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Sandoval Nonato Gomes-Santos (Org.) Aula de português e Trabalho docente: descrições e análises FE-USP São Paulo 2o. Semestre 2011

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Sandoval Nonato Gomes-Santos (Org.)

Aula de português e Trabalho docente: descrições e análises

FE-USP

São Paulo

2o. Semestre 2011

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Índice

Prefácio

I. Trabalho docente: questões

Grupos heterogêneos em período de alfabetização no 3º ano do ensino fundamental – percalços e soluções.Heloisa Gonçalves JORDÃO

Do trabalho docente alienado.Sérgio Rodrigo MÉLEGA

O tradicional como resistência: relações entre instrumentos de ensino e concepções de trabalho docente na prática didática de uma professora de português de São Paulo.Edilson da Silva CRUZ

II. Trabalho docente, leitura e escrita

A leitura compartilhada e o seminário como objetos privilegiados de ensino em turmas de 8ª série do ensino fundamental: algumas considerações sobre o ensino de Português.José Bento Cardoso VIDAL NETO

A prática da escrita no ambiente escolar.Beatriz Brito CARNEIRO

Análise do ensino de português numa sequência didática sobre artigos de opinião.Caroline SEIXAS

III. Trabalho docente e oralidade

A voz do aluno.Rodrigo Alvarez BRANCAGLIONI

O ensino dos gêneros orais e a intervenção didática do professor: uma reflexão sobre a prática docente . Maria Tereza Martins MORA

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Prefácio

Os textos a seguir reconstituem e registram traços de um real vivido: práticas de ensino-

prendizagem da Língua Portuguesa com que estiveram envolvidos concluintes do Curso de

Licenciatura em Letras da Universidade de São Paulo, por ocasião da realização de sessenta

horas de estágio, componente curricular integrado à disciplina Metodologia do Ensino de

Português II (MELP II), ofertada no segundo semestre do ano acadêmico de 20081.

O gesto de agora poder ordená-los em uma coletânea é uma tarefa possível graças à

associação não-óbvia de um pressuposto com um dispositivo didático, presentes nos objetivos da

disciplina MELP II:

i) o pressuposto que toma o confronto com práticas efetivas de ensino-aprendizagem como ponto

de partida e de chegada do processo de formação para a docência, e

ii) o dispositivo didático que toma o gênero artigo acadêmico – produzido com base nas notas e no

relatório de estágio – como mecanismo de iniciação à investigação da linguagem em ambientes

de ensino-aprendizagem.

Constituiram-se em objetivos da disciplina:

1. Refletir sobre teorias e práticas do ensino de Língua Portuguesa. 2. Fornecer subsídios metodológicos para o ensino de Língua Portuguesa. 3. Aproximar ensino e pesquisa, com o objetivo de incentivar a produção e a renovação de meios e recursos para o ensino de Língua Portuguesa.4. Viabilizar e orientar práticas de estágio

Tais objetivos foram traduzidos em um conjunto de temáticas ordenadas em torno de três

grandes eixos: inicialmente propôs-se a tematização dos contornos sócio-históricos e ideológicos

de constituição da forma escolar tomada como forma social particular, e da disciplina língua portu-

guesa na história da escolarização no Brasil, a fim de problematizar os usos e práticas de lingua-

gem que se semiotizam nos vários espaços e tempos da escola e os gêneros discursivos pelos

quais se constituem os múltiplos letramentos passíveis de serem construídos no seio da prática

escolar.

Na sequência desse primeiro eixo temático propôs-se problematizar as formas e o funcio-

namento da linguagem como objeto de ensino enfatizando-se os dispositivos metodológicos de

geração, descrição e análise de dados relativos às práticas de ensino-aprendizagem de língua

materna, consideradas, a um só tempo, lócus da interação didática e de atuação pelo estágio e

objeto de investigação.

Por fim e complementarmente aos demais eixos, propôs-se avaliar o lugar dos gêneros

discursivos e das práticas de letramento escolares – leitura-escuta, produção oral e escrita e refle-

1 Além dessas, outras sessenta horas de estágio são obrigatórias no âmbito da disciplina Metodologia de Ensino de Português I, que precede a de que tratamos aqui e é ofertada em geral no primeiro semestre do ano acadêmico.

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xão sobre o funcionamento da língua – no trabalho docente, na sequenciação didática em que

eles (gêneros e práticas) adquirem o estatuto de objetos de ensino/objetos ensinados.

A seguir, a grade de conteúdos propostos no Curso.

I. A invenção da escola como agência de letramento1.1. A disciplinarização da língua portuguesa na escola brasileira1.2. Panorama das concepções de ensino da língua portuguesa como disciplina escolar1.3. Cultura escolar, cultura local e letramentos múltiplos

II. A aula de português como lócus de pesquisa-docência: estado da arte e dispositivos metodológicos.2.1. O processo de geração de dados: observações e anotações de campo; 2.2. O processo de descrição de dados: sinopse e relatos reflexivos;2.3. O processo de análise de dados e de intervenção didática: sequências de ensino, atividades e exercícios.

III. A aula de português como lócus de pesquisa-docência: temas e questões3.1. Práticas de linguagem e objetos de ensino• Prática de produção de textos orais e escritos ;• Prática de leitura-escuta de textos ;• Prática de análise (da) e reflexão sobre a língua (objetos gramatici-ais).• Gêneros do domínio literário3.2. Modelização didática• Sequência didática• Instrumentos didáticos : livro didático, atividades e tarefas• Trabalho docente, gestos profissionais e estilos de docência3.3. (Auto) avaliação da aprendizagem

Como trabalho final da disciplina propusemos aos licenciandos que produzissem um artigo

acadêmico em que buscassem articular os saberes da formação acadêmica com as práticas

didáticas efetivamente acompanhadas por ocasião do estágio realizado, em contextos

institucionais diversos da rede pública e particular de ensino da cidade de São Paulo.

Julgávamos que a produção de um artigo acadêmico permitiria, por hipótese, um

distanciamento mais incrementado em relação às práticas didáticas acompanhadas, uma vez que

exigiria dos alunos não somente a ordenação em um relatório do conjunto de notas produzidas no

estágio, mas a seleção de um fenômeno particular dessas práticas e sua problematização. Nessa

direção, o artigo revelar-se-ia dispositivo potente de avaliação dos modos de apropriação pelos

alunos de aportes teóricos convocados e problematizados por ocasião das discussões em sala de

aula mediadas pelo professor.

A produção do artigo deveria ser norteada, conforme sugestão que formulamos aos

alunos, por três procedimentos gerais:

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i) a descrição do contexto escolar em que se efetivou o estágio, enfatizando-se o conjunto de

práticas de letramento, textos materializados nesse contexto e o perfil da(s) turma(s) e do

professor(es) acompanhado(s), além dos modos com que o ensino de língua portuguesa aparece

configurado na documentação escolar (projetos de ensino, programas e currículos etc.);

ii) a descrição das práticas de ensino-aprendizagem em sua dimensão particularmente didática, o

que implicaria a consideração das formas do trabalho de ensino, do trabalho docente;

iii) a eleição e análise de um fenômeno específico relativo às práticas didáticas acompanhadas, o

que exigiria tanto a convocação de referências bibliográficas trabalhadas no Curso, quanto a

ancoragem da análise em dados gerados durante o acompanhamento das aulas.

Esses procedimentos foram sugeridos com base na proposição do seguinte modelo, no

qual os alunos poderiam inspirar-se:

ESQUEMA DO TRABALHO FINAL

Título (centralizado)

Nome do autor (último sobrenome em maiúsculas, com referências acadêmicas – justificado à direita)

Epígrafe (opcional)

Formatação do texto: Fonte 12, Times New Roman, Espaço 1,5 cm, entre linhas, Margens 2,5.

Exemplo:

A prática de leitura em uma turma de 1a. série do Ensino Médio

Sandoval Nonato Gomes-Santos (FE-USP)

“Os fatos são fáceis. Difíceis de apreender são as atmosferas que os tornam possíveis”

(Doris Lessing)

0. Introdução (apresentar a proposta de trabalho e o fenômeno-questão específico de que ele se ocupará. Justificar as opções feitas) – até 2 laudas.

É proposta deste estudo compreender/problematizar/pôr em questão... Para tanto, propõe-se/propomos analisar ou analisaremos especificamen-

te os modos como foram construídas as praticas de leitura ...

1. Sobre contexto escolar – até 3 laudas.

1.1. A escola

1.2. O ensino de língua portuguesa na documentação escolar

1.3. A sala de aula

1.3.1. A professora

1.3.2. Os alunos

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2. Descrição geral das práticas de ensino-aprendizagem de língua portuguesa – até 4 laudas

2.1. Dados sobre o acompanhamento das aulas (período, no. de aulas acompanhadas, dinâmica da interação com a professora e com a turma etc.).

2.2. Caracterizando os componentes das praticas de ensino-aprendizagem

2.2.1. Os objetos de ensino e as praticas de linguagem

2.2.2. Os gestos profissionais e os instrumentos didáticos

2.2.3. As atividades e tarefas

3. Análise de um fenômeno-tema particular – até 6 laudas

[Dois procedimentos devem ser necessariamente contemplados aqui: i) a convocação de referencias bibliográficas trabalhadas no Curso e ii) a ancoragem da análise em dados gerados durante o acompanhamento das aulas].

Considerações finais – até 2 laudas

Referências bibliográficas

BAKHTIN, M. (Volochinov, V. N.) (1997). Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, pp. 277-326.KOCH, I. G. V. (2002a). A coesão textual. São Paulo: Contexto._____ (2002b). Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez Editora.

Anexos

Anexo 1: Notas de campo

Anexo 2: Instrumentos didáticos e de avaliação da aprendizagem

Anexo n2

Ao revelar modos diversos de apropriação dos saberes e práticas com que foram

confrontados os licenciandos, o conjunto de artigos aponta para as possibilidades metodológicas

do uso de um dispositivo didático particular – a produção do gênero artigo acadêmico – como

modo possível de promover a flexibilização das fronteiras implicadas no famigerado binômio

teoria-prática na formação, ou seja, um dos modos possíveis de contemplar a dimensão

investigatória que se reivindica constitutiva da prática do estágio em docência.

O conjunto dos textos está ordenado em três grandes temáticas conforme os fenômenos

de que as análises se ocuparam. Trata-se de textos que acabam finalmente por registrar um

pequeno intervalo, o final, do percurso de formação acadêmica de um grupo de licenciandos em

Letras: as vozes que ressoam, os estilos de escritura múltiplos, os traços do real reconstituídos, o

exercício de interpretação dos fixos e fluxos das práticas didáticas… Tudo, em seus textos, erige-

se em sabor-saber das/sobre as coisas, sobre a vida que se recompõe (ou se pode sempre 2 A diagramação dos textos foi adaptada para que pudessem ser melhor visualizados nesta revista digital.

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reconstituir) nos desvãos das práticas escolares.

A meu ver, um bom modo de aproximação do mundo da docência.

Sandoval Nonato Gomes-SantosSão Paulo, verão de 2009.

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Grupos heterogêneos em período de alfabetização no 3º ano do ensino fundamental – percalços e soluções

Heloisa Gonçalves Jordão

“No processo de aprendizagem, só aprende verdadeiramente aquele que se apropria do aprendido, transformando-o em apreendido, com o que pode, por isso mesmo, reinventá-lo; aquele que é capaz de aplicar o aprendido-apreendido a situações existenciais concretas”.

(Paulo Freire)

Introdução

É com o intuito de contribuir para os estudos da alfabetização e letramento brasileiros que

o presente estudo se propõe a abordar a questão da heterogeneidade em classes de

alfabetização. É sabido pelos profissionais especialistas em educação que o conjunto das

peculiaridades de cada aluno constituem uma rica base de material para o trabalho pedagógico e,

ao mesmo tempo, um desafio que exige cada vez mais dedicação no planejamento de aulas,

cursos e planos de ensino. Tal desafio torna-se ainda mais complexo quando o traço mais

marcante da heterogeneidade em sala de aula é o alto número de alunos que ainda não leem e

escrevem de forma convencional, enquanto outros já produzem textos e fazem uso da leitura de

forma satisfatória; situação extremamente comum em classes do 3º ano do ensino fundamental

que corresponde ao final do 1º ciclo – o período de três anos onde não há reprovação e,

teoricamente, o aluno desfrutará de um tempo maior para alcançar os objetivos propostos do ciclo

que é constituído fundamentalmente no domínio da leitura e escrita.

Quando tratamos dessa problemática, a metodologia do professor é pauta principal,

entretanto é imprescindível considerarmos aspectos como a progressão continuada, a

organização cíclica de ensino e o currículo escolar adotados no contexto em que se realizou este

estudo.

Para discorrer sobre o tema proposto, este estudo será baseado numa pesquisa

bibliográfica que abarca os principais pesquisadores da área, além de considerarmos documentos

expedidos pelos órgãos que regulam o ensino público do país, especialmente no que se refere

aos aspectos relacionados à progressão continuada/ organização em ciclos. Coletaremos dados

de turmas de 3º ano do ensino fundamental, por meio de registros de atividades e métodos

avaliativos3.

3 Foram realizadas gravações de áudio em quatro aulas assistidas, entretanto, a transcrição foi prejudicada pelo alto nível de ruído, impedindo a clareza da fala em momentos que seriam interessantes para registro neste trabalho. Por esses motivos, as transcrições não serão incluídas.

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1. Sobre o contexto escolar

1.1. A escolaA unidade escolar na qual se realizou a pesquisa pertence à rede de ensino do município de

Taboão da Serra, cidade da região metropolitana de São Paulo. A rede conta com 23 escolas de

ensino fundamental que originalmente integravam a rede estadual e passaram pelo processo de

municipalização durante a década de 80. A rede municipal, bem como a maioria dos sistemas de

ensino brasileiros, adotou a organização do ensino em ciclos como medida contra a repetência e a

evasão escolar. Outra medida incorporada pela rede foi a implementação do ensino fundamental

de nove anos, que passou a vigorar em 2006/2007.

A escola municipal de ensino fundamental “Heitor Villa Lobos” não destoa do perfil geral da

rede. Conta com aproximadamente mil e duzentos alunos matriculados no ensino fundamental,

distribuídos em três turnos numa infraestrutura que conta com dez salas de aula. A média por

classe é de aproximadamente 35 alunos. No período noturno as salas são ocupadas pela

Educação de Jovens e Adultos (EJA). A escola conta ainda com uma sala de informática e uma

pequena biblioteca, que atualmente não funciona pela falta de funcionário responsável pela

organização e controle do acervo.

Fica localizada no Jd. Kuabara, bairro que faz divisa com a zona oeste da cidade de São

Paulo.

1.2. O ensino de língua portuguesa na documentação escolar

A escola conta com alguns documentos que amparam as práticas escolares do ponto de vista

legal e pedagógico. O principal deles é o Plano Político Pedagógico de Gestão Escolar, que

apresenta as características gerais da escola, como o perfil da clientela, a estrutura física e, o que

particularmente nos interessa, as propostas pedagógicas e o plano de curso que visa a garantir a

organicidade e continuidade das disciplinas ministradas na instituição.

Na proposta pedagógica são citados os fundamentos legais e as diretrizes ideológicas com

que a unidade escolar se apresenta pedagogicamente e como a mesma concebe seus

educandos.

No plano de curso, sob o tópico “Valores, normas e atitudes” encontramos o ensino da língua

portuguesa em posição privilegiada às demais disciplinas, pois os hábitos de leitura, escrita,

valorização das diferentes variedades linguísticas, enfim, todo tipo de situação comunicativa, é

incentivada já nos objetivos gerais:

2. Interesse por ouvir e manifestar sentimentos, experiências, ideias e opiniões;3. Preocupação com a comunicação nos intercâmbios: fazer-se entender e procurar entender os

outros;

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4. Respeito diante de colocações de outras pessoas, tanto no que se refere às ideias quanto ao modo de falar;

5. Valorização da cooperação como forma de dar qualidade aos intercâmbios comunicativos;6. Reconhecimento da necessidade da língua escrita (a partir de organização coletiva com

ajuda) para planejar e realizar tarefas concretas;7. Valorização da leitura como fonte de fruição estética e entretenimento;8. Interesse por ler ou ouvir a leitura especialmente de textos literários e informativos, por

compartilhar opiniões, ideias e preferências (ainda que com ajuda);9. Interesse em tomar emprestado livros do acervo da classe ou da biblioteca escolar;10. Cuidado com livros e demais materiais escritos;11. Atitudes críticas diante de textos persuasivos dos quais é destinatário direto ou indireto (ainda

que em atividades coletivas ou com ajuda do professor);12. Preocupação com a qualidade das produções escritas próprias, tanto no que se refere aos

aspectos textuais como à apresentação gráfica;13. Respeito aos diferentes modos de falar.4

No que concerne especificamente à disciplina de língua portuguesa, encontramos as

expectativas de aprendizagem para os alunos, ao final de cada ano letivo. Para o 3º ano do ciclo I

são estabelecidos os seguintes objetivos:

13.1. Participar de situações de intercâmbio oral, ouvindo com atenção, formular e responder a

pergunta, explicar e compreender explicações, manifestar opiniões sobre o assunto

tratado;

13.2. Apreciar textos literários;

13.3. Ler por si mesmo, diferentes gêneros (textos narrativos literários, textos instrucionais,

textos de divulgação científica e notícias) apoiando-se em conhecimentos sobre o tema do

texto, as características de seu portador, do gênero e do sistema de escrita;

13.4. Ler, com ajuda do professor, textos para estudar os temas tratados nas diferentes áreas do

conhecimento (enciclopédias, informações veiculadas pela internet e revistas);

13.5. Reescrever, de próprio punho, histórias conhecidas, considerando as ideias principais do

texto-fonte e algumas características da linguagem escrita;

13.6. Produzir textos de autoria de próprio punho utilizando recursos da linguagem escrita;

13.7. Revisar textos coletivamente, com a ajuda do professor ou em parceria com colegas.

É claramente observável no plano de curso que a escola trabalha fundamentalmente baseada

nos Parâmetros Curriculares Nacionais. Todo início de ano, durante o planejamento, os PCN’s são

discutidos e o conteúdo programático é estabelecido por Ano escolar (antiga série)5 de acordo

com os objetivos acima descritos.

1.3. As salas de aula Foram acompanhados os trabalhos desenvolvidos em duas salas.

4 Plano de Gestão – anexo1.5 Programa do 3º ano de Língua Portuguesa – (anexo 2).

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A primeira delas, a qual chamaremos de turma A, conta com trinta e cinco alunos

regularmente matriculados, e um dos alunos tem o diagnóstico de paralisia cerebral. Desse total, a

partir de avaliação diagnóstica realizada no início do ano letivo, quinze alunos já escreviam

convencionalmente, doze em estágios intermediários e dez no estágio inicial de aquisição da

leitura e escrita.

Geralmente os alunos estão organizados em fileiras individuais ou em duplas. Em termos de

recursos pedagógicos, a sala conta com lousa, giz, cartazes, alguns jogos educativos e um baú de

leitura contendo histórias em quadrinhos e narrativas diversas.

A segunda sala será referida como turma B, e registra 33 alunos matriculados. Desse total, a

partir de avaliação diagnóstica realizada no início do ano letivo, dez alunos já escreviam

convencionalmente, treze em estágios intermediários e dez no estágio inicial de aquisição da

leitura e escrita.

1.3.1. As professoras

A professora da turma A está na rede municipal há três anos. Esse também é seu tempo

de experiência no ensino fundamental. É formada em pedagogia desde 2002. Sua experiência

anterior, além dos estágios supervisionados, ocorreu com turmas de berçário como professora de

desenvolvimento infantil.

A professora da turma B não possui vínculo estatutário com a rede. É professora

contratada em caráter temporário. É formada em pedagogia e atua na área da educação há cinco

anos.

1.3.2. Os alunos

Os alunos das salas pesquisadas, além de possuírem diferentes níveis de aprendizagem

da língua vernácula ainda apresentam nível social e constituição familiar distintas. A faixa etária

predominante é de oito anos.

2. Descrição geral das práticas de ensino-aprendizagem de língua portuguesa

2.1. Dados sobre o acompanhamento das aulas

As observações foram iniciadas na terceira semana do mês de março. Na turma B, ocorria às

segundas feiras das 11h às 13h40 horas, e com a turma A às terças-feiras das 15h às 17h. O

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Plano Político Pedagógico da escola estabelece uma grade horária6 que contempla apenas 7

horas-aula de língua portuguesa por semana, entretanto, as duas professoras acompanhadas

trabalham com a disciplina todos os dias antes do horário de intervalo. Quando indagadas a

respeito, ambas citaram a urgência no desenvolvimento do processo de aprendizagem da língua

escrita. Embora essa maior atenção dada à disciplina de língua portuguesa, a disponibilidade de

horário para a realização da pesquisa infelizmente é restrita, e só pode ser realizada nos dias e

horários acima descritos, o que impediu o acompanhamento de um episódio didático completo.

As professoras foram extremamente receptivas. A responsável pela turma A prontamente

forneceu o planejamento com os conteúdos do ano. Os alunos também mostraram receptividade e

logo se “acostumaram” a ter duas professoras no dia em que se realizam as observações.

Foram acompanhados dez dias de aula em cada uma das classes, um total de 20 dias, 60

horas-aula. Por causa do horário do intervalo, as observações na turma B foram mais extensas,

totalizando 3 horas-aula no dia. Já na turma A as observações duraram 2 horas-aula por dia.

Durante o desenvolvimento das aulas foi possível realizar observações pertinentes em

relação aos procedimentos das duas professoras. Nos momentos de realização de atividades

pelos alunos foi possível interagir com os mesmos, realizando perguntas e observando de perto

as reações deles às atividades propostas.

2.2. Caracterizando os componentes das práticas de ensino-aprendizagem

2.2.1. Os objetos de ensino e as práticas de linguagem

As professoras realizam reuniões semanais, os chamados HTC’s (horário de trabalho

pedagógico) e nesses momentos procuram estabelecer, a partir do planejamento inicial, atividades

comuns para a semana. Por conta disso, os objetos se assemelham em algumas das aulas

acompanhadas, mas as práticas de linguagem são trabalhadas de forma bem distinta. Para

contemplar de maneira mais organizada cada uma das salas, iniciaremos a descrição dos objetos

e práticas da turma B:

Dos primeiros oito dias acompanhados, a professora trabalhou com objetos discursivos em

quatro deles, sendo que destes, dois dividiram o tempo com questões ortográficas. Em quatro dias

o objeto principal foi gramatical e, da mesma forma, dois também se dedicaram a questões

ortográficas. Observe a tabela:

OBJETOS CLASSIFICAÇÃOSubstantivos comuns e próprios/ Usos S/SS Gramatical/ ortográficoParlenda/ palavras com R Discursivo/ ortográficoOrdem alfabética/ palavras com /QU/ Gramatical/ortográficoTexto descritivo Discursivo

6 Vide anexo 1.

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Música/ palavras com F/V Discursivo/ortográficoBilhete DiscursivoConcordância verbo-nominal Gramatical

Na turma A, observamos um enfoque maior a atividades que privilegiam a leitura e a

escrita a partir do gênero proposto, o que nos permite concluir que os objetos mais trabalhados

pertencem ao campo discursivo, e o trabalho ortográfico foi realizado a partir deste. Dos oito dias

acompanhados apenas dois trataram de questões gramaticais e, mesmo assim, o objeto principal

era o texto selecionado para a aula:

OBJETOS CLASSIFICAÇÃOMúsica/ segmentação Discursivo/ ortográficoMúsica/ reescrita em duplas Discursivo/ortográficoFábula/ pontuação de trecho da fábula Discursivo/gramaticalFábula/leitura e escrita de adivinhas (duplas)

Discursivo/ortográfico

Reescrita coletiva da fábula Discursivo/ortográficoFábula/ ordem alfabética Discursivo/gramaticalConto/ treino F/V Discursivo/ortográficoBiografia/leitura, escrita de adivinhas duplas Discursivo/ortográfico

A partir dessa tabulação, serão descritos os gestos profissionais de cada uma das

professoras.

2.2.2. Os gestos profissionais e os instrumentos didáticos

A professora a sala B inicia a aula com a correção da tarefa de casa solicitada no dia

anterior. Para tal, recorre ao apelo da memória, solicitando que os alunos se recordem da matéria

trabalhada e do exercício que deveria ser resolvido em casa. Depois de as crianças abrirem seus

cadernos, a professora passa de carteira em carteira realizando a correção, geralmente,

individual. Com frequência, a professora se dá conta de que grande parte dos alunos não a havia

realizado, como era esperado, e acaba por dar “mais algum tempo” para que os alunos finalizem a

tarefa, e ela mesma ajuda os que não conseguem sozinhos.

Depois de finalizada a correção, os conteúdos de gramática/ortografia entravam como

objeto de ensino. Dessa vez, a professora lançava mão da institucionalização, ou seja, de

definições normativas sobre o objeto que, a partir daquele momento, passaria a ser ensinado. A

professora escreve um pequeno texto expositivo no quadro negro – que deveria ser copiado – e

após isso haveria a explicação seguida da formulação de tarefas para treino do conhecimento que

acabara de ser transmitido7.

Os instrumentos didáticos utilizados são: folhas fotocopiadas ou mimeografadas

7 Na seção subsequente, essa organização da aula das professoras será exemplificada através de atividades coletas dos cadernos dos alunos.

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(geralmente enviadas como lição de casa), quadro negro e giz (branco e colorido). Em uma das

aulas observadas, o objeto de estudo era um texto em versos (música). Mesmo nesta ocasião, a

música não foi reproduzida por um aparelho de áudio: a professora convidou todos os alunos, que

sabiam a letra de memória, a cantá-la em voz alta.

A professora da sala A inicia a aula dentro de uma rotina bem específica: organiza os

alunos em duplas, geralmente agrupados de acordo com seu desenvolvimento de leitura/escrita –

um aluno que lê e escreve convencionalmente com outro que ainda não apresenta a mesma

fluência. Depois realiza a leitura de um texto. Esses textos têm gêneros variados, e nas aulas

observadas foram contemplados contos, poemas, fábulas e biografias. O texto lido no início da

aula não é necessariamente o objeto de ensino ou serve de base para tal. Em livros com figuras, a

professora lê e, após a leitura, vai mostrando as figuras e solicita que os alunos recontem o que

acabaram de ouvir – apelo à memória recente.

Terminado o reconto, a professora aplica uma atividade relacionada ao texto que vem

sendo trabalhado ao longo das aulas (nas aulas observadas as crianças trabalharam com a fábula

“A tartaruga e a lebre” e as etapas para a escrita de um bilhete). Paralelamente aos módulos 8, que

visavam primordialmente possibilitar a compreensão da estrutura narrativa dos tipos de texto, a

professora aplicava atividades como cruzadinhas e adivinhas relacionadas ao tema dos textos

trabalhados, com finalidade de fazer com que os alunos reflitam sobre o sistema de escrita (tanto

pela questão da alfabetização quanto pelo trabalho com ortografia).

2.2.3. As atividades e tarefas

Afim de melhor exemplificar o

que foi descrito na seção anterior,

vamos analisar atividades comuns

em cada uma das salas. Para tal,

selecionamos atividades cujo objeto

comum às duas turmas era a escrita

de um “Bilhete”.

Iniciaremos a análise de uma

atividade da turma A:

Aqui podemos observar que a

professora forneceu um modelo de

bilhete inspirado em personagens

do poema “A Janela de Arabela9”, de

Cecília Meireles, e a partir dele

convidou os alunos a observarem a

8 Schnewly, 2004.

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estrutura e os elementos que compõem o gênero, ao solicitar-lhes que marcassem com lápis

colorido o destinatário, a mensagem (texto curto, linguagem informal) e a identificação do

remetente. Vale lembrar que a tarefa foi realizada em duplas: o aluno que possui leitura fluente lê

para o colega em período de alfabetização e juntos realizam a atividade. Esta foi uma das

atividades cujo objeto era, além de fornecer repertório, identificar os elementos característicos do

gênero e sua função.

Agora uma atividade realizada pela turma B:

Esta página do

caderno de uma aluna

não-alfabetizada da

turma B deixa claro a

estrutura da aula:

cobrança/correção da

lição de casa, avaliação

do professor e

apresentação do objeto

gramatical –

Concordância verbal -

institucionalizando-o. Em

seguida formula tarefas

para a fixação do

conteúdo.

Em relação ao

trabalho com o gênero

“Bilhete”, a professora

inicia o contato com o

gênero através da

“presentificação”, entre

aspas, pois a professora

modifica o veículo mais comum do gênero e faz uso do quadro negro. Além disso, remetente e

destinatário são, além de fictícios, descontextualizados:

9 MEIRELES, C. “Ou isto ou aquilo”. São Paulo, Nova Fronteira.

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Após esse primeiro contato, é solicitado aos alunos que produzam um texto do mesmo

gênero para casa:

Fica pressuposto nessa atividade que o aluno já tenha internalizado a estrutura do gênero

a partir de um único exemplo dado pela professora.10 O texto produzido foi escrito com a ajuda da

professora, pois a aluna não conseguiu realizar a tarefa em casa:

Observados os objetos, gestos, ferramentas, organização espaço-temporal e rotina das

duas turmas, iniciaremos a análise mais detalhada da prática de cada uma das professoras em

turmas heterogêneas de 3º ano.

3. Análise das estratégias metodológicas

10 Observe que, como a aluna não está alfabetizada, por diversas vezes, na cópia da lousa, repete sílabas e letras e trocas de letras que, normalmente, não ocorrem às crianças alfabetizadas. O texto foi produzido satisfatoriamente por alunos alfabetizados (vide anexo 3).

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Como observado no início deste trabalho, a unidade escolar onde a pesquisa foi realizada é

organizada em ciclos, e as turmas acompanhadas pertencem ao final do ciclo I – ciclo da

alfabetização.

Entretanto, embora a escola assuma-se como “ciclada” em sua organização curricular, sua

concepção de espaço e tempo assemelham-se mais à concepção de escola seriada

(FERNANDES, 2005). Um exemplo é a incoerência do proposto no Plano Político Pedagógico11

com o que é proposto no Planejamento anual12 do ano em questão. No primeiro, os componentes

curriculares previstos são amplos e visam primordialmente o domínio da leitura e da escrita. Seus

objetivos podem transitar com facilidade em qualquer um dos anos do ciclo I. Já o planejamento

anual do 3º ano constitui-se de uma lista de conteúdos gramaticais e discursivos que devem ser

trabalhados. Não esperamos realizar uma crítica aos conteúdos elencados por estes profissionais

da educação para o ano escolar, porém é nítido avaliar como será difícil alcançar o ensino de

todos esses conteúdos quando se avalia a quantidade de alunos não-alfabetizados encontrados

nas turmas de 3º ano.

De acordo com os dados coletados no início desta pesquisa, cerca de 40% das crianças

de cada uma das turmas não sabiam ler e escrever convencionalmente. Deparando-se com esta

situação, o educador responsável por uma turma de 3º ano enfrenta o seguinte questionamento:

como alfabetizar, trabalhar todos os conteúdos de forma satisfatória e ainda mais que alfabetizar,

formar competentes leitores e produtores de textos?

Refletindo sobre esses questionamentos, analisaremos as aulas acompanhadas nas

turmas descritas.

Com relação a como os conteúdos são trabalhados nas turmas, podemos voltar aos

quadros da página 7. Neles observamos que a professora da turma B privilegia objetos

gramaticais e ortográficos em detrimento de objetos discursivos: a leitura não ocupa espaço

privilegiado na aula. Os textos trabalhados, geralmente são apenas suporte para o ensino de

gramática.

Já a professora da turma A privilegia objetos de natureza discursiva, em detrimento de

análises gramaticais. A ortografia é trabalhada de forma mais específica, geralmente atrelada às

atividades de alfabetização. A leitura ocupa um lugar privilegiado – faz parte da rotina. Um mesmo

gênero textual é trabalhado em uma sequência que visa à compreensão dos elementos

característicos do gênero (para que ele serve? para quem ele é escrito? e como produzi-lo?).

Já há algum tempo, com as contribuições de Vygotsky e outros pesquisadores, o lado

social e interacionista da aprendizagem ganha evidência. De acordo com Camps e Santasusana

(2006, pág.47) as atividades devem enfocar a funcionalidade do uso da língua:

A utilização da língua em tarefas que envolvam pessoalmente os alunos, além dos exercícios de treinamento, não apenas favorece seu interesse como permite que ponha em funcionamento estratégias comunicativas necessárias para desenvolver

11 Anexo 1.12 Anexo 2.

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sua competência sociolinguístico-comunicativa. [...] Outros projetos têm como ponto de partida a produção de textos com funções, intenções e destinatários diversificados. Em todos os casos, se constata uma dupla funcionalidade no uso da língua: a própria dos textos e a que deriva da tarefa nela mesma, porque executá-la requer numerosas e diversas situações de interação.

Interessante observarmos a terminologia usada por Kleiman: práticas desmotivadoras (KLEIMAN, 1995, pág.16) que pode ser aplicada quando são apresentadas aos alunos conceitos

completamente institucionalizados de gramática ou até mesmo sobre o tipo de gênero. Observe

os exemplos:

Ao institucionalizar o tema: concordância verbal: (Turma B)

Transcrição: “O

verbo concorda

com o nome do subs - tantivo o que se refere comotojá vimos, verbo indica ação do sujeito ou

seja, do nome que se refere. Ex: A menina gosta de chocolate. As meninas gostam de chocolate.”

Institucionalizando um Gênero: (Turma B)

Transcrição: “Fábula: é quando animais e objetos agem com se fossem humanas dentro

de uma história na fábula tem uma moral da historia, um ensinamento”.

Não é difícil imaginar que essa institucionalização realizada pela professora da turma B faz

pouco sentido aos alunos em processo de alfabetização, contrariando as premissas apontadas

por Camps, que observam acima de tudo o ensino-aprendizagem da língua enfocando o

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desenvolvimento de estratégias comunicativas.

Quanto às atividades realizadas pela professora da turma A, não possuímos registros de

toda a sequência didática trabalhada em função do gênero bilhete, entretanto, podemos fornecer

a sequência trabalhada a partir de anotações e observações das aulas e do semanário da

professora:

13.8. Escrita de bilhete fictício pela professora (baseado em texto de Cecília Meirelles) e sua

leitura/análise em duplas;

13.9. Escrita de bilhete fictício dos alunos (em duplas) para personagens de contos por eles

conhecidos13.

13.10. Escrita coletiva de bilhete fictício (professor como escriba) observando pontos estruturais e

ortográficos.

13.11. Exercícios sobre elementos característicos do gênero;

13.12. Escrita de bilhete de um colega para o outro, com a função de comunicar/convidar sobre

um piquenique que seria realizado na escola (e efetivamente aconteceu);

13.13. Escrita de bilhete para os pais avisando-lhes sobre a festa junina da escola.

Fica claro que a intenção da professora da turma A é utilizar-se de ferramentas em que a

função social do gênero fosse realmente focalizada14. Já com relação a como a professora

trabalha a questão da heterogeneidade, podemos destacar a realização de atividades em duplas e

coletivas (todo o grupo tendo a professora como escriba), momentos que não ocorreram na Turma

B, onde todas as atividades eram realizadas individualmente, passando por posterior correção da

professora.

Considerações finais

A organização do ensino de língua vernácula tem sido muito discutida e os professores se

deparam com uma gama extensa de exigências a serem alcançadas. É realmente novo ao

professor e a toda instituição “escola” a organização em ciclos: no caso deste trabalho,

observamos como os profissionais da educação lidam com a não-retenção – ou seja, trabalhar

com alunos não alfabetizados – e o cumprimento do currículo formal estabelecido pelos planos

13 De acordo com Schnewly, uma das grandes variantes de modos para presentificar o objeto linguístico é o texto produzido pelos próprios alunos.

14 Embora a sequência da atividade tenha observado de perto a sequência proposta por Schnewly:1) Apresentação da situação;2) PRODUÇÃO INICIAL;3) Módulos;4) PRODUÇÃO FINAL.

Observamos (e segundo relatado por ela mesma) que a professora não deixou claro, ao início das atividades, um problema de comunicação bem definido, e qual seria o objetivo da produção final – pontos que foram aclarados apenas no decorrer das atividades/módulos.

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escolares.

Tanto sobre como lidar com tal heterogeneidade quanto sobre como trabalhar os diferentes

gêneros textuais, sabemos que não há uma tradição de ensino que abarque estas novas

exigências, e que, por isso, as duas professoras acompanhadas utilizaram seus próprios métodos,

ou melhor, ferramentas das quais dispõem e novas tentativas de intervenções criadas a partir das

características do alunado com o qual trabalham.

Os números finais fornecidos pelas próprias professoras mostram um melhor desempenho

obtido pela turma A que, ao final do semestre, apresenta apenas 10% dos alunos sem

leitura/escrita convencionais. Já a turma B apresenta 25% de crianças ainda não alfabetizadas.

O principal contraste entre as duas metodologias é a maneira como cada tema é

apresentado e o tempo despendido em cada um deles. O gesto de institucionalização,

presentificação através de modelos seguidos de cobrança da produção final, sequência

frequentemente utilizada pela professora da turma B, dificilmente é suficiente para criar uma

proposta interessante às crianças em período de alfabetização. O enfoque nos gêneros textuais e

a maior variedade de atividades relacionadas a um único gênero tornaram o trabalho da turma A

mais significativo e, consequentemente, um número maior de crianças conquistou a leitura/escrita

convencionais.

Cremos que uma sensibilização do professor em relação às reais dificuldades de seus

alunos propiciaria maior reflexão sobre as ferramentas utilizadas e real importância dos conteúdos

do currículo formal.

Referências bibliográficas

CAMPS, A. Propostas didáticas para aprender a escrever. Traduzido por Valério Campos. Porto Alegre: Artmed, 2006.

FERNANDES, C. A escolaridade em ciclos: a escola sob uma nova lógica. Cadernos de pesquisa, Jan/Abr. 2005, vol. 35, n. 124, p.57 – 82.

GOMES-SANTOS, S.N. & ALMEIDA, P. S. Pergunta-resposta: Como o par dialógico constrói uma aula na alfabetização. Revista brasileira de linguística aplicada, v. 1, pg. 1, 2009.

KLEIMAN, A. Oficina de leitura – teoria e prática. Campinas, SP: Pontes, 1995.

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______. Ação e mudança na sala de aula: uma pesquisa sobre letramento e interação. In: ROJO, R. (Org.). Alfabetização e letramento. Campinas, SP, 1998.

MEC. Ensino fundamental de nove anos – Orientações Gerais. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Ensfund/noveanorienger.pdf. Acesso em: 30 out. 2011

SCHNEUWLY, B. ; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004.

______. Lês outils de l’enseignant – um essai didactique. Université de Genéve, Repérs, n. 22, 2000.

Heloisa Gonçalves JORDÃO Mestranda do programa de pós-graduação da Faculdade de Educação da USP na área de Linguagem e Educação. Bacharel em Letras portugues/espanhol pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Durante a graduação, desenvolveu trabalho de pesquisa na área de Filologia Românica (DLCV). Atualmente desenvolve pesquisa voltada às práticas de ensino-aprendizagem de língua e à circulação e o ensino de gêneros textuais em sala de aula. Atua como professora de ensino fundamental II e médio na Secretaria Municipal de Educação da cidade de São Paulo e como tutora do curso a distância de Especialização em Gestão do Currículo oferecido pela Rede São Paulo de Formação Docente – projeto em parceria da SEESP/USP.

ANEXO 1 –plano de curso (parte do Plano de Gestão)

1. PLANO DE CURSO

1. Plano de Curso do Ensino Fundamental

Objetivos Gerais do Ensino Fundamental:

• Descobrir, conhecer e controlar progressivamente o próprio corpo, formando uma imagem de si mesmo, valorizando sua identidade sexual, suas capacidades e limitações de ações e expressão, e adquirindo hábitos básicos de saúde e bem estar;

• Atuar de forma cada vez mais autônoma em suas atividades habituais, adquirindo progressivamente segurança afetiva e emocional, e desenvolvendo suas capacidades de iniciativa e confiança em si mesmo;

• Estabelecer vínculos com os adultos e com seus iguais, respondendo aos sentimentos

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de afeto, respeitando a diversidade e desenvolvendo atitudes de ajuda e colaboração;

• Conhecer algumas manifestações culturais, mostrando atitudes de respeito, interesse e participação;

• Representar e evocar aspectos diversos da realidade, vividos, conhecidos ou imaginados e expressá-los mediante às possibilidades simbólicas que oferecem o jogo e outras formas de representação e expressão;

• Enriquecer e diversificar suas possibilidades expressivas mediante a utilização dos recursos e meios a seu alcance, assim com apreciar diferentes manifestações artísticas;

• Compreender a cidadania com participação social, política, assim como exercício de direitos e deveres políticos, civis adotando, no dia-a-dia, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdios às injustiças;

Valores, normas e atitudes

14. Interesse por ouvir e manifestar sentimentos, experiências, idéias e opiniões;15. Preocupação com a comunicação nos intercâmbios: fazer-se entender e procurar

entender os outros;16. Respeito diante de colocações de outras pessoas, tanto no que se refere às

idéias quanto ao modo de falar;17. Valorização da cooperação como forma de dar qualidade aos intercâmbios

comunicativos;18. Reconhecimento da necessidade da língua escrita (a partir de organização

coletiva com ajuda) para planejar e realizar tarefas concretas;19. Valorização da leitura como fonte de fruição estética e entretenimento;20. Interesse por ler ou ouvir a leitura especialmente de textos literários e

informativos, por compartilhar opiniões, idéias e preferências (ainda que com ajuda);21. Interesse em tomar emprestado livros do acervo da classe ou da biblioteca

escolar;22. Cuidado com livros e demais materiais escritos;23. Atitudes críticas diante de textos persuasivos dos quais é destinatário direto ou

indireto (ainda que em atividades coletivas ou com ajuda do professor);24. Preocupação com a qualidade das produções escritas próprias, tanto no que se

refere aos aspectos textuais como à apresentação gráfica;25. Respeito aos diferentes modos de falar.

2. Proposta Curricular

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) propõem que todas as disciplinas das

séries iniciais à 4ªsérie sejam ensinadas aproximando-se os conteúdos ao dia a dia das crianças.

Assim, quando tratam do ensino de Português, os Parâmetros Nacionais Curriculares

criticam os textos produzidos especialmente para ensinar a ler, como os das cartilhas tradicionais.

E sugerem que as boas obras são aquelas que tratam da realidade conhecida pelas crianças.

A matemática aproxima-se dos atos do cotidiano. Em ciências, a proposta é usar e

abusar de visitas, experimentos e coleta de dados nas mais variadas fontes.

O Convívio Social e a Ética devem ser incorporados à prática em sala de aula, que

podem ser subdivididos nos seguintes assuntos:

• Orientação Sexual• Meio ambiente• Saúde

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• Estudos Econômicos• Ética• Pluralidade Cultural

Estes são chamados Temas Transversais, que devem permear todas as matérias do

currículo, e ser abordados quanto a dinâmica de classe comportar.

Em História e Geografia o aluno deve entender que é integrante ativo do ambiente

natural, patrimônio sócio-cultural brasileiro, um assunto da História.

A LDB determina que os alunos sejam avaliados levando-se em conta seu

desempenho ao longo do ano, e não apenas o resultado das eventuais provas finais. Essa

avaliação será contínua e cumulativa. A idéia é que os "aspectos qualitativos" do aproveitamento

escolar sejam considerados mais importantes do que os "aspectos qualitativos”, ou seja, vale mais

o processo no estudo do que o desempenho nas provas.

A recuperação e o reforço são obrigatórios para os alunos com baixo rendimento. As

aulas e os estudos de recuperação paralela correm sob responsabilidade do professor de classe,

a qual será feita através das avaliações diagnósticas realizadas periodicamente. A recuperação

dos alunos que apresentam defasagem de aprendizagem em relação à série, principalmente os alunos de 3º anos, 4º anos e das 4ª séries, incluindo os retidos dos anos anteriores, serão encaminhados para o GAP – Grupo de Apoio Pedagógico, o qual deverá ser frequentado fora do horário de aula.

O regime de progressão, no Ensino Fundamental, é continuado, isto é, sem prejuízo da

avaliação do processo de ensino aprendizagem.

3. Carga horária mínima

A Matriz Curricular Básica para o Ensino Fundamental, do primeiro ao quinto ano do 1º

ciclo, com 22 horas semanais, ou 4 horas dia; deverá ser cumprida da seguinte forma:

• Língua Portuguesa: 35% ou 7 aulas semanais/dia• Matemática: 30% ou 6 aulas semanais• História/Geografia: 10% ou 2 aulas• Ciências: 10% ou 2 aulas• Educação Física/Artes: 15% ou 3 aulas• Informática/Inglês: 10% ou 2 aulas

4. Integração, sequências e sínteses dos componentes curriculares

a) Língua Portuguesa:

As expectativas de aprendizagem esperadas para os alunos, ao final de cada ano

são os seguintes:

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• Para os alunos, ao final do ao final do 3º ano do ciclo I:

• Para os alunos, ao final do 3º ano do ciclo I:

Para que estas expectativas de aprendizagem de Língua Portuguesa sejam

alcançadas ao final de cada ano, é necessário desenvolver habilidades relacionadas ao

desenvolvimento da: compreensão e valorização da cultura escrita, sistema de escrita, leitura,

produção e oralidade. Que são as seguintes:

• Compreensão e valor ização da cultura escrita:

HABILIDADES:• Conhecer, ut i l izar e valor izar os modos de produção e de

circulação da escrita na sociedade;• Conhecer os usos e funções da escrita dentro de uma rede de

prát icas sociais;• Desenvolver capacidades necessárias para o uso da escrita no

contexto social (vivenciar diferentes situações de leitura e escrita sociocultural real).

• Sistema de escrita:

HABILIDADES• Conhecer o nome das letras do alfabeto;• Compreender e ut i l izar as convenções da escrita,

(or ientação do al inhamento);• Compreender diferenças entre o sistema de

representação da escrita de outros sistemas de representações gráf icas;

• Compreender o que a escrita representa;• Reflet ir sobre o sistema por meio da leitura de textos

conhecidos de memória de forma que ajuste o falado ao escrito;

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• Reflet ir sobre o sistema por meio da escrita onde possam just if icar com quantas, quais letras e que ordem usar;

• Reflet ir sobre as questões ortográf icas, segmentação, pontuação e gramática.

• Leitura:

HABILIDADES :• Desenvolver at i tudes e disposições favoráveis à leitura;• Desenvolver capacidades de leitor competente:

(I) Decodif icar, antecipar, infer ir, selecionar e checar com ef ic iência;(II ) Saber ler reconhecendo globalmente as palavras;

• Desenvolver f luência em leitura;• Compreender textos;

(I) Ident if icar f inalidades e funções da leitura através do reconhecimento do suporte, do gênero e da contextual ização do texto;(II ) Antecipar conteúdos de textos a serem l idos em função de seu suporte, seu gênero e sua contextualização;(II I) Levantar e conf irmar hipóteses relat ivas ao conteúdo do texto que está sendo l ido;(IV) Buscar pistas textuais, intertextuais e contextuais para ler nas entrel inhas (fazer inferências), ampl iando a compreensão;(V) Construir compreensão global do texto l ido, unif icando e inter – relacionando informações explic itas e implícitas;(VI) Aval iar ét ica e afet ivamente o texto, fazer extrapolações;Reflexão l inguíst ica: analisar o texto do ponto de vista estét ico (recursos ut i l izados) e beleza de l inguagem;

• Produção :

HABILIDADESCompreender e valor izar o uso da escrita com diferentes funções, em diferentes gêneros;Produzir textos orais/escritos de gêneros diversos, adequando aos objet ivos, ao dest inatário e ao contexto da circulação:(I) Planejar o discurso do texto considerando o tema central e seus desdobramentos;( l I ) Dispor, ordenar e organizar o próprio texto de acordo com as convenções gráf icas apropriadas;( l l l ) Usar a variedade l inguíst ica apropriada à situação de produção e de circulação fazendo escolhas adequadas quanto ao vocabulário e à gramática;( lV) Usar recursos expressivos (est i l íst icos e l i terários) adequados ao gênero e aos objet ivos do texto;(V) Revisar e reelaborar a própria escrita, segundo cr itér ios adequados aos objet ivos (adequação do gênero, coerência e coesão, pontuação, ortograf ia. . .) , ao dest inatário e ao de circulação previstos;

• Oralidade :

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HABILIDADESPart icipar das interações cot id ianas em sala de aula:

(I) escutando com atenção e compreensão;(II) respondendo às questões propostas pelo(a) professor(a);( II I) expondo opiniões nos debates com colegas e com o(a) professor(a) de forma clara e ordenada;(IV) Narrar fatos considerando a temporalidade e a causalidade;

Respeitar a diversidade das formas de expressões orais manifestas por colegas, professores e funcionários da escola, bem como por pessoas da comunidade extra – escolar;Usar a l íngua falada em diferentes situações, buscando empregar a variedade l inguíst ica adequada;Planejar a fala em situações formais;Realizar com pert inência tarefas cujo desenvolvimento dependa de escuta atenta e compreensão;Uti l izar procedimentos de argumentação;

ANEXO 2 – Planejamento de conteúdos do 3º ano

Planejamento LP 3ºs anos: (idem caderno da profª turma F)

Conteúdos conceituais:

- Alfabeto;

- Classificação das palavras;

- Substantivos,

- Masculino e feminino;

- Aumentativo e diminutivo,

- Sinônimo/antônimo;

- Frases: afirmativa/ negativa/ interrogativa/ exclamativa;

- Singular/plural

- Adjetivo;

- Acentuação;- Diálogo com balão;

- Sílabas – s –ss-r-rr-r brando

Ch – nh – lh

Ge-gi-gue-guiCe-ci-çÃo – am e m/n final de sílabaSc-nsSons do x- Leitura;- Receita;- Bilhete/carta/convite

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- Parlenda/aviso/ recado/ fábula- Produção de textos informativos e descritivos- Reescrita de testos lidos, filmes e histórias

Conteúdos procedimentais:- Leitura e interpretação de textos variados;- Expressão oral e escrita;- Escrita de palavras com dificuldades ortográficas e levantamento de hipóteses

sobre as regras;- Uso do dicionário;- Leitura compartilhada de texto e um livro literário;- Produção de textos com interferência e observação do grupo sobre as questões

gramaticais e ortográficas, revendo e reorganizando a escrita do texto.- Participação de em situações de intercâmbio oral que requeiram ouvir com atenção,

intervir sem sair do assunto, formular e responder perguntas, explicar e ouvir explicações, manifestar e acolher opiniões, adequar às colocações “as intervenções propor temas”

Anexo 3 – Escrita de bilhete de aluno alfabetizado turma B

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Do trabalho docente alienado

Sérgio Rodrigo Mélega

Nesta presente análise pretendo desdobrar a ideia de trabalho nos gestos da professora

com quem realizei o estágio, e os instrumentos por ela utilizados segundo o conceito de Scheuwly

aplicados na disciplina de Língua Portuguesa.

O que pretendo demonstrar é que seguindo a ideia marxista de trabalho, podemos também

retomar a ideia de trabalho alienado. Em um sentido específico, o que quero chamar de trabalho

alienado não faz um paralelo total com aquilo que Marx demonstra ser o trabalho alienado na

época Industrial. Pretendo encontrar um ponto de contato no fato de que se Marx, dinamizando a

ideia de Hegel sobre o desenvolvimento da História, nos mostra que aquele que produz, no

momento que produz, cria algo novo e também se modifica nesse mesmo momento – essa é a

grande inovação em seu conceito materialista – a relação do professor também deve ser

dinâmica.

O professor está alienado se na interação com os instrumentos didáticos, sejam os

materiais com os quais trabalha, seja a forma como ele aborda e os retransmite, não produz algo

novo para si e deixa de compreender sua função como agente que determina a realização de

tarefas por parte dos alunos.

Um outro ponto que creio ser válido na minha análise é como a professora deixa

transparecer, às vezes implícita e outras vezes explicitamente, o ambiente de sala de aula como

um preparo ao mercado de trabalho, fazendo analogias na maneira como as coisas acontecem

nessa e naquela situação, como se a escola fosse um preparo para a vida no mercado de

trabalho.

Da forma em que tentarei demonstrar a seguir, seja na aplicação de um exercício

gramatical, seja na abordagem de um gênero como um texto jornalístico, percebe-se a não-

continuidade entre as tarefas como progressão do conhecimento dos alunos.

As tarefas realizadas em classe são objetos que definem a participação do aluno a cada

aula por si só, sem dar muita relevância para o conteúdo que foi apresentado.

A escola está localizada num bairro de classe média da zona Sul de São Paulo. Tem dois

mil e quatrocentos alunos, divididos em 3 períodos. São 57 turmas, divididas da seguinte forma:

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26. 6 turmas de 1ª e 2ª séries,

27. 7 turmas de 3ª e 4ª séries,

28. 6 turmas de 5ª, 6ª, 7ª e 8ª séries do Ensino Fundamental.

No ensino médio são 2 turmas de 1º e 2º anos e 3 turmas de 3º anos.

Em conversa com as coordenadoras, elas disseram que essa turma extra no 3º ano se

justifica pelo fato de que muitos alunos se transferem para a escola nesse ano.

Acompanhei as aulas do terceiro A e C às segundas e quintas-feiras. As turmas tinham em

média 45 alunos inscritos. Nas duas turmas, porém, pouco mais de 20 alunos cursavam

efetivamente o curso; diferença muito grande entre o número de matriculados e os que cursaram.

Uma coordenadora me disse que esse número de desistentes, embora muito grande, é normal

dentro da situação dos alunos. Muitos trabalham, acordam muito cedo e por isso não têm

disposição para ir à escola.

A professora Ana15 tem 44 anos, dos quais 12 dedicados ao magistério. Ela é separada e

tem uma filha. É uma pessoa enérgica, de temperamento forte e que conduz com pulso firme a

sala de aula. Pode-se dizer que tem um bom relacionamento com os alunos. Como acontece em

quase toda sala de aula, existem os momentos em que há muito alvoroço por parte dos alunos,

mas ela sabe bem trazer a atenção deles de volta, sem muitos problemas. Cria um bom ambiente

com eles por meio de brincadeiras e tem liberdade para dizer e para ouvir por parte deles algumas

brincadeiras pessoais, como por exemplo alguns alunos que dizem abertamente que ela está

bonita e ela, sorridente, recebe o elogio rebatendo que não é para o “bico” deles, isso também

sorrindo.

Nas duas turmas nas quais acompanhei as aulas, percebi um comportamento semelhante,

uma turma um pouco mais interessada que a outra, outra turma um pouco mais barulhenta, mas o

que se pode perceber é que o professora determina de uma certa maneira o ambiente da classe.

Em conversa com a professora, ela me disse que o período mais difícil é sempre o começo do

ano, principalmente se nunca trabalhou com os alunos dessa classe. Disse também que é

necessário um tempo para ganhar o respeito e impor autoridade aos alunos.

A escola está relativamente bem conservada em sua parte externa e também nos

corredores externos. A biblioteca parece ser o local mais bem arrumado e organizado. As salas de

aula, porém, são um pouco sujas e desorganizadas, o ambiente está quase sempre muito

desarrumado e muitas carteiras estão quebradas.

Houve uma certa resistência por parte dos coordenadores para me darem acesso ao

projeto pedagógico. Durante o estágio sempre ficava a promessa de encontrá-lo e mostrá-lo e por

fim a coordenadora me disse que não sabia onde estava. Ela comentou que eles estavam fazendo

15 Nome fictício.

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uma reestruturação e por isso não tinha nenhuma versão na escola. O mais curioso foi que, ao

comentar que eu já havia estagiado em outra escola e copiado trechos do projeto pedagógico

dessa escola, ela então sugeriu que eu trouxesse a eles esse projeto para que olhassem e se

utilizassem dele.

As aulas que acompanhei foram do programa chamado Projeto Dirigido, conhecido como

PD. É um projeto das escolas estaduais que visa criar um contato dos alunos com as questões da

atualidade, com os assuntos que estão nos meios de comunicação. O professor busca oferecer

aos alunos a atualização sobre temas correntes, com o auxílio e aprendizado da própria disciplina

de Português.

Pode-se dizer que a ideia traz algo de interessante. Se fosse possível ir além da primeira

impressão que os alunos têm das notícias, fazendo críticas e reinterpretando os fatos que são

divulgados a partir do próprio instrumento que a disciplina de português oferece, teríamos uma

noção melhor de como os alunos digerem o bombardeio de informações que circula diariamente.

O guia é um material fornecido pelo Estado e elaborado pela Editora Abril.

A professora Ana teve sempre uma postura rígida em relação à questão das faltas, seja as

dela as dos alunos. Ela raramente faltava, e no período em que acompanhei as aulas ela não

faltou nenhuma vez. Ela estabeleceu um limite de 15 minutos para os alunos entrarem em sala de

aula, e foi sempre muito rigorosa nesse aspecto. Isso sempre criava algum problema porque a

porta ficava fechada e os alunos batiam na porta; ela então atendia e negava a entrada deles.

Criava-se uma situação de embaraço pois alguns discutiam com ela alegando alguma justificativa

para o atraso, mas raramente ela cedia.

A professora se utilizava muito de textos do Guia do Estudante, mas às vezes

aleatoriamente e fazendo a escolha do texto minutos antes da aula começar, ou mesmo no início

da aula. Geralmente ela pedia para que os alunos lessem os textos e fizessem uma cópia. Essa

cópia era considerada como tarefa.

Ela sempre fazia chamada no final da aula. Indo de carteira em carteira, ela anotava a

presença do aluno e olhava no caderno dele para se certificar que ele tinha feito a cópia do texto.

Algumas vezes eles liam textos do guia e faziam uma redação sobre o assunto do texto que foi

lido. Quando a proposta era uma redação ela não corrigia essas redações; somente conferia

quem tinha feito e dava ponto positivo a esses alunos. Houve situações em que os alunos fizeram

cópias do próprio texto lido em classe e a professora ainda que contrariada com isso, dizia que

era normal, que não se podia fazer nada. Ela valorizava fundamentalmente o fato de eles terem

realizado alguma tarefa.

Houve três aulas em que ela falou sobre gramática com os alunos. Nessas aulas a forma

de trabalho foi um pouco diferente. Ela escreveu na lousa um texto teórico sobre coesão e

coerência e nesse mesmo texto havia uma proposta de exercício com frases a serem analisadas

como segue abaixo:

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Sobre coerência textual:

André e Pedro são fanáticos torcedores de futebol. Apesar disso, são diferentes. Este não briga

com quem torce para outro time; aquele o faz.

A professora explicou aos alunos a função dos pronomes demonstrativos (ainda que de

forma incorreta; esse exemplo será retomado adiante). Como os alunos tinham muita dificuldade

com o assunto, a professora foi trazendo explicações para níveis anteriores.

No apelo à memória, os alunos não demonstraram conhecimento e então os instrumento

por parte da professora foram exemplos imaginados no momento com frases mais simples na

tentativa de fazê-los “lembrar” do assunto.

A realização de tarefas constitui-se como uma das práticas mais importantes utilizadas

pela professora. Em quase todas a aulas ela pedia a eles que fizessem cópias do que era escrito

na lousa ou que fizessem uma “redação” sobre um texto lido em classe. Coloco redação entre

aspas porque embora fosse chamada de redação, muitos alunos entregavam três ou quatro linhas

sobre o tema do texto lido, sendo que alguns copiavam essas mesmas linhas do texto. Como

pretendo analisar mais adiante, a professora aceitava essas “redações” como algo realizado em

classe, como algo válido.

Em uma das aulas a professora utilizou máximas do empresário Bill Gates, fazendo

analogia entre o mundo do trabalho e o mundo escolar. Pedindo a reflexão dos alunos para cada

máxima (não constam essas máximas nos anexos).

Já em outra aula foi feito um círculo e lido um texto sobre a decadência dos Estados

Unidos e também sobre a questão da imigração. A professora abriu um debate entre os alunos

sobre o que fora lido.

Os instrumentos dos quais a professora se utilizou nas aulas foram quase em sua

totalidade, textos do Guia do Estudante – editora abril 1º e 2º semestres.

Não será enfocado neste trabalho o tempo de aula que a professora despendeu com

questões burocráticas (algum aviso da escola ou alguma pendência de tarefa por parte de alguns

alunos). O fato é que esse tempo sempre foi muito grande em relação ao tempo total de aula. A

aula geralmente começava depois dos quinze minutos de tolerância para que os alunos atrasados

entrassem.

Trabalho Alienado

Tomando como parâmetro o conceito de Marx sobre o trabalho e o conceito de que os

gestos do professor devem ser compreendidos como trabalho, como sugeriu Schnewly, o que

pretendo demonstrar é que o trabalho da professora Ana foi sempre um trabalho alienado, isto é,

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alheio à sua própria razão de ser. Por meio de seus gestos e da forma como abordou o material

utilizado em sala de aula, creio que houve um descompasso entre o que se poderia considerar

como êxito o fruto desse trabalho e o resultado final obtido.

Um dos exemplos talvez seja o de que em uma das aulas ela chegou a utilizar o seguinte

texto com a seguinte formulação de perguntas:

“O homem”

De repente, uma variante trágica. Aproxima-se a seca. O sertanejo adivinha-a e prefixa-a graças

ao ritmo singular com que se desencadeia o flagelo.

Entretanto não foge logo, abandonando-a teria a pouco a pouco invadida pelo limbo candente que

irradia do Ceará.

Buckle, em página notável, assinala a anomalia de se não afeiçoar nunca, o homem, às

calamidades naturais que o rodeiam. Nenhum povo tem mais pavor aos terremotos que o

peruano; e no Peru as crianças ao nascerem têm o berço embalado pelas vibrações da terra.

Mas o nosso sertanejo faz exceção à regra. A seca não o apavora. É um complemento à sua vida

tormentosa emoldurando-a em cenários tremendos. Enfrenta-a estóico. Apesar das dolorosas

tradições que conhece através de um sem número de terríveis episódios, alimenta a todo transe

esperança de uma resistência impossível.

(Euclides da Cunha “Os Sertões”)

Responda:

1.Como Euclides da Cunha caracteriza o homem sertanejo?

2.Por que Buckle caracteriza como uma “anomalia”o fato de o homem não se afeiçoar nunca às

calamidades naturais que o rodeiam?

3. Como Euclides da Cunha caracteriza o fenômeno da seca?

Ela copiou o texto todo na lousa juntamente com as questões, o que tomou um grande

tempo da aula. Em seguida, nos minutos restantes, disse que eles tinham que responder às

questões e entregar no final da aula sob pena de ficar com um ponto negativo aqueles que não o

fizessem. Não houve discussão do texto. Houve breves comentários em cima de perguntas que

alguns alunos fizeram e que a professora respondeu brevemente, sem muita clareza. Um dos

alunos perguntou o significado da palavra estoico. Ela então respondeu que estoico significa

corajoso.

Aqui como em outros pontos pretendo justificar a ideia de trabalho alienado, partindo da

visão de que o gesto, as tarefas e o ambiente da sala de aula significam trabalho, e que se o

professor não localiza o que realmente é importante nesse conjunto, o realiza como

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preenchimento de sua função. Me permitirei uma pequena analogia. Se o carpinteiro acredita que,

por ser carpinteiro, o importante é que ele passe seu dia martelando pregos numa madeira (pois

afinal todo carpinteiro faz isso), sem levar em consideração que ele, o martelo, o prego e a

madeira devem gerar alguma coisa para além dessa relação, seu trabalho se torna alienado.

Ajuda-nos muito pensar no conceito de Chevallard sobre a dupla semiotização. Ao trazer

um trecho de “Os Sertões” para os alunos como objeto de ensino, imagina-se que o professor

tenha domínio sobre esse instrumento, o que não foi verificado no desconhecimento da professora

sobre o significado da palavra estoico.

Um texto de literatura deve ter um valor de deleite ao professor, de profundo contato e

entendimento. À partir disso ele tentará “equipar” o aluno com ferramentas para que ele também

compreenda e se deleite com o texto.

A professora Ana é considerada uma “generala” na escola. Uma das poucas professoras

que não distribui notas aos alunos se, no entendimento dela, eles não merecerem. Em quase

todas as aulas ela propunha alguma atividade de “resposta” por parte dos alunos, como no caso

da atividade citada recolheram-se respostas às perguntas feitas sobre o texto.

Retomando um exemplo sobre uma aula de coerência textual, cito novamente o trecho

trabalhado em classe:

Sobre coerência textual:

André e Pedro são fanáticos torcedores de futebol. Apesar disso, são diferentes. Este não briga

com quem torce para outro time; aquele o faz.

Um dos alunos perguntou-lhe a quem se referia o pronome este e a quem se referia o

pronome aquele. A professora sem titubear disse ao aluno que este se referia ao André e aquele

se referia ao Pedro. Numa das aulas, lendo um texto que citava os nomes dos filósofos Nietzsche

e Voltaire, a professora os leu como se fossem palavras do português, o que soou estranhíssimo.

Para além desses exemplos em que pude constatar o despreparo da professora sobre a

sua própria formação, desconhecendo aquilo que espera-se que o professor saiba, quero reforçar

que a professora acredita ser válido obter essas tarefas dos alunos dissociando o resultado como

indicador de sucesso ou não de proposta de ensino. Em boa parte do estágio trabalhamos textos

onde a reflexão, tão importante ao entendimento, não foi valorizada. Pensando novamente em

Chevallard, ao semiotizar o objeto, o que no caso da disciplina de português é sempre pensar sua

estrutura formal, o significado de suas palavras e com isso possibilitar a interpretação, a

professora abdica desse “tempo” com o texto e isso transparece em seu desconhecimento de

vocabulário.

Em outro exemplo sobre gramática, temos a seguinte frase:

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Qualquer que tivesse sido seu trabalho anterior, ele o abandonara.

Em discussão sobre a função do verbo, a professora disse aos alunos que o verbo tivesse

era o verbo principal da frase e o verbo sido era o auxiliar.

O que tento mostrar é que escapa-se ao essencial, sempre. Há uma prática didática

dissociada ao meu ver do que a deveria motivar: o aprofundamento do contato com a linguagem

do texto ou, no caso da gramática, a compreensão mais pormenorizada dessa mesma linguagem.

A rotina

Seguindo a relação paralela com o mundo do trabalho, o conceito de rotina pode nos

auxiliar também nesse estudo. Se não há um ponto de chegada e um ponto de saída, se não há

um encadeamento entre as aulas ou mesmo um objetivo claro em uma mesma aula como pude

verificar, a aula torna-se mera repetição da anterior, um vício da professora ao eleger a realização

de tarefas como valor em si mesma. Ela desconsidera, assim, a sequência didática como

elemento importante na obtenção de “resultados”.

Parece-me que ao lidar com os instrumentos dessa forma, ainda que de maneira

inconsciente, isso era notado pelos alunos. Havia uma ou outra indagação sobre o que era dito –

às vezes alguma indagação acerca do conteúdo ensinado –, entretanto a professora lidava muito

bem com a institucionalização do saber. O que não foi possível descobrir foi até em que ponto ela

tinha consciência dos equívocos cometidos.

Nesse ponto talvez seja inócuo julgar a boa-fé da professora. Deslocando o foco dela para

a “usina” na qual ela trabalha, podemos obter mais algumas conclusões.

Há muito tempo a Escola vive uma “crise de identidade”. Ela existe para libertar os homens

ou para instrumentalizá-los para a vida do comércio?

Sem me alongar em análises históricas, o que fugiria do escopo deste trabalho, podemos

pensar que desde a Revolução Francesa os valores humanistas apregoados pelos burgueses

foram adequados à revolução ainda mais contundente, a Revolução Industrial.

Da Europa para o Brasil, a periferia do Capitalismo – parafraseando Roberto Schwartz – a

escola aqui tem a função de dar aos alunos alguma chance, uma possibilidade a mais na disputa

por emprego. Fica apropriado, ainda que condenável, transformar a escola na prévia para o

mundo do comércio. O problema é que isso dificilmente fica ajustado.

Como citei acima, a professora Ana em uma das atividades trouxe um texto de Bill Gates

(admirado pela sua capacidade de transformar conhecimento em riqueza, sua própria riqueza),

traçando um paralelo entre os dois mundos. Ela trabalha durante o dia em um departamento de

Recursos Humanos, e seu discurso está cheio de referências do seu ambiente de trabalho.

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Se a Escola brasileira reforça esses parâmetros para os professores, é mesmo difícil

imaginar uma outra postura por parte deles.

Referências bibliográficas

GOMES-SANTOS, S. N.; CHAVES, Maria Helena Rodrigues. (Universidade Federal do Pará) – O gênero seminário escolar como objeto de ensino: instrumentos didáticos nas formas do trabalho docente.

SANTOS, Theotônio. - Contraponto - O Manifesto Comunista e o marxismo como projeto. O Manifesto Comunista 150 anos depois – Karl Marx, Friedrich Engels.

Dados biográficos.

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O tradicional como resistência: relações entre instrumentos de ensino e concepções de trabalho docente na prática didática

de uma professora de português de São Paulo

Edilson da Silva Cruz

IntroduçãoNeste estudo, analisamos a relação entre trabalho docente, prática didática em sala e

instrumentos de trabalho docente, tendo como fundamento teórico as ideias sobre o trabalho

docente de Schneuwly (2009) e Freitas (2010). A partir das observações de estágio feitas em uma

escola pública de São Paulo, buscamos identificar, na prática didática de uma professora de

Português, a forma como ela se relaciona com os objetos de ensino e os instrumentos didáticos,

escolhidos ou impostos pela escola. Buscamos, para tanto, descrever o ambiente escolar, seu

contexto mais amplo, a prática didática da professora e a maneira como se configura seu projeto

didático. A partir dessas descrições, relacionamos sua prática com as teorias a respeito do

trabalho docente, identificando e caracterizando suas ações e gestos em confronto com

concepções tayloristas, presentes nos instrumentos de trabalho docente – as apostilas “São Paulo

Faz Escola” –, ao mesmo tempo em que adquire um caráter de resistência pelo apego a

concepções, gestos e objetos tradicionais de ensino.

1. Sobre o contexto escolar1.1. A escola Localizada no extremo leste da cidade de São Paulo, a Escola Estadual Palmares16 abriga

alunos de Ensino Fundamental I (período matutino e vespertino) e Ensino Médio (período

noturno). A situação de carência do bairro, no qual faltam diversos elementos que configuram uma

infraestrutura urbana adequada à vivência social e cidadã, é reproduzida, de alguma maneira, na

escola: em seu espaço físico faltam alguns materiais (embora isso não prejudique o seu

funcionamento) mas faltam, sobretudo, textos em circulação. Por outro lado, verificamos que a

interação entre alunos é constante e intensa (na sala de aula e fora dela). Entre professores e

funcionários a relação também é tranquila, sem maiores problemas. Já entre professores e

alunos, e vice-versa, verificamos conflitos e atitudes hostis de ambas as partes, talvez produtos do

próprio ambiente de carência estrutural da escola e do bairro, mas também atitudes de

cooperação e respeito.

1.2. A linguagem no contexto escolar 1.2.1. O espaço físico

A Escola Estadual Palmares chamou nossa atenção, ao início das observações, por conter

16 Tanto a escola como a professora são referidas com nomes fictícios.

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pouquíssimos textos em circulação no espaço físico compartilhado por professores, funcionários e

estudantes, isto é, o pátio interno e os corredores das salas de aulas: nota-se não mais que três

murais, algumas frases soltas, como propagandas, e uma imensa pintura na parede do pátio

interno. Ademais, nota-se o número de cada sala escrito à tinta óleo acima das respectivas portas

das salas.

No pátio principal, além de pequenos textos em circulação (como as propagandas da

cantina e a tabela de preços), há dois murais de madeira. Um deles, revestido de papel laminado

prateado, contém alguns textos informativos e outros de caráter lúdico: uma folha A4 que informa

sobre abertura de vagas para alunos monitores da sala de informática; um cartaz tamanho A3 com

propaganda de um cursinho pré-vestibular de preço mais acessível (não chega a ser um “cursinho

popular”); umas folhas com informações esotéricas, analisando a posição dos astros e sua

influência na vida das pessoas; também um recado sobre as inscrições para provas de

reclassificação, para alunos repetentes que desejam passar de ano. No outro mural, ao lado da

escada que dá acesso ao primeiro andar, não há revestimento de papel, apenas uma frase escrita

à canetinha azul clara, de cabeça para baixo, no meio do mural: “Esperança no futuro e alegria no

presente”.

No entanto, apesar dessa secura de textos, o que mais chama a atenção na escola é

justamente um texto visual e escrito pintado na parede do pátio, a uns 3 metros de altura. Trata-se

de uma imensa pintura do rosto de Oscar Niemeyer, cujas dimensões se aproximam de 1 metro e

70 de altura por 2 metros de largura. Ao lado da pintura, lemos os dizeres “Centenário Niemeyer

2º C 2º D Professor Marco”. Do outro lado da pintura também há uma citação do famoso arquiteto: Não é o ângulo reto que me atrai, nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas do meu país. No curso sinuoso de seus rios, nas ondas do mar, no corpo da mulher preferida. De curvas é feito todo o universo, o universo curvo de Einstein.

Oscar Niemeyer

Abaixo da pintura do rosto, percebemos pintados também seis desenhos em forma de

quadros: três desenhos de obras de Niemeyer (onde prevalecem as curvas citadas por ele) e três

pinturas de elementos que se reconhecem da natureza brasileira: uma flor, um tucano e um coco

quebrado ao meio, todos ressaltando justamente as curvas das quais são constituídos. 17

Nos corredores das salas quase não notamos textos escritos em circulação, a não ser os

números das salas escritos a tinta óleo na parte superior das portas. No andar de cima ocorre o

mesmo. Já do lado de fora da escola, por onde os alunos entram, percebe-se que o muro está

grafitado com o nome da escola e a identificação da diretoria de ensino à qual pertence. Próximo

ao portão principal está a secretaria da escola onde, ao lado do guichê de atendimento, notamos

outro mural grande na parte superior da parede. Há vários textos, em folhas A4: informações

sobre transferência de alunos, provas de reclassificação, horário de funcionamento da secretaria e

17 Sem dúvida, esta pintura é o elemento que mais chama a atenção de quem circula pela escola. Num ambiente onde a falta de textos escritos às vezes chega a incomodar, contemplar esta pintura no pátio é uma forma de reconhecê-lo novamente como um espaço escolar, cuja principal característica é, justamente, o contato com o texto, com a letra e suas imprevisíveis curvas.

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da escola, cartazes com ofertas de emprego, de cursos profissionalizantes, entre outros.

Já na parte da escola frequentada exclusivamente por professores e funcionários (sala dos

professores, sala da diretora e secretaria, sala de leitura e o corredor que une todos esses

ambientes), podemos perceber uma maior presença de textos escritos, configurando um ambiente

mais condizente com o escolar.

Na sala dos professores há mais textos em circulação: uma lousa branca na qual se

escrevem diariamente recados de interesse dos professores; um mural onde são afixados

cartazes e textos diversos (divulgação de eventos, lista de faltas e de professores coordenadores

das turmas, calendário civil e da escola e cartaz de “aniversariantes do mês”). Ao lado do mural,

há uma estante com revistas de temas variados e sobre educação (alguns títulos encontrados:

Veja, Época, Galileu, Revista Língua Portuguesa, Ciência Hoje, Carta na Escola) e livros que, às

vezes, são folheados pelos professores, além de livros didáticos e infantis, guardados em duas

vasilhas grandes, em cima do armário. Além disso, há duas mesas (uma lateral e outra central),

na qual circulam vários textos e instrumentos de ensino: globos terrestres, livros variados, dois

mimeógrafos, um caderno de “recados” (onde a direção cola ou escreve recados de interesse dos

professores como avisos de cursos, palestras etc.) e um “caderno de estágios”, onde os

estagiários anotam e descrevem as atividades realizadas na escola, os jornais do dia (a “Folha” e

o “Estado”), assinados pela escola, os quais são frequentemente lidos pelos professores, entre

outros. Também há, em um canto da sala, dois computadores com acesso à Internet, bastante

utilizados pelos professores para verem vídeos, lerem notícias ou digitarem atividades.

No corredor que dá acesso à secretaria, há três murais com textos informativos voltados

aos professores (avisos sobre provas do Estado, cursos etc.). Em frente à sala dos professores,

está localizada a sala de leitura, do tamanho de uma sala de aula normal, com duas prateleiras de

livros e algumas mesas. Os alunos do período noturno não têm horário para frequentá-la.

Normalmente, é utilizada à noite para a exibição de vídeos, já que possui equipamento para isso e

também porque a sala de vídeo está desativada há algum tempo.

1.2.2. Na documentação escolar e no projeto docenteNão foi possível ter acesso aos dados referentes à documentação da escola. No entanto,

segundo a professora Mônica18, o planejamento feito pelos professores segue normas ditadas

pela direção da escola que, por sua vez, as recebe de outras instâncias superiores. Ela nos

contou que seu planejamento, entregue à escola, é na verdade uma reprodução do conteúdo das

apostilas “São Paulo Faz Escola”. Ela simplesmente copia e entrega conforme consta nos

cadernos. As atividades que desenvolve em sala e que não condizem com a abordagem das

apostilas, ela leva por conta própria e não constam no planejamento docente.

1.2.3. Na interação escolar e na sala de aula A turma que acompanhamos é o 1º B (Ensino Médio noturno). As aulas acontecem na sala

18 Nome fictício.

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2, no térreo, ao lado do pátio interno. A sala contém em torno de 50 carteiras (mesa e cadeira), a

mesa da professora, um armário, utilizado pelas professoras dos outros períodos, 2 ventiladores,

uma lousa grande que ocupa toda a extensão da parede de frente da sala e dois murais colados

na parede lateral à esquerda da parede da lousa. Em um deles, verificamos alguns textos: o

alfabeto escrito à tinta óleo acima da lousa, os numerais de 1 a 9 escritos em papel E.V.A; um

calendário do respectivo mês, um cartaz com o nome de todos os alunos da sala (do matutino ou

vespertino), outro cartaz com o nome de cada mês do ano e outro com o nome de algumas frutas,

um embaixo do outro e escritos com papel colorido. No outro mural, ao lado do descrito acima, há

apenas um cartaz: uma tabuada na qual, além dos números todos, há ainda o símbolo do projeto

“Ler e Escrever” e o símbolo da prefeitura de São Paulo. Ou seja, percebemos que o uso desses

murais é feito pelas turmas da manhã (aluno do ensino fundamental I). Não se percebe nenhuma

marca dos alunos do noturno nos murais.

A sala está organizada em fileiras. No começo da aula, enquanto espera os alunos

chegarem (eles vão chegando aos poucos), a professora vai arrumando as carteiras de modo a

configurar fileiras exatas. Percebe-se claramente a divisão dos alunos, quando estes já estão

dentro da sala: há um grupo mais ao fundo, de meninos, e outro no canto esquerdo, de meninas;

na frente ficam alunos de forma mais isolada.

Os textos que circulam na sala são, prioritariamente, os referentes à prática didática:

apostila do governo, alguma folha de atividades que a professora passe aos alunos, textos ou

explicações que ela escreve na lousa, os cadernos dos alunos. Vez ou outra, algum outro texto

nos chama atenção, como quando uma aluna lia, durante a aula de classes de palavras, um livro

dela mesma, chamado “Tira-dúvidas: dicas de português”.

Quanto às trocas interativas, percebemos que, na sala, estas se dão de modo constante

entre os alunos, apesar de a professora conseguir manter o silêncio ao explicar as lições. Na hora

do intervalo e antes de começar as aulas, os alunos se reúnem em grupos e percebe-se uma

comunicação constante. Já os professores, na sala a eles, relacionam-se bastante por meio de

conversas sobre assuntos variados (política, educação, cotidiano escolar, assuntos pessoais etc.).

Também com a direção da escola existe uma comunicação que vai além de assuntos burocráticos

e pedagógicos.

2. Sobre o ensino de português 2.1. O estágio

Nossa observação aconteceu entre os meses de abril e maio de 2011. Apesar de

interrompidos por alguns feriados e uma licença médica pedida pela professora, foi possível

acompanhar quase toda uma sequência didática e recolher elementos que permitem uma

observação minimamente coerente da prática didática em sala de aula.

Em geral, nossa participação nas aulas resumiu-se a descrevê-la, enquanto a professora a

ministrava. Não participamos diretamente da aula, mas nos pareceu evidente a expectativa da

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professora em relação a isso.

2.2. A professora Segundo seu próprio relato, Mônica é professora de português há pouco mais de oito

anos. Antes de cursar Letras na Universidade Cruzeiro do Sul, cursava Administração, e foi

funcionária de uma empresa multinacional. Saiu para dar aulas, quando passou num concurso

estadual. Segundo ela, seu interesse por Letras se deveu ao interesse pelo inglês. No entanto,

não aprendeu a falar inglês na faculdade e não teve até hoje a oportunidade de fazer um curso

extra, o que a deixa de certa maneira frustrada, uma vez que isso a impede de dar aulas de inglês

de maneira satisfatória. Por isso, ministra somente aulas de português.

Em seu discurso, percebemos a presença de uma ideia corrente: a de que os alunos não

se interessam pela matéria porque não sabem o porquê de estudarem esse assunto. Formada em

administração, ela diz ser a favor de uma vinculação maior entre o Ensino Médio e o mercado de

trabalho como forma de contribuir para dar maior sentido ao que eles aprendem. Com esse

objetivo, a professora elaborou um projeto intitulado “Primeiro Emprego”, o qual visa incluir uma

discussão sobre o mercado de trabalho com os alunos nas aulas de português. Entre as

atividades propostas está a formulação de um currículo e o seu encaminhamento a empresas

interessadas. Também está previsto no projeto a realização de “simulados” com provas de

concursos de nível fundamental e médio, a fim de que os alunos “treinem” para a realização de

tais provas (a tentativa de “dar sentido” ao que é aprendido é uma preocupação da professora em

sala de aula, nos levando a pensar que ela também precisa definir com mais precisão a própria

necessidade de seu trabalho para a sociedade).

2.3. O trabalho docenteDescrevemos, abaixo, os principais pontos da sequência didática observada e como os

diversos elementos que a compõem são mobilizados pela professora para dar sentido ao seu

trabalho pedagógico.

2.3.1. Os objetos de ensinoDurante o período acompanhado, a professora Mônica desenvolveu atividade com os

alunos a respeito de dois temas específicos: um tópico gramatical – as classes de palavras – e um

tópico ortográfico – a grafia de determinadas palavras que oferecem dificuldade aos alunos como

bem/bom, mal/mau. A maneira como ela apresentou esses tópicos esteve mediada por dois

instrumentos de regulação: a prova bimestral, anteriormente preparada, e as atividades que ela

pedia em sala. A partir da explicação oral a respeito do tema e da referência à relevância do

conteúdo para os alunos, a professora desenvolveu seu projeto didático e, com isso, dava sentido

ao seu trabalho não somente perante os alunos, mas perante si mesma.

A escolha desses objetos de ensino, segundo seus relatos, deu-se em oposição à

imposição que o governo faz das apostilas do projeto “São Paulo Faz Escola”. Nesses cadernos,

não se trabalha, segundo a professora, nenhum tema propriamente gramatical, apenas

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“interpretação de textos”, o que torna o caderno “irrelevante para os alunos”, de acordo com ela.

Como forma de subverter essa lógica, ela prepara atividades de cunho gramatical para suprir essa

falta. Vale ressaltar que a sua exposição oral em sala a todo o tempo lembra que tais conteúdos

são importantes, pois é o que “cai em concurso, em vestibular”. Logo é importante eles saberem

para “conseguir um bom emprego”.

Ou seja, os objetos de ensino são definidos em oposição a uma prescrição quanto ao

instrumento didático, e se materializam no projeto didático mediante os instrumentos de

regulação, como apontado acima, o que, por sua vez, vai orientar as escolhas didáticas em sala

de aula.

A forma como os objetos de ensino se materializam em sala acontecem basicamente

mediante a explicação oral, pela utilização de perguntas-respostas e a interação com os alunos,

convidados, inclusive, a intervir na elaboração dos gestos didáticos em sala.

Em uma das aulas, por exemplo, enquanto a professora se valia do recurso de perguntas e

respostas para expor o conteúdo referente à identificação do verbo na frase, criava frases soltas e

perguntava aos alunos coisas como: “onde está o verbo?”. Em certo momento, ela pediu que

alguns alunos formulassem frases para servir de exemplo. Um dos alunos formula a seguinte

frase: “Deus queria que chovesse”. A professora rejeita a frase e os alunos riem. Em seguida o

mesmo aluno formula outra: “O gato falou miau”. A professora também rejeita e resolve criar uma

frase ela mesma: “O gato pegou o rato”. A partir daí utiliza novamente o par pergunta e resposta

para dirigir a explicação. Em geral, os alunos respondem em uníssono.

A utilização dessa prática, na qual os alunos interferem na formulação dos gestos didáticos

que compõem a aula, contribuiu para que o clima se tornasse mais descontraído e permitiu que

tanto a professora quanto os alunos se desprendessem do clima sério e dessem lugar a

brincadeiras e comentários jocosos. De fato, a partir dessas práticas, os alunos se mostraram

mais interessados em acompanhar a aula.

2.3.2. Práticas de LinguagemQuanto às práticas de linguagem, verificamos sobretudo a análise gramatical e a produção

de textos escritos. No primeiro caso, após explicar o tópico gramatical/ortográfico, em geral a

professora solicita que os alunos desenvolvam atividades para fixar o conteúdo abordado. No

segundo, costuma pedir que os alunos elaborem textos, especificando o tipo (dissertativo,

narrativo, com tema preestabelecido ou não), e entreguem para avaliação.

Em determinada aula, solicitou uma dissertação sem especificar tema e, em seguida,

explicou o que era um texto dissertativo dizendo que os alunos deveriam entregar o texto, ela

corrigiria e devolveria para que eles reelaborassem com as correções. No entanto, após a

entrega, apenas vistou e devolveu os textos.

As referências à linguagem oral estão presentes quando a professora explica questões

gramaticais: ela insiste na oposição entre norma culta e linguagem cotidiana. No entanto, tal

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abordagem se dá como forma de reafirmar a superioridade da norma culta em relação às outras

variedades do português, configurando uma abordagem tradicional da questão, sem que a

linguagem oral fosse um objeto específico de ensino.

2.3.3. Gestos didáticos Na primeira aula observada, a professora mostrou-nos a prova, já preparada, que

orientaria sua atuação em sala de aula: a partir do conteúdo da prova (e da forma) previamente

delimitada, ela utilizou o espaço da aula para expor os conteúdos de modo que os alunos já os

tivessem quase que decorados na hora da avaliação. Essa maneira de trabalhar apresenta um

alto grau de fragmentação que, no entanto, casa perfeitamente com o objeto de ensino: um tópico

gramatical e um ortográfico, este também ditado de maneira fragmentada.

Por meio da referência à avaliação (já preparada, como dissemos), ela presentificava o

objeto de ensino (antes das explicações ela dizia que, “como eu disse na aula passada” –

memória didática –, a prova já está pronta e os alunos devem prestar atenção nas explicações

dadas, a fim de poder realizar a prova no momento oportuno).

Outro gesto importante é o da elementarização: em dada aula, ela começou explicando o

que são adjetivos e substantivos e, em seguida, expandiu a explicação, passando para os verbos,

pronomes e, por fim, aos elementos ortográficos, como a grafia de mau/mal ou o uso de bem/bom,

sempre elementarizando cada tópico, explicando parte por parte.

Para a explicação do tópico gramatical/ortográfico a professora utilizou também

(centralmente) o par pergunta-resposta. Em determinado momento de uma das aulas, ela pega

uma caneta na mão e pergunta: “O que é isso?”, os alunos respondem “Uma caneta”. “Sim,

caneta é um substantivo porque dá nome às coisas. E qual a cor da caneta?”. “Vermelha”. “Sim,

Vermelha é uma característica da caneta, ou seja, é um adjetivo” [par pergunta-resposta]. Os

alunos a essa altura já estão quase todos em silêncio e prestam atenção à professora.

Em seguida, ao explicar o que são pronomes, fez com que os alunos repetissem em

uníssono os pronomes pessoais: eu, tu, ele, nós, vós, eles [gestos didáticos ou instrumento de

ordem discursiva, o uníssono]. O mesmo recurso do uníssono é utilizado também quando ela

passa da explicação de classes de palavras para explicações de ordem ortográfica: Professora: Mau com U, contrário de bom; mal com L contrário de bem. Agora todo mundo: mau com U...Alunos (em uníssono): contrário de bomProfessora: mal com LAlunos (em uníssono): contrário de bem

Essa quadra repetida provocou um clima jocoso na sala devido à sua sonoridade e

cadência da frase, repetida quase como um “marcha-soldado”. O mesmo ocorreu quando a

professora explicou a diferença entre onde/aonde, sempre interagindo com os alunos e valendo-

se de comentários jocosos para mantê-los atentos.

2.3.4. Instrumentos de ensino Como dissemos, a complexa relação entre objeto de ensino, gestos didáticos (dispositivos

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e regulação) e prescrição de instrumentos de ensino orientam a prática da professora em sala de

aula.

Quanto aos instrumentos didáticos de ordem material, percebemos que os cadernos “São

Paulo Faz Escola” têm um papel central: em todas as aulas eles são utilizados, seja para a

realização de exercícios, ou para que, a partir de algum texto, a professora extraia explicações e

conteúdos sobre o tópico gramatical/ortográfico em questão. Além disso, quando explica

oralmente os conteúdos aos alunos, utiliza o giz e a lousa como forma de presentificar esses

conteúdos.

Porém, se há certa submissão à apostila, é de se notar que, rompendo o caráter

prescritivo da imposição do material, a professora subverte, se assim podemos dizer, no uso, o

objetivo do caderno “São Paulo Faz Escola” (o qual é denominado pela professora como

“revista”): uma vez que estes se orientam por uma concepção onde se identificam elementos

tayloristas (como separação entre planejador e executor das atividades, controle do tempo e do

corpo, através de prescrições rígidas), ao incorporar à sequência didática prevista na “revista”

seus próprios conteúdos e suas próprias práticas, a professora subverte as prescrições ditadas no

material (instrumento) e cria com isso uma espécie de liberdade em relação a ele, apesar de

orientar-se por ele.

Quanto aos instrumentos de ordem discursiva, a professora se vale sobretudo de

instruções orais referentes aos exercícios e às explicações do conteúdo abordado. Um elemento

central em sua prática é o par pergunta-resposta, utilizado como instrumento, uma vez que

contribui, não somente para a fixação de conteúdos, mas para estabelecer a interação entre

professor-aluno em sala e para criar um clima mais descontraído. Esse clima descontraído, por

sua vez, acontece também mediante os comentários jocosos que a professora faz, seja em

relação ao conteúdo ou em diálogo com ele, promovendo a integração dos alunos à prática

didática. Apesar do caráter fragmentário da exposição do conteúdo, os comentários e a

participação dos alunos no desenvolvimento e na própria criação de mecanismos didáticos dão

uma dimensão mais dialógica à aula, rompendo, novamente, o caráter “taylorista” que a execução

da sequência didática, segundo prescrita na “revista”, faz supor.

Por fim, vale ressaltar, em relação aos instrumentos didáticos, que a maneira da professora

legitimar o próprio objeto de ensino e sua prática em sala de aula também funciona como

instrumento uma vez que baliza a sua atuação. Várias vezes, durante a aula, ela lembra aos

alunos a importância de se aprender aquele conteúdo, afinal, “é o que se pede em provas de

concursos públicos e vestibulares”. Com isso, a professora justifica não somente para os alunos,

mas perante ela mesma, a própria atuação e a subversão que realiza quanto ao material prescrito.

2.3.5. Atividades e tarefasNas aulas observadas as atividades e/ou tarefas pedidas pela professora também

funcionavam como regulação. Ela explicava a tarefa aos alunos; em seguida, explicava o

conteúdo da tarefa; por fim, pedia que eles a realizassem e depois vistava os cadernos/apostilas.

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As atividades pedidas em sala foram: a) atividades prescritas na “revista”; b) atividades

elaboradas a partir da “revista” e do objeto escolhido por ela (tópico gramatical/ortográfico); c)

atividades independentes (a professora trazia folhas à parte com atividades e tarefas).

Além disso, determinados gestos didáticos, como o par pergunta-resposta e a leitura de

textos, foram utilizados como atividade/ tarefa, uma vez que a professora atribuiu nota aos alunos

pela participação, ou seja, avaliou-os mediante esse procedimento. Ao mesmo tempo, essas

atividades adquiriram um caráter de regulação muito forte, pois serviram, nesses casos, apenas

para a obtenção de notas e não necessariamente, ao que podemos ver, para um

acompanhamento do processo de aprendizagem.

3. O trabalho docente e instrumento de ensino: submissão e resistência na prática didática

Como dissemos, o projeto didático da professora Mônica esteve organizado a partir da

relação entre objeto de ensino, gestos didáticos (dispositivos e regulação) e instrumentos de

ensino, prescrevendo sua prática em sala de aula. Quanto ao instrumento, utilizou centralmente

as apostilas “São Paulo Faz Escola”, com os quais estabeleceu uma relação de submissão –

baseava exercícios e aulas na apostila – e de resistência – introduzindo nas sequências propostas

suas próprias ideias e objetos didáticos que julgava mais importantes, legitimando-os em oposição

ao conteúdo da apostila.

Nesta terceira parte de nosso trabalho buscamos analisar a relação entre a prática didática

da professora Mônica e a escolha de seus instrumentos materiais e discursivos de trabalho, tendo

em vista as teorizações sobre trabalho docente (Schneuwly, 2009; Freitas, 2010). A partir disso,

percebemos uma orientação taylorista do trabalho docente pressuposto nas cartilhas elaboradas

para o projeto “São Paulo Faz Escola”, ao passo que o uso que a professora faz delas em sala de

aula se dá, em certos momentos, em oposição às prescrições do material, valendo-se de outros

elementos para configurar seu trabalho docente.

3.1. A concepção de trabalho docente nos cadernos do Projeto “São Paulo faz Escola”

Os cadernos do projeto “São Paulo Faz Escola” foram elaborados como subsídio à

Proposta Curricular do Estado para as escolas estaduais de ensino fundamental e médio. Após

uma primeira versão em 2008, houve uma reformulação em 2009 e as apostilas adquiriram sua

versão atual. Segundo lemos na apresentação do “Caderno do professor” (2009), que orienta os

docentes, sua reformulação se deu incluindo “sugestões e críticas, apresentadas durante a

primeira fase de implementação” e a proposta “não foi comunicada como um dogma ou aceite

sem restrição”, mas em geral “o material causou excelente impacto na Rede” (Caderno do

professor, p. 5).

Apesar de apresentarem-se como propostas, há uma imposição implícita desse material,

segundo relatos da professora Mônica e de outros docentes da escola com os quais tivemos

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contato. O conteúdo é cobrado em provas como a do Saresp19, o que, atrelado à política de bônus,

torna o material obrigatório caso os professores queiram ter direito ao bônus concedido às

melhores escolas. Com isso, há uma espécie de pressão institucional pelo uso do material. Além

disso, em nossas observações, mais de uma vez ouvimos a coordenadora pedagógica da escola

citando o uso dos cadernos e a importância da escola subir no ranking do IDESP (Índice de

Desenvolvimento da Educação de São Paulo).

O material em questão se trata de um conjunto de sequências didáticas, organizadas em

uma apostila e entregue aos alunos bimestralmente. Os Cadernos do Aluno contém o passo a

passo da sequência didática e as indicações precisas para a realização de exercícios, tarefas e

outras atividades.

Já o “Caderno do Professor” traz orientações e explicações a respeito da organização do

material, das sequências didáticas e das atividades propostas, para orientar os docentes em sua

aplicação. Embora se apresente com o objetivo de “apoiar os professores em suas práticas em

sala de aula” (p. 6), a prescrição do material vai além da pressão institucional. Ao longo do

caderno do professor, podemos identificar elementos que prescrevem claramente atitudes, ações,

gestos e palavras que o docente “deve” dizer ou fazer em sala, para lograr atingir os objetivos

propostos. Logo no início, ao introduzir os temas de cada bimestre, lemos:Sua aula começa muito antes de entrar em sala de aula. É importante ter lido e compreendido a Situação de Aprendizagem que se desenvolverá. Inicialmente, delimite o que será considerado em cada aula. Depois identifique quais as habilidades devem ser desenvolvidas. A seguir delimite o que efetivamente deseja que seus alunos aprendam após as atividades propostas. [...] Para isso, recorra ao quadro que inicia cada Situação de Aprendizagem. Procure compreender como os conteúdos selecionados podem contribuir para desenvolver de fato, as habilidades propostas (p. 8).

Nesse trecho, a linguagem utilizada (verbos no imperativo e diálogo direto com o

professor-interlocutor) dá a entender que o que se “sugere” é, na verdade, uma imposição, uma

ordem que tem por objetivo controlar a prática do professor antes de entrar em sala de aula (na

página 12 se diz: “leia todo este roteiro antes de iniciar suas aulas”). Ou seja, uma vez que se

incorpore os cadernos ao projeto didático autônomo do professor, este acaba por se tornar

“engessado” pelas prescrições acima citadas. Não nos parece somente “apoio” ao professor, já

que a reflexão que se “propõe” exige que o docente prepare a aula tendo em vista todo o passo a

passo já delimitado na apostila. Com isso, elabora-se, no lugar do professor, um planejamento

didático, restando ao docente apenas a função de executar o que já foi planejado de maneira

supostamente eficaz.

Não somente na preparação, mas durante as aulas, os gestos e dispositivos didáticos,

bem como os instrumentos discursivos que o professor deve utilizar, já vêm delimitados como

“indicação” no Caderno do Professor. Assim, encontramos coisas como: “Professor, não deixe de

perguntar aos alunos...” (p. 13), ou, antes de se propor a análise de um poema: “Assuma neste

19 Sigla de Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo, um dos pilares da política educacional estadual de São Paulo. Cf. www.educacao.sp.gov.br

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primeiro momento o maior grau possível de responsabilidade, na interpretação do poema. [...]

Como sugestão, poderá seguir o esquema a seguir” e segue-se uma série de frases prontas como

sugestão para que o professor presentifique/elementarize o objeto didático em sala de aula (p.

13). Ou seja, também os gestos e o corpo do professor em sala passam a ser controlados pelo

material do governo. Ao professor não cabe mais do que seguir as orientações, às vezes bem

taxativas, para que sua aula aconteça.

Antes de iniciar as indicações para o professor, há um quadro, na página 11 do mesmo

caderno, com o detalhamento de todo o planejamento da “Situação de Aprendizagem”. Percebe-

se que há a delimitação do tempo a ser utilizado para a realização da sequência: de 6 a 8 aulas.

Se pensamos que cada caderno tem 4 propostas de sequências, ao todo seriam 24 aulas, o que

significa 1 mês e meio de aula. Ou seja, quase o bimestre inteiro. Essa lógica impediria que o

professor pudesse utilizar as apostilas somente como um apoio, afinal, todo o bimestre queda-se

engessado por elas. Tal elemento mostra que, além do controle do corpo, também o tempo é

controlado e externo ao professor, que, como dissemos, não precisa planejar, apenas executar o

que é pedido.

Os elementos acima citados nos aproximam de uma concepção taylorista do trabalho

docente, onde importa mais que o professor siga as instruções já dadas do que pense a respeito

do seu trabalho e sobre qual é a melhor forma de levá-lo a cabo. Segundo Freitas (2010), surgida

no final do século XIX e começo do século XX, a doutrina da Administração Científica do Trabalho

(ACT) tinha, entre outras, a característica de aprofundar a divisão do trabalho, separando quem

planeja e quem executa cada ação e movimento nas fábricas. Taylor (2006; apud Freitas, 2010),

propõe que as instruções de trabalho dadas aos operários abandonem a tradicional forma oral da

cultura camponesa e sejam substituídas por outras, resultado de análises “científicas”, especialmente o estudo do tempo, realizadas pela direção da empresa, que é, para Taylor, quem deve orientar os trabalhadores a respeito da melhor maneira de executar sua tarefa. Assim, segundo o autor, há uma divisão equitativa do trabalho entre a gerência e os trabalhadores: a direção determina qual seria a melhor e mais rápida maneira de se realizar as atividades, enquanto que ao trabalhador cabe a sua execução. (Freitas, p. 56)

Além disso, a “cientifização de cada ato elementar do trabalhador” (Freitas, 2010, p. 59) faz

com que se elaborem mecanismos de controle do tempo de cada ação/tarefa e de disciplinamento

do corpo e dos movimentos corporais. Com isso, se espera que, nas fábricas, cada gesto do

trabalhador não seja desperdiçado e que se chegue a um padrão de comportamento que o faça

aproveitar da “melhor” maneira o tempo. O objetivo é que o trabalhador, já sem controle sobre o

processo produtivo (devido à divisão do trabalho), seja obediente e obedeça aos comandos de

forma automática, sendo, portanto, disciplinado. Citando Foucault (apud Freitas, 2006), a autora

afirma que o controle da atividade nos processos disciplinares também é exercido por meios da correlação entre o corpo e o gesto e da articulação corpo-objeto. Assim, os gestos devem estar em harmonia com o movimento corporal global e com o objeto que manipula. O poder codifica e instrumentaliza todos os passos da atividade por meio de prescrições explícitas. Com elas, realiza-se a utilização exaustiva do tempo, que

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é outro mecanismo citado pelo autor como integrante dos processos disciplinares.

Embora essas nossas considerações sejam mais um esboço sobre questões referentes ao

trabalho docente (e as ideias aqui expostas mereçam um aprofundamento maior), podemos

perceber que os Cadernos do Projeto “São Paulo faz Escola” reproduzem, de certa maneira,

conceitos e ideias relacionadas à ACT, uma vez que supõem uma separação entre o planejador e

o executor da tarefa, o controle do corpo através de ordens explícitas de disciplinamento (“o poder

codifica e instrumentaliza todos os passos da atividade por meio de prescrições explícitas”), bem

como o controle do tempo, cujo objetivo é sua “otimização”, ou seja, que se alcance o “melhor”

resultado possível no menor período de tempo que se possa. Tal afirmação se sustenta se

levamos em conta que Freitas (2010, p. 60), em seu trabalho, aponta uma incorporação, nos

últimos anos, de ideias tayloristas fora de seu lócus original de aplicação. Enquanto nas fábricas e

na indústria essas ideias são substituídas por outras, setores como o de serviços se veem

envoltos em práticas tayloristas, as quais também chegam à educação.

3.2. Resistência na submissão: a prática didática em sala como resposta às concepções tayloristas sobre o trabalho docente

Ao responder se o trabalho do professor é igual aos outros tipos de trabalho, Schneuwly

(2009) diz que “o objeto do trabalho docente são os processos psíquicos dos alunos; ou seja,

aquilo sobre o que o professor trabalha são os modos de pensar, de falar e de agir, que ele deve

transformar em função das finalidades definidas pelo sistema escolar.” (p. 3). Assim, poderíamos

supor que o trabalho docente seria uma “modalidade do trabalho em geral” com seus objetos e

instrumentos específicos, sendo estes “signos ou sistemas semióticos que agem sobre as funções

psíquicas com vistas a transformá-las.” (p. 3). Ou seja, há uma dimensão dialogal e interacional

inerente ao trabalho do professor.

Já a concepção taylorista, pensada para se aplicar ao trabalho fabril, aplicada à educação,

incorpora nesta uma visão mecanicista do trabalho, coisificando o objetivo do ensino e

desumanizando o trabalho docente. Ou seja, a aplicação de seus princípios à educação

representa uma violência para com todos os envolvidos no processo educacional.

No entanto, os pressupostos da ACT, mesmo aplicados à educação (Freitas, 2010) não

são suficientes para adestrar completamente corpos e espíritos. Sobretudo o trabalhador com um

mínimo de formação, pois ele é capaz de questionar seus pressupostos e agir de maneira a

subverter a lógica alienante que lhe é imposta. O professor, por exemplo, por ser um “agente de

transformações” (Schnewly, 2009) e definir seu trabalho pela relação dialógica com seu objeto e

com os instrumentos últimos de seu trabalho, a “transformação de modos de pensar, falar e agir” –

segundo Schnewly (2009), objetivo que não pode ser alcançado, mas apenas sugerido ao aluno

que, em último caso, é quem decide se aceita ou não essa transformação – possui uma

capacidade de resistência diante de imposições que desfiguram seu trabalho e retiram sua

capacidade crítica de pensar e agir com vistas a atingir seus objetivos. É o que verificamos quanto

à prática da professora Mônica em sala de aula. Mesmo apegando-se a ideias e ações mais

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tradicionais quanto ao ensino de Português, ela consegue resistir às prescrições do instrumento

didático adotado e imprimir suas ideias e seus gestos livres à prática didática em sala de aula.

3.2.1. Ressignificação do trabalho docente Ao teorizar sobre os instrumentos de trabalho do professor, Schnewly (2009) especifica

três categorias: os instrumentos constitutivos do ambiente escolar, os instrumentos de ordem

material e os de ordem discursiva, estes dois últimos participando diretamente da condução do

projeto didático, pois ajudam a presentificar e elementarizar o objeto de ensino, dando sentido ao

trabalho docente em sala de aula.

No caso da professora Mônica, sua prática, baseada no instrumento material (apostilas),

incorpora elementos discursivos que ressignificam seu trabalho (o valor social do objeto de ensino

escolhido, o tópico gramatical) e auxilia a presentificar/elementarizar o objeto em questão. Ou

seja, a relação entre instrumentos de ordem material e discursiva e o trabalho docente se dá, na

prática, como forma não apenas de balizar os objetivos da prática docente, mas também dar

sentido à escolha de um objeto de ensino específico.

A maneira como a professora constrói esse sentido em sua prática – o uso social do que

se aprende – se dá em oposição ao sentido do trabalho docente pressuposto nos cadernos “São

Paulo Faz Escola”, segundo explicitamos acima. Ela nos afirmou sua aversão aos cadernos pelo

fato de não trabalharem questões e tópicos gramaticais de maneira mais direta, justamente o que

ela considera relevante socialmente, além de pressuporem um professor “incompetente”, devido à

minúcia das orientações contidas neles. Nessa minúcias e na linguagem dos Cadernos, como

apontamos, é que identificamos elementos tayloristas, que supõem um professor-executor, a

quem cabe somente seguir a risca as regras e levar a cabo os gestos e instrumentos discursivos

prescritos, com o auxílio do instrumento material, a fim de transmitir aos alunos o saber legitimado

socialmente. Em resistência a essas prescrições é que percebemos a atuação da professora em

sala, na execução da sequência didática exposta neste trabalho. Devido a esse caráter prescritivo

do material em questão, independente de seu conteúdo, qualquer diálogo possível entre as

concepções de ensino da professora e outras mais atuais, quedam-se destinadas ao fracasso

desde o princípio.

Como maneira de subverter, de alguma forma, essas prescrições, uma das estratégias da

professora foi o de atribuir outros sentidos/objetivos às atividades da própria apostila. Em

determinada aula, pediu que os alunos fizessem o exercício que solicitava a eles que buscassem

no texto dado suas palavras-chave. A professora pede que, além disso, eles circulem

determinadas classes de palavras (adjetivos e pronomes e verbos), justamente seu objeto de

ensino naquele dia. Com isso, ela mescla seu projeto didático e seu objeto de ensino específico

com as propostas da apostila, estabelecendo uma relação criativa com o instrumento material.

Assim, ao abordar outros objetos, diferentes da apostila, a professora ressignifica seu

trabalho docente, fazendo dele uma atividade criativa, elaborada por ela mesma, com gestos

didáticos e atividades que ela cria segundo o contexto da turma, rompendo a lógica taylorista.

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Dentre esses gestos podemos citar os comentários jocosos e brincadeiras que faz com os alunos

enquanto desenvolve seu projeto didático. Em determinados momentos a professora se vale até

de piadas de duplo sentido para atrair a atenção dos alunos ao objeto em questão, algo

absolutamente não previsto pelas prescrições, nem do caderno, nem da escola. No entanto, com

isso, consegue, de alguma forma, dialogar com a turma e seu contexto, de maneira a que os

alunos se engajem na aula e dela participem. Há uma clara dimensão de resistência na prática da

professora que, apegando-se a um objeto tradicional de ensino, ainda assim, o faz de maneira

diferente, significando o seu trabalho em franca oposição a prescrições externas. Resistência que

é, senão somente às apostilas, mas às condições de trabalho a que está submetida.

Outro aspecto observado nos gestos da professora em sala é o fato de que os alunos, em

determinado momento, participam da elaboração dos gestos didáticos que presentificam e/ou

elementarizam o objeto de ensino. Em uma das aulas, ela pedia que os alunos elaborassem

frases para servir de exemplo na hora de explicar noções sobre morfologia e sintaxe verbal. Tal

gesto significa a inclusão dos alunos na elaboração de instrumentos de ordem discursiva que

servissem para conduzir a prática em sala de aula. O efeito de tal gesto foi um engajamento dos

alunos na aula e a criação de um clima descontraído que favoreceu o aprendizado. Disso resultou

que um aluno, o que depois seria expulso por entrar em conflito com a professora, ao término da

explicação, pegou o caderno e começou a escrever, como que inserido na proposta da professora

e motivado a realizar o exercício.

Novamente, a professora subverte o sentido da prática didática que se pressupõe do

Caderno “São Paulo Faz Escola”: orientado por concepções tayloristas, o professor é visto como

condutor-chefe da prática em sala, ao passo que o aluno é conduzido por ele, sendo levado a agir

conforme as prescrições do professor. Na atividade da professora Mônica, porém, o que ela faz é

trazer os alunos para a condição de cocondutores, pois, além de ouvirem as explicações e

responderem a comandos, eles também criam instrumentos discursivos que ajudam na

sistematização e internalização do objeto de ensino, na “transformação dos modos de falar,

pensar e agir” (Schneuwly, 2009). Ou seja, se em último caso, é o aluno que transformará seu

próprio modo de agir, pela interação e diálogo em sala, podemos dizer que essa interação e esse

diálogo de fato existiram e colaboraram de alguma maneira no processo de aprendizagem (apesar

de não ser possível a nós verificar o grau de sucesso das atividades no projeto global da

professora, o que poderia ser medido através da análise das atividades de regulação, as quais

não acompanhamos posteriormente).

Cria-se, portanto, em sala de aula, um espaço de liberdade, por meio de um diálogo

constante com o objeto material que baliza a ação em sala (apostila “São Paulo faz Escola”), mas

em franca oposição às suas prescrições. Tanto o trabalho do professor, quanto o papel dos alunos

são ressignificados em sala, ganhando uma dimensão mais dialógica e colaborativa. Por fim, o

objeto de ensino, escolhido para suprir uma falta dos Cadernos do governo, é aprendido mediante

gestos que favorecem a sua aquisição por parte dos alunos, como os comentários jocosos e a

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participação deles na elaboração desses gestos. Com isso, rompe-se o caráter prescritivo-

alienante de um trabalho fabril orientado à “otimização” do tempo pelo controle do corpo e o

descontrole em relação ao processo produtivo. Ora, a escola, não sendo uma fábrica, reivindica

seu caráter de lócus interacional por excelência, onde, como diz Schneuwly (2009), se realiza,

com base no diálogo e na negociação, a “transformação dos modos de pensar, falar e agir”.

Considerações FinaisDe acordo com o exposto acima, verificamos que a relação da professora Mônica com os

instrumentos materiais de trabalho docente impostos (ainda que implicitamente), se dá de forma a

caracterizar uma relação de resistência e submissão, de modo geral, uma relação criativa com o

instrumento de ensino. Por um lado, obrigada a utilizar o material e buscando dar sentido à sua

prática, a professora pretere os objetos de ensino tais quais expostos nas apostilas e elege

objetos de ensino que julga mais relevantes (tópicos gramaticais). Ao mesmo tempo, busca

romper as prescrições do material mediante uma prática livre em sala de aula que rompe

prescrições e normas, ora instituindo discursos, gestos e atividades totalmente alheios ao

material, ora adaptando atividades da apostila (criadas para outro fim) ao seu objeto de ensino,

ressignificando-as.

Além disso, é de se notar a resistência da professora frente à imposição do material e a

distância das concepções de ensino deste que, a nosso ver, ao trabalhar a questão gramatical a

partir de uma abordagem do gênero textual (ou seja, de forma mais contextualizada), condiz, ao

menos em parte, com o que prescrevem as atuais diretrizes educacionais, baseadas em estudos

mais recentes sobre o ensino de língua materna. No entanto, a professora prefere apegar-se a

uma abordagem tradicional da questão e demonstra claramente sua aversão ao que é dito na

apostila. Isso nos leva a pensar que, devido à imposição do material, o necessário e promissor

diálogo da professora, suas concepções mais tradicionais e outras que possam conduzi-la a

outras alternativas no ensino de língua materna, queda-se prejudicado e, até mesmo,

silenciado/impossibilitado. Como forma de resistir ao que é imposto, ela afirma sua identidade em

uma prática tradicional. Um política mais “afirmativa” por parte do governo do Estado, dando voz e

levando em conta o que diz o professor a cerca de suas condições de trabalho, atendendo suas

reivindicações, seria o caminho ideal para estabelecer esse diálogo necessário e pertinente, a fim

de se forjar uma educação mais condizente com nosso tempos.

Por fim, destacamos que as concepções tayloristas a respeito do trabalho do professor,

presentes nas apostilas “São Paulo Faz Escola”, revelam mais um traço da política educacional no

Estado de São Paulo, construída sobre o discurso do mérito, que não faz mais do que afirmar uma

suposta incapacidade dos docentes de lidar com seu trabalho em sala de aula. Ao contrário, o que

vimos neste trabalho indica que é o professor, dentro de suas possibilidades, o responsável por

buscar formas alternativas de trabalho em sala de aula, ainda que atrelados à uma visão

tradicional de ensino. Sem dúvida, uma mudança nessas políticas educacionais é necessária,

para que se possa forjar o diálogo a que nos referimos, este mesmo componente indissociável do

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trabalho do professor, da prática pedagógica e da educação em geral.

Referências bibliográficas FREITAS, Luciana Maria Almeida. Da fábrica à sala de aula: vozes e práticas tayloristas no trabalho do professor de espanhol em cursos livres de línguas. Tese (Doutorado em Letras)‒UFRJ, Rio de Janeiro, 2010. SÃO PAULO FAZ ESCOLA. Caderno do Professor, 2009. SCHNEWLY, B. Le travail enseignant. In: SCHNEUWLY, B; DOLZ, J (Orgs.). Des objets enseignés en classe de français - Le travail de l’enseignant sur la rédaction de texts argumentatifs et sur la subordonnée relative. Traduzido por Sandoval Nonato Gomes Santos. Rennes, FR: Press Universitaires de Rennes, 2009, p. 29-43. [uso restrito, p. 1-16]TAYLOR, F. W. Princípios de Administração Científica. Traduzido por A. V. Ramos. São Paulo: Atlas, 2006.

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A leitura compartilhada e o seminário como objetos privilegiados de ensino em turmas de 8ª série do Ensino Fundamental: algumas considerações sobre o ensino de

Português

José Bento Cardoso Vidal Neto

Introdução

O presente trabalho tem como objetivo analisar as práticas de ensino de Português

observadas ao longo do estágio realizado para a disciplina Metodologia I. No conjunto de

atividades propostas pela professora que acompanhamos durante o estágio, duas se mostraram

bastante importantes para ela: a submissão de praticamente todos os textos escritos que circulam

na sala à leitura compartilhada e a realização de seminários.

Tais práticas serão, pois, as escolhidas por nós para servir de objeto de análise no

presente artigo, uma vez que se mostraram extremamente importantes na organização do curso

dado pela professora.

Tentaremos aqui compreender os motivos e as convicções que levam a professora em

questão a adotar e valorar intensamente tais dispositivos didáticos. Além das observações feitas

ao longo das aulas, realizamos, no final do estágio, uma entrevista com a professora de

aproximadamente uma hora.

Para tal empreitada analítica, lançaremos mão dos aportes teóricos propostos Bakhtin

(2003), Schneuwly (2009) e Bentes (2009).

1. Sobre o contexto escolar

b) A escolaA escola em que realizamos estágio chama-se Escola Estadual Bandeiras20 e está

localizada no centro da cidade de Taboão da Serra, cidade da Grande São Paulo, que faz limite

com os bairros paulistanos de Campo Limpo e Butantã.

Em termos físicos, a escola possui dez salas de aula distribuídas em dois blocos térreos,

que se juntam ao terceiro bloco, o administrativo. Essas construções estão dispostas em um

grande espaço livre, bastante arborizado, cuidado e agradável, local este que é usado livremente

pelos alunos nos períodos de intervalo, troca de turnos ou nas aulas vagas. Em relação a esse

20 O nome da escola foi trocado por um fictício para assim manter o anonimato do local em que realizei o estágio.

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agradável espaço físico que a escola dispõe, cabe destacar a “construção” de um espaço ao ar

livre, chamado por eles de “Praça Estação Leitura”. Esse local foi idealizado a partir da concepção

de aluno que a escola definiu em seu último PPP (Plano Político Pedagógico), ou seja, o de

formar um aluno “leitor do mundo”. Tal praça é um local em frente a um dos prédios de salas de

aula e constitui-se por uma sequência de bancos de madeira formando um círculo. Como a escola

possui a Sala de Leitura/ Biblioteca em funcionamento constante (com duas funcionárias

exclusivas para essa função, acervo catalogado e aberto a empréstimo para toda a comunidade

escolar), é frequente ver alunos entrarem e saírem com seus livros dessa sala e irem ler na praça

de leitura ou mesmo em outros espaços da escola, como os bancos de cimento ou os bancos do

refeitório.

Finalmente, em termos físicos, a escola ainda possui um laboratório de informática, uma

quadra poliesportiva coberta e um anfiteatro para apresentações dos alunos.

Quanto ao perfil da comunidade escolar pode-se dizer que, de forma geral, a escola é

frequentada por um público com razoável condição socioeconômica. Essa escola possui uma

diretora muito comprometida com a unidade – efetiva lá há 10 anos – fazendo, então, com que

seja um colégio “bem falado pela comunidade”, e bastante procurado em relação à demanda por

vagas.

No que diz respeito aos níveis de ensino lá ofertados, há no período matutino e vespertino

apenas Ensino Fundamental II (salas de 5ª a 8ª série, igualmente ofertadas nos dois períodos).

No período noturno, a escola oferece turmas de Ensino Médio, mas apenas na modalidade de

EJA (Educação de Jovens e Adultos).

1.2. A linguagem no contexto escolar

Como já deixamos indicado no tópico anterior, podemos dizer que no Bandeiras – forma

pela qual o colégio é conhecido – há um contexto privilegiado para a circulação da linguagem,

uma vez que tal ação foi pensada coletivamente e proposta como ação pedagógica. Vejamos,

então, nos demais subitens, como isso ocorre no cotidiano da escola:

1.2.1. No espaço físico e na interação escolar

Diferentemente do que acontece em muitas escolas públicas, no Bandeiras há textos

circulando pela escola inteira.

Pensemos primeiro nas salas de aula. Houve uma opção por parte da escola em organizá-

las pelo sistema conhecido como “sala ambiente”. Na sala de Português em que tive acesso – a

das 8ªs séries – há cartazes feitos pelos alunos e afixados nas paredes sobre “linguagem não-

verbal”, “linguagem verbal” e “linguagem mista” e também sobre a “linguagem literária” e a

“linguagem não-literária”. Pelo que pude apurar com a professora por mim acompanhada, não

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foram seus alunos que realizaram tais cartazes, mas sim alunos do período da tarde.

Nos vários corredores da escola, há abundantes cartazes sobre as mais diversas

informações: divulgação das inscrições para o “Torneio Aberto de Xadrez de Taboão da Serra”, da

“Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas”, da “Olimpíada Brasileira de

Astronomia, Astronáutica e de Foguetes”, além dos tradicionais cartazes de cursos de inglês e

espanhol de escolas da redondeza, como CCAA, Wizard e Kumon. Também há cartazes

informando sobre os vestibulinhos das ETECs e a respeito da isenção de taxa de matrícula para o

vestibular da UNICAMP, além de cartazes sobre a valorização da cultura indígena por ocasião do

dia 19 de abril – Dia do Índio, e um cartaz dando informações sobre Tiradentes, justamente pelo

feriado de 21 de abril. Há também outra série de cartazes e informes produzidos pela própria

escola, como os horários das aulas, o horário de atendimentos aos pais, regimento disciplinar dos

alunos, entres outros, que formam um conjunto bem completo de informações e que garantem a

devida e ampla divulgação destes materiais rotineiramente enviados à escola. Infelizmente,

também é comum ver em várias escolas estaduais esses materiais indo simplesmente para o lixo,

deixando os alunos sem o devido acesso a essas informações que são de seu mais justo direito.

Por fim, em relação àquilo que é fixado nas paredes, chamou-nos a atenção positivamente

o fato de a escola ter enquadrado e posto ao lado da sala de leitura e do refeitório um grande

pôster com a “Declaração universal dos direitos da criança”, exposta em seus 10 itens. Também,

positivamente nos marcou o fato de neste mesmo espaço do refeitório haver uma pequena lousa,

onde a própria merendeira escreve com giz branco o cardápio do dia. Ao seu lado, há também

pequenos cartazes indicando o local para despejo dos “pratos”, “talheres” e “sobras” de comida da

merenda. Nesse caso, parece-nos que a linguagem foi usada com um fim bastante especial,

principalmente no caso da lousa escrita pela própria merendeira, que confere um ar de carinho e

preocupação com as crianças e adolescentes, além, claro, de ser funcional quanto ao

esclarecimento do que eles terão como opção de comida no dia. Notei que o período de merenda

transcorre tranquilamente, fazendo do espaço de refeição – mesas e bancos dispostos no

refeitório – um momento de farta e saudável interação entre os alunos. Em vários intervalos, pude

circular entre os alunos e notar o quanto se relacionavam neste momento, inclusive comigo,

perguntando quem eu era, onde trabalhava, porque estava ali e demais assuntos que vinham

“puxar” comigo.

Em relação aos demais funcionários da escola (coordenadora, inspetora, merendeira e

demais funcionários de apoio), percebemos haver uma constante e agradável interação entre eles

e os alunos (vi frequentemente conversas tranquilas, espontâneas e carinhosas entre eles). Aqui,

cabe salientar que a professora responsável pela sala de leitura da parte da manhã, além de dar

constante orientação a respeito dos livros, fornece ajuda nas pesquisas que os alunos têm de

realizar. Ela também promove sorteios com os mais assíduos leitores, como o feito por ocasião da

Páscoa, quando houve um sorteio de um ovo de Páscoa. Também expõe nas laterais das

estantes trabalhos feitos em cartazes pelos alunos e escolhidos pelos professores como sendo os

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mais bem feitos.

1.2.2. Na documentação escolar

Tivemos acesso ao PPP e nele pudemos ver qual é o peso e a articulação que a escola dá

e propõe para a língua e para as demais linguagens. O grande destaque para essa questão, a

nosso ver, é a seguinte proposição:Tendo sido priorizada a competência leitora e escritora – de “ler o mundo” por meio dos diferentes tipos de linguagem (escrita, áudio visual, matemática, musical científica...) –, o grupo optou por um trabalho coletivo tendo em vista os gêneros textuais como norteadores dos planos de ensino. Além do que, ficou acordado um procedimento de leitura como compromisso de todas as áreas com o letramento (competência leitora), qual seja: antes de ler qualquer tipo de texto o aluno deve se perguntar: para que vou ler este texto? E, portanto, como vou lê-lo? Com que estratégia de leitura? (PPP, da EE Bandeiras) [grifos nossos]

Em relação à documentação da disciplina de Português, tivemos acesso ao “Planejamento

anual” da professora que acompanhamos. Lá pudemos verificar o grande destaque dado à leitura

pela docente, principalmente à leitura de clássicos da literatura brasileira, como os por ela

elencados: O alienista, de Machado de Assis ou Senhora, de José de Alencar, no 1º semestre, e

Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida ou A hora da estrela, de

Clarice Lispector, no 2º semestre.

A professora propõe em seu planejamento uma ida ao teatro para assistirem a adaptações

de obras literárias. Indica, no 1º semestre, Dom casmurro, de Machado de Assis ou O cortiço, de

Aluísio de Azevedo e, no 2º semestre, Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio

de Almeida ou A cidade e as serras, de Eça de Queiroz.

Em seguida, a professora propõe o trabalho com dois gêneros diferentes – romance e

teatro – com o seguinte intuito. Vejamos: “As obras lidas deverão ser distintas das peças para

propiciar maior abrangência no contato com diferentes obras e autores” (planejamento da

professora).

2. Sobre o ensino de português

2.1. O estágio e a professora

Realizamos as 60 horas de estágio no período de 05/04/2011 a 14/06/2011, nas terças,

quartas e quintas-feiras, dias em que a professora tinha suas aulas com essas três oitavas séries.

No total, foram acompanhadas por volta de 75 aulas.

A professora que acompanhamos chama-se Cibele21 e tem 36 anos. Dá aulas no Estado

desde 2004, ano em que entrou via concurso público. Antes, no entanto, dava aulas em Pré-

21 Nome fictício.

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escola e em turmas de Alfabetização, já que fez o curso de Magistério, além de dar aulas de

Inglês em cursos de idioma. Este período remonta, segundo a professora, de 1992 até 2004, e foi

fragmentado até sua efetivação no Estado.

Em relação a sua formação acadêmica, Cibele cursou Letras – Português/Inglês, na

UniFIEO (Osasco/SP), de 2000 a 2003, fez Complementação em Pedagogia, na UNIBAN, em

2006 e, atualmente, cursa Pós-Graduação lato sensu em Metodologia de Ensino de Inglês,

ministrado pelo Allumini, por convênio com a Prefeitura Municipal de São Paulo, onde também dá

aulas, só que apenas de Inglês. Na Prefeitura, informa que ingressou também por concurso

público em 2010.

Quanto à dinâmica de interação com a professora, esta foi bastante tranquila, inclusive

com a realização de uma entrevista de uma hora, para aprofundamento das conclusões a respeito

do que foi observado durante o estágio. A professora sempre foi muito gentil. A interação com os

alunos também se deu de forma super harmoniosa, tanto durante as aulas quanto nos momentos

de intervalo. Durantes as aulas, quando a professora não estava dando aula, sempre me

perguntavam algo: se poderia ajudar com a lição, porque estava ali, o que faria depois do estágio,

sugestões para leitura (é uma das tarefas propostas pela escola – a leitura e o comentário em um

caderno intitulado “Diário de leitura”, de um a três livros por bimestre, a serem retirados na Sala

de leitura), etc.

2.2. O trabalho docente

2.2.1. Os objetos de ensino e as práticas de linguagem

Nossa observação ao longo do estágio nos mostrou que a professora Cibele privilegia

fortemente dois objetos de ensino: a leitura compartilhada pelos alunos de todos os textos que

circulam na sala, inclusive os enunciados dos exercícios do livro didático sobre tópicos de estudo

da língua e a realização de seminários.

Quando começamos o estágio, a classe estava lendo O Alienista, de Machado de Assis e,

de acordo com o planejamento, no segundo semestre, o mesmo processo de leitura aqui

apresentado seria feito com um outro clássico da literatura nacional.

A leitura era realizada alternadamente e em voz alta pelos alunos que tinham sua vez

definida pela professora. Percebemos que a quantidade de linhas ou de parágrafos lidos por cada

um se relacionava muito com a forma pela qual este jovem realizava sua leitura: se o fazia de

maneira clara, sem hesitações, em tom alto e sem erros prosódicos, o aluno permanecia com o

turno por mais tempo. Caso tivesse dificuldade nos itens anteriormente apontados, a professora

rapidamente promovia a troca de turno. De tempos em tempos – a cada parágrafo ou página – a

professora interrompia a leitura para fazer comentários ou esclarecimentos sobre o trecho lido. O

conteúdo de tais comentários era quase que exclusivamente sobre o enredo e o contexto histórico

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em que a obra foi escrita, em detrimento, então, de observações e explicações de ordem

linguística. A nosso ver, um trabalho completo e adequado com obras literárias deve contemplar

um desenvolvimento tanto de aspectos histórico-literários, quanto de aspectos linguísticos

marcantes do autor e da obra analisada.

Em relação às dúvidas de significado que os alunos iam apresentando ao longo da leitura

ocorreu algo a ser destacado. Ao longo da leitura, as dúvidas lexicais não eram sanadas – a

professora o fazia apenas quando um aluno muito insistia –, mas quando o leitor se enganava na

pronúncia de alguma palavra dificilmente escapava da correção da professora. Um exemplo disto

pôde ser visto quando uma aluna teve dificuldade em ler o termo “vesicatório” (aquilo que produz

vesículas) e quando finalmente conseguiu lê-lo corretamente deu uma pausa em sua leitura, como

que esperasse o significado ser dado pela professora, que se limitou a falar a próxima palavra do

texto: “Crispim”! Anteriormente, esta mesma aluna entoou uma interrogação em uma frase que

deveria ser exclamativa e foi imediatamente corrigida pela professora.

Tal postura mostra uma valoração formalista da professora em relação ao texto, já que é

de se esperar que um aluno que não saiba pronunciar direito uma palavra, muitas vezes

vocábulos realmente difíceis para seu nível de escolaridade, também não saiba seu respectivo

significado. Assim, poderíamos perguntar: qual aproveitamento um aluno obteria em aprender a

pronunciar uma palavra que ele não sabe o que significa?

No início de abril, quando começamos, as salas já estavam na metade do livro, mais ou

menos, e após os alunos terem terminado a leitura, iniciaram o processo de pesquisa para

elaborarem seus seminários. Os temas foram dados pela professora e eram assuntos

relacionados ao livro. São eles: 1- Sociopatia X Psicopatia, 2- Positivismo e outras teorias da

época (séc. XIX), 3 – Machado de Assis: vida e obra, 4 – Sigmund Freud, 5 – Loucuras e

tratamentos, 6 – Distúrbios mentais de hoje (neurológicos).

Depois de sorteados os temas entre os grupos, a professora passa a explicar como essa

atividade deverá ser feita: diz que o seminário será apresentado na frente da sala, que deverão

ser elaborados cartazes e que os alunos não devem se limitar a apenas imprimir coisas da

Internet. Em relação ao processo de pesquisa, ocorre algo curioso em uma das salas. A

professora seguia em sua explicação dizendo que o Google e a Wikipédia não são fontes de

pesquisa, que se deve sempre buscar informações em locais diferentes, indicando no mínimo

duas fontes. Perto de mim, no fundo da sala, um aluno diz em voz e tom moderados: “Então

indique as fontes de pesquisa”. Não sei se a professora ouviu, mas não respondeu. Tirando a

referência que fez ao site oficial de Machado de Assis e o da ABL, não houve maiores indicações

quanto a locais e formas adequadas para que os alunos pudessem buscar informações para a

pesquisa. Julgamos que esse momento e a própria atividade proposta seriam excelentes chances

de ensinar (ou dar início) como se realiza, de fato, um trabalho de pesquisa.

Outra orientação que faz é que os alunos devem entregar um trabalho escrito sobre o tema

do seminário. Neste momento, diz enfaticamente que “no seminário não se deve ler o trabalho

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escrito lá na frente, mas sim expor, explicar para os colegas aquilo que foi pesquisado”. Explica

também que se pode usar, no dia, uma “colinha” com os pontos principais da exposição, caso dê

“um branco na hora”.

Durante o período de estágio, presenciamos outro objeto ensinado que não os acima

apresentados. Depois de encerrada a leitura do livro e enquanto não se iniciava as atividades de

preparação para os seminários, a professora fez uso pela primeira vez do livro didático. A proposta

era estudar um tópico de análise linguística: origem das línguas e variação linguística entre o

Português do Brasil e o de Portugal.

Curiosamente, a professora lançou mão da mesma estratégia didática utilizada com O

alienista, ou seja, a submissão de absolutamente todos os textos presentes no livro (título, rodapé,

glossário, além dos textos principais) para leitura coletiva em voz alta. Também me causou

estranheza o fato de a professora responder os exercícios oralmente com os alunos, de forma

subsequente à leitura oral, não permitindo que os alunos refletissem primeiro individualmente a

respeito dos exercícios propostos. Outro ponto que me chamou atenção é o fato de a professora

não utilizar a lousa para nenhum tipo de registro de explicações ou mesmo de suporte ao que

estaria oralmente explicando. Na verdade, esses assuntos propostos pelo livro didático foram

trabalhados pela professora em tom de comentário, en passant.

Percebe-se que sua utilização foi proposta como um rápido “tampão” entre o fim de uma

atividade (leitura do livro) e o início da outra (seminário), não estando, portanto, pensada e

articulada dentro de uma sequência didática.

2.2.2. Os gestos e os instrumentos didáticos

De uma certa forma, o fato da professora propor apenas duas atividades centrais para um

semestre inteiro e também o fato de suas aulas seguirem basicamente o mesmo padrão faz com

que suas atitudes sejam relativamente previsíveis em relação às estratégias empregadas por ela

no desenvolvimento do conteúdo. Da mesma forma, ao pensarmos em uma explanação sobre

seus gestos didáticos, encontraremos a mesma constância em suas proposições didáticas.

Em função disso, se pensarmos nas definições de Schneuwly (2009) para os gestos, dois

deles são mais evidentes nas ações da professora: o da regulação e o da memória didática.

A regulação é evidente durante a leitura do Alienista, momento em que a professora

intervém nos erros prosódicos dos alunos. Também há regulação quando instrui e estabelece as

regras para a realização dos seminários. Outra situação em que há grande regulação da

professora é quando os grupos estão preparando seus trabalhos escritos em classe, momento em

que a professora passa de grupo em grupo e verifica o andamento da pesquisa e do texto que os

alunos já produziram para a entrega. Nessa ação, a professora corrige os erros de escrita e diz se

o que foi pesquisado até agora foi suficiente e adequado ou não.

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Já durante a apresentação dos seminários, praticamente não ocorre intervenção da

professora. A regulação ocorre no final de todas as apresentações da classe – que se estendem

por vários dias – fazendo com que os comentários da professora fiquem muitas vezes “perdidos

no tempo”, já que em alguns casos retroagiam a seminários apresentados há duas semanas.

Pensamos que a regulação seria mais eficaz, se a professora fizesse, caso fosse necessário,

suas intervenções durante as apresentações. De qualquer forma, deveria dar ao grupo um retorno

quanto aos seus acertos e erros logo após suas apresentações.

Em relação à memória didática, constantemente é usada pela professora. Aliás, como as

atividades em torno da leitura do Alienista ocuparam praticamente todo o primeiro semestre, toda

a sequencialidade necessária para esse “grande projeto didático” é garantida pelas constantes

falas da professora em relação ao que já se fez sobre o livro e o que ainda se fará. Durante a

leitura coletiva, por exemplo, a professora constantemente recordava algum ponto relativo ao

enredo lido em aulas anteriores e necessário para esclarecer alguma dúvida apresentada pelos

alunos naquele momento.

Também, ao longo da apresentação dos seminários, tanto alguns alunos como também a

professora, relacionavam os temas das apresentações ao O alienista. Mas, de qualquer forma,

precisamos aqui destacar que, em vários seminários, não houve nenhuma menção ao livro,

deixando, então, a apresentação descontextualizada do objetivo maior, qual seja: aprofundar os

aspectos lidos e levantados por Machado de Assis em sua obra. Nesse sentido, podemos

destacar que em projetos de grande extensão como este, há a necessidade de um grande esforço

para que sempre os objetivos centrais do trabalho sejam constantemente presentificados, para

que assim eles possam ser vistos e entendidos pelos alunos como pequenas partes de um grande

dispositivo didático proposto pela professora ou pela escola.

Finalmente, gostaríamos de trazer, ao presente trabalho, o conceito de institucionalização,

proposto por Sensevy (2001) e citado no texto de Schneuwly (2009). Vejamos:

A institucionalização é o processo pelo qual o professor mostra aos alunos que os conhecimentos que construíram se encontram já na cultura (de uma disciplina), e pelo qual os convida a se tornarem responsáveis de saber estes conhecimentos. (grifos nossos)

Ao pensarmos nesse conceito e também no projeto didático da professora Cibele,

podemos dizer que os alunos são convidados, em especial, a partilharem de dois objetos da

cultura acadêmico-escolar: a obra e a importância literária de Machado de Assis e também de

outros autores clássicos da literatura brasileira (nomes e obras já aqui indicados e presentes no

planejamento anual da professora) e o seminário como forma de estudo e interação com a classe.

Durante a entrevista que realizamos com a professora, ela justifica a grande importância

que dá aos seminários, em função do papel que eles tiveram em sua trajetória de estudante. Diz

que com eles “aprendeu muito em sua vida” e “crê que essa é uma ótima forma dos alunos

estudarem”, pois “só se pode apresentar algo a alguém, depois de ter se compreendido bem o

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objeto em questão”. Aqui, então, se nota claramente o quanto o gênero seminário está

institucionalizado no ensino brasileiro, pois, ao ouvir o relato da docente, percebe-se a

transmissão e a legitimação de uma prática didática de “uma geração para a outra”.

Pelo que observamos durante o estágio e pela articulação das aulas que acima

descrevemos, caracterizaremos, esquematicamente, os instrumentos didáticos – materiais e

discursivos – utilizados pela professora e, consequentemente, os não utilizados.

De ordem material, chamou-nos a atenção a total ausência de uso da lousa, mesmo que

para pequenos esquemas ou explicações. Também o livro didático praticamente não é usado (o

livro é “inaugurado” apenas em maio e rapidamente é deixado de lado) e as apostilas do governo

não são usadas pela professora, apesar de serem distribuídas aos alunos (no início de cada

bimestre, os monitores da sala entregam um kit, com as apostilas de todas as matérias, de

carteira em carteira).

Foram utilizados, então, do ponto de vista material, o livro O alienista (todos os alunos

tinham seu exemplar, pois tal necessidade foi informada aos pais em reunião, no início do ano

letivo) e, depois, quando começou o período dos seminários, os alunos utilizavam o material

pesquisado fora da escola (impressões tiradas da Internet sobre o tema em análise, cópias xerox,

anotações feitas de livros da biblioteca, além dos cartazes e dos trabalhos escritos que deveriam

ser entregues após a apresentação do grupo).

Em relação aos instrumentos de ordem discursiva, também chamou nossa atenção a

ausência total de exposição teórica por parte da professora. Suas falas estavam mais

direcionadas ao processo de mediar os turnos de leitura dos alunos e de, quando necessário,

tecer algum comentário a respeito do trecho lido. Se pensarmos no gênero aula expositiva, tal

qual se configurou na tradição escolar, não presenciamos nenhuma ocorrência. O par pergunta e

resposta, também muito comum nas práticas docentes, era utilizado pela professora, mas muito

pouco. Dava-se mais como uma pergunta retórica, pois, em vários momentos, houve respostas

dos alunos ou vontade de dialogar com a professora em função do estímulo gerado pela pergunta,

mas a docente não se mostrava muito aberta em franquear o turno para os alunos.

2.2.3. As atividades e as tarefas

As atividades propostas pela professora já foram descritas e comentadas nos tópicos

anteriores. Já em relação às tarefas, havia, durante o período de leitura do livro, indicação da

professora quanto à leitura dos capítulos. Sempre solicitava que os alunos lessem anteriormente o

capítulo objeto da aula em casa.

Quando terminaram a leitura do livro, a docente solicitou que os alunos fichassem o livro e

o analisassem observando alguns aspectos de análise literária, como os relacionados aos

elementos da narrativa – tempo, espaço, narrador –, além da identificação de recursos de estilo,

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como a metáfora e o eufemismo. Não presenciei a explicação desses assuntos pela professora,

talvez tenha feito tal operação no início do ano, antes do meu estágio, mas não perguntei a

nenhum aluno se ela havia explicado esses aspectos que solicitara, para que assim não

parecesse que estava questionando a atividade ou mesmo a professora.

Tal atividade não foi seguida de nenhum “visto”, no entanto, ao longo do estágio, percebi

que antes do início das aulas ou um pouco antes do final, a professora chamava alguns alunos

para terem seus cadernos vistados. Não consegui saber exatamente o que a professora verificava

nestes momentos, uma vez que eles se davam de forma não relacionada a uma tarefa específica.

Durante a entrevista que realizamos com a professora, ela comentou uma prática que

adota quando passa alguma redação para a classe: a correção individualizada em sala. Chama,

ao longo do período de tempo necessário (“às vezes leva uns 20 dias”, disse ela), “aluno por

aluno” em sua mesa e vai corrigindo e comentando a redação na frente de seu autor. Não

consegui visualizar (estava na última carteira da sala) se esse “visto” realizado pela professora

seguia a mesma lógica empregada na correção das redações...

Em relação às provas, a professora mostrou-se bastante desapegada desse instrumento.

Houve apenas uma, com testes sobre O alienista extraídos de provas de vestibular. Sobre tal

atividade, a professora disse para as salas que valeria “bem pouquinho” e que era “mais para que

eles soubessem a forma pela qual um livro, como o trabalhado em classe, poderia ser explorado

em uma prova de vestibular”.

3. Análise de um fenômeno-tema particular relativo ao trabalho docente descrito

Já antecipamos uma série de análises e comentários a respeito daquilo que mais nos

chamou atenção na prática docente da professora, ou seja, a importância dada por ela à leitura

compartilhada e ao seminário. Considerando tais antecipações, usaremos esta seção para

aprofundar alguns pontos relativos a essa opção da professora.

Em relação à leitura em voz alta, imagina-se que ao propor dentro da sala de aula uma

atividade como essa - principalmente se a considerarmos como uma prática altamente privilegiada

para a professora – haveria, certamente, por parte dela um especial trabalho com a questão da

oralidade. Com efeito, não foi o que observamos ao longo do estágio. Vejamos, então, alguns

aspectos que demonstram essa afirmação.

Não havia indisciplina nas salas, ouvindo-se, então, apenas o responsável pela leitura do

trecho (ou não, pois muitos a faziam em baixíssimo tom). Eram exatamente esses alunos com

dificuldades na elocução que tinham o turno rapidamente interrompido pela professora e passado

para outro que pudesse realizá-la com uma melhor performance.

Essa troca dos leitores com dificuldade indica que a leitura oral proposta pela professora

tinha como função apenas sociabilizar e garantir a leitura integral da obra por toda a sala, além de

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encaixar seus comentários a respeito dos excertos lidos. Com efeito, caso não fosse assim, seria

relevante um investimento direto nesses alunos, para que pudessem, assim, ter a chance de

enxergar onde estavam falhando em seu exercício oral.

Em nossa visão, já que todos os alunos possuíam o texto da obra e o ambiente era

favorável em relação à disciplina, a professora poderia ter realizado um aprofundamento maior em

relação a alguns aspectos da oralidade, como por exemplo, os suprassegmentais da fala.

Relativamente a tais aspectos, vale lembrar aqui as palavras de Bentes (2009, p. 3) a esse

respeito. Vejamos:

Ao longo de nossos primeiros anos de vida, desenvolvemos uma série de competências que dizem respeito, entre outras coisas, à manipulação da nossa voz e de nossa fala. A aquisição de saberes relacionados aos aspectos suprassegmentais da fala (pausas, entoação, qualidade da voz, ritmo e velocidade da fala) constitutivos das práticas e dos gêneros orais é feita junto com a aquisição da língua como sistema e como prática, já que a criança aprende, desde cedo, por exemplo, que a mudança de tom de voz da mãe e/ou do pai sinaliza diferenças nas atitudes deles para com ela.

Nas aulas analisadas, são exatamente esses aspectos suprassegmentais que poderiam

ser melhor trabalhados pela professora com os seus alunos, principalmente nos que tinham

maiores dificuldades na leitura em voz alta.

Na verdade, pelo que observamos, poderia se aproveitar a presença de um gênero não tão

comum aos alunos – leitura coletiva de um romance – para se desenvolver algo que se adquire no

início da aprendizagem da língua materna. O emprego adequado de pausas, entoação, qualidade

da voz, ritmo e velocidade da fala ao longo de uma leitura coletiva poderia ser proposta aos

moldes de uma leitura dramática, como o feito em teatro, só que usando O alienista. Tal estratégia

serviria, a nosso ver, para instrumentalizar os alunos a um manejo adequado do texto oral, além

de dar mais vida, pulsão, à leitura do texto machadiano.

Outro aspecto que merece um exame mais apurado é o fato de a professora não

esclarecer e tampouco se deter nas dúvidas de vocabulário geradas ao longo da leitura de O

Alienista.

Em uma de suas aulas, a professora discorreu sobre o que pensa em relação a esse

assunto. Aproveitou, na única aula em que usou o livro didático, um texto que orientava o aluno

quanto à postura que devia adotar em relação ao significado de palavras desconhecidas. O

excerto falava que se pode recorrer ao contexto para solucionar uma dúvida. Também dizia que se

pode recorrer ao colega ou professor e, finalmente, ao glossário e ao dicionário.

Nesse momento, a professora – recorrendo à memória didática dos alunos – lembra à sala

o processo vivenciado por eles ao longo da leitura do Alienista. Diz que, no início desse trabalho,

eles queriam ir toda a hora ao dicionário para sanar uma dúvida e ela, então, ensinara que essa

não era a forma mais adequada de se trabalhar o conhecimento das palavras, uma vez que, ainda

em sua explanação, essa constante ida ao dicionário faria com que eles criassem uma espécie de

“muleta”, querendo sempre consultá-lo. Finaliza sua retrospectiva reafirmando que o uso do

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contexto é sempre o mais adequado e é o que deve ser utilizado quando aparecerem dúvidas

lexicais.

É interessante notar que, na entrevista, a professora, ao falar sobre a interação com os

alunos, lembra-se daquilo que eles mesmos apontaram como sendo a principal dificuldade na

leitura do livro: justamente o vocabulário!

Ela segue, na entrevista, agora narrando o ponto que avaliou como a principal vantagem

do processo de leitura intermediado por ela. Em suas palavras: “O que ajudou [na compreensão

das palavras desconhecidas?] o professor ter lido em classe, porque ele vai ajudando quando a

coisa está crítica e também os próprios colegas vão ajudando também”.

Com efeito, não foi o que observamos durante as várias aulas em que se leu o livro

(acompanhei esse processo, aproximadamente, do meio para o final da obra!) Como já

descrevemos aqui, o que houve, de fato, foi uma recusa da professora em realizar também um

trabalho lexical com o livro estudado. Entre as várias passagens que descrevem essa “recusa” por

parte da professora – por nós registradas em um “caderno de campo” –, além da que já

analisamos em relação ao termo “vesicatórios”, descreveremos, a título de conclusão, mais uma.

Houve uma troca de leitores e, neste momento, uma aluna pergunta à professora o que era

“abnegado”. Como essa aluna estava sentada na primeira carteira, a professora respondeu com

um tom de voz muito baixo (eu, por exemplo, não ouvi) e, como ela flexionou o corpo para

responder, deu a resposta dirigida apenas a essa aluna. Os demais alunos certamente não

ouviram – e creio que não era uma dúvida apenas daquela aluna. Mesmo assim, não houve

preocupação da professora – tal qual ela disse em sua entrevista – de retomar e compartilhar, em

voz alta, essa dúvida com o restante da sala, chamando a atenção dos alunos para seu

significado. Algo como: “Pessoal, surgiu uma dúvida aqui nesta palavra. Ela significa isso. Olha só

ela no trecho lido, viram como ficou? Entenderam?”.

Não discordamos, em absoluto, da importância do contexto para o trabalho de leitura e

análise de textos. Também não achamos adequado que em uma leitura coletiva, a cada duas

linhas, o professor se detenha em definir e dissecar termo por termo. Porém, não podemos deixar

de considerar – como assim fizeram os próprios alunos, quando avaliaram suas maiores

dificuldades após a conclusão da leitura do Alienista, e como foi narrado pela própria professora

durante a entrevista – que a complexidade vocabular pode ser, sim, empecilho direto à

compreensão de um texto e que, nesses casos, o recurso ao contexto pouco ajuda na elucidação

das dúvidas ali geradas.

Considerações finais

A despeito dos óbices que acima tecemos, julgamos o trabalho realizado pela professora

como bastante positivo. Conforme ela própria destacou em sua entrevista, esta é a primeira vez

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que se faz, nesta escola, a leitura integral de um “clássico” da literatura nacional. Antes de a

escola conseguir que tais leituras fossem contempladas e planejadas em um âmbito geral “do

grupo dos professores” – fato que por si só já é extremamente louvável – os alunos liam apenas

fragmentos de textos literários presentes no livro didático, copiados na lousa ou trazidos em xerox.

Todas as ações pioneiras carecem de ajustes e revisões – até que possam encontrar sua

forma ideal – e assim cremos que será com o trabalho proposto pelo grupo de professores do

colégio Bandeiras. Também acreditamos que tais ajustes por parte da professora certamente

servirão para eliminar alguns “ruídos” pedagógicos que são, como pretendeu mostrar o presente

trabalho, minoritários em relação aos acertos.

Referências bibliográficas

BAKHTIN, M. (Volochinov, V. N.). Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 261 – 306.

BENTES, A. C. Linguagem oral no espaço escolar: rediscutindo o lugar das práticas e dos gêneros orais na escola. In: ROJO, Roxane; RANGEL, Egon. (Org.). Explorando o ensino: Língua Portuguesa. 1. ed. Brasília: Ministério da Educação, 2009. v. 1.

SCHNEUWLY, B. Le travail enseignant. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. (Orgs). Des objets enseignés en classe de français – Le travail de l’enseignant sur la rédaction de texts argumentatifs et sur la subordonnée relative. Rennes, FR: Presses Universitaires de Rennes, 2009, p. 29-43. Traduzido por Sandoval Nonato Gomes Santos. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2011 [Uso restrito].

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A Prática da Escrita no Ambiente Escolar

Beatriz Brito Carneiro

IntroduçãoEste trabalho tem o objetivo de compreender os métodos pelos quais a prática da escrita é

ensinada e realizada em um ambiente escolar com turmas do 1º ano do Ensino Médio de uma

instituição pública. Para tanto, foram observadas as aulas de Língua Portuguesa de uma

professora que leciona para quatro turmas da escola, no período vespertino.

Tomou-se como objeto de estudo uma das várias sequências didáticas utilizadas pela

docente, que culminou na produção de textos escritos pelos alunos. Essa sequência foi analisada

com base no modelo proposto por Dolz, Noverraz e Schneuwly, explicitando como nela são de-

senvolvidos os objetos de ensino, as práticas de linguagem e os gestos didáticos postos em práti-

ca pela professora e também refletidos no aprendizado dos alunos.

De modo a ilustrar estas práticas com maior consistência, são descritas, na primeira parte

deste artigo, as características da linguagem no ambiente escolar tanto em relação ao espaço físi-

co quanto na documentação e na interação entre os grupos da instituição.

Na segunda seção, são postos em voga as diversas práticas de ensino observadas em

sala de aula em geral, para que, na terceira parte, a prática da escrita possa ser analisada com

mais foco e objetividade.

1. Sobre o contexto escolar

1.1. A escola

O Estágio de Observação da matéria de Metodologia do Ensino do Português I foi realiza-

do em uma escola pública da zona sul de São Paulo, no bairro de Santo Amaro. A região não é re-

sidencial; ela concentra um intenso comércio e é bastante movimentada. A escolha dessa escola

foi motivada principalmente por eu ter concluído os dois últimos anos do Ensino Médio nesta insti-

tuição, nos anos de 2003 e 2004. A escola oferece aulas apenas para o Ensino Médio.

Assisti às aulas de uma professora de português que trabalha há muitos anos nesta escola

e já está prestes a aposentar-se. As aulas acompanhadas eram todas com turmas do primeiro

ano, compostas por alunos que vieram de diferentes escolas de Ensino Fundamental da zona sul

e de outras cidades adjacentes, tais como Diadema, Embu e Itapecerica da Serra. Eles têm em

média quatorze e quinze anos e, no geral, participavam das atividades propostas. Gostavam muito

de conversar entre eles, mas costumavam respeitar a autoridade da professora.

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A sala em que assisti às aulas de português era bastante espaçosa, uma das maiores sa-

las de aula da escola. Ela era composta por duas lousas que estavam na mesma parede, de fren-

te para a porta da sala. Esta dava acesso a um grande corredor margeado por outras tantas salas

e por uma biblioteca na sua extremidade oposta. As duas outras paredes da sala eram cobertas

inteiramente por janelas gradeadas. Elas tinham cortinas brancas e algumas pretas, remanescen-

tes da tentativa frustrada de instalar projetores de vídeo naquele lugar.

Era uma sala muito bem iluminada, tanto pelas lâmpadas quanto pela luz natural que en-

trava pelo grupo de quatro janelas extensas. Além da iluminação, os alunos não ficavam desam-

parados no calor com a ajuda de dois ventiladores de teto.

Apesar de toda a escola ser pintada de azul e branco, as paredes das salas de aula esta-

vam decoradas com um tom claro de bege do meio da parede para baixo e de branco na parte su-

perior.

A composição das carteiras era tradicional: as cadeiras e mesas brancas com detalhes em

verde estavam organizadas em cinco fileiras com uma média de oito carteiras em cada fileira. A

mesa da professora equivalia a duas mesas de alunos e ficava no canto esquerdo da sala, perto

de uma das lousas.

Havia um armário alto e cinza de duas portas em um dos cantos da sala, servindo para ar-

mazenar livros didáticos e dicionários que os alunos consultavam eventualmente. Ao lado do ar-

mário, encontravam-se alguns mapas enrolados, duas vassouras, além de uma pá e balde de lixo.

Normalmente, ao término das aulas, a professora organizava as carteiras e recolhia qualquer lixo

deixado pelos alunos.

1.2. A linguagem no contexto escolar

1.2.1. No espaço físico

O sistema de salas da escola é ambiente, no qual o professor mantém-se na mesma sala

durante todo o período e são os alunos que devem locomover-se pela escola na troca de aulas.

Desse modo, era de se esperar que a sala contivesse uma série de elementos que remetessem à

matéria sendo estudada ali. De acordo com o Dicionário Interativo da Educação Brasileira22, pro-

duzido pela Agência Educa Brasil, as salas ambiente têm o objetivo de estimular uma maior intera-

ção dos alunos com os recursos e materiais pedagógicos disponibilizados, com a finalidade de

ampliar suas relações com o que aprendem na escola. Além disso, os materiais expostos na sala

devem contribuir para ilustrar e enriquecer o conhecimento. O quadro-negro, portanto, não pode

ser o único recurso de aprendizado. Como estamos falando de uma sala ambiente de português,

esse conceito está estritamente relacionado à distribuição de textos na escola e às diferentes for-

mas de letramento lá estabelecidas. Desse modo, a sala ambiente de português apresentava al-22 Definição encontrada em: http://www.educabrasil.com.br/eb/dic/dicionario.asp?id=62. Acesso em: 03 abril 2011, às 17h54.

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guns cartazes – não muitos, talvez pelo fato de que os trabalhos dados às turmas ainda estavam

sendo concluídos pelos alunos.

Salas ambiente de português podem ter menor apelo imagético que uma sala de ciências e

seus microscópios ou uma sala de arte e seus trabalhos coloridos. Ainda sim, a sala de aula da

qual falamos encontrou algumas soluções interessantes para resolver tal problema. Acima de uma

das lousas havia oito cartazes do tamanho de folhas de sulfite com informações sobre palavras

que poderiam causar confusão quando redigidas: o uso de “por que” e seus derivados, quando

usar “tem” e “têm” e o verbo “haver”, bem como as diferenças entre os pares “mau/mal” e

“mais/mas”. Na parede oposta, havia três cartazes com trabalhos de alunos do segundo ano do

período noturno. Esses trabalhos eram redações que versavam sobre o aprendizado de jiu-jítsu

em escolas com alto índice de práticas de bullying. As redações estavam logo abaixo da palavra

“Parabéns”, provavelmente uma homenagem da professora àqueles que se saíram melhor na ati-

vidade. Um pouco mais acima das redações havia um aviso sobre um show de talentos que seria

realizado na escola nas semanas seguintes. Ele dizia: “Atenção, fiquem ligados nas notícias sobre

o show de talentos!!!”.

Como dito anteriormente, a sala não possuía uma enorme profusão de cartazes porque os

alunos ainda não tinham terminado seus trabalhos. As turmas de primeiro ano do período vesperti-

no que acompanhei com a professora de português estavam desenvolvendo um trabalho de foto-

jornalismo, no qual eles deveriam tirar uma foto de algo na escola e desenvolver uma matéria a

respeito. De acordo com a docente, uma vez que os trabalhos estivessem finalizados, eles tam-

bém seriam expostos em sala de aula.

É importante salientar que muitos dos textos distribuídos nos murais chamavam a atenção

para o evento de show de talentos que seria realizado na escola. Fora da sala de aula, outros car-

tazes com informações encontravam-se principalmente no pátio onde os alunos passavam o inter-

valo. Esses textos visavam dar aos alunos a maior quantidade de informações que a escola julga-

va ser interessante para eles, além de avisá-los sobre o que deveriam ou não fazer no ambiente

escolar.

Logo na entrada do pátio, havia um aviso alertando que o intervalo deveria ser passado so-

mente no pátio e não em outras dependências da escola. Em uma das paredes do pátio havia um

extenso mural com uma série de cartazes. O primeiro que se via da direita para esquerda era uma

matéria de jornal da Folhinha, suplemento do jornal Folha de S. Paulo dedicado aos jovens estu-

dantes. A matéria do dia 26 de março falava sobre a história da química e suas curiosidades. Ao

lado, havia uma folha de sulfite com informações digitadas sobre vagas para o Programa Apren-

diz, coordenado pelo CIEE. Abaixo deste estava outro cartaz com oportunidades aos alunos na

Associação Largo 13, que oferece cursos profissionalizantes em diversas áreas.

Era comum haver cartazes comprometidos em estabelecer uma ponte de comunicação en-

tre os professores, direção e alunos. Desse modo, via-se a seguir uma folha que listava os horári-

os das aulas de educação física no período noturno com o nome dos professores responsáveis e

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das turmas. À esquerda, encontrava-se uma cartolina branca com dizeres coloridos que convida-

vam todos a participarem de um grupo religioso organizado por alunos que faz reuniões na escola,

o “Cantinho de Jesus”. Os encontros acontecem pela manhã, todas as segundas e terças-feiras.

Esta escola de Ensino Médio tem grandes extensões e centenas de alunos em cada perío-

do. Assim, de modo a promover a integração entre alunos, corpo docente, direção e funcionários,

foi organizada a “Festa do Bem-vindo”, comemoração que seria realizada na escola durante o final

de semana. Um grande cartaz com valores de ingresso, local de vendas e site do evento estava

afixado no mural.

O próximo cartaz chamava os alunos para participarem de um grupo de estudos de teatro

em uma biblioteca próxima à escola. Viam-se depois dois grandes cartazes com informações de-

talhadas sobre o show de talentos, tais como formação de grupos, datas das inscrições, horários,

professores responsáveis, tipos de apresentação (canto, dança, poesia, imitação, mágica, inter-

pretação, etc.), além do aviso que regulava o conteúdo das apresentações: elas não poderiam ter

conteúdo preconceituoso e vulgar ou fazer apologia às drogas.

A partir daí, os textos se repetiam. Havia outro cartaz sobre a “Festa do Bem-vindo”, o con-

vite para as reuniões do “Cantinho de Jesus”, o Programa Aprendiz do CIEE, e os horários das au-

las de educação física. Por fim, víamos três cartazes que tomavam grande parte da última seção

do mural. Eles apresentavam os horários de aulas de todas as turmas dos primeiros, segundos e

terceiros anos nos três períodos do dia.

Qualquer um que entrasse no pátio também dava de cara com um grande cartaz que to-

mava a parte superior de uma das paredes. Nele, o grêmio estudantil convidava todos os alunos a

participarem do show de talentos e trazerem seus familiares e amigos para o evento.

Na sala de espera que antecede a direção e a sala dos professores encontravam-se qua-

dros com as fotos das turmas de formandos dos anos de 2006, 2008 e 2009. Do outro lado, um

cartaz com oferta de cursos técnicos gratuitos pelo SENAI bem como mais um aviso sobre as ins-

crições no show de talentos poderiam ser vistos.

A sala dos professores era outra profusão de práticas de letramentos. Estas, no entanto,

eram raramente acessadas pelos alunos. Os murais estavam cobertos por cartazes, avisos, horá-

rios, cartões de serviços e as mesas na sala tinham revistas, materiais e folhetos.

1.2.2. Na documentação e na interação escolar

Além dos textos circulando nos murais e paredes das salas de aula, havia, logicamente, as

atividades de leitura e escrita praticadas durante as aulas. A professora promovia várias oportuni-

dades para que os alunos escrevessem redações sobre temas diversos, tais como a importância

da água e o Dia Internacional da Mulher. Grande parte das atividades e dos exercícios era tirada

de livros e anotações da professora; os alunos não tinham livro didático. O governo disponibilizara

apostilas que, de acordo com sua intenção, deveriam cobrir todo o conteúdo do programa curricu-

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lar oferecido pela escola. No entanto, em comparação com os livros didáticos que normalmente

eram usados pelos alunos, estas apostilas são fracas em relação ao conteúdo e consistência. De

acordo com a professora, ela terminaria todas as atividades da apostila muito antes do término do

ano letivo. Ademais, nem todos os alunos conseguiram recebê-las. Consequentemente, os alunos

não possuíam material didático fixo durante as aulas. As atividades propostas pela professora ain-

da seguiam o Plano de Curso estabelecido nos documentos escolares, mas elas eram desenvolvi-

das com liberdade por ela.

Durante as primeiras semanas de estágio, dentre os cerca de cem alunos que têm aulas

naquela sala durante o horário vespertino, observei apenas quatro deles em contato com leituras

diferentes daquelas prescritas pela escola leituras estas que consistiam em revistas ou livros de

ficção. Os outros, em geral, acham diversão extra ouvindo música pelos seus fones de ouvido

com o celular ou conversando uns com os outros. A interatividade oral dos alunos era profícua e

eles estavam o tempo todo conversando sobre algo particular de suas vidas, comentando traba-

lhos e provas, fazendo perguntas à professora, dentre tantas outras interações. O intervalo era

também palco de várias trocas interativas entre eles, uma vez que tinham liberdade de locomoção

e relacionamento com os colegas. Muitos escutavam música, falavam ao celular, conversavam em

grupos ou praticavam esportes.

Nas semanas seguintes, consegui observar mais alunos lendo diversos livros, principal-

mente aqueles ligados aos best-sellers atuais (temas vampirescos e adolescentes) e também per-

cebi que muitos deles frequentavam a biblioteca da escola.

2. Sobre o ensino de Português

2.1. O estágio, a professora e o trabalho docente

O Estágio de Observação das aulas de português era centrado em turmas do primeiro ano

do Ensino Médio, e a professora que acompanhei lecionava apenas para os primeiros anos do pe-

ríodo vespertino. O estágio foi realizado semanalmente, às sextas-feiras, e contemplou caracterís-

ticas observadas em um total de quatro turmas: 1º L, 1º M, 1º N e 1º O. Dentre elas, a turma M ti-

nha aula dupla neste dia. É necessário ressaltar que os aspectos analisados considerarão as qua-

tro turmas de modo geral, privilegiando mais detidamente o trabalho docente em relação ao ensi-

no de português em todas elas.

A frequência apenas semanal na observação de aulas poderia não possibilitar uma análise

global de todos os elementos que promoveram a interação em sala de aula. No entanto, algumas

das lacunas – principalmente em relação aos resultados de trabalhos e desempenho dos alunos –

foram preenchidas por entrevistas feitas com a docente, que relatou as atividades desenvolvidas

nos outros dias da semana, e também pelos alunos, que relembraram informações de aulas ante-

riores para compor suas tarefas.

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Engana-se, todavia, quem pensa que as atividades observadas eram homogêneas, já que

pertencentes a apenas um dia da semana. O estilo da docente era deveras dinâmico e tarefas

bem diferentes eram realizadas no mesmo dia, tais como produção de texto, resolução de exercí-

cios e atividades em grupo. De fato, não havia ordem preestabelecida de conteúdos. A professora

relatou que costumava dividir os dias da semana para literatura, gramática e leitura, mas isso con-

fundia os alunos. Eles comumente voltavam no dia da aula de literatura com dúvidas sobre a aula

de gramática, o que comprometia o andamento da matéria. Assim, ela decidiu escolher o conteú-

do aleatoriamente.

No geral, as aulas eram bem tranquilas e os alunos não apresentavam casos graves de in-

disciplina. Muito disso deve-se ao respeito dos alunos à autoridade imposta pela professora em

sala de aula, pontuadas por vários momentos de descontração nas interações professora/alunos,

alunos/alunos.

2.2. Os objetos de ensino e as práticas de linguagem

Durante uma mesma aula, havia uma série de objetos de ensino abordados pela docente,

mas que seguiam uma certa hierarquia. O objeto principal (por exemplo, objeto discursivo explici-

tado pela interpretação de textos) era o tema central da aula, o que estava sendo exercitado no

momento. Enquanto os alunos faziam a tarefa central, a professora chamava outros alunos, um

por um, a fim de fornecer assessoria e cobrar as atividades a serem entregues, lições de casa

e/ou tarefas atrasadas de alunos faltantes. Essas atividades cobriam objetos de ensino diversos,

tais como exercícios (de natureza gramatical ou ortográfica), trabalhos extras (atividade de fotojor-

nalismo) e, principalmente, redações (de caráter discursivo).

Era muito comum que já tivesse conteúdo a ser copiado no quadro negro antes mesmo

que os alunos entrassem em sala de aula. Como o sistema de salas era ambiente, a docente cos-

tumava escrever na lousa apenas uma vez e o mesmo conteúdo servia para as turmas seguintes.

Certamente, havia algumas poucas variações nesse padrão, já que cada turma apresentava exi-

gências diferentes, mesmo recebendo o mesmo conteúdo. Mas, de modo geral, era possível dizer

que a presentificação da matéria era basicamente realizada por meio do que estava exposto na

lousa e, em algumas situações, não era muito explícita. Quando os alunos entravam na sala, os

mais aplicados já começavam a copiar o que estava no quadro negro, mesmo que a professora

não tivesse avisado oralmente sobre do que se tratava o conteúdo. Essa prática acontecia fre-

quentemente, principalmente quando a docente precisava de tempo para trabalhar outras ativida-

des individualmente com os alunos, enquanto a sala inteira copiava a matéria da lousa.

Durante as aulas acompanhadas, os objetos de ensino tiveram caráter ortográfico através

do ensino de composição e derivação de palavras. Por meio da análise linguística de palavras em

exercícios específicos (exercícios de derivação prefixal, sufixal e parassintética), os alunos pude-

ram aprofundar os conhecimentos adquiridos na aula anterior. Em outra ocasião, o objeto ortográ-

fico esteve presente pelo ensino de separação silábica, contagem de fonemas em palavras, diton-

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gos (crescentes e decrescentes), hiatos e dígrafos. Através de exercícios, os alunos deveriam

identificar a existência de um desses fenômenos linguísticos nas palavras listadas no quadro.

Do ponto de vista discursivo, os alunos trabalharam o texto da letra de música caipira

“Chico Mineiro”. Por meio da cópia do texto na lousa, os alunos puderam ter contato com uma va-

riante linguística diferente daquela que aprendem na escola. A intenção da docente era fazer com

que os alunos distinguissem as diferenças entre a norma culta da língua e a variante caipira de-

monstrada pela letra da música. Alguns alunos acharam curioso uma certa dificuldade que tiveram

ao copiar a letra, uma vez que tendiam a corrigir palavras como “úrtimo” e “vortemo” para o pa-

drão culto.

A atividade de fotojornalismo, no grupo dos objetos de ensino discursivos, era uma das ta-

refas que rondavam as interações na sala de aula. A professora constantemente cobrava a produ-

ção dos alunos que ora esqueciam-se de fazer o texto ou tirar a foto (as práticas de linguagem

desta atividade poderiam ser definidas como produção textual e fotográfica – apesar desta última

não ser muito comum em aulas de português). A professora adiou o prazo de entrega por umas

três vezes e, mesmo assim, alguns grupos não completaram os trabalhos.

Essa atividade de fotojornalismo foi tirada da apostila fornecida pelo Governo do Estado

para a escola. Regra geral, os alunos deveriam ter o conteúdo estabelecido por aquela apostila.

No entanto, não chegaram apostilas suficientes para todos os alunos e, de acordo com a profes-

sora, a apostila é fraca e deixa de abordar temas caros para o primeiro ano. Assim, os conteúdos

dados em sala de aula baseiam-se no currículo estabelecido parte pela escola, parte pelo gover-

no, com grande liberdade da professora em sua aplicação.

Por fim, outro objeto de ensino fornecido aos alunos, de natureza também discursiva, es-

tava relacionado com as diferenças entre denotação e conotação. A presentificação do conteúdo

foi feita pela apresentação da definição na lousa, em dois parágrafos. Enquanto os alunos copia-

vam esse conteúdo (sem prévia explicação oral da professora), a docente chamava os alunos

para corrigir as redações baseadas em um dos temas identificados na canção “Chico Mineiro” (te-

mais tais como morte, viagem, entre outros), estudada na semana anterior. Vê-se que, frequente-

mente, a professora procurava aprofundar os temas estudados anteriormente através da produção

escrita dos alunos. Enquanto corrigia as composições, um dos alunos perguntou como fazer os

exercícios sobre denotação e conotação. Ao clarificar a dúvida do aluno, a professora acabou ex-

plicando rapidamente a todos a matéria. Percebendo que os alunos pareciam satisfeitos com a ex-

planação, ela disse: “Então já sabem, né? Não precisa explicar ali”, apontado para o texto na lou-

sa. Nesse sentido, embora não tenha havido uma explicação formal com presentificação explícita

do conteúdo, não foi necessário que a professora tomasse grande parte da aula para explicar a

matéria.

A prática de linguagem relacionada à denotação e conotação desenvolveu-se por meio da

produção escrita dos alunos. Eles deveriam produzir frases de conteúdo denotativo ou conotativo

através de uma palavra, por exemplo: “Está chovendo muito hoje” e “Está chovendo menina na

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horta dele”. Apesar de parecer terem entendido a explicação da professora, alguns alunos apre-

sentaram dificuldades em criar o sentido conotativo das palavras.

Em relação à correção das redações, a docente reservava um tempo especial de atenção

para o aluno. Ela dava conselhos, dicas, fazia críticas e perguntava se o aluno ficara satisfeito

com a sua produção. Se havia algum problema mais sério, ela pedia que o aluno reescrevesse o

texto para que ele fosse entregue, se possível, ainda na mesma aula.

2.3. Os gestos e instrumentos didáticos

Os dispositivos didáticos empregados pela professora estavam constantemente ligados à

memória didática. Em grande parte das aulas, os alunos faziam exercícios relacionados a conteú-

dos aprendidos em aulas anteriores. A docente colocava os exercícios na lousa e avisava rapida-

mente que eles deviam ser feitos para praticar o que já tinham aprendido. Além disto, a memória

didática estava presente nos momentos em que a professora cobrava as tarefas, redações e tra-

balhos dados em outras aulas. A professora não deixava escapar uma atividade sequer e manti-

nha uma lista com os alunos que mostraram a tarefa e os que ainda deveriam fazê-las.

A regulação dava-se na correção dos exercícios passados no quadro negro. Ás vezes, ela

simplesmente colocava a correção na lousa e pedia que os alunos conferissem. Em outras situa-

ções, ela chamava a participação da sala para que eles lessem as perguntas de um dado exercí-

cio e discutissem as prováveis respostas. Essa prática era mais frequente com exercícios de inter-

pretação, como quando da discussão das variantes do texto “Chico Mineiro” e de termos de vari-

antes coloquiais do português. Nesta atividade, especialmente, os alunos se divertiram ao falar

sobre as variantes de grupos sociais próximos a sua realidade juvenil, tais como de roqueiros, fun-

queiros e pagodeiros. Como dito anteriormente, a regulação também acontecia durante os vários

momentos em que a professora corrigia as produções escritas dos alunos, individualmente.

A institucionalização dos conteúdos era feita discursivamente, por meio da explicação dos

conteúdos pela professora. Em geral, ela não era muito explícita, já que em muitos casos os alu-

nos estavam fazendo exercícios relacionados a conteúdos já dados em outras aulas. No entanto,

há que se enfatizar a ocorrência bem clara do gesto de institucionalização quando a professora

deu exercícios sobre ditongos, hiatos e dígrafos. Ela disse que eles faziam parte de uma importan-

te revisão para o Provão, avaliação organizada pela escola e que os alunos teriam na semana se-

guinte.

Os instrumentos didáticos de ordem material eram simples e tradicionais. A professora utili-

zava-se de giz (branco e colorido) e lousa. Os alunos não tinham material didático fixo, mas pode-

riam ter acesso a dicionários, livros e revistas guardados no armário da sala de aula.

2.4. Atividades e Tarefas

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Em geral, todas as atividades eram passadas na lousa pela professora. De modo a apro-

fundar o conhecimento, ela costumava passar atividades extraclasse para os alunos, tais como re-

dações e leituras.

Bimestralmente, a docente aplica uma atividade para promover a expansão e desenvolvi-

mento da leitura dos alunos. Ela oferece uma lista de livros dentre os quais eles devem escolher

pelo menos um para ler. Mais tarde, todos devem submeter-se à uma avaliação que irá checar a

leitura do livro escolhido.

Ela relatou que promove essa atividade para que os alunos entrem em contato com alguns

clássicos antes do segundo ano, quando já estarão estudando a literatura brasileira exigida pelo

vestibular. Entre os títulos oferecidos, temos “Robinson Crusoé”, “Dom Quixote”, “O Rei Arthur e

os Cavaleiros da Távola Redonda”, “A Ilíada”, “A Odisseia”, entre outros. As edições dessas obras

eram facilitadas, direcionadas ao público jovem.

A professora comentava que, nos últimos anos, os alunos têm lido muito pouco ou quase

não leem. Disse que uma de suas alunas justificou essa situação explicando que livros eram su-

pérfluos e não tinham mais nenhuma utilidade depois de lidos. Depois que a avaliação dessa ativi-

dade foi dada, a professora relatou que pelo menos dez alunos em cada turma não tinham lido ne-

nhum dos livros da lista, mesmo a lista de livros sendo divulgada um mês antes da data estabele-

cida para a prova.

3. A prática da escrita

Considerando todas as atividades e tarefas que a docente disponibilizava aos alunos, é

possível destacar que a prática da escrita verdadeiramente representa a síntese do projeto didáti-

co global das aulas de português. De fato, os objetos de ensino apresentados, sejam eles de natu-

reza discursiva, gramatical ou ortográfica, sempre acabavam sendo condensados, discutidos e

praticados nas criações escritas dos alunos. Entenderemos mais a frente como esse movimento

das matérias ensinadas acaba compondo o corpo geral das composições textuais.

A importância dada para a prática da escrita subsidia toda a organização das aulas. Como

dito acima, quando descrevemos como se dá a interação da professora com os alunos, ficou claro

que ela valorizava a discussão dos textos deles, cobrando de cada um não só a sua produção,

mas também os detalhes da composição. Para que isso ocorresse, ela precisava sacrificar alguns

procedimentos comuns em sala de aula, como a presentificação explícita da matéria. Desse

modo, o conteúdo do dia era colocado na lousa e os alunos o copiavam. Nesse meio tempo, ela

conseguia fazer a chamada, atender os alunos e analisar seus textos individualmente. No momen-

to da regulação das redações, ela corrigia aspectos mais estruturais como ortografia e pontuação,

e procurava saber os caminhos percorridos pelo aluno para desenvolver o texto, além de desco-

brir se ele gostou ou não do que escreveu. Sendo negativa a resposta ou se a composição apre-

sentava algum erro estrutural, ela pedia que o aluno reescrevesse o texto. Quando era necessário

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avaliar aspectos de caráter mais discursivo e dar conta do processo criativo dos alunos, ela reco-

lhia as redações e as corrigia mais tarde, fora do horário de aula.

Grande parte dos textos era desenvolvido em sala e, se o aluno não conseguia terminá-los

durante o período escolar, ele tinha a chance de trazer a composição pronta no dia seguinte. Não

podemos supor, obviamente, que todos os alunos cumpriam as tarefas de casa no tempo estabe-

lecido. Sabendo disso, a professora preferia que, na aula seguinte, o aluno terminasse primeiro a

composição e depois fizesse a cópia da matéria na lousa. Em uma das aulas, ela comentou sobre

o fato de os alunos normalmente acharem que copiar a matéria era o mesmo que cumprir com

toda a atividade proposta. Ela reiterou que queria ver as redações prontas antes que qualquer um

começasse matéria nova, uma vez que a criação textual deles era muito mais importante.

De modo a compensar a fraca presentificação da matéria, a professora dava assistência

aos alunos que, por ventura, não entendiam a atividade ou conteúdo passado na lousa. Era muito

raro ela se dirigir a toda a sala para explicar a matéria; era mais comum que explanasse detalhes

para aqueles alunos que realmente estavam interessados e empenhados na atividade. Isso não

significava que ela não arranjasse tempo para cobrar dos que conversavam, brincavam ou preferi-

am fazer qualquer outra atividade menos aquela proposta. A professora era bastante exigente e

enérgica com os alunos nesse sentido. Se ela percebia que a sala em geral não havia entendido

algum ponto, aí sim ela procurava fixar a atenção de todos na explicação.

É necessário relembrar que esse estágio foi realizado apenas durante às sextas-feiras

(com raras exceções em outros dias da semana) e grande parte da análise pauta-se pelas obser-

vações desse dia. Generalizações quanto à presentificação da matéria são feitas, portanto, com

base nessa prerrogativa.

A intermitência semanal da observação não impediu que fossem identificadas relações se-

quenciais na prática docente. Dolz, Noverraz e Schneuwly definem como sequência didática “um

conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero

textual oral ou escrito” (2004, p. 97). Em nosso caso, várias atividades foram apresentadas de

modo a contribuir para a produção final dos alunos em forma textual.

Esquema da Sequência Didática, por Dolz et alii (2004, p.98).

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Para ilustrar essa sequência, tomamos a aula em que a professora passou exercícios so-

bre composição e derivação de palavras, bem como as aulas de separação silábica, contagem de

fonemas, ditongos, hiatos e dígrafos dadas nas semanas seguintes. Através de exercícios, os alu-

nos foram capazes de refletir sobre a língua de modo analítico, trabalhando com as palavras fora

do contexto. Em um primeiro momento, eles aprenderam como compor as palavras e, a partir de-

las, formar outras derivadas. Depois, o foco esteve presente na desarticulação do léxico, procu-

rando entender como as palavras são compostas (sílabas e fonemas) e classificadas internamen-

te (ditongos, hiatos e dígrafos).

Na aula da semana seguinte, a professora utilizou um objeto mais discursivo para trabalhar

com os alunos. Colocou na lousa a letra da música “Chico Mineiro”23, repleta de características

textuais pertencentes à oralidade. Aqui, sua intenção não era somente discutir as variantes da lín-

gua portuguesa, mas também definir como os alunos deveriam ou não escrever suas redações.

Demonstrando que algumas formas eram adequadas para situações distintas, a professora presti-

giou a variante coloquial (que é largamente conhecida pelos alunos em suas interações fora da

escola), contemplou sua diversidade, mas exaltou a fundamental importância de se conhecer e

praticar a norma culta da língua portuguesa. Afinal, é por meio dela que os alunos terão acesso à

literatura e serão avaliados pela instituição escolar.

De fato, há necessidade de reconhecer a riqueza e diversidade da língua de modo a aco-

lher suas variadas manifestações. Rojo afirma que tal prática tornou-se mais frequente na escola

nos últimos cinquenta anos, principalmente por causa da universalização do acesso à educação

pública no Ensino Fundamental na década de 1990. Ela comenta que o “o ingresso de alunado e

de professorado das classes populares nas escolas públicas trouxe para os intramuros escolares

letramentos locais ou vernaculares antes desconhecidos e ainda hoje ignorados, como o rap e o

funk, por exemplo” (2009, p.106).

Assim, a professora explorou a fundo o conhecimento dos alunos sobre outras variantes, e

eles se divertiram bastante ao analisar termos comuns aos funqueiros, pagodeiros e rappers. No

entanto, é interessante observar a reação dos alunos quando tiveram que copiar o texto da lousa.

Muitos tendiam a copiar o texto corrigindo-o para a norma culta, revelando aí um fenômeno inte-

ressante no que se refere à sua escrita: quando devem escrever de acordo com a norma padrão,

cometem erros de ortografia; mas, quando devem redigir um texto em outra variante, são inclina-

dos a verterem-no para a variante de maior prestígio no ambiente escolar.

Percebe-se aqui que, ao ensinar a ortografia através da composição, derivação, separação

silábica, fonemas, hiatos e dígrafos e depois partir para a discussão de um texto em que essas

normas estão distorcidas, a professora pretendeu criar nos alunos um senso crítico sobre a língua

portuguesa. Tais módulos, trabalhados durante várias semanas, também tinham o objetivo de me-

lhorar a produção textual dos alunos. De fato, pensar nas diferentes possibilidades que a língua

23 Ver Anexo I.

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oferece pode proporcionar uma abertura maior para a criação textual deles e desenvolver novas

habilidades.

Para que a discussão sobre a canção “Chico Mineiro” ficasse mais profícua – de fato, essa

aula foi uma daquelas em que realmente houve discussão em grupo com os alunos sobre as dife-

rentes formas de falar no português brasileiro – a professora pediu que eles escrevessem uma

composição que versasse sobre algum dos temas encontrados na canção. Para tanto, ela instruiu

os alunos a lerem atentamente o texto mais uma vez e pensarem em como os temas existentes

na letra de música poderiam dar forma a um texto deles mesmos. O texto deveria ser escrito na

variante culta da língua e poderia estar em qualquer forma (poesia, prosa, diálogo, texto dramáti-

co, etc).

Com base nas instruções, alguns alunos falaram sobre o sertão, outros sobre viagem, en-

quanto outros preferiram escrever sobre a morte. De acordo com o relato da professora, a grande

parte dos textos estava escrita em prosa. Tive acesso a alguns deles e percebi que, no geral, os

alunos escreveram textos de uma página, com a presença de alguns diálogos e histórias bem di-

versificadas, em que misturavam situações que tinham vivido (viagens a lugares diferentes, expe-

riência com familiares ou amigos falecidos) com relatos inventados.

Se levarmos em consideração o esquema da sequência didática proposto por Dolz et alii e

mostrado acima, podemos adaptá-lo a nossa situação de estudo da seguinte maneira:

Esquema adaptado da Sequência Didática.

A questão digna de nota sobre a sequência acima descrita refere-se à apresentação da si-

tuação (presentificação) que não é muito explícita, como já pontuamos. Não é possível saber, ao

certo, se os alunos realmente alcançaram tal grau de criticidade sobre sua escrita, ou se estavam

cientes das intenções da professora ao disponibilizar esses módulos. Houve casos de alunos que

perguntaram sobre a quantidade de fonemas/letras existentes em algumas palavras da canção

“Chico Mineiro”, fazendo relação com a matéria que haviam aprendido na semana anterior. Ainda

sim, estas foram reações isoladas.

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Para fins de nossa análise sobre a escrita em sala de aula, as composições versando so-

bre os temas na canção “Chico Mineiro” são a produção final. No entanto, a sequência foi ainda

mais longe durante as semanas seguintes. Os alunos foram submetidos a um Provão organizado

pela escola e as questões de português estavam intimamente relacionadas aos conteúdos de or-

tografia ensinados, bem como à variação linguística. O texto do Provão que inspirou as questões

sobre dígrafos, fonemas e hiatos está em anexo.24

Esta sequência didática é apenas uma daquelas construídas pela professora durante as

aulas da semana, de modo a envolver os alunos em uma rede de referências ortográficas, grama-

ticais e discursivas que vão finalmente culminar em sua produção textual. É através de seus tex-

tos que ela consegue acompanhar o desempenho dos alunos e, talvez, fecundar dentro de alguns

deles o desejo de produzir mais textos, organizar os pensamentos e aproveitar as possibilidades

que a língua portuguesa pode oferecer.

Considerações finais

Ensinar a prática da escrita para uma geração nascida entre os fios de computadores e

fascinada por televisores não é uma tarefa fácil para os professores de português hoje em dia.

Para muitos alunos, as atividades de redação na escola são a única oportunidade em que real-

mente podem refletir sobre a linguagem escrita e produzir um texto seu, mesmo que o façam obri-

gados pelas regulações escolares.

No contexto escolar analisado, há uma preocupação pertinente de fazer com que os alu-

nos entendam os elementos que estruturam a língua portuguesa e que sejam capazes de de-

monstrar, eles mesmos, como compreendem a língua que falam e o mundo ao seu redor através

de seus textos.

As dificuldades existem e são reais, uma vez que muitos vêm de um Ensino Fundamental

falho, que não proporcionou as bases de conteúdo e práticas necessárias para o Ensino Médio,

fase em que eles devem preparar-se para o que querem ser quando adultos.

Os mecanismos utilizados pela docente, alcançando uma gama de referências variada,

têm como objetivo desenvolver o interesse pela escrita por jovens que, infelizmente, tendem a não

dar muito espaço para essa modalidade em seu dia a dia.

Apesar de entender a fundamental importância que as modalidades de leitura, gramática e

oralidade têm no aprendizado em geral – uma vez que elas estão entrelaçadas e são complemen-

tares – julgo ainda mais urgente o ensino da escrita na escola. Atividade que exige um forte grau

de análise e reflexão, ela é capaz de fazer com que os alunos estruturem melhor suas ideias e

consigam se expressar de um modo não muito comum entre os jovens hoje em dia.

ANEXO I

24 Ver Anexo II.

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Chico Mineiro

Fizemu a úrtima viagiFoi lá pru sertão de GoiaisFui eu i u Chicu MineruTamém foi u capataisViagemu u di ‘interupra chegá im Oru FinuAondi nóis passemu a noitinuma festa du DivinuA festa tava tão boaMais antis num tivesse iduo Chicu foi baliadupr’um homi discunhicidularguei di comprá boiadamataru u meu companheiruAcabô-si u som da violaacabô-si u Chicu MineruDipois daquela tragédiaFiquei mais aburreciduNum sabia da nossa amizadepois nóis dois éramus uniduQuanu vi seus documentumi cortô meu coraçãovim sabê qui u Chicu MineruEra meu ligítimu irmão.

In: LAJOLO, Marisa et alii. Caminhos da linguagem. São Paulo: Ática, 1978. p. 219.

ANEXO II

Causo de mineirim

Sapassado, era sessetembro, taveu na cozinha tomano uma picumel e cuzinhano um kidicarne cumastumate pra fazer uma macarronada cum galinhassada. Quascaí desusto quanduvi um barui vindedenduforno, parecenum tidiguerra. A receita mandopô midipipocadenda galinha prassá. O forno isquentô, o mistorô e o fiofó da galinhispludiu! Nossinhora! Fiquei branco quineim um lidileite. Foi um trem doidimais! Quascaí dendapia! Fiquei sem sabê dondecovim, proncovô, oncontô. Oiprocevê quelocura! Grazadeus ninguém semaxucô!

Disponível em: http://aulasdelinguaportuguesaeliteratura.blogspot.com/2011/03/atividade-1-

variacoes-linguisticas.html. Acesso em 23 maio 2011, às 14h10.

Referências bibliográficas

DOLZ, J.; NOVERRAZ, M.; SCHNEUWLY, B. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. (Orgs.). Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2008. p. 97-98.

ROJO, R.H.R. Letramentos(s) – Práticas de letramento em diferentes contextos. In: ______. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. p. 106.

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Dicionário Educativo de Educação Brasileira: Disponível em: http://www.educabrasil.com.br/eb/dic/dicionario.asp?id=62. Acesso em: 03 abr. 2011, às 17h54.

Texto “Causo de Minerim”: Disponível em: http://aulasdelinguaportuguesaeliteratura.blogspot.com/2011/03/atividade-1-variacoes-linguisticas.html. Acesso em: 23 maio 2011, às 14h10.

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Análise do ensino de português numa sequência didática sobre “artigos de opinião”25

Caroline Seixas

A partir das observações resultante de sessenta horas de estágio numa turma de segundo

ano do ensino médio, realizadas numa escola estadual paulista, esboçar-se-á neste texto a

descrição e análise de uma sequência didática proposta para propiciar aos alunos a apropriação

do gênero artigos de opinião, num contexto singular. Para tanto, consideraremos as teorias de

concepção da escola como uma agência do letramento, e propomos a análise da prática escolar

da perspectiva dos gestos e instrumentos do professor, considerando em especial os dados

colhidos acerca do âmbito do ensino.

1. Contexto de observação

Para o desenvolvimento dos conceitos e referências discutidos no curso de MELP I, serão

analisados dados colhidos da observação das aulas de língua portuguesa ministradas pelo

professor João26, numa escola estadual localizada num bairro periférico da cidade de Osasco, na

região metropolitana de São Paulo. O professor João é bacharel em letras pela Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo, com dupla habilitação em

francês e português. Licenciou-se portanto nesta Faculdade de Educação, tendo concluído a

licenciatura no ano 2000. Trabalha para a rede estadual de ensino desde 2003 no período

noturno, como professor efetivo de português, além de trabalhar como metalúrgico durante o dia

para complementar a baixa renda recebida do governo estadual paulista. Ao ser questionado

sobre seu interesse em se dedicar exclusivamente à docência, o professor declara que seria uma

grande conquista em sua vida, já que isso deseja há tempos, porém ainda não concretizou em

razão do baixo salário oferecido geralmente à carreira. Neste ano, João ministra todas as suas

aulas no período noturno (no qual foram feitas as observações) para todas as turmas do 2º ano do

ensino médio.

O colégio apresenta poucas práticas de letramento em seus corredores, pátio e até

mesmo dentro das salas de aula. Ao adentrar o corredor de acesso à sala dos professores,

secretaria, diretoria e vice-diretoria, notamos paredes lisas, limpas de cartazes ou qualquer

comunicação, com exceção de um grande quadro ao fundo do corredor, onde está desenhada a

professora e poeta Júlia Lopes, a mesma que cedeu seu nome para a escola.

O pátio onde os alunos ficam durante o intervalo das aulas, aguardam seu início ou

25 Artigo apresentado ao professor Dr. Sandoval Nonato Gomes-Santos como avaliação final do curso de Metodologia do Ensino de Português I no primeiro semestre de 2011.

26 Nome alterado para manutenção da discrição na análise.

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convivem após seu encerramento, também é quase livre de práticas de letramento. Observamos

em uma parede cartazes de trabalhos realizados em razão da semana da água, a saber dias 21 a

27 de março, com alguns desenhos e dizeres sobre o tema. Os cartazes trazem também recortes

de anúncios, contudo não são muito coloridos ou chamativos, podendo inclusive passar

desapercebidos. Ao lado destes, há dois cartazes sobre o dia internacional da mulher, 8 de março,

com algumas fotos de revista coladas e, em sua maior parte, rasgadas, de forma que não é

possível distinguir a imagem que ali estiveram. Observamos num deles colagens de matérias

publicadas sobre o tema da mulher, retiradas de jornais antigos.

Ao lado dos banheiros do pátio, os únicos aos quais os alunos têm acesso, há um cartaz

médio sobre um projeto da Prefeitura Municipal de Osasco que trata do biodiesel, além de dois

pequenos cartazes em folha de sulfite. No primeiro, vemos anúncios sobre a formatura das

oitavas séries e do terceiro ano do ensino médio programada para o fim do ano, e, no segundo,

sobre um curso de futsal, a ser ministrado aos sábados. No refeitório, onde alguns alunos e

professores comem um jantar servido pelo colégio, também não há qualquer cartaz.

Os corredores que dão acesso às salas de aulas, por sua vez, também são lisos. Não há

qualquer cartaz, anúncio ou aviso, apenas grandes números em cima das portas, designando a

divisão feita em relação às salas; não há, entretanto, qualquer referência no corredor sobre qual

turma assiste aula em cada sala. Os alunos, professores e funcionários não apresentam qualquer

problema em relação a isso, porém uma pessoa que não convive naquele ambiente, como um

licenciando estagiário por exemplo, não consegue saber qual sala corresponde a uma turma

específica, sem contar com a ajuda de alguém.

A sala dos professores possui as paredes mais preenchidas da escola. No início das

observações, havia dois cartazes da APEOESP27, um convocando os professores para a

assembleia da categoria e outro comemorativo do dia internacional da mulher. Além disso,

diversas folhas de sulfite que trazem toda a grade horária dos três períodos; um aviso escrito à

mão, a respeito da suspensão de um aluno, com o nome, a turma e o período de suspensão,

informando já terem os pais tomado ciência do caso.

No que tange às trocas interativas observadas no ambiente, nota-se que a relação entre

professores e alunos frequentemente se limita à sala de aula. Na sala dos professores ficam

concentrados, em geral, todos os mestres durante o período em que não estão lecionando. Nela,

observam-se dois computadores com acesso à internet, sempre ligados e à disposição dos

professores (que muitas vezes fazem uso); acima, na parede, há uma grande televisão na qual

são acompanhadas diariamente, de forma atenta, cenas das novelas mais conhecidas. Os

professores conversam muito acerca do comportamento dos alunos, classificado como ruim ou

péssimo, e no que se refere aos discursos mais observados, notam-se conceitos preconceituosos

e estigmatizantes, além de muitas vezes serem ouvidos xingamentos em relação a alguns alunos.

Felizmente, o professor João nestes momentos fica sentado, geralmente lendo ou fazendo alguma

27 Associação dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo.

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anotação, num banco à parte do grupo geral.

Os alunos, por sua vez, convivem geralmente na parte do pátio que lhes fica disponível.

Isto porque uma bonita parte da área de convivência, com árvores e simpáticos assentos, fica

trancada sob o argumento de ser um lugar com pouca luminosidade à noite. Geralmente, os

estudantes ouvem música em alto volume pelo celular, conversam em grupo e também pelo

celular. Poucas vezes são vistos alunos fazendo leitura fora da prática nas salas de aula. Estas

têm as carteiras dispostas de maneira tradicional, uma atrás da outra, em fileiras, de frente para a

lousa. Em cada turma estudam mais de quarenta alunos, o que ocasiona muita vez, a falta de um

lugar adequado para todos. Há alunos, nos dias mais cheios, que assistem aula numa cadeira

entre duas fileiras de carteiras. “Isso quando eles vêm, porque eles faltam muito”, completa o

professor João. Além da lousa de frente para os alunos, há em todas as salas uma lousa lateral,

aparentemente pouco usada pelos professores. Na maior parte das turmas, observamos nesta

lousa lateral nomes pichados e, em uma turma (2º A), ficou por alguns dias a seguinte frase: “E

que o mínimo que a gente faça seja, a cada momento, o melhor que afinal se conseguiu fazer. Lya

Luft”. Além dos dizeres das lousas, as paredes das salas possuem apenas um cartaz de regras de

conduta para o ensino fundamental. Não há nada que diga respeito exclusivamente aos alunos do

ensino médio.

Em relação à documentação escolar, observamos que o planejamento enviado aos órgãos

responsáveis faz referência direta à proposta oficial da Secretaria Estadual da Educação. O texto

da proposta fala em regras para a norma padrão da língua e também para os enunciados que

circulam no cotidiano, podendo ser classificada como uma postura normativa dos padrões para o

ensino da língua materna. O conceito de letramento aparece determinado pela variedade de

gêneros que uma pessoa conhece e é proposto diretamente para o chamado ensino fundamental

II (6º a 9º anos ou 5ª a 8ª séries). Para o ensino médio, observamos que a proposta de ensino é

dividida em três campos de estudo:

I) linguagem e sociedade: propõe uma análise externa da linguagem e literatura, focada em sua

dimensão social;

II) leitura e expressão escrita: trata das características dos gêneros a partir do lugar do receptor

na materialidade escrita. Os gêneros são definidos como acontecimentos sociais nos quais

interagem suas características marcantes, as quais são definidas como elementos sociais;

III) funcionamento da linguagem: recomenda a análise interna da língua e literatura como

realidades;

IV) produção e compreensão oral: neste ponto, o texto oficial não faz nenhuma recomendação

como proposta de trabalho, mas simplesmente apresenta uma paráfrase do nome do campo de

estudo.

A escola não tem por hábito trabalhar com projetos temáticos, o que não exclui a disciplina

de língua portuguesa e tampouco as demais. Em geral, os professores aplicam o conteúdo do

material didático oferecido pelo governo estadual, dividido em Caderno do Professor e Caderno do

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Aluno para cada disciplina, entretanto são livres para trazer materiais complementares, caso

julguem necessário. Nesse sentido, João aproveita as aulas de sexta-feira, em que as salas se

encontram habitualmente mais vazias (com cerca de 25% do total de alunos) para utilizar um

material encontrado, segundo ele, “jogado” na sala dos professores28. Trata-se de uma sequência

didática para o trabalho do gênero “artigos de opinião”, com diversos textos e questões e, com a

proposta de serem feitas pelos alunos a produção inicial e final do gênero. O material nesse caso

só está disponível na versão Caderno do Aluno, e foi desenvolvido por um programa de

aperfeiçoamento dos professores estaduais em 2008. Segundo João, é utilizado apenas às

sextas-feiras, já que não haveria material suficiente caso todos os alunos estivessem presentes, e

também porque, com a sala menos cheia, é possível desenvolver melhor o tema.

2. Descrição das práticas de ensino

2.1. A sequência de ensino para as sextas-feiras

A princípio, é preciso destacar que as horas de estágio destinadas a acompanhar o

trabalho do professor João em sala de aula estão sendo realizadas somente às sextas-feiras no

período noturno, em razão de limitações de horário para o cumprimento do estágio. Tal fato gerou

diversas implicações, considerando que a sexta-feira é dia atípico no colégio observado, assim

como em muitas escolas da rede pública do estado de São Paulo. Segundo me foi relatado, não

só pelo professor João, mas por outros colegas docentes, às sextas-feiras o quórum do alunado,

em especial no período noturno, é bastante pequeno, chegando ao extremo de compreender

apenas um aluno em sala, fato observado na conduta de alguns professores que, por sua vez,

também pouco comparecem para lecionar neste dia específico. Dessa forma, notei que na maioria

das sextas-feiras em que compareci à escola para a observação do estágio, o professor João

“adiantou” aulas, lecionando para duas turmas ao mesmo tempo, gesto orientado pela direção da

escola que frequentemente dispensa tanto professores quanto alunos antes do término da última

aula.

Em razão do contexto especial que vive o docente às sextas-feiras, foi elaborada uma

sequência de ensino específica para este dia: apropriação do gênero discursivo artigos de opinião.

O professor afirma que essas aulas são especiais porque as turmas são, em geral, bem

pequenas, compostas, principalmente, por alunos classificados como aplicados, embora o

professor saliente: “Também tem alguns ‘tranqueiras’ que vêm porque os pais obrigam”. A

sequência de ensino tem por objetivo promover a apropriação do gênero por esses alunos e só é

trabalhada às sextas-feiras, dia em que o professor João tem apenas uma aula em cada uma das

cinco turmas de ensino médio do colégio.

28 Cumpre salientar que neste artigo todas falas (em discurso indireto ou direto) foram reconstituídas, não se tratando portanto de transcrições.

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Como síntese da sequência de ensino do professor João, é possível afirmar que o docente

propõe a análise de diversos artigos de opinião, elencando oralmente alguns tópicos principais

desse tipo discursivo, aparentando ter por objetivo demonstrar aos alunos, por meio dos exemplos

apresentados, como deve ser feita uma argumentação.

2.2. O tratamento do objeto de ensino

Nas observações realizadas durante o estágio foram acompanhadas aulas que tratam de

um objeto de ensino de natureza discursiva, como outrora citado, os artigos de opinião. Trata-se

de um objeto a ensinar escolhido para ser trabalhado especialmente com os alunos que

costumam frequentar as aulas de sexta-feira que, segundo o professor João, são aulas mais

tranquilas. Com isso percebemos que o professor, que habitualmente enfrenta dificuldades para

exercer sua profissão em razão da desmotivação encontrada nos alunos, além da indisciplina e

das condições pouco favoráveis criadas pelo tratamento recebido das autoridades responsáveis

pela educação, acabou por criar uma sequência específica para ser trabalhada em dias atípicos.

Observamos que, num movimento altamente criativo, aproveitou-se o professor de uma situação a

princípio desfavorável (já que o alto índice de faltas é uma manifestação dos alunos para

expressar certo descaso para com a escola), e criou um objeto de ensino exclusivo num dia

específico, criando assim uma relação especial entre os alunos e esta sequência. Prova disso é a

fala de um aluno do 2º D logo após a entrada do professor João na sala: “Artigos de opinião!”, e o

professor responde: “Isso. Hoje é dia de artigos de opinião”. Podemos perceber que muitos alunos

demonstram alto interesse em analisar os textos e também que eles já vão para a aula na sexta-

feira sabendo que lidarão com aquele objeto de estudo específico, ao passo que outros

inevitavelmente permanecem apáticos, creio que ignorando as orientações do mestre de maneira

deliberada, numa espécie de resposta a um sistema escolar com o qual não parecem se

identificar.

Os artigos de opinião são trabalhados nas turmas do 2º ano com o objetivo de demonstrar

aos alunos como podem ser construídos textos com o intuito de argumentar a respeito de um

posicionamento qualquer sobre determinado tema. As aulas observadas, em geral, não tratam

questões de ordem gramatical ou ortográfica, ficando centradas exclusivamente na discussão a

respeito das características discursivas encontradas nos exemplos analisados. Os

desdobramentos dessa forma de tratar o objeto são bastante variados, razão pela qual

elencaremos apenas os principais: i) na maioria das aulas, o professor se esforça em fazer os

alunos compreenderem a questão controversa que está em debate através dos textos utilizados

como exemplo; ii) em diversos momentos, observa-se a intenção do professor em incentivar os

alunos a não tomarem posições extremistas quando expuserem sua opinião a respeito de algo; e

iii) aos poucos, com o desenrolar das aulas, o professor tem por objetivo levantar as principais

características do gênero, através das análises feitas com exemplos.

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2.3. As práticas de linguagem envolvidas na sequência

As aulas que trabalham a sequência de ensino dos artigos de opinião envolveram práticas

de linguagem pouco voltadas para a produção escrita ou de oralidade formal dos alunos. O que

observamos é que as aulas são direcionadas para a análise discursiva do gênero, na tentativa de

levar os alunos a se apropriarem das características observadas nos exemplos. A análise

linguística, em seu âmbito discursivo, tem portanto um papel primordial nesta sequência, tendo

como prática auxiliar a leitura-escuta e a produção oral-escrita. A sequência geralmente

desempenhada pelo professor João se inicia com a presentificação do objeto de ensino por meio

de anotação na lousa de alguns dizeres: i) data do dia em que está sendo ministrada a aula; ii)

ARTIGOS DE OPINIÃO (em letras maiúsculas e de tamanho grande); iii) instruções a respeito do

texto do dia, do tipo: APOSTILA PÁG. 14 “EU AMO ESTA CIDADE!” / PÁG. 21 “SOBREVIVER EM

SÃO PAULO”.

Exemplo da disposição geralmente encontrada na lousa.

01/04/11

ARTIGOS DE

OPINIÃO

APOSTILA PÁG. 14: “EU AMO

ESTA CIDADE”

PÁG. 21: “SOBREVIVER EM SÃO

PAULO”

Nota-se com isso que o professor João utiliza a lousa como um instrumento didático de

presentificação do objeto em questão, situando os alunos na sequência, por meio da data da aula

(que aproxima a atividade e a torna perceptivelmente atual) e por meio do título da sequência, que

efetivamente presentifica o objeto e cria uma regularidade que promove a aproximação dos alunos

com o gênero trabalhado. Como já dito, os próprios alunos já sabem que às sextas-feiras a aula

de português é destinada ao estudo dos artigos de opinião, o que evidencia uma proximidade com

o objeto de estudo, além de tornar perceptível a sequencialidade do projeto de ensino do

professor. Além disso, o professor também pontualiza os exemplos a serem utilizados, quando

escreve na lousa a página exata em que serão encontrados os textos da aula, além do título

destes, o que evita confusões por parte dos alunos mais dispersos, e mantém os textos

linguisticamente presentes por toda a explicação do dia, já que essas anotações feitas no início

são mantidas até o fim da aula.

Após a introdução feita por meio da escrita na lousa, o professor João instrui oralmente

seus alunos a respeito do que deve ser observado na leitura de cada texto em questão, momento

em que também entrega a cada aluno a apostila especial a respeito dos artigos de opinião. Esta

apostila não corresponde àquela atualmente produzida pela Secretaria Estadual de Educação,

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mas sim um material especial oriundo de um curso para formação continuada de professores,

numa parceria do governo estadual com outras entidades envolvidas com educação, e é

denominado SEQUÊNCIA DIDÁTICA – ARTIGOS DE OPINIÃO. O professor João relata que

encontrou este material “jogado” na sala dos professores, e resolveu utilizá-lo com suas turmas às

sextas-feiras, justamente por ser um dia em que as salas estão menos cheias, situação que

possibilita a entrega de uma apostila para cada aluno, o que num dia corriqueiro não seria

possível. Ao folhear o material, observamos que ele aparenta ter sido elaborado com mais cuidado

que a apostila regular fornecida pelo governo estadual (tradicionalmente conhecida por suas

lacunas), com base nas novas concepções a respeito do letramento.

Tendo entregado a cada aluno uma apostila, o professor aguarda que seja feita por eles

uma leitura individual dos textos propostos (aqueles cujos títulos e indicação de página estão na

lousa). Nesse momento, muita vez, a sala é deixada pelo docente para que este “adiante” aula em

outra turma, causando por vezes a dispersão dos alunos, que passam a conversar sobre outros

assuntos, ligar seus celulares e se desinteressar em relação aos textos. Ao retornar à sala, o

professor geralmente leva algum tempo para poder reconquistar a atenção de todos, além de por

vezes se desgastar com a questão do uso do celular em sala de aula. O professor chega a afirmar

que trará à turma do 2º A uma cópia da lei que proíbe o uso de celular em sala de aula e fará

todos os alunos assinarem. Percebemos com isso o reflexo da importância que nossa sociedade

atribui aos textos legais, pois, ao afirmar que fará com que os alunos assinem o texto da tal lei, o

professor diz com outras palavras que, após esta assinatura, não haverá mais argumento para o

uso do celular e que, caso isto ocorra, haverá penalidades. O texto da lei é desta forma associado

a uma punição mais severa do que os demais textos.

Quando volta a falar sobre o texto, o professor em geral não faz a leitura em voz alta e

tampouco solicita a algum aluno que a faça, supondo então que os alunos concluíram a leitura no

tempo que foi dado. O professor, a seguir, orienta os alunos a responderem algumas questões

interpretativas contidas na apostila, porém escrevendo as respostas nos cadernos, já que ao final

da aula o material é devolvido ao professor para que possa ser utilizado com outra turma, ou na

mesma turma na próxima semana. Este é um dos poucos momentos, nesta sequência, que os

alunos trabalham com a produção escrita, através das respostas dadas às questões. Em algumas

aulas da sequência, geralmente as compostas de pouquíssimos alunos, o professor sequer

solicita a produção escrita das respostas das questões da apostila; às vezes resolve as questões

oralmente, outras vezes, nem trata das questões, discutindo apenas alguns pontos que podem ser

elencados dos textos, num movimento já esperado de reformulação da sequência, de acordo com

o contexto de aplicação. O esforço do professor em fazer com que os alunos, ao menos, sintam

vontade de ler o texto proposto também, por vezes, ocupa boa parte da aula, através de

justificativas que visam a incentivar a leitura e a reflexão sobre temas cotidianos.

Observamos que o professor deixa os alunos lendo o texto ou respondendo as questões, a

princípio, sozinhos (momento em que retorna à turma na qual está “adiantando” aula ou resolve

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trâmites burocráticos, como a realização da chamada por exemplo), e depois vai passando pelas

carteiras tanto para realizar a regulação da atividade quanto para sanar eventuais dúvidas.

Num terceiro e último momento, o professor responde cada questão oralmente e elenca na

lousa alguns tópicos pertinentes a cada texto, como por exemplo o uso de expressões típicas da

manifestação oral da língua, uso de estrangeirismos, algum vocabulário ou conceito desconhecido

etc. Nessa parte, é trabalhada a questão controversa presente em cada artigo de opinião

analisado. A depender da participação dos alunos, a discussão pode ser mais aprofundada ou

mais superficial, pois como já dito alguns alunos aparentam se recusar a participar das atividades.

2.4. Gestos e instrumentos didáticos utilizados na sequência

Por se tratar de uma sequência de ensino especial, observamos que os gestos e

instrumentos didáticos utilizados pelo professor não variam muito de uma turma a outra. A maneira

como é feita a presentificação, por exemplo, é a mesma sempre, em todas as turmas e em todas

as aulas: o professor entra, cumprimenta os alunos e faz as anotações já citadas na lousa. É uma

maneira de situar os alunos na sequência e tornar o objeto de ensino não só presente, como

também próximo e visível para os estudantes. Como principal dispositivo didático utilizado pelo

professor João para trabalhar os conceitos principais da aula, observamos o uso do par pergunta-

resposta. Após a leitura dos textos utilizados como exemplo, o professor pouco a pouco vai

trazendo à tona os temas pertinentes ao gênero, fazendo perguntas específicas que levam os

alunos a responder o necessário para a condução da aula. Contudo, o professor não anota

nenhum dos conceitos na lousa, apenas os expõe oralmente e enumera o nome dos conceitos no

quadro, assim como no exemplo: “Neste texto temos a expressão ‘se o computador der pau...’,

esta expressão ‘der pau’ não é uma expressão normal, é uma expressão da linguagem informal

[escreve informal no quadro]”. Nota-se que o professor classifica a linguagem informal como uma

linguagem que não se aproxima da normalidade, embora seja sabido que é justamente a forma

mais frequentemente utilizada no cotidiano das pessoas. Além disso, na sequência observada, o

professor apenas elenca o título do conceito na lousa, explica oralmente o que é linguagem

informal, porém não presentifica o conceito através da escrita. Os principais gestos didáticos deste

professor nesta sequência portanto estão baseados na oralidade, e não na escrita.

A regulação é feita tanto pelo par pergunta-resposta quanto pelo gesto de passar pelas

carteiras e observar a resolução das questões, além de sanar as dúvidas presentes. Nas últimas

aulas observadas, foi proposto aos alunos, como atividade de recuperação paralela, a elaboração

de uma redação, em formato de artigo de opinião, sobre as cotas raciais nas universidades,

porém pouco demonstrou a efetiva apropriação do gênero, assunto sobre o qual discorreremos

mais adiante. A institucionalização, por sua vez, é feita oralmente nos momentos em que o

docente elenca algumas características do gênero textual com frases do tipo: “No artigo de

opinião a gente observa que o autor argumenta, defende a posição que ele tem sobre o tema”.

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Observamos que nos momentos em que ocorre a institucionalização do objeto de ensino, o

discurso do professor em geral se constrói de maneira monologal, por vezes até ignorando a

participação dos alunos.

A memória didática é um recurso bastante presente na sequência dos artigos de opinião, já

que é constituída de uma situação especial para um dia atípico. Ao adentrar a sala e fazer as

anotações da lousa o professor em geral diz: “Como hoje é sexta-feira e a gente tá trabalhando

artigo de opinião na sexta-feira, hoje a gente vai trabalhar com os seguintes textos...”. Isto cria

uma sequência com definições bem marcadas, aproximando de certa forma o objeto de estudo

com as atividades desenvolvidas em sala. Com relação às atividades a serem executadas no

futuro, o professor cita que falta uma quantidade determinada de textos para que aquela

sequência termine, sendo as aulas portanto estruturadas com base exclusivamente no material

específico para este objeto, sobre o qual já discorremos acima.

Os instrumentos didáticos utilizados são de ordem tanto material quanto discursiva, sendo

os materiais: lousa, giz e apostila; e os discursivos: exposição oral e par pergunta-resposta.

3. Análise da sequência didática e da apropriação do gênero artigos de opinião

A partir dos dados descritos anteriormente, propomos nesta seção uma análise centrada

nos gestos didáticos do mestre, no que diz respeito à condução da sequência didática planejada,

passando pelo tratamento das práticas de recepção e produção de textos orais e escritos.

A aula do professor João nesta sequência de ensino é praticamente toda feita oralmente.

Há poucas anotações na lousa, por exemplo, sendo esta utilizada principalmente como

instrumento de presentificação do objeto de ensino, como outrora já comentado. Em razão da

pouca quantidade de alunos, a maioria das aulas é configurada como uma conversa descontraída

a respeito do assunto tratado. Não é notada no professor uma preocupação acirrada em

institucionalizar o que se está discutindo, sua concentração está em extrair do texto analisado a

questão controversa a respeito do assunto tratado, não sendo feitas análises gramaticais,

tampouco ortográficas e, inclusive, não abrindo espaço para a participação efetiva dos alunos, no

sentido de expressarem sua opinião a respeito do tema tratado, considerando ser a sequência de

ensino focada em artigos de opinião. De acordo com Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 96) a

prática de ensino implica:Criar contextos de produção precisos, efetuar atividades ou exercícios múltiplos e variados: é isso que permitirá aos alunos apropriarem-se das noções, das técnicas e dos instrumentos necessários ao desenvolvimento de suas capacidades de expressão oral e escrita, em situações de comunicação diversas.

Não se trata, evidentemente, de tratar a atividade docente de maneira normativa, exigindo

do professor uma conduta específica predeterminada para que se consiga concretizar a

aprendizagem. É necessário considerar em toda análise da prática escolar, o contexto específico

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envolvido nesse ambiente, ponderando sempre com relação à diversidade, já que esta constitui

um pilar constitutivo da escola. Contudo, na sequência didática escolhida pelo professor João para

ser desenvolvida com seus alunos às sextas-feiras, o que está em questão é a apropriação de um

gênero textual que traz em sua essência a expressão de uma opinião, aquilo que se pensa a

respeito de algo ou de alguém. A apropriação deste gênero deve possibilitar, então, aos alunos: i)

identificar as opiniões e controvérsias presentes nos textos lidos; ii) criar e expressar suas

próprias opiniões e polêmicas, de maneira apropriada ao gênero; e iii) ser capazes de discorrer

metalinguisticamente acerca do gênero textual em questão. O que ocorre no entanto é que nas

aulas observadas, as atividades se limitam apenas à realização no descrito no item “i” acima.

O planejamento do professor para esta sequência, segundo relatado por ele, está

concentrado na proposta encontrada no material didático utilizado, que traz esquematicamente

diversas atividades que visam a conduzir a apropriação do gênero, passando não só pelo

reconhecimento das características inerentes aos artigos de opinião (que dizem respeito aos

tópicos discursivos tratados, em geral envolvendo temas polêmicos, e aos articuladores textuais

típicos), como também pela produção escrita do gênero, em duas etapas29. Encontramos no

material utilizado para essa sequência a proposta de duas produções escritas30, com intervalos

significativos entre elas para que sejam realizadas diversas atividades que viabilizem a exploração

do gênero. Conforme se observa na sequência proposta pelo material, a produção final do artigo

de opinião seria justamente realizada na última aula da sequência, proporcionando assim a

possibilidade de analisar a apropriação do gênero após todas as discussões feitas em torno deste.

Da mesma forma, é proposta por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 101-107) a produção

pelos alunos do gênero trabalhado em dois momentos: na primeira produção, seriam reveladas

(não somente para o professor, como também para os próprios alunos) as habilidades já

dominadas em relação ao gênero e ao tema escolhido para ser tratado, de maneira que possibilite

ao mestre definir precisamente em que ponto deve interferir. A última produção, mais madura e

trabalhada, teria caráter somativo, com a exposição dos elementos trabalhados em aula, que

também servem como critérios de avaliação.

A importância de se requerer dos alunos a produção em duas etapas está em conseguir

visualizar claramente a evolução da aprendizagem e, sobretudo, em deixar claro a eles quais são

os pontos que serão avaliados, de maneira que eles possam trabalhar sozinhos os pontos

elencados nas fases de elementarização, demonstrando assim dominar termos próprios a respeito

do estudo. Todavia, a prática docente observada envolveu apenas uma atividade de produção

escrita, num momento bastante preciso: a recuperação paralela do primeiro bimestre. Isso

significa, em primeiro lugar, que essa atividade não foi realizada por todos os alunos, mas tão

somente por aqueles que precisavam “recuperar” a nota obtida. Em segundo lugar, o professor

29 Ver anexo 1.30 Embora não esteja especificado precisamente na sequência esquemática reproduzida no anexo 1 que as

produções inicial e final devem ser feitas de maneira escrita, esta modalidade é constituinte do gênero textual trabalhado (encontrado muitas vezes em jornais e revistas), além de ser proposta explicitamente no material a realização escrita do gênero.

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procurou valorizar as aulas de sexta-feira que, como já dito, são pouco frequentadas e, portanto,

podemos afirmar que não eram todos os alunos que estavam efetivamente preparados para

produzir um artigo de opinião, já que as discussões feitas a respeito do gênero eram realizadas

em momentos atípicos, nos quais eram encontrados poucos alunos em sala de aula.

A questão que propunha a produção escrita como atividade de recuperação paralela segue

reproduzida exatamente como na lousa:

“As cotas nas universidades para negros e para alunos que

cursaram a escola pública são uma medida acertada.”

- usar conectivos

- tipos de argumentos: - autoridade

- princípios

- causa

- exemplificação

Com esta questão, o professor orientou os alunos a escreverem sua opinião a respeito do

tema (as cotas nas universidades para negros e alunos da rede pública), através de um artigo,

com o uso de conectivos que ligassem as frases com coesão e com argumentos variados. Por se

tratar de uma atividade fortemente avaliativa, não foi realizada discussão oral a respeito do tema.

Além disso, na sequência de ensino observada durante a realização do estágio, em nenhuma aula

se falou a respeito do uso de conectivos interligando frases com coesão, tampouco foi falado a

respeito dos tipos de argumentos citados na lousa, porém o assunto não parecia ser estranho aos

alunos, ou estes não demonstraram desconhecer os termos ali utilizados. Isso nos leva a concluir

que tais matérias foram tratadas em outras aulas que não as de sexta-feira. Entretanto, o

resultado da recuperação paralela foi pouco satisfatório. Os alunos não souberam escrever artigos

de opinião. Não souberam diferenciar a opinião escrita em formato de artigo de uma opinião

escrita em qualquer outro tipo de texto, o que nos leva a concluir que o gênero textual não foi

devidamente apropriado pelos alunos. A produção escrita era, na maior parte das vezes, iniciada

com frases do tipo “Na minha opinião as cotas deveriam...” ou “Sou a favor / contra as cotas nas

universidades porque...”, e com isso notamos o desconhecimento das características típicas do

artigo de opinião, que se constitui por elementos da linguagem mais formais. Os estudantes

simplesmente escreveram sua opinião sobre o assunto, sem modelar o texto de acordo com o

gênero solicitado.

Outro fator que talvez explique o insucesso da apropriação do gênero foi a atividade ter

sido realizada no meio da sequência e numa quarta-feira. Daí, concluímos que os alunos que a

realizaram não necessariamente são os mesmos que frequentam comumente as aulas da

sequência didática às sextas-feiras, estando então a sala de aula com bem mais alunos neste dia.

Essa atividade foi, portanto, utilizada como um instrumento de avaliação, uma atividade extra que

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permitiu aos alunos melhorarem possíveis notas baixas, e não como parte da sequência didática.

A importância da programabilidade de uma sequência didática está em unir todas as

considerações feitas em torno do objeto de ensino de maneira que se construa uma lógica que

envolva os estudos realizados. Entretanto, é evidente que nenhum planejamento dará conta das

participações exuberantes que ocorrem em sala de aula. Não se trata então de afirmar que o

professor João pecou ao desvencilhar-se da sequência inicialmente planejada de acordo com o

material, até porque deve ser o material didático um instrumento de auxílio ao trabalho docente e

não um instrumento engessante, pelo qual o professor está preso e não possa fugir. Porém a

análise da aplicação da sequência didática, mesmo que reformulada de acordo com os critérios do

próprio professor, não foi satisfatória em relação à produção escrita de seus alunos. Devido ao

fato de as aulas estarem concentradas em discussões orais, muitas vezes superficiais, a respeito

dos temas presentes nos textos do material, a produção escrita acabou por ter um lugar pequeno

na sequência e, sendo o objeto de ensino de natureza essencialmente escrita, resultou-se no

insucesso da apropriação do gênero.

No tocante à prática de recepção oral, não há muitas considerações a serem feitas pois, na

sequência observada, os alunos não tiveram contato com textos orais, talvez em razão de ser o

objeto de ensino de modalidade escrita. A prática de leitura por sua vez era frequente, tendo

ocorrido em todas as aulas observadas (com exceção do dia em que houve a atividade de

recuperação paralela). A leitura sempre foi feita de maneira individual e silenciosa, não tendo sido

observada nenhuma prática de leitura em voz alta, leitura compartilhada ou recitação. Nos

momentos de leitura, em geral no início da aula, após a distribuição dos cadernos específicos para

a sequência, o professor anotava na lousa a página a ser lida, às vezes anotava também os títulos

dos textos, e utilizava o momento ou para “adiantar” aula em outra turma, ou para fazer a

chamada. Os alunos em geral liam os textos, mesmo que contrariados, e o professor os

incentivava, tentando demonstrar que ali estava uma importante fonte de conhecimento para suas

vidas:

Aluno: — Ah, professor, você vai dar matéria, hoje é sexta-feira, deixa a gente

ficar conversando.

Prof.: — Você tem sorte de hoje ser sexta-feira, porque você vai ler este texto,

é interessante, e os seus amigos que não vieram não vão poder ler.

Dessa forma, aos poucos João conduzia a aula, mostrando aos seus alunos a importância

da leitura, na medida em que explicava a eles que, por meio dela, são adquiridos conhecimentos a

que não se tem acesso no cotidiano. Gestos como este demonstram como o trabalho docente

pressupõe uma concepção específica da escola. Podemos afirmar que, ao incentivar seus alunos

a pararem aquilo que fazem cotidianamente, isto é, conversarem entre si sobre assuntos diversos,

e se concentrarem numa atividade específica da prática escolar (a leitura de textos pré-

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selecionados para um fim específico), o professor demonstra possuir uma concepção da escola

como uma forma social que rompe com o cotidiano, proporcionando o alheamento à realidade,

porém incrementando-a, refinando seus modos de pensar, falar e fazer. Essa incrementação e

refinamento da vida só é possível porque o ambiente escolar produz uma ficcionalização da

prática social, sendo ela própria uma das formas sociais. O processo de ficcionalização é o que

possibilita pensar a vida, na medida em que somente após ficcionalizar algum aspecto do

cotidiano (as cotas nas universidades, por exemplo, como pedido na atividade de recuperação

paralela) é que se torna possível o estabelecimento de uma distância mínima necessária entre

aquele que pensa e aquilo de que se pensa, para que o pensador possa observar o objeto

pensado.

Outro exemplo que bem ilustra essa afirmação é uma fala do professor João para

incentivar seus alunos à realização da leitura de um artigo de opinião sobre o uso da pílula do dia

seguinte:

Prof.: — Vocês sabem o que é a pílula do dia seguinte?

Alunos: — Sim.

Prof.: — Pra que que ela serve?

Al1: — Pra não engravidar.

Prof.: — Mas ela pode ser usada sempre?

Al2: — Não, no máximo três vezes no ano.

Prof.: — Muito bem. Então agora nós vamos ler um texto que fala sobre os

riscos que uma pessoa que toma muito a pílula do dia seguinte tá correndo.

Leiam atentamente porque isso tá ligado diretamente com a vida de vocês.

Esta aula, uma das últimas da sequência, foi bastante produtiva. Os alunos demonstraram

interesse especial no assunto e participaram de maneira ativa tirando eventuais dúvidas. Após a

discussão sobre o texto, o professor afirma:

Prof. — Por isso que é importante as nossas aulas de sexta-feira, porque

vocês têm acesso a textos que normalmente vocês não leriam. Vocês

entrariam na internet pra pesquisar sobre esse assunto? [alguns alunos

respondem que “sim”, outros respondem que “não”] Então, mas neste texto

vocês tiveram informações importantes sobre algo que tem haver diretamente

com vocês, nós temos alguns casos de gravidez aqui na escola, isso é muito

sério, e não pode sair tomando a pílula do dia seguinte toda hora.

Dessa maneira, o professor vai incentivando seus alunos a comparecerem nas aulas de

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sexta e também explicando a importância da leitura para a aquisição de conhecimentos essenciais

à vida. A prática de leitura é tratada então sob uma abordagem de natureza discursiva, ligada ao

contexto mais amplo em que está inserida. O texto não é concebido simplesmente como um

produto de codificação, a ser decodificado por um leitor passivo, mas sim como um instrumento de

construção de sentido, e não apenas de extração deste. Ao relacionar a matéria da leitura com a

vida de seus alunos, o professor os incentiva a ligar o conhecimento ali presente com outros

conhecimentos já possuídos e, portanto, o estudo passa a fazer mais sentido, ser mais

interessante. Daí chegamos a uma característica especial do ensino do português como língua

materna, um papel duplo exercido pelo docente da área, à medida que refina o que é familiar ao

cotidiano dos alunos e apresenta a estes o que não lhes é familiar.

É possível afirmar que a prática de leitura na sequência observada envolve as três

capacidades inerentes a ela, a saber: i) a capacidade de decifrar o código ali presente

(capacidade esta aparentemente já dominada pelos alunos que não manifestavam dificuldades

com relação à leitura); ii) a capacidade de compreender os conteúdos trazidos pelo código

decifrado (capacidade esta desenvolvida em conjunto com professor e alunos, quando tentavam

associar ideias expostas em diferentes textos, compará-las, extrair dos artigos de opinião a

questão controversa ali presente, levantar hipóteses etc); e iii) a capacidade de interpretar (capacidade ligada à abordagem discursiva da prática, na tentativa de elencar as finalidades das

afirmações e a relação destas com o contexto no qual está inserida).

No que se refere à prática da oralidade, observamos que ela não é regulada no sentido de

ensinar os alunos a produzir com precisão textos orais. Isso porque o objeto de ensino se constitui

essencialmente da modalidade escrita da língua, razão pela qual as práticas orais ficaram restritas

às conversas entre professor e alunos sobre os temas encontrados nos textos. Essas conversas,

por serem conversas inseridas no ambiente escolar e portanto trazerem consigo características

inerentes a tal ambiente, não são constituídas como meras conversas, mas sim têm o fato de

serem conduzidas unilateralmente por uma das partes que conversa, isto é, não são conversas

cuja troca de turno conversacional se dá naturalmente, mas sim reguladas pelo professor;

tampouco são conversas cuja mudança no tópico discursivo ocorre sem qualquer ordem, sendo

também controlada pelo mestre. Não se trata então de analisar tais práticas como se analisaria,

por exemplo, uma conversa descontraída entre amigos numa mesa de bar, mas sim de direcionar

a análise “com base em um foco que busque tratar da interação verbal sem renunciar à discussão

da dimensão didática dela constitutiva31”. A forma escolar, portanto, modela tanto a fala do

professor e a condução que este dá à conversa, como também as falas dos alunos, sabendo

estes quando devem falar, o que falar, quando perguntar, quando responder e, inclusive, muitas

vezes, o que responder de acordo com o que o professor deseja ouvir.

Considerações Finais31 Cf. GOMES-SANTOS, S. N.; ALMEIDA, P. S. (2009, p. 133-149.

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A análise da prática de ensino de artigos de opinião para as turmas do 2º ano do ensino

médio pelo professor João, demonstra a importância da programabilidade e sequencialidade para

o êxito do trabalho docente, além de ser um forte exemplo da conduta esforçada de um mestre

contemporâneo no incentivo à leitura e reflexão de seus jovens alunos, numa sociedade cada dia

mais atrelada às questões mercadológicas, inclusive no ambiente escolar, o que acaba

geralmente por resultar em alunos pouco interessados nas atividades intelectuais (em especial

nas que dizem respeito à escola), além de professores desmotivados e irritadiços com sua

condição. As horas observadas nessa turma nos levam a acreditar ainda mais na possibilidade de

construção de uma escola brasileira pública de qualidade, e na condução do alunado à liberdade

de pensamento e de expressão.

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Referências bibliográficas

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DOLZ, J.; NOVERRAZ, M.; SCHNEUWLY, B. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. (Orgs). Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado das Letras, 2004.

GOMES-SANTOS, S. N.; ALMEIDA, P. S. Pergunta-resposta: como o par dialógico constrói uma aula na alfabetização. Revista brasileira de linguística aplicada, v. 9, n. 1, p. 133-149, Belo Horizonte: UFMG-FALE, 2009.

PROPOSTA curricular do Estado de São Paulo: Língua Portuguesa. Coord. Maria Inês Fini. São Paulo: SEE, 2008

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ANEXO 1Sequência didática proposta pelo material didático utilizado

• Reconhecendo um artigo de opinião

• Conteúdo do artigo de opinião: questões polêmicas

• Produção inicial de um artigo de opinião

• Contexto de produção de um artigo de opinião

• As vozes que circulam no artigo de opinião

• Organizadores textuais

• Tipos de argumentos

• Movimento argumentativo

• Explorando a estrutura do artigo de opinião

• Devolução dos primeiros artigos produzidos

• Aprofundando a discussão sobre o tema escolhido

• Reescrita do artigo de opinião

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A voz do alunoRodrigo Alvarez Brancaglioni

Introdução

A escola, como espaço de formação do ser humano – cidadão –, desempenha um papel

de importância vital à sociedade. Por lidar com o fator humano – imprevisível e variável – os

problemas que se passam dentro dos muros da escola não podem ser generalizados, assim como

as soluções para esses problemas não podem ser formatadas igualmente para todos os diferentes

contextos que os produzem. Importa, dessa forma, que cada escola seja capaz de refletir sobre

seu próprio exercício pedagógico a fim de verificar se está cumprindo, de fato, seu papel, e o que

pode fazer para melhorar sua atuação. O diálogo, expressão que materializa a língua na oralidade

ou na escrita, é um instrumento de fundamental importância nesse processo – e levar em

consideração a voz não apenas da direção, ou do professor, mas, sim, do aluno é um elemento

constitutivo essencial para essa tarefa.

Este artigo pretende apresentar o projeto “Adolescente sim, aluno-problema não”,

desenvolvido ao longo das atividades de estágio em conjunto com os alunos da oitava série e com

a professora de Português em resposta à realidade específica da escola-campo. Além disso, o

artigo apresenta uma proposta de articulação do projeto com a disciplina Língua Portuguesa –

especialmente no tocante à prática da comunicação oral e de gêneros textuais orais. Com isso,

dá-se a possibilidade ao aluno para que ele seja, na escola, elemento construtivo (e não apenas

constitutivo) das relações pedagógicas, e, na sociedade, cidadão que saiba empregar sua voz

positivamente. Sendo a educação o processo de fazer um indivíduo nascer para o mundo

(ARENDT, 2009) – isso é, o processo de inseri-lo nas tradições humanas e na vida em sociedade

– cabe à escola a responsabilidade de formar não apenas alunos que dominem determinados

conteúdos (o que é indiscutível), mas também, e com igual importância, cidadãos capazes de se

posicionar criticamente e agir em prol do bem comum. Essa responsabilidade torna-se

inevitavelmente ainda maior à medida que as famílias se tornam cada vez mais ausentes e

omissas no que diz respeito a seu papel educativo.

1. Sobre o contexto escolar

1.1. A escola

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A Escola Estadual Visconde de Congonhas do Campo, embora se encontre no bairro do

Tatuapé, tem a maior parte de seus alunos provenientes de regiões distantes da zona leste de

São Paulo, como Cidade Tiradentes e Itaquera, dentre outros bairros.

Funcionando em três turnos, a escola atende alunos que se encontram nos anos escolares

referentes ao ciclo II do Ensino Fundamental (período matutino e vespertino), bem como jovens e

adultos matriculados em EJA, referente ao Ensino Médio. Em 2009, foram 911 matrículas no

Ensino Fundamental e 370 na Educação de Jovens e Adultos (segundo dados do Ministério da

Educação disponíveis no Portal INEP – Data Escola Brasil).

O prédio é antigo, mas bem conservado, localizado muito próximo à estação de metrô

Tatuapé. Embora a escola não disponha de um espaço muito grande, abriga sala de computação

(com computadores antigos, em número reduzido), sala de vídeo, sala dos professores (pequena,

para a quantidade de docentes), duas quadras esportivas e um pátio com mesas para recreio. As

salas de aula acomodam a contento o número de alunos atendidos pela escola.

1.2. Os alunos

As oitavas séries observadas durante o estágio apresentavam, de maneira geral, o mesmo

problema (ainda que em graus diferentes): grande indisciplina e descompromisso generalizado. O

baixo aproveitamento das turmas em avaliações internas (e externas, como o Saresp) é um

reflexo dessa situação. A realidade específica de cada turma faz com que os problemas adquiram

ainda outros graus de complexidade, como a presença de alunos com necessidades educacionais

especiais – sendo que a escola não foi capacitada para lidar verdadeiramente com situações

desse tipo.

1.3. A professoraA professora L.32 leciona Português e Leitura (para algumas turmas, apenas Português;

para outras, apenas Leitura; para outras ainda, ambas). Ela mostrou-se preocupada em oferecer

uma experiência real de estágio para possibilitar que o aluno-estagiário conhecesse a realidade

da escola “como ela é”. Com mais de dez anos de prática docente, ela lamenta que, em seu

próprio estágio, não tenha tido essa oportunidade, uma vez que foi obrigada, pelas circunstâncias,

a cumprir suas horas de estágio com um docente que não contribuiu em nada para sua formação.

Ainda que descontente com muitos aspectos da profissão – como o sucateamento da

educação empreendido pelo governo e a dificuldade de ser professora em uma época de famílias

desestruturadas, cujos filhos se mostram cada vez mais alienados –, a professora L. se mostrou

inconformada com a situação dos alunos. De fato, notou-se que a professora e a equipe

pedagógica da escola buscam sempre aprimorar suas ações e não se acomodam frente às

dificuldades, nem desistem de seu compromisso com a educação.

32 Optou-se por ocultar a identidade da professora. A letra aqui empregada não corresponde ao nome dela.

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2. Descrição geral das práticas de ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa

O estágio foi cumprido ao longo de quase três meses, de março a junho de 2010, nos

quais foi possível acompanhar 60 aulas da professora L., no período matutino, para cinco turmas

de oitava série (nona série). Nessas 60 aulas, foi possível inclusive interagir mais diretamente com

os alunos, e mesmo realizar regência de aula em alguns momentos, com o aval da docente.

A postura da professora frente aos alunos sempre foi consideravelmente flexível,

adequando-se a cada situação, alternando momentos mais descontraídos com momentos em que

era preciso adotar um comportamento mais rígido em relação a eles. De maneira geral, foi

observado que os alunos respeitam a professora, mas ela se mostra inconformada com a

“camuflagem”, como ela diz, de certos adolescentes: alunos relativamente quietos nas aulas dela,

mas extremamente descompromissados e bagunceiros nas aulas de outros colegas professores.

Observou-se também que, em alguns momentos, a professora era procurada por alunas que

buscavam conselhos, ou oportunidades de conversar – coisas que não encontravam no próprio

lar.

A dinâmica de interação desenvolvida com a professora foi muito positiva, pois ela sempre

se mostrou interessada em proporcionar uma boa experiência de estágio, explicando o

funcionamento da escola, contextualizando cada turma e proporcionando oportunidades de

interação com os alunos. Os alunos, de maneira geral, tanto na presença da professora L. quanto

em sua ausência, foram respeitosos com o aluno-estagiário e, em alguns casos, passaram a

buscar seu auxílio para a realização das tarefas.

No tocante aos instrumentos didáticos empregados, foi observada a alternância entre o

Caderno do Aluno, fornecido pelo governo estadual, e materiais complementares, principalmente

nas aulas de leitura. Nessas ocasiões, geralmente seguia-se a proposta das Olimpíadas de

Português, pois, segundo a professora, a escola tradicionalmente participa dessa atividade. Em

2010, a proposta é tratar de crônicas de bairro, e os alunos devem desenvolver textos baseados

em algum acontecimento que tenha ocorrido no local em que vivem. A proposta do governo

estadual, entretanto, é desenvolver com os alunos a produção de artigos de opinião, de modo que

se alternam, ao longo das aulas, não apenas os instrumentos didáticos, mas o próprio foco das

situações de ensino. A utilização de filmes como elemento desencadeador de atividades de

produção ou análise textual também foi uma estratégia utilizada (como a exibição do filme “O ano

em que meus pais saíram de férias” para a realização de uma atividade proposta pelo Caderno do

Aluno do governo estadual). Além disso, a cópia de textos e questões passados na lousa também

ocorreu algumas vezes.

A modalidade linguística privilegiada como objeto de ensino nas aulas e como foco das

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produções dos alunos foi, em grande parte, a escrita. Para a produção das crônicas, uma

flexibilidade maior foi conferida no tocante ao registro empregado, pois a informalidade configura-

se como estratégia válida para esse gênero textual. Ao longo do estágio, a partir da introdução do

projeto “Adolescente sim, aluno-problema não”, a modalidade oral passa também a ser foco

consciente (e de maneira mais consistente) da atenção e dos esforços pedagógicos nas aulas,

como será exposto adiante.

A professora se valia constantemente da topicalização e exposição para executar os

objetivos de ensino propostos – ensinar aos alunos as características das crônicas, conscientizá-

los acerca de procedimentos textuais como a paráfrase e orientá-los no emprego de conectivos,

por exemplo. As atividades dos Cadernos do Aluno eram sempre vistadas e valiam nota de

participação – o que tem um grande peso no sistema de avaliação continuada empregado pela

professora. Algumas dessas atividades devem ser entregues pelos alunos, pois são objeto de

avaliação mais específica – ocasião em que, após corrigir cada atividade, a professora conversa

individualmente com os alunos que apresentam maiores problemas em suas atividades e sugere

maneiras pelas quais eles podem melhorar. A escola conta com aulas de reforço, às sextas-feiras,

para os alunos apontados pelos professores para tal.

3. Análise de um fenômeno-tema particular

3.1. Dando voz ao aluno – respondendo à indisciplina e à falta de comprometimento

A escola tem verificado o elevado índice de ocorrências de indisciplina por parte dos

alunos, bem como falta de compromisso generalizada por parte das oitavas séries. Esse cenário,

aliado ao baixo rendimento escolar desses alunos tanto em avaliações internas como externas

(como o Saresp), fez com que o diretor e a coordenadora da escola se mobilizassem a fim de

reverter o quadro. Ao mesmo tempo em que os professores têm procurado se aprimorar na área

pedagógica, a escola verificou que os alunos não estavam respondendo a contento. Os

tradicionais instrumentos de correção-punição não estavam surtindo resultado real e prolongado;

advertências, suspensões e conversas com os pais aconteciam em número elevado, mas sem

consequências positivas duradouras (ou mesmo observáveis).

A professora L., a partir de uma atividade proposta pelo “Caderno do Estado”, decidiu

utilizar esse problema como tema de uma atividade de debate com os alunos em sala de aula. A

ideia foi, com isso, dar aos alunos a chance de perceberem o problema (tomar consciência de sua

existência), refletirem sobre sua situação e proporem, eles mesmos, soluções. Partindo dessa

atividade, esse espaço de reflexão e de proposição de ideias, com o apoio dos próprios alunos, foi

estendido, acontecendo paralelamente às aulas de Português: foi o período de concepção e

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formatação do projeto, que se encontra anexado ao artigo (anexo 1).

Os alunos, de maneira geral, gostaram da possibilidade de ter alguma voz; um dos alunos

mais problemáticos, inclusive, sugeriu o nome do projeto: "Adolescente sim, aluno-problema não".

Foram nomeados de 4 a 6 alunos-monitores em cada sala com a incumbência de conversar com

os colegas e trazer propostas de solução construídas coletivamente. Em um segundo momento,

os monitores de cada sala devem conversar entre si, a fim de compartilhar ideias.

Paralelamente às atividades realizadas pelos alunos (e também por meio delas),

buscamos despertar e fortalecer a identidade coletiva de cada turma, ressaltando o papel –

positivo ou negativo – que cada aluno, individualmente, pode exercer sobre o grupo. Isso também

parece ter tido bons resultados, ainda que pontuais (mesmo porque seria ingenuidade crer que

todo o cenário mudaria de um dia para o outro – trata-se de um processo longo, que exige esforço

constante). Em todas essas conversas, buscamos aproveitar as falas dos próprios alunos (que

eram encorajados a expressar suas opiniões sobre o tema) como “gancho”, ou “ponte”, para expor

nossas ideias e fazê-los refletir.

Como notamos que, em algumas turmas, os alunos tinham muita dificuldade em sequer

escutar o que o outro estava dizendo (pois estavam todos interessados em eles mesmos falarem),

propusemos, inicialmente, uma atividade simples – uma dinâmica de grupo, cujo objetivo era

fornecer exemplos práticos para a discussão do que significa verdadeiramente escutar a outra

pessoa, além de demonstrar a importância que cada aluno tem, individualmente, na construção da

história coletiva do grupo. Essa atividade encontra-se anexada ao final deste artigo (anexo 2).

Como parte do resultado dessas discussões iniciais entre os alunos, apresentamos a

seguir algumas ideias propostas por eles, que demonstram a vontade de construir algo diferente

do que eles vinham construindo até aqui. É importante destacar, antes disso, que grande parte

das sugestões, de uma forma ou de outra, vai ao encontro de uma necessidade frequentemente

verbalizada pelos alunos desde o início do projeto: diálogo com os professores. Isso indica um

caminho mais favorável ao estabelecimento das relações pedagógicas: não o caminho do

“confronto”, mas o da compreensão e da responsabilidade partilhada.

De fato, o aluno, muitas vezes, tem poucas oportunidades de se expressar – e, na

verdade, as formas de expressão do aluno são, tradicionalmente, reprimidas. No tocante a essa

questão, cumpre esclarecer que o processo de “dar voz ao aluno” não significa diminuir a

importância ou a autoridade do professor (ou da escola). Antes, dar voz aos alunos significa

propiciar meios para que eles possam se expressar de maneiras construtivas – significa elaborar

iniciativas pedagógicas que favoreçam a expressão deles, inclusive como cidadãos que tenham

voz na sociedade. Sendo assim, em conformidade com a própria finalidade da escola e da

educação, é essencial ensiná-los a ter essa voz, ensiná-los a como se valer dela adequadamente,

o que, entendemos, está totalmente de acordo com a finalidade própria da escola e da própria

disciplina Língua Portuguesa. Uma vez que “ensinar consiste em transformar os modos de

pensar, falar, de fazer, com a ajuda de ferramentas semióticas” (SCHNEUWLY; VASCONCELOS,

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p. 4), as práticas de ensino-aprendizagem de língua portuguesa – bem como das demais

disciplinas – não devem focar apenas o saber técnico, ou enciclopédico, dos conteúdos escolares,

mas privilegiar a apropriação crítica desses conhecimentos. Felizmente, foi observado que a

professora diversas vezes manifestou (tanto particularmente quanto no diálogo com os próprios

estudantes) preocupação com o futuro e a formação mais ampla dos alunos – não apenas como

detentores de conhecimentos (embora também isso), mas como cidadãos capazes de refletir e

construir histórias de vida positivas para si próprios e para a sociedade.

As atividades abaixo foram selecionadas a partir de algumas sugestões levantadas pelos

próprios alunos como resultado de suas discussões em grupos pequenos, ou em um único grupo.

Alguns registros dessas discussões estão anexados ao final deste artigo (anexo 3):

5.

6. - Conselho dos Alunos

Uma vez por semana, os alunos que estivessem apresentando mais problemas (indicados

pelos alunos-monitores em comum acordo com os professores) teriam, individualmente,

uma reunião com um ou mais professores. Nessas reuniões, os professores conversariam

com o aluno para descobrir a causa do problema e tentar achar uma solução. Se não

melhorassem após 4 semanas (4 tentativas), seriam submetidos a outro tipo de ação mais

“grave” (como chamar os pais na escola).

7.

8. - Criação de um código de regras para os alunos e para os professores

9.

10. - Elaboração do caderno do aluno da 8ª Y

Nesse caderno seriam registrados pontos que melhoraram na turma, assim como os

problemas identificados. Além disso, os alunos poderiam, de maneira anônima, registrar

críticas construtivas para os professores.

- Realização de palestras com ex-alunos problemáticos que conseguiram mudar sua

história e aproveitar a escola para conseguir um futuro melhor.

- Rádio na Escola

Criação de uma rádio com transmissões feitas pelos próprios alunos nos horários de

intervalo, conforme um cronograma estabelecido previamente e sempre com o

acompanhamento de algum professor.

Algumas dessas soluções foram adaptadas, como a elaboração do caderno da 8ª série. A

coordenação pedagógica achou mais interessante haver um livro de atas, que funcionaria em

moldes semelhantes aos propostos pelos alunos, mas preenchidos por professores, inicialmente,

e onde seria possível registrar os encaminhamentos dados a cada questão levantada.

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3.2. Articulação do projeto com a disciplina Língua Portuguesa

O projeto se insere, por tudo o que foi exposto aqui, no âmbito do que afirma Anna

Christina Bentes, pesquisadora da Unicamp, no tocante à produção discursiva oral ser um

importante recurso comunicativo dentro e fora da escola e no tocante à própria inserção dos

alunos nessas práticas e gêneros:[...]esse trabalho somente pode ser efetivado se os alunos forem levados a ter a consciência de que a tomada da palavra […] é uma das atividades mais importantes para a ampliação de suas competências comunicativas e também na formação desses sujeitos como cidadãos dentro e fora da escola. (apud ROJO; RANGEL, 2009, p.8).

De igual modo, concordamos que é papel da escola levar os alunos a adquirir uma

percepção mais consciente e crítica acerca de sua própria produção oral e das demais pessoas,

em contextos variados. Nesse sentido, uma atividade interessante a fim de despertar e aprimorar

essa consciência de si e do outro seria levar os alunos a analisar falas de pessoas que têm na

expressão oral o seu mister – apresentadores de televisão, políticos, vendedores, dentre outros –,

como sugere Bentes (apud ROJO; RANGEL, 2009). De fato, a complexidade da tarefa não é

pouca, pois há muitos elementos envolvidos na produção de sentidos em uma fala pública –

elementos dos quais, nem sempre, nos damos conta. Bentes chama a atenção para os “aspectos

suprassegmentais (pausas, tom de voz, qualidade da voz, entoação) e cinésicos (a gestualidade,

a postura corporal, a expressão facial e o olhar)” (apud ROJO; RANGEL, 2009).

Além disso, gêneros textuais orais específicos, como os gêneros assembleia e debate, que

venham a contemplar as atividades presentes ou futuras do projeto em questão, também

precisam ser desenvolvidos em sala de aula. O caminho a ser seguido, tanto para a

conscientização dos fatores envolvidos na fala pública quanto para o aprendizado dos gêneros

textuais orais, parece ser o de uma observação “contínua, sistemática e crítica” dessas práticas

(BENTES apud ROJO; RANGEL, 2009). É isso o que também propõe Beatriz Santomauro em

artigo veiculado na revista Nova Escola (2010): articular teoria e prática, levando sempre o aluno a

conhecer o objeto de ensino (o que está implicado em um ato de fala? o que é uma assembleia?);

apresentando modelos instrutivos que propiciem a análise e reflexão (acerca da estrutura do

gênero oral em questão, acerca das estratégias comunicativas empregadas por determinado

falante) – utilizando-se, inclusive, fichas de escuta – e, por fim, proporcionando ocasiões de

efetiva prática do que foi apreendido nas etapas anteriores. Cumpre notar, aqui, que o projeto em

questão proporciona um espaço privilegiado para a execução de atividades dessa natureza, pois

os alunos não são apenas colocados em uma situação de “faz de conta”, em uma simulação –

antes, têm a oportunidade de empregar a oralidade como ferramenta realmente capaz de

transformar sua realidade imediata, construindo discursos que atuam de maneira direta sobre o

mundo em que vivem.

No período do estágio, foi possível apenas dar início a todo esse processo – um processo

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que pode, inclusive, contemplar de maneira integrada a escrita e a oralidade. De fato, neste

primeiro momento, não tratamos das imbricações entre fala e escrita, embora existam. Seria

interessante, tanto para a disciplina Português como para o projeto como um todo, realizar

exercícios que proponham a “retextualização”, de modo a viabilizar a movimentação entre gêneros

textuais orais e escritos dos mais diversos tipos e, assim, despertar a consciência e o domínio de

suas características e funções peculiares, como sugere Marcuschi, citado por Bentes (apud

ROJO; RANGEL, 2009).

Considerações finais

O projeto, inicialmente pensado para as oitavas séries, conta com o apoio de professores

de outras séries, que também querem colocá-lo em prática, adequando-o para sua própria

realidade. Das atividades propostas, o Conselho dos Alunos e a Rádio na Escola estão em vias de

começar a acontecer33. As atividades propostas também abrem caminho para que, no futuro, os

alunos voltem a ter um grêmio estudantil que os represente.

Não se pode esquecer, é verdade, que cada turma tem suas particularidades – tanto nos

problemas quanto na proposta de soluções. Uma coisa, contudo, parece ser unânime: a já

mencionada necessidade de haver diálogo com os professores. Nesse sentido, paralelamente às

atividades propostas pelos alunos, a escola deve encontrar meios de promover uma participação

maior do corpo discente na vida escolar34. Embora a escola se veja obrigada a seguir os

"Cadernos do Estado”, a incorporação de iniciativas pedagógicas diferentes, que favoreçam a

expressão dos alunos, parece ser algo muito proveitoso e benéfico para o dia a dia escolar e para

a própria vida e prática social dos alunos.

Por fim, é preciso ter consciência de que toda mudança requer tempo e esforço sustentado

por um longo período – trata-se de um processo contínuo. De modo semelhante, não podemos

classificar os alunos em categorias estáticas como “aluno bom” e “aluno mau”, pois cremos que

esses papéis são constantemente desempenhados por cada aluno a partir do papel que eles

escolhem, em determinado momento, assumir (a despeito de quaisquer polêmicas quanto à

própria definição dessas categorias). Em outras palavras, não podemos fotografar os alunos, mas

sim levá-los à consciência de que todos fazemos parte de um filme em que podemos assumir ora

um papel, ora outro – fator determinado pela escolha que cada um faz no tocante à história que

quer construir para sua própria vida. Dessa forma, o projeto, assim como as suas inserções na

disciplina Português, visam à autonomia do ser humano – um aluno consciente de seu papel

individual e coletivo na escola; um cidadão capaz de se posicionar criticamente e atuar

33 Final do primeiro semestre de 2010, época de escrita deste artigo.34 Projetos coletivos, como o realizado às vésperas da Copa do Mundo, têm potencial de ser muito benéficos e de se

constituírem em marcos na vida da comunidade escolar: os alunos foram mobilizados a construir um grande painel relativo ao evento esportivo, contemplando diversos aspectos (históricos e geográficos, dentre outros) do torneio em si e de seus países participantes.

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positivamente na sociedade. Para isso, a disciplina Língua Portuguesa desfruta de condição

privilegiada, por ser o espaço mesmo da atuação com a linguagem, elemento fundamental –

fundador – das relações sociais.

Referências bibliográficas

ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.

ROJO, Roxane; RANGEL Egon (Orgs.). Explorando o ensino: Língua Portuguesa. Brasília: Ministério da Educação, 2009.

SANTOMAURO, Beatriz. Desafio: falar em público. Nova escola, São Paulo, n. 230, p. 44-51, mar. 2010.

SCHNEUWLY, Bernard; VASCONCELOS Filho (trad.). As ferramentas do professor: um ensaio didático. Tradução não publicada. s.d.

Anexo 1Versão 0.1 (para apreciação) - 18/05/2010

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Projeto – “Adolescente sim, aluno-problema não”**(nome sugerido por aluno)por: Rodrigo Alvarez Brancaglioni (estagiário de Português)Iniciativa e conceito inicial: Profa. L.Apoio e desenvolvimento: Profa. L., alunos das oitavas séries e Rodrigo A. Brancaglioni

ObjetivosResponder satisfatoriamente ao problema de indisciplina e falta de compromisso por parte dos alunos.

Público-alvoOitavas séries

JustificativaUma vez que que as tentativas de se abordar o problema acima mencionado através das punições regulares (advertência, suspensão, conversa com os pais) não têm surtido os efeitos desejados, entende-se que há necessidade se buscar alternativas para lidar com a situação.

O baixo aproveitamento das oitavas séries em avaliações internas (e externas, como o Saresp) é um reflexo do problema. Ao passo que a área pedagógica da escola busca constante aprimoramento, os alunos, semelhantemente, precisam ser envolvidos no processo de solução do problema, posto que são eles próprios parte integrante e fundamental não apenas do processo pedagógico, mas da razão mesma da escola.

Sendo a educação o processo de fazer um indivíduo nascer para o mundo – isso é, de inseri-lo nas tradições humanas e na vida em sociedade – cabe à escola a responsabilidade de formar não apenas alunos que dominem determinados conteúdos (o que é indiscutível), mas também, e com igual importância, cidadãos capazes de se posicionar criticamente e agir em prol do bem comum. Essa responsabilidade torna-se inevitavelmente ainda maior à medida que as famílias se tornam cada vez mais ausentes e omissas no que diz respeito a seu papel educativo.

MetodologiaA metodologia adotada tem como base fundamental a participação ativa dos alunos no processo de pensar e agir sobre seu próprio problema. Para tanto, algumas aulas da disciplina Língua Portuguesa são destinadas ao desenvolvimento do projeto em parceria com os alunos, ocasiões em que eles têm oportunidade de desenvolver a produção de gêneros textuais orais, como, por exemplo, o debate e a assembleia. Além disso, empregam a língua, objeto de ensino da disciplina, em atividades práticas e contextualizadas, podendo refletir sobre seu uso.

Para a organização das discussões, foram selecionados de 4 a 6 “alunos-monitores” em cada turma, os quais são responsáveis por orientar a discussão com os colegas e registrar os principais pontos levantados (problemas ou soluções), levando em conta a realidade específica de sua própria turma. Embora o professor possa sugerir maneiras de condução do debate em sala e mesmo apontar temas específicos para a discussão, os alunos-monitores, que são os principais agentes fomentadores da discussão e reflexão no interior do grupo de alunos, têm autonomia para decidir o melhor formato para a atividade com os colegas – discussão em grupo único ou em grupos menores (em torno de 10 alunos).

Em um segundo momento, os alunos-monitores de todas as turmas devem se reunir para compartilhar ideias e resultados, de modo a ampliar o universo de possibilidades idealizadas por cada turma.

Paralelamente às atividades realizadas pelos alunos (e também por meio delas), buscamos despertar e fortalecer a identidade coletiva de cada turma, ressaltando o papel – positivo ou negativo – que cada aluno, individualmente, pode exercer sobre o grupo.

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Como parte do resultado das discussões iniciais entre os alunos, apresentamos a seguir algumas ideias propostas por eles, pois cremos que têm potencial de integrar a metodologia do projeto.

Vale destacar que grande parte delas, de uma forma ou de outra, vai ao encontro de uma necessidade frequentemente verbalizada pelos alunos desde o início deste projeto: diálogo com os professores. Isso indica um caminho mais favorável ao estabelecimento das relações pedagógicas: não o caminho do “confronto”, mas o da compreensão e da responsabilidade partilhada.

De fato, o aluno, muitas vezes, tem poucas oportunidades de se expressar – na verdade, as formas de expressão do aluno são, tradicionalmente, reprimidas. No tocante a essa questão, cumpre esclarecer que o processo de “dar voz ao aluno” não significa diminuir a importância ou a autoridade do professor (ou da escola). Antes, dar voz aos alunos significa propiciar meios para que eles possam se expressar de maneiras construtivas – significa elaborar iniciativas pedagógicas que favoreçam a expressão deles, inclusive como cidadãos que tenham voz na sociedade. Sendo assim, em conformidade com a própria finalidade da escola e da educação, é essencial ensiná-los a ter essa voz, ensiná-los a como se valer dela adequadamente.

Atividades sugeridas pelos alunos• Conselho dos Alunos

Uma vez por semana, os alunos que estivessem apresentando mais problemas (indicados pelos alunos-monitores em comum acordo com os professores) teriam, individualmente, uma reunião com um ou mais professores. Nessas reuniões, os professores conversariam com o aluno para descobrir a causa do problema e tentar achar uma solução. Se não melhorassem após 4 semanas (4 tentativas), seriam submetidos a outro tipo de ação mais “grave” (como chamar os pais na escola).

• Criação de um código de regras para os alunos e para os professores

• Elaboração do caderno do aluno da 8ª YNesse caderno seriam registrados pontos que melhoraram na turma, assim

como os problemas identificados. Além disso, os alunos poderiam, de maneira anônima, registrar críticas construtivas para os professores.

• Realização de palestras com ex-alunos problemáticos que conseguiram mudar sua história e aproveitar a escola para conseguir um futuro melhor.

O Conselho dos Alunos funcionaria às sextas-feiras, dia em que os alunos têm menos aulas. Os professores poderiam, ao longo do mês, participar desse Conselho através de um esquema de revezamento.No tocante ao Caderno do Aluno da 8ª Y, poderia haver um espaço em cada folha para que se registrasse não apenas a crítica construtiva, o ponto negativo ou positivo, mas também o encaminhamento dado para cada questão.

Abaixo, ideias que podem ser implementadas no futuro e/ou que ainda precisam de maior detalhamento/reflexão.

Outras propostas de atividades que podem ser conduzidas nas sextas-feiras: 11. Realização de assembleias de classe mensais (ou bimestrais)12. Realização de assembleias discentes (todos os alunos) mensais13. “Clubes” de Inglês, Teatro, Artes (entre outros, por exemplo). Essas atividades,

além de favorecerem a expressão dos alunos, também são instrumentos pedagógicos. Para participar dessas atividades, o aluno deve demonstrar seu compromisso com as atividades regulares da escola, de maneira geral.

Articulação do Projeto com as atividades da disciplina Língua Portuguesa

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[detalhar]

Anexo 2Atividade – Escutando o outroAdaptado por Rodrigo A. Brancaglioni (estagiário) a partir de um exercício teatral encontrado no livro “A porta aberta”35.

Ao pensarmos no ensino de língua materna, pensamos em habilidades de recepção e produção, tanto na modalidade oral quanto na escrita. Assim, na modalidade escrita, temos o ler e o escrever. Na modalidade oral, semelhantemente, o escutar e o falar.

A presente proposta de atividade tem por objetivo trabalhar a habilidade de escutar dos alunos, de modo a viabilizar sua melhor participação nas atividades do projeto “Adolescente sim, aluno-problema não”. Com esta atividade, pretende-se aumentar a consciência dos alunos quanto à importância de haver ordenação nas falas em debates e assembleias (cada um fala na sua vez) e iniciar uma reflexão sobre a importância e profundidade de “escutar” o outro para que haja verdadeiro diálogo, e não apenas ruídos.

Primeira etapaOs alunos, dispostos em fileiras, devem, sem olhar para trás, contar de 1 a 30 (ou conforme o número de alunos na sala). Cada aluno fala um número, na ordem em que estiverem sentados. Quando o último aluno de uma fileira tiver falado, será a vez do primeiro aluno da fileira seguinte. A única voz na sala deve ser a do aluno que estiver com a vez de falar um número. Se a ordem for quebrada ou se um aluno “avisar” o outro que “é a sua vez”, a contagem recomeça.

Segunda etapaOs alunos, na mesma disposição, devem repetir a contagem – mas, desta vez, procurando não respeitar a posição em que estão sentados. Cada aluno, independentemente do local em que está sentado, contribui para que a contagem alcance o número estipulado. Os números devem ser ditos em ordem crescente, um aluno por vez. Se dois ou mais alunos falarem ao mesmo tempo, a contagem volta ao início (não é permitido repetir o “percurso” feito até o erro, ou seja, outro aluno precisará dizer “1”, um outro, “2”, e assim por diante). O aluno que perceber que começou a falar um número ao mesmo tempo que o outro pode escolher interromper sua fala, de modo a deixar o outro concluí-la. Se a correção acontecer em tempo (se o aluno não terminou de dizer seu número), não será preciso reiniciar a contagem.

Terceira etapaConversa com os alunos – troca aberta de ideias através de perguntas dirigidas que encaminhem a reflexão coletiva em torno do “escutar” e do “falar”. Alternativamente, esta etapa pode ser conduzida em pequenos grupos (e, ao término da aula, cada grupo teria a oportunidade de compartilhar com os outros grupos as conclusões a que chegou).Possíveis perguntas: É possível haver diálogo sem escutar o outro?O que é “escutar”? Apenas ouvir o som? Ou tentar compreender o que o outro diz?Ao falar, é importante prestar atenção à própria entonação e à escolha das palavras?

35 BROOK, Peter. A porta aberta: reflexões sobre a interpretação e o teatro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

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Anexo 3Anotações dos alunos-monitores (5 fotos): resultados de algumas das discussões em que se

propuseram soluções para o problema vivenciado por eles.

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O ensino dos gêneros orais e a intervenção didática do professor: uma reflexão sobre a prática docente

Maria Tereza Martins MORA

Aprendamos ensinando-nos. Paulo Freire

Introdução

Este artigo tem como objetivo descrever e propor uma reflexão sobre o estágio realizado

no primeiro semestre de 2009, em uma Escola Municipal de Ensino Fundamental da Zona Sul de

São Paulo, com alunos de sétimas séries do Ensino Fundamental.

Neste estágio, procurou-se observar essencialmente como se aplica o ensino da oralidade, e

de que maneira a professora organiza atividades discursivas em seu planejamento. Foram

selecionados dois episódios que trabalharam especificamente o ensino da oralidade: uma aula

sobre o gênero debate e o outra sobre o gênero notícia. Gêneros recorrentes nos estudos da

Educação, o debate e a notícia estão sempre presentes nos livros didáticos e demais orientações

curriculares. Daí a importância de constantes reflexões acerca desses gêneros, buscando um

outro olhar que não seja a mera reprodução de práticas já estabelecidas e interiorizadas pelos

docentes, contribuindo para a precarização do ensino de modo geral.

Schneuwly e Dolz (2004), em suas pesquisas, destacam a importância da escola e do

professor na contribuição do desenvolvimento de um rico repertório de gêneros textuais,

colocando os alunos em contato com os mais diversos gêneros discursivos. Com base nessa

premissa, o presente artigo procura refletir como essa contribuição se deu no período de estágio

acompanhado, e de que forma a docente encara essa proposta. Com base em anotações no

caderno de campo, o estágio acompanhou uma professora que já trabalhava como atriz e arte-

educadora desde 2004, mas pela primeira vez atuava efetivamente como professora de Língua

Portuguesa.

1. Sobre o contexto escolar

1.1.A Escola O estágio foi realizado na Escola Municipal de Ensino Fundamental MVCM, localizada no

Jabaquara. Com salas de aula do Ensino Fundamental I e II, a escola ainda possui turmas de EJA

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no período noturno. Após uma grande reforma, conta com um espaço físico privilegiado, com duas

grandes quadras, e uma ampla e bem equipada biblioteca.

Devidamente organizada, a biblioteca conta com um grande acervo de livros novos e outros

em bom estado de conservação. Os professores frequentemente utilizam o espaço para pesquisa

com os alunos e atividades com jornais e revistas. O entorno é formado por algumas favelas como

a do Buraco Quente, Morro do Piolho e Vila Santa Catarina, e a escola recebe os alunos vindo

dessas comunidades, bem como de outros locais da região próxima à Avenida Cupecê .

Os espaços em que a linguagem circula no ambiente escolar basicamente consistem em um

mural de avisos logo na entrada da unidade, e uma série de painéis comemorativos espalhados

pelas paredes. Em um mesmo cartaz (dia das Mães) encontramos amostras de diferentes

gêneros como bilhetes, poemas, cartas. Há também cópias xerocadas da produção de uma aluna

que ganhou o prêmio de melhor redação de todas as escolas municipais.

1.2. A sala de aula

A sala de aula acompanhada foi a sétima série C no período vespertino. Todas as salas

passaram por uma reforma e são amplas, porém possuem alguns problemas de estrutura. Um

exemplo é o quadro negro. Na reforma, a sala foi ampliada e ficou a metade da lousa antiga. Ou

seja, uma metade da lousa é nova e em perfeitas condições, e a outra metade simplesmente não

escreve. Portanto, essa é uma das dificuldades enfrentadas pelo professor, além da falta de

material didático diversificado.

As carteiras possuem muitas pichações, e são dispostas em fileiras. Os alunos gostam de

sentar em duplas ou em grupos. No período da manhã há aulas para o ensino fundamental, sendo

possível observar cartazes com conteúdos dessas séries, como o alfabeto colorido logo acima da

lousa, além de receitas, mapas, parlendas, etc. Há armários onde ficam os livros didáticos dos

alunos, além de outros materiais.

1.3. A Professora

A professora responsável pelo estágio é A.B.S. Formou-se em Letras pela FFLCH-USP em

Licenciatura plena em Português – Italiano em 2006. Tem 32 anos. Militante política, fez parte da

UNE, chegando a ser presa durante uma manifestação. Estudou teatro e dramaturgia na ECA-

USP. Integrou vários grupos de teatro e dança. Concilia a profissão de professora de português

com a de atriz, diretora e dramaturga.

Contadora de histórias, frequentemente trabalha diversas narrativas com a classe.

Entretanto, nem sempre sua experiência com o teatro é suficiente para atrair a atenção dos alunos

para o objeto de ensino. Atua como professora de teatro desde 2004 na rede particular, e

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ingressou na rede municipal em 2008 através de concurso. Diz ainda estar se adaptando às

muitas siglas usadas pela prefeitura como PEA, JEA, JEX, TEX, relacionadas à jornada e aos

projetos pedagógicos. Encara como uma das dificuldades a enorme quantidade de fichas e

atividades de regulação que tem que realizar semanalmente com os alunos, na maioria das vezes

em horário de aula.

1.3.1. Os alunos

Os alunos possuem uma faixa etária entre 13 e 14 anos. Há alguns casos de inclusão

diagnosticados com laudos médicos, e outros com suspeitas de distúrbios de aprendizagem que

levaram encaminhamentos médicos no inicio do ano após sondagem. Porém, não há um

acompanhamento específico para cada problema, e isso acaba dificultando ainda mais o

desenvolvimento dos alunos, que recebem rótulos como “incapazes” e ficam com o estigma de

que não têm como contribuir. Então acabam contribuindo para a indisciplina, pois não realizam as

atividades propostas e ficam circulando pela sala a todo instante.

Característica típica da adolescência, vemos nos alunos a necessidade de movimento. A todo

momento querem levantar do lugar, falar alto, gesticular, dançar e “brincar” de bater uns nos

outros. Percebemos que a necessidade de socialização é maior que o interesse pela aula em si.

Portanto, são trinta e cinco alunos falando a todo instante e se deslocando pelo espaço, o que

torna a aula bem desgastante.

A maioria dos alunos lê razoavelmente bem e escreve com dificuldade. Em todas as salas

observamos alunos que são copistas, não sendo produtores de texto algum. A maioria apresenta

muita resistência às atividades de reescrita. Alguns não executam as tarefas pedidas, a não ser

quando valem nota. Mas também há muitos alunos que demonstram interesse, e a prova disso é

uma aluna da sétima série que ganhou o prêmio de melhor redação entre todas as EMEFS da

rede municipal, com um tema relacionado à saúde36. Há cartazes por toda a unidade

homenageando a estudante.

2. Descrição geral das práticas de ensino-aprendizagem de língua portuguesa

2.1. Dados sobre o acompanhamento das aulas

Ao chegar na EMEF houve uma boa recepção do corpo docente, direção e coordenação. A

professora A. se colocou à disposição e mostrou a escola. Chamou a atenção para um mural

sobre o dia das Mães que fez com alguns alunos da sétima série, com frases, poemas e cartas

36 A redação vencedora do projeto foi desenvolvida na aula de Ciências.

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para as mães. Destacou que os alunos contaram que nenhum professor quis fazer alguma

atividade sobre o Dia das Mães com eles. E o curioso é que eles pediam para fazer algo, porém

os demais professores retrucavam dizendo que aquilo era “coisa de criança” e que eles não

deveriam se preocupar com esse tipo de atividade.

A. se propôs a fazer o mural, além de confeccionar com eles lembranças e cartões para

serem entregues na data comemorativa. A professora lembra que essas oscilações entre “coisas

de adulto e coisas de criança” fazem parte do desenvolvimento dos adolescentes e deveriam ser

respeitadas pelos docentes. Afinal, segundo ela, a adolescência é justamente caracterizada por

esse período de transição, onde, ao mesmo tempo em que querem namorar e sair, pedem para

que ela conte histórias e faça brincadeiras do tipo “forca”.

Após uma breve conversa com a professora, ela falou sobre um projeto que gostaria de

desenvolver desde o início do ano. O de retomar as atividades com o EDUCOM, um convênio

firmado entre a Prefeitura de São Paulo e a ECA-USP na gestão da prefeita Marta Suplicy ,o qual

implantava rádios nas escolas públicas da capital. Na escola, havia todo o equipamento

necessário para a retomada do projeto, mas estava trancado e empoeirado em uma sala, já que

ninguém sabia como utilizá-lo. Esse seria um trabalho importante no ensino da oralidade.

Dentro da proposta do EDUCOM, ficou combinado que no primeiro semestre de 2009

seriam traçadas as estratégias teóricas para o projeto (levantamento de dados, número de alunos

interessados em participar no projeto, divisão dos alunos em grupos de interesse), e no segundo

haveria a retomada do projeto em si.

2.2. Caracterizando os componentes das práticas de ensino-aprendizagem

2.2.1. Os objetos de ensino e as práticas de linguagem

Os objetos de ensino observados no estágio foram basicamente de natureza discursiva,

gramatical e ortográfica. O tema escolhido para ser abordado durante o estágio foi a oralidade.

Mas definir a oralidade como objeto de ensino nem sempre é tarefa fácil. Como vemos em Rojo

(p. 132): “Temos poucas análises sobre o que é oral para um dos principais atores do sistema

escolar: o professor.” E é difícil mensurar o que, dentro da oralidade, é“ensinável”.

Poderíamos parafrasear a opinião majoritária dizendo que o verdadeiro oral é, por um lado, aquele em que o aluno se exprime espontaneamente no qual não existe escrita, no qual o aluno exprime seus sentimentos em relação ao mundo, e, por outro lado, o oral cotidiano através do qual se comunicam professores e alunos, em aulas diversas. Nem um nem outro parecem suscetíveis de se tornarem objetos de ensino: o oral “puro” escapa de qualquer intervenção sistemática; aprende-se naturalmente, na própria situação.

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Todavia, há alguns anos os textos orais são abordados como objetos de ensino. Desde a

implementação dos PCNS , como nos diz Rojo:

Outra inovação relevante é o fato de se falar em textos orais como objeto de ensino-aprendizagem, em oralidade pública como escolarmente construída e em capacidades de escuta e fala/produção de textos orais em gêneros orais públicos.

As práticas de linguagem consistiram em leitura, compreensão, leitura-escuta, reflexão sobre

a língua ou análise linguística. Rojo destaca essas práticas de linguagem, destacando o uso da

linguagem (prática de escuta e leitura de textos e prática de produção de textos orais e escritos) e

da reflexão da linguagem na prática de análise de textos (ROJO, p. 33). Ou seja, podemos dizer

que as práticas de linguagem procuram contemplar a aplicação da oralidade de tal modo que o

aluno possa conhecer e dominar sua língua, através das atividades de escrita e fala, e dessa

forma dominar os diferentes gêneros nas mais diversas situações. O que amplia sua forma de se

relacionar com a linguagem oral e a escrita.

2.2.2. Os gestos profissionais e os instrumentos didáticos

Durante o estágio, verificou-se quatro gestos profissionais da professora, que Schnewly

distingue como fundamentais : a) implementação de dispositivos didáticos, como a formulação de

tarefas; b) a regulação, e nesse caso especificamente a regulação local, realizada no decorrer das

atividades e permitindo trocas interacionais do professor com os alunos; c) institucionalização dos

conceitos com base em fontes externas e d) criação da memória didática, ao recuperar o que foi

trabalhado na aula anterior.

Os instrumentos didáticos de ordem material foram giz e lousa, livro didático, caderno do

aluno, folhas avulsas, cartazes, jornais, revistas, gibis, livros diversificados, textos xerocados. Já

os de ordem discursiva basicamente foram instruções orais e escritas.

2.2.3. Sobre o livro didático

O livro didático adotado pela escola é “Português: leitura, produção, gramática”, da Editora

Moderna. O livro, para a professora “não é um fim, mas um meio”. Ela mesma destaca a

importância de não reduzir a aula ao livro didático e reafirma isso quando vai adaptando os

conteúdos do livro da maneira que acha mais adequada. Essa postura da professora vai ao

encontro das palavras de Britto37:

[...] ao apresentar-se como curso pronto, o livro didático assume responsabilidades 37 BRITTO, L.P.L. A sombra do caos: ensino de língua e tradição gramatical. Campinas, SP: Mercado das Letras:

Associação de Leitura do Brasil, 1997. p. 254.

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antes atribuídas aos professores, tais como estabelecimento do programa, a organização de conteúdos e a elaboração dos exercícios.

Mas mesmo assumindo essa postura, percebemos que o grande eixo norteador de sua

prática é o livro didático, pelo qual realiza todo seu planejamento. Como não há livros didáticos na

quantidade certa para todos os alunos, a professora os carrega em “engradados de bebidas” de

uma sala para outra, com a ajuda dos alunos. E frequentemente leva outros materiais para a sala.

Os materiais observados durante os estágio foram os seguintes: textos retirados da Internet,

peças de teatro, livros de poesia, histórias, gibis, revistas e jornais.

2.2.4. As atividades e tarefas

As atividades e tarefas acompanhadas durante o período de estágio sempre partiam de um

texto como eixo norteador das propostas de trabalho dos alunos. Seja no livro didático ou

selecionado pela professora, era a partir do texto que tudo acontecia. Foi observado que mesmo

diante de uma série de adversidades, a professora procurava estabelecer uma conexão entre as

atividades, obedecendo a uma sequência, nem sempre exatamente cumprida, mas nunca

descolada das propostas de ensino.

Nas aulas acompanhadas, basicamente observamos leitura e produção de textos,

exercícios de localização, compreensão, cópia da lousa, reescrita, correção na lousa, análise de

textos orais e debate. Os alunos também fizeram a demonstração de uma aula de teatro, na qual

encenaram uma história de terror em uma sexta-feira treze. Foi uma atividade bem lúdica. No dia

dos namorados uma atividade de produção de textos líricos resultou em um painel com as

produções sobre o gênero bilhete.

A seguir iremos analisar duas atividades de estágio que foram desenvolvidas com os alunos

sempre pensando como objeto de ensino-aprendizagem o texto oral, inclusive inserido em um

trabalho conjunto que se estenderia no segundo semestre, com o EDUCOM.

3. Análise de um fenômeno-tema particular

A seguir analisaremos duas experiências ocorridas no estágio que foram selecionadas para

ilustrar nosso tema: o ensino da oralidade.

Aula sobre texto argumentativo: o gênero debate Na primeira aula a professora leu com os alunos o capítulo do livro didático intitulado “Texto

argumentativo: debate”. Após a leitura, explicou para os alunos os principais pontos do texto

topicalizando os seguintes aspectos:

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- o debate é um gênero oral;

- trata-se de uma exposição oral onde os participantes argumentam, discutem e

tentam convencer uns aos outros;

- a maioria dos temas são polêmicos;

- é necessário que os participantes assumam papéis de debatedores, mediadores

ou moderadores e observadores.

Após a leitura do livro didático e a explicação oral, a professora pediu para que os alunos

organizassem um debate em sala de aula. A princípio eles relutaram, mas quando A. disse que

valeria nota, se dividiram em grupo e fizeram o que foi proposto. Então, com a ajuda da professora

e com apoio das sugestões do livro didático foi organizada a aula sobre texto argumentativo, bem

como as etapas para o debate. O tema sugerido pelo livro era “Adolescência: liberdade e limites”

(pág. 43). Entretanto, a professora fez outra proposta, e elegeu o tema “a redução da maioridade

penal”, tema que foi mote de muitas discussões no ano de 2009.38

Dentro do quadro de Aspectos Tipológicos apresentado por Schneuwly e Dolz39 (2004), o

Debate regrado aparece com um exemplo de gênero oral cujo domínio social de comunicação é a

Discussão de problemas sociais controversos, e a capacidade de linguagem dominante é o

ARGUMENTAR, ou seja, a sustentação, refutação e negociação de tomadas de posição.

A professora seguiu a seguinte sequência de ensino:

1) Apresentação: a professora recuperou o conceito de texto argumentativo, e leu um texto sobre

as etapas de organização de um debate.

2) Produção inicial: o tema escolhido foi “A redução da Maioridade Penal”. A professora trouxe

dois textos, um a favor e outro contra o tema proposto. Após a leitura, dividiu a sala em dois

grupos, e cada um defenderia uma opinião. Foram eleitos alguns debatedores, e os outros alunos

ficaram como observadores, podendo contribuir com opiniões quando fosse possível.

3) Avaliação: após o debate, a professora formulou algumas perguntas na lousa. Os alunos

deveriam copiar as questões e responder, com suas próprias palavras. A medida que terminavam,

levavam o caderno para correção com a professora ou a estagiária.

4) Análise dos Resultados: praticamente todos os alunos sentiram dificuldade em apresentar

dados suficientes para argumentar suas opiniões. Nem todos falaram e o que mais fizeram foi a

leitura da opinião de cada grupo, com base no texto dado pela professora. Pareciam não estar

seguros em falar sobre aquele assunto. Talvez fosse necessário um tempo maior para que os

alunos pesquisassem mais sobre o tema e trouxessem suas pesquisas para enriquecer a

atividade.

Pois foi com decepção que ao corrigirmos os cadernos verificamos um grande número de

respostas absolutamente iguais e então constatamos que a grande maioria da sala havia copiado

a resposta dos colegas. Refletindo sobre o ocorrido, podemos supor que os alunos não tinham

38 O tema da redução da maioridade penal voltou ao ao centro dos debates do Senado no ano de 2009.Ver http://blig.ig.com.br/jornalistadiplomado/2009/03/01/maioridade-penal-deve-voltar-ao-centro-dos-debates-no-senado-em-2009/39 SCHNEUWLY, B. e DOLZ, J. 2004. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras.

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domínio nem do gênero debate e nem do assunto maioridade penal. Talvez se cada aluno tivesse

exposto suas ideias oralmente e só depois passasse para o papel, teriam mais segurança para

desenvolvê-las dentro da linguagem escrita.

O gênero ”debate” também não é algo tranquilo para os alunos. Muitos ainda não tiveram

contato efetivo com esse gênero, e seu uso pode ser encontrado em múltiplos contextos:

esportivo, político, teatral, filosófico. Temos também a todo momento debates mais subjetivos,

dentro de um contexto maior . Por exemplo, na fala: “não é de hoje que a maioridade penal é

tema de debate no Brasil.

Portanto, ao pensarmos sobre os resultados da aula sobre o gênero “debate” podemos

levantar a hipótese de que o tema da redução da maioridade penal não era um assunto de

domínio dos estudantes, gerando o desinteresse pela atividade (e a cópia furtiva das produções

dos colegas). Realmente, é difícil não somente para o discente, mas para qualquer pessoa, falar

sobre algum tema que não conhece. E ainda por cima, ter obrigatoriamente que argumentar

contra ou a favor de determinado assunto. Daí a necessidade de propor atividades de pesquisa

investigativas. A professora procurou trazer um tema que na época estava frequentemente sendo

tratado pela mídia. Porém, talvez fosse necessário trazer mais informações a respeito, solicitando

uma pesquisa prévia por parte dos alunos, apresentando a exibição em vídeos de alguns tipos de

debates, ou seja, buscando ações que contribuíssem para o gênero circular de formas múltiplas.

B) Aula sobre o gênero NOTÍCIA:

Trilhando os caminhos para a retomada do EDUCOM na escola, os alunos se dividiram em

grupos de interesse. Para tanto, a professora A. salientou que como exercício para a produção de

um programa de rádio, seria importante que estudassem o que é uma Notícia. A notícia dentro do

quadro de aspectos tipológicos proposto por Schneuwly e Dolz é um exemplo de gênero oral e

escrito que tem como domínio social de comunicação a “Documentação e memorização de ações

humanas”, e tem como capacidade de linguagem dominante o RELATAR (representação pelo

discurso de experiências vividas, situadas no tempo).

Instruções da professora :

A) Foi solicitado então que cada aluno trouxesse uma notícia de seu interesse. Muitos alunos

trouxeram noticias de jornais de suas casas, e os que esqueceram puderam utilizar as revistas e

jornais disponíveis na biblioteca.

B) Em seguida, recortaram a noticia escolhida e colaram no caderno. Após essa parte, deveriam

fazer um pequeno resumo (não poderia ser cópia) das ideias principais apresentadas.

C) Feito isso, deveriam se dividir em duplas e “falar” a notícia para o colega, sem ler no caderno.

Depois cada colega daria uma nota para a apresentação do amigo. Os alunos que se sentissem à

vontade, fariam a apresentação para o grupo. Essa atividade a professora A. classificou como um

“treino” para a apresentação do jornalzinho da EDUCOM, valendo nota.

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D) No dia seguinte, a professora recuperou a atividade e institucionalizou o conceito do gênero

notícia, através de um explicação oral e também leitura de uma notícia. Ela aproveitou para

diferenciar o gênero notícia, reportagem e entrevista

Do ponto de vista do interesse dos alunos , a maioria se interessou muito pela atividade com

a notícia, obtendo resultados positivos em relação à produção de texto escrito e oral. O processo

aqui foi o contrário do proposto pelo debate: a passagem da escrita à oralidade. E nisto os alunos

tiveram mais facilidade e demonstraram mais conforto: a passagem do gênero escrito ao oral. Os

trabalhos foram expostos oralmente e o fato de a atividade ser considerada um “treino” para o

segundo semestre, possibilitou uma ideia de continuidade, onde os conhecimentos serão

recuperados e melhores desenvolvidos. E a escola possui esse papel privilegiado de espaço para

simulações e experimentações.

Percebemos como a escrita e a oralidade estão ligadas através desses exercícios, e como

essa relação é rica e complexa. Segundo Schnewly,

Não existe “o oral”, mas “os orais” em múltiplas formas, que, por outro lado, entram em relação com os escritos, de maneiras muito diversas: podem se aproximar da escrita e mesmo dela depender – como é o caso da exposição oral, ou ainda mais, do teatro e da leitura para os outros –, como também podem estar mais distanciados – como nos debates ou, é claro, na conversação cotidiana. Não existe uma essência mítica do oral que permitiria fundar sua didática, mas práticas de linguagem muito diferenciadas, que se são prioritariamente, pelo uso da palavra (falada), mas também por meio da escrita, e são essas práticas que podem se tornar objetos de ensino. (SCHNEWLY,2004, p.135)

Portanto, mesmo dentro de um contexto cada vez mais digital que é a sociedade

brasileira, a escola ainda é um dos espaços mais privilegiados no que se refere ao acesso aos

bens culturais, sendo uma das maiores agências de letramento. Dessa forma, torna-se

indispensável esse confronto com diferentes situações de modo que possibilite a ampliação do

conhecimento. É o que diz SCHNEUWLY, B. e DOLZ, J, p. 96:

Criar contextos de produção precisos, efetuar atividades ou exercícios múltiplos e variados: é isso que permitirá aos alunos se apropriarem das noções, das técnicas e dos instrumentos necessários ao desenvolvimento de suas capacidades de expressão oral ou escrita, em situações de comunicação diversas.

Vygotsky destaca que a aprendizagem sempre se dá por um processo de tensão. Ou seja,

é necessário colocar o indivíduo em uma situação de conflito e de distanciamento do que lhe é

familiar e seguro, para então potencializar seu desenvolvimento. É também o que Piaget chamaria

de desequilíbrio. Essa tensão assinalada por Vygotsky está intimamente vinculada à apropriação

por intermédio da linguagem do legado cultural de seu grupo. Portanto, a escola seria essa

mediadora, principal responsável por essa ação partilhada, onde a aprendizagem parte do social

para o individual. É por isso que a escola pode praticar a ação do treino, preparo, ensaio,

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experimentação e pesquisa para diferentes contextos com os quais o aluno terá contato,

[...]A aprendizagem de procedimentos apropriados de fala e escuta, em contextos públicos, dificilmente ocorrerá se a escola não tomar para si a tarefa de promovê-la.(PCNS, p.25).40

.

É interessante frisar que a representação do contexto sempre parte de uma

ficcionalização, à medida que os parâmetros não são estabelecidos na situação imediata, mas

“predefinidos institucionalmente e materializados no próprio gênero” (ROJO, p.145). É através da

simulação que se dá a ficcionalização.

Portanto, nessa ficcionalização a finalidade não é apenas o saber, mas a transmissão desse

saber. Como no debate, em que temos “destinatário duplo; enunciador duplo; finalidade complexa

dupla; lugar social duplo” (ROJO, p. 145). Para tanto, o trabalho sobre a ficcionalização exige uma

intervenção didática, constituindo uma dimensão essencial do trabalho sobre o oral. Tarefa que,

segundo Rojo “se trata de um trabalho de fôlego, para o qual existem técnicas muito diversas.”

Considerações finais

Esse artigo procurou apresentar uma reflexão sobre o ensino da oralidade, e de como o

professor e a escola podem atuar no processo de ensino-aprendizagem do texto oral. Se

percebermos o desenvolvimento das atividades, veremos que elas não estavam desarticuladas à

escrita. A construção das capacidades de linguagem que chamamos de oral, segundo Rojo (p.

146) “não podem se dar sem uma intervenção mais ou menos maciça da escrita”. Isso mostra o

quanto é necessário uma concepção dialética dos diferentes aspectos do ensino da língua

materna.

No final do estágio, A. mostrou o que estava lendo em seu horário de estudos dentro do

horário de trabalho. Era o livro “A educação na cidade”, de Paulo Freire. E destacou a página 23,

onde constava o seguinte trecho:

É obvio, por exemplo, que crianças a quem falta a convivência com palavras escritas ou que com elas têm pequena relação, nas ruas e em casa, crianças cujos pais não leem nem livros e nem jornais, tenham mais dificuldades em passar da linguagem oral à escrita. Isto não significa, porém, que a carência de tantas coisas com que vivem crie nelas uma “natureza” diferente, que determine sua incompetência absoluta .

Mais do que criticar o trabalho desenvolvido por A., este artigo procurou levantar alguns

40 ROJO, R. H. R. A concepção de leitor e produtor de textos nos PCN: ler é melhor do que estudar. In: FREITAS, Maria Teresa de Assunção; COSTA, Sérgio Roberto (Orgs.). Leitura e escrita na formação de professores. SP: Musa/UFJF/INEP-COMPED, 2002. p. 31-51.

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pontos sobre o estudo da oralidade na sala de aula. A professora A., iniciante no ensino de Língua

Portuguesa, ainda estava se habituando a sua prática profissional. Mas aos poucos percebe como

a relação dialógica estabelecida entre professor e aluno são essenciais para permitir a circulação

da linguagem em sala, no ambiente escolar como um todo. É simulando, preparando, pensando e

repensando que o aluno investiga, experimenta, produz. E é a intervenção didática do professor e

sua ação mediadora que semiotiza o objeto e reconfigura a linguagem na interação professor-

aluno, criando as condições favoráveis para possíveis tensões e conflitos, gerando assim a

aprendizagem.

Referências bibliográficas

BRITTO, L. P. L. (1997). A sombra do caos: ensino de língua e tradição gramatical. Campinas, SP: Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil.

FREIRE, P. A Educação na cidade. 7. ed. São Paulo: Ed. Moderna, 2006

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SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004.