista onisciente do narrador, diferenciando­se com estes recursos dos pontos de vista tradicionais da novela e do conto.

Os personagens assumidos por Ahasverus surgem, efetivamente, para situar momentos de crise, momentos­chave para o protagonista, ou são inventados para funcionarem como metáfora, símbolo, de algo que o autor deseja deixar claro, ou seja, o conceito de personagens centrais, na obra, é questionado.

Contrariamente, portanto, ao tradicional nas novelas, em que cada núcleo episódico não existe para, mas por si, os relatos, as cenas narradas só formam um sentido se compreendidas dentro de um todo. O fundamental neste todo é, em Ahasverus, e em todas as demais obras do autor, o protagonista, especialmente, sua interioridade. Em relação à obra em foco, se pensarmos em termos dos critérios estabelecidos das novelas, seria o herói, de novela, com a singularidade do aspecto psicológico. Psicológica porque, embora sem digressões explicativas em torno do personagem, as situações visam nos revelar sua contraditória interioridade.

Conseqüentemente, o enredo desta obra visa servir de palco diversificado para a obsessiva pesquisa em torno do protagonista. Praticamente todo o tempo da narrativa transcorre com Ahasverus

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em seu quarto, lembrando sua existência. É vão o esforço de buscar uma lógica que explique as lembranças e imaginações evocadas. A personagem conta seu passado múltiplo, real ou imaginário – no caso, não importa, conta de modo desestruturado e, embora via narrador, as cenas lembradas são como monólogos interiores em que se confundem o desejo de descrever um episódio, novamente factual ou não – e a necessidade de transmitir, do modo mais mimético, as contraditórias e alucinadas sensações por ela transmitidas no passado e no presente da narração.

3.1 A Personagem Ahasverus

Na quarta linha do texto somos colocados frente ao problema central do protagonista, por meio de um significante que será reiterado de variadas maneiras: “... procurou no contraste do azul com o verde, além da janela, uma identificação para seu estado”(p.15). É na neutralidade do espaço externo que Ahasverus busca a identificação, e é este espaço externo que provocará as metamorfoses que muitas vezes o aterrorizam, apesar de estar acostumado com elas. Ahasverus diz conversar com seus múltiplos em uma língua muito própria, insubordinada: “...lançava à cesta as gramáticas... E conquistava o sabor das fugas às imposições normativas elaboradas de um modo arbitrário e aleatório.” 94

Das narrações de metamorfoses lembradas, fundamental é a que conta o encontro do protagonista com o Nazareno que, embora sendo evidentemente Jesus Cristo, nos surpreende pela ótica em que este último nos é apresentado:”... e o Nazareno, entre malicioso e ingênuo, contou­lhe o artifício dos pães, do leproso e num determinado momento gargalhou tanto que Ahasverus teve medo.” (p.19). Não nos esqueçamos de que o personagem central representa, num primeiro plano, o judeu errante, aquele que não reconheceu Deus em Cristo, agredindo­o num segundo plano, Ahasverus é bem menos um símbolo e bem mais um indivíduo, e é este que resolve esboçar:”... outra metamorfose em que ele seria dois...” (p.19). Ser os dois e que isto seja “menos trabalhoso” articula­se em outro trecho: “...fugir à maior tentação, absolutizar­me como Deus, perder­me na indistinção de sua consciência se gerando ao contato com uma totalidade que sempre o ultrapassou e ultrapassará 95 . Na metamorfose citada, portanto, o protagonista busca identificar­se com Cristo, ser seu duplo, como duplo está protegido de perder­se na tentação/delírio, que é sua face mais forte, ser pura e limpidamente Deus, mergulhar enfim na loucura.

94 RAWET, Viagens de Ahasverus, p.140. 95 Op. cit, pp. 53­54.

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Ahasverus que deseja ser cúmplice do Nazareno, ser seu consolador, contrariamente ao que o personagem central representa, de mesmo nome, deu origem à lenda cristã, também deseja ser consolado: “Pobre Ahasverus! Era a voz mansa do Nazareno” (p.32).

As últimas metamorfoses do protagonista também são essenciais. A partir da observação fascinada de um desenho – que é reproduzido no texto – do deus hermafrodita de Demian, personagem de Herman Hesse, Ahasverus transforma­se em dois seres, um homem e uma mulher, dois atores que interpretam – justamente! – Romeu e Julieta. Ahasverus vive as experiências de cada um em determinado momento, os dois atores copulam – portanto Ahasverus reúne suas metades a partir da união dos dois –, o personagem atinge a tão sonhada integração: “o princípio masculino e o feminino de sua consciência” (p. 61). Momentaneamente enlaçados; curiosamente, Ahasverus atinge a auto­identificação quando revive sua criação a partir de um homem e de uma mulher, só neste passado momento o protagonista sente­se inteiro. No momento da fecundação, certamente ainda não se é nada, a marca da diferença, a sexualidade que determina para sempre uma realidade, ainda está muito distante, daí o sentimento de “maravilhoso” vivenciado pelo múltiplo Ahasverus – estar maravilhado é, para ele, sentir­se apenas um projeto e não a falha concretude de sua realidade histórica atual.

Em seguida, o protagonista expressa seu encantamento com uma escultura – também reproduzida – de uma mulher (mãe) tendo nos joelhos uma criança (filha?). O encantamento dever­se­á ao fato de estar inscrito na escultura o tema do paraíso perdido, o conluio com a mãe, ou o fascínio existe porque na escultura está reproduzido o tema do amor com a mãe, que podemos supor nunca teria sido rompido em Ahasverus pelo pai? Tendemos a crer que se translada ininterruptamente de um tempo e um lugar para outro de acordo com seus desejos, que detém o onipotente poder de ser de acordo com seus desejos, que detém o onipotente poder de ser qualquer ser, ou melhor, colocar qualquer máscara que lhe convenha, parece assim não ter passado pela norma castradora do Pai. Ahasverus é o símbolo daqueles que não tiveram o “namoro” com a mãe “cortado” pelo pai, corte que, se não for realizado, determinará no sujeito uma possível estruturação psicótica, o destino de errância do protagonista aqui simbolizado pelas metamorfoses ou inúmeras máscaras, e nenhuma parece lhe convir.

Ainda sobre a questão da figura materna abordada acima, acrescentamos que a mãe pode ser vista como mãe­mar, mãe­luz,

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mãe­abismo, mãe­trevas, aquela que também é a mãe­abrigo e mãe­ mundo. O conjunto da obra rawetiana nos permite dizer que, em toda a melancolia que a perpassa, é possível que a ele faltasse a mãe­ abrigo e mãe­mundo. Suas personagens angustiadas, solitárias, com uma permanente incomunicabilidade com o outro, nos levam a deduzir esta possibilidade e talvez possamos denominar o protagonista presente de Ahasverus/Rawet.

Num primeiro plano da obra, Ahasverus é o judeu errante em sua condição de apartado do Deus, mesmo o judaico; em outro plano, Ahasverus é, por meio de suas tentativas de individualização, metáfora de um tipo especial de ser humano, errante e exilado em sua condição de alienado, “tipo” que o autor esmiúça em nossa literatura; Ahasverus, neste caso, é exposição perturbadora da condição do ser solitário que, por isso, aproxima­se da esquizofrenia, ser que, como se sabe, tem uma relação muito especial consigo, com o mundo, com a religião, podendo verdadeiramente sentir­se o próprio Deus.

3.2 – Autor, Narrador, Personagem: a questão do ser no tempo e espaço da narrativa.

Estas questões que a obra de Rawet nos coloca são importantes, ao lado do fato de que seus textos, por momentos, situam­se na difícil região que tenta separar texto­psicótico de texto literário, lembrando algumas vezes Artaud. Em ambos, quando se trata da questão espaço físico e personagem, podemos dizer que o espaço físico é secundarizado, por estar impregnado daquilo que ocorre na interioridade do personagem.

Ao final da obra em questão, na metamorfose final e digamos apoteótica do texto, a cambiante criatura torna­se Samuel Rawet; quanto a esta ocorrência, podemos afirmar que Rawet, transfigurado em outras vidas, conheceu o mundo e sua gente... sondou o mundo... mergulhou em si mesmo. O narrador criado pelo autor visa com suas andanças transmutacionais atingir uma identidade consigo, com o mundo, com os demais. Nesse sentido esta obra é muito importante e destoante do conjunto restante, na qual só encontramos vazio, estranhamento e incomunicabilidade. Nesta, por isso dizemos final apoteótico, o personagem realiza um encontro muito importante: simbioticamente personagem e autor se fundem. Há um encontro: Rawet encontra Rawet.

Reconhecendo­se culpado de algo que não sabe definir exatamente de quê, traço típico da identidade judaica, culpado não

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exatamente pela morte de Cristo, mas talvez por ter se transmutado no Nazareno. Afinal, o típico judeu crê em Jeová e este é seu único e insubstituível Deus.

O personagem se amplia através de sua imbricação com o eu do autor, a partir da fusão final. Ahasverus despe­se de sua máscara de errante para encontrar o autor­Rawet, dando fim a uma errância tortuosa e angustiada. A errância aparece nas diversas máscaras surgidas nas metamorfoses. Conforme Rawet declarou, a literatura era, para ele, busca de autoconhecimento. Isto significa tentar alinhavar a constância do símbolo da linha na obra de Rawet e compreender sua situação de judeu que renegara a tradição de seu povo, e os costumes da comunidade judaica de sua época, alinhava a situação de um indivíduo não integrado ao ambiente familiar, sua situação de intelectual iconoclasta e provocador, de um ser estranhamente consciente de uma neurose que se avizinha da psicose.

Por meio de diferentes protagonistas e, sobretudo, das obras que comentamos, o autor penetra nos abismos de sua individualidade, na qual encontra acidentes psicológicos assustadores. Utilizando quase sempre um narrador onisciente que fala em terceira pessoa, os textos em grande parte passam, a partir de certo ponto, a espelhar a identidade entre narrador e protagonista. O desejo contraditório de confessar­ se, auto­analisar­se e, por meio de sua experiência, colocar na ficção a personagem do psicótico, do judeu provocador, subjaz no conjunto de suas obras. A sua separação da comunidade também se expressa, assim como a desconfiança de seu povo, e seu desconforto e desalento com relação ao mundo.

O presente de Ahasverus é caminhar em busca de sua própria identidade, significante que, aqui, tem o significado maior de sentido: ele busca incessantemente um motivo, uma razão que justifique sua existência e a dos demais seres, procura sua auto­identificação. As viagens, embora necessárias, não lhe trazem a sonhada integração. A condição do herói – anti­herói – é a da fragmentação, a da multiplicidade desesperadora e esquizóide.

Ahasverus/Rawet sonha com um futuro que já passou porque sonhado, diz o título, sua vida é a eterna busca, o eterno presente, no qual a escritura é busca obsessiva de autoconhecimento, como o próprio Rawet declarara. Sua Vida é um eterno escrever, escrever­ se, deixar a alma sangrar, expelindo seus demônios. Como vimos também em Abama.

Aceitar ser Ahasverus, ser Rawet, como o próprio texto nos diz, é aceitar errar sem destino, metamorfosear­se, ou seja, confundir­

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se com o outro inapelavelmente. As viagens do Autor­Narrador­ Protagonista em terra alheia são os encontros, consigo e com o outro, até com um Deus que não é o seu.

Ahasverus, que também na obra em questão é a simbolização do judeu errante, pode também ser qualquer coisa, ter qualquer nome, é uma criação ímpar da figura amaldiçoada, daqueles a quem falta a metáfora paterna, que não tiveram acesso a uma identificação mais contornada com o pai, devido à mãe.

3.3 – Sexualidade, culpa e poder em Viagens de Ahasverus

Estes temas estão presentes de forma velada em toda a obra em questão, por isso escolhemos um episódio síntese para, a partir dele, comentar o enfoque que lhe é dado.

A passagem mais curiosa no que se refere à sexualidade, diz respeito às questões de culpa e poder e, inicia­se na p. 34 e termina na p. 41, o que a torna relativamente longa em comparação com as outras aventuras do herói, e mesmo em relação ao conjunto desta novela. Em verdade, se pensássemos unicamente na extensão de páginas, a “novela” deveria ser conceituada como conto, pois tem apenas 51 páginas. Vejamos a passagem:

Uma velha aterroriza­se com a visão de Ahasverus, o que, segundo a lenda, seria natural, pois a aparição do judeu errante pressagiava calamidades. Ahasverus segue­a, entra em sua casa e, medindo bem o terror alheio e o próprio que ia renascendo, afastando dele o terror provocado, aproxima­se da velha e beija­lhe a boca; e enquanto sorvia a saliva senil, já de barbas e túnica, prostrado diante de alguém, uma autoridade recriou seu terror (p.34).

O beijo na velha e a troca de saliva, a saliva senil da velha, assim como o outro beijo que Ahasverus dá durante a narrativa, no Nazareno morto, o que lhe deixa na boca a doçura do sangue daquele, são beijos que mostram a atração do protagonista pela morte. A velha está próxima da morte, Cristo está morto, são, igual e paradoxalmente, beijos eróticos. De ambos Ahasverus sorve algo: baba e sangue. Essas duas encarnações do Outro, do alheio, que nos remete ao título da obra, embora mortas, ou quase, dão­lhe algo, alimentam­no, a água da boca da velha e o sangue do Nazareno. Ahasverus, o maldito, alimenta­se do que pode.

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Após o beijo, Ahasverus recria seu terror, ou seja, relembra, revive uma cena passada. Nesta cena, encontra­se frente a uma autoridade que o culpa:

...pelo raciocínio deste, cheio de filigranas lógicas e torneios labirínticos, mas apesar disso claros e sonoros, pelo raciocínio do outro um dos dois era culpado, já que pensava de modo diverso. E é claro, deixava entrever o outro, que no caos o único a assumir a culpa seria ele, Ahasverus. Ahasverus deu­lhe razão, deu­ lhe sempre razão. E subitamente precipitou­se numa avalancha de metamorfoses incompletas até assumir a forma de íncubo e depois de súcubo e, nas duas formas de súcubo e íncubo, exalar um cheiro de esperma e enxofre, produto de uma sexualidade desbragada, insatisfeita, ávidas, sempre, as duas formas de gozo, e no auge do gozo desejando mais gozo, tanto gozo que as duas formas eram insuficientes e se multiplicaram em quatro, oito, dezesseis, trinta e duas, sessenta e quatro, fazendo sentir em toda a terra o cheiro do gozo, esperma, e enxofre. 96

O gozo delirante de nosso herói, anti­herói, é provocado pela revolta frente à aproximação e ao afastamento do outro, num duplo movimento de aproximação e afastamento, nesta rejeição e comunhão apela para o simbolismo hermético de um Ahasverus complexo, complicado. Sua sexualidade é associada ao diabólico, à maldição, o que ocorre em muitas religiões e seitas porque é a verdade de uma sexualidade ao mesmo tempo aceita e rechaçada, esta é, podemos dizer, a verdade da sexualidade no inconsciente, sem freios ou lógica. Frente à autoridade que lhe exige obediência, provavelmente frente a uma norma pertinente ao real, Ahasverus se descontrola e a pulsão erótica liberta­se na forma das mais alucinadas fantasias.

Sigamos o texto rawetiano um pouco mais:

“Voltou à própria forma diante da solenidade do outro que ainda lhe falava, e interrogou o crucifixo atrás das frases empolgadas e dignas do outro. É o homem culpado pelo fato de viver? O crucifixo nada respondeu... Ahasverus teve vontade de gritar, vontade apenas: sou responsável pelo que vejo, ouço, aspiro, degusto, toco, penso, imagino, sou responsável pelos meus desejos informes, pelas idéias que se transformaram em atos, pelos atos que se transformam em idéias que se transformaram em atos que se

96 Op. cit., pp. 35­36.

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transformam em idéias, mas enquanto meus, apenas, nada tenho com o ato dos outros, que me desloca a consciência, mas tenho com a consciência. Não fosse o ódio e com a certeza vaga de que renasceria, e lhe despejaria o sentimento de coisa relativa que foi acumulando ao longo dos anos, mas viu que era inútil, totalmente inútil... a inutilidade da palavra ali, naquele instante deu­lhe a dimensão da dor e antecipou masmorras, cordas, correntes, cordas, correntes, rodas, caçambas de chumbo em ebulição e devolvi o mito que lhe davam com um lamento de homem forçado a ser fera, e que após um lúgubre roteiro pelos onze círculos do inferno... chegar ao último, humilde, a minúscula esfera e pobre invenção... Perdoar ou ser perdoado? Que me importa isto no instante em que estou no mundo? Rabi Ahasverus recordava seus tempos de aprendizado. Devia ser humilde e foi humilde até a anulação. Devia ser justo e foi justo até o desespero. E nessa sucessão de devias tornou­se plasma informe nas mãos do mestre 97 .

Como podemos ver, os signos que evocam a religiosidade judaico­cristã são vários: barbas e túnicas, crucifixo, o inferno, Rabi Ahasverus, mestre. Contrapõe­se a eles o delírio que o desejo do protagonista propicia, bem como a fé em uma, poder­se­á dizer, ética muito pessoal: “... nada tenho com o ato dos outros que me deslocam a consciência , mas tenho com a consciência.” (p. 39) Note­se que os atos dos outros não são assim referidos, mas como ato dos outros, no singular: Ahasverus parece ver o mundo dos outros como um bloco único que determina, sempre, o ato dos outros e não os diferentes atos que definem as diferenças individuais; o ato dos outros, sempre a exigir­lhe atitudes, provoca­lhe o horror, o delírio, desloca­lhe a consciência. O ato dos outros é Lei, a Lei que exerce seu tirânico poder sobre Ahasverus Rabi, Ahasverus o judeu comum, ou o Ahasverus obcecado por encontrar sua identidade.

O protagonista traz acumulado seu sentimento de coisa relativa, de ser coisa e ser relativo durante sua errância, feita de dilacerante fragmentação e multiplicidade. A palavra que se revela inútil faz com que o protagonista antecipe, ou seja, recorde­se e ao mesmo tempo relembre todos os tempos que estão unificados no presente de sua escritura, os tempos de perseguição aos judeus, tidos como representante do demônio, particularmente na Idade Média, representantes do Mal: masmorras, cordas, correntes, caçambas de chumbo em ebulição. E apesar de ter renegado seu povo e sua origem, identifica­se com sua dor ancestral.

97 Op. cit., pp. 37­38.

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Rawet/Ahasverus nos devolve o mito que historicamente lhe tem sido imposto como um lamento de um homem forçado a ser fera, apartado de si e dos outros, então a busca que ressaltamos. Devolver o mito é criar um Ahasverus singularizado a partir da própria psique de Rawet, sua personagem mescla é uma mescla do palco das mitologias agregada à expressão da experiência de vida do autor. Devolver o mito é recriá­lo a partir da coisa/ser Ahasverus, alimentado com o fel da judeidade, que, para o autor, é maldita, fel de etnia e água, etnia e sangue e mito, que nos remetem novamente à ancestralidade do judeu errante. Água, fel e sangue de judeus que nunca morrerão completamente, de moribundos errantes que atravessam milênios de errância, física ou psicológica. A velha senil beijada pelo herói é uma metáfora da Coisa materna; o Nazareno morto que desperta piedade impregnada de erotismo. Assim, Ahasverus é o Pai com o qual o protagonista deseja identificar­se, mas que, paradoxalmente, está desde sempre afastado.

3.4 – A Questão da Loucura na obra

Os protagonistas da obra em questão e de Abama, bem como grande parte dos demais personagens do autor, questionam­se sobre sua própria loucura na busca incessante de auto­identificação; podemos dizer que as personagens isoladas num mundo que lhes é sombrio aguçam suas neuroses ou beiram a psicose.

Alternam loucura e lucidez, ou, melhor dizendo, apresentam uma loucura extremamente lúcida. Esta antitética loucura/lucidez se expressa numa profunda consciência de si, da solidão e do vazio das relações humanas. Enfim, a extrema lucidez reside no conhecimento da extrema barbárie em que todos nós estamos imersos. Contudo, essas personagens nem sempre vivem em absoluto estado psicótico ou esquizóide, o que podemos atribuir ao estado de profunda consciência, que faz a alma doer e sangrar. No autor, como já vimos, ele sangra seus demônios em forma de uma escritura tão dolorosa quanto nossa condição no mundo. Produz eventualmente delírios, que não são desconexos, ao contrário, carregam lucidez e inteligência.

Rawet coloca de forma inusitada a questão da loucura em nossa literatura. É justamente sua condição de judeu errante, que estranha o mundo do qual vive apartado, que lhe permite construir uma visão tão aguçada. Traço típico da identidade de intelectuais judeus que

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tomaram caminho semelhante ao seu, para citar, entre outros, Walter Benjamin e Kafka.

Como autor, seu despojamento é total, revelando coragem e ousadia ao desnudar­se através de seus personagens, que em muitos momentos revelam com muita verossimilhança a situação do psicótico, do esquizóide e seu estar no mundo. A aparente desorganização que seu texto apresenta na verdade esconde uma profunda racionalidade, a qual é ímpar e talvez íntima do autor. Talvez seu conhecimento intenso da matemática, combinado aos traços da identidade judaica carregada de estranhamento, lhe possibilitaram mergulhar tão fundo nos abismos da alma, particularmente a judaica, criando uma racionalidade tão peculiar e também complexa.

O que se evidencia no autor é o seu desejo, a obsessão, de mostrar como é lá do outro lado do muro. Naquele lado, onde se situam os marginais, os apartados, aqueles que não aceitaram a cômoda posição da alienação nas mesquinhas relações sociais.

A identificação do autor com a figura ancestral do judeu errante, Ahasverus, deve­se a nosso ver muito mais ao fato de aquele também ter alma errante. O judeu que estranha e é condenado a viver sua errância, não sempre geográfica, mas sobretudo emocional e intelectual. Rawet transfere para Ahasverus o reflexo da eterna maldição e condenação do judeu na diáspora. Não podemos de forma alguma desconhecer o brilho de sua inteligência e consciência aguda do estar no mundo dos homens; o tema da consciência é tratado tanto na ficção quanto nos ensaios rawetianos. Ambas as formas de expressão guardam a marca da diferença que levou consigo em sua trajetória no mundo.

De todas as diferenças que marcaram nosso autor – judeu, imigrante polonês, homossexual –, a mais ameaçadora é a da sua proximidade com a loucura. Escrever, como já vimos, era encarar seus fantasmas e demônios, exorcizá­los.

As personagens rawetianas principais não possuem ponto fixo, traço da errância e de uma profunda neurose, ou, melhor dizendo, ligações estáveis com o real. Vejamos o que afirma Antônio Godino Cabas:

O psicótico fica fixado a um pedido cujo destino não pode ser outro que o de se reformular indefinidamente, ficando irresolvido e, por isto mesmo, habilitando a um deslizamento: a cadeia da metonímia sem fim...Daqui por diante, o louco procura, será um procurador profissional de algo que – faltando­lhe

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enquanto modelo (deveríamos dizer significante) – nunca conseguirá encontrar. E é assim que o delírio scherebiano [refere­se ao estudo de Freud sobre o Dr. Schereber, intitulado Observações psicanalíticas sobre um caso de paranóia. 98

Ao não elaborar o Édipo, ou seja, ao não processar na relação com a mãe a castração simbólica via significante paterno, o indivíduo não pode aceder plenamente à linguagem, à Lei, ao simbólico. O vazio que se instaura a partir desta incapacidade de identificação com a figura paterna é, podemos dizer, definitivo. O sujeito de estrutura psicótica, por não ter o elemento Nome­do­Pai integrado em seu inconsciente, nas ocasiões em que recebe um apelo do real a este Nome, não simbolizado, o que pode ser, por exemplo, aparecer a necessidade de que obedeça a uma norma, pode produzir alucinações, que são concretizações do real do Pai não metaforizado. Daí as descrições de visões delirantes que verdadeiramente apavoram alguns protagonistas das duas obras que abordamos, pois talvez estas visões pareçam mais reais.

Não estamos, de forma alguma, afirmando que as obras de nosso autor sejam meramente frutos de alucinações e delírios. Mas o que é possível supor é que sua personalidade, marcada por traços significativos de neurose, aliada ao seu desgarramento de sua família e comunidade, que, por sua vez, se conjugam a uma inteligência arguta, tenham todos esses fatores contribuído para a criação de uma escritura altamente original e inovadora.

98 Refere­se a um trabalho e Freud que remeteria a questões do nosso autor autobiograficamente descritas; É pensável: trata­se de uma tentativa de encontrar O Nome do Pai, de fixá­lo e definí­lo.

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CONCLUSÃO

As obras que abordamos neste trabalho evidenciam a unidade entre seus protagonistas, errantes que buscam obstinadamente sua identidade, independentemente de que esta unidade tenha ou não sido consciente para o autor.

O tema da errância e da multiplicidade de máscaras, o encontro; em Viagens, há o encontro do autor consigo mesmo, e em Abama, ainda que um encontro esdrúxulo, mas talvez o único possível do protagonista com seu múltiplo demônio . O encontro, nestas obras, é destoante do conjunto das demais, nas quais o que prevalece é a solidão e o vazio, o desespero da incomunicabilidade.

O tema da multiplicidade de personalidades aparece também no ensaio Eu­Tu­Ele, possivelmente o título expressa a identificação de nosso autor com o filósofo judeu Martin Buber, com o qual Rawet declarou ter afinidade. Em Rawet, o duo, do eu e tu, que se expressa na dualidade mãe­filho, perpassa sua obra, o lapso de um Édipo mal elaborado mesmo com a sangria de seus demônios e fantasmas através de sua escritura. Esse duo pode ser entendido também como o vazio e o distanciamento que marcam a relação de Rawet com seus pais.

Em Abama e Viagens..., estão obsessivamente presentes temas do autoconhecimento, de solidão, da profunda neurose, que marcam a personalidade do judeu que estranha a si e ao mundo, e por isso pode entendê­lo mais agudamente. São os eixos que marcam toda a produção artística rawetiana.

Nas buscas das personagens centrais abordadas encontramos a mesma busca do autor, que expressa, por meio de suas narrativas, a descida vertiginosa nos abismos da alma que sangra. Seu mito eixo é o homem como ser errante e apartado do mundo, o exilado, o melancólico.

Na vertigem do mergulho nos abismos, nessa queda na escritura, numa sofisticada elaboração racional, que matematiza a linguagem. Para o pesar do autor, sua escritura está muito distante da de Lins do Rego, com o qual se identificava e em cuja família literária queria ingressar, e seu distanciamento se dá justamente porque não escreveu na língua materna, que era o ídiche, e porque, como engenheiro calculista, do que sobrevivia, não podia afastar estas marcas de sua literatura, complexa e hermética.

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Em sua elaboração do ficcional a partir da exposição de um trato, possivelmente inconsciente, com seus fantasmas e demônios, na racionalidade intensa, que apontamos, o autor nos brinda com uma literatura em que sonho, realidade e maldição estão inseparavelmente conjugados. “Eu vivo sob o signo dos sonhos”, afirma no ensaio Alienação e realidade, e sua ficção visa demonstrar o quanto, poética ou patologicamente, este signo está presente na vida de muitos homens que recriaram o mundo através do intelecto.

No referido ensaio, Rawet fala de uma questão que considera fundamental em relação à natureza do sonho: “... a distinção entre sonho­acordado: alucinação e o sonho­sonho...” 99 Contudo, entendemos que nem todo sonho que se produz na vigília ou momentos em que se cria são necessariamente alucinações; uns podem parecer como tal, contudo são frutos de um imaginário rico e fértil. Em alguns momentos o imaginário pode também expressar temores inconscientes que residem na neurose; nesse sentido, nosso autor expressa uma identidade perpassada por neuroses mal elaboradas e por temores ancestrais que marcam a identidade do judeu na diáspora. Viver acordado estes temores é traço comum aos protagonistas analisados.

Ainda no ensaio a que se alude, o autor manifesta seu interesse em que se estude “ (...) a natureza dos sonhos nos cegos e/ou mudos de nascença”. 100 Rawet dá uma contribuição aos estudos das minorias quando transpõem para a ficção a personalidade, as patologias de indivíduos portadores de intensas neuroses e seus conseqüentes sofrimentos. A marca da diferença está gravada na sua obra, seja o judeu e seu estranhamento, seja o imigrante, seja o homossexual, seja o intelectual que enxerga o mundo mais além.

Como podemos constatar no decorrer deste trabalho, há duas fortes vertentes que influenciam a obra do escritor em questão.

A primeira delas é seu estranhamento em relação à sociedade, durante sua infância, desenvolvida sob os auspícios da ditadura getulista. Posteriormente, já no escritor adulto, vemos seu total exílio social diante da política desenvolvimentista do governo JK, que cria uma hipócrita euforia social nos setores mais favorecidos.

O estranhamento de Rawet apresenta algumas facetas marcantes; primeiro como estrangeiro imigrante, cuja língua materna era o ídiche, aprendida no cheder de seu shtetl; Rawet mal se expressava ou não se expressava em polonês. Depara no Brasil com uma língua silábica, estruturalmente diferente do ídiche. Seu grande sonho enquanto artista era dominar esta língua, o português, com a objetividade e a clareza de Lins do Rego. Voltaremos mais adiante à questão da língua em sua obra.

099 RAWET, Alienação e realidade, Edição do autor, p. 42. 100 Op. cit., pg. 43

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Outra marca é a de seu deslocamento histórico, por ser judeu, o que o leva a uma situação de outsider, que paradoxalmente o faz enxergar o mundo de forma arguta e lúcida.

Retomando a questão da língua na obra de Rawet, cremos que no conjunto de sua produção esta se alça a categoria de personagem; a língua encarna um outro que liga o escritor ao mundo, o que ele por si não conseguia realizar. Esse caminho corresponde a um reconhecimento do instante do encontro e das ressonâncias que se podem ouvir em Rawet, Kafka ou Benjamin, ou Buber, ou ainda Lispector. E no instante do encontro não há mínima certeza, nem qualquer apoteose, o que ocorre é o que podemos chamar de uma imperceptível mudança de respiração, que atesta uma escolha do mundo e do outro que por ele diz e daquele outro possível que o recebe, é um instante de uma longínqua e talvez possível comunicação, dá­se num espaço, num local do imaginário, onde as utopias podem se tornar realidade. Impossível caminho? Talvez... haja um encontro daquilo que une e o que conduz a diegese ao encontro.

Esta experiência do limite da linguagem e do eu que surge dos abismos da alma, que aproxima Rawet das experiências de Benjamin, Kafka, e dos demais já apontados, se configura no que chamamos de poética rawetiana.

As obras que abordamos neste trabalho evidenciam a unidade entre seus protagonistas, errantes que buscam obstinadamente sua identidade, independentemente de que esta unidade tenha ou não sido consciente para o autor.

O tema da errância e da multiplicidade de máscaras, o encontro; em Viagens, há o encontro do autor consigo mesmo, e, em Abama, ainda que um encontro esdrúxulo, mas talvez o único possível do protagonista com seu múltiplo demônio. O encontro nestas obras é destoante do conjunto das demais, nas quais o que prevalece é a solidão e o vazio, o desespero da incomunicabilidade.

Rawet foi sempre interessado em saber mais acerca dos diferentes, dos marginais, dos vagabundos, de todos aqueles que têm coragem de vivenciar o mundo à sua própria maneira mas, contudo, não possuem o poder ou a possibilidade de expressar ou justificar suas escolhas, de falar de maneira organizada de si mesmos e do bárbaro mundo. Rawet faz o que acha que lhe compete, falar sobre si também é uma forma de dar voz aos diferentes, a partir de si recria de maneira coerente esse mundo em que vivem os que estão à margem. Inclui em seu universo narrativo a faixa das minorias, com as quais se identifica. Sua obra apresenta solitários, judeus descontentes frente

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a diversas situações, os marginalizados, os vagabundos, enfim, a preconceituosamente chamada escória, os supostos perdedores ou fracassados. Mostra­nos a realidade vivamente, sem poupar seu leitor e sem descanso, a nossa barbárie social. Enfim, mostra­nos que “o inferno são os outros”. 101

Relacionando Rawet à célebre frase de Sartre, no caso os outros são aqueles que tomam o caminho mais fácil da alienação, do conformismo, da aceitação da febre consumista, do preconceito e não aceitação da diferença, os outros são aqueles que aderiram sem qualquer questionamento ou reflexão à indiferença com os demais, o egoísmo. Todos estes vícios campeiam na mentalidade dos supostos vencedores no mundo neoliberal. Nesse sentido, Rawet é mais atual que em seu tempo de vida. É aquele que, com sua alma que sangra, como diz a canção de Chico Buarque, revela “o plano dos bandidos e dos desvalidos”.

As obras abordadas são, em última instância, depoimentos, construídos por imagens que se assemelham ao surrealismo. No conjunto das obras rawetianas reside a verdade do inconsciente coletivo do homem que rejeitou ou mesmo daqueles que compactuam com a barbárie neoliberal. Neste lugar não há Lei, não há Tempo, há apenas um aparente ilogismo e todos os espaços se intercomunicam. Nenhuma dessas obras foi escrita com o propósito de bajular ou deleitar o leitor. Foram sim buscas desesperadas por achar algum interlocutor e para como dizia Torquato Neto “desafinar o coro dos contentes”. Então, mesmo em seus belos momentos, humanos até a última gota, elas nos ferem com punhal agudo, no mínimo nos incomodam, nos desvelam o que poucos estão dispostos a ver: a angustiante situação do Homem enquanto desconhecedor dos objetivos que poderiam de alguma maneira justificar a existência, o autoconhecimento e a relação verdadeira e livre com o outro, as quais poderiam servir de apoio a uma existência produtiva e criativa.

101 SARTRE, J.P., A idade da razão, Editora Círculo do Livro, p. 63.

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ANEXO À SEGUNDA E TERCEIRA SEÇÕES

Excertos compilados da dissertação de Mestrado de Saul Kirschbaum, intitulada Samuel Rawet, o profeta da alteridade, defendida em 2000 na FFLCH/USP. São muito interessantes e um grande apoio para a compreensão e a ilustração das referidas Seções.

Dados Biográficos e Depoimentos do Autor

Sempre que nos debruçamos sobre a obra de algum escritor surge quase que inevitavelmente a questão de que se é necessário ou não conhecer sua biografia para melhor entendermos a obra. Com relação a Rawet, é crucial que se ressalte, assim como a outros escritores judeus brasileiros, como Scliar, por exemplo, que era filho de imigrantes, suas obras devem ser encaradas como fruto de uma inserção cultural híbrida, da adaptação a um povo nem sempre muito receptivo, fruto do esforço para reconstruir ou melhor construir vidas no âmbito de uma tragédia que, iniciada com os pogrons de 1881 na Rússia, se estendeu de forma praticamente progressiva até atingir seu ponto culminante nos campos de extermínio nazistas. As conseqüências deste percurso se fazem ver de forma clara na obra de Samuel Rawet, em sua relação com o judaísmo e com a comunidade judaica que habitava o Brasil de sua época.

Nesta parte, usaremos no início vários depoimentos de Rawet a Flávio Moreira interessantemente citados na dissertação de Mestrado de Saul Kirschbaum. Nestas citações, podemos observar um pouco como o escritor olha para si mesmo.

Em diversos depoimentos, declarações, entrevistas e ensaios nosso escritor forneceu informações suficientes para que se possa tentar montar uma espécie de “autobiografia”. A esses relatos acrescentamos informações, observações e reflexões pessoais que julgamos poderem lançar algo mais sobre este fenômeno tão complexo que foi a imigração judaica pré­guerra da Europa para o Brasil, permitindo compreender um pouco melhor a obra e a carreira literária deste escritor, considerado pela crítica, à época da publicação de seu primeiro livro, juntamente com Guimarães Rosa e Geraldo Ferraz, como “responsáveis por uma nova perspectiva criativa da nossa ficção, por um novo tempo estético

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no Brasil, deflagradores, enfim, de uma Nova Literatura”, que acabou morrendo na solidão, praticamente esquecido dos leitores.

Nosso objetivo com este trabalho é resgatar um pouco da vida e da obra de Samuel Rawet e quem sabe colaborar com um pequeno impulso para que sua obra seja reeditada, o que já muito tarda.

DEPOIMENTO A FLÁVIO MOREIRA DA COSTA – Nasci em 23 de julho de 1929, numa cidade pequena, quase uma aldeia, chamada Klimotow, na Polônia. Na época ficava algumas horas de Varsóvia de trem ou de ônibus. Minha família não era nem camponesa nem pequeno­burguesa. A cidadezinha onde nasci era praticamente de judeus poloneses e meus pais eram judeus de pequeno comércio, muito pobres. Eu tinha uns quatro anos quando meu pai veio tentar a vida no Brasil, e nós ficamos lá, esperando. Com sete anos, eu vim para cá.

O pai de Samuel Rawet veio para o Brasil em 1933. É curioso observar que, em conseqüência das vacilações do governo Vargas, sempre oscilante entre apoiar o regime nazista ou atender às pressões norte­americanas, continuamente praticando uma política de restrição à imigração judaica, incoerente com seu discurso público, o Brasil era relativamente pouco procurado pelos judeus que fugiam da Europa. Os seguintes números ilustram esta situação: entre 1933 e 1941, 270 mil judeus deixaram a Alemanha, mas apenas 9.427, ou 3,5%, vieram para o Brasil. Há inclusive casos de indivíduos que embarcaram com destino aos Estados Unidos, quando lhes foi negada a entrada, por esgotamento de quotas, ou por problemas de saúde, que acabaram optando pelo Brasil para não voltarem para a Europa. Outros emigraram para os Estados Unidos, onde viveram alguns anos e juntaram alguns recursos. Ao receberem notícias de que a situação na Polônia melhorara, voltaram. Poucos anos depois, percebendo a impossibilidade de continuar lá, tentaram de novo emigrar para os Estados Unidos, acabaram vindo para o Brasil.

SAMUEL RAWET / DEPOIMENTO A FLÁVIO MOREIRA DA COSTA – Comecei a estudar muito cedo como era comum numa cidade pequena da Europa Central. A escola funcionava ao lado da sinagoga. O primeiro alfabeto que aprendi foi o ídiche – não aprendi o hebraico propriamente. Aprendi as rezas, alguém me traduzia a frase toda, a prece, o versículo. Tenho lembranças da vida na aldeia, lembranças do inverno, da vida religiosa, da convivência com parentes, lembranças inclusive de um mundo que não existe mais, e que mais tarde passou

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a me interessar por ser um mundo – não sei bem localizar – talvez da Idade Média, ou do século XVII. Um grupo judaico que se organiza em determinada região, mesmo quando a religião não tem um caráter muito forte, possui mais um sentido de tradição. Por isso alguns detalhes da vida do dia­a­dia, ligados ao nascimento, a qualquer formalidade da vida civil, me marcaram muito. Só muito tempo depois é que fui dar importância àquilo que estava ligado a um movimento que Martin Buber andou estudando – o Hassidismo – um movimento religioso da Europa Oriental, e que chegou a ter uma importância enorme para mim, filosófica inclusive.

O PRÓPRIO RAWETDIZ – Em março de 1965 deixei Israel triplamente frustrado. (...) Quando saltei no aeroporto de Tel Aviv eu levava apenas a admiração por um homem no país: Buber. (...) Não pretendia conversar com ele, nada tinha a dizer, nem a ouvir. Queria apenas vê­lo. (...) Creio que foi através de Buber que aprendi os primeiros elementos positivos do judaísmo. A experiência concreta só havia me mostrado os elementos negativos. (...) Uma especulação sobre este pêndulo só pode ser feita por homens como Spinoza, Buber, em que a ação da consciência se desenvolve na linha da grande tradição judaica, que não é bem de um ritualismo estreito nem um sórdido comércio, estereotipado pela propaganda anti­semita.

OUTRO DEPOIMENTO DE RAWET – Meu pai já estava aqui, e a nossa situação na Polônia era péssima. Vivíamos praticamente à espera de uma passagem para o Brasil. Cheguei no Brasil (sic) em 1936. Foi antes da guerra, e não me lembro que tenhamos saído por causa da guerra que já se anunciava, ou simplesmente num fluxo de imigração que houve dos países da Europa Oriental para a América. Provavelmente chegamos com esta leva. As recordações dos primeiros dias no Brasil são importantes até hoje. Saltei ali na Praça Mauá, com a família. Meu pai já havia alugado uma casa no subúrbio, em Leopoldina, onde moravam meus tios e onde fui morar. Até os vinte e poucos anos morei nos subúrbios da Leopoldina. Sou fundamentalmente suburbano; o subúrbio está muito ligado a mim. Aprendi o português na rua, apanhando e falando errado – acho até que este é o melhor método pedagógico em todos os sentidos. Aprendi tudo na rua.

RAWET EM DEPOIMENTO A FLÁVIO MOREIRA DA COSTA – Comecei aqui a cursar o primário, depois continuei, fiz o secundário e a faculdade. Minhas leituras foram completamente desorientadas,

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não tive orientação de espécie alguma. Até os quinze anos mais ou menos eu era religioso, depois me desinteressei e não tive maiores orientações. Fui escolhendo e apanhando, recuando e avançando, assim levado por uma espécie de acaso. Eu lia desordenadamente. Um grupo de autores que na época me marcou profundamente foi o grupo de escritores russos que comecei a ler em traduções – Gorki, Dostoievski, por aí, mas principalmente Gorki. Atualmente penso em voltar a Gorki, que na época foi quem mais me marcou.

OUTRO DEPOIMENTO DO AUTOR – E outro tipo de leitura que me apaixonou e empolgou – o que depois me criou problemas tremendos – foi o que se denominava de literatura brasileira da época, o que eu chamo de “gigantes nordestinos”, Raquel, Graciliano, Zé Lins, Jorge Amado. Este grupo me arrasou, andei deixando de escrever por causa deles. Achava que não tinha nada a dizer diante deles. Assim, só mais tarde é que fui descobrir os autores que, estes sim, me estimularam e me ajudaram, autores como Lima Barreto, Cornélio Penna e outros.

Na faculdade não tive nenhuma participação político­estudantil. Na faculdade foi quando comecei a escrever realmente. Já enfrentava o velho problema entre uma carreira, um curso feito desordenadamente, ainda mais que no meio do curso resolvi praticar a profissão, e a vontade de escrever. Escrevia muito, escrevia diário, contos – praticamente todo o meu primeiro livro, Contos do imigrante, foi escrito nessa fase da faculdade.

OUTRO DEPOIMENTO / PREOCUPAÇÕES LITERÁRIAS E FILOSÓFICAS – Minha experiência de teatro foi péssima. Vim a escrever para o teatro aos 16 ou 15 anos, quando comecei a assistir teatro. Tampouco alguém me orientou; eu vinha do meu subúrbio e descobria a cidade. Pouco depois me interessei por um concurso de radioteatro da rádio Ministério de Educação; ganhei e comecei a fazer pequenas pontas em radioteatro e a redigir pequenos programas. Assim vim para a cidade e entrei em contato com o teatro local. Maravilhado, ia lá pra torrinha do teatro Phoenix ver a Bibi Ferreira fazer o Sétimo céu, ou A moreninha, com Paulo Porto. Depois descobri a companhia da Morineau, Os Comediantes. Daí desembestei, comecei a escrever para teatro, vindo a rasgar tudo depois. Ao mesmo tempo, um grupo de amadores judaicos começou a fazer teatro de nível aqui, dirigido por Zigmund Turkov, um grande diretor que, junto com Ziembinski,

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trouxe para o Brasil a noção verdadeira do teatro expressionista europeu. E foram estes dois homens que no fundo renovaram o teatro brasileiro. Minha primeira experiência de peça encenada aconteceu em Vitória, não cheguei a vê­la. A primeira experiência de montagem profissional me deixou uma grande frustração. Rasguei a peça logo em seguida. Era Os amantes, inspirada num conto de Dinah Silveira de Queiroz. O espetáculo foi no teatro Municipal, em 1957, com a Cia. Nicette Bruno – Paulo Goulart. A peça estava escrita, os atores entravam, falavam – Nicette e Paulo estavam bem – mas quando vi o espetáculo senti que a peça simplesmente não era.

Tive outras experiências depois. Quando essa peça foi encenada, eu devia ter umas dez peças na gaveta. Rasguei todas elas. Eu já havia abandonado um tipo de teatro que me interessava por um tipo de teatro poético. Fiz uma peça inspirada num episódio de um romance de Gertrud Von Lê Fort, O papa do gueto, que guardei até hoje, mas não sei onde está. Escrevi depois outra, Miriam. Mais tarde, fiz um esforço, num período de muito trabalho – já trabalhava na Novacap como engenheiro, Brasília estava começando, e eu calculava aqui o Monumento dos Pracinhas – e escrevi outra peça, A noite que volta, Ruggero Jacobi me procurou para encenar a peça, mas eu já a tinha rasgado. Senti vontade de reescrevê­la, ele concordou. Em três meses reescrevi a peça, mudei o nome para O lance de dados. Com a peça pronta, Ruggero ficou apavorado: era altamente subjetiva, cheia de minhocas e acabou ficando por isso mesmo. Esta peça eu não rasguei, mas também não sei onde está.

Rawet deixa então de escrever para teatro e concentra sua atividade ficcional no gênero narrativo do conto, no qual sua contribuição para a literatura brasileira motivou o comentário do crítico Assis Brasil: “... é responsável pela renovação do nosso conto, após a fase 30/45 do nosso Modernismo.” Não obstante, seu convívio com o meio teatral, em especial sua admiração pelas experiências desenvolvidas por Turkov e Ziembinski com o teatro expressionista, deixou marcas perenes em suas narrativas.

Rawet: Fiz crítica de teatro, interinamente, creio que ainda no tempo de escola de engenharia. Substituí um velho amigo, Rocha Filho, num jornal que sumiu depois, Letras & Artes. Depois me desinteressei.

Rawet: Com Contos do imigrante tive uma grande surpresa. Em 1951,52,53 eu ia publicando meus contos em suplementos. Naqueles tempos todo jornal tinha um suplemento. A grande emoção era sábado à noite ficar tomando chope com os amigos até de

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madrugada, para esperar o jornal de domingo às quatro da manhã a fim de ver se o conto havia saído ou não. Era uma farra. Publiquei meus contos no suplemento do Diário Carioca. Mandei o primeiro, eles aceitaram. Quando fui levar o segundo, Prudente de Moraes Neto, diretor do suplemento, me perguntou se eu não tinha mais coisas, disse que sim. Ele então me pediu que juntasse os contos e levasse para ele. Assim fiz e ele não me disse mais nada; quando fui procurá­ lo mais uma vez, ele me levou até a Editora José Olympio, me apresentou lá e dois anos depois o livro era publicado. Da repercussão não posso me queixar. Tive, claro, conhecimento de artigos que arrasaram o livro, diziam que “aquilo” não era conto, que não era isso, que não era aquilo. Mas confesso que o que me chocou mais – porque eu não estava preparado – foram os artigos que elogiaram o livro. Principalmente um artigo de Jacob Guinsburg, publicado em Para Todos, acho que em 1958. Os elogios me deixaram meio desconcertado, eu não estava mais vinculado a ele e, frustrado em relação ao teatro, me entregara furiosamente à vida profissional. Eu não freqüentava mais os clubes da colônia, meu contato com ela era relativo. Não houve portanto repercussão dentro da colônia judaica. Fiquei apenas conhecido como contista, um autor que está começando, mais nada, apenas isso.

O relacionamento de Rawet com o judaísmo é, desde o início de sua carreira como escritor, conflituoso, ambivalente, duplo, dicotomizado. Seu pensamento filosófico, sua visão de mundo, têm influência direta, consciente, do hassidismo e do dialogismo buberiano. Em diversas obras de ficção, os personagens perdedores, vítimas de exclusão, os rejeitados, os silenciados, são judeus e merecedores da máxima simpatia do autor. Em textos filosóficos como Angústia e Conhecimento, Rawet estende sua filiação intelectual a Spinoza. Mas, em alguns contos, como “O Profeta” e “Judith”, não obstante o oprimido ser judeu, Rawet nos apresenta opressores judeus. Já em 1958 Rawet não mais freqüentava clubes judaicos e não disfarça seu ressentimento pelo fato de seu livro de estréia não ter repercutido, não ter obtido o reconhecimento da “colônia”; de ser visto pela comunidade apenas como “um autor que está começando”. Este distanciamento, com o tempo, aprofundou­se até virar fosso intransponível. O rompimento se tornou notório e definitivo com a publicação por Rawet na revista Escrita de um artigo no qual declara: “...fazer a minha declaração pública, a quem interessar possa, de meu desvinculamento completo e total de qualquer aspecto relacionado com a palavra judeu, familiar ou não(...) porque judeu significa para

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mim o que há de mais baixo, mais sórdido, mais criminoso, no comportamento deste animal de duas patas que anda na vertical”... E assim por diante.

Rawet: Contos do imigrante é de 1956. Houve um intervalo até o segundo livro, Diálogo, que saiu em 1963. Essa foi uma das fases mais importantes de minha vida. Eu continuava a escrever, pouco, mas escrevia, embora realmente a minha vontade era a de não escrever. Foi uma fase em que me anulei em função de outros caminhos, vontade de estudar outras coisas, de seguir novos rumos. Encontrei algumas figuras que foram importantes para mim, positivamente umas, negativamente outras, que de repente me deram uma noção de grandeza,capacidadedecriação,meencantavamemeproblematizavam. E outros, alguns que pareciam gigantes de erudição e então eu não conseguia escrever uma linha ao lado deles. Depois fui descobrindo que a erudição não vale nada. Mas naquela época eu trabalhava no escritório da Belacap, minha parte era cálculo de concreto armado – o Congresso de Brasília foi todo calculado por mim. Mas um dia eu ia chegando no Ministério de Educação, onde funcionavam nossos escritórios, quando olhei e vi, no fim da escada, Oscar Niemeyer, Joaquim Cardozo e Lúcio Costa juntos, tive um “troço” por dentro, perguntei a mim mesmo “o que é que eu estou fazendo aqui?”. Ainda fiquei um pouco por ali, entreguei um papel e fui embora.

O prosseguimento da carreira literária de Rawet é narrada por Flávio Moreira da Costa nos seguintes termos:

Depois de ajudar a construir Brasília aqui do Rio, Samuel Rawet se mudou para a nova capital. Em 1968/69, resolveu largar o emprego, vende seu apartamento e volta ao Rio, onde financia a edição de seus novos livros. O terreno de uma polegada quadrada, um dos mais criativos, ficou praticamente com a edição toda num depósito, devido a um desentendimento entre autor e editor. Financia cinco volumes pequenos de ensaios, entre 1969 e 1970. (Em 1967, consegue uma co­edição com o INL para Os sete sonhos, talvez o seu melhor livro, Prêmio Guimarães Rosa dois anos depois.) Em 1970 lança também,por sua conta, Viagem de Ahasverus à terra alheia em busca de um passado que não existe porque é futuro de um futuro que já passou, porque sonhado, uma novela curta apesar do título longo. Seu único livro esgotado nesses 20 anos de atuação foi Contos do imigrante, relançado pela José Olympio, em edição aparentemente também financiada pelo autor. Nenhum desses livros é facilmente encontrado nas livrarias do país. Não foram vendidos porque foram mal distribuídos, mal divulgados. Eles envelhecem nos estoques das

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editoras. Descobri­los, catá­los aqui e ali, é obrigação para quem pretende ficar a par do que de melhor se escreve no país, em termos de uma literatura pós­moderna,(SIC) porque contemporânea.

O que mais chama a atenção, nesta descrição que mostra o ostracismo em que Samuel Rawet vai mergulhando gradativamente, até sua morte obscura em 1984, é a indiferença, má vontade, que por fim obrigam Rawet a financiar a publicação de seus livros. Que o levam a declarar a O Estado, em maio de 1981: “Conheci a vida literária até a náusea. Considero confuso, caótico, aviltante o panorama da atual literatura brasileira. E culpo os próprios escritores. Além de tudo, percebi, ingenuidade minha, a existência de uma máfia na área literária.”

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BIBLIOGRAFIA

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As obras de Rawet, acima listadas, foram gentilmente cedidas pela Sr a. Clara Apelbaum, em forma de mimeo, irmã do nosso autor.

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DEFESA DE TESE

ENGELLAUM, Perola. Samuel Rawet – A alma que sangra. Tese de doutoramento em Teoria Lite­ rária, apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós­graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. Rio de Janeiro, 2006, flls.

BANCA EXAMINADORA:

Professor Doutor André Luiz de Lima Bueno (Orientador)

Professor Doutor Luiz Alberto Nogueira Alves

Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças

Professora Doutora Maria Inês de Azevedo Castro

Professora Doutora Hilda Machado

Professora Doutora Ana Maria Alencar

Defendida a tese Conceito:

Em: ___/___/___