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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
SANDRA LUZIA ASSIS DA SILVA
As múltiplas dimensões do risco para pessoas que convivem com inundações recorrentes: o
caso de moradores da Vila América, Santo André/SP
MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
São Paulo
2016
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
SANDRA LUZIA ASSIS DA SILVA
As múltiplas dimensões do risco para pessoas que convivem com inundações recorrentes: o
caso de moradores da Vila América, Santo André/SP
MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para a obtenção do título de Mestre
em Psicologia Social, sob a orientação da Professora
Doutora Mary Jane Paris Spink.
São Paulo
2016
BANCA EXAMINADORA
Profa. Dra. Mary Jane Paris Spink
_____________________________
Profa. Dra. Gabriela Marques Di Giulio
________________________________
Profa. Dra. Bader Burihan Sawaia
____________________________
Figura: O Grito de Edvard Munch, 1893
Fonte: Internet, 2016
Edvard Munch se inspirou a pintar o quadro depois de caminhar com amigos em uma
tarde quente em Oslo, capital norueguesa, onde observou as cores quentes no céu e, no
mesmo momento, teve uma sensação de cansaço, de estar doente. Foi nessa hora que Much
diz ter percebido “o grito da natureza”. Segundo a psicóloga Susana Chames de Rozen
(2006), o artista pintou à lembrança de uma explosão vulcânica ocorrida na Ilha de ktakatoa,
Indonésia, muito longe de onde ele estava, mas que criou um crepúsculo avermelhado na
Europa de novembro de 1883 a fevereiro de 1884. Para Rozen isso é uma mostra da
consequência que os desastres têm nas sociedades e que não é preciso estar no lugar da
ocorrência para se sentir afetado por essa situação. A partir dessa reflexão dedico este
trabalho às 88 famílias que estão em área de risco na Vila América, Santo André/SP e que
convivem há mais de 20 anos com as inundações, afetando suas vidas, trazendo
consequências físicas, sociais, biológicas, econômicas e emocionais.
AGRADECIMENTOS
Há tantos a agradecer por tanto que me ajudaram, não somente por terem ensinado, mas
por terem me feito aprender, desenvolver e evoluir como pessoa e como pesquisadora.
Iniciarei meus agradecimentos à uma pessoa que admiro muito e que tive o privilégio
de ter como mestre na graduação, Gil Gonçalves Júnior, que me ensinou, inspirou, incentivou
e ajudou a chegar até aqui. Utilizo a palavra mestre não para me referir à sua titulação, mas pelo
significado substantivo da palavra, “homem que ensina e de muito saber”, ou ainda, como
adjetivo, “que serve de base ou de guia; fundamental”.
Agradeço de modo especial à minha orientadora Mary Jane Paris Spink, que me acolheu
no Núcleo de Estudos e Pesquisa em Práticas Discursivas e Produção de Sentidos, da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, antes mesmo de meu ingresso ao Programa. Agradeço
também pelo carinho e paciência em orientar meus passos durante todos esses anos. Admiro-a
pela mulher que é, que além de ensinar, acolhe, afaga e protege. Ainda na graduação, fui
presenteada com a oportunidade de frequentar os encontros deste grupo de pesquisa tão
competente, rigoroso e acolhedor, não somente dentro da Universidade, mas também nas
participações em Congressos e nos bares, o que possibilitou uma maior interação no
relacionamento com as pessoas que compõe o núcleo.
Sou grata a três pessoas que estiveram comigo mais diretamente nessa trajetória: à uma
pessoa especial que se tornou uma grande amiga, Ju Meireles, obrigada pelo carinho nos
momentos de descontração e de muito trabalho; ao Roberth Tavanti que me ajudou no momento
inicial de pesquisa e que, mesmo durante as férias, leu meus escritos e me orientou sobre a
efetiva contribuição da Psicologia Social no tema riscos e desastres; à um colega que admiro e
respeito muito, Mário Martins, uma pessoa extremamente inteligente, comprometida e
solidária, que me acolheu e me orientou sobre meu tema de pesquisa quando eu ainda estava
elaborando o trabalho de conclusão de curso da graduação e que se manteve durante todo o
mestrado. Mário é um pesquisador fantástico que me inspira constantemente.
Aos preciosos amigos e amigas do núcleo, pelo acolhimento, pela amizade e pelas ricas
conversas que contribuíram para meu fortalecimento pessoal e intelectual durante esses anos.
Muito obrigada Vanda Nascimento, Jacque Brigagão, Vera Menegon, Mariana Cordeiro,
Camila Pereira, Claudia Malinverni, Eliete de Souza, Pedro Figueiredo, George de Luiz,
Simone Conejo, Juliana Camilo, Lupicinio Íñiguez, Rafael Furtado, Sueli Marino, Priscila
Kiseler, Jonas Souza, Elisângela Miranda, José Hercílio Pessoa, Rosa Azevedo, Juliana
Schulze, Simone Borges, Priscila Kiseler, Cintia Helena, Rubens Espejo, Thiago Freitas.
Não posso deixar de agradecer também a todos os colegas dos Programas de Psicologia
Social, Serviço Social e Ciências Sociais da PUC/SP e do Departamento de Saúde Ambiental
da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo que tive o prazer de conhecer nas
disciplinas realizadas durante a dissertação. Sou grata ainda ao professor e professoras que me
acolheram nessas disciplinas: Salvador Sandoval, Maria do Carmo Guedes, Bader Sawaia,
Dirce Koga, Marisa Borin e Gabriela Di Giulio.
Às professoras que compuseram minha banca de qualificação e que contribuíram com
preciosas ideias para esta pesquisa: Bader Sawaia e Gabriela Di Giulio.
À Marlene Camargo, por sempre ajudar com as burocracias institucionais e pelo
carinho.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, pela
concessão da bolsa de mestrado que tornou possível, financeiramente, a realização desta
pesquisa.
À minha família, por terem compreendido e me apoiado no inevitável distanciamento
da convivência nos encontros familiares: meus queridos pais Natalina e Manoel; minhas irmãs
Paula e Fernanda; meu irmão Pedro; minha sobrinha Geovana e meu sobrinho Yuri; minha
querida sogra Mercedes e querido sogro Edson; meus cunhados (as) Adilson, Bruno, Tayany e
Mikaelly.
Agradeço também aos meus parentes que sempre torceram por mim e aos colegas do
Núcleo Grande ABC da Abrapso e do Núcleo de Emergência e Desastres do CRP/SP.
Por fim, agradeço às duas pessoas mais importantes para mim e para o êxito deste
trabalho, por quem busco forças e incentivo para continuar nessa trajetória, minha filha Sophia
e meu companheiro e amigo Anderson. Agradeço a vocês por me incentivar, por suportar meus
momentos de ausência e de angústia, por me falar para parar em certas circunstâncias, por torcer
para a finalização deste trabalho junto comigo e por ter compreendido a importância dele para
mim. Enfim, por me amar incondicionalmente. Amo vocês.
Durante os últimos meses, Sophia me fez algumas perguntas a qual a resposta não a
agradou muito: 1) Mãe está acabando seu trabalho? Não Sophia ainda não, falta muito; 2) E
agora mãe, está acabando? Não Sophia, ainda falta; 3) Quando vai acabar mãe? Em breve.
Finalizarei meus agradecimentos respondendo à pergunta feita por ela hoje: Acabou mãe? Sim
Sophia, acabou.
ASSIS-SILVA. Sandra Luzia. As múltiplas dimensões do risco para pessoas que convivem com
inundações recorrentes: o caso de moradores da Vila América, Santo André/SP (Dissertação de
Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016.
RESUMO
Esta pesquisa tem como objetivo analisar as múltiplas dimensões do risco para pessoas que
convivem com inundações recorrentes, tomando como estudo de caso a Vila América em Santo
André/SP. Para alcançar os objetivos desta pesquisa, adotou-se o enfoque da linguagem dos riscos
na perspectiva teórica desenvolvida no Núcleo de Estudos e Pesquisa em Práticas Discursivas e
Produção de Sentidos (NEPPDS), da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). A
estratégia metodológica contemplou o cruzamento de informações provenientes de cinco
fontes: 1) pesquisa documental com base em documentos de domínio público, jornais e sites;
2) diário de campo da pesquisadora; 3) visitas ao Serviço Municipal de Saneamento Ambiental
de Santo André (Semasa), ao qual está afeto o Departamento de Defesa Civil e à Vila América;
4) entrevista semiestruturada com moradores do bairro, 5) imagens fotográficas provenientes
do acervo dos moradores, feitas pela pesquisadora e de sites. Para análise e interpretação das
entrevistas, foram elaborados mapas dialógicos e os dados obtidos foram confrontados com o
que propõe a literatura especializada sobre risco. Percebemos que a inundação é um fenômeno
que atinge a população de modo geral, ocasionando danos à saúde física e emocional, bem
como materiais e socioeconômicos, evidencia um problema estrutural no país relacionado ao
processo de urbanização, assim como a fragilidade e precariedade das ações e políticas,
especialmente da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil. Os resultados mostram que
trabalhar com os sentidos de risco na vida cotidiana contribui para superar as abordagens
individualistas, tradicionalmente empregadas para entender a maneira de lidar com os riscos na
vida contemporânea. Em relação à convivência com riscos, percebeu-se que a decisão de mudar
ou permanecer em locais sujeitos a inundação depende de fatores relacionados à prioridade que
é dada a determinados riscos e aos sentidos a eles atribuídos, que os colocam em uma escala
hierárquica. Compreender como as pessoas dão prioridade a determinados riscos em
detrimentos de outros, torna-se mais uma opção para aprimorar ações de prevenção. Portanto,
esta pesquisa, produzida por meio do compartilhamento de informações e de observações do
cotidiano da Vila América, visa contribuir para dar visibilidade à problemática relacionada aos
riscos de inundação e à violação dos direitos desses moradores.
Palavras-chave: produção de sentidos; linguagem dos riscos; inundações; desastres; práticas
discursivas; defesa civil.
ASSIS-SILVA. Sandra Luzia. Multiple dimensions of risk for people living with recurrent
flooding: the case of residents in Vila América, Santo André/SP (Master Dissertation).
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016.
ABSTRACT
Our research analyses multiple dimensions of risk for people living with recurrent flooding in
Vila América, Santo André/SP. To achieve our goals, the language of risks approach was used
according to theoretical references developed in the Center for Studies and Research on
Discursive Practices and Meaning Production (NEPPDS in Portuguese) at Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Information was produced according to five
main sources: 1) analyses of public documents; 2) field journals; 3) visits to the Civil Defence
Department at the Municipal Service for Environmental Sanitation of Santo André (Semasa in
Portuguese) and to Vila América; 4) semi-structured interviews with people who live in Vila
América and 5) Photographs taken by residents and the researcher herself. Dialogic maps were
used for analysis and interpretation. Information pro duced with this technic was gathered and
counterpoised with specialized literature on risk. Results show that floods affect people socially,
materially and economically, causing damages to physical and emotional health. Floods also
highlight a structural problem in Brazil related to uncoordinated urbanization processes and
fragile public policies, especially National Police for Civil Protection and Defence. To discuss
the meaning of risk in daily life can contribute to overcame individualistic approaches to risk,
traditionally applied to understand the ways people deal individually with risk in contemporary
life. According to our research, the decision to move away or to stay in areas at risk of flooding
is related to priorities people give to some risks instead of others. The process by which this
hierarchy is produced depends on how people make sense of risks collectively. To understand
how people give priority to certain risks instead of others is an option to i mprove preventive
practices. Therefore, this research aims to give visibility to flood risk issues and civil rights
violations at Vila América.
Keywords: meaning production; language of risks; floods; disaster; discursive practives; civil
defence.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1: Região do Grande ABC, São Paulo
Figura 2: Mapas das áreas inundáveis na Vila América
Figura 3: Casa de W
Figura 4: Casa de W inundada
Figura 5: Rua Nilo Peçanha com lama após inundação
Figura 6: Casa de N inundada
Figura 7: Transbordamento do Córrego Guarará em 10/02/2013
Figura 8: Transbordamento do Córrego Guarará em 10/02/2013
Figura 9: Vila América inundada
Figura 10: Rua Erato inundada (em frente à casa de W)
Figura 11: Rua Erato inundada vista do portão da casa de W
Figura 12: Portão onde o cachorro se machucou
Figura 13: Rua Erato inundada no dia em que o cachorro se machucou
Figura 14: Rua Erato (em frente à casa de W durante chuva)
Figura 15: Construção da galeria na Avenida Pedro Américo, Vila América, 1964
Figura 16: Tanque de retenção de águas pluviais - Piscinão da Vila América
Figura 17: Rua Erato que dá acesso ao Piscinão
Figura 18: Cozinha de W inundada
Figura 19: Quarto de W inundado
Figura 20: Tanque de retenção de águas pluviais - Piscinão da Vila América
Figura 21: Praça 14 Bis na Rua Erato (acesso ao Piscinão)
Figura 22: Av. Santos Dumont
Figura 23: Av. Santos Dumont inundada
Figura 24: Brookfield Century Plaza Business
Figura 25: Sala de W inundada
Tabela 1: Relatório Pós-Chuvas em Santo André/SP – período 2008 a 2014
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 11
1.1 TRAJETÓRIA DE PESQUISA NO CAMPO DOS RISCOS DE DESASTRES ..... 11
1.2 O PROBLEMA DE PESQUISA ............................................................................... 12
1.3 NOTAS SOBRE O REFERENCIAL TEÓRICO ...................................................... 13
1.3.1 A linguagem como prática social ....................................................................... 13
1.4 A ESTRUTURA DA DISSERTAÇÃO ..................................................................... 16
2. BASES CONCEITUAIS PARA PENSAR OS RISCOS NA VIDA COTIDIANA ... 17
2.1 RISCO COMO PRÁTICA DISCURSIVA ................................................................ 19
2.2 DO OTIMISMO QUANTO À GESTÃO DOS RISCOS ÀS CRÍTICAS DAS
CIÊNCIAS SOCIAIS ........................................................................................................... 23
2.2.1 Teoria Cultural do Risco .................................................................................... 23
2.2.2 Teoria Social do Risco ........................................................................................ 26
2.3 APONTAMENTOS SOBRE A PERCEPÇÃO DE RISCOS .................................... 29
3. OBJETIVOS E PROCEDIMENTOS............................................................................ 36
3.1 OBJETIVO GERAL .................................................................................................. 36
3.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS .................................................................................... 36
3.3 PROCEDIMENTOS DE PESQUISA ....................................................................... 37
3.4 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES ................................... 42
4. CONTEXTUALIZAÇÃO DA VILA AMÉRICA ........................................................ 44
4.1 A CONSTITUIÇÃO DO BAIRRO ........................................................................... 44
4.1.1 Formação da Vila América ................................................................................. 44
4.1.2 A Vila América hoje ........................................................................................... 47
4.2 AS INUNDAÇÕES NA VILA AMÉRICA ............................................................... 49
5. AS MÚLTIPLAS DIMENSÕES DO RISCO NA PERSPECTIVA DOS
MORADORES QUE CONVIVEM COM AS INUNDAÇÕES RECORRENTES NA
VILA AMÉRICA .................................................................................................................... 62
5.1 APRESENTANDO OS INTERLOCUTORES ......................................................... 62
5.1.1 A história de W ................................................................................................... 62
5.1.2 A história de N .................................................................................................... 64
5.2 A CONVIVÊNCIA COM AS INUNDAÇÕES DO CÓRREGO GUARARÁ ......... 66
5.2.1 Afinal, que córrego é esse? ................................................................................. 72
5.2.2 Por que ficar? A casa e a vizinhança .................................................................. 77
5.2.3 Sair na marra? A sombra da desapropriação e da remoção ................................ 84
6. A RESPOSTA DO PODER PÚBLICO ......................................................................... 86
6.1 SOLUÇÃO DO PROBLEMA DAS INUNDAÇÕES POR MEIO DE OBRAS ...... 86
6.1.1 SOLUÇÕES QUE CRIAM MAIS PROBLEMAS: O PISCINÃO .................... 91
6.2 AS AÇÕES LOCAIS DE PROTEÇÃO E DEFESA CIVIL ..................................... 95
6.3 A PRESENÇA DAS EMPRESAS PRIVADAS ..................................................... 103
6.4 CONVIVÊNCIA COM INUNDAÇÕES NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS .. 106
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 113
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 118
APÊNDICES ......................................................................................................................... 126
APÊNDICE I - Informações sobre a ocorrência de desastres associados às chuvas no Estado
de São Paulo ........................................................................................................................... 127
APÊNDICE II – Termo de consentimento livre e esclarecido ............................................. 141
APÊNDICE III - Termo de autorização de uso de imagem ................................................. 143
APÊNDICE IV - Exemplos de mapas dialógicos ................................................................. 144
11
1. INTRODUÇÃO
1.1 TRAJETÓRIA DE PESQUISA NO CAMPO DOS RISCOS DE DESASTRES
Minha trajetória de pesquisa no campo dos riscos de desastres começou a se configurar
ainda durante a graduação. O primeiro passo foi a aproximação ao Núcleo Grande ABC da
Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO), impulsionando meu interesse em
Psicologia Social, que passou a preponderar sobre as demais áreas de atuação da Psicologia.
O segundo foi dado do terceiro para o quarto ano de graduação, com a aceitação do
convite para compor o grupo de pesquisa G-14 da Universidade do Grande ABC (UNIABC),
cujo tema era: “Experiências inovadoras na formação do professor na área de saúde: uma
perspectiva interdisciplinar”, desenvolvido por pesquisadores de diversas áreas do saber e
alunos na Universidade do Grande ABC. Além da participação na pesquisa em questão, havia
a possibilidade da realização do trabalho de conclusão de curso (TCC) sob a orientação de
algum professor do grupo. Como um dos integrantes era um professor de Psicologia Social, a
realização do trabalho pôde ser nesse âmbito, com o título: Atuação do psicólogo com
moradores em área de risco: um enfoque psicossocial. A escolha do tema configurou-se após
o trágico desastre ocorrido na região serrana do Rio de Janeiro em 2011, que deflagrou
questionamentos sobre a possível contribuição da Psicologia frente a essa ocorrência.
A área de pesquisa em riscos e desastres era desconhecida dos integrantes do G-14,
então, uma aproximação extremamente relevante para os desdobramentos do trabalho foi o
contato com o Núcleo de Estudos e Pesquisa em Práticas Discursivas e Produção de Sentido
(NEPPDS), da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), que vem
desenvolvendo pesquisas voltadas à gestão dos riscos na modernidade tardia. Essa aproximação
auxiliou na definição do referencial teórico do TCC, assim como resultou na minha escolha da
pós-graduação stricto senso para o desenvolvimento desta dissertação de mestrado.
Desde então, o interesse pelo tema foi se intensificando, levando-me também à
aproximação, em 2012, ao Núcleo sobre Psicologia em Emergências e Desastres do Conselho
Regional de Psicologia de São Paulo (CRP/SP), com a consequente participação como membro
desse núcleo desde 2014 até os dias atuais.
12
1.2 O PROBLEMA DE PESQUISA
As configurações das áreas de risco no Brasil refletem um problema que o país vem
enfrentando e se intensificou atualmente: processos sociais de urbanização acelerada e não
planejada, marcados pela presença de dinâmicas socioeconômicas novas e pela concentração
populacional em áreas urbanas. Tais fatores se expressam no cotidiano das pessoas que
convivem diretamente com riscos de desastres ou são afetadas de forma indireta por esse
fenômeno.
Diante disso, o problema desta pesquisa é analisar o modo pelo qual as pessoas que
convivem com inundações recorrentes lidam com as múltiplas dimensões do risco expressas
nesse fenômeno, pois entendemos que o risco não é igualmente compreendido por todas as
pessoas e as diversas compreensões alteram os modos pelos quais as pessoas gerenciam suas
vidas, tomam decisões sobre assuntos de interesse pessoal e social e modificam o seu entorno.
Buscando conhecer e entender os diversos olhares sobre a temática, participei da 2ª
Conferência Municipal de Proteção e Defesa Civil de São Paulo e da 1ª Conferência
Intermunicipal de Proteção e Defesa Civil do Grande ABC, quando pude dialogar com
representantes da sociedade civil, pesquisadores, voluntários e profissionais que atuam na área.
Dessa interlocução, especialmente com representantes de órgãos municipais responsáveis pela
Defesa Civil, resultou a escolha da Vila América, no município de Santo André, uma área de
risco com moradias legalizadas pelo poder público, como campo de pesquisa.
Utilizo o termo campo de pesquisa apoiada na proposta de Peter Spink (2003) que, em
seus estudos sobre pesquisa em Psicologia Social, defende que o pesquisador faz parte do
campo-tema desde o momento em que diz estar trabalhando com determinado assunto,
descartando assim a neutralidade das Ciências Sociais. Logo, minha escolha pelo tema desta
pesquisa e pelo local em que a realizei reflete minha trajetória de pesquisa iniciada ainda na
graduação, pois, ainda conforme o autor, o pesquisador não sai do campo, tendo em vista que
o campo não é um lugar específico, delineado, separado e distante, ou seja, o campo
compreende a problemática existente e suas relações; são redes de sociabilidades e
materialidades que se interconectam das mais diferentes maneiras.
A Vila América é uma área legalizada pelo poder público, que sofre há mais de 20 anos
com o problema das inundações e com o crescente agravamento da situação, ou seja, o problema
foi se intensificando com o passar dos anos sem que ações eficazes fossem realizadas.
Outro aspecto relevante para a escolha do campo foi o fato do município estar entre os
821 mais vulneráveis do ponto de vista do meio físico, de acordo com parâmetros obtidos nos
13
arquivos da Secretaria Nacional de Defesa Civil: número de mortes, frequência de grandes
eventos destrutivos e população atingida ou afetada. (BRASIL, 2016). Ademais, Santo André
inclui-se entre os municípios que foram considerados prioritários pelo Governo Federal, com
base em critérios específicos, como a recorrência de inundações, enxurradas e deslizamentos,
bem com o número de óbitos e desabrigados, registrados nos últimos 20 anos.
Dessa lista, 263 municípios receberam o mapeamento das áreas de risco do Serviço
Geológico do Brasil (CPRM), via Ministério de Minas e Energia, como ação emergencial para
delimitação de áreas em Alto e Muito Alto Risco a enchentes, inundações, e movimentos de
massa (deslizamentos), sendo que Santo André foi um dos municípios beneficiários.
Diante desse problema, buscaremos analisar as múltiplas dimensões do risco para
pessoas que convivem com inundações recorrentes, tomando como estudo de caso a Vila
América em Santo André/SP.
1.3 NOTAS SOBRE O REFERENCIAL TEÓRICO
Esta pesquisa insere-se no âmbito da Psicologia Social e sua proposta teórico-
metodológica é o estudo da produção de sentidos na vida cotidiana e a circulação de repertórios
em uma perspectiva histórica e social, tendo por foco a linguagem dos riscos.
Tem como referencial norteador mais importante o livro organizado por Mary Jane
Spink (1999/2013), Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações
teóricas e metodológicas, que buscou entender os fenômenos do cotidiano com base em um
olhar pautado pela dialogia dos processos sociais implícita nas práticas discursivas do dia-a-
dia.
Utilizamos, ainda, o texto Práticas discursivas como estratégias de
governamentalidade: a linguagem dos riscos em documentos de domínio público (SPINK;
MENEGON, 2004) como referência para a breve contextualização do conceito histórico de
linguagem dos riscos.
1.3.1 A linguagem como prática social
Para Mary Jane Spink e Vera Menegon (2004), a filosofia clássica, tendo por base
pressupostos ontológicos e epistemológicos realistas, fez com que a linguagem assumisse o
papel de mediação entre mente (interna) e mundo (externo). Em contraposição a essa
14
perspectiva, um conjunto de estudos começou a ser realizado com vistas a promover inversões
no modo pelo qual se compreendia a linguagem: deslocamento do foco na cognição para a
comunicação; deslocamento do foco no pensamento (ou ideias) para a linguagem exteriorizada,
a linguagem em uso, e deslocamento da língua como estrutura (la langue) para o foco na
produção de sentidos (la parole).
Esses deslocamentos possibilitaram que a linguagem fosse abordada como uma prática
que promove a construção de realidades. Das inversões citadas, o deslocamento do foco na
interioridade da mente para a exterioridade do uso é aquele que propicia a base para a
elaboração do conceito da linguagem dos riscos, incorporando as noções de formações
discursivas e práticas discursivas.
Compreendendo a linguagem como uma prática social, é necessário, segundo Mary Jane
Spink e Benedito Medrado (1999/2013), utilizar duas terminologias distintas para trabalhar os
diferentes níveis de análise: o primeiro é o discurso decorrente dos processos de
institucionalização e o segundo concerne aos momentos ativos do uso da linguagem, nos quais
convivem tanto a ordem como a diversidade. Os autores utilizam a expressão práticas
discursivas para se referir aos momentos de ressignificações, de rupturas, de produção de
sentido.
Dito de outra forma, o discurso está relacionado às regularidades linguísticas, ou seja,
discursos específicos e institucionalizados de determinadas áreas do saber, grupos sociais ou
estruturas que, ao se institucionalizarem, tendem à permanência no tempo, contrapondo-se
assim às mudanças históricas. Assim, ancorados nas reflexões de Mikhail Bakhtin (1929/1995),
os autores defendem que os discursos se aproximam da noção de linguagens sociais, que são
discursos peculiares a um estrato específico da sociedade num determinado contexto ou em um
determinado momento histórico, como uma profissão ou um grupo etário, por exemplo.
Ainda apoiados em Bakhtin (1995), os autores enfocam a questão do contexto, ou seja,
a situação, os interlocutores presentes ou presentificados, os espaços e o tempo. Para eles, essas
questões moldam a forma e o estilo ocasional das enunciações, ou seja, os gêneros de fala,
definidos como formas mais ou menos estáveis de enunciados que buscam coerência com o
contexto: o tempo e o(s) interlocutor(es) (SPINK; MEDRADO, 1999/2013).
Nessa perspectiva, o conceito de práticas discursivas remete, por sua vez, à linguagem
em ação, ou seja, às maneiras mediante as quais as pessoas, no cotidiano da vida, produzem
sentidos e se posicionam em relações sociais cotidianas e que têm como elementos
constitutivos: a dinâmica, ou seja, os enunciados orientados por vozes; as formas, que são os
15
speech genres; e os conteúdos, que são os repertórios interpretativos. Seguem definições nas
palavras dos autores:
Os conceitos de enunciados e vozes caminham juntos na abordagem de Bakhtin:
ambos descrevem o processo de interanimação dialógica que se processa numa
conversação. Em outras palavras, os enunciados de uma pessoa estão sempre em
contato com, ou são endereçados a, uma ou mais pessoas e esses se interanimam
mutuamente, mesmo quando os diálogos são internos. As vozes compreendem esses
interlocutores (pessoas) presentes (ou presentificados) nos diálogos.
Na perspectiva bakhtiniana, linguagem é, por definição, uma prática social. A pessoa
não existe isoladamente, pois os sentidos são construídos quando duas ou mais vozes
se confrontam: quando a voz de um ouvinte (listener) responde à voz de um falante
(speaker) (Wertsch, 1991). Entretanto, as vozes às quais um enunciado é dirigido
podem estar espacial ou temporalmente distanciadas. Dessa forma, inclusive o
pensamento é dialógico: nele habitam falantes e ouvintes que se interanimam
mutuamente e orientam a produção de sentidos e enunciados.
Os repertórios interpretativos são, em linhas gerais, as unidades de construção das
práticas discursivas – o conjunto de termos, descrições, lugares-comuns e figuras de
linguagem – que demarcam o rol de possibilidades de construções discursivas, tendo
por parâmetros o contexto em que essas práticas são produzidas e os estilos
gramaticais específicos ou speech genres. (SPINK; MEDRADO, 1999/2013, p. 26-
28, grifos dos autores)
Para Spink e Medrado (1999/2013, p.22), “o sentido é uma construção social, um
empreendimento coletivo, mais precisamente interativo, por meio do qual as pessoas, na
dinâmica das relações sociais historicamente datadas e culturalmente localizadas, constroem os
termos que utilizam para compreender e lidar com as situações e fenômenos a sua volta”.
Trabalhar com os sentidos de risco na vida cotidiana, na perspectiva desses autores,
possibilita superar as abordagens individualistas tradicionalmente empregadas para entender a
maneira de lidar com os riscos na vida contemporânea, e buscar a compreensão da
complexidade gerada na convivência com riscos de moradores da Vila América, na cidade de
Santo André, que sofre constantemente com inundações em seu território.
No entanto, para compreender os sentidos num dado contexto, é necessário analisar o
diálogo contínuo entre sentidos novos e antigos, o que demanda adotar uma perspectiva
temporal. Para os autores ora citados, os sentidos passados podem não ser estáveis, ou seja, são
passíveis de renovação nos diálogos presentes ou futuros e, assim, a qualquer momento, podem
ser atualizados assumindo outras formas.
Spink e Medrado (1999/2013) trabalham as práticas discursivas na interface de três
tempos históricos: o tempo longo, que marca os conteúdos culturais, definidos ao longo da
história da civilização; o tempo vivido, das linguagens sociais aprendidas pelos processos de
socialização, e o tempo curto, marcado pelos processos dialógicos. Portanto, compreender o
modo como os sentidos circulam no cotidiano, implica considerar a interface desses tempos, na
qual se processa a produção de sentidos.
16
Baseados nesta perspectiva teórica, compreender o cotidiano implica reconhecer os
espaços e relações na ótica dos micro-lugares, considerando os eventos que acontecem no
cotidiano da vida e nos espaços de convivência comunitária das pessoas. Para Peter Spink
(2008), os micro-lugares estão além da concepção de espaço físico: eles constituem o campo
relacional humano com as materialidades de uma determinada matriz, ou seja, a execução de
sucessivas atividades coletivas permanentes e sem fim.
Por meio desta abordagem, esta pesquisa buscará contribuir para a construção de
modos de observação dos fenômenos sociais que tenham como foco a tensão entre a
universalidade e a particularidade, entre o consenso e a diversidade, com vistas a produzir uma
ferramenta útil para promover transformações sociais.
1.4 A ESTRUTURA DA DISSERTAÇÃO
Estruturamos esta pesquisa em seis capítulos, contando com esta parte introdutória, na
qual buscamos posicionar o leitor quanto ao caminho percorrido no campo, o qual suscitou
alguns questionamentos que serviram como disparadores para a elaboração desta dissertação.
Apresentamos ainda o referencial teórico que norteou o trabalho.
No segundo capítulo são apresentadas as bases conceituais desse referencial, que se
propõe a pensar os riscos na vida cotidiana. Nele traçamos uma visão panorâmica sobre os
diferentes repertórios dos sentidos históricos do risco e das Teorias Sociais e Culturais do Risco
que contribuíram como referência para a construção da abordagem da linguagem dos riscos.
O terceiro capítulo tem como foco os objetivos da pesquisa, assim como apresenta
sistematicamente os procedimentos e estratégias de análise das informações utilizadas para
alcançar esses objetivos. Foi adotado um roteiro metodológico que contemplou o cruzamento
de informações provenientes de cinco fontes: 1) pesquisa documental com base em documentos
de domínio público, jornais e sites; 2) diário de campo da pesquisadora; 3) visitas ao Serviço
Municipal de Saneamento Ambiental de Santo André (Semasa), autarquia à qual está afeto o
Departamento de Defesa Civil e à Vila América; 4) entrevista semiestruturada com moradores
do bairro, 5) imagens fotográficas, provenientes do acervo dos moradores, feitas pela
pesquisadora e de sites. Para análise e interpretação foram utilizados mapas dialógicos.
Buscamos, no quarto capítulo, contextualizar a Vila América, apresentando a sua
formação e configuração atual, assim como o histórico das inundações nesse bairro. Ainda com
o objetivo de contextualizar a Vila América, no quinto capítulo apresentamos nossos
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interlocutores e as múltiplas dimensões do risco vivenciadas por eles, recorrendo a imagens
para ilustrar o conteúdo tratado.
No sexto capítulo apontamos as ações e obras promovidas pelo poder público como
resposta à problemática, assim como as questões dos direitos na perspectiva dos moradores.
Trouxemos, como apêndices, informações sobre a ocorrência de desastres associados às
chuvas no Estado de São Paulo, conceitos de desastres, propostos por autores das Ciências
Sociais, da Psicologia e inclusos em documentos de domínio público que embasam as políticas
brasileiras. Para finalizar disponibilizamos o modelo do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE), Termo de Autorização de Uso de Imagem e os Mapas Dialógicos.
2. BASES CONCEITUAIS PARA PENSAR OS RISCOS NA VIDA COTIDIANA
Embora não seja objetivo desse trabalho traçar a trajetória das abordagens que
contribuíram para a formalização e a disseminação da abordagem dos riscos como estratégia de
governo, buscaremos fornecer uma visão panorâmica dos sentidos históricos de risco seguindo
o caminho traçado por Mary Jane Spink, nos artigos intitulados: Tópicos do discurso sobre
risco: risco-aventura como metáfora na modernidade tardia (2001) e Contornos do risco na
modernidade reflexiva: contribuições da psicologia social (2000). Nesses artigos, a autora
discorre sobre risco citando três dimensões: uma forma de se relacionar com o futuro, uma
forma de conceituar risco e uma forma de gerir os riscos.
Considerando o risco como uma forma específica de se relacionar com o futuro, Spink
reitera que a palavra risco emerge na pré-modernidade, ou seja, na transição entre a sociedade
feudal e as novas formas de territorialidade que dariam origem aos Estados-nação. Embora o
conceito esteja relacionado à modernidade, se olharmos ao longo da história, veremos que a
humanidade sempre enfrentou perigos diversos, sejam os riscos involuntários, decorrentes de
catástrofes naturais como furacões, secas, inundações, terremotos, erupções vulcânicas, sejam
aqueles associados às guerras e às vicissitudes da vida cotidiana, como incêndios, acidentes
industriais, nucleares, ou ainda os riscos voluntários, decorrentes do que chamaríamos hoje de
“estilo de vida”.
No entanto, esses eventos eram referidos como perigos, fatalidades, hazards ou
dificuldades, mesmo porque a palavra risco não estava disponível nos léxicos das línguas indo-
europeias. Esses repertórios referiam-se à possibilidade de ocorrência de eventos vindouros, em
um momento histórico no qual o futuro ainda não era pensado como passível de controle.
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Spink (2000) relata ser provável que a palavra risco tenha sido usada inicialmente como
termo náutico para denominar perigos invisíveis, como penhascos submersos que eram
prováveis, portanto passíveis de cálculo. A associação entre a palavra risco e a vida marítima
ocorreu em um período no qual a navegação era considerada importante base da atividade
comercial, emergindo, com isso, a necessidade de uma ferramenta para o cálculo das
probabilidades da ocorrência do evento.
Atrelado ao conceito de risco ocorre a sofisticação da estatística e seu uso como ciência
do Estado. Spink (2001) ressalta que o significado de estatística é status, que em latim quer
dizer estado ou condição. Em seu sentido inicial, a estatística era o ramo da ciência política que
dizia respeito à coleção e classificação de fatos relevantes para a tarefa administrativa. Nesse
sentido que ela encontra uma primeira função no governo das populações, na Ciência da Política
dos estados alemães dos séculos XVIII e XIX.
Para a autora, essa nova maneira de entender risco pode ser descrita tomando-se por
base os repertórios linguísticos disponíveis para significar o futuro. Há, portanto, uma
incorporação gradativa de termos, passando de fatalidade a fortuna e incorporando
paulatinamente os vocábulos hazard (século XII), perigo (século XIII), sorte e chance (século
XV) e, no século XVI, risco.
Na pré-modernidade o risco emerge como vocábulo, tornando-se um conceito
fundamental na modernidade clássica, que envolveu, de um lado, o lento desenvolvimento da
teoria da probabilidade, cuja história tem início no século XVII e, de outro, a sofisticação da
estatística e do seu uso como ciência do Estado, configurando a segunda dimensão histórica dos
riscos.
Spink (2001) ressalta que o avanço do cálculo de probabilidade foi fundamental para
que a coleta de informações sobre a população se tornasse um instrumento fundamental de
governo, permitindo a gestão dos riscos, prática que tem sua idade de ouro no século XIX. Ao
mesmo tempo em que emergem ferramentas para o cálculo das probabilidades, diversas
transformações no contexto europeu a partir da Segunda Guerra Mundial, contribuíram para
que o cálculo dos riscos se tornasse uma preocupação central da sociedade e com isso,
paulatinamente, a mensuração do risco tornou-se uma ferramenta útil para o governo das
populações.
Com foco no contexto histórico sobre a linguagem dos riscos, percebemos no discurso
relacionado à probabilidade, importantes desdobramentos que nos ajudam a compreender como
atualmente o conceito de risco vem sendo utilizado em âmbito mundial e em âmbito nacional
por órgãos responsáveis pela gestão da problemática dos ricos.
19
Em âmbito mundial, na Estratégia Internacional para a Redução de Desastres, risco é
conceituado como:
Probabilidade de consequências prejudiciais ou perdas esperadas (mortes, lesões,
propriedades, meios de subsistência, interrupção de atividade econômica ou ambiente,
ameaças naturais ou antropogênicas e condições de vulnerabilidade).
Convencionalmente, o risco é expresso por Risco = Ameaças x Vulnerabilidade.
Algumas disciplinas também incluem o conceito de exposição para referir-se
principalmente aos aspectos físicos da vulnerabilidade. Mas além de expressar uma
possibilidade de dano físico, é crucial reconhecer que os riscos podem ser inerentes,
aparecem ou existem dentro de sistemas sociais. Igualmente é importante considerar
os contextos sociais nos quais os riscos ocorrem, pois a população não
necessariamente compartilha as mesmas percepções sobre o risco e suas causas
subjacentes. (EIRD, 2015, p. 17-18).
No documento brasileiro intitulado “Glossário de Defesa Civil, Estudos de Riscos e
Medicina de Desastres”, encontramos cinco definições de risco:
1. Medida de dano potencial ou prejuízo econômico, expressa em termos de
probabilidade estatística de ocorrência e de intensidade ou grandeza das
consequências previsíveis. 2. Probabilidade de ocorrência de um acidente ou evento
adverso, relacionado com a intensidade dos danos ou perdas, resultantes dos mesmos.
3. Probabilidade de danos potenciais dentro de um período especificado de tempo e/ou
de ciclos operacionais. 4. Fatores estabelecidos, mediante estudos sistematizados, que
envolvem uma probabilidade significativa de ocorrência de um acidente ou desastre.
5. Relação existente entre a probabilidade de que uma ameaça de evento adverso ou
acidente determinado se concretize e o grau de vulnerabilidade do sistema receptor a
seus efeitos (BRASIL, 2015, p. 162).
Nos documentos oficiais de âmbito internacional ou nacional, portanto, risco vem sendo
considerado como passível de mensuração e cálculos, ou seja, os diferentes conceitos sobre
risco, formatados a partir da modernidade, estão relacionados à probabilidade de ocorrência de
um evento adverso, causando danos ou prejuízos à sociedade.
2.1 RISCO COMO PRÁTICA DISCURSIVA
Segundo Mary Jane Spink (2001), como já indicado, com o avanço do cálculo das
probabilidades no século XIX, os dados previstos passam a se tornar um instrumento
fundamental de governo. Entretanto, será apenas em meados do século XX que ocorrerá a
progressiva formalização do conceito e o aperfeiçoamento das técnicas de cálculo dos riscos.
Essa passagem é marcada pela relevante contribuição da epidemiologia, levando, na segunda
metade do século XX, à formatação de um campo de saber muito específico, denominado gestão
20
de riscos, que é o resultado da junção do cálculo de probabilidades e da herança da função
política da estatística, responsáveis por gerar os sofisticados modelos de análise de riscos.
Para a autora, é a partir da década de 1950 que o campo interdisciplinar da análise dos
riscos se fortalece, no contexto dos riscos associados à energia nuclear, englobando três áreas
de especialidade: o cálculo dos riscos (risk assessment), a percepção dos riscos pelo público e
a gestão dos riscos. Atualmente, a gestão dos riscos passou a englobar também a comunicação
sobre riscos ao público.
O cálculo dos riscos consiste na identificação dos efeitos adversos potenciais do
fenômeno em análise, a estimativa de sua probabilidade e da magnitude de seus efeitos. A
percepção dos riscos volta-se à relação entre o público e os riscos, focando ainda na perspectiva
do controle preventivo dos riscos, buscando, por meio da educação, influir nos comportamentos
deletérios para a saúde do corpo e do meio ambiente. A gestão dos riscos está relacionada a
quatro estratégias integradas: os seguros, as leis de responsabilização por danos, a intervenção
governamental direta e a autorregulação. Progressivamente, passou a incorporar também a
comunicação sobre riscos, na medida em que a participação pública quer na aceitação, quer no
autocontrole, passou a ser elemento imprescindível do controle social dos riscos.
Remontando às origens históricas dos discursos dos cálculos de probabilidades
apresentadas anteriormente, Mary Jane Spink e Vera Menegon (2004) propõem três tradições
distintas para compreender o conceito de risco na modernidade tardia: uma está relacionada
com a crescente necessidade de governar coletivos, a outra com a disciplinarização da vida
privada e também com o risco como aventura.
A tradição do risco como aventura está ligada aos campos do esporte e da economia,
propondo justificativa positiva em se correr risco para alcançar determinados ganhos. Trata-se
de uma tradição em que correr risco é o desejado.
A tradição relacionada à necessidade de governar coletivos é fruto da modernidade
clássica e está voltada à crescente necessidade de governar populações por meio de medidas
coletivas voltadas ao gerenciamento das relações espaciais, ou seja, à distribuição e ao
movimento das pessoas nos espaços físicos e sociais. A forma de governar coletivos nos
possibilita compreender o risco como forma de controle; como estratégia de
governamentalidade, conceito desenvolvido por Michel Foucault em vários escritos. Nas
palavras desse autor:
Vivemos na era da "governamentalidade", aquela que foi descoberta no século XVIII.
Governamentalização do Estado que é um fenômeno particularmente tortuoso, pois,
embora efetivamente os problemas da governamentalidade, as técnicas de governo,
21
tenham se tornado de fato o único espaço real da luta e dos embates políticos, essa
governamentalização do Estado foi, apesar de tudo, o fenômeno que permitiu ao
Estado sobreviver. E é possível que, se o Estado existe tal como ele existe agora, seja
precisamente graças a essa governamentalidade que é ao mesmo tempo exterior e
interior ao Estado, já que são as táticas de governo que, a cada instante, permitem
definir o que deve ser do âmbito do Estado e o que não deve, o que é público e o que
é privado, o que é estatal e o que é não estatal. Portanto, se quiserem, o Estado em sua
sobrevivência e o Estado em seus limites só devem ser compreendidos a partir das
táticas gerais da governamentalidade (FOUCAULT, 2008, p. 145).
Com foco no risco, o autor aponta para duas dimensões: a primeira relativa ao
gerenciamento de pessoas nos espaços físicos e sociais, e a segunda relacionada às condições
de vida no âmbito da saúde, fazendo-se necessário o controle dos riscos de algumas doenças
(FOUCAULT, 1979). Na perspectiva de governar a população, discutir a noção de risco
possibilita compreender as relações entre governantes e governados, tanto quanto quem é
responsável por legislar os riscos nas diferentes esferas do fazer humano.
De acordo com Spink (2000), essa definição é importante, pois como cada risco
demanda avaliação e regulação, para tanto, é necessária a contratação de peritos e a criação de
comissões técnicas responsáveis, o que nos permite compreender que o conceito se tornou, ao
longo do tempo, objeto de gestão que se expressa de formas diferentes quando usada em
contextos distintos.
Assim, a gestão dos riscos, como um fenômeno da modernidade tardia, é uma forma de
governar populações, sendo necessário compreende-la na perspectiva das mudanças que vêm
ocorrendo na esfera das estratégias de governamentalidade, pois estarmos vivenciando o fim da
sociedade disciplinar (ou modernidade clássica) e ingressando na era da sociedade de risco (ou
modernidade tardia). Isso implica entender como passamos do foco na gestão da vida para o
foco na gestão do risco (SPINK, 2001).
Para Spink e Menegon (2004), a análise dos riscos, tendo como base, além da gestão,
também cálculo deles, fez com que a percepção do risco pelas pessoas e recentemente a
comunicação do risco para o público, se convertesse em cenário de debates que confrontam
posturas objetivistas e socioculturais que partem de distintas definições do que vem a ser risco
e estão imbricadas com valores e ordens morais que extrapolam a racionalidade do cálculo do
risco. Esse debate, na modernidade tardia, desloca-se da esfera dos valores para a esfera do
cálculo, ponderando que os riscos manufaturados tendem a ser imponderáveis.
No entanto, sejam os riscos calculáveis ou imponderáveis, na medida em que afetam as
pessoas, são obrigatoriamente objetos de gestão pública, seja nos microcontextos de cada
cidade, Estado, nação, ou no macrocontexto da sociedade globalizada. Portanto, precisam ser
calculados, segurados e gerenciados.
22
Mediante os processos de socialização herdamos tensões advindas da forma como certas
constâncias discursivas se formaram na sociedade moderna, são elas:
1) tensão entre uma perspectiva coletiva de gerenciamento de risco – apoiada na
legislação – e uma perspectiva mais individualista de introjeção da disciplina; 2)
tensão entre as visões de leigos e de especialistas – os especialistas mais apoiados na
quantificação dos riscos enquanto os leigos lançam mão da informação disponível; 3)
tensão entre o imperativo da prevenção dos riscos e a percepção de que correr risco
ajuda a formar o caráter ou a liberar a criatividade (SPINK; MENEGON, 2004,
p.282).
Essas tensões e diferenças emergem dos distintos gêneros de fala utilizados em
diferentes campos, nos quais, mesmo preservada a ideia de controle baseado em cálculos, a
linguagem dos riscos assume conotações singulares e usos específicos, típicos das práticas
discursivas das diferentes arenas de atividade.
Considerando-se que a gestão de risco é uma estratégia de governamentalidade, faz-se
importante compreender como esse processo vem ocorrendo nas instâncias responsáveis, em
nosso país, pelas ações de regulação e controle, tanto quanto como tais instâncias o entendem.
A Defesa Civil considera a gestão de risco como qualquer atividade que aborda ou busca evitar
o aumento ou o desenvolvimento de novos riscos de desastres (CEPED UFSC, 2014).
A questão mundial da gestão de riscos de desastres surgiu essencialmente após 1998,
inspirada na realidade posta em evidência pelo desastre associado ao furacão Mitch e seus
desdobramentos. O furacão Mitch afetou grandes áreas em Honduras, Nicarágua, El Salvador,
Guatemala e Sul da Flórida, EUA, em outubro-novembro de 1988, causando mais de seis
bilhões de dólares de prejuízos e cerca de 18.000 mortes. Foi assim que se desenvolveu um
novo modelo que evoluiu da gestão de desastres (com ênfase na resposta) para a gestão de riscos
de desastres, que envolve intenções fundamentadas de redução de riscos e de desastres no
contexto do planejamento do desenvolvimento econômico e social (CEPED UFSC, 2014).
No Brasil, o marco para se discutir a gestão de risco, no âmbito da Política de Proteção
e Defesa Civil, foi a aprovação da Lei n° 12.608, de 10 de abril de 2012, que também passou
contemplar as atividades focadas em ações preventivas, de socorro, assistenciais e recuperativas
destinadas a evitar desastres e minimizar seus impactos para a população e restabelecer a
normalidade.
Durante muitos anos, em conformidade com a antiga Resolução n° 2, de 12 de
dezembro de 1994, do Conselho Nacional de Defesa Civil, a Política Nacional de Defesa Civil
previa ações de redução dos desastres que abrangiam quatro fases ou aspectos globais, a saber:
23
prevenção de desastres, preparação para emergências e desastres, resposta aos desastres e
reconstrução.
Atualmente, esses conceitos foram atualizados pela Estratégia Internacional para a
Redução de Desastres e também sofreram alteração no Brasil com a edição da lei acima citada,
tendo como principal diretriz a necessidade de uma abordagem sistêmica das ações de
prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação (CEPED UFSC, 2014).
Os desafios da administração de riscos e de desastres exigem a construção de um
caminho que incorpore uma gestão integrada de riscos de desastres nas diferentes esferas
governamentais, assim como entre as diversas áreas do saber. Esse campo interdisciplinar tem
focado suas ações nas percepções e comunicações dos riscos pelo público, assim como na
construção de cidades resilientes.
2.2 DO OTIMISMO QUANTO À GESTÃO DOS RISCOS ÀS CRÍTICAS DAS
CIÊNCIAS SOCIAIS
Todas essas arenas iniciaram-se num clima de franco otimismo, mas progressivamente
se depararam com críticas, sobretudo por parte de antropólogos e, mais tarde, sociólogos,
ecologistas e pensadores de outras áreas do saber, incluindo aí a Psicologia.
As críticas feitas por essas diferentes correntes teóricas partiram das ciências sociais,
mais especificamente da antropóloga Mary Douglas com a Teoria Cultural do Risco, e do
sociólogo Ulrich Beck com a Teoria Social do Risco, que se constituíram em referência
histórica para a construção da abordagem da linguagem dos riscos, base teórica desta pesquisa.
2.2.1 Teoria Cultural do Risco
Considerando as diferentes correntes teóricas, as abordagens da área das ciências sociais
coadunam entre si a crítica à hegemonia exercida pelas análises quantitativas e técnicas em
relação ao risco, sobretudo por ignorarem que as causas dos danos e a magnitude das
consequências são socialmente construídas.
A primeira crítica a essas análises vêm da antropóloga Mary Douglas com os estudos
denominados teoria Cultural do Risco. Essa autora (1992) considera que as ações relacionadas
aos riscos são frequentemente produtos de fenômenos socialmente organizados, que criam nas
pessoas significados próprios e são por ela nomeados como habituação socializada. Esse
24
significado é resultado da seleção dos riscos priorizados como relevantes para as pessoas diante
do contexto social no qual estão inseridas.
Esta perspectiva surge, originalmente, com estudos antropológicos de rituais de
purificação em sociedades tribais, registrados no livro Purity and Danger (DOUGLAS, 1966)
e é considerado o marco inicial da abordagem cultural dos riscos. Nesta obra, a autora analisa
a poluição moral a partir do estudo das relações entre restrições alimentícias e ordem social,
concluindo que quaisquer que sejam os riscos objetivos, as organizações sociais tendem a
enfatizar aqueles que possibilitam um reforço das ordens religiosa, política ou moral, a fim de
que estas se mantenham coesas.
Nessa dinâmica, os riscos se tornam parte de um processo sociocultural, que pode não
estabelecer relação direta com o seu caráter objetivo, mas sim com o processo cultural
socializado por um grupo de pessoas.
Fundada nesse estudo, e com o objetivo de analisar o comportamento de risco em
sociedades modernas, Douglas une-se a Aaron Wildavsky para elaborar uma abordagem mais
geral sobre os riscos, que inclui tanto as sociedades modernas como as tribais, e que foi
apresentada no livro Risk and Culture (DOUGLAS; WILDAVSKY, 1982). O foco principal
foi nos riscos tecnológicos ou ambientais, trazendo esse tema para o campo do debate político
e moral, sendo que, na seleção dos riscos relevantes para gestão, nem sempre a evidência
científica teria papel esclarecedor, pelo fato de que a escolha responderia a fatores sociais e
culturais, e não naturais.
Esta teoria caracteriza-se pela ênfase no caráter cultural de todas as definições de risco,
apontando para as diferenças entre leigos e peritos e para os diferentes entendimentos expressos
pelas diferentes maneiras dos atores sociais lidarem com os riscos, criticando a crença
inabalável da ciência como única detentora de sabedoria nas tomadas de decisões (DOUGLAS,
1992).
Um dos questionamentos da autora consiste no motivo pelo qual o risco passa a ganhar
destaque como substituto do conceito de perigo. Para ela, a preocupação com o risco consiste
em um produto da globalização e a consequência disso está vinculada a formas de fornecer
novos tipos de proteção. Em suas palavras:
No nível nacional das operações, a nação tem de fornecer novos tipos de proteção. No
nível internacional, serão necessárias algumas armas generalizadas de defesa para
atender as necessidades de justiça e bem-estar. A ideia de risco poderia ter sido
personalizada. A terminologia da universalização, da sua abstração, do seu poder de
condensação, sua cientificidade, sua conexão com a análise objetiva, torna-o perfeito.
Acima de tudo, os seus usos forenses cabem como ferramenta para a tarefa de
construir uma cultura que da suporte a uma sociedade industrial moderna. Dos
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diferentes tipos de sistema de culpar que podemos encontrar na sociedade tribal, o
sistema atual está quase pronto para atribuir todas as mortes à conta de alguém, cada
acidente como causado por negligência criminosa de alguém, toda enfermidade com
uma ameaça de acusação (DOUGLAS, 1992, p.15, tradução nossa)1.
Para Douglas, esta nova preocupação com o risco faz parte de uma reação pública contra
grandes corporações, ou seja, a pressão política não é explicitamente contra a disputa dos riscos,
mas contra a exposição a outros riscos. A resposta do porque o risco tornou-se central para o
comportamento das pessoas está relacionada com as relações na sociedade global.
Com base nas reflexões apresentadas sobre a Teoria Cultural do Risco, ora apresentadas,
apontaremos as considerações e críticas de duas autoras sobre essa perspectiva; são elas: Débora
Lupton (1999) e Julia Guivant (1998).
Segundo Lupton (1999), a perspectiva da teoria cultural do risco tem sido influente por
proporcionar uma incisiva e persuasiva crítica às abordagens realistas que dominavam o campo
e por enfatizar as maneiras pelas quais as noções de risco eram usadas para estabelecer e manter
limites conceituais entre o eu e o outro, buscando compreender como o corpo humano é usado
simbolicamente e metaforicamente em práticas discursivas sobre o risco. Em suas palavras:
Sua abordagem "cultural/simbólica” enfatiza que os julgamentos sobre risco são
políticos, morais e estéticos, construídos através de quadros de compreensões
culturais e implicados com as noções do corpo e a importância de estabelecer e manter
fronteiras conceituais. Isto fornece uma perspectiva sobre o risco que configura um
contraponto importante para o foco individualista que predomina na perspectiva
realista (LUPTON, 1999, p. 57, tradução nossa)2.
Segundo a autora, para os interessados em questões de risco que vão além das
perspectivas individualistas, ou seja, para uma abordagem dos riscos fundamentalmente
compartilhada e cultural, os escritos de Douglas fornecem uma base firme. No entanto,
considera que esta teoria tende a ser um pouco mais estática, como é típico de análises
estruturalistas de fenômenos socioculturais, pois há pouca explicação sobre como as coisas
podem mudar.
1 Original: At the national level of operations, the nation has to provide new kinds of protection. At the
international level, some generalized weapon of defence will be required, to fill the needs of justice and welfare.
The idea of risk could have been custommade. Its universalizing terminology, its abstractness, its power of
condensation, its scientificity, its connection with objective analysis, make it perfect. Above all, its forensic uses
fit the tool to the task of building a culture that supports a modern industrial society. Of the different types of
blaming system that we can find in tribal society, the one we are in now is almost ready to treat every death as
chargeable to someone’s account, every accident as caused by someone’s criminal negligence, every sickness a
threatened prosecution. 2 Original: Her ‘cultural/symbolic’ approach emphasizes that risk judgements are political, moral and
aesthetic, constructed through cultural frameworks of understanding and implicated with notions of the body and
the importance of establishing and maintaining conceptual boundaries. This provides a perspective on risk that
sets up an important counterpoint to the individualist focus that pre-dominates in the realist perspective.
26
Para Julia Guivant (1998), a Teoria Cultural do Risco caracteriza-se pela ênfase no
caráter cultural de todas as definições de risco, o que leva à diluição das diferenças entre leigos
e peritos e à perda da diferenciação da pluralidade de racionalidades dos atores sociais na forma
de lidar com os riscos.
Também critica o limite do individualismo metodológico relacionado à forma pela qual
a abordagem estuda as instituições. Para a autora, a inevitabilidade de um conceito relativo de
segurança deveria ser incorporada pelas instituições sociais, em lugar de uma aversão radical
aos riscos, que leva ao desenvolvimento de medidas antecipatórias que podem gerar um falso
senso de segurança ao deixar de considerar a possibilidade de acontecimentos inesperados.
Com isso, segundo Guivant (1998), as ações implementadas para evitar ou controlar
determinados riscos, no geral apresentadas como soluções de caráter meramente técnico-
científico, podem provocar outra sequência de novos riscos. Uma forma de lidar com os riscos
seria fazer com que as populações potencialmente afetadas tivessem acesso a eles como
questões políticas e não como problemas “purificados”, apresentados em fórmulas
probabilísticas.
Desse modo, a alternativa seria evitar concentrar-se numa fonte única, de maneira que,
no caso de qualquer problema de nível tecnológico ou de abastecimento, se pudesse responder
com resiliência. Diversidade e flexibilidade seriam as melhores defesas ante um futuro incerto,
pois extinguir a variedade levaria a um aumento dos riscos.
2.2.2 Teoria Social do Risco
O sociólogo Ulrich Beck transformou esse campo de análise ao apresentar o conceito
de Sociedade de Risco para se referir a uma fase de radicalização dos princípios da
modernidade. Segundo Guivant (1998), o marco para o surgimento da sociedade de risco teria
sido a catástrofe de Chernobyl, que provocou um “choque antropológico” nas populações das
sociedades industrializadas do Ocidente no que se refere ao desenvolvimento tecnológico.
Vale destacar, ainda, que Beck tem como base para suas reflexões a situação da
Alemanha, onde as preocupações estão voltadas para os riscos globais. Ele analisa uma
sociedade na qual a preocupação com a satisfação das necessidades materiais básicas teria sido
substituída pela preocupação com o risco potencial de autodestruição da humanidade.
No livro Sociedade de Risco: Rumo a uma nova modernidade (2013) Beck discorre
sobre a teoria social do risco. O autor explica que a sociedade ocidental contemporânea está
27
vivendo um período de transição, em que a produção de riqueza é acompanhada da exacerbação
de riscos como consequência da modernização. Nas palavras do autor:
Na modernidade tardia, a produção social de riqueza é acompanhada sistematicamente
pela produção social dos riscos. Consequentemente, aos problemas e conflitos
distributivos da sociedade da escassez sobrepõem-se os problemas e conflitos
surgidos a partir da produção, definição e distribuição de riscos científico-
tecnologicamente produzidos (BECK, 2013, p. 23).
Para o autor, a oposição à possibilidade de cálculo probabilístico de um evento é a
condição fundamental para a modernidade tardia, que apresenta como característica a
multiplicação das incertezas manufaturadas e resulta na imprevisibilidade de desastres naturais.
Portanto, os riscos são formas sistemáticas de lidar com os perigos e as inseguranças induzidas
e introduzidas pelo próprio processo de modernização, e essa nova maneira de ver os riscos
difere das antigas.
Os novos riscos são fabricados e pautados por incertezas, atingindo a todos e
extrapolando os contornos pessoais, até mesmo as fronteiras territoriais e temporais. Essas
incertezas fabricadas, segundo Beck (2013), são reforçadas por rápidas inovações tecnológicas
e respostas sociais aceleradas, criando uma nova paisagem de risco global. Esta perspectiva
oferece uma abordagem que considera os processos macrossociais da corrente de significados
e estratégias de risco e se concentra em processos como a reflexividade, a individualização e a
globalização.
Para Beck (2012), o conceito de reflexividade permeia os vários grupos que
constantemente se confrontam na sociedade de risco através dos limites e das consequências de
suas ações, permitindo explicar a possibilidade de autocrítica que se pode ter diante de práticas
perigosas. A reflexividade está relacionada a diversos processos que perpassam a vida
cotidiana, como a suscetibilidade à revisão crônica da maior parte dos aspectos da atividade
social e das relações com a natureza à luz de novas informações. Isso ocorre tanto na esfera
privada, quanto nos projetos da ciência e nas atividades de governo.
Os estudos sobre reflexividade são centrais para Ulrich Beck e Anthony Giddens, pois
para ambos a sociedade contemporânea caracteriza-se pela radicalização dos princípios que
orientaram o processo de modernização industrial, marcando a passagem da sociedade moderna
para a sociedade da alta modernidade, segundo Giddens, ou para a sociedade de risco ou da
modernização reflexiva, segundo Beck. Com este argumento, ambos os teóricos também se
distanciam das análises pós-modernas, na medida em que afirmam que ainda estamos na
modernidade (GUIVANT, 1998).
28
O termo reflexiva, adotado por Beck (2012) no conceito de modernização reflexiva, não
significa "reflexão", mas sim "auto confrontação". Segundo o autor, a transição para a
reflexividade é um efeito colateral não intencional, despercebida e compulsiva da modernidade,
seguindo o padrão dos efeitos colaterais latentes. A reflexividade refere-se à suscetibilidade à
revisão crônica da maior parte dos aspectos da atividade social e das relações com a natureza,
à luz de novas informações, processo esse que perpassa a vida cotidiana, pensada como esfera
privada, o projeto da ciência e a própria atividade de governo.
Em relação à individualização, não se trata da identificação do singular na massa e não
se refere à alienação ou solidão. Significa a exigência, na modernidade tardia, de que os
indivíduos produzam suas novas formas de vida, que são continuamente sujeitas a mudanças.
Beck (2012) se refere, com esse termo, às transformações que vêm ocorrendo nas instituições
tradicionais, família, trabalho e educação, que fazem com que as biografias se tornem projetos
reflexivos e, como tal, processos centrais na constituição da subjetividade contemporânea.
A globalização, na visão de Beck (2013), se refere à interseção de ausência e presença
ou ao entrelaçamento de relações e eventos sociais que estão distantes dos contextos locais.
Trata-se do processo de separação das relações entre tempo e espaço que tem como
consequências a desterritorialização. Essa articulação de relações sociais que atravessam vastas
fronteiras de tempo e espaço torna-se possível porque o movimento: de pessoas, de produtos e
de informação, passou a ser facilitado pelos avanços nos meios de transporte. Entretanto, não é
essa a marca registrada da globalização, mas sim os desenvolvimentos na mídia eletrônica.
A Teoria Social do Risco permite romper com a ideia do perigo e do risco como eventos
excepcionais, ou seja, possibilita entender que os riscos produzidos na e pela modernidade são
fabricados socialmente pela intervenção humana sobre o meio. Em suma, coaduna-se com a
noção de que as causas e consequências de um desastre não são apenas naturais, mas estão
também relacionadas aos processos e estruturas sociais, especialmente às relações sociais de
desigualdade que, sendo historicamente produzidas, refletem em um território ocupado por
grupos mais empobrecidos, tornando-os mais suscetíveis à ocorrência desses eventos.
[...] o ‘ambiente’ soa como um contexto externo à ação humana. Porém, as questões
ecológicas só vieram à tona porque o ‘ambiente’, na verdade, não se encontra mais
alheio à vida social, humana, mas é completamente penetrado e reordenado por ela
(BECK; GIDDENS; LASH, 2012, p. 08).
Segundo o autor, de fato, estamos vivendo em um mundo fora de controle, caracterizado
por incertezas que têm sido fabricadas em decorrência do progresso tecnológico e científico
29
para o qual as ciências não podem garantir um risco zero, especialmente quando os resultados
de laboratório vão sendo aplicados industrialmente fora dele. Então, na tentativa de prevenir,
mitigar e remediar esses riscos, essas destruições produzidas pela própria modernização fazem
com que a sociedade tenha de lidar com efeitos não previstos que ela mesma produziu.
A partir das reflexões apresentadas sobre a Teoria Social do Risco, apontaremos as
considerações e críticas da autora Guivant (1998) que consideramos fundamentais para a
proposta que apresentaremos de entender risco numa perspectiva linguística.
Guivant (1998) ressalta que, quando Beck se refere à transição da sociedade de classes
para a sociedade de riscos, não devemos desconsiderar que todo o seu estudo está ancorado no
contexto europeu e mais particularmente na realidade alemã, que sendo uma sociedade
altamente industrializada, fez com que o autor não considerasse a possibilidade da existência
simultânea de ambos os tipos de sociedade, como ocorre no Brasil.
Quando nos referimos ao contexto brasileiro, um país atravessado pelos problemas da
sociedade de escassez, no qual a distribuição da riqueza é altamente desigual entre as classes
sociais e, ao mesmo tempo, já se defrontando com os problemas da sociedade de risco, sem
ainda contar com a reflexividade ativa identificada por Beck nas sociedades mais
industrializadas, podemos afirmar que, lidar com a problemática dos riscos de desastres, torna-
se um grande desafio.
Para a autora, uma alternativa para lidar com o problema é considerar a globalização
juntamente com as dinâmicas específicas que os riscos ambientais e tecnológicos podem
adquirir em diferentes sociedades e desenvolver uma abordagem teórica mais complexa e com
uma maior potencialidade explicativa, que dê conta das relações entre leigos e peritos e do papel
dos leigos no estabelecimento de políticas de controle e regulação dos riscos.
Essas reflexões nos dão sustentação para adotarmos uma abordagem alternativa sobre
os estudos dos riscos. Partimos de uma perspectiva da Psicologia Social Crítica, propondo o
estudo das práticas discursivas no cotidiano e da circulação de repertórios em uma perspectiva
histórica e social, entendendo-os como uma prática social, histórica, cultural e dialógica, que
determina a linguagem em uso.
2.3 APONTAMENTOS SOBRE A PERCEPÇÃO DE RISCOS
Considerando a complexidade inerente ao campo da percepção de riscos e a diversidade
de perspectivas teóricas, nosso objetivo não é realizar um levantamento sobre os diferentes
30
estudos existentes, mas abordar como as referências históricas que contribuíram para a
construção do referencial teórico e metodológico dessa pesquisa discutem o tema.
Os estudos sobre percepção de riscos no âmbito da Psicologia cognitivista e
psicométrica visam entender como pessoas que vivem em situação de risco definem, enfrentam
e convivem com essa situação em seu cotidiano. A perspectiva psicométrica de Paul Slovic
(1987) busca medir a influência relativa de diferentes fatores cognitivos na formulação da
percepção das pessoas sobre o risco, buscando identificar as "estratégias mentais" ou a
"heurística" com as quais percebem os riscos.
Para o autor, a percepção de determinados riscos está relacionada à importância e à
gravidade do evento, mesmo quando a probabilidade de ocorrência é relativamente baixa.
Riscos com baixa probabilidade, mas com consequências mais extremas, são percebidos como
mais ameaçadores do que riscos com consequências mais moderadas mesmo que com maior
probabilidade. As pesquisas nessa vertente mostram também que ter controle pessoal sobre um
risco ou ter maior familiaridade com ele são fatores que podem diminuir a percepção de risco
das pessoas.
Ainda referindo-se a esse autor, Slovic (2004) realizou estudos psicométricos cujo
objetivo era mostrar que a percepção do risco ocorre quando pessoas associam determinado
fenômeno a um sentimento, afeto, ou emoção de segurança ou perigo. Em suas experiências, o
autor se baseia em imagens e associações ligadas à emoção e afetação (a sensação de que algo
é bom ou ruim), revelando que a percepção do risco é dada por meio de um sentimento que nos
diz se algo é seguro ou não.
A percepção de cada um sobre uma situação específica pode variar de acordo com a
sensação da experiência e influenciar como as pessoas se veem sob risco e/ou convivem com o
risco em seu cotidiano. Variam também de acordo com a quantidade de informação a que tem
acesso e como a agência informativa lida com o assunto, ou seja, os desastres que recebem um
alto nível de atenção da mídia despertam mais preocupação do que aqueles que não o fazem,
mesmo se aqueles ocorram raramente.
De maneira geral, esses estudos buscam compreender a percepção do risco mediante um
olhar individualizado do fenômeno, ou seja, a relação da pessoa afetada com o risco que, apesar
das suas potencialidades explicativas, não enfocam questões sobre quais estímulos sociais ou
culturais determinam certos padrões, ou por qual razão atributos específicos são associados a
diferentes tipos de risco.
Buscando atender a essas questões, estudos sociológicos e culturais Beck e Douglas
(2013/1992) tendem a considerar os valores sociais e culturais que constituem uma orientação
31
para julgamento e direcionamento de comportamentos, as visões de mundo e as relações
institucionais entre leigos e peritos. Nessas abordagens as ações relacionadas aos riscos são
frequentemente produtos de uma habituação socializada, fenômenos socialmente organizados
que fazem emergir nas pessoas significados próprios, resultados da seleção dos riscos
priorizados como relevantes diante do contexto social na qual estão inseridas.
Na Teoria Cultural do Risco, Douglas (1992) defende que as pessoas selecionam e
interiorizam determinados riscos como relevantes, conforme o papel que eles possam ter em
seu contexto social e a atenção que as pessoas dão a determinados riscos em detrimento de
outros faz parte de um processo sociocultural que dificilmente tem uma relação direta com o
caráter objetivo dos riscos.
A autora descreve a cultura como sistema mnemônico, que ajuda as pessoas a calcular
os riscos e as suas consequências. A cultura não só ajuda as pessoas a compreenderem o risco,
como também contribui para uma noção individualista de risco, tendo em conta obrigações e
expectativas mútuas. Sua abordagem enfatiza que os julgamentos de risco são políticos, morais
e estéticos, construídos através de quadros culturais de compreensão.
Na Teoria Social do Risco, temos, nos estudos sobre modernização reflexiva de Ulrich
Beck, Anthony Giddens e Scott Lash (2012), uma tentativa de buscar compreender como as
pessoas percebem os riscos na modernidade, que incluem processos de individualização, de
pluralização de conhecimentos e de padrões morais e globalização. Em linhas gerais, esta
abordagem parte da ideia de que a meta-racionalidade da modernidade (racionalidade
instrumental, eficiência, justiça por meio de crescimento econômico, melhoria constante das
condições individuais de vida graças ao progresso científico e tecnológico) tem perdido seu
poder legítimo.
Para os autores, a dificuldade da ciência e da tecnologia em lidar com determinados
riscos tem levado a uma descrença das pessoas quanto ao papel delas na produção de benefícios
sociais e na promoção do progresso.
Para Beck (2012), a incapacidade das pessoas de distinguirem os riscos, reflete uma
combinação de racionalidade científica, deliberação institucional e esforços de organizações
ambientais.
A abordagem da modernização reflexiva defende que a maior parte das pessoas rejeita
uma visão de mundo em que o conhecimento e os julgamentos morais são considerados
arbitrários em decorrência dos diversos estilos de vida e de valores morais. As pessoas
procuram se apoiar em representantes que possam provê-los de um sentimento de segurança e
estabilidade. Esses representantes, que influenciam direta e indiretamente suas percepções,
32
incluem, por exemplo, crenças religiosas, fé numa racionalidade esclarecida e no sistema de
governança, dependência de julgamentos de um grupo de referência ou revitalização dos
valores tradicionais (BECK, 2012).
Numa tentativa de integrar a análise técnica do risco, os fatores culturais e sociais e as
respostas individuais que influenciam a percepção de risco, considerando como elemento
importante a maneira com que as informações são comunicadas, pois podem ampliar ou atenuar
a percepção de determinados riscos, alguns autores discutem a teoria da amplificação social do
risco (PIDGEON; KASPERSON; SLOVIC, 2003).
Nick Pidgeon, Roger Kasperson e Paul Slovic (2003) indicam que essa abordagem
busca compreender como os efeitos da informação sobre os riscos possíveis ou existentes
amplificam ou atenuam as percepções sobre o assunto no contexto social.
Eles consideram o meio pelos quais se processou a informação e quais os atores
envolvidos. Essa dinâmica foi denominada pelos autores como estações de amplificação, que
“podem incluir indivíduos, grupos sociais e instituições, por exemplo, cientistas ou instituições
científicas, jornalistas e meios de comunicação, políticos e agências governamentais, ou outros
grupos sociais e seus membros” (PIDGEON; KASPERSON; SLOVIC; 2003, p. 15, tradução
nossa)3.
O objetivo é analisar o risco de forma integral, considerando seus fatores técnicos,
psicológicos, culturais e sociais, assim como a consequência desse processo na maneira como
as pessoas vivenciam os riscos.
Nas palavras dos autores:
Tanto as estações sociais de amplificação, quanto a estrutura institucional, as
atribuições e a cultura influenciam a amplificação ou atenuação dos sinais de risco.
Mesmo os indivíduos em instituições não seguem simplesmente os seus valores
pessoais e interpretações sociais; eles também percebem o risco, aqueles que gerem
os riscos, e o problema de risco concordam com as tendências culturais e os valores
de sua organização ou grupo (PIDGEON; KASPERSON; SLOVIC, 2003, p. 15,
tradução nossa)4.
Esses estudos enfocam a percepção e a comunicação do risco, enfatizando como
principal influenciador nos processos perceptivos as diferentes estações de amplificação social,
3Original: Amplification stations can include individuals, social groups, and institutions, for example,
scientists or scientific institutions, reporters and the mass media, politicians and government agencies, or other
social groups and their members. 4Original: For social stations of amplification, the likes of institutional structure, functions, and culture
influence the amplification or attenuation of risk signals. Even the individuals in institutions do not simply
pursue their personal values and social interpretations; they also perceive the risk, those who manage the risks,
and the risk problem according to cultural biases and the values of their organization or group.
33
ou seja, os meios de comunicação, cientistas, agências governamentais e políticos ou interesses
de grupos econômicos.
As reflexões dessa abordagem acerca dos conceitos utilizados para antecipar ou explicar
os motivos pelos quais as pessoas respondem aos riscos existentes possibilitam formas de
elaboração de políticas públicas considerando as dimensões sociais dos riscos.
Nas palavras desses autores:
Em nossos escritos mais teóricos sobre amplificação social, temos enfatizado o valor
do potencial político que a investigação de um quadro de risco de base ampla e
integradora oferece. Tal nível de análises teóricas no âmbito de amplificação poderia
potencialmente abrir novas questões de investigação e possíveis iniciativas políticas
(PIDGEON, KASPERSON, SLOVIC, 2003, p. 46, tradução nossa)5.
Com foco nesses comportamentos, os estudos de Gabriela Di Giulio (2012), dialogando
com a abordagem da amplificação social do risco, contribuem para uma reflexão sobre a
prioridade dada pelas pessoas ao assunto. Seus estudos sobre percepção de riscos, associados
às mudanças climáticas e às situações envolvendo exposição a áreas contaminadas, apontam
para a prioridade do risco nas escolhas e respostas dos indivíduos, pois, mesmo havendo a
percepção do perigo, existem outras questões que norteiam seus comportamentos e decisões.
O estudo sobre situação de risco por exposição a área contaminada, realizado por
Gabriela Di Giulio, Newton Pereira e Bernardino Figueiredo (2008), em Adrianópolis,
município paranaense localizado na região do Vale do Ribeira, buscou analisar a influência da
mídia na construção social do risco. Os autores concluem que a escolha dos riscos aos quais as
pessoas dão maior atenção reflete aspectos como as crenças dos indivíduos acerca dos valores,
instituições sociais, natureza, justiça e moral.
Para eles, esses fatores são determinantes na superestimação ou subestimação de
determinados riscos, sendo que, diante de novas situações que envolvem riscos, as pessoas
tendem a não confiar em fatos e dados empíricos e se apegam a construções simbólicas.
Confiam mais nas próprias crenças e convicções e dificilmente mudam de opinião. Concluem
ainda que a forma como os meios de comunicação divulgam um determinado evento influencia
diretamente a percepção e as respostas e atitudes das pessoas. Desse modo, a divulgação
midiática pode ampliar ou atenuar a percepção de um determinado risco, dependendo da
5Original: In our more theoretical writings on social amplification, we have emphasized the potential
research and policy value that a broadly based and integrative framework of risk affords. Such meso-level of
theoretical analyses within the amplification framework could potentially open up new research questions and
potential policy initiatives.
34
extensão da cobertura e da seleção dos fatos que se faz ao divulgar um acontecimento ou uma
situação.
Retomando as reflexões no campo na Psicologia, mais especificamente na área da
Psicologia Social, destacamos as reflexões de Ângela Coelho, uma psicóloga social que foca
seus estudos na cognição humana e na percepção de risco de desastres.
A autora faz uma crítica aos teóricos que ignoram o contexto cultural em que tais riscos
são elaborados e discutidos, assim como e o ambiente no qual o risco e a percepção do risco
acontecem, pois defendem que se identificado o risco físico, as pessoas automaticamente
passariam a evita-los, como se a questão fosse apenas perceber ou não. (COELHO, 2011).
Para Coelho (2011), a questão da percepção de risco está relacionada ao modo como a
pessoa entende o ambiente e as possibilidades de moradia nesse ambiente, pois muitas vezes
elas podem saber que estão em uma região de risco, mas não tem disponibilidade econômica
para se mudar. Então, não é que elas não saibam do risco, é que uma infraestrutura política e
econômica as força a morarem em regiões de risco (COELHO, 2016).
A autora aponta, ainda, que a percepção das pessoas sobre os riscos depende da
combinação de elementos decorrentes de vulnerabilidade individual, social e programática.
Para isso, ela se apoia no conceito de vulnerabilidade de Aires. Em suas palavras:
Vulnerabilidade Individual: nível de informação. Quando a pessoa não tem
conhecimento do fato, ou seja, muitas pessoas podem morar em uma região de risco
e desconhecer o risco específico do local.
Vulnerabilidade Social: acesso aos meios de comunicação e aos recursos. A maioria
das informações são planejadas (sic) para quem é alfabetizada. O material de
divulgação e informação deve atingir a todas as populações. Para a percepção de risco
é preciso contar com a comunidade, porque não adianta uma pessoa, um técnico,
chegar e informar para aquela pessoa o que é o risco e ir embora daquela região, é
importante que a liderança faça parte desse diálogo, porque as pessoas vão acatar
muito mais de uma liderança do que de um técnico.
Vulnerabilidade programática: avaliação dos programas para responder a demanda.
Quando se explica para as pessoas o que acontece, mas quando chega na hora de um
evento, não há disponibilidade do aparato que iria protegê-las, então a vulnerabilidade
dessas pessoas aumenta (COELHO, 2016, módulo 5)
Coelho (2016) defende que percepção de risco é um elemento que mediará a reação da
pessoa ao evento e tem a ver com: a possibilidade da ocorrência do desastre em si, com as suas
idiossincrasias, e com as questões sociais. Mais precisamente, essa reação está relacionada com
fatores estressores e individuais.
Os fatores estressores incluem a natureza do desastre e a severidade do evento que está
intimamente relacionado com o grau de destruição e número de mortos. Se a comunidade é
afetada, mas não há mortos, a possibilidade da recuperação é esperada. No entanto, quando
35
além da destruição física há um número grande de mortos, e muitos desses mortos não serão
identificados ou encontrados, isso aumenta o grau de comprometimento psicológico. Isso
ocorre pois quando uma pessoa perde um ente querido, precisa fechar cognitivamente esse
processo, ou seja, fechar e elaborar o luto.
Os fatores individuais estão associados à percepção de risco que está relacionada a
recursos psicológicos, sexo e status econômico. A percepção de risco é como a pessoa vê e
entende o risco no seu dia-a-dia. Em relação ao sexo das pessoas, não quer dizer que homens
sejam mais fortes no enfrentamento; a questão é que a maioria das mulheres, além de cuidar
dos filhos, cuida dos pais e pessoas idosas da família de modo que, em caso de desastre, o
trabalho vai ser redobrado. A questão econômica interfere porque em muitos casos a pessoa
perde tudo o que construiu ao longo da vida e não há condições econômicas para recuperar. No
entanto, esses bens materiais possuem valores simbólicos e emocionais, como as lembranças,
as memórias, documentos e fotos, e isso não pode ser recuperado.
Entendemos que compreender os riscos nos termos das abordagens apresentadas, seja
buscando identificar as "estratégias mentais" ou a "heurística" de como as pessoas percebem os
riscos, seja considerando os valores sociais e culturais que contribuem para a constituição e
orientação de julgamento e direcionamento de comportamentos, seja ainda procurando
identificar os efeitos da informação sobre os riscos possíveis ou existentes, que podem
amplificar ou atenuar as percepções dos riscos, resulta em uma incompletude, pois tais enfoques
deixam de analisar a constante mudança dos processos da vida cotidiana decorrente dos sentidos
atribuídos pela convivência das pessoas com o fenômeno.
Retomando a crítica realizada por Guivant (1998) à Teoria Social do Risco, na qual a
autora analisa que no contexto brasileiro ainda não passamos de uma sociedade industrial para
uma sociedade de risco, nos termos do que afirma Beck, mas vivemos as duas
concomitantemente em um país atravessado pelos problemas da sociedade de escassez, na qual
a distribuição da riqueza é altamente desigual entre as classes sociais e ao mesmo tempo pelos
problemas da sociedade de risco, sem ainda contar com uma reflexividade ativa como a que o
autor identifica nas sociedades mais industrializadas.
Para Guivant (1998), o desafio seria considerar a globalização juntamente com as
dinâmicas específicas que os riscos ambientais e tecnológicos podem adquirir em diferentes
sociedades e desenvolver uma abordagem teórica mais complexa e com uma maior
potencialidade explicativa, que dê conta das próprias relações entre leigos e peritos e do papel
dos leigos no estabelecimento de políticas de controle e regulação dos riscos.
36
Para analisar a percepção que as pessoas têm sobre um determinado risco são
necessários, segundo Mary Jane Spink (2014), dois processos: primeiro, entender o significado
de comportamentos e práticas considerados arriscados e, segundo, compreender os processos
por meio dos quais os atores em questão dão sentido a comportamentos considerados arriscados.
É particularmente importante entender esses sentidos no contexto de outros riscos, em relação
aos custos e benefícios próprios dessa prática.
Entender esses dois pressupostos significa, segundo a autora, acrescentar à noção de
percepção de risco um fator relacionado à prioridade que é dada a um determinado risco em
relação a outro, em uma hierarquia de riscos. Desse modo, para compreender a percepção de
riscos no contexto de hierarquia de riscos, é preciso entender o significado de comportamentos
e práticas considerados arriscados e quais os processos por meio dos quais as pessoas dão
sentido a esses comportamentos.
3. OBJETIVOS E PROCEDIMENTOS
3.1 OBJETIVO GERAL
Considerando a possível contribuição da Psicologia Social para as análises de risco, este
projeto busca analisar as múltiplas dimensões do risco para pessoas que convivem com
inundações recorrentes, tomando como estudo de caso a Vila América em Santo André/SP.
3.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS
Historiar a formação do bairro;
Historiar os eventos de inundação na Vila América;
Analisar as múltiplas dimensões do risco para os moradores que convivem com
inundações recorrentes na Vila América;
Identificar as estratégias de organização dos moradores na busca de soluções de
prevenção, e
Identificar as respostas governamentais ao problema das inundações na Vila América
37
3.3 PROCEDIMENTOS DE PESQUISA
Para alcançar os objetivos desta pesquisa foi adotada uma estratégia metodológica que
contemplou o cruzamento de informações provenientes de cinco fontes: 1) pesquisa documental
com base em documentos de domínio público, jornais e sites; 2) diário de campo da
pesquisadora; 3) visitas ao Serviço Municipal de Saneamento Ambiental de Santo André
(Semasa), ao qual está afeto o Departamento de Defesa Civil e à Vila América; 4) entrevista
semiestruturada com moradores do bairro, 5) imagens fotográficas provenientes do acervo dos
moradores, feitas pela pesquisadora e de sites.
Na condição de práticas discursivas, todos os documentos de domínio público, mesmo
assumindo formas distintas, tem algo a contar, o problema maior é aprender a ouvir. Segundo
Peter Spink (1999/2013), a escolha de material pode ser feita mediante uma análise inicial do
campo, ou pode-se emergir de forma mais aleatória com base naquilo aquilo que se apresenta,
mas sem deixa de conferir atenção ao acaso, pois este é um elemento importante e nunca deve
ser descartado. Para o autor, os pesquisadores no campo da produção de sentido aprendem a ser
“catadores permanentes de materiais possivelmente pertinentes” (P. SPINK, 1999/2013, p. 113)
Na pesquisa documental foi realizada uma busca sistemática em diversas fontes: 1) em
jornais que relataram as inundações na Vila América; 2) no site do Semasa, para buscar
informações sobre Proteção e Defesa Civil; 3) no site da Prefeitura de Santo André, para obter
dados relevantes sobre a Vila América; 4) no site do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), para caracterizar o município em termos de Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH); 5) no Anuário de Santo André 2014, para coletar informações sobre a dimensão
territorial e populacional, serviços e instituições localizadas nesse território, 6) no site do
Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, para buscar informações relativas à integração do
órgão responsável pela Defesa Civil em Santo André com os seus símiles dos outros seis
municípios que compõe o consórcio e, 7) no Centro de Referência do Posto de Atendimento do
Semasa, para a pesquisa de documentos de domínio público.
No Centro de Referência, foram consultados os seguintes materiais: 1) dois
documentos históricos da Coordenadoria de Planejamento para a descrição da formação da Vila
América; 2) o livro Águas Revoltas, que conta a história das enchentes do Rio Tamanduateí e
seus afluentes na cidade de santo André; 3) uma monografia sobre a drenagem urbana das águas
da parte baixa da cidade de Santo André, abordando a construção de um piscinão para resolver
a questão das enchentes locais; 4) anais da Assembleia Nacional da 32° Associação Nacional
38
dos Serviços Municipais de Saneamento (ASSEMAE), referente a um levantamento da bacia
de drenagem do Córrego Guarará, que abrange o bairro Vila América.
No posto de atendimento do Semasa foi possível solicitar o relatório fotográfico e de
pós-chuva sobre as inundações que atingiram especificamente a Vila América, bem como da
construção do piscinão localizado na Avenida Capitão Mário de Toledo Camargo da Vila
América.
Estes documentos constituíram-se em subsídios importantes para entender as
informações decorrentes das entrevistas com moradores, pois segundo Spink (1999/2013), são
componentes significativos do cotidiano, que completam e competem com a narrativa e a
memória.
Em suma:
Os documentos de domínio público refletem duas práticas discursivas: como gênero
de circulação, como artefatos do sentido de tornar público, e como conteúdo, em
relação àquilo que está impresso em suas páginas. Os documentos de domínio público,
enquanto registros, são documentos tornados públicos, sua intersubjetividade é
produto da interação com um outro desconhecido, porém significativo e
frequentemente coletivo. São documentos que estão à disposição, simultaneamente
traços de ação social e a própria ação social (SPINK, 1999/2013, p. 102).
Dando continuidade aos procedimentos de pesquisa, também foram utilizados
registros sistematizados em diário de campo, produzidos a partir de visitas aos diferentes atores
envolvidos na rede de relações que sustentam as práticas sociais, assim como pela participação
em eventos e congressos pertinentes à temática.
Para Mary Jane Spink, Benedito Medrado e Ricardo Méllo (2014), os diários podem
ser compreendidos como anotações pessoais sobre acontecimentos marcantes ou sobre
experiências do dia-a-dia que, além de ferramentas de pesquisa, são práticas discursivas, ou
seja, linguagem em ação. Para os autores, essas produções “definem o gênero de linguagem a
que pertencem e lhes dá conotações específicas: a linguagem intimista dos diários pessoais; a
formalidade dos log books, a linguagem literária (ou jornalística) dos registros de eventos
públicos; o estilo factual dos diários de pesquisa” (p. 276-277).
As visitas foram feitas Departamento de Defesa Civil e à Vila América, que
possibilitaram, no primeiro caso, conhecer o entendimento dos técnicos quanto ao bairro e, no
segundo, a interlocução com os moradores para conhecer as perspectivas deles quanto à
problemática das inundações. Nas visitas ao Departamento de Defesa Civil também foram
obtidas informações técnicas sobre a ocorrência dos eventos, disponibilizados materiais para
consulta e indicação dos nomes e contatos dos interlocutores entrevistados. Nas visitas à Vila
América, além dos diálogos com os moradores, foi possível uma interação maior com os
39
interlocutores. E também disponibilizado o acervo pessoal desses moradores, composto por
informações, fotos e memórias, assim como foi obtida a autorização para a realização de
imagens de suas casas.
Para compreender as múltiplas dimensões do risco foram realizadas entrevistas
semiestruturadas com moradores do bairro. O convite para a participação foi intermediado pelo
Departamento de Defesa Civil e o número de entrevistados definido conforme a disponibilidade
dos moradores indicados. Vale ressaltar que, embora o bairro tenha 88 famílias morando em
área de risco, foi possível realizar entrevistas com 2 moradores, pois outros dois indicados, uma
moradora e um ex-morador, não aceitaram o convite, mas, em nosso método de pesquisa
qualitativo, de tradição hermenêutica, isso não interfere nos resultados, pois o objetivo é
descrever a realidade da vida cotidiana por meio da descrição, explicação ou contabilização das
pessoas com os eventos através de suas vivências. Como sustentação à essa justificativa,
faremos um breve relato histórico para situar o leitor em relação a esse posicionamento.
Historicamente, George Henrik Von Wright (1978) refere-se a dois modelos
instituídos em pesquisa em ciência, denominadas descritiva e teórica que, respectivamente,
referem-se à averiguação e descoberta de fatos e à construção de hipóteses e teorias. Esses
modelos servem a dois objetivos: predizer a ocorrência de eventos ou o resultado de
experimentos para antecipar novos fatos e explicar ou tornar inteligíveis fatos já registrados,
esses modelos distinguem as duas principais tradições de método científico, que diferem entre
si quanto às condições que uma explicação tem que satisfazer para ser considerada
cientificamente respeitável; uma tradição é chamada de aristotélica e a outra Galiléica.
A tradição Galiléica, associada principalmente a Galileu, tem sua ancestralidade
anterior a Aristóteles; traçada desde Platão, essa tradição segue paralela ao avanço do ponto de
vista causal-mecanicista, presente nos esforços das pessoas para explicar e predizer fenômenos
(VON WRIGHT, 1978).
O método científico nessa tradição é caracterizado pela formulação e teste de
hipóteses. Os aportes da Metodologia e da Filosofia da Ciência eram coincidentes não só porque
os objetos de investigação, derivados basicamente das ciências físicas e da natureza, a eles se
adequavam, mas também porque a própria ideia de uma ciência do ser humano não fazia parte
do panorama da época. Ainda, segundo o autor, uma posição nesses debates é a chamada de
positivismo, associada a Auguste Comte e John Stuart Mill, que propõe que “as novas físicas”
se adequem ao método científico, o monismo metodológico, e se desenvolvam modeladas no
padrão instituído pelas ciências da natureza, especialmente a física teórica.
40
Nesse cenário, no que tange à questão da relação entre as ciências da natureza e as
ciências humanas, se constitui outra posição como reação ao positivismo: a Filosofia da Ciência
antipositivista, que Von Wright (1978) denomina de hermenêutica. Essa tradição é representada
principalmente por Droysen, Dilthey, Simmel e Max Weber, assim como, Windelband e
Rickert, que estão relacionados a eles, e tem como base três principais características: a)
rejeitam o monismo metodológico do positivismo e se recusam a tomar o padrão das ciências
naturais exatas como o único e supremo ideal para a compreensão racional da realidade; b) a
distinção entre as ciências nomotéticas, que buscam leis gerais, e as ciências ideográficas, que
enfatizam as características singulares; c) a rejeição do conceito tradicional de explicação,
introduzindo a distinção entre explicação (em alemão Erklären) e compreensão (em alemão
Verstehen).
Segundo Von Wright (1978), embora Droysen tenha sido o primeiro a introduzir essa
distinção, foi Dilthey quem a sistematizou, adotando o termo Geisteswissenschaften para
denominar o conjunto de métodos compreensivos. A característica principal desse método,
intimamente associado à fenomenologia, é a compreensão baseada na empatia; a recriação na
mente do pesquisador da atmosfera mental, dos sentimentos, pensamentos e motivações do
objeto de estudo.
Nesse contexto, segundo Mary Jane Spink e Vera Menegon (1999/2013), configuram-
se os métodos de pesquisa qualitativos e quantitativos. Afiliados à tradição positivista, ou seja,
ao monismo, estão os quantitativos e, aderindo à tradição hermenêutica, ou seja, à
epistemologia da diferença, os qualitativos.
Esta pesquisa insere-se no âmbito da Psicologia Social e sua proposta teórico-
metodológica é o estudo da produção de sentidos na vida cotidiana e a circulação de repertórios
em uma perspectiva histórica e social tendo por foco a linguagem dos riscos. Esse referencial
apoia-se à perspectiva construcionista e tem como base a tradição hermenêutica e a metodologia
qualitativa.
Para Mary Jane Spink e Rose Mary Frezza (1999/2013), a perspectiva construcionista,
na Psicologia Social, foca o momento de interação das pessoas, priorizando os processos de
produção de sentido na vida cotidiana. Ou seja, preocupa-se com a explicação dos processos
por meio dos quais descreve-se e explica-se como as pessoas dão conta do mundo em que
vivem. Esse movimento propõe a desfamiliarização de conceitos cristalizados pela teoria
científica e que sugerem os modelos tradicionais de fazer ciência na modernidade.
Dar sentido ao mundo, segundo Spink e Menegon (1999/2013), é uma prática social
desenvolvida nas relações da vida cotidiana, atravessada por práticas discursivas construídas a
41
partir de uma multiplicidade de vozes e que faz parte da condição humana. Para as autoras, é
comum pensar que dar sentido é uma atividade que diz respeito apenas ao cotidiano e que isso
faz com que haja uma cisão entre as práticas científicas e o senso comum. Porém, a discussão
epistemológica contemporânea, principalmente aquela proveniente da moderna Sociologia do
Conhecimento, vem contribuindo para desfazer essa dicotomização rígida.
Dessa forma, tanto fazer ciência como desempenhar as atividades rotineiras (ou não)
de nosso cotidiano, passam a ser ressignificados como formas de produzir sentido sobre os
eventos do mundo. Essa aproximação paulatina, entretanto, não reduz uma atividade à outra;
há regras, gêneros de fala e linguagens sociais distintas que demarcam a produção de sentido
em diferentes domínios de nossas atividades, incluindo aí os diferentes domínios de pesquisa.
A escolha da entrevista como uma estratégia de pesquisa foi embasada na proposta de
Sérgio Aragaki et al (2014). Esses autores destacam que as informações não são colhidas como
se estivessem por aí, prontas, acabadas e esperando que alguém as recolha, sem a participação
ativa de quem entrevista. Ela é coproduzida em ato, estando, portanto, a reflexividade presente
desde o momento da escolha da entrevista como ferramenta.
A entrevista propicia processos de negociação de sentidos entre a pesquisadora e os
entrevistados, sendo que é por meio da sua processualidade, que se mantêm, transformam e
desafiam os posicionamentos que vão ocorrendo durante a sua produção. A produção dos
sentidos é uma prática social que faz parte da condição humana e é desenvolvida nas relações
que compõem o nosso cotidiano, o qual, por sua vez, é atravessado por práticas discursivas
construídas a partir de uma multiplicidade de vozes.
Em síntese, “a entrevista deve ser entendida como um processo dialógico em que ocorre
negociação de pontos de vista e de versões sobre os assuntos e acontecimentos, e que vai
posicionando ambos/as os/as participantes durante a sua interanimação” (ARAGAKI et al,
2014, p.59).
As entrevistas foram agendadas de acordo com a disponibilidade dos moradores e
realizadas em locais de suas preferências. Foi iniciada com a apresentação dos objetivos e
procedimentos de pesquisa, com a solicitação também de assinatura do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TLCE), sendo explicitadas a confidencialidade e a
possibilidade de desistência e a permissão para a gravação. Cabe ressaltar que efetuamos a
entrevista com os moradores após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Nesta dissertação foi adotado o Código de Ética em Pesquisa 466/12, que enfatiza a
necessidade de consentimento livre e esclarecido dos interlocutores, a proteção dos
42
participantes, a ponderação sobre os riscos e benefícios, a garantia de que os danos previsíveis
sejam evitados e a contribuição com a produção de conhecimento na área.
Seguimos ainda os preceitos de uma ética dialógica que considera a competência ética
dos envolvidos, a possibilidade de estabelecimento de parcerias e de uma relação de confiança
entre o pesquisador e os interlocutores, em busca de relações de poder mais horizontais, e a
garantia do anonimato como condição para o desenvolvimento da pesquisa (SPINK, 2000).
3.4 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES
Com o objetivo de sistematizar as informações relativas às entrevistas realizadas com
moradores da Vila América, elaboramos mapas dialógicos que possibilitaram preparar quadros
sínteses para a compreensão acerca da convivência com as inundações recorrentes na região.
De acordo com Mary Jane Spink e Helena Lima (1999/2013), os mapas são
instrumentos de visualização com duplo objetivo: o primeiro é dar subsídios ao processo de
interpretação e, o segundo, facilitar a comunicação dos passos subjacentes ao processo
interpretativo. Através deles é possível sistematizar o processo de análise das práticas
discursivas em busca dos aspectos formais da construção linguística, dos repertórios utilizados
nessa construção e da dialogia implícita na produção de sentido.
O uso de mapas dialógicos está diretamente atrelado ao referencial teórico-
metodológico com que trabalhamos, pois consideramos relevante dar visibilidade ao processo
de análise e ao contexto de coprodução das práticas discursivas. Contudo, os mapas não são
técnicas fechadas. Há um processo interativo entre a análise dos conteúdos e a elaboração das
categorias temáticas. Dessa forma, embora iniciando com categorias que refletem os objetivos
da pesquisa, o próprio processo de análise pode levar à redefinição destas, gerando uma
aproximação paulatina com repertórios utilizados para dar sentido às experiências.
Os mapas dialógicos são utilizados por pesquisadores e pesquisadoras do NEPPDS-
PUC/SP e o processo de análise inicia-se com duas formas de familiarização com o material
discursivo: a transcrição sequencial (TS) e a transcrição integral (TI).
A TS foi feita mediante a escuta atenta do áudio, mediante a qual se buscou identificar
os assuntos abordados, possibilitando assim o agrupamento deles em categorias temáticas, as
quais se prestaram à elaboração dos mapas dialógicos.
A seguir, foi realizada a TI do áudio, incluindo todas as falas e expressões comunicadas,
ou seja, foi feita de forma literal, de modo a preservar o discurso original do contexto de
pesquisa, considerando quem, sobre o que e como cada um/a fala. Terminada essa etapa, foram
43
enumeradas as linhas da transcrição (L), para permitir localizar no mapa dialógico e na
discussão dos resultados, onde se encontra a referida fala.
Utilizamos essa estratégia nas duas entrevistas realizadas, com W e N, elaborando um
mapa dialógico para cada uma delas. De modo geral, emergiram das entrevistas três categorias
temáticas: 1) Riscos: a convivência com todos os temas relacionados aos riscos de inundação,
2) Poder Público: a participação do poder público em relação à busca de soluções para o
problema e 3) Direitos: os direitos humanos dos moradores que convivem com os eventos. Os
conteúdos dos mapas foram então sintetizados, gerando um quadro para cada categoria
temática, com o conteúdo de cada uma das entrevistas localizado em colunas separadas. Esses
quadros constituíram a base para análise das categorias temáticas.
1) Riscos: como essa pesquisa se insere nos estudos psicossociais sobre produção de
sentidos na vida cotidiana e na circulação de repertórios em uma perspectiva histórica e
social, buscamos elencar os repertórios que demonstram como a/o entrevistada/o
compreende e convive com os riscos de inundação no seu cotidiano. Com base nos
conteúdos abordados, essa categoria foi subdividida nos seguintes tópicos: a)
alagamento (inundação, enchente, água); b) córrego; c) obras e piscinão; d) razões para
ficar (casa, moradia, vizinhança); razões para sair (desapropriação e remoção).
2) Poder Público: buscando entender não apenas como as pessoas convivem com os riscos
na dinâmica da vida cotidiana, mas também quais ações de enfrentamento são
desenvolvidas para a minimização desses problemas, elencamos nessa categoria temas
pertinentes as todas as instâncias públicas e/ou atores governamentais que tem algum
tipo de poder de tomada de decisões que auxiliam nesses enfrentamentos: a) ações locais
(Defesa Civil, Semasa, NUPDEC, reuniões de bairro); b) Resposta governamental
(Prefeitura, administradores, governo e Poder Público); c) agregamos também a essa
categoria, algumas instituições privadas que se estabeleceram na região com a
autorização de órgãos públicos e que de alguma maneira influenciam diretamente na
problemática da inundação do bairro: Carrefour, Supermercado Roldão e Shopping
Atrium.
3) Direitos: entendidos de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos da
Organização das Nações Unidas, de acordo com a qual “Todos os seres humanos
nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência,
devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade” (BRASÍLIA, 1998).
Com base nessa definição, relacionamos nessa categoria assuntos que de alguma
44
maneira expressam como os direitos básicos dos entrevistados estão sendo tratados
diante dos eventos de inundação.
4. CONTEXTUALIZAÇÃO DA VILA AMÉRICA
Para contextualizar a Vila América, apresentamos primeiramente a formação do
município de Santo André e depois a constituição do bairro. Como o objetivo dessa pesquisa é
analisar as múltiplas dimensões dos riscos para pessoas que convivem com inundações
recorrentes, apresentaremos ainda o histórico das inundações na Vila América.
Para tanto, utilizaremos as seguintes fontes de informação: a) documento da Prefeitura
de Santo André (1989), disponibilizado pelo Centro de Referência do Semasa, que historia a
formação de vários bairros da cidade de Santo André; b) dissertação de mestrado de Cid Blanco
Junior (2006) intitulada: As transformações nas políticas habitacionais brasileiras nos anos
1990: o caso do Programa Integrado de Inclusão Social da Prefeitura de Santo André,
desenvolvida junto ao Programa de Arquitetura, Urbanismo e Tecnologia da Escola de
Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo; c) o livro Águas Revoltas: histórias
de enchentes em Santo André, escrito por Magda Carmo dos Santos (2002) com objetivo de
conhecer o processo de formação da cidade e os diferentes tratamentos que foram dados à
questão ambiental; d) o Anuário de Santo André de 2014, que traz como base de dados o ano
de 2013; e) trechos de conversas com moradores registrados em diário de campo; f) relatos de
entrevistas, g) matérias de jornais.
4.1 A CONSTITUIÇÃO DO BAIRRO
4.1.1 Formação da Vila América
A Vila América é um bairro de Santo André que, por sua vez, integra a região do Grande
ABC, assim, é necessário, previamente à descrição da formação dessa vila, conhecer a formação
desse município e dessa região.
A região do Grande ABC, tal como está configurada, formou-se pela divisão de um
único município, São Bernardo do Campo, fundado em 1889, com a implantação da ferrovia
então denominada São Paulo Railway, que liga a região litorânea com a cidade de São Paulo e
o interior, na época dos grandes produtores de café. No entorno de uma das estações dessa linha
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férrea iniciou-se a expansão da malha urbana que, após sucessivas divisões resultou nos sete
municípios atuais, cabendo a Santo André o núcleo original administrativo.
O surgimento da atual cidade de Santo André ocorreu na metade do século XIX, como
um distrito de São Bernardo do Campo, ao redor da parada de trens São Bernardo, assim
denominada por ser a mais próxima do povoado localizado junto ao Caminho do Mar
(BLANCO JR, 2006).
A presença da parada de trens, as terras planas do vale do Rio Tamanduateí e a
valorização constante dos preços dos terrenos para a instalação de indústrias em São Paulo, bem
como sua proximidade com a capital, fizeram de Santo André um local extremamente atraente
para a implantação de novos empreendimentos industriais ainda no final do século XIX.
Mas foi somente nos primeiros anos do século XX, com investimentos em
infraestrutura, incentivos fiscais propícios à instalação de indústrias e a duplicação da estrada
de ferro, que o número de estabelecimentos ao longo da linha férrea se ampliou, bem como a
malha urbana. Indústrias de pequeno e médio porte de móveis, têxteis, metalurgia, química e
produtos farmacêuticos se instalaram ao longo do eixo constituído pela linha férrea e,
posteriormente, pela Avenida dos Estados, marginal ao Rio Tamanduateí (SANTOS, 2002).
Esse processo foi impulsionado após a I Guerra Mundial, com a estabilização da
economia mundial e a conclusão de novas obras de infraestrutura na região, especialmente da
represa Billings e da usina Henry Borden, em 1924, que garantiram a transformação definitiva
da indústria como base de crescimento da cidade e a instalação de grandes metalúrgicas.
A construção da ferrovia nas proximidades do rio Tamanduateí foi estratégica, pois
atrairia diversas indústrias que necessitavam desse meio de transporte e também da água do rio
de seus afluentes, além do preço baixo dessas terras, que viviam encharcadas. A ferrovia
converte essas áreas em espaço de atração industrial e de concentração de vilarejos operários
localizados em plena várzea do rio.
Gradativamente, o bairro próximo à estação ferroviária foi concentrando o comércio e
as primeiras indústrias, e na virada para o século XX, o município já contava com a maior
concentração urbana da região, gerando diversas formas de incentivo, por parte do poder
público, para a vinda de mais empresas à cidade.
O crescimento industrial impulsionou o crescimento da população do então município
de São Bernardo, assim como os efeitos políticos da Revolução de 1930 também chegaram à
região, com a diminuição do poder dos grandes proprietários de terra no poder municipal em
detrimento de pessoas ligadas ao setor industrial. Foi nessa década que ocorreu o
desmembramento da região. O município de São Bernardo, sido criado em 1889 e que ocupava
46
a área equivalente a todo Grande ABC de hoje, passou a ser chamado de Santo André e teve a
sede administrativa transferida para esse distrito em 1938, fato que deu início às disputas
emancipacionistas que originariam, anos mais tarde, os municípios de São Bernardo do Campo
(1944), São Caetano do Sul (1948), Ribeirão Pires (1954), Mauá (1954), Diadema (1958) e Rio
Grande da Serra (1963) (BLANCO JR, 2006).
Na década de 1950, com os incentivos federais aos setores automobilísticos e a abertura
da Via Anchieta, criando um novo eixo São Paulo – Santos, a região recebeu ainda mais
indústrias e esse crescimento do setor industrial foi acompanhado também do crescimento
populacional.
Os processos de urbanização e industrialização de Santo André ocorreram praticamente
juntos desde a abertura da parada de trens. Porém, o processo de industrialização foi bem mais
acelerado que o de urbanização, fazendo com que durante alguns anos houvesse mais
trabalhadores nas fábricas do que moradores na cidade. Nos primeiros anos do século XX,
muitos trabalhadores das indústrias andreenses moravam em São Paulo e eram poucas as
habitações operárias na cidade. Somente com o passar dos anos, premidos pelo aumento do
custo da moradia na capital e incentivados pelo baixo custo da terra em santo André, foi que
surgiram os primeiros empreendimentos imobiliários privados destinados aos trabalhadores,
que em muitos casos optaram pela casa própria no novo núcleo urbano que aos poucos ganhava
ares de cidade (SANTOS, 2002).
A primeira Vila Operária de Santo André foi construída, em 1912, pela Fábrica de
Tecidos e Fiação São Bernardo (Ypiranguinha). Nos anos seguintes, grupos imobiliários
ajudaram na concentração da população nas proximidades das fábricas, por meio da construção
de casas para os operários. Paralelamente a esse processo, nas proximidades da estação
ferroviária São Bernardo, surgiram empreendimentos destinados às classes médias e alta, como
também aos operários.
Entretanto, esses empreendimentos não foram capazes de atender à crescente demanda
habitacional decorrente do crescimento industrial da cidade e das migrações campo-cidade no
pós-crise de 1929, fazendo com que a Prefeitura de São Bernardo (nome do município na época)
também intervisse no mercado imobiliário, por meio da isenção de impostos e taxas para quem
construísse casas populares para locação (BLANCO JR, 2006).
É nesse contexto que chega à cidade de Santo André a família de imigrantes italianos
Guazelli, adquirindo algumas terras. No ano de 1920, os irmãos Guazzelli venderam 46
alqueires de terra à Jorge de Barro Pires e compraram 16 alqueires de terra de Queiróz dos
47
Santos, formando e loteando a Vila América, nome escolhido para homenagear Américo, um
dos irmãos Guazzelli, falecido em 1928, aos 41 anos de idade (SANTO ANDRÉ, 1989).
Como essa região era, e ainda é, cortada pelo córrego Guarará, configurando-se como
várzea6, a família construiu uma olaria, podendo assim utilizar as águas represadas do córrego
na sua produção. Entre 1930 e 1960, as águas represadas foram também utilizadas pelo Clube
Atlético Aramaçan para a prática de natação e esportes náuticos, inicialmente com a permissão
da família e, a partir de 1951, com a permissão da Prefeitura, que desapropriara o terreno
(SANTOS, 2002).
4.1.2 A Vila América hoje
Utilizamos como fonte para as informações referentes à situação atual da Vila América,
trechos de conversas com moradores, extraídos do diário de campo da pesquisadora e o Anuário
de Santo André 2014, que traz como base de dados o ano de 2013. O documento possui um
conjunto de informações e dados estatísticos que permite conhecer alguns aspectos da realidade
do município. Já os dados censitários sobre características da população de Santo André
derivam do site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010 com
estimativa para 2013 (SANTO ANDRÉ, 2015).
O município de Santo André está localizado na porção sudeste da região metropolitana
de São Paulo, com uma configuração territorial que praticamente corta ao meio a região
denominada Grande ABC, área composta por sete municípios (Santo André, São Bernardo do
Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra), com uma
população total de cerca de 2,5 milhões de habitantes distribuídos em 844 km².
6 Várzea: sf. Terreno baixo, plano e fértil, nas margens de um curso de água; vargem (FERREIRA, 2008,
p. 808)
48
Figura 1: Região do Grande ABC, São Paulo.
Fonte: Guilherme Afonso e Márcio Urios, Universidade Federal do ABC, 2010
A Vila América é um bairro do município de Santo André, com uma população de 4.518
habitantes, distribuídos em uma área de 0,53 km², com rendimento médio familiar per capita
de R$ 1.529,62, conta com 1565 domicílios particulares permanentemente ocupados e, desse
total, 88 estão em área de risco de inundação, conforme relato de moradores.
Em relação à dimensão territorial, é considerada uma macrozona urbana, onde está
localizada a bacia hidrográfica do Rio Tamanduateí; quanto ao clima, está sujeita a fatores
fisiográficos e atmosféricos da Serra do Mar e do Planalto Atlântico, que estabelecem as
condições regionais e locais que condicionam a temperatura, precipitação e umidade relativa.
A proximidade com a Serra do Mar e sua topografia proporcionam índices pluviométricos
muito acima da média do país, ultrapassando os 3.000mm anuais, podendo chegar a 4.000mm,
o que contribui para a recarga e manutenção dos corpos d’água e da represa Billings.
Como a Vila América é uma área de várzea, predomina a vegetação rasteira típica de
campos, e essa característica se deve aos seguintes fatores: lençol freático próximo da
49
superfície, chegando a aflorar em muitos casos, mesmo nas épocas mais secas; frio; altitude;
ventos e acidez do solo.
Geograficamente está cercada por importantes vias de acesso, que ligam o bairro ao
centro da cidade e a outros municípios. São elas: a) a Avenida Santos Dumont e a Avenida
Perimetral, que ligam o bairro ao centro e aos outros seis municípios da região do Grande ABC,
assim como ao Rodoanel Metropolitano de São Paulo, b) a Avenida dos Estados, que liga o
município à região Metropolitana de São Paulo e c) a Avenida Capitão Mário de Toledo, que
dá acesso a importantes bairros de Santo André.
Segue relato do morador N durante uma conversa com pesquisadora sobre a localização
da Vila América:
N: [...] a economia do município gira em torno desse eixo aqui também, que é a
Perimetral, que faz ligação pra Mauá, e consequentemente pra Ribeirão Pires, então
faz tudo, e tem saída pro Rodoanel aqui em Mauá [...] (ENTREVISTA 31/03/2016,
L195)
N: [...] essa via aqui do Córrego Guarará, da Capitão Mário de Toledo, é uma
importante via de locomoção do município, porque lá na ponta na Vila Luzita tem, eu
acho que tem no mínimo 1/3 da população de Santo André, parece que não é nada,
mas é muita gente, tem município que não tem a população que tem no bairro Vila
Luzita, Jardim Santo André, toda aquela área lá é densamente povoada, então eles
fazem recurso do transporte aí (DIÁRIO DE CAMPO – 20/03/2016).
O bairro é servido por transporte público municipal e intermunicipal de fácil acesso para
os moradores. Em seu entorno estão instalados vários estabelecimentos comerciais e, desde
empresas de grande porte a micro-empresas, bem como o Clube Aramaçan e o Estádio
Municipal Bruno José Daniel. Localiza-se a cinco minutos do centro da cidade; como afirma
uma moradora: “[...] é um local, se você ver, um local no centro, eu vou a pé para Santo André,
é um centro, perto de um shopping que vai ter um monte de coisa maior, vai ter hotel, vai ter
salas comerciais, prédio do outro lado” (DIÁRIO DE CAMPO, 29/09/2015).
4.2 AS INUNDAÇÕES NA VILA AMÉRICA
Como vimos, os processos de industrialização e urbanização do município de Santo
André ocorreram praticamente juntos desde a abertura da parada de trens. Na década de 1950,
a cidade era considerada o segundo maior polo industrial do Estado; com isso, muitas indústrias
chegavam e, com elas, mais e mais bairros eram criados em função da grande contratação de
mão de obra gerada pelo progresso e pela expansão dos negócios.
50
Esse cenário incentivou a organização de loteamentos para a acomodação de novas
unidades fabris e para a residência de trabalhadores, divididos social e economicamente. Os
loteamentos contavam com lotes destinados à habitação burguesa, à habitação proletária, e à
instalação industrial. Conforme Magda Santos (2002), com exceção das instalações industriais,
que estavam localizadas ao longo da via férrea, na várzea do Tamanduateí, os outros
loteamentos evitavam as várzeas, no entanto, por questões econômicas, os terrenos ofertados à
classe operária, não levavam essa questão em consideração.
Atraídas pelos curtos prazos de entrega dos lotes e prestações mínimas, além de
promessas de desenvolvimento e valorização, famílias eram encorajadas a ocupar esses
loteamentos em áreas alagadiças. O que facilitou esse processo foi o fato de, até então, não
haver leis para disciplinar a abertura de loteamentos. A primeira lei nesse sentido (Lei municipal
271, datada de abril de 1929) buscou disciplinar a abertura de novos loteamentos, exigindo a
reserva de áreas obrigatórias para o sistema viário e permitindo o arruamento de terrenos baixos
e alagadiços desde que tomadas providências para assegurar o escoamento das águas e seu
enxugo (SANTOS, 2002; PASSARELLI, 2005).
Nessa época, o país vivia um momento em que a palavra de ordem era o crescimento
urbano, e grandes prédios e casas começam a ser construídos. Essas ocupações, associadas ao
crescimento geral da cidade, trouxeram para a região a problemática das enchentes.
Embora a Prefeitura do município demonstrasse preocupação com o crescimento
acelerado, criando leis e grupos de estudos para planejar a expansão urbana, o problema das
enchentes, que se manifestava, sobretudo, na região próxima à estação ferroviária e nas
indústrias marginais ao Tamanduateí, não era entendido como algo que poderia se agravar, mas
que efetivamente se agravou com a ocupação crescente de áreas alagadiças e a
impermeabilização desenfreada de toda a bacia do Tamanduateí (SANTOS, 2002).
Outro elemento relevante para o progresso do município foi a pavimentação das ruas e
a utilização dos fundos do vale para a construção de avenidas marginais. Com isso, importantes
vias de acesso foram asfaltadas, transformando áreas próximas às margens dos rios em grandes
avenidas.
O processo desenfreado de urbanização nas décadas de 1950 a 1970 resultou no aumento
do número de loteamentos e no encarecimento do preço da terra, deflagrando uma crescente
ocupação, por famílias de baixa renda, de terrenos antes desprezados para a moradia: às
margens de córregos e com alta declividade (BLANCO JR, 2006). Esse processo de ocupação
de áreas inadequadas se intensificou e começaram a surgir as primeiras favelas da região,
51
criando o cenário para o agravamento das enchentes e demais situações de risco, como
deslizamentos e soterramentos.
As inundações começaram a atingir o centro da cidade, no entorno da estação
ferroviária, e obras para amenizar a problemática passaram a ser pensadas. No entanto, a
principal preocupação não era com as enchentes, mas com o desenvolvimento viário, pois com
o transbordamento dos córregos, as vias centrais da cidade ficavam intransitáveis. Então a
Prefeitura canaliza trechos dos córregos Cemitério e Carapetuba localizados no centro da
cidade, assim como amplia algumas vias.
Ao final da realização das obras, a recomendação era que houvesse continuidade numa
segunda fase, porque o canal feito naquele momento permitia o escoamento das águas somente
nos próximos cinco ou oito anos seguintes, quando então seria necessário realizar novas
canalizações, mas isso não ocorreu.
No final dos anos 1950, Santo André enfrentou um grande temporal que inundou a
região próxima à estação ferroviária e o problema começou a ser sentido também em bairros
formados fora do núcleo original, no Vale do Tamanduateí. Expressando a já citada prioridade
dada ao desenvolvimento viário, o poder público aprovou a lei 1.360 de 01 de junho de 1958,
autorizando a construção de prédios nos leitos dos dois córregos, deixando a responsabilidade
das obras de canalização e cobertura dos cursos d’água nas mãos das empresas privadas
responsáveis pelas obras (SANTOS, 2002).
Quanto ao bairro que é nosso estudo de caso, foi a partir da década de 1960 que o
represamento das águas do Guarará passa a causar alagamentos7 na Vila América, pois a água
da chuva demorava a escoar, causando transbordamento8 do córrego e, com o passar dos anos,
a inundação9 no bairro. Desde então, as enchentes10 tornam-se um problema constante na vida
7 Alagamento é o acúmulo momentâneo das águas em uma dada área por deficiência no sistema de
drenagem, podendo ter ou não relação com processos de natureza fluvial (MINISTÉRIO DAS CIDADES/IPT,
2007).
8 Transbordamento de água da calha normal de rios, mares, lagos e açudes, ou acúmulo de água por
drenagem deficiente, e a forma como evoluem as classificam como: enchentes ou inundações graduais, enxurradas
ou inundações bruscas, alagamentos e inundações litorâneas (BRASIL, 2014).
9 Por vezes, no período de enchente, as vazões atingem tal magnitude que podem superar a capacidade de
descarga da calha do curso d’água e extravasar para áreas marginais habitualmente não ocupadas pelas águas. Este
extravasamento das águas do canal de drenagem para as áreas marginais (planície de inundação, várzea ou leito
maior do rio), quando a enchente atinge cota acima do nível máximo da calha principal do rio caracteriza uma
inundação (MINISTÉRIO DAS CIDADES/IPT, 2007).
10 Enchente ou cheia são as águas de chuva, que ao alcançar um curso d’água, causam o aumento na vazão
por certo período de tempo, então a elevação temporária do nível da água em um canal de drenagem, devido ao
aumento da vazão ou descarga é chamada de enchente ou cheia (MINISTÉRIO DAS CIDADES/IPT, 2007).
52
da população não apenas da Vila América, mas de toda a cidade, atingindo também a estação
ferroviária e, inclusive, privando a população de ter acesso ao transporte para outros municípios.
Segundo Magda Santos (2002), em 1968 a região teve a maior inundação registrada até então,
quando cerca de 200 famílias ficaram desabrigadas e os prejuízos causados às indústrias foram
incalculáveis e jamais registrados em outras épocas.
Para atender às reclamações crescentes quanto às enchentes e a falta de obras para a
solução do problema, o poder público criou sucessivas leis de auxílio às famílias flageladas.
Entre os anos de 1951 e 1962, para cada temporal mais forte aprovava-se uma lei para ajudar
as vítimas daquela chuva. Em 1960, a lei 1.638 de 30 de dezembro, destinava 7 milhões de
cruzeiros para pessoas que comprovassem pobreza e cujos móveis ou utensílios indispensáveis
tivessem sido danificados pelo temporal ocorrido no Natal daquele ano. No caso de
reconstrução da casa, o Departamento de Obras acompanhava os trabalhos, liberando o dinheiro
em duas parcelas, uma no início e outra no final dos serviços. No ano seguinte, lei semelhante,
a 1.739 de 20 de novembro, autorizou a Prefeitura a prestar auxílio às famílias atingidas pelas
enchentes, aproveitando o crédito aberto pela lei anterior (SANTOS, 2002).
A partir de então, a solução para o problema das inundações passou a ser a completa
retificação e alargamento do rio Tamanduateí, atendendo também aos anseios de modernização
vivida pelo país, que demandava a realização de um plano viário. Para tanto, são feitas
intervenções no rio Tamanduateí, as margens dos córregos são convertidas em avenidas, ou
seja, vias de trânsito rápido, e constroem-se viadutos sobre a ferrovia.
Diante do agravamento da situação, as leis de auxílio a vítimas de enchentes, que até
então eram editadas de acordo com o acontecimento de chuvas intensas, começam a ser
modificadas. Em 1962, a lei 1.825 de 22 de maio, procura atender as vítimas de três temporais
de uma só vez, mas reduzia a ajuda de 30% (trinta por cento) do montante de prejuízos causados
ao imóvel e obrigava o interessado a provar que a propriedade danificada, além de única, servia
como efetiva residência. Para cobrir as despesas com essa lei, estimadas em 2 milhões de
cruzeiros, a Prefeitura cancelou obras que estavam previstas no Plano de Investimentos e que
incluíam a instalação de guias, sarjetas e iluminação pública (SANTOS, 2002).
Responsabilizado tanto pelas enchentes que transtornavam as indústrias quanto pelo
transbordamento de seus afluentes, o rio Tamanduateí começa a ser totalmente modificado no
final da década de 1960 e início da década de 1970. Por volta de 500 mil toneladas de terra
foram movimentadas no trabalho de ampliação da calha do rio. A meta era fazer com que ele
escoasse 160 mil litros de água por segundo, 60% a mais do que podia até então. Morros
53
próximos foram desfeitos e a terra jogada nos antigos meandros, acabando-se assim com as
antigas curvas do velho Tamanduateí.
Embora a obra tivesse como objetivo eliminar as enchentes, também permitia abrir
espaço em antigos brejos para a instalação de novas indústrias e, mais ainda, permitiria a
abertura da Marginal Tamanduateí e depois a construção da Avenida dos Estados. A
preocupação com o sistema viário e com a eliminação de enchentes de áreas para a instalação
de novas indústrias era o que motivava a realização de outras obras nessa mesma época, como,
por exemplo, a retificação dos córregos Apiaí e Guarará, e abertura de marginais ao longo do
córrego Carapetuba.
A obra realizada no Córrego Guarará é significativa para o agravamento das inundações
na região da Vila América. Isso porque, para permitir a construção da Avenida Capitão Mário
de Toledo Camargo, caminho natural do leito do córrego foi remanejado e retificado e grande
parte de sua extensão foi canalizada, com alguns trechos sendo totalmente fechados.
(FREITAS, 2007). A partir de então, além de conviver com as recorrentes enchentes no
município, passaram enfrentar alagamentos no seu próprio bairro.
N: Olha eu moro aqui há mais de meio século, eu estou com 62 anos, eu vim do
interior, agora aqui nesse local, na Vila América, eu moro há mais de 20 anos, desde
89, 89 para 2016, há vinte e tantos anos, há 27 anos. Mas antigamente dava uns
alagamentos e demorava meia hora, 1 hora e ia embora, isso nos anos 70 e 80, isso eu
sei por que sempre morei por aqui.
P: E sempre encheu?
N: Não, alagamento. Enchia, mas não era transbordamento porque não tinha essa
canalização atual, então desde 70 tem essa canalização aqui. (DIÁRIO DE CAMPO,
20/03/2016).
Apesar do grande investimento em obras da década de 1970, o problema das enchentes
apresentou-se ainda mais grave nos anos de 1980, pois a cidade continuava a crescer
rapidamente, levando a uma impermeabilização cada vez maior do solo pela construção de
prédios na região central e pelo surgimento de novos bairros e favelas. Com o tempo, as obras
acabaram se revelando insuficientes para escoar o crescente volume de água que corria para os
córregos, assim como não foram reservados recursos para a manutenção adequada das obras e
para a contenção das margens do rio Tamanduateí.
A partir da década de 1990, as inundações se intensificam no município de Santo André
com o registro calamidades que atingiram a todos: moradores de bairros pobres de periferia,
comerciantes e moradores da região central, e grandes indústrias instaladas próximas às
margens do rio Tamanduateí.
54
Atualmente, a Vila América continua sendo devastada por enchentes contínuas na época
das chuvas de verão, causadas pela ocupação urbana, pela impermeabilização do solo e por
obras de infraestrutura executadas sem o devido estudo de drenagem. Essas ações mal
executadas fizeram com que as inundações afetassem ainda mais o bairro, pois elas impedem
que as águas pluviais convirjam para o córrego Guarará, principal vetor de escoamento das
águas ao rio Tamanduateí, afluente do rio Tietê, garantindo o seu escoamento natural. Assim,
desde os anos 2000, no período de chuvas, invariavelmente, ali ocorrem em média três casos
de inundação e as águas chegam até a altura de 2m nas casas (SARTI, 2002).
Figura 2: Mapas das áreas inundáveis na Vila América
Fonte: Centro de Referência – Semasa, 2016
Os problemas das inundações causaram a desvalorização nos imóveis na região; isso
levou alguns moradores a colocarem suas casas à venda por um valor muito abaixo do mercado,
enquanto outros simplesmente as abandonaram e migraram para outros locais, conforme relato
da moradora W: “[...] você olha isso aqui, parece uma cidade fantasma, um monte de casa
abandonada, porque todo mundo que tinha condições de ir embora foi, os que estão restando
aqui, é porque não tem para onde ir [...]” (DIÁRIO DE CAMPO, 29/09/2015).
Também, há pessoas que, pela ausência de condições financeiras ou por se sentirem
injustiçadas, permanecem no local, esperando do poder público uma solução para o problema
que, segundo liderança comunitária, afeta 88 famílias que vivem na Vila América.
55
Para entender um pouco mais a situação vivenciada pelos moradores, segue um trecho
de uma matéria publicada no Jornal Diário do Grande ABC:
No último ano foram três cheias: duas no início do ano e uma no fim de novembro.
Além dos prejuízos materiais, como portões, muros e carros destruídos, móveis e
equipamentos eletroeletrônicos danificados com enchentes que chegam a atingir dois
metros de altura, os transtornos invadem também a vida familiar. "Abala a estrutura
de qualquer casamento. Tanto que só permanece morando aqui aqueles que não têm
condições de se mudar", confidencia o coordenador de promoção Eduardo Antunes
Rodrigues, 38 anos. [...]ao circular pelo local, é possível observar diversas casas
disponíveis para venda, apesar da desvalorização dos imóveis. Alguns moradores
preferem migrar para pontos mais altos e abandonar a própria residência, caso do
auxiliar de armazém Eduardo do Nascimento, 36. "Nasci e fui criado aqui, mas não
aguento mais. Vou deixar a casa vazia e mudar para a Vila Humaitá", revela. [...] O
descontentamento é visível. Basta uma volta pelo bairro para encontrar moradores
cansados dos transtornos anunciados e recorrentes. "De dezembro até abril a gente
fica preocupado e até evita sair de casa", destaca o líder comunitário do local, William
de Paiva, 44. Segundo ele, falta vontade do poder público, que há anos promete obras
de melhorias no local, que nunca saíram do papel. "Demos ideias de construir outro
piscinão na Praça 14 Bis ou até mesmo no Carrefour, muro de contenção, mas nada
foi atendido", comenta [...] (FERNANDJES, 2012).
Seguem também dados dos bairros atingidos pelo transbordamento de córregos e rio
em dias de chuvas, durante os anos 2008 a 2014 na cidade de Santo André, conforme consta no
Relatório pós-chuvas Santo André período 2008 a 201411, os quais evidenciam, também, a
problemática das inundações na Vila América12.
No ano de 2008 as chuvas que atingiram a cidade de Santo André fizeram com que
diversos bairros próximos aos principais córregos e rios do município sofressem com as
inundações. A Vila América, no que tange a altura atingida pela água, foi a que mais sofreu,
com 2m de altura, ficando atrás somente da Avenida dos Estados onde a altura atingida chegou
a 3,20m.
11 Com o objetivo de contextualizar o problema das inundações na Vila América, em 15 de setembro de
2014 solicitamos ao Semasa, por meio do processo administrativo de nº 4.496/2.014, um Relatório Fotográfico
das enchentes ocorridas na Vila América, no piscinão da Avenida Capitão Mário Toledo de Camargo e no Córrego
Guarará nos últimos 20 anos. Conforme arquivo institucional, no dia 19 de janeiro de 2015, foram disponibilizados
os seguintes documentos: a) 5 fotos de alagamentos na região (1 no ano de 2005, 3 no ano de 2010 e 1 do ano de
2013); b) Relatório Pós-chuva do município dos anos de 2008 a 2014; c) a obra Águas Revoltas – Histórias das
enchentes em Santo André, de autoria de Magda Santos; d) sugestão de acesso ao jornal local Diário da Grande
ABC. Após visitas ao local e conversas com moradores, percebemos que as intensas chuvas ocorridas no ano de
2011 não foram registradas do relatório, então, em 07 de novembro de 2015 solicitamos o desarquivamento do
processo com o objetivo de checar os dados disponibilizados: em 23/01/2016 desarquivaram o processo
acrescentando mais duas solicitações: a) mapa aéreo da cidade de Santo André e b) mapa aéreo da Vila América.
Até a presente data não tivemos retorno da solicitação (DIÁRIO DE CAMPO – 28/04/2016). 12 Realizamos o histórico dessas inundações e o comparamos com os dados do Estado de São Paulo. Esse
levantamento encontra-se no apêndice I.
56
De acordo com as informações, no ano de 2009 somente alguns bairros cercados pela
Bacia do Córrego Guarará sofreram com inundações no município, sendo a Vila América o
mais atingido, com as águas atingindo 1,20m de altura.
No ano de 2010 foram atingidos bairros localizados no entorno de dois córregos: o
Guarará e o Ribeirão dos Meninos, e do Rio Tamanduateí. Novamente o local mais afetado foi
a Vila América com altura das águas chegando a 2,10m.
Segundo esse Relatório, em 2011 houve transbordamentos no Rio Tamanduateí, na
Bacia dos Córregos Cemitério e Carapetuba, na Bacia do Ribeirão dos Meninos e na Bacia do
Córrego Jundiaí afetando bairros e avenidas ao seu entorno. Não constam informações sobre
inundação nos bairros próximos à Bacia do Córrego Guarará, mas segundo a moradora W, foi
nesse ano que ocorreu uma das piores enchentes na Vila América. Em suas palavras:
W: Em 2011, foi uma chuva horrível né, afetou Santo André inteiro. Mas se em lugar
que nunca deu enchente, deu, imagina nós que qualquer chuvinha já dá uma enchente?
Porque às vezes chove lá na cabeceira e aqui, às vezes nem choveu forte e vem água
aqui, porque se chove na cabeceira do rio, a água vem aqui, a chuva passa aqui [...] eu
perdi tudo, a casa em 2011 foi tudo embora, caiu o muro do vizinho, a parede da minha
sala. E a água quase pegou eu aqui dentro, cobriu a pia da cozinha, pegou a metade
da porta do fogão que estava em cima da ... sobrou nada, fiquei com a roupa do corpo,
sem água, porque aí acabou a água (DIÁRIO DE CAMPO – 29/09/2015).
Essa moradora também disponibilizou documentos entregues pelo Semasa e pelo
Departamento de Defesa Civil contendo informações sobre ocorrências em sua casa, na Vila
América, no ano de 2011: a) no dia 20/01/2011, conforme Relatório de Vistoria em Ocorrência,
foi realizada uma vistoria de edificação na casa de W “Em atendimento à solicitação, o
engenheiro da Equipe de emergência – Sr. Irton Teixeira Cardoso, constatou o que segue: área
de inundação, comprometimento de piso e paredes, há risco potencial no local. Encaminhar à
gerência de Drenagem para ciência”; b) no dia 14/03/2011, segundo Guia de Processo, W
solicitou desconto nas contas de fornecimento de água, em decorrência da inundação.
Procuramos também matérias em jornais e sites que contivessem informações sobre
chuvas, inundações ou enchentes na Vila América em Santo André no ano de 2011.
Encontramos quatro (4) notícias no mês de fevereiro e uma (1) no mês de dezembro,
confirmando os relatos dos moradores.
As notícias encontradas sobre as chuvas do mês de fevereiro retratam o mesmo evento,
já quanto às chuvas de dezembro, embora o texto seja semelhante ao de fevereiro, a matéria na
íntegra relata outra ocorrência. Seguem:
57
CHUVA PROVOCA ALAGAMENTO NO ABC: RUAS FICARAM ALAGADAS,
DEIXANDO MOTORISTAS ILHADOS. CÓRREGOS TRANSBORDARAM NA
REGIÃO, SEGUNDO O CGE.
A chuva forte que atingia a região metropolitana de São Paulo na tarde desta quarta-
feira (2) provocava muitos transtornos. De acordo com o Centro de Gerenciamento de
Emergências (CGE), da Prefeitura, chovia muito em São Bernardo do Campo,
Guarulhos, Mauá e no limite de Santo André com Ribeirão Pires. Segundo o CGE,
houve transbordamento dos córregos Saracantan, em São Bernardo do Campo, e
Ribeirão dos Meninos, em Santo André. O Córrego Guarará, próximo a São Caetano
do Sul, também transbordou. Na região, carros e ônibus ficaram no meio do
alagamento [...] Segundo a Defesa Civil de Santo André, foram registrados pontos
de alagamento nas regiões da Vila América e do Jardim Bom Pastor. Não havia
informação de vítimas. Equipes foram deslocadas para as ruas para atender as
solicitações de vistorias [...] (G1 SP, quarta-feira, 02 de fevereiro de 2011, grifos
nossos).
CHUVA COLOCA CIDADE DE SP EM ESTADO DE ATENÇÃO.
[...] na Grande São Paulo, houve registro de chuvas fortes apenas em Salesópolis. As
áreas que provocaram precipitação intensa na região do ABC e municípios vizinhos
já se encontravam na Baixada Santista e no oceano. Segundo dados da rede
telemétrica, às 14h40 foi constatado o extravasamento do córrego Ribeirão dos
Meninos, em São Caetano, com término às 16h. Mais cedo, às 14h, houve
transbordamento do mesmo córrego em Santo André, na altura da Faculdade de
Medicina, e do córrego Saracantan, em São Bernardo do Campo, que duraram até as
14h50. A Defesa Civil de Santo André disse que, às 16h20, havia pontos de
alagamento da região da Vila América, Jardim Bom Pastor e na Vila Sacadura
Cabral. Além disso, o nível do Rio Tamanduateí, no trecho que corta Santo André,
estava com o nível alto, com possibilidade de transbordar, caso a chuva continuasse
[...] (TERRA, quarta-feira, 02 de fevereiro de 2011, grifo nosso).
CHUVA INUNDA RUAS DE SÃO BERNARDO DO CAMPO
A forte chuva que atingia o ABC Paulista, na tarde desta quarta-feira (2), provocou
alagamentos em São Bernardo do Campo e Santo André. Em razão do temporal,
transbordaram os córregos Saracantan, em São Bernardo do Campo, e Ribeirão dos
Meninos, além do rio Tamanduateí, ambos na altura de Santo André, segundo o CGE
(Centro de Gerenciamento de Emergências) [...] O temporal também causa estragos
em Santo André e em Diadema, onde outro motorista ficou ilhado dentro do carro e
aguardava a chegada dos bombeiros às 13h30. De acordo com o Corpo de Bombeiros,
o incidente ocorria na rua Granja, altura do número 377, no bairro Parque Real. Por
volta das 15h20, a Defesa Civil registrava em Santo André dois pontos de
alagamento intransitáveis na avenida Capitão Mario Toledo de Camargo, na
Vila América, e na avenida Lauro Gomes, no Jardim Bom Pastor (BRASIL MUNDO,
quarta-feira, 02 de fevereiro de 2011, grifos nossos).
CHUVA CAUSA ALAGAMENTOS E DESLIZAMENTOS NA GRANDE SÃO
PAULO
As chuvas que atingem a região metropolitana nesta quarta-feira causam alagamentos
em diversas avenidas na Grande São Paulo. Há ainda registros de deslizamentos e
queda de árvore. Houve transbordamento de córregos e pessoas ficaram ilhadas pela
chuva. Na cidade de São Paulo, regiões estão em atenção. Os córregos Saracantan, em
São Bernardo do Campo, e Ribeirão dos Meninos, em Santo André -- na Grande
São Paulo --, transbordaram com as fortes chuvas, segundo o CGE (Centro de
Gerenciamento de Emergência), da Prefeitura de São Paulo[...]a Defesa Civil de
Santo André informou que foram registrados pontos de alagamento da região da
Vila América e Jardim Bom Pastor. O órgão alerta que o nível do rio Tamanduateí,
no trecho que corta a cidade, está alto e há risco de transbordamento (FOLHA DE
SÃO PAULO, quarta-feira, 02 de fevereiro de 2011, grifos nossos).
58
CHUVA PROVOCA ALAGAMENTO NO ABC
A chuva forte que atingia a região metropolitana de São Paulo na madrugada de hoje
(15) provocou muitos transtornos. De acordo com o Centro de Gerenciamento de
Emergências (CGE), da Prefeitura de SP, chovia muito em São Bernardo, São
Caetano, Guarulhos, Mauá e no limite de Santo André com Ribeirão Pires. Segundo
o CGE, houve transbordamento dos córregos Ribeirão dos Meninos, em São Caetano,
e dos Couros, em São Bernardo, também transbordaram, causando o bloqueio do
tráfego no limite entre São Caetano e a capital paulista. O Córrego Guarará,
próximo a São Caetano, também transbordou [...] Segundo a Defesa Civil de
Santo André, foram registrados pontos de alagamento nas regiões da Vila
América e do Jardim Bom Pastor. Não há informação de vítimas. Equipes foram
deslocadas para as ruas para atender às solicitações de vistorias [...] (DIÁRIO
REGIONAL, quinta-feira, 15 de dezembro de 2011, grifo nosso).
Em continuidade aos dados disponíveis nesse Relatório, no ano de 2012 constam pontos
atingidos pelo transbordamento dos Córregos Cemitério, Carapetuba, Guarará, Apiaí, Itrapoã,
Cassaquera e do Rio Tamanduateí. Novamente a Vila América foi a área mais atingida pelas
chuvas em relação à altura atingida pelas águas, 1,80m.
Segundo dados oficiais, durante o ano de 2013 a cidade de Santo André foi atingida
pelas fortes chuvas quatro vezes, ocasionando inundações nos bairros próximos a todos os
córregos e rios. Das quatro chuvas com eventos danosos na cidade, duas atingiram a Vila
América, com as águas atingindo, 2m e 1,50m, respectivamente.
Finalizando a análise dos dados disponibilizados por esse Relatório, em 2014, dos 6
bairros atingidos, a Vila América também foi o bairro em que a água atingiu a maior altura:
0,90cm.
Os dados oficiais dos anos de 2008 a 2014 disponibilizados no Relatório Pós-Chuva do
Semasa, demonstram que a Vila América é o bairro mais prejudicado em relação à altura
máxima atingida pela água da inundação, na cidade de Santo André.
59
Tabela 1: Relatório Pós-chuvas Santo André/SP
Pontos
atingidos Bairro
Lâmina
(m) 2008
Lâmina
(m)
2009
Lâmina
(m) 2010
Lâmina
(m) 2011
Lâmina
(m) 2012 Lâmina (m) 2013
Lâmina
(m) 2014
Fevereiro Fevereiro Janeiro Janeiro Janeiro Janeiro Fevereiro Fevereiro Dezembro Março
Bacia dos
Córregos
Cemitério
e
Carapetub
a
Centro 0,30 a 0,80 0,20 0,30 a 1,50 0,40 a 0,80 0,70 a 1,00
Bacia do
Rio
Tamanduat
eí
Jaçatuba 0,80 a 3,20 1,70 0,20 0,80 a 1,00
Avenida
dos Estados 0,80 a 3,20 1,70 0,20 0,80 a 1,00
Pq. João
Ramalho 0,30 0,30 0,70 a 1,00 0,20 0,30
Jd. Alzira
Franco 0,50 0,30 0,20 0,40 0,40
Vila
Metalúrgic
a
0,50 a 1,50
Santa
Terezinha 0,30 a 0,80 0,20 a 2,00 0,80 0,20 a 0,50 0,20 a 0,50 0,20 a 0,30
Bangú 0,20 0,40
Bacia do
Córrego
Guarará
Vila Pires 0,15 a 0,50 0,40 a 0,60 0,20 a 1,00
Não
constam
informaçõe
s referentes
a esse ano
0,50 a 1,50 0,80 a 1,50 0,40 a 1,00
Vila
Vitória 0,20 a 1,00 0,50 1,20 a 1,50
Vila Luzita 0,30 a 1,00 0,50 0,40
Vila
América 0,50 a 2,00 0,20 a 1,20 0,25 a 2,10 1,60 a 1,80 0,80 a 2,00 0,60 a 1,50 0,50 a 0,90
Jd. Vila
Rica 0,40 - 1,00
Vila
Lutécia 0,80
Vila Sá 1,1 0,80 0,80 a 1,00
60
Bacia do
Rio
Oratório
Jardim Ana
Maria 0,30 0,40
Parque
Novo
Oratório
0,30 a 1,00 0,30
Bacia do
Ribeirão
dos
Meninos
Vila
Palmares 0,50 a 1,20 0,60 a 1,50 - 0,30 0,20 a 1,20
Bom Pastor 0,30 a 0,80
Sacadura
Cabral 0,30 a 0,80 0,30
Vila
Scarpelli -
Vila
Floresta 2,00
Bacia do
Córrego
Jundiaí
Santa
Terezinha 0,20 a 0,50
Bacia do
Córrego
Apiaí
Vila
Helena 0,40 0,30
Bacia do
Córrego
Itrapoã
Cidade São
Jorge
-
Carreament
o de
resíduos
-
Carreament
o de
resíduos
-
Carreament
o de
resíduos
-
Carreament
o de
resíduos
-
Carreament
o de
resíduos
Bacia do
Cassaquera
Homero
Thon 1,50 1,60 1,80 0,60 1,20 0,60
Centreville
-
Carreament
o de
materiais
-
Carreament
o de
materiais
-
Carreament
o de
materiais
-
Carreament
o de
materiais
-
Carreament
o de
materiais
Fonte: Centro de Referência - Semasa, 2015.
61
A cidade consta da lista dos 821 municípios considerados prioritários pelo Governo
Federal para receber ações visando à redução de desastres naturais. Esses municípios foram
escolhidos de acordo com critérios específicos, tais como: recorrência de deslizamentos,
inundações, enxurradas, desabamentos, número de óbitos, desabrigados e desalojados,
registrados nos últimos 20 anos. Dessa lista, Santo André é um dos 263 municípios com o
mapeamento das áreas de risco já realizado pelo Serviço Geológico do Brasil (CPRM), via
Ministério de Minas e Energia, o qual é tido como ação emergencial para a delimitação de áreas
em Alto e Muito Alto Risco de enchentes, inundações e movimentos de massa (deslizamentos).
Esse mapeamento foi entregue em março de 2013 (BRASIL, 2013).
O documento CPRM faz parte das ações de integração nacional do Governo Federal,
em cumprimento à Lei Federal 12.608/12, que estabeleceu a Política Nacional de Proteção e
Defesa Civil. Segundo tal mapeamento, Santo André tem 38 áreas de risco, entre níveis 3 e 4
(alto e muito alto), que incluem os diversos tipos de riscos: inundação, enxurradas,
deslizamentos e solapamentos. As áreas mais sensíveis do município, segundo o estudo, são
Jardim Irene, Jardim Santo André, Vila América, Recreio da Borda do Campo, Cata Preta,
Núcleo Espírito Santo, Gamboa, Sítio dos Vianas, Vista Alegre e Bacia do Rio Tamanduateí.
Esse diagnóstico, além de apresentar os resultados, inclui sugestões para a resolução dos
problemas. Com relação às áreas de inundação, relatou-se que há falta de implantação de um
sistema de alerta para a remoção temporária dos moradores durante os eventos de precipitação
elevada, e como, em alguns locais a população já se adaptou às frequentes ocorrências,
construindo diques de contenção na entrada das casas ou portões de vedação. Mas, mesmo não
havendo alto risco de morte, os moradores precisam ser avisados com maior antecedência para
evitar perda de bens materiais e proliferação de doenças.
Percebeu-se, ainda, que em determinados locais, as moradias, além de vulneráveis, estão
dentro do leito dos córregos, como nas Avenida Pedro Américo e Maurício de Medeiros, que
vem sendo atingidas anualmente pelas águas. Nesses casos, o sistema de alerta deve funcionar
apenas enquanto não é realizada a remoção definitiva das moradias.
Vale ressaltar que mesmo a Vila América estando classificada na tipologia de risco de
inundação, conforme o diagnóstico citado, vir sofrendo com inundações há pelo menos 20 anos
de acordo com relato de moradores e ser o bairro mais atingido diante do relatório pós-chuva
dos anos 2008 a 2014, não está entre os bairros citados nos resultados do documento da CPRM
e, por consequência, não consta das sugestões para a resolução do problema.
62
5. AS MÚLTIPLAS DIMENSÕES DO RISCO NA PERSPECTIVA DOS
MORADORES QUE CONVIVEM COM AS INUNDAÇÕES RECORRENTES
NA VILA AMÉRICA
Como essa pesquisa se insere nos estudos psicossociais sobre produção de sentidos na
vida cotidiana e na circulação de repertórios em uma perspectiva histórica e social, discutiremos
neste subcapítulo temas que demonstram como a/o entrevistada/o compreende e convive com
os riscos de inundação no seu cotidiano.
5.1 APRESENTANDO OS INTERLOCUTORES
Apresentaremos neste subcapítulo os moradores que foram nossos interlocutores sobre
a vivência com o problema das inundações na Vila América. Buscando atender o Código de
Ética em Pesquisa 466/12, que enfatiza, entre outros, a proteção dos participantes, os
apresentaremos como a moradora W e o morador N.
5.1.1 A história de W
W é moradora da Vila América há 19 anos e convive com a inundação desde então.
Somente descobriu que a região sofria com os eventos após 40 dias de moradia.
W: É assim, depois de 8 anos de casada eu comprei essa casa aqui, eu comprei em
setembro. Comprei a casa, gastei tudo o que tinha e que não tinha para reformar a
casa, e 40 dias depois eu descobri que dava enchente, no dia do aniversário da minha
filha de 7 anos. Tinha um monte de gente aqui em casa, e eu ainda só não tirei a
comporta, porque, eu falei olha que portão feio, eu não conhecia o que era comporta,
olha que portão feio, então eu não tirei a comporta porque o dinheiro acabou, porque
a casa estava muito destruída. Eu até falei, olha que pessoal relaxado, e hoje comigo
está destruída de novo, porque a gente vai perdendo o gosto pela casa. Depois eu fui
saber, tinha um muro remendado ali, porque tinha dado uma enchente, tinha caído e
pessoa que morava aqui tentou segurar a mesa, porque a pessoa se apega no que ela
tem e aí cortou a mão dela, ficou com a mão cortada e teve que dar ponto, então eles
desgostaram e venderam a casa. Só que eu não tenho coragem de vender a casa e
desfazer o sonho de uma pessoa também, eu vou vender, eu vou falar e ninguém vai
querer comprar (ENTREVISTA, 05/02/2016, L1).
A casa foi financiada pelo antigo proprietário junto ao Banco Itaú, mas como W não
conseguiu refinanciá-la, por trabalhar por conta, comprou por contrato de gaveta. Terminou de
pagar as prestações do imóvel em 1998, restando apenas 60 prestações de resíduo, no entanto,
63
ao final das prestações residuais, em função do alto valor pago mensalmente, originou-se um
novo resíduo e W atualmente briga na justiça pela aquisição da propriedade.
W: Comprei contrato de gaveta, porque eu trabalho por conta e nosso país também
não dá, não dava crédito para eu conseguir comprar uma casa, comprei em contrato
de gaveta e continuei pagando as prestações dele que tinha e ainda tenho dívidas. Eu
estou brigando com o banco.
P: Então essa casa, com o antigo proprietário, era financiada?
W: Isso, e já não podia ser financiada aqui né.
P: Foi financiada por qual banco?
W: Pelo Itaú, e eu estou brigando na justiça por essa casa, porque a prestação era
muito alta, e quando eu terminei de pagar em 1998, era R$ 806,00 e passou para R$
1.250,00 o resíduo, e é R$47.000,00, então põe aí, R$1.250,00, 60 prestações, eu
geraria resíduo de novo, uma casa impagável. Então eu estou aqui, não posso
reformar, porque se eu reformar, uma que a Prefeitura não deixa, eles falam que não
pode subir a casa, e eu moro em área de risco e eles não deixam fazer nova construção
(ENTREVISTA, 05/02/2016, L3-67).
Sua casa, além de residência é o local de trabalho do esposo, que possui uma gráfica nos
fundos. Mora com o esposo, o filho e o irmão; tem uma filha que não mora mais com a família.
Em função da convivência com a inundação, na luta por não perder seus bens materiais e até
mesmo a vida, W adquiriu cisto no braço, seu esposo duas hérnias de disco e sua filha um
problema da coluna quando teve 9 vértebras deslocadas, aos 10 anos de idade.
Foi liderança de Núcleo Comunitário de Proteção e Defesa Civil (NUPDEC) durante 7
anos, auxiliando no cadastramento de áreas de riscos e em atividades para melhoria da Vila.
Participou também da realização de campanhas em parceria com o Corpo de Bombeiros e com
a Eletropaulo, promovendo cursos de primeiros socorros nas escolas, e do Orçamento
Participativo do Município. Distanciou-se do trabalho voluntário por ter se desanimado com a
falta de ações definitivas para a resolução do problema em seu bairro.
Figura 3: Casa de W Figura 4: Casa de W inundada
Fonte: Sandra Luzia Assis da Silva, 2015 Fonte: Internet, 2015.
64
5.1.2 A história de N
N é morador da Vila América há 27 anos e da cidade de Santo André há mais de 50
anos. Sua propriedade é legalizada pelo Poder Público e toda a sua documentação está
devidamente atualizada, inclusive o pagamento do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU).
Sua casa, além de residência é o local de trabalho, pois ali mantém uma oficina de conserto de
aparelhos eletroeletrônicos. Atualmente mora com outros dois irmãos.
Relata que o município sempre sofreu com alagamentos, e que quando foi morar em sua
atual casa sabia da ocorrência dos eventos. Mas gosta de enfatizar que anteriormente esses
eventos eram de pequena magnitude, diferentemente de como é atualmente.
N: Mas antigamente dava uns alagamentos e demorava meia hora, 1 hora e ia embora,
isso nos anos 70 e 80, isso eu sei por que sempre morei por aqui (DIÁRIO DE
CAMPO, 20/03/2016)
N: Mas não pode encher 2,20m, isso daí é um absurdo e fica de 4 a 5 horas. Eu estou
batendo nessa tecla, hoje ficamos de 4 a 5 horas debaixo de agua. Dois metros e vinte
de altura até chegar ao nível da rua demora 4 a 5 horas para escoar, isso é um absurdo.
Pode dar um alagamento quando dá cheia e tal, você pode ver, em todo lugar dá um
alagamento, mas não dá 2,20m e fica 4 a 5 horas debaixo da água, mas aqui acontece
isso (ENTREVISTA 31/03/2016, L138).
Não atua no NUPDEC, mas participa pontualmente de reuniões de bairro relacionadas
às obras de melhoria e de palestras informativas. Por residir há muito tempo na região, N
conhece e acompanha todas as obras existentes no entorno do seu bairro, tanto as que estão
ligadas diretamente com a problemática das inundações da Vila América, quanto outras que
não interferem diretamente no problema.
N: Eu estou esquecendo! Drenagem do esgoto vem de lá, da Vila, do shopping, do
entorno do shopping, vem pra cá a drenagem do esgoto, do esgoto, vem um tubo faz
aqui e aqui tem um pv que liga esse aqui que atravessa o esgoto por baixo da
canalização.
N: Isso daí é pra despoluir o rio Tietê, isso é outro projeto antigo, esse projeto é de 92,
que fizeram um projeto de saneamento e esgoto, quer dizer, no córrego, então aqui
desse meu lado aqui da pista Capitão Mario de Toledo aqui, passa um cano, acho que
de um 1,60m, não 1,60m é do outro lado, a 5m abaixo, do outro lado, sabe a Capitão
Mario ali, onde está o Polícia Científica, naquele gramado ali do lado, vai até a Vila
Pires lá para baixo, tem um cano de, um tubo de 1,60 de diâmetro, e desse lado tem
80cm, aqui tá a 3m de profundidade desse lado, do outro lado tá 5m, pra dar queda
logicamente, pra dar queda pra ir o esgoto para lá, e outro, há uns 2 anos atrás, fizeram
a intersecção, fizeram um tubo, fizeram uma galeria passando por baixo, assim dizem
que estava parado ali e tinha uns negócios (risos).
P: É, como o senhor sabe dessas informações todas, desses canos dessas obras?
N: Eu sei por que eu presenciei, eu estou aqui desde 89.
P: Ah tá, o senhor acompanha todas as obras?
65
N: Eu estou aqui desde 89, então a gente sabe que tem um cano lá, ai esse ano, esse
ano não o ano passado, teve uma intervenção aqui no meio da pista aqui da Afonso
Pena, fizeram umas casinhas e a empresa fez com um tipo de um tatuzinho, fizeram
alguma coisa assim, fizeram, assim dizem eles também, porque eu também não entrei
lá embaixo para ver (risos) e é um tubo que está ligado do outro lado, fizeram um
desse lado na galeria desse lado e outro do outro lado, e cruzaram, para que isso? Para
fazer o esgoto ligado do outro lado para depois fazer a ligação, não está funcionado
ainda, esse negócio do esgoto não está funcionando, estão fazendo a ligação, começou
em 92 isso aí (ENTREVISTA, 31/03/2016, L144–149).
Figura 5: Rua Nilo Peçanha com lama após inundação
Fonte: Acervo pessoal W, [s.d.]
Mesmo sofrendo com o problema da inundação pontual em períodos mais chuvosos, N
gosta de morar na região, pois é próximo do centro da cidade e como está bem localizada é de
fácil locomoção para outros municípios. Relata também que é um bairro tranquilo, com pouco
barulho e confusão, e atribui isso ao fato de os moradores da Vila América serem em sua
maioria pessoas mais velhas e que estão na região há bastante tempo. Também mantem um bom
relacionamento com os vizinhos.
N: aqui é um local ótimo para a gente ficar vivendo, está próximo de tudo. Só que nós
temos esse problema, quando chove muito enche de agua aqui. Então é, a vida da
gente aqui, é meio temerária quando chega a época de verão, mas fora isso aqui temos,
a vizinhança é ótima, são tudo pessoas que vivem há muito tempo aqui, gostam daqui
66
porque o local é de fácil acesso a tudo aqui, só que tem isso daí, o único problema é a
nossa enchente (ENTREVISTA 31/03/2016, L118).
Figura 6: Casa N inundada
Fonte: Livro Águas Revoltas: histórias de enchentes em Santo André (SANTOS, 2002, p. 98)
5.2 A CONVIVÊNCIA COM AS INUNDAÇÕES DO CÓRREGO GUARARÁ
Como essa pesquisa se insere nos estudos psicossociais sobre produção de sentidos na
vida cotidiana e na circulação de repertório em uma perspectiva histórica e social, discutiremos
a seguir temas que demonstram como a/o entrevistada/o compreende e convive com os riscos
de inundação no seu cotidiano.
Os moradores da Vila América vêm sofrendo com o problema das inundações há mais
de 20 anos durante o período de chuvas mais intensas, isso acontece porque o Córrego Guarará
que passa pelo bairro transborda e atinge parte das ruas da Vila América. O problema se agrava
porque o bairro fica na parte mais baixa do córrego, assim, quando a água lá chega, a correnteza
está muito forte e traz entulho e sujeira de regiões mais altas. Quando ocorre o transbordamento
a água chega a atingir até 2,20m de altura na casa de alguns moradores e 3m em algumas ruas
e o tempo de escoamento da água é de 4 a 5h.
67
W: Porque você fala que aqui dá 2m de água, esse lugar? É um centro, perto de um
shopping, só que esse pedacinho aqui é abandonado, são, acho que 88 famílias que
está nessa condição (ENTREVISTA 05/02/2016, L11).
W: Era 55 famílias, e depois aumentou, porque a água está subindo, sobe aqui nessa
rua que é subida e vai dar quase em 6 ou 8 casas para cima, e eu aqui, a pior parte é
aqui e aquela rua onde o japonês mora, que dá 2m, 2m e pouco (ENTREVISTA
05/02/2016, L13).
W: Contato com o barro a gente tem 5 a 6 vezes no ano quando dava enchente, porque
tinha ano que dava 5 a 6 enchentes no ano, já teve vezes de dar uma enchente e menos
de 24h dá uma enchente de novo (ENTREVISTA 05/02/2016, L18).
W: Agora, passar 5 a 6 enchentes em um ano não é brincadeira, teve um fevereiro que
deu 4. Quatro enchentes e fora os dias que você fica, toda vez que escurece e dá trovão,
a gente fica com medo (ENTREVISTA 05/02/2016, L164).
Figuras 7: Transbordamento do Córrego Guarará Figuras 8: Transbordamento do Córrego Guarará
Fonte: Semasa, 2014 Fonte: Semasa, 2014
Na rua da casa de N, Nilo Peçanha, localizada na parte mais baixa do bairro, a água já
atingiu de 2,5 a 3m de altura no muro que cerca sua residência e dentro da sua casa 1,90m,
deixando em suas paredes as marcas do ocorrido. Para N essa situação é absurdamente
inaceitável. O córrego divide a Avenida Capitão Mário de Toledo e quando ocorre o
transbordamento, a pista do lado esquerdo para quem vai em direção aos bairros é a mais afetada
por estar na parte mais baixa, consequentemente, a Vila América, que fica desse lado é bastante
afetada; tanto a pista quanto algumas ruas, especialmente a do interlocutor N, ficam
intransitáveis, a água chega a encobrir carros.
N comenta que frequentemente vê pessoas tentando passar inadvertidamente pela
inundação, sem perceber, muitas vezes, que por ali passa um córrego e que isso pode gerar uma
grande tragédia como se vê nos noticiários com frequência em períodos chuvosos.
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A força da água que transborda do córrego é tão grande que N desistiu de tentar contê-
la e optou por deixar que ela entre livremente em sua casa. Houve uma época em que tinha um
portão com comporta, mas em consequência de uma forte chuva foi arrancado e depois disso
ele resolveu não mais colocá-lo:
P: O senhor tem comporta aqui?
N: Não tem, já coloquei mas caiu
P: Então o senhor deixa a agua entrar livremente
N: É logico, 2,20m do muro cobrir você tem que ter uma armação estrutura de
concreto que nem uma piscina, tem que fazer uma muralha aí, não é qualquer muro
que vai segurar 2,20m de água com a pressão que tem. Então a área aí tem 10 a 11
metros de frente e 20 de fundo, como você vai ficar segurando, você explode o muro.
P: 10 metros de frente e 20 metros de fundo a propriedade do senhor tem?
N: É, então o portão que tinha ali, que tá meio caído, caiu e caiu um poste ali. Porque
que caiu? Porque o portão não é comporta, é uma cantoneira de 20 polegadas, para
quem sabe uma cantoneira de 20 polegadas é cantoneira de fazer comporta mesmo
(risos). Caiu o portão inteiro, saiu a pilastra, a mureta, caiu tudo, rancou embaixo. Por
que? Porque tem que ter estrutura e num terreno que é baixo, tem que ter uma
tremenda estrutura para segurar isso e não é qualquer coisa. Mas caiu e está sem o
portão, tá só com a folha só para tampar, para dizer que tem propriedade fechada, se
não estaria aberto. Diante disso a prefeitura nada faz, mas nem material de construção
traz aqui quando cai as coisas, então deixa aí, eu estou vendo isso aí, tô vendo se vou
aumentar as coisas, fazer uma laje, alguma coisa aí para fazer uma estruturação melhor
(ENTREVISTA 31/03/2016, L130–135).
Figura 9: Vila América inundada
Fonte: Semasa, 2014
69
Já W prefere resistir à força da água utilizando comportas para que sua casa não seja
atingida e seus pertences destruídos toda vez que ocorre uma inundação, mas reconhece que
não é a melhor coisa a ser feita em função da força da água.
W: Porque é uma loucura segurar a água como a gente faz, o certo seria deixar entrar.
Está acabando com a casa mais ainda segurar, porque a água fica em uma pressão,
você não tem noção, o chão, as paredes, nem sei explicar, parece que você sente a
pressão da casa. A minha casa fica toda cheia, daqui, aqui, ali, atrás. Às vezes, se as
casas dos vizinhos entram, e aí o que aconteceu: uma comporta caiu, e foi um efeito
sanfona por causa de uma comporta mal feita. Caiu a da vizinha porque não aguentou
e aí foi caindo de todo mundo, só que a minha, a hora que bateu na minha comporta,
ela aguentou. Só que bateu na da minha vizinha e ela não aguentou, então minha
parede lateral caiu, e foi a de muitas casas que caiu. Ninguém pode com a água, o peso
da água você não tem noção, a comporta entorta, embarriga, comporta faz barulho,
ela começa a ranger, vem para dentro, assim (gesto). A gente já não sabe mais o que
faz (ENTREVISTA 05/02/2016, L118).
Figuras 10: Rua Erato inundada (em frente à casa Figura 11: Rua Erato inundada vista pelo portão da
de W) casa de W.
Fonte: Acervo pessoal W, [s.d.] Fonte: Acervo pessoal W, [s.d.]
Conviver com o risco de inundações frequentes fez com que o cotidiano dos moradores
da Vila América fosse modificado. W teve que mudar sua rotina de trabalho, alternando o
horário de entrada e saída conforme previsões meteorológicas, assim como viagens, passeios e
cirurgias são agendadas ou remanejadas de acordo com períodos não chuvosos. N também deixa
de sair nessa época para não correr o risco de ficar ilhado fora de casa por causa da inundação.
W: Eu tinha tudo mas agora eu não viajo. Desde 1997 eu não saio em final de ano, de
dezembro a abril ninguém sai daqui. Se você está no banco e dá um trovão, você larga
conta para pagar e volta para casa, está no mercado volta também. A vida da gente
muda, eu trabalho agora das 17h às 22h, mas na época de enchente, eu trabalho das
10h às 14h, eu mudo minha vida, todo mundo tem que se adaptar com isso. A gente
não sai, não arruma emprego longe, ninguém pode trabalhar, porque o que a gente vai
70
fazer, vai perder tudo todo ano? Vai ficar sem uma cama para dormir? Porque não é
baixo, minha casa que acho que tem 1m acima do nível da rua, na minha casa, a água
dá aqui no estômago se não tiver comporta. As outras casas aqui dão na testa, então
não é uma aguinha pouca (ENTREVISTA 05/02/2016, L130).
W: Eu tinha que fazer cirurgia e não fiz, o meu marido tinha duas hérnias e ainda teve
que esperar porque os exames saíram perto da época de enchente, então ele pediu para
esperar o outro ano para operar, porque como ele ia ficar em recuperação dentro de
casa dando enchente? E se a gente precisa travar comporta e erguer tudo?
Eu, olha o peso dessa mesa. Eu ergo até sem ver, eu carrego a mesa para um canto
para colocar as coisas em cima. Minha cama é muito pesada, virou em cima do meu
braço, por isso que eu estou com cisto, tenho que tratar, fazer cirurgia. Fazer cirurgia
como? Imagina uma criança de 10 anos tirar 9 vértebras da coluna, coitadinha. Ela
tinha 10 anos, eu estava de dieta, eu erguia a cama. Ela pôs o criado, eu joguei outra
coisa em cima e a cama virou, e, para não cair em cima de mim, ela segurou. Porque
ela sabia que eu estava de dieta, com cirurgia recente e o pequenininho aqui dentro,
dentro do carrinho. Aí depois que a gente ergueu tudo, ela levou o menino para cima,
o menino de três meses (ENTREVISTA 05/02/2016, L170).
N: Às vezes chove aqui, não enche d’água mas se choveu lá em cima pode crê que
vem e vem mesmo. Choveu 10 a 20 minutos de chuva forte lá em cima e aqui continua
chovendo e vai encher, aí quando para a chuva lá depois de meia hora, a gente aqui
está debaixo d’água ainda, esse que é o problema. O pessoal construiu aí e melhorou?
Melhorou, mas não adianta construir, aumentar a altura da casa ou senão altura do
muro, você levanta a casa e sobe uma pilastra e tal, mas e depois quando enche? Fica
debaixo da água na rua, como você vai ficar saindo, não é? Tem isso daí. A pessoa se
livrou de ter um certo prejuízo, mas ela tá se privando de sair, apesar que não acho
que deve sair também (risos), mas às vezes tem uma emergência, alguma coisa que
aconteça dentro de casa, que pode acontecer, às vezes o impossível acontece justo
naquela hora e tem uma emergência, vai fazer o que? Não pode sair, por isso não saio
quando começa a chover, pois posso correr o risco de não conseguir voltar para casa
(ENTREVISTA, 31/03/2016, L183).
Quando o córrego transborda inundando ruas e casas, muitos são os problemas
enfrentados e os atores envolvidos, o que evidencia a complexidade da convivência com esse
desastre. W conta como inesperadamente sua família e vizinhos foram alertados pelos latidos
incessantes de um cão de que a água estava subindo:
W: Até os bichinhos que a gente tinha em casa tinha medo. O da minha vizinha aqui
quando começa a chover ele chora, ele fica apavorado quando ela não está em casa,
ele tem medo porque ele sabe que a dona dele tem medo de chuva. Uma vez o cachorro
da vizinha avisou a gente que estava dando enchente. Onze e pouco o cachorro
começou a berrar, berrar, e berrar, e ela falou: mas porque esse cachorro está
chorando? Quando ela olhou, estava, a água estava voltando. Porque a gente achou
que onze e pouco não era hora de dar enchente, sempre dá mais tarde, mas aquele dia
estava um dia chuvoso!
P: Onze e pouco da manhã?
W: Sim. Tirei meu menino pequeno da cama onze e pouco da manhã, e ele foi comer
dez e pouco da noite, criança pequena. E se o cachorro não vê? Porque tem que tirar
carro, tirar tudo, eu não deixo carro na garagem. Enquanto você está deitada na sua
cama dormindo enquanto está chovendo forte, a gente está na rua, está todo mundo
nas ruas, ninguém dorme, tem pavor (ENTREVISTA 05/02/2016, L124-126).
71
A interlocutora também revela que as consequências do evento são sentidas de diversas
formas e por diferentes atores:
P: Você havia comentado antes que o cachorro da vizinha da frente morreu.
W: Não, ele enfiou a barriga na lança na enchente de 2011. Ela pôs ele em cima da
casa térrea, que está até vazia, ela pôs os dois cachorros em cima, ele apavorou, ficou
assustado e pulou dentro da água. Aí ele foi tentar passar porque viu que estava muito
fundo, tentou passar pela grade do portão e enfiou a lança na barriga, não sei como!
Nessa hora caiu o meu muro aqui, eu corri para dentro e fiquei com aquela imagem
do cachorro berrando, achei que o bichinho tinha morrido. Aí depois contaram que
ela chamou o bombeiro, mas ele mesmo saiu da lança, ela levou ele no veterinário e
ele viveu ainda, conseguiu salvar o bichinho. Mas até os bichinhos sofrem, que nem
mereciam, porque não sabem nem o que está acontecendo (ENTREVISTA
05/02/2016, L127-128).
Figura 12: Portão onde o cachorro se machucou Figura 13: Rua Erato inundada no dia em que o cachorro
se machucou
Fonte: Sandra Luzia Assis da Silva, 2015 Fonte: Acervo pessoal W, [s.d.]
O fato é que, o passar dos meses, a aproximação do período chuvoso do verão, fazem
com que os moradores da Vila América se sintam apreensivos e angustiados com a eminência
do transbordamento do córrego e a consequente inundação das ruas e das suas casas.
W: Começa em novembro e vai dezembro, janeiro, fevereiro e março, são quatro
meses e meio que você fica com medo e esses quatro meses são piores que o resto do
ano todo, porque parece que é mais tempo que o resto do ano. Já está começando, a
gente já está com medo, é assim. A gente já está em outubro bem dizer e no fim de
novembro já tem enchente aqui. Então a gente já está com medo, já começa a ficar
com medo de saber que a vida da gente vai mudar. Eu odeio chuva, eu sei que todo
mundo gosta de chuva por causa de falta de água, mas eu odeio, não gosto de trovão
(DIÁRIO DE CAMPO, 29/09/2015).
72
Figuras 14: Rua Erato (em frente à casa de W durante chuva)
Fonte: Acervo pessoal W, [s.d.]
Portanto, seja para N seja para W, conviver com o risco do transbordamento do córrego
Guarará faz com que se sintam abandonados, esquecidos e impotentes, isto é, com sentimentos
de medo, insegurança, desânimo.
5.2.1 Afinal, que córrego é esse?
Muitos rios e córregos percorrem o município de Santo André: o Guarará, o Oratório, o
Apiaí, o Meninos, o Pequeno, o Grande, o Jundiaí, o Cumprido, o Beraldo, o Carapetuba, o
Cemitério e o Tamanduateí. Dentre esses, o Tamanduateí é o maior rio que corta a região do
Grande ABC e quando ainda não era canalizado e retificado, durante o período de chuvas,
espalhava suas águas fazendo e refazendo grandes lagoas, formando uma grande bacia
hidrográfica para onde convergiam os diversos córregos (SANTOS, 2002).
Pela margem direita, o Jundiaí e o Cumprido são os principais. Pela margem esquerda,
os maiores são o Beraldo, o Carapetuba, o Cemitério, o Apiaí e o Guarará. Também, o Ribeirão
73
dos Meninos, na fronteira com a cidade de São Bernardo do Campo e o Oratório, na fronteira
com a cidade de São Paulo.
Dos diversos córregos mencionados, afinal, que córrego é esse que causa tantos
problemas da vida dos moradores da Vila América? Embora todos os outros tenham uma
relação direta com o problema das enchentes na cidade de Santo André, vale contar um pouco
da história do Córrego Guarará, explicitando como e porque ele influenciou e influência a
problemática das inundações do bairro.
Em termos de relevo, a sub-bacia do córrego Guarará é uma extensa planície que se
desenvolve no sentido sul-norte e que começa praticamente no limite norte do Parque Natural
do Pedroso e continua até a foz no rio Tamanduateí. O córrego Guarará é alimentado por uma
série de tributários, tanto na sua margem direita quanto na sua margem esquerda. Estes corpos
tributários nascem aos pés de morros que formam a divisa com os municípios de São Bernardo
do Campo (no lado Oeste), e Mauá (no lado Leste). A morfologia dos morros delimita uma
estrutura em “espinha de peixe”, com o Guarará ao centro e seus tributários a leste e oeste. Esta
estrutura forma um conjunto de espaços com duas características básicas: áreas de alta
declividade na fronteira com São Bernardo do Campo e Mauá, e áreas de baixa declividade nos
vales dos córregos (COMARU; TANAKA, CRISTALDO, [s.d.]).
Antigamente, nas estações chuvosas, a terra absorvia boa parte das águas das chuvas,
que, dessa forma, chegavam mais lentamente e em menor volume ao córrego Guarará e ao rio
Tamanduateí. Isso era possível porque a região ainda não estava impermeabilizada com
construções e ruas asfaltadas, assim, o excesso de curso da água era despejado nas várzeas.
Em relação à geografia natural da cidade, eram as curvas dos rios e córregos, seus
meandros, que faziam com que a água fluísse vagarosamente de um ponto a outro. No entanto,
com a retificação ou canalização do rio, atualmente, por não encontrar obstáculos no percurso,
a água corre rapidamente do ponto mais alto para o mais baixo.
Até a década de 1940, Santo André recebia água limpa do córrego Guarará que era
captadas pela Estação de Tratamento de Águas, na altura da Vila Vitória, e mais à jusante, na
Vila América, formando um grande lago que foi utilizado para lazer por moradores da época e
por muitos anos utilizado pelo Clube Aramaçan para a prática de natação e esportes náuticos
(SANTOS, 2002).
Mas em meados de 1960, à medida que a expansão urbana crescia e despejava esgoto
no córrego, o clube primeiramente proibiu a natação no lago e, consequentemente, promoveu o
seu esvaziamento depois de uma grande enchente que causou muitos prejuízos na região. Em
1961 a Prefeitura pediu na justiça a desocupação da área por parte do clube.
74
Com o aumento da urbanização na região, as enchentes começaram a atingir a cidade e
o represamento das águas do Guarará passou a ser visto como causa de inundações em alguns
bairros, principalmente na Vila América, pois a água da chuva demorava a escoar, causando o
transbordamento do córrego.
Depois de uma grande enchente em 1961 que causou muitos prejuízos na região, a
Prefeitura pediu na justiça a intimação do clube para desocupar a área, e o clube teria que se
desfazer das dependências esportivas próximas da represa, pois havia um projeto para o lago
ser esvaziado. Mas em meio a uma crise política, isso não ocorreu, e o clube continuou a utilizar
o lago.
Só que, com passar do tempo e com o aumento da população na região, os bairros
situados rio acima se adensavam e despejavam o esgoto no córrego, e a poluição tornou-se
inevitável. Com isso, o clube proibiu a natação no lago, e, futuramente, com o mau cheiro que
vinha das águas, obrigou o esvaziamento dele. (SANTOS, 2002).
O morador N se recorda de como era bonito quando parte do córrego ainda não estava
fechado e impermeabilizado. Recorda-se também, que mesmo as casas estando em área de
várzea, não tinham maiores problemas com o transbordamento do córrego, pois a água escoava
rapidamente e não dava tempo para acontecer a inundação.
Nas palavras do morador N:
N: Antigamente não estava fechado, estava todo aberto, então fazia um
serpenteamento no córrego, ele entrava, olha só, ele entrava uma parte no Aramaçan,
fazia o lago e voltava (ENTREVISTA 31/03/2016, L54).
N: Isso aí fazia lá e era bonito, era bonito (risos) então serpenteava aqui, serpenteava
aqui, do outro lado, no estádio Bruno Daniel também, fazia uns negócios. Quando
fizeram o estádio Bruno Daniel tinha as lagoas lá, então aterraram lá também, aqui
também. Na Nicolau Manoel Barros tinha uns, não sei se você conhece taboa, aquelas
plantas aquáticas que subiam do brejo, estava aí e era um brejo, mas o que fizeram?
Aterraram tudo, estreitaram e deixaram um negócio reto, o córrego. Mas a velocidade
que vem a água da lá de cima, da Vila Luzita até aqui, quando chega aqui, tem uma
parede, dá uma trombada, o que acontece? Sobe, transborda e chega aqui na gente
(ENTREVISTA 31/03/2016, L58).
Como mencionado anteriormente, a situação se agrava com o remanejamento e
retificação do leito do Córrego Guarará e o que era seu caminho natural cedeu espaço à
construção da Avenida Capitão Mário de Toledo Camargo e grande parte de sua extensão foi
canalizada, alguns trechos totalmente fechados, em outros a céu aberto. Nas palavras da
moradora W: “Construíram a avenida mais alta, porque ela não era mais alta. Aí quando chove
forte, é intempérie da natureza. Mas todos falam que Deus que é culpado, não é a mão do
75
homem que construiu o rio, que ergueu a pista e canalizou o rio, e deu documentação para a
gente construir aqui” (ENTREVISTA, 05/02/2016, L21).
Figura 15: Construção da galeria na Avenida Pedro Américo, Vila América, 1964
Fonte: Internet, 2016
Para N as diversas construções de prédios nos bairros do entorno do Córrego Guarará
também contribuíram para o agravamento das inundações, contudo, essas construções ficam
justamente na parte desses bairros em que o rio está fechado, assim, a água corre e transborda
no lugar mais baixo, aberto e canalizado, a Vila América. Nas palavras dele:
N: Vila Luzita, Parque João Ramalho, Vila João Ramalho, lá em cima cai tudo aqui,
então o que que está acontecendo? Está impermeabilizando mais ainda por causa dos
prédios.
N: Eu não sou contra os prédios, eu tô querendo, tem que ser feito um projeto de
segurar a água lá também, mas não tem nenhum projeto, aliás, projeto tem, mas de
boas intenções, mas ninguém faz. Então o que que fizeram? Ah, vamos fazer o córrego
correr mais. Então colocaram o córrego para ficar o mais liso possível, colocaram as
pedras, fizeram a concretagem lá. Não sei, mas se água corre com mais velocidade e
vai dar mais tempo pra escoar, quando a água chega aqui e bate aqui no paredão, aqui
e o rio lá já encheu, então dá o retorno, realmente dá o refluxo. Mas se tiver uma
galeria maior dá menos refluxo ou senão deixar aberto, ai ele vai fluir por toda a praça
76
aqui embaixo, então vai diminuir a altura. Mas eles não aceitam fazer isso, porque já
fizeram um negócio de canalização (ENTREVISTA, 31/03/2016, L. 88-89).
N sente que com isso somente a Vila América fica prejudicada, ele acredita que o
problema minimizaria se o córrego como um todo estivesse aberto, não que isso evitasse o
transbordamento e a inundação, mas que a água se dividiria nos diversos bairros e a quantidade
de água que os atinge seria menor.
N: Ou senão, olha só, não quero prejudicar ninguém, mas então canaliza tudo, não
fica só a canalização na altura da 24 de Maio na pista para a gente aqui, vai até lá em
cima, aí sabe o que vai acontecer? Vai diminuir toda a água para todo mundo, vai
molhar todo mundo, porque?
P: Vai ter uma quantidade menor de agua, só que para todo mundo?
N: Porque vai espalhar, vai diminuir porque não vai dar 2m e meio aqui, vai dar tempo
de a água escoar, quer dizer, ele vai alagar, se tá canalizado tudo, vai sair água para
algum lugar ou vai vir por cima, mas vai espalhar por toda região (ENTREVISTA,
31/03/2016, L90 - 92).
Figuras 16: Córrego Guarará canalizado Figura 17: Córrego Guarará canalizado
Fonte: Selected for Google Maps and Google Earth, Fonte: Selected for Google Maps and Google Earth,
2015 2015
Então, afinal, que córrego é esse?
É o Córrego Guarará, cujas águas límpidas e serpenteantes um dia serviram de insumo
a uma olaria, formaram um grande lago com peixes que foi utilizado para a prática de natação
e esportes náuticos, e serviram também de importante espaço de lazer para que muitas famílias
pudessem passear no gramado à sua margem ou andar de barco em seu leito.
Atualmente, contudo, o Córrego Guarará, com suas curvas modificadas, suas águas não
mais límpidas, porém sujas e poluídas, é culpabilizado pela tragédia da inundação, que traz
transtorno e sofrimento aos moradores da Vila América.
77
5.2.2 Por que ficar? A casa e a vizinhança
Em relação a moradias em área de risco, é comum ouvirmos o questionamento sobre o
porquê as pessoas permanecem em locais sujeito a riscos e no caso da Vila América, o
questionamento é ainda maior por se tratar de uma região considerada de classe média.
Em aproximação com representantes de Poder Público, buscando informações sobre a
problemática da região, o aspecto mais enfatizado foi a insistência dos moradores da Vila
América em permanecer no local. Segue relato de diário de campo de conversa telefônica da
pesquisadora com um funcionário (F) do Semasa:
P: Estou precisando de documentos oficiais que falem das inundações da Vila
América, é possível? Solicitei à representante do Semasa.
F: Sim. Mas já vou te adiantar, os moradores da Vila América não são coitadinhos
não, eles sabem que estão em área de várzea e que lá enche mesmo. Eles também têm
condições econômicas de sair de lá, mas não saem (DIÁRIO DE CAMPO,
11/11/2014).
As entrevistas com os moradores nos possibilitou compreender que a decisão de ficar
ou sair relaciona-se com diversos sentidos atribuídos a esses riscos, sentidos esses que os fazem
a optar pela permanência na Vila América.
Para W, a realização do sonho da casa própria é algo que pesa muito nessa decisão.
Tinha o sonho de comprar sua própria casa, que era dificultado por não ter um emprego com
registro em carteira. A alternativa para a realização do sonho foi a possibilidade de compra por
contrato de gaveta oferecida pelo antigo proprietário da casa. Era a casa que procurava: grande,
bonita e bem localizada:
W: Aqui é grande, são dois quartos, sala, cozinha e um banheiro, só que são muito
grandes. Acho que tem 200 e poucos m² o terreno, sendo 100 e pouco m² de
construção. Tem a parte da gráfica do meu marido lá no fundo, que é lá que a gente
tem medo de pegar água, lá não pode, os computadores mesmo, ficam lá em cima. E
aquela salona lá está abandonada, não posso ter nada. Isso aqui (móveis da cozinha),
foi presente, o pessoal foi me dando porque fui perdendo tudo, minha, tudo o que eu
tinha de 21 anos de casada foi embora (ENTREVISTA 05/02/2016, L132).
W: E minha família gostava, minha casa era a que o pessoal mais gostava de vir,
mudou minha vida em tudo. O resto da minha família mora em apartamento ou
casinha pequena, e eu tinha uma casa enorme, em casa era sempre a reunião de família,
era aqui (ENTREVISTA 05/02/2016, L174).
Desde que se mudou para a Vila América, W teve que aprender a conviver com as
consequências das inundações, ela comenta o quanto isso foi difícil, pois é uma pessoa que
sempre gostou de tudo muito organizado em sua casa, mas que conviver com o risco de
inundação fez com que se organizasse de modo diferentemente no cotidiano:
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W: Quarenta dias depois que eu comprei minha casa aqui, toda feliz que saí dos três
cômodos da casa da minha sogra embaixo e vim para essa “casona”, que eu descobri
que dava enchente. Sorte que tinha gente em casa, o meu irmão que ajudou, porque
eu não sabia o que fazer, eu só sentei e chorei. Eu era aquela pessoa que minha casa
era um brinco, muito enjoada com a casa. E hoje vivo desse jeito! Todo dia é assim,
minha casa cheirando bolor. Vivo com roupa na mala porque toda vez que ameaça
enchente eu coloco tudo dentro do carro, com medo de ficar sem roupa de novo, e
levo o carro para as ruas de cima que não dão enchente. Eu tinha um monte de coisa,
louça e um monte de coisa, mas agora tenho o que está lá. Eu uso a metade do que eu
tenho, nem sei o que eu tenho. Roupa uso sempre a mesma porque o resto está sempre
em mala. Às vezes eu tiro e lavo o que está amarelando, e é desse jeito
(ENTREVISTA, 05/02/2016, L122).
Suas louças, alimentos e documentos ficam o tempo todo encaixotados em cima de
armários e guarda-roupas para que não sejam atingidos pela água, as roupas também ficam, no
entanto são colocadas dentro do carro da família no momento da chuva e o carro é levado para
ruas altas, que não atingidas pelo evento. Quanto aos móveis e eletroeletrônicos, são colocados
e erguidos estrategicamente pela família que opta por não se ausentar da casa durante o evento
para que possam cuidar de tudo.
W: [...] quando chove tenho que erguer geladeira, cama, pois entra água de esgoto na
minha casa, de tudo que é feito em um banheiro e em uma cozinha. Isso é o que entra
na minha casa, eu morria de nojo disso, tenho nojo disso ainda, tanto que eu e joguei
tudo fora, tudo o que tem aqui eu comprei de novo. Joguei panela, joguei roupa, fiquei
com a roupa do corpo porque pegou tudo, tudo, tudo o que você imagina. Imagina,
veio água quase no meu estômago aqui dentro, da minha vizinha veio na testa, já teve
casa de os bombeiros virem aqui e tirar a pessoa pelo teto, bebê recém-nascido, tirar
assim. Olha, mesmo assim ninguém faz nada (ENTREVISTA, 05/02/2016, L79).
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Figuras 18: Cozinha de W inundada
Fonte: Acervo W, [s.d.]
Para W, o risco de perder sua casa e todos os bens materiais que conquistou em sua vida
é um problema maior que os riscos das inundações frequentes com as quais tem convivido,
desse modo, mesmo contra a orientação da Defesa Civil, ela opta por não deixar sua casa, na
tentativa de conseguir salvar esses bens:
W: Só que eu não saio também, deixar toda vez a minha casa sozinha. Se eu estou
aqui dentro eu vou erguendo, mas esse dia não teve jeito (2011), tive azar que caiu,
perdeu tudo. Tinha bastante coisa que já estava erguido, você não pode deixar sapato
no chão, em dia de chuva tudo fica erguido, nada fica no chão (ENTREVISTA,
05/02/2016, L172).
W: Mas não tem nada mesmo, não tem nem vontade de ter. Imagina você morar, não
ter uma casa arrumada, panela dentro de caixa, porque na hora que tem que erguer,
tudo tem que erguer. Agora, eu ergo bem alto, antes eu erguia assim (gesto), agora
tem que erguer bem alto para não perder, pelo menos para fazer a comida porque eu
já fiquei sem panela para comer. Tive comida porque eu levanto bem alto, porque a
parte debaixo do armário não tem nada, porque eu morro de nojo do armário. Meu
guarda-roupa eu tenho nojo dele, se eu fechar as portas ele fede, esse já é outro guarda-
roupa, já não sei quantos móveis eu perdi aqui dentro, porque móveis não foram feitos
para pegar água. Quem que aguentaria erguer um guarda-roupa? Você imagina ter que
erguer um guarda-roupa com maleiro? Toda vez que dá enchente eu tenho que lavar
o guarda-roupa na parte de baixo. Tinha vez que eu via que a enchente passou e aí eu
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pegava o guarda-roupa, tirava toda a roupa e colocava para fora, isso uma vez por ano.
Eu até brinco, não varre embaixo do guarda-roupa não, não vai arrastar móveis não,
porque quando a enchente vier a gente é obrigada a arrastar mesmo e a limpar
(ENTREVISTA, 05/02/2016, L169).
Figuras 19: Quarto de W inundado
Fonte: Acervo de W, [s.d.]
Para W, os bens materiais que tanto luta para preservar também fazem parte do sonho
da casa própria e de uma moradia digna. No entanto, relata que além desses prejuízos, existem
os sociais, emocionais, afetivos, psicológicos e biológicos que trouxeram consequências
irreparáveis para a vida da sua família e amigos.
W: Você imagina destruindo sua casa assim, tudo que você tem está dentro da sua
casa, eu perdi minhas lembranças que ninguém vai devolver, ninguém vai devolver
minha vida passada, minhas fotos, fita de formatura do pré da minha filha, foto. Minha
filha estava para casar, quase o casamento da minha filha não saiu, eu vendi meu carro
para poder pagar a festa da minha filha, porque ela tinha que ter a festa dela. Mesmo
com o que aconteceu eu disse, não vou deixar afetar a vida dela (ENTREVISTA,
05/02/2016, L73).
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W: A gente já desanimou, já estou desanimada já, cansou de lutar, a gente está cada
um lutando com sua vida para ver se a gente consegue sair daqui. Mas comprar uma
casa da noite para o dia não é fácil, ainda mais com a situação que está agora
(ENTREVISTA, 05/02/2016, L88).
W relata que também já ouviu questionamentos do Poder Público quanto aos motivos
pelos quais não saem do bairro. Para ela, trabalhar e lutar para ter uma condição financeira que
facilite a conquista de seus sonhos, não significa que possa deixar para trás tudo o que
conquistou e recomeçar do zero, além de fatores econômicos existem também os emocionais,
o apego ao lugar à memória a ele vinculada. Em suas palavras:
W: O antigo superintendente da Defesa Civil, o coronel falou: vocês têm que sair de
lá. Mas eu vou comprar uma casa como? Um carro que a gente perde a gente compra
fácil.
P: Mas ele falou para vocês saírem daqui e fazerem o que com a casa?
W: Ele falou em off, ele falou: uma vez eu morava em um lugar que dava enchente,
mas quando eu cresci eu sai de lá. Eu falei para ele: mas eu não tenho dinheiro para
comprar outra casa, tudo o que eu tinha eu dei lá e ainda estou brigando na justiça
com banco ainda (ENTREVISTA, 05/02/2016, L89 – L91).
W: E além do prejuízo, eu falo que se algum dia eu sair daqui, nunca mais vou ser a
mesma pessoa. Onde eu vou eu já sei que dá enchente, eu falo aqui dá enchente, e eu
nunca tinha visto isto, só por televisão (ENTREVISTA, 05/02/2016, L121).
W: É isso que eles não veem, para eles da Defesa Civil é fácil, é fácil. Quando eles
deitam na cama, falei para eles várias vezes, na hora que você deita, você vai lá, você
entra na água de esgoto, água de merda, mas quando você vai para sua casa, sua casa
está limpa, sua cama está cheirosinha. Então para você é fácil, você sai de lá e esquece,
não é como a gente que está vivendo, entendeu? Eles falam: eu sei o que você está
sentindo! Mas não sabe, você não viveu isso, você não está aqui, você vai embora
para a sua casa, é outra coisa (ENTREVISTA, 05/02/2016, L93).
Percebemos que para W o apego à casa é muito forte. Já para N isso não é evidenciado,
a decisão de ficar na casa está relacionada com diversos sentidos atribuídos a aspectos sociais
do bairro, como o relacionamento com a vizinhança.
N possui um bom relacionamento com vizinhança, diz que é um ótimo bairro para se
morar no que tange ao relacionamento social. Em conversa, em uma de nossas visitas, ele
relatou que o bairro é tradicionalmente de pessoas mais velhas e que isso favorece o ambiente
tranquilo, não que ele tenha algo contra os jovens, mas que em bairros onde a maioria da
população é jovem, existe muito barulho em função de eventos sociais específicos dos tempos
modernos. Segundo o IBGE de 2010, com estimativa para 2013, dos 4518 habitantes da Vila
América, 777 tem entre 0 e 14 anos de idade; 1104 de 15 a 29 anos de idade e 2637 acima de
30 anos de idade, o que confirma as informações de N (SANTO ANDRÉ, 2015).
Em entrevista ele relata o seguinte:
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N: A vizinhança é boa, o relacionamento é bom, todo mundo olha a vizinhança. Não
tenho queixa nenhuma, tanto é que nem os outros devem ter queixas da gente, nós
temos nossas virtudes e os nossos defeitos, nós podemos tanto achar ruim como achar
bom. Isso aí, nós somos seres humanos, somos emotivos, tem uma série de coisas,
isso daí tem que levar tudo em consideração. Às vezes a pessoa pode olhar feio, pode
olhar bem humorado, às vezes o cara não levantou bem (risos). Tudo isso daí é normal,
o relacionamento da gente é normal; não tem problema nenhum, não vai mudar isso
daí o relacionamento das pessoas daqui, simplesmente que chega numa época de cheia
que todo mundo fica nervoso, todo mundo estressado. Dá uma chuva e todo mundo
sai fora ai e fala: ô alagou! (ENTREVISTA, 31/03/2016, L182).
Em relação à vizinhança, W aponta ressalta a ajuda mútua no momento do evento, que
contribui para a diminuição dos prejuízos: “E a gente só não perde mais, porque a gente, nós,
nós temos um esquema já, e a gente tem que ajudar vizinho novo quando muda, porque a gente
avisa e a pessoa ri da cara da gente né, acha ruim, mas quando acontece, tem que socorrer
vizinho ainda” (ENTREVISTA, 05/02/2016, L135).
No entanto, aponta para algo delicado do cotidiano de quem mora em lugar com risco
de inundação e que diz respeito ao relacionamento entre velhos e novos moradores, ou seja, até
que ponto deve-se revelar a novos moradores a problemática da região. Conta que já chegou a
falar para uma vizinha que acabara de se mudar que a casa dela enchia de água e ela não
acreditou, constatando a dimensão do problema somente durante o evento:
W: O pessoal xinga, fica bravo com a gente, se a gente fala que enche, fica bravo,
depois se dá enchente e não fala fica olhando para gente de cara feia.
P: Você fala, as pessoas que ficam bravas, são as que mudam para cá?
W: É. A mulher que eu falei: olha, aqui dá enchente, a água passa pela sua janela; é
aluguel, se eu fosse você não morava aí. A mulher disse: mas o aluguel está barato.
Depois que encheu, ela disse chorando para mim: eu falei, essa mulher é louca, acha
que aqui dá enchente dessa altura? Ela ficou com a roupa do corpo, a bolsa e o
cachorro em cima do negócio. Em outra casa aí, perdeu carro, perdeu tudo, tudo. E
fomos nós quem ajudamos ela a limpar o pouco que sobrou e a pegar as coisinhas dela
e ir embora. Porque a gente vai falar alguma coisa que não é? Eu fico com dó, eu não
quero que a pessoa passe pelo que eu passei, eu só não vou embora porque eu não
tenho para onde ir. Se eu morasse de aluguel você acha que eu ia ficar aqui? Não ia,
de jeito nenhum. Aí ela perdeu tudo [...] (ENTREVISTA, 05/02/2016, L161-L163)
Outro aspecto delicado para W é o quanto deve comunicar aos interessados na compra
ou aluguel de uma casa, que o local é uma área de risco de inundação. Diante do impasse, W
decidiu expor o que vivencia cotidianamente, pois quando comprou sua casa e viu tudo se
destruindo com a inundação, se perguntou por que ninguém que morava no bairro o avisara
daquilo que ocorria ali, pois caso isso tivesse acontecido, tanto a compra da casa, quanto a
permanência no local poderiam ter sido diferentes. Por esse motivo, quando alguém que
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pretende se mudar para o bairro vai pedir informações a respeito da região, ela não esconde o
que a atormenta há anos na Vila América:
W: [...] a vizinha da frente está vendendo a casa. O meu marido, o cara bateu aqui,
perguntou da enchente. O meu marido falou, e ela veio brigar com ele depois, você
falou que minha casa dá enchente! Ele falou: ué, ele bateu na minha porta e perguntou,
e eu não vou falar? Depois ele muda aí, e quem vai ficar vizinho dele sou eu. Eu falo,
falo e mostro ainda: vai na internet e coloca a rua aqui para você ver que não estou
falando mentira. Se você colocar, a minha casa está em um vídeo que o vizinho
gravou, ele colocou o vídeo que fez com o celular na hora, mas é minha casa. E aquela
enchente não foi a pior, não foi uma das mais altas, a mais alta foi a de 2011, e o
pessoal daqui falou que a de 1996, eu comprei a casa em 1997, em 1996 tinha dado
uma bem altona (ENTREVISTA, 05/02/2016, L161-L163).
Ainda sobre o relacionamento entre vizinhos da Vila América, W revela que o fato de
ter sido liderança de NUPDEC por 7 anos prejudicou sua relação com alguns moradores, pois
passou a não ser mais reconhecida como alguém do grupo deles. Durante o período em que
trabalhou como voluntária conseguiu muitas melhorias para o bairro, mas o fato de não ter
ocorrido uma solução definitiva para o problema fez com que os moradores desacreditassem
do poder público e dela própria, para os vizinhos, ela representava o mesmo grupo, achavam
que ela agia em causa própria. Em suas palavras:
W: Os próprios vizinhos daqui acham que eu e minha vizinha, porque a gente
trabalhou muito porque a gente era interesseira. Se reformássemos a casa era porque
a Prefeitura deu ou algum político. Mas não é, ninguém nunca deu nada para gente;
ao contrário, a gente tirava dinheiro do nosso bolso para ir trabalhar voluntário. Para
você ver, lá a gente não era bem vista, vamos dizer assim, por trabalhar e morar em
local de enchente e brigar com eles. Aqui a gente é puxa-saco, e por Deus, a gente só
tentava fazer as coisas para o bem de todos. Porque se eu fizer alguma coisa para mim
os meus vizinhos também vão usufruir disso. Então lá a gente era as cricris que
brigava, e aqui as puxa-saco. Tudo o que a gente fazia aqui achavam que a gente
ganhou da Prefeitura ou de um político, ganhou areia, ganhou bloco, e não é assim
(ENTREVISTA, 05/02/2016, L161-L112).
Outro aspecto que faz com que N opte por ficar no bairro é o fato de ser uma região bem
localizada, que proporciona acessibilidade e infraestrutura necessária à vida cotidiana “Aqui é
uma área nobre, fica próxima ao centro, está bem localizada. Temos bons comércios ao entorno,
fácil acesso ao transporte público além da construção do shopping Atrium que valorizará ainda
mais a região” (DIÁRIO DE CAMPO – 20/03/2016).
São múltiplas as dimensões que perpassam os riscos de inundações para os moradores
da Vila América e a decisão de lá ficar está relacionada aos sentidos atribuídos a cada dimensão,
como: a realização do sonho da casa própria; a localização, infraestrutura e acessibilidade da
região; as relações de vizinhança. No entanto, em muitos momentos esses riscos passam a ser
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percebidos no cotidiano com naturalização, gerando nos moradores sentimentos de
conformismo e aceitação.
W: É, porque a gente já está acostumado a 5 ou 6 enchentes a água entrar um palmo
na minha casa, eu já estou conformada. Para mim isso é melhor, antes isso do que cair
tudo. No começo eu chorei porque entrou um palmo de água na minha casa. A
primeira vez que deu queria ir embora, fiquei 40 dias longe, mas depois minha mãe
falou: o que você vai fazer? Vai voltar para minha casa? Eu falei não, vou voltar para
minha casa então. Fiquei 40 dias, abandonei minha casa, eu não queria voltar porque
o susto foi demais, eu nunca tinha visto aquilo. Só que com o tempo você vai ficando
calejada, hoje entrar um palmo eu já estou até contente. Para você ver a situação que
a gente vai vivendo; um palmo está bom.[...] (ENTREVISTA, 05/02/2016, L79).
N: Mesmo se eles fizerem o dreno vai resolver o problema das enchentes? Não vai,
vai diminuir e vai ficar, na minha opinião, a nível aceitável e o que é nível aceitável?
É um alagamento de meio metro e com rápida escoação. Escoando a água com tempo
menor, vai ter menos sujeira, menos uma série de coisas, menos prejuízo. A gente
sabe que aqui é um lugar baixo, todo lugar de alagamento é alagamento, mas não um
absurdo como o que acontece nesse bairro aqui de dar 2m, 2m e meio que cobre meu
muro [...] (ENTREVISTA, 31/03/2016, L69)
O fato de se conformarem com a iminência do risco de inundação, faz com que se sintam
aliviados ao se deparar com eventos de menor magnitude, por já terem vivido outros de maiores
proporções, assim como, que o fato de não ter ocorrido vítimas fatais, a ameaça disso, mesmo
que real e cotidiana, faz com que seja considerada distante.
W: Parece que na hora que começa a chover já vem tudo, imagina passar por tudo
aquilo de novo! E graças a Deus ninguém morreu, porque a água me pegou na hora
em que a tomada saiu e eu gritei e sai correndo, aí meu marido e minha filha já estavam
na porta aqui, meu filho nem fica, porque ele tem medo, então a água me pegou e a
porta bateu nas costas, e se me tranca aqui dentro? (ENTREVISTA, 05/02/2016,
L117).
N: [...] Quase que uma vez aconteceu uma tragédia, mas graças a Deus ainda não
aconteceu uma aqui, mas em outros lugares já aconteceu, você pode ver nas televisões
ai, olha deu uma enchente e a mulher passou direto e caiu no córrego, bom, a mulher
não tá sabendo, o cara, a pessoa que está usando o carro não tá sabendo que tem um
córrego ali, então a gente fica meio temeroso, a gente fica pensando na tragédia que
não aconteça (ENTREVISTA, 31/03/2016, L69).
5.2.3 Sair na marra? A sombra da desapropriação e da remoção
Percebemos que a decisão de permanecer ou sair relaciona-se com diversos fatores
sociais, econômicos e emocionais, que causam na vida dessas pessoas danos à saúde física e
psicológica, tanto quanto danos materiais e socioeconômicos.
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Vimos ainda, que existe a indicação, por parte do poder público, de que esses moradores
saiam de suas casas por acreditarem que eles tem condições financeiras para isso. Então
questionamos: Os moradores devem abandonar as suas casas? Isso resolverá o problema das
inundações do bairro? O que pensam a respeito da desapropriação e remoção? É o que desejam?
O que diz a lei?
O art. 22 da Lei 12.608/12, que dá nova redação à Lei 12.340/10, incluindo nela o art.
3º-B, estipula que:
Verificada a existência de ocupações em áreas suscetíveis à ocorrência de
deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou
hidrológicos correlatos, o município adotará as providências para redução do risco,
dentre as quais, a execução de plano de contingência e de obras de segurança e,
quando necessário, a remoção de edificações e o reassentamento dos ocupantes em
local seguro (BRASIL, 2015).
A lei estabelece ser preciso adotar providências para a redução do risco e quando
necessário seja feita a remoção e o reassentamento. Vimos que ações para a redução de riscos
estão executadas, no entanto, não foram eficazes para solucionar o problema e com isso há 20
anos a Vila América vem sofrendo com as inundações recorrentes.
Para a moradora W, não existe nada que possa ser feito para solucionar o problema e a
solução mais viável é a remoção das famílias que estão nas casas sujeitas ao evento. Mas para
ela isso não ocorre porque o valor das casas é considerado alto no mercado imobiliário. Afirma
ela:
W: A gente pede remoção, eu acho que a gente deve ser indenizado e retirado daqui,
porque não tem jeito, eles mesmos já falaram: “lá não tem jeito”. Se não tem jeito,
tem que retirar a gente daqui ué! Como eles tiram às vezes as pessoas de outros
lugares? O nosso problema é que as nossas casas aqui não são casas baratas, pelo
IPTU, pelo local onde tá; não são casas baratas. Se for pagar pelo valor das casas que
vale aqui, então são 88 casas, imagina o quanto dá! Porque nós aqui também já
desistimos, nós também achamos que tem que retirar, não tem o que fazer, isso aqui
já é um piscinão natural, se eles tirarem a gente daqui e fizer um piscinão, para com a
enchente em um monte de lugar (ENTREVISTA, 05/02/2016, L84).
Já N não acredita que a desapropriação seja a melhor alternativa. Mesmo concordando
que não existam obras para solucionar o problema definitivo da Vila América, por se tratar de
uma área de várzea, pensa que existem obras que possam minimizar o problema para que seja
possível a convivência com o evento sem maiores prejuízos. Também concorda que a remoção
é inviabilizada pelo custo das propriedades e defende que não ocorra a desapropriação por ser
uma área bem localizada e com boa infraestrutura. Diz ele:
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N: Em relação à desapropriação, eu acho que eles não têm essa viabilidade, por que a
área aqui é muito assim, é uma área nobre, porque está tudo próximo de tudo quanto
é lugar. Você pode ir a pé para o centro tranquilamente, 10 a 15 minutos você está no
centro, tem toda a infraestrutura, aqui tem próximo hospital, é próximo de grandes
supermercados, um dos melhores colégios que é o colégio São José está próximo, o
que, nem 500 metros daqui. Tem infraestrutura de escola, tem tudo, tem a escola
Moraes de Barros, tem o EMEI, o Carlos Drummond de Andrade que é o EMEI
próximo e que tem uma boa infraestrutura, tem a escola Carlos de Campos, está tudo
próximo, igreja, tem tantas igrejas evangélicas quanto cristã. Tem um shopping novo
aí que chegou aí porque eles viram que é um local viável e tem um empreendimento
grandioso aí também, além de apartamentos, prédios comerciais, tudo, e isso aí
futuramente vai ser uma área bem valorizada. E quanto à desapropriação, eu acho que
deveria fazer uma infraestrutura para diminuir esses alagamentos, porque não é viável,
tem tantos projetos que a prefeitura fala, mas ninguém fala de desapropriação, mas
chega num ponto que fala não tem verba para isso, porque? Porque a área é muito
valorizada e não é certo ficar um piscinão numa área dessa, a não ser que tenha uma
intervenção de fazer um terminal rodoviário por exemplo. Mas tem área que é a praça
14 Bis aí, que é enorme, é só fazer uma infraestrutura que não vai alagar também. É
por isso que a gente fala, fazendo as galerias, fazendo, mas subterrâneo, resolve?
Resolve. Também se melhorar a drenagem para o rio, logicamente o Rio Tamanduateí
também tem que melhorar, mas aí tem que fazer uma coisa intercalada, mas fazer um
projeto viável. Agora do jeito que está aqui, a turma levanta uma parede lá para cima
e enche de agua aqui, coloca mais parede para encher mais de água aqui, então não é
possível. Agora, quanto à desapropriação eu não acho que é solução, não é a solução
a desapropriação do local, porque vai continuar enchendo e se vai encher vai
prejudicar a parte viária do município todo [...] (ENTREVISTA, 31/03/2016, L193-
L195)
6. A RESPOSTA DO PODER PÚBLICO
Buscando entender não apenas como as pessoas convivem os riscos na dinâmica da vida
cotidiana, mas também quais ações de enfrentamento são desenvolvidas para a minimização
desses problemas, discutiremos nesse subcapítulo temas pertinentes a todas as instâncias
públicas e/ou atores governamentais que tem algum tipo de poder de tomada de decisões que
pudessem contribuir para esses enfrentamentos.
6.1 SOLUÇÃO DO PROBLEMA DAS INUNDAÇÕES POR MEIO DE OBRAS
Os problemas com as enchentes que começaram a acontecer na da década de 1950 no
município de Santo André e persistem até os dias atuais, não eram exclusivos daquela região.
Outras cidades do Grande ABC e a capital paulista também passaram a sofrer com esse mesmo
problema.
Com o alargamento, canalização e retificação dos rios, a água passou a ter mais
velocidade, e o problema apenas foi transferido para a parte mais baixa da bacia, empurrando a
inundação para o município situado rio abaixo. Com o tempo, sem as medidas preventivas, este
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ponto mais baixo não conseguia mais receber o volume crescente de água, causando refluxo e
transbordamento dos afluentes rio acima. Essa falta de ações preventivas e de uma ação
integrada entre Estado e município fez com que obras perdessem a utilidade em pouco tempo,
tendo que ser refeitas ou ampliadas a preços cada vez mais altos (SANTOS, 2002).
No final da década de 1980 percebeu-se a importância de realizar uma política que
integrasse Estado e municípios e que levasse em conta a unidade das bacias hidrográficas; uma
política com planos e metas coerentes, cujo cumprimento fosse garantido pela legislação e
principalmente pela participação ativa da sociedade. O objetivo se tornou o planejamento dos
recursos hídricos e deveria harmonizar drenagem urbana (combate à enchente), abastecimento
de água, coleta e tratamento de esgoto, além da gestão de resíduos sólidos (lixo).
Para a consolidação dessa nova perspectiva, contou-se com a Constituição Estadual de
1989, que estabeleceu o Sistema Integrado de Recursos Hídricos, congregando órgãos
estaduais, municipais e a representação da sociedade. No ano seguinte foi elaborado o primeiro
Plano Estadual de Recursos Hídricos, e no próximo, houve a aprovação da Lei Estadual 7.663
de 30/12/1991, regulamentando e instituindo o Sistema Integrado de Gerenciamento de
Recursos Hídricos, na qual a bacia hidrográfica é adotada como unidade físico-territorial de
planejamento e gerenciamento, e se prevê o rateio do custo das obras que beneficiam mais de
um município (SANTOS, 2002).
Diante da constatação de que a ampliação do leito dos rios não era a melhor solução
para os problemas, os recentes planos de drenagem, elaborados pelo governo estadual, passaram
a prever, a partir de 1997, a construção de reservatórios tipo piscinões (tanque de retenção de
águas pluviais) na bacia dos principais afluentes dos rios Tietê, Tamanduateí, Aricanduva e
Pirajuçara, entre outros. Esses reservatórios imitam o funcionamento das antigas várzeas
naturais: nas fortes chuvas, retêm parte da água que não caberia no leito, reservam-na e
devolvem-na lentamente ao rio conforme sua capacidade de escoamento.
Na tentativa de resolver o problema das inundações na Vila América, foi realizada a
construção de um piscinão, iniciada em 15/10/1999 e concluída em 24/05/2001, que contou
também com a participação da comunidade. A comunidade se organizou, primeiramente, nas
plenárias do orçamento participativo e depois constituiu uma comissão para acompanhar a
elaboração do projeto e a construção da obra.
O piscinão da Vila América está localizado sob o Viaduto Milo Camarosano, na
Avenida Capitão Mario de Toledo Camargo, com 48m de largura, 35m de comprimento, 6m de
altura e volume de armazenamento estimado em 3000m³. (SILVA; VAZ JR, 2002).
88
Esse piscinão tem a função de receber as águas pluviais provenientes da cabeceira e das
vias perpendiculares desta sub-bacia, por meio da micro-drenagem, despejando-a no
reservatório. Essas águas são armazenadas temporariamente e lançadas novamente ao Córrego
Guarará por de bombas. O sistema eletromecânico é composto por um conjunto de 3 bombas,
que são acionadas, uma por vez, quando a armazenagem de água atinge os seguintes níveis:
0,80m, 1,30m, e 1,70m (FREITAS, 2007).
Em relação aos dispositivos de segurança, para informação dos moradores do entorno
durante as chuvas, foi instalado um sistema de alerta semafórico indicando os níveis de água
no reservatório. Ocorre um alerta sonoro quando todas as bombas estiverem em funcionamento
e a vazão de entrada superar seu bombeamento, indicando que as vias da circunvizinhança já
estão em empoçamento, colocando em risco a circulação na área. Nas palavras da moradora W:
É um tipo de farol igual de trânsito, que quando a primeira luz está acesa, quer dizer
que as bombas estão ligadas, a segunda quer dizer que ele já está quase cheio, e a
vermelha que ele encheu, aí que a sirene logo dispara. As luzes são ligadas para o lado
da minha rua. Mas nós que pedimos para ter alguma coisa que desse para saber quando
o piscinão estiver cheio sem sair de casa (DIÁRIO DE CAMPO, 13/11/2015).
Ainda na tentativa de buscar de soluções para o problema das enchentes no município
de Santo André, conforme mencionado anteriormente, foi solicitado, no ano de 2013, por parte
do poder público municipal, ao Serviço Geológico do Brasil (CPRM), empresa do Governo
Federal ligada ao Ministério de Minas e Energia, um diagnóstico de ação emergencial para
delimitação de áreas com risco alto e muito alto de enchentes, inundações e movimentos de
massa.
Em relação à implantação de um sistema de alerta, sugerida nesse relatório, está sendo
realizado, pelo Departamento de Defesa Civil do município, o acompanhamento dos eventos
climáticos por meio de sistema de radares de monitoramento, que inclui o Córrego Guarará, e
um sistema de alerta preventivo por SMS que envia mensagens para os moradores cadastrados
(SEMASA, 2015).
Para a moradora W essas ações de prevenção são importantes e necessárias, mas não
são suficientes para a resolução do problema. Segue relato:
W: [...] antes de vir a chuva, eles mandam mensagens no celular de quem tem
cadastro. Antes eles avisavam por telefone, tinha uma época que era por telefone
também, eles ligavam e avisavam que ia ter chuva forte. Mas nesse dia (2011),
ninguém sabia de nada não, não tinha esse aviso, mas o aviso adianta muito o que?
Eu vou fazer o que? Eu vou morar em um barco, colocar um barco no lugar onde
moro? (DIÁRIO DE CAMPO – 29/09/2015)
89
Para os moradores, outros fatores, além da construção do piscinão, contribuíram para o
agravo da situação: a canalização do córrego Guarará, obra que elevou a avenida Capitão Mário
de Toledo, e a construção de grandes empreendimentos comerciais ao entorno da região.
Em relação à canalização do córrego Guarará e à elevação da avenida, fica claro no
capítulo em que contamos o histórico das inundações na Vila América que, embora se
buscassem soluções para o problema das enchentes na época, as obras de retificação e
canalização dos rios atendiam prioritariamente aos anseios da era moderna de modelos
urbanistas e rodoviaristas, e as consequências dessas ações seriam sofridas pelos moradores por
muito tempo. Nas palavras do morador N em entrevista com a pesquisadora:
N: Antigamente tinha uns córregos, aí taparam tudo e aterraram tudo, e fizeram, o
próprio Carrefour tem 1m e meio de altura lá, aterraram lá, porque? O Carrefour ali,
antigamente era uma fundição, era antigamente caminhões internacionais
P: E tinha o córrego que passava em frente?
N: Tinha não, o córrego é o mesmo, é esse córrego aqui, só que não estava fechado
(ENTREVISTA, 31/03/2016, L50-L52).
As respostas do poder público para a solução do problema de inundação da Vila América
não tem sido eficazes e isso faz com que os moradores se sintam desanimados e esquecidos.
Para N o descaso vem de instâncias acima da Defesa Civil. Para ele, a equipe técnica até tem
boa vontade, mas o problema é de cunho político. Em suas palavras:
N: só que entra um administrador, entra outro, e sempre aquela mesma conversa que
vão fazer umas melhorias, que vão fazer isso, que vão fazer aquilo, e nada resolvido
(ENTREVISTA, 31/03/2016, L10).
N: olha, boa vontade do pessoal técnico eles tem, agora falta uma vontade política na
minha opinião. Se o chefe do executivo quiser fazer isso, ele vai fazer, agora tem que
negociar com outras pessoas também, mas se ele quiser fazer ele faz essa intervenção
que a gente pede para fazer um dreno para lá, agora vai resolver a enchente, o
alagamento? (ENTREVISTA, 31/03/2016, L68).
O que os moradores estão acostumados a ouvir é que existem obras de melhorias para
serem feitas, mas que o andamento é lento em função da falta de verba, ou seja, por causa
questões financeiras. No entanto, N ressalta que existem diversos prédios sendo construídos na
Vila América, em locais onde não dá inundação, e que, conforme o previsto em lei, tais
empreendimentos devem disponibilizar uma verba para que a Prefeitura faça melhorias no seu
entorno. Portanto, esse dinheiro poderia ser investido em obras de combate às inundações.
N: O Poder Público fala, tem bom interesse tem boas intenções, mas na minha opinião
de boas intenções não adianta, tem que agir e executar obras que a gente precisa, agora
90
não fazem e vai piorando, porque? Fica construindo mais prédios, mais habitações lá
na pista, aqui na Marginal senão no entorno em si (ENTREVISTA, 31/03/2016, L77).
N: Mas eles não fazem, porque? Sempre falam da verba, da verba, só que eles tomam
essas verbas que tem para melhoria do entorno de um condomínio, isso daí vem no
projeto do condomínio, isso daí toda lei pra você fazer um condomínio, um prédio,
basicamente a Prefeitura vai falar que vai botar filetes aí, só que no entorno, no
entorno do prédio tem que ter melhoria, tem que ter uma adequação pra ter uma
estrutura pra pessoa viver em um condomínio, se continuar a mesma estrutura não vai
ter como a pessoa morar em um condomínio ou em um condomínio comercial, tem
que ter uma estrutura, então tem que fazer não só o prédio, construir a melhoria a
readequação do entorno, é o que fizeram aqui também no shopping, fizeram só que
não fizeram de acordo, fizeram pra eles, mas não sei se resolveu também , entende,
ali fizeram uma drenagem para não soltar, não alagar a pista, mas continua alagando.
(ENTREVISTA, 31/03/2016, L99).
Entram e saem governos e o problema permanece, por isso, tanto para N quanto para
W, o problema não foi resolvido até o momento por questões políticas, pois obras embaixo da
terra não elegem ninguém, não podem ser exibidas nas campanhas eleitorais:
W: Mas não é fácil não e não vejo esperança, não vejo ninguém fazer nada. Duvido
que alguém vai fazer, ainda mais porque 88 casas não elegem ninguém, né! Não é
uma área grande que vai dar voto para alguém. Eu sou sincera, eu falo isso, eu já falei
até para eles. Lá eu sou tida como chata porque eu falo mesmo, cobro, falo, e eles
sabem. Antigamente o Diário do Grande ABC nem falava isso, eles não queriam fazer
matéria, nem isso eles faziam, não sei como há 2 anos essa menina que estava lá fazia,
mas que saiu, porque nem isso saia. A gente sabe que um pequenininho não consegue
nada, o poder é deles né, eles que sabem o que eles querem, eles estão no bem bom,
não querem pensar na gente. E é isso (ENTREVISTA, 05/02/2016, L176).
N: aí eles não fazem porque obras debaixo de galeria ninguém aparece, é esse que é
o problema não dá visibilidade. A questão não é econômica é política
(ENTREVISTA, 31/03/2016, L95).
Os moradores revelam que na realidade sentem que suas vidas podem ser ceifadas pelo
descaso do Poder Público, entendem que os interesses políticos e econômicos são priorizados,
e se esquece do mais importante, ou seja, a vida das pessoas:
N: então o poder público tem que ver nessa parte, agora se as vidas forem ceifadas
como dizem a turma assim, de repente por causa disso, eu acho que falta
responsabilidade do Poder Público, né? (ENTREVISTA, 31/03/2016, L70)
N: Então eu acho que o Poder Público é responsável por isso aí, não só esse como os
outros, os anteriores também. Há quanto tempo isto está acontecendo? Deveriam ter
olhado melhor essa situação, mas eles não olham, eles olham para parte econômica da
coisa, aí esquece das outras coisas como a parte humana e a social. Tudo isso daí vão
deixando para depois, depois eu vejo, mas depois não tem jeito, depois que foi feito o
concreto, assentou lá na frente não tem jeito (ENTREVISTA, 31/03/2016, L178).
91
6.1.1 SOLUÇÕES QUE CRIAM MAIS PROBLEMAS: O PISCINÃO
Na busca da resolução do problema das inundações na Vila América, foi realizada a
obra do piscinão que gerou grande expectativa de que as inundações iriam ser drasticamente
reduzidas, tanto por parte do Poder Público, como por parte da população. E, de fato, por um
período após a sua construção, houve melhorias no controle de enchentes do bairro.
Acabadas as obras e decorridos já dois anos com os períodos chuvosos, observou-se
melhoria sensível no controle de enchentes do bairro, com a evolução do controle
operacional do tanque e seu sistema de esvaziamento através das bombas. Cabe
ressaltar, que antes das obras, todos os anos aconteciam em média três casos de
alagamentos em que as águas chegavam até 2,00m nas casas (SILVA; VAZ JR, 2002,
p. 242).
Figuras 20: Tanque de retenção de águas pluviais - Piscinão da Vila América
Fonte: Acervo Semasa, 2014
92
Figuras 21: Praça 14 Bis na Rua Erato (acesso ao Piscinão)
Fonte: Sandra Luzia Assis da Silva, 2015
No entanto, esse resultado não se manteve por muito tempo, e a iniciativa não foi
suficiente para conter o fluxo da água, que atinge dois metros de altura atualmente,
permanecendo os problemas para a população, que continua sofrendo prejuízos materiais e com
os sentimentos de frustração e desânimo.
Na perspectiva dos moradores, embora o tanque tenha solucionado o problema das
chuvas fracas, suportando a quantidade de água, a obra agravou o problema das inundações,
porque quando ocorrem chuvas intensas a água que transborda fica retida por 4 ou 5 horas,
forçando comportas e portões, que muitas vezes caem ou entortam.
O piscinão, que deveria receber somente a água da chuva e do córrego Guarará, com a
urbanização da cidade e a impermeabilização do solo, passou a receber também ás águas de
outras regiões, então, as bombas não dão conta de escoar tão grande volume de água, a Vila
América fica inundada por mais tempo, deixando os moradores mais expostos e afetados
durante o evento. Seguem relatos:
W: E o que eu acho que piorou na nossa vida, eles falam que não, mas foi o piscinão,
porque a avenida ali é mais alta, já é porque construíram a avenida mais alta, porque
ela não era mais alta (ENTREVISTA, 05/02/2016, L120).
93
W: E aí como eles são engenheiros e são estudados, porque eles acham que porque
são estudados, mas eles não convivem aqui. Fizeram o piscinão e o que acontece? O
piscinão não é, não tira a água do rio, primeiro o rio vaza e cai na nossa rua, depois
vai pro piscinão a água do rio quando transborda. Aí o piscinão joga no próprio rio,
três bombas, de novo no próprio rio, do rio passando de novo ali fechado na galeria.
Aí a gente disse: isso vai funcionar? Vai, vai, a gente é engenheiro, só que pergunta
para eles, vai lá e faz com eles o quanto entra de água e o quanto sai? Antigamente a
enchente, do mesmo jeito que o rio vinha com tudo e vazava aqui na nossa rua, em 2
horas a gente estava sem água, agora o que acontece, 5 ou 6 horas, fala para mim se
não piorou o piscinão (ENTREVISTA, 05/02/2016, L29 - L32).
N: Ultimamente fizeram esse piscinão que não vale nada também. Eles optaram por
fazer o piscinão desse lado da pista, não deveria, deveria ter feito o piscinão do outro
lado da pista, debaixo do viaduto, porque aí daria folga da gente. Não é que não
haveria enchente é que a nossa enchente aqui dá 2m e meio, cobre o muro eu fico 4 a
5 horas debaixo da água. Prevendo isso, eu falei olha não vai resolver porque a água
vem por cima da pista da Capitão Mário, da marginal Guarará aqui. Vem por cima e
não é a chuva que cai aqui na Vila América que vai dar toda essa inundação é a água
que vem lá de cima da Vila Luzita, de toda a bacia do Guarará que enche aqui, então
não vai ser suficiente porque quando enche vira uma bacia aqui e sem ralo. Fizeram o
piscinão, fizeram com as bombas elétricas tudo, mas não fizeram, quando enche total,
quando dá essa enchente toda não tem uma forma de vazão, quer dizer, deveria ter
uma comporta mecânica que abrisse e ia embora, tipo mecânica.
P: Há quanto tempo mais ou menos dá enchente de 2 metros de altura aqui?
N: Ah, isso aí é desde 2000 que fechou aí
P: Depois do piscinão?
N: Isso, depois do piscinão está dando isso aí com um tempo de duração da enchente,
4 a 5 horas (ENTREVISTA, 31/03/2016, L15 – L19).
Os dados oficiais dos anos 2008 a 2014, disponibilizados no Relatório Pós-Chuva do
Semasa, demonstram que a Vila América é o bairro mais prejudicado no que tange à altura
máxima da água atingida na inundação na cidade de Santo André. Embora não tenhamos dados
oficiais pós-chuva de anos anteriores, relatos de moradores demonstram que a obra piorou o
problema devido a um conjunto de fatores, como a canalização do Córrego Guarará juntamente
com a elevação da pista Capitão Mário de Toledo.
Para os moradores é necessário que se façam obras não somente na Vila América, pois
o problema das enchentes atinge outros bairros e a Vila América, por ser a região mais baixa,
recebe a água da chuva local mais toda a água que vem de outros bairros.
Por que afinal o que pretendia solucionar as inundações criou ainda mais problemas para
a Vila América? Para os moradores a construção do piscinão não obteve o resultado esperado
porque não foi planejado para atender especificamente a demanda da Vila América. Tinha
especialmente o objetivo de diminuir a paralização do tráfego nas principais avenidas de acesso
à cidade. Para eles a obra atendeu ainda, a problemática das inundações nas grandes empresas
do entorno, que com a elevação da pista e das grandes obras particulares executadas, fizeram
com que a Vila América se tornasse ainda mais vulnerável ao evento. Seguem relatos:
94
N: Ao invés de fazer um dreno, ou um cano de escoamento, não, fizeram isso aí nesse
projeto. Isso daí é uma coisa lamentável, pois levantaram a pista da Perimetral, que é
a av. Santos Dumont aqui, levantaram 1m 1m e pouco, porque? Porque antigamente
dava alagamento, mas assim mesmo, quando enche transborda e passa para o outro
lado e fica intransitável ali, fica uma coisa que cobre o carro também (ENTREVISTA,
31/03/2016, L59).
N: ultimamente também teve outra intervenção, fizeram o shopping novo aqui, o
Atrium e fizeram a drenagem. Fizeram uma galeria ali na rua do lado do Atrium que
sobe a av. Santos Dumont ali perto do Roldão, tudo ali. Só que fizeram a galeria deste
lado da ponte que a ponte vira um gargalo ali embaixo, é que não dá pra ver daqui,
mas é lá na ponte do Roldão (ENTREVISTA, 31/03/2016, L28).
Figuras 22: Avenida Santos Dumont Figura 23: Avenida Santos Dumont inundada
Fonte: Internet, 2016 Fonte: Internet, 2016
De acordo com W e N existem obras que podem melhorar a eficácia do piscinão,
minorando então o problema das inundações no bairro. No entanto, ressaltam que existem
outras formas de melhorar a problemática do bairro.
N: agora pra nós vivermos aqui a turma fala assim, tem que melhorar a situação da
drenagem, então toda a construção deveria ter um local para armazenar agua, mas isso
não está ocorrendo, tem os projetos mas isso não está ocorrendo. Você faz um prédio
e não tem lugar pra fazer isso porque cai a água e vai embora. Eles fazem a galeria
bonita do lado da casa, da rua, do entorno, mas onde vai cair essa água? Vai cair no
córrego, entende! O córrego deveria ter a largura das avenidas. Mas porque eles não
fizeram isso? O que eles fizeram com o córrego? Em uma parte, estreitaram o córrego
e fizeram a pista do lado e em outra, aterraram e fizeram a pista por cima. Mas deveria
ter feito o contrário, deveria ter feito as galerias embaixo das pistas aí, aí resolveria
grande parte (ENTREVISTA, 31/03/2016, L94).
W: N: se fizer uma galeria debaixo dessa pista toda, faz de um lado só, resolve o
problema, porque o que vai segurar é um piscinão na pista, não precisa fazer um
piscinão em uma área, reservar uma área pra fazer. Faz a pista toda com galeria isso
daí deveria ter feito antes; não fizeram, mas deveria ter feito aos poucos, ou diferente,
vamos supor estou aqui há vinte anos, se fizesse uma parte, um lado só durante esses
vinte anos, já teria resolvido, ou se não tivesse resolvido, teria diminuído bastante esse
problema (ENTREVISTA, 31/03/2016, L98).
95
Segundo informações citadas no apêndice I, é notório e evidente que no período sazonal
de precipitações pluviométricas a Vila América é a região mais prejudicada do município de
Santo André no que tange a desastres de categoria hidrológica de inundação. No entanto, os
moradores questionam: porque as ações realizadas no município não dão conta da resolução do
problema? Porque as obras previstas não são realizadas? Essas são algumas das perguntas de
pessoas que esperam por uma moradia mais digna.
6.2 AS AÇÕES LOCAIS DE PROTEÇÃO E DEFESA CIVIL
Durante muitos anos, em conformidade com a Resolução n. 2, de 12 de dezembro de
1994, do Conselho Nacional de Defesa Civil, a Política Nacional de Defesa Civil previa ações
de redução dos desastres que abrangiam quatro fases: prevenção de desastres, preparação para
emergências e desastres, resposta aos desastres e reconstrução.
Atualmente, esses conceitos foram atualizados pela Estratégia Internacional para
Redução de Desastres da Organização das Nações Unidas (EIRD/ONU)13 e também sofreram
alteração no Brasil desde a aprovação da Lei n. 12.608, de 10 de abril de 2012, que instituiu a
Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC), dando ênfase às ações de prevenção
numa perspectiva de redução dos riscos de desastres.
A atuação da Defesa Civil no Brasil, embora tenha sido predominantemente nas ações
de resposta, na última década do século XX buscou uma abordagem mais integrada dos eixos
que consideram o conhecimento dos riscos, ações voltadas para redução dos riscos e a
preparação para o manejo dos desastres (NOGUEIRA; OLIVEIRA; CANIL, 2014). No entanto,
foi somente com a Lei 12.608, de 10 de abril de 2012, que se pode observar mais concretamente
as ações de prevenção numa perspectiva de redução dos riscos de desastres.
Atualmente as ações de redução dos desastres da PNPDEC abrangem cinco fases:
prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação.
a) Prevenção “integra todas as atividades que evitam os impactos adversos das
ameaças e os meios para minimizar os desastres ambientais, tecnológicos e biológicos” (EIRD,
2012, p.18).
13 A Estratégia Internacional para Redução de Desastres (EIRD), criada em 1999, é o ponto focal do
sistema das Nações Unidas designada para coordenar a redução de risco de desastres e para assegurar sinergias
entre as atividades das Nações Unidas e organizações regionais em torno da redução de desastres e atividades nos
campos socioeconômicos e humanitários. Entre outras ações, a EIRD coordena os esforços internacionais na
redução de risco de desastres, guiando, monitorando e informando sobre o progresso na implementação do Marco
de Ação de Hyogo (CEPED/UFSC, 2014, p. 47).
96
b) Mitigação:
A mitigação tem diferentes significados para os pesquisadores sobre mudanças
climáticas e para os especialistas em gestão de risco e desastres, frequentemente
causando alguma confusão. Para a gestão de risco e desastre, a mitigação foca nas
medidas estruturais e não estruturais realizadas para limitar os impactos adversos das
ameaças naturais, degradação ambiental e ameaças tecnológicas (EIRD, 2012, p.18).
c) Preparação: envolve “atividades que contribuem para que a resposta ao desastre
ocorra de forma oportuna e eficaz, focando nos indivíduos e comunidades para reduzir os
impactos de uma ameaça natural e lidar com as consequências de um potencial desastre” (EIRD,
2012, p.18).
d) Resposta:
É a prestação de serviços de emergência e de assistência pública durante ou
imediatamente após a ocorrência de um desastre, com o propósito de salvar vidas,
reduzir impactos sobre a saúde, garantir a segurança pública e satisfazer necessidades
básicas de subsistência da população afetada (EIRD, 2009, p.28, tradução nossa14).
e) Recuperação: “consiste nas decisões e ações tomadas após o desastre para
restaurar ou melhorar as condições de vida existentes na comunidade afetada antes do desastre”
(EIRD, 2012, p.18).
f) Reconstrução: “é o conjunto de ações tomadas após um desastre para reabilitar
o funcionamento de serviços básicos, reparar danos físicos e equipamentos comunitários,
restaurar a atividade econômica e dar suporte psicológico e bem estar social aos atingidos”
(EIRD, 2012, p.18).
De modo geral, a Lei 12.608/12 busca lidar com os desastres de forma ampla e
organizada, estabelecendo: capacitação e treinamento dos agentes de proteção e defesa civil;
obrigação da informação pública; identificação e análise de riscos; medidas estruturais e não
estruturais para mitigação e/ou solução de problemas; e sistemas de contingência.
No seu artigo 2º, esse dispositivo legal afirma que é dever da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos municípios a adoção de medidas necessárias à redução dos riscos de
desastres, e o foco principal é nas ações de prevenção sem, naturalmente, descuidar das ações
necessárias de resposta, de socorro e assistência e de recuperação, e define as competências da
14Respuesta: El suministro de servicios de emergencia y de asistencia pública durante o inmediatamente
después de la ocurrencia de un desastre, con el propósito de salvar vidas, reducir los impactos a la salud, velar por
la seguridad pública y satisfacer las necesidades básicas de subsistencia de la población afectada (EIRD, 2009, p.
28).
97
União, Estados, Distrito Federal e Municípios, isolada e conjuntamente (artigos 6º ao 9º)
(BRASIL, 2012).
De acordo com a Lei, são diretrizes da PNPDEC:
I – Atuação articulada entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
para redução de desastres e apoio às comunidades atingidas;
II – Abordagem sistêmica das ações de prevenção, mitigação, preparação, resposta e
recuperação;
III – A prioridade às ações preventivas relacionadas à minimização de desastres;
IV – Adoção da bacia hidrográfica como unidade de análise das ações de prevenção
de desastres relacionados a corpos d’água;
V – Planejamento com base em pesquisas e estudos sobre áreas de risco e incidência
de desastres no território nacional;
VI – Participação da sociedade civil (BRASIL, 2012, art. 4º).
E objetivos:
I – Reduzir os riscos de desastres;
II – Prestar socorro e assistência às populações atingidas por desastres;
III – Recuperar as áreas afetadas por desastres;
IV – Incorporar a redução do risco de desastre e as ações de proteção e defesa civil
entre os elementos da gestão territorial e do planejamento das políticas setoriais;
V – Promover a continuidade das ações de Proteção e Defesa Civil;
VI – Estimular o desenvolvimento de cidades resilientes e os processos sustentáveis
de urbanização;
VII – Promover a identificação e avaliação das ameaças, suscetibilidades e
vulnerabilidades a desastres, de modo a evitar ou reduzir sua ocorrência;
VIII – monitorar os eventos meteorológicos, hidrológicos, geológicos, biológicos,
nucleares, químicos e outros potencialmente causadores de desastres;
IX – Produzir alertas antecipados sobre a possibilidade de ocorrência de desastres
naturais;
X – Estimular o ordenamento da ocupação do solo urbano e rural, tendo em vista sua
conservação e a proteção da vegetação nativa, dos recursos hídricos e da vida humana;
XI – Combater a ocupação de áreas ambientalmente vulneráveis e de risco e promover
a realocação da população residente nessas áreas;
XII – Estimular iniciativas que resultem na destinação de moradia em local seguro;
XIII – Desenvolver consciência nacional acerca dos riscos de desastres;
XIV – Orientar as comunidades a adotar comportamentos adequados de prevenção e
de resposta em situação de desastre e promover a autoproteção; e
XV – Integrar informações em sistema capaz de subsidiar os órgãos do SINPDEC15
na previsão e no controle dos efeitos negativos de eventos adversos sobre a população,
os bens e serviços e o meio ambiente (BRASIL, 2012, art. 5º).
Essa Lei inclui os agentes políticos no rol de agentes de Proteção e Defesa Civil, define
as competências da União e dos entes federados e estabelece o vínculo da responsabilidade para
com as ações em sua área de abrangência.
É de responsabilidade da União, instituir e manter um cadastro nacional de municípios
com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações ou
processos geológicos e hidrológicos correlatos.
15 SINPDEC: Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil (BRASIL, 2012).
98
Cabe aos Estados e Municípios identificar e mapear áreas de risco e realizar estudos de
identificação de ameaças, suscetibilidades e vulnerabilidades. Esta medida deve ser
acompanhada da obrigação do monitoramento meteorológico, hidrológico e geológico das
áreas, assim como de elaboração de cartas geotécnicas de aptidão à urbanização que deverão
estabelecer diretrizes urbanísticas voltadas para a segurança de novos loteamentos.
Os municípios devem integrar ao seu Plano Diretor as cartas geotécnicas e os
mapeamentos das áreas de risco, assim como, em relação à habitação, os moradores removidos
de áreas de risco passam a ser prioridade nos programas habitacionais da União, Estados e
Municípios.
No Município, o órgão de Proteção e Defesa Civil é responsável pelo funcionamento de
uma gestão articulada dos seguintes órgãos: Órgão Consultivo – Conselho Municipal de
Proteção e Defesa Civil; Órgão Central – Coordenadoria Executiva de Proteção e Defesa Civil;
Órgãos Regionais de Proteção e Defesa Civil; Órgãos Setoriais - Organizações Comunitárias
de caráter voluntário.
Na cidade de Santo André, o Departamento de Defesa Civil funciona de forma articulada
com o serviço de saneamento ambiental, sendo que ambos estão vinculados ao Semasa, que
também ao seu encargo: oferta de água, coleta de esgoto, drenagem urbana, gestão dos resíduos
sólidos, gestão ambiental e gestão de riscos ambientais. Esse departamento está ligado à
Comissão Estadual de Defesa Civil, órgão do Gabinete Militar do Governo do Estado e também
por meio da Secretaria de Defesa Civil – SEDEC (SEMASA, 2016).
Com proposta de cooperação intermunicipal, em 1990, na região do Grande ABC, foi
criado o Consórcio Intermunicipal do Grande ABC com o objetivo de integrar a administração
indireta dos municípios consorciados para planejar e executar com legitimidade ações de
políticas públicas de âmbito regional em 7 eixos: infraestrutura (incluindo Defesa Civil);
desenvolvimento econômico; desenvolvimento urbano e gestão ambiental; saúde; educação
cultura e esporte; assistência, inclusão social e direitos humanos e; segurança pública.
(CONSÓRCIO INTERMUNICIPAL DO GRANDE ABC, 2015).
Portanto, o Departamento de Defesa Civil do município de Santo André atua de maneira
articulada com outras políticas públicas e órgãos correlatos dos municípios consorciados do
Grande ABC. Atende a uma média de 1.500 chamados por ano na cidade, agindo nos riscos de
alagamentos, enchentes, acidentes geológicos, consequências estruturais em residências,
incêndios, explosões, acidentes causados por produtos químicos e outros (SEMASA, 2016).
No que tange às ações realizadas, desenvolve os seguintes trabalhos: a) monitoramento
climático; b) alertas preventivos por SMS; c) ações preventivas; d) ações educativas; e)
99
gerenciamento de riscos; f) percepção de risco; g) operações chuvas de verão; h) assistência
humanitária; i) formação de NUPDECs (SEMASA, 2016).
a) Monitoramento climático: realiza o acompanhamento dos eventos climáticos
da cidade por meio de sistema e radares que monitoram a região, utilizando estações
meteorológicas que medem os índices pluviométricos, temperatura, umidade relativa do ar e
velocidade dos ventos. Utiliza ainda outros sistemas importantes de monitoramento climático,
tais como o Centro de Gerenciamento de Emergências (CGE) do Estado de São Paulo e o Centro
Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).
b) Alertas preventivos por SMS: desde novembro de 2013 está sendo
disponibilizado para os moradores de Santo André um sistema gratuito de alertas preventivos
por SMS. O sistema foi elaborado para atender à Lei Federal de Proteção e Defesa Civil
12.608/2012 e funciona baseado no monitoramento realizado pelo Departamento de Defesa
Civil por meio de vários sistemas meteorológicos disponíveis. Elas oferecem as seguintes
informações: chuvas fortes, ventos, cuidados com raios, baixa umidade, baixas ou altas
temperaturas, realização de eventos de formação para os NUPDECS.
c) Ações preventivas: realiza vistorias em edificações para evitar construções
irregulares, assim como vistorias no sistema hídrico e de drenagem, rios, córregos e piscinões
da cidade, para avaliar as condições e se foram realizadas as ações de manutenção, limpeza e
desassoreamento necessárias para evitar o agravamento das áreas propensas a inundações e
alagamentos.
É feita uma fiscalização por helicópteros, sobrevoando-se áreas de risco para evitar
ocupações de espaços sujeitos a deslizamentos e para fiscalizar e vistoriar também a situação
das áreas de maior risco mapeadas pelo IPT na cidade e que estão passando por remoções
preventivas.
Dentro do Plano Municipal de Redução de Riscos de Santo André está a remoção
preventiva de 322 moradias em risco, listadas pelo IPT. No total foram interditadas e estão
previstas as remoções de moradias em situação de risco alto (R3) e muito alto (R4) para
deslizamento. Após a realização das vistorias preventivas é feito um relatório contendo a
situação do local, registros fotográficos e encaminhamentos devidos para os setores
competentes visando à prevenção e possibilidade de projetos para minimizar ou eliminar os
riscos;
O Semasa disponibiliza para seus usuários, na página virtual de seu site, o
monitoramento dos principais córregos da cidade. As câmeras estão posicionadas nos córregos
Guarará (Avenida Capitão Mário Toledo de Camargo) e dos Meninos (Avenida Lauro Gomes),
100
no Tanque Vila América (Avenida Capitão Mário Toledo de Camargo com Rua Erato, junto ao
córrego Guarará) e em dois pontos do rio Tamanduateí (Avenida dos Estados, nas proximidades
da Rhodia e com a rua Sorocaba). As imagens são atualizadas a cada 30 segundos e são
acompanhadas 24 horas por dia pela equipe do Semasa no Centro de Controle Integrado
(CECOI).
d) Ações educativas: durante o ano, nos meses que antecedem o verão, são
realizadas atividades educativas, cursos e formações sobre percepção de risco, prevenção de
acidentes domésticos, mudanças climáticas, monitoramento meteorológico, primeiros socorros
e demais temas importantes para divulgar os principais riscos e como preveni-los. Essas
formações e apresentações são voltadas principalmente aos moradores das áreas mais
vulneráveis, nas quais são formados os NUPDECS, mas também atendem aos servidores
públicos que atuam em setores que interagem com a gestão de riscos, tais como: saúde,
planejamento participativo, habitação, educação, postos e centrais de atendimento ao munícipe
e escolas.
Também foi desenvolvido material educativo voltado às crianças e aos adolescentes,
especificamente, um gibi que conta de forma ilustrada as ações de gestão de riscos, e um livro
de colorir. As ações educativas têm como objetivo associar o conhecimento dos riscos ao
planejamento e controle do desenvolvimento territorial.
Em 2013, foi criada a campanha ‘Escola Amiga da Defesa Civil’ nas escolas do
município para incentivar as ações humanitárias na comunidade. As escolas participantes
receberam uma caixa de doação na qual os alunos podem depositar doações de itens de higiene
pessoal e limpeza; os artigos arrecadados são repassados para o Departamento de Defesa Civil,
que os utiliza no atendimento às vítimas de enchentes do município. A campanha foi realizada
em conjunto com a Prefeitura, por meio do Departamento de Esportes e da Secretaria de
Educação de Santo André.
e) Gerenciamento de riscos: com base nos mapeamentos das áreas mais
vulneráveis aos eventos climáticos e tecnológicos locais, tais como: deslizamentos, inundações,
solapamentos de margens de rios e córregos, incêndios, desabamentos, entre outros, a Defesa
Civil realiza ações educativas preventivas em escolas, universidades, junto aos NUPDECS e
aos demais gestores e servidores públicos.
f) Percepção de riscos: a Defesa Civil realiza formação e orientação dos
moradores, primordialmente para os que vivem em áreas de risco, bem como para os servidores
que atuam nessas áreas, visando ao desenvolvimento da percepção de risco de desastres, com
foco na redução desses mesmos riscos.
101
g) Programa operação chuvas de verão (POCV): o programa é coordenado pelo
Semasa, por meio do Departamento de Defesa Civil, envolve outras secretarias e autarquias da
Prefeitura Municipal de Santo André, sendo realizado todos os anos, durante o período de
chuvas fortes, iniciando-se em 1º de dezembro.
Durante o POCV, a Defesa Civil trabalha com quatro níveis de alerta: observação (início
da operação até seu término), atenção (acúmulo de chuvas em 72h consecutivas), alerta
(iniciado em caso de registro de trincas, degraus de abatimento ou outra feição de instabilidade
que indique possibilidade de escorregamento, observada mediante vistoria em campo, além de
previsão de continuidade de chuvas intensas e da constatação de locais inundados ou com
enchentes) e alerta máximo (quando todos os sinais descritos nos níveis de alerta se
intensificam).
h) Assistência humanitária: O Departamento de Defesa Civil, juntamente com as
equipes do Departamento de Assistência Social da Secretaria de Inclusão e Assistência Social
de Santo André, responsabilizam-se pela Assistência Humanitária às pessoas afetadas e
atingidas por desastres na cidade.
Em relação às ações de resposta, são disponibilizados kits à população afetada contendo
alimentos, água potável, material de limpeza e roupas, entre outros itens. A distribuição
emergencial e gratuita dos kits tem como objetivo aliviar o sofrimento humano e colaborar para
o restabelecimento da normalidade na situação adversa. A escolha do tipo de material leva em
consideração a tipificação dos desastres mais recorrentes no Brasil, as vulnerabilidades
causadas às pessoas, bem como as características da população brasileira e as normas mínimas
de assistência humanitária que preconiza a ONU.
i) Formação de NUPDEC: essa sigla refere-se ao Núcleo Comunitário de
Proteção e Defesa Civil, composto por membros da comunidade treinados para apoiar as ações
da Defesa Civil na prevenção de riscos e para agir em situações de eventos climáticos, sabendo
identificar os riscos de seu território e tomar as primeiras medidas de socorro junto aos seus
vizinhos e pessoas do bairro, se necessário.
Prioritariamente, os NUPDEC’s são formados por moradores de áreas sujeitas a
inundações, enchentes e deslizamentos e, no município, começaram a ser constituídos no ano
de 2001. A Defesa Civil realiza o trabalho de formação e aperfeiçoamento dos NUPDEC’s,
dando orientação e treinamento aos membros da comunidade no que se refere a primeiros
socorros, prevenção de acidentes domésticos, ação nos casos de inundações, enchentes,
deslizamentos, incêndios e outros eventos, além de serem cadastrados para receber alertas
102
preventivos via SMS quando há previsão de fortes chuvas, baixas temperaturas ou mesmo
reuniões dos NUPDEC’s.
Segundo Roberth Tavanti e Mary Jane Spink (2014), os NUPDEC’s devem ser
entendidos como um dos mais importantes recursos voltados ao desenvolvimento de ações de
prevenção, mitigação e preparação nos territórios vulneráveis e/ou afetadas pelos desastres, por
serem compostos por pessoas da região, que possuem grande articulação junto aos moradores.
Como estratégia de organização dos moradores na busca de soluções para o problema
de inundação da Vila América, assim como de ações para a melhoria do convívio com o evento
até que soluções definitivas passam ser tomadas, os moradores criaram junto com o
Departamento de Defesa Civil o NUPDEC local e participaram do planejamento e
desenvolvimento de algumas ações. Seguem relatos da moradora W, que foi líder de NUPDEC:
P: Por quanto tempo você trabalhou com eles?
W: Por 7 anos voluntária
P: O que você fazia nesse tempo, do que você participou?
W: Ah, de cadastro de área de risco.
P: Você os ajudavam a fazer o cadastro das áreas de risco?
W: Isso, cadastro de área de risco com eles, fazia campanha na nossa vila, a gente deu
ideia de trocar o horário do lixo, a gente dava ideia para eles, um monte de coisa a
gente deu ideia. Levamos o corpo de bombeiro e Eletropaulo nas escolas, a gente foi
com eles nas escolas, a escola que minha filha e a da vizinha estudavam. Era assim,
era dia de sábado de domingo que a gente trabalhava, dia de semana não, mais ia com
eles de sábado e domingo fazer curso de primeiros socorros e um monte de coisa
(ENTREVISTA, 05/02/2016, L49 – L54).
Os moradores também participaram do planejamento de ações de prevenção através de
reuniões de bairro e nas plenárias do orçamento participativo. Opinaram sobre obras de
melhorias para a solução do problema das inundações do bairro, embora nem sempre suas ideias
foram atendidas. Seguem relatos dos moradores N e W:
W: Aí quando a gente participou do orçamento participativo e pediu obras no rio
Guarará. Pedimos no rio Guarará porque a gente sabe que ele é o problema, porque?
Porque ele chega ali e afunila, ele vem grande, vem a galeria afunilada, o funil se você
jogar muita água ele vaza, aí do lado do Carrefour o rio é estreito, mas como que não
dá enchente dentro do Carrefour e dá na gente aqui? Porque ele afunila lá, chega lá a
água chega menos, então a gente queria isso aqui (ENTREVISTA, 05/02/2016, L27
– L28).
N: Eu participei das reuniões para fazer esse piscinão da Vila América, mas eu não
concordei que fizesse desse lado. Mas o atual, que era o superintendente do Semasa,
que é o atual hoje, nós fizemos reuniões muitas vezes no ano 2000, eu falei olha, esse
piscinão não vai dar certo. Essas reuniões para fazer esse piscinão (risos), foram
muitas brigas para fazer, quer dizer muitas discussões, brigas no sentido de palavras,
assim, de discussões do que tinha que fazer, o que tinha que ser melhor
(ENTREVISTA, 31/03/2016, L12).
103
Ainda como estratégia de organização dos moradores na busca de soluções de prevenção
do problema de inundação da Vila América, anualmente a moradora W busca a mídia local para
mostrar para tentar dar visibilidade ao problema que a região enfrente frequentemente W:
“Todo ano eu chamo reportagem aqui do Diário para mostrar que o prefeito não está fazendo,
já tem 2 anos, todo janeiro. Esse ano eu não consegui chamar porque acho que a menina que
vinha fazer entrevista não está lá, mas se você procurar têm” (ENTREVISTA, 05/02/2016,
L95).
Atualmente não existe liderança no NUPDEC da Vila América e a participação da
população junto à Defesa Civil é pequena, pois mesmo com a conquista de alguns benefícios
para os moradores, não há perspectiva de ações ou obras efetivas para a resolução do problema
das enchentes da região. Segue relato da entrevista da moradora W: “Por isso que agora, eles
me chamam para fazer as coisas, e eu não vou mais, agora vou cuidar da minha vida”
(ENTREVISTA, 05/02/2016, L48).
Além da obra do piscinão não ter obtido o resultado esperado, outro fato contribuiu para
o desânimo e afastamento da população da Defesa Civil, foi a promessa de outras ações para a
resolução do problema sem o andamento necessário. Segue relato:
W: O prefeito Carlos Grana prometeu, em uma das 7 promessas dele para o ABC, que
a gente estaria incluso nisso aí, mas até agora nada! Já se passou mais da metade do
primeiro mandato dele e ele não fez nada. Prometeram que ia fazer um dreno no rio,
no nosso piscinão, para ir direto e não cair no rio, ir mas cair mais para frente, mas
também não fizeram nada, não chamaram mais a gente para a reunião. E está nessa, a
gente fica aqui abandonado, a gente se sente abandonado é só promessa só, não fazem
nada (ENTREVISTA, 05/02/2016, L82).
W: Procura que é uma promessa do prefeito, na hora da promessa, na hora de ganhar
voto. Está tudo aí, ganhou voto e sai todo mundo fora. Eu quero ver agora, na próxima
vez que ele for se candidatar se ele vai lembrar do que ele não fez (ENTREVISTA,
05/02/2016, L95).
Ao longo deste capítulo, destacamos diversas ações que constam em documentos oficias
sobre a atuação da Defesa Civil no município de Santo André, as quais, conforme relatos de
moradores, nem sempre são realizadas com a devida eficácia.
6.3 A PRESENÇA DAS EMPRESAS PRIVADAS
Elencamos as empresas privadas na categoria do Poder Público, porque percebemos ao
longo das entrevistas com os moradores, que algumas dessas instituições estabelecidas na
104
região com a autorização de órgãos públicos de alguma maneira influenciam diretamente a
problemática da inundação do bairro.
N relata que na atual propriedade do supermercado Carrefour existe uma parte do
Córrego Guarará aterrado, mas que antigamente passava aberto no local. Esse mesmo córrego
também foi canalizado para a obra da loja atacadista Roldão que fica ao lado do supermercado
Carrefour.
Essas obras contribuíram para a problemática da inundação na Vila América porque, o
aterramento de trechos do córrego fez com, nos trechos em que está descoberto, o fluxo de água
seja mais intenso e, consequentemente, mais intenso também o volume da água que transborda
para as ruas da Vila América.
Outro imóvel que contribui com o problema da inundação na região é o empreendimento
imobiliário Brookfield Century Plaza Business, que está localizado no bairro Homero Thon,
próximo à Vila América e compõe-se de quatro condomínios: o Residence, o Living, o Business
e o Hotel, além do Atrium Shopping.
Figura 24: Brookfield Century Plaza Business
Fonte: Internet, 2016
105
Para W, a rede de esgoto do empreendimento imobiliário passa próximo ao piscinão da
Vila América contribuindo, em caso de transbordamento, para piorar ainda mais a inundação,
pois junto com a água da chuva o conteúdo do esgoto do complexo atinge as ruas e as casas.
Segue relato:
W: E o shopping, a gente acha que o shopping também. Esses dias o rio vazou, que
chuva que deu tanto para o rio vazar? Esses dias o rio, não por cima, mas as bocas de
lobo não estavam mais aguentando mais, então começou a vazar e a gente já ficou
desesperado, eu estava trabalhando e vim “quebrando as pernas”.
P: Há quantos anos o shopping está aqui?
W: Esse aí eu acho que fazem uns 2 anos, mas ele fez uma mega construção aí, mexeu
na rede de esgoto, em tudo. Quanto mais esgoto ligar na gente pior.
P: Pelo o que eu vi, não é somente o shopping, é um condomínio, é um complexo com
vários prédios, é isso?
W: É isso mesmo, vai ter um monte de coisa maior, vai ter hotel, vai ter salas
comerciais e prédio do outro lado.
W: Aí eu descobri esses tempos atrás, fuçando, que a água de lá de esgoto vem tudo
para cá, para perto, para o lado do piscinão. Eles já sabem que aqui dá enchente e ao
invés de ligar para lá não, é aqui. A gente fuça em tudo né. Mas então está aqui desse
jeito, a casa está do jeito que você está vendo, a gente, ninguém tem (...)
(ENTREVISTA, 05/02/2016, L65 – L70).
Embora N reconheça que o empreendimento imobiliário trará benefícios aos moradores
da Vila América, como a valorização imobiliária da região, também destaca as consequências
da obra, relacionada ao vazamento do esgoto, para o problema da inundação na região.
N: tem um shoping novo aí que chegou aí porque eles viram que é um local viável e
tem um empreendimento grandioso aí também, além de apartamentos, prédios
comerciais, tudo. Isso aí futuramente vai ser uma área bem valorizada
(ENTREVISTA, 31/03/2016, L194).
N: Depois do shopping fizeram a galeria jogando antes da ponte, deveria ser jogado
após a ponte. Está difícil, fizeram o cano, agora fizeram o cano de lá para cá, tá e o
que aconteceu agora? Resumindo tudo o que aconteceu com esse esgoto, no dia 9 de
janeiro, agora eu vou falar agora, está ligado ali não sei o que, mas está parado. Sabe
o que aconteceu? Quando choveu veio todo o esgoto, veio água preta, água barrenta,
água preta e ficou aqui e transbordou. Aí a turma fala, não, não é esgoto de lá, bom,
mas nunca aconteceu de vir barro preto, é esgoto sim (ENTREVISTA, 31/03/2016,
L156).
N: Veio água de esgoto e ficou água de esgoto, quando sedimentou tudo e parou,
quando se foi limpar, você pode ver que não é terra vermelha, não é de areia, é agua
de esgoto.
P: Coisa que não tinha antes do shopping?
N: Não tinha, tá ocorrendo isso daí, e eu observei isso, antes não tinha isso daí, agora
não sei, aí eles falam, não, não é isso daí, mas veio esgoto de todo lado
(ENTREVISTA, 31/03/2016, L164 – L166).
106
N destaca que o problema maior é a falta de diálogo do poder público com as empresas
privadas, pois uma solução para amenizar o problema das inundações na região seria a execução
de obras subterrâneas no trecho do córrego que está dentro das propriedades privadas.
N: Mas aí teria que intervir na entrada do Carrefour ali, do supermercado e é questão
de poder econômico. Mas mesmo assim, se a Prefeitura negociasse com esse pessoal
eu acho que concordaria, porque isso não é só um benefício para a população, é um
benefício para o próprio comércio deles mesmo, do Carrefour, do Roldão, do
shopping.
P: O senhor fala que a prefeitura teria que negociar, por que eles teriam que entrar
com a parte de financiamento, porque é privado, é isso?
N: Não, não, intervir para colocar uma galeria no meio.
P: Então solicitar autorização para a realização de obras subterrâneas?
N: Isso, ter obras, só isso. Só alargar, fazer alguma coisa, porque não tem como fazer
isso daí, porque vai melhor para eles isso aí, vai melhorar o fluxo de trânsito porque
quando enche atrapalha eles, o comércio. Isso daí é falta de diálogo da Prefeitura, do
poder público com o poder econômico. O poder econômico que eu digo é do comércio,
do Carrefour e do Shopping. Então o shopping também fez a galeria, mas quem fez o
projeto foi a Semasa, só que fizeram e falaram: ah, mas é o único meio de fazer é
desse jeito (ENTREVISTA, 31/03/2016, L42 – L48).
No último trecho da fala acima mencionada, N relata que quem fez o projeto para a
construção da galeria de esgoto do empreendimento da Brookfield Century Plaza Business foi
o Semasa e alegou que a obra executada foi apresentada como a única forma possível de
construção. Então fica uma dúvida: foi previsto que a galeria de esgoto pioraria o problema das
inundações na Vila América?
6.4 CONVIVÊNCIA COM INUNDAÇÕES NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS
A Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas que
afirma no artigo 1º que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em
direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de
fraternidade” (BRASÍLIA, 1998), com esse entendimento buscamos compreender nesse
capítulo como estão sendo tratados os direitos dos moradores da Vila América diante dos
eventos de inundação.
A Organização das Nações Unidas utiliza a Carta Internacional dos Direitos Humanos
como base para todas as ações relacionadas à proteção e promoção dos diretos dos seres
humanos e das liberdades fundamentais. Essa carta é constituída por três instrumentos que
definem e legitimam os direitos humanos e as liberdades fundamentais: a Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 1948; o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e
107
Culturais das Nações Unidas de 1966 e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos
das Nações Unidas também de 1966 (ONU, 2002).
Direitos Humanos são os direitos básicos de todos os seres humanos. Incluem a) direitos
civis e políticos: direito à vida e à propriedade privada, liberdade de pensamento, de expressão,
de crença, igualdade formal, ou seja, de todos perante a lei, direitos à nacionalidade, de
participar do governo do seu Estado, podendo votar e ser votado, entre outros, fundamentados
no valor liberdade; b) direitos econômicos, sociais e culturais: direitos ao trabalho, à educação,
à saúde, à previdência social, à moradia, à distribuição de renda, entre outros, fundamentados
no valor igualdade de oportunidades; c) direitos difusos e coletivos: direito à paz, direito ao
progresso, autodeterminação dos povos, direito ambiental, direitos do consumidor, inclusão
digital, entre outros, fundamentados no valor fraternidade.
Vimos no capítulo 6.2, que discutiu as ações locais realizadas pelo Departamento de
Defesa Civil no município de Santo André, que como resposta de assistência humanitária são
disponibilizados de forma emergencial e gratuita kits à população afetada por desastres com o
objetivo aliviar o sofrimento humano e colaborar para o restabelecimento da normalidade na
situação adversa. No entanto, conforme relato de moradores locais, essa ação não é realizada
na Vila América que, mesmo sendo considerada como a região mais atingida por desastre
hidrológico de inundação no município, é privada da ação por ser economicamente considerado
um bairro de classe média.
Percebemos nessa ação uma violação de direitos humanos, porquanto, de acordo com o
artigo 1° da Declaração Universal dos Direitos Humanos citada, não deveria ser feita nenhuma
distinção entre as pessoas que são afetadas por desastre como considerações relativas às
condições econômicas dos atingidos por desastres para a distribuição de kits de ação
humanitária. Seguem relatos dos moradores W e N:
W: Porque quando caiu, disse que eu tinha direito, direito do que? De uma cesta básica
que eles não querem dar para nós, dizem que a gente não precisa de cesta [...]
(ENTREVISTA, 05/02/2016, L26)
W: Pois é! Sabe o que eu acho engraçado? No nosso país a pessoa que mora na favela
tem mais direito que eu que pago imposto, porque que eu sou menos do que eles? Já
teve vezes de eles virem aqui e falarem a gente vai lá levar marmita para o pessoal lá
de cima que desmoronou tudo, mas eu estou sem comer, como que faz?
(ENTREVISTA, 05/02/2016, L47)
N: A Defesa Civil quando chega aqui fala para esperar a água baixar. Eu tô, eu e meus
vizinhos tudo limpando a casa, deveria ter trazido uma água, um suco, alguma coisa,
mas não traz, eles falam: ah vocês não precisam. Espera um pouquinho, eu não preciso
como assim? Vocês não precisam porque vocês têm condições, estão morando aqui
108
no centro e tal, a propriedade é sua. Mas se fosse um local de baixa renda o que vocês
fariam? Ah, teria que trazer isso, isso e assado. Então e para nós nada, nós que somos
os flagelados da enchente (risos) como diz as pessoas, os outros também são
flagelados, todos nós somos filhos de Deus. Eu falei assim: deveria ser o mesmo
tratamento.
P: Os mesmos direitos?
N: Sim, mas não. Eles falam que é a direção que fala isso, aquilo e assado, e diz que
tem gente piores que a gente. Ótimo, mas na atual situação quando dá enchente, nós
somos todos iguais e nós podemos perder a vida aqui como lá, onde está lá, mas não
estamos meio esperto aqui para preservar nossa vida, então tudo bem. Mas o prejuízo,
talvez seja o nosso prejuízo seja maior que o do pessoal de baixa renda, de mais
necessidade, porque? Porque a gente perde muitas coisas, e além do mais, a gente está
perdendo a nossa dignidade, das pessoas de viver em um local bom (ENTREVISTA,
31/03/2016, L115 – L117).
Sobre os direitos econômicos, sociais e culturais, está previsto o direito à moradia,
entendida como um lugar seguro para viver, pois essa garantia possibilita aos seres humanos
um sentimento de dignidade, ou seja, saúde física e mental adequada, assim como uma boa
qualidade de vida. Para isso, dispor de uma habitação condigna é universalmente considerado
uma das necessidades básicas do ser humano (ONU, 2002).
O direito a uma habitação condigna é universalmente reconhecido por todos os países
que integram a ONU e reconhecem suas obrigações se refere à habitação, a saber, a de garantir
a todos os cidadãos de todos os estados, o direito de esperar que os seus governos se preocupem
com as suas necessidades de alojamento e reconheçam a obrigação fundamental de proteger e
de melhorar as casas e os bairros, em vez de os danificar e destruir.
A noção de habitação condigna é definida na Estratégia Global como compreendendo:
“intimidade suficiente, espaço adequado, segurança adequada, iluminação e ventilação
suficientes, infraestruturas básicas adequadas e localização adequada relativamente ao local de
trabalho e aos serviços essenciais – tudo isto a um custo razoável para os beneficiários” (ONU,
2002). Percebemos nos relatos dos moradores da Vila América que a realidade é bem diferente,
pois a convivência com o evento lhes causa prejuízos financeiros e materiais, sociais,
emocionais e biológicos.
W, moradora da região há 19 anos, relata que esses prejuízos a atingiram desde o início,
e ainda atingem tanto a ela quanto a sua família, causando grande sofrimento. Para ela, as
marcas deixadas pelos eventos serão sempre lembradas e sentidas.
Quanto aos prejuízos financeiros, percebemos nos relatos de N e W:
W: A comporta quem paga sou eu, já é a segunda comporta que eu tenho, eu tenho
bomba que eu ligo aqui, eu tenho válvula de retenção no esgoto e na água de chuva
que eu fecho, porque senão volta pela pia da cozinha. Quando der o nível da rua lá na
pia da cozinha vaza tudo e eu só não perdi antes as coisas, porque eu, se eu soubesse
que aquela parede ia cair, eu tinha feito outra parede lá com um monte de coluna,
109
porque desse outro lado aqui eu fiz, eu gastei uma grana, peguei dinheiro do cartão de
crédito para fazer para não perder tudo, lutei tantos anos para em 2011 chegar e cair.
(ENTREVISTA, 05/02/2016, L23).
W: E antes, quando na minha casa tinha móveis, a gente demora quase 20 minutos
para erguer a casa inteira, erguia tudo e com isso as coisas foram acabando. Eu tenho
um cisto e meu marido tem hérnia, mas temos que erguer a geladeira para cima, quer
dizer, essa é outra, uma eu comprei e outra eu ganhei, porque eu perdi tudo, a casa em
2011 foi tudo embora. Caiu o muro do vizinho e a parede da minha sala. A água quase
pegou eu aqui dentro, cobriu a pia da cozinha, pegou a metade da porta do fogão que
estava em cima da... sobrou nada, fiquei com a roupa do corpo, sem água, porque aí
acabou a água (ENTREVISTA, 05/02/2016, L19).
Figuras 25: Sala de W inundada
Fonte: Acervo da moradora W, [s.d.]
Também os prejuízos sociais são sentidos por W e N:
W: Minha filha morava comigo e teve que ir embora. Depois que ela casou ficou um
tempo aqui, mas teve que ir embora porque eu falei: filha, você pode ficar aqui até
novembro, mas depois você tem que ir embora, porque virá enchente e os móveis que
seu marido comprou, porque ele morava no interior e veio embora e trouxe tudo para
cá, vai estragar tudo. Até isso, tudo afeta, afeta visita, afeta família, afeta meus
passeios, eu não saio no período das chuvas, nem adianta me chamarem para nada,
nunca mais soube o que era viajar. Minha mãe mora no interior e viu uma vez um
110
helicóptero aqui pela TV e ligou apavorada, minha irmã grávida, quando caiu tudo, a
gente não sabia como contar para ela o que tinha acontecido, ela passou mal, afeta a
família inteira, é um ciclo (ENTREVISTA 05/02/2016, L123).
N: E justamente acontece em época de verão que é uma temporada que a turma sempre
sai. Tem seus compromissos, tanto sociais como profissionais também, ou senão
geralmente nessa época do ano, final de ano, está, tem escolas, tem eventos, uma série
de eventos para participar porque é verão, uma temporada boa para fazer os eventos e
a gente às vezes fica privado de sair (ENTREVISTA 31/03/2016, L185).
Já os prejuízos emocionais, são relatados apenas no discurso de W:
W: E todo mundo tem medo, minha família chora, minha irmã quando se casou e
mudou para o interior, quando chovia lá ela começava a ficar apavorada mesmo minha
mãe dizendo: mas aqui não vem água. Eu tenho medo de chuva, eu tenho medo, é um
trauma, o psicológico aqui nesse lugar não é brincadeira não. A gente tem muito medo
de água, a gente tem até medo do que pode acontecer, não é só de perder as coisas,
mas também do que pode acontecer (ENTREVISTA, 05/02/2016, L171).
W: O psicológico de todo mundo aqui é afetado, além do bolso né, eu não me
recuperei mais depois de 2011. Pode passar o tempo que for que eu nunca mais serei
a mesma pessoa, perdi muita coisa que não volta mais, um passado de lembranças,
coisas da infância dos meus filhos. Para onde quer que eu for carregarei as marcas das
enchentes (ENTREVISTA, 05/02/2016, L72).
Quanto aos prejuízos biológicos, ou seja, consequências dos eventos à saúde dos
moradores, W relata o que sofreu e vem sofrendo em relação à sua saúde e de sua família e N
comenta sobre a falta de ações da Política de Saúde com os moradores que convivem com a
inundação:
W: Eu de dieta tive um furúnculo e fiquei com ele por 1 ano, isso aconteceu porque
eu peguei enchente de dieta. Com 40 dias que eu tinha ganhado neném, teve uma
enchente e a minha filha de 10 anos ficou segurando meu filho pequeno e eu fiquei
segurando o portão, a gente ficava amarrando ele para ele não cair porque ele vem
para dentro né. Aqui em casa todo mundo teve problema de saúde por causa das
enchentes, eu tive esse furúnculo e tenho cistos, meu marido hérnia e minha filha tirou
a coluna do lugar. Na verdade, já nem sei mais quantos problemas de saúde tivemos
(ENTREVISTA, 05/02/2016, L133).
P: Quando, por exemplo, ocorre essa inundação, quando tem uma chuva forte como
ocorreu a de janeiro, tem algum outro tipo de ação, fora da Defesa Civil? Alguém vem
fazer algum trabalho com vocês? O pessoal da Saúde com vacinação ou o pessoal da
Assistência Social? Como funciona?
N: A Defesa Civil tem comparecido, mas a Saúde não aparece não, nem para tomar
uma vacina antitetânica, ou essas coisas contra leptospirose, fazer um programa, isso
não aparece não (ENTREVISTA, 31/03/2016, L110 – L111).
Mesmo diante da fragilidade da garantia de alguns direitos da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, percebemos, conforme o relato dos moradores, que há alguns direitos
garantidos por lei a pessoas que moram em área de risco efetivados.
111
São concedidos aos moradores que sofrem com as inundações, a isenção do Imposto
Predial e Territorial Urbano (IPTU) total quando há um evento no ano que atinge sua residência.
Isso é garantido de acordo com o decreto nº 15.965, de 18 de novembro de 2009 que
regulamenta o inciso IX do artigo 18 da Lei nº 6.582, de 06 de dezembro de 1989, com suas
alterações posteriores, que autoriza o Poder Executivo a conceder isenção sobre imóveis que
sofrem em seu interior enchentes provocadas por águas pluviais advindas da rua (SANTO
ANDRÉ, 2009). Segue decreto:
Art. 1º A isenção do IPTU de que trata o inciso IX do artigo 18 da Lei nº 6.582/1989
será concedida em relação ao crédito tributário relativo ao exercício fiscal da
ocorrência da enchente.
Art. 2º A concessão do benefício de que trata o artigo anterior deverá ser requerida
por meio de processo administrativo próprio, até o último dia útil do segundo mês
subsequente ao da ocorrência de enchentes no interior do imóvel provocadas por
águas pluviais.
Art. 3º O pedido de isenção do IPTU no exercício fiscal da ocorrência da enchente,
deverá ser instruído com os seguintes elementos informativos:
I - endereço e classificação fiscal do imóvel que sofreu a enchente;
II - data da ocorrência da enchente;
III - relatório elaborado pela Defesa Civil ou por outro órgão competente da
Administração, conforme o artigo primeiro da Lei nº 6.582/1989.
§ 1º Cada relatório se referirá a um exercício fiscal.
§ 2º O requerente deverá solicitar a concessão do benefício de que trata este decreto,
até a data estipulada no artigo 2º, mesmo que ainda não tenha sido emitido o relatório
pela Defesa Civil ou por outro órgão competente; devendo, contudo, demonstrar que
ingressou com a solicitação do respectivo documento, que deverá ser juntado ao
processo, assim que estiver disponível.
§ 3º Caso o benefício seja requerido por pessoa diversa do proprietário constante no
Cadastro Fiscal Imobiliário, o pedido deverá conter procuração específica com firma
reconhecida e documentos de identificação pessoal do requerente.
§ 4º Não se aplica o parágrafo anterior, no caso do solicitante ser compromissário,
detentor, coproprietário, locatário, comodatário ou possuidor a qualquer título do
imóvel objeto da solicitação do benefício, desde que apresente respectivo documento
que comprove a posse do bem e a responsabilidade pelo pagamento do IPTU no
exercício fiscal da ocorrência.
Art. 4º No caso da Municipalidade reconhecer a isenção regulamentada por este
decreto, será fornecida a respectiva declaração comprovando a concessão do
benefício.
Art. 5º Caso o sinistro ocorra após o pagamento total ou parcial do IPTU referente ao
exercício fiscal da ocorrência, os valores pagos serão restituídos ou compensados em
conformidade com a Lei nº 8.701/2004.
Parágrafo único. Especificamente, para a restituição ou compensação decorrente da
concessão da isenção tratada neste decreto, o requerente deverá apresentar os
comprovantes de pagamento do IPTU, objeto do pedido.
Art. 6º Exclusivamente para o exercício de 2009, o Departamento de Tributos da
Secretaria de Finanças aceitará os pedidos de isenção e restituição dos valores já
pagos, através de requerimentos individuais ou coletivos, que tenham sido
protocolizados até a data de publicação deste decreto.
Art. 7º Este decreto entra em vigor na data de sua publicação (SANTO ANDRÉ,
2009).
112
Existe a garantia da isenção do IPTU, só que os moradores mencionam que há uma
burocracia documental no andamento da solicitação que dificulta a efetivação, pois em função
das próprias inundações, alguns documentos necessários para realização são perdidos, assim
como é exíguo o tempo que tem o m orador para instruir o processo administrativo. Seguem
relatos:
N: Aqui tá tudo certo, tem IPTU tem tudo, aqui tá tudo legalizado, a casa tem escritura,
tem tudo, está tudo certo. Paga-se IPTU? Paga-se IPTU quando não ocorre enchente
durante o ano, ou seja, quando não dá enchente eu tô pagando IPTU. Agora quando
dá enchente, ai você tem que entrar com um pedido na Prefeitura para isenção do
IPTU, coisa que deveria ser automático, não deveria ter que fazer as papeladas e pegar
cópia disso e cópia daquilo. Tem que pegar cópia de residência, tudo isso daí e leva
na Prefeitura ou na Semasa e protocola, tem que protocolar e ai esperar eles avaliar e
pegar o laudo da Defesa Civil para ver se aconteceu mesmo. Então, tendo o laudo da
Defesa Civil vai ter isenção mesmo, eu nem pago mais o IPTU quando enche de água.
Eles falam: olha é melhor o senhor pagar, mas eu falo espera aí se encheu de água
como é que eu vou ficar pagando? Aí eles falam: mas ressarce, a prefeitura ressarce.
Mas para que que eu vou ficar pagando se eu tenho a certeza que tem isso aí, porque
já estou com laudo, o laudo da Defesa Civil já está avaliando isso daí. Então não tem
como ficar pagando e também não tem esse problema de a Prefeitura ter que ressarcir,
entendeu? Não tem como isso daí, se já está certo, já está certo, tem que já carimbar
e liberar, mas não, fala que tem que avaliar. Então vai lá no departamento de obras,
departamento de tributos e a pessoa da fiscalização avalia enquanto eu fico esperando.
Isso aí sempre ocorreu e sempre deu certo, eles isentam e tal, mas deveria ter uma
coisa, olha essa área ocorreu isso, pá, então você manda, já está isento, mas não, tem
que fazer toda essa burocracia para ser isento. Dizem que tem umas leis aí de que
quando é área de enchente, essa coisa está isenta, mas aqui só isenta quando o Semasa
ou Prefeitura fala que dá. Mas ainda bem, eu vou lá e faço esse requerimento, agora
tem pessoas que não vai, tem pessoas que aí perde essa isenção (ENTREVISTA
31/03/2016, L109).
W: O IPTU também tem desconto, mas tenho contrato de gaveta e em uma das
enchentes eu perdi um dos documentos que todo ano tenho que apresentar, porque
todo ano tenho que apresentar toda documentação de novo. Eles estão carecas de saber
que aqui dá enchente, não poderia ter um processo já e o nome ficar cadastrado lá?
Não, então nesses dois anos eu não consegui e estou atrasada com o IPTU. É R$
800,00 e pouco que fazem falta, principalmente para mim que perde tudo, tem prejuízo
direto, você conserta de um lado e vaza de outro, então você tenta consertar
(ENTREVISTA, 05/02/2016, L40).
Os moradores também relatam que é concedido um desconto no pagamento da conta de
água no mês que ocorre algum evento, pois é necessária uma quantidade maior de água para a
limpeza das casas. Em suas palavras:
W: Mas eu só não perdi mais, por mérito meu, é só prejuízo, você gasta água, tem
desconto, mas é tudo burocracia, e isso ninguém fala, que fui eu e a Cida quem
conseguiu, correndo atrás deles.
P: O que vocês conseguiram, o desconto?
W: A gente brigava porque estávamos tomando prejuízo, aí o pessoal da Defesa Civil
conseguiu, através de uma lei, que a gente tivesse desconto. Se você pega os três
últimos meses e teve um mês, acho que deu 4 ou 5 enchentes em fevereiro, acho que
eu gastei de R$ 300,00 de água, mais prejuízo, aí você vai lá e eles veem nos três
113
meses o que você gastou e dá o desconto. O IPTU também tem (ENTREVISTA,
05/02/2016, L37 – L39).
Destacamos neste capítulo algumas garantias e violações de direitos dos moradores da
Vila América que sofrem com os eventos de inundações. No entanto, um assunto que sempre
causa tristeza e indignação nos moradores, é o fato da Vila América ser um bairro com todas as
residências legalizadas pelo poder público, com seus moradores cumprindo com os deveres
legais para manter a posse do imóvel, e esse investimento financeiro não é revertido em obras
de melhoria para o próprio bairro, sendo que entra ano e sai ano o problema permanece, quando
não se complica. Nas palavras de W:
W: Ninguém aqui é invadido, não que eu tenha nada contra, mas ninguém aqui
invadiu, como algumas favelas e fez uma casa em cima do rio. Minha casa é
legalizada, eu pago R$ 800,00 e pouco de IPTU e em 2011/ 2012 eu perdi tudo. Eu
trabalho aqui além de tudo, o meu ganha pão é aqui, eu perdi todo o meu maquinário,
eu perdi estoque de papel, eu perdi tudo, eu nunca vi meu marido tão desesperado de
como foi isso aí (ENTREVISTA, 05/02/2016, L22).
W: O que mais dói na gente é que ninguém faz nada, porque eu comprei minha casa,
eu não invadi, eu comprei, o meu IPTU é caro entendeu? Eu moro legalizado. Então
eu acho, eu não estou falando de ninguém, mas eu sinto que o tratamento é diferente
para mim e de quem mora em um lugar que invadiu, eles conseguem mais do que eu.
Eles dizem que eu tenho uma renda, só que a minha renda, quando ela é afetada, o
meu tombo é maior, porque as minhas contas não vão parar de vir só porque perdi
tudo. Sempre vão achar que o meu é pior que o do outro, só que falo: eu pago os meus
impostos, eu trabalho, nunca ganhei nada de graça de ninguém, eu não acho certo dar
nada de graça para ninguém, a pessoa tem que merecer o que tem e eu, sempre o que
eu tive foi trabalhando (ENTREVISTA, 05/02/2016, L150).
São inúmeras as perdas de pessoas que convivem com as inundações recorrentes
relatadas pelos moradores da Vila América, dentre elas os sentimentos de abandono e tristeza
que refletem as consequências emocionais e sociais vividas, chamando a atenção para que o
bairro possa ser visto como um lugar que necessita de ações definitivas. Essa fala do morador
N é bem representativa nesse sentido: “Viver nessa situação faz com que estamos perdendo
nossa dignidade. Será que não temos o direito de morar num lugar bom e digno, afinal, pagamos
por ele” (DIÁRIO DE CAMPO, 20/02/2016).
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dentre os diversos questionamentos que a temática risco de desastres despertou durante
minha trajetória, optei nesta pesquisa por buscar entender como se configuram as áreas de risco
114
no Brasil e como é a convivência das pessoas com esta situação. Na busca de uma melhor
compreensão acerca dessa dinâmica, escolhemos como campo de pesquisa a Vila América no
município de Santo André.
Iniciamos historiando a formação do bairro e da ocorrência de inundações. Essa
contextualização nos possibilitou entender que o crescimento industrial na região do Grande
ABC refletiu diretamente no crescimento da população e na urbanização do município de Santo
André, incentivando a organização de loteamentos divididos socialmente e economicamente,
com a população mais empobrecida ocupando os loteamentos nas várzeas dos rios, dentre eles
a Vila América, onde passa o Córrego Guarará.
Com o crescimento urbano acelerado, grandes prédios e casas começam a ser
construídos, com ruas pavimentadas e construções de avenidas próximas às margens dos rios.
Essas ocupações, associadas ao crescimento geral da cidade, trouxeram para a região a
problemática das enchentes. A solução do Poder Público para resolver o problema das
inundações passou a ser a completa modificação e retificação de rios e córregos. Quanto à Vila
América, a obra realizada no córrego Guarará remanejou e retificou o leito do córrego e grande
parte de sua extensão foi canalizada, alguns trechos totalmente fechados, outros a céu aberto.
O que era para ser a solução passa a ser um problema para os moradores da Vila América, pois
a obra não visava resolver apenas a demanda das inundações do bairro, mas também a
construção da Avenida Capitão Mário de Toledo Camargo para atender o sistema viário do
município.
Perante a constatação de que as obras do leito do córrego não eram a melhor solução
para conter os problemas, foi construído um reservatório tipo piscinão na Vila América. Por um
período, após a sua construção, houve melhorias no controle das inundações no bairro, no
entanto, esse resultado não se manteve por muito tempo e a iniciativa não foi suficiente para
conter o fluxo da água, que, atualmente, atinge dois metros de altura na casa dos moradores.
O contato com a problemática na Vila América em Santo André/SP possibilita perceber
que a configuração das áreas de risco no país vem se apresentando como um problema estrutural
e heterogêneo. Os espaços a serem ocupados são determinados a partir de posições sociais ou
econômicas que resultam na alocação de determinados grupos sociais em áreas mais
vulneráveis a desastres. Essa forma de seleção de espaços sugere que a urbanização no Brasil
foi decisiva para fazer com que desastres tenham um caráter de construção social e sejam
reveladores de desigualdades sociais. Por exemplo, nas imediações da Vila América, cada vez
mais estão realizando obras imobiliárias que agravam ainda mais a problemática das inundações
115
no bairro, mas como o número de casas atingidas na Vila América é considerado pequeno em
comparação ao tamanho dos empreendimentos construídos, as obras continuam.
Notamos ainda que os processos e estruturas sociais, especialmente as relações sociais
de desigualdade, que são historicamente produzidas, refletem-se em um território e o tornam
mais propenso a suscetibilizar, principalmente os grupos mais empobrecidos, à ocorrência de
desastres.
Diante desse cenário, buscamos compreender como os moradores da Vila América
convivem com o risco de inundações recorrentes. Para tanto, fomos buscar na literatura bases
conceituais para pensar os riscos na vida cotidiana. Percebemos que, num primeiro momento,
o conceito de risco era utilizado para se referir à possibilidade de ocorrência de eventos
vindouros, em uma época na qual o futuro ainda não era pensado como passível e controle.
Porém, na modernidade clássica torna-se um conceito central, envolvendo de um lado o
desenvolvimento da teoria da probabilidade e do outro da estatística.
Percebemos nessa configuração quantitativa e técnica do risco, importantes
desdobramentos para compreender como atualmente o conceito vem sendo utilizado em âmbito
mundial e em âmbito nacional por órgãos responsáveis por gerir a problemática. Essa
configuração se torna, através da coleta de informações sobre a população, um instrumento
fundamental de governo denominado gestão de risco, que engloba três áreas de especialidades:
o cálculo e a percepção dos e a comunicação sobre riscos.
Esse campo disciplinar surge com muito otimismo, mas se torna progressivamente alvo
de críticas das Ciências Sociais quanto à hegemonia exercida pelas análises quantitativas e
técnicas sobre o risco, pois ignoram que as causas dos danos e a magnitude das consequências
são socialmente construídas. Essas referências contribuíram como referência histórica para a
construção da abordagem teórica adotada nesta pesquisa: a linguagem dos riscos.
As diversas linguagens sobre risco apresentadas nos permitiram perceber que as
diferentes maneiras de se enfocar o conceito determinam diversas formas de pensar e lidar com
um problema. Portanto, podemos dizer que os discursos determinam conhecimentos e práticas
a eles associadas, assim como essas práticas vão dando sentido à realidade cotidiana através das
linguagens utilizadas, evidenciando as especificidades sociais e culturais de um determinado
contexto. Essas concepções serviram como base para a configuração do nosso objetivo geral de
pesquisa, que buscou analisar, através da linguagem dos riscos, as múltiplas dimensões do risco
para os moradores da Vila América que convivem com inundações recorrentes.
As discussões acerca das diferentes perspectivas teóricas permitiram compreender que
o risco é uma construção linguística, logo social, e, portanto, os modos pelos quais se fala sobre
116
risco criam definições que determinam as formas de governar a vida das pessoas. Dessa
maneira, as múltiplas dimensões do risco explicitam as múltiplas formas de gerenciamento do
risco na vida cotidiana, dentre essas formas, as hierarquizações dos riscos.
A partir do diálogo com moradores, elaboramos mapas dialógicos que permitiram
identificar algumas dimensões do risco na perspectiva dos moradores: 1) Riscos: convivência
com todos os temas relacionados aos riscos de inundação, 2) Poder Público: participação do
poder público em relação à busca de soluções para o problema, e 3) Direitos: convivência com
as inundações na perspectiva dos direitos.
Sobre a convivência com os riscos de inundações há mais de 20 anos e com a atual
situação, em que o transbordamento da água do córrego chega a atingir até 2,20m de altura na
casa de alguns moradores e o escoamento da água dura de 4 a 5 horas, ficou evidente que, para
os moradores, a situação afeta a totalidade de suas vidas; suas rotinas diárias são modificadas
conforme previsões meteorológicas gerando sentimentos de apreensão e angústia constantes.
Portanto, conviver com o risco de inundação faz com que se sintam abandonados, esquecidos
e impotentes, portanto, com medo, insegurança e desânimo.
A pesquisa permitiu, ainda, compreender que a ambivalência entre querer ficar ou sair
da área de risco está relacionada com diversos sentidos atribuídos a esses riscos, entre eles: as
razões que levam a morar no local (a realização do sonho da casa própria); a questão do
preconceito, que leva à invisibilidade dos direitos de cidadania; a importância do lugar (as
relações de vizinhança, a localização, infraestrutura e acessibilidade da região); a ameaça
distante; e a incerteza sobre o futuro.
Percebemos que, para a moradora W, o sonho da conquista da casa própria e de uma
moradia digna é algo que pesa muito em sua decisão, evidenciando um forte apego à casa e à
memória evocada pelo local. Para ela, o risco de perder sua casa e todos os bens materiais que
conquistou em sua vida é um problema maior do que os riscos de inundações frequentes, com
os quais aprendeu a conviver. Mas isso não significa que emocionalmente não se sinta afetada.
W evidencia que existem prejuízos sociais, emocionais, afetivos, psicológicos e biológicos que
geraram consequências irreparáveis na vida da sua família e dos seus amigos.
Já para N, a decisão de permanecer está relacionada aos sentidos atribuídos à
importância dos aspectos sociais do bairro, como o relacionamento com a vizinhança, a
localização, infraestrutura e acessibilidade da região.
Notamos ainda que a convivência com temas relacionados aos riscos de inundação
reflete na naturalização do evento, gerando nos moradores sentimentos de conformismo e
aceitação. O fato de se conformarem com a iminência do risco de inundação, faz com que se
117
sintam aliviados ao se deparar com eventos de menor magnitude, por já terem vivido outros de
maiores proporções, assim como, por não ter ocorrido vítimas fatais, a ameaça, mesmo que real
e cotidiana, é considerada distante.
A pesquisa também mostrou que diversas ações e obras foram feitas no município de
Santo André e na Vila América para tentar conter o problema das inundações na região. No
entanto, nem sempre foram realizadas com a devida eficácia, nem o problema foi solucionado,
ao contrário, conforme relatos dos moradores, o quadro tem se agravado com o passar do tempo.
Na busca por soluções, moradores se organizaram para participar de ações de prevenção
e de melhoria da Vila, mas com o decorrer do tempo e as tentativas ineficazes de solução ou
mitigação, o sentimento de desânimo, descrença e impotência foi tomando conta das pessoas e
o trabalho se encerrou. Um dos motivos para que isso acontecesse foi a descrença no Poder
Público, pois entram e saem governos e o problema permanece. Por isso, para os moradores, o
problema está relacionado a questões políticas e econômicas, principalmente pelo fato de estar
ocorrendo um crescimento de instalações de empresas privadas ao entorno do bairro, com a
autorização do Poder Público que, de alguma maneira, contribuíram diretamente para o
agravamento das inundações na Vila América.
Foi possível identificar também que a convivência com as inundações há mais de 20
anos impactam nos direitos dos moradores, tanto na garantia quanto na violação. Por um lado,
existem alguns direitos garantidos, como descontos na conta de água e isenção de IPTU; por
outro, há violação no que se refere aos direitos básicos a uma habitação condigna, de acordo
com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a discriminação dos moradores na
distribuição de kits de ação humanitária.
Notamos que a convivência com os riscos no cotidiano gera consequências à saúde física
e psicológica dos moradores, afeta a dinâmica familiar, ocasiona perdas materiais e afeta a
memória social da família. Esses fatores evidenciam um problema estrutural relacionado ao
processo de urbanização e redução de desastre que coloca em pauta a fragilidade e a
precariedade das ações e políticas públicas.
Percebemos que a decisão entre mudar ou permanecer em locais sujeitos a inundação
depende de fatores relacionados à prioridade que é dada a determinados riscos e os sentidos
atribuídos a esses riscos, que os colocam em uma escala hierárquica. Portanto, compreender
como as pessoas dão prioridade a determinados riscos em detrimentos de outros, torna-se uma
opção para se pensar ações de prevenção.
Compreender a convivência com os riscos na vida cotidiana, no âmbito da Psicologia
Social, possibilitou superar as abordagens individualistas tradicionalmente empregadas para
118
entender a maneira de lidar com o fenômeno na vida contemporânea. Portanto, esta pesquisa,
produzida por meio do compartilhamento de informações e de observações na Vila América,
contribui para dar visibilidade à problemática relacionada aos riscos de inundação nos termos
das dimensões desenvolvidas pelos moradores na dinâmica da vida cotidiana.
Não esgotamos aqui as múltiplas dimensões do risco, mas buscamos apresentar um
recorte da problemática sobre o olhar de alguns moradores da Vila América. Esperamos que
essas questões, somadas às discussões realizadas por nós nesta dissertação, abram novas
possibilidades de investigações, entre os quais destacamos o papel e atuação integrada e
articulada das políticas públicas existentes, na garantia dos direitos dos moradores, assim como,
na busca da solução dos problemas das inundações do município.
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127
APÊNDICE I - Informações sobre a ocorrência de desastres associados às chuvas no Estado
de São Paulo
DEFININDO DESASTRES
Os desastres fazem parte da história da humanidade. Muitas civilizações e cidades
desapareceram, soterradas por eventos naturais e muitas outras pela ação humana. As guerras,
que ceifaram vidas ou a interferência no ciclo natural do desenvolvimento ambiental levando à
iminência de um desastre, causando prejuízos ambientais, econômicos, sociais e psicológicos.
Nos dias atuais os desastres têm recorrência e impactos intensos e presentes no cotidiano das
pessoas atingidas diretamente ou indiretamente pelo evento.
No âmbito da Sociologia, Allan Lavell (1993) aponta que a definição de um desastre
não deve ser considerada a partir das características do evento, mas sim do impacto que causam
em um território caracterizado por uma estrutura social vulnerável. Em suma, os danos sofridos
por determinados grupos sociais, afetados em maior ou menor grau, estão ligados a vários níveis
de vulnerabilidade, que irão influenciar a realização e definição do desastre e seus impactos.
São eles: a localização e formas de construção das habitações, as unidades de produção e
infraestrutura; a relação estabelecida entre as pessoas e o seu ambiente físico e natural; os níveis
de pobreza ; os níveis de organização institucional, social e política; atitudes culturais ou
ideológicas.
Portanto, nas palavras do autor:
[...] um desastre é tanto, produção como resultado de processos sociais, históricos e
territorialmente circunscritos e conformados. Uma consequência importante desta
determinação é que um desastre não deveria ser considerado como um fenômeno
“anormal” no que se refere ao conteúdo ou impacto; mas apenas quanto à
irregularidade ou o espaçamento temporal da sua aparição em um determinado
território. Pelo contrário, deve ser vista como a realização de um determinado estado
de normalidade, como uma expressão do normal e as condições prevalecentes de uma
sociedade que opera sob circunstâncias extremas (LAVELL, 1993, P. 79, tradução
nossa16).
Compreender os desastres no contexto brasileiro, embasados nas discussões da
Sociologia dos Desastres, requer, segundo Roberto Luiz do Carmo (2014), um conhecimento
16 Original: un desastre es tanto producto como resultado de procesos sociales, histórica y territorialmente
circunscritos y conformados. Una consecuencia importante de esta determinación es que un desastre no debería
considerarse en sí como un fenómeno “anormal” en lo que se refiere a su contenido o impacto; sino solamente
encuanto a la irregularidad o espaciamiento temporal de su parición en uno territorio determinado. Más bien debe
ser visto como la concreción de un particular estado de normalidad, como una expresión de las condiciones
normales y prevalecientes de una sociedad operando bajo circunstancias extremas.
128
dos processos tanto em caráter multidimensional, quanto multicausal, enfatizando os riscos
históricos e socialmente determinados. É necessário ainda compreender a dinâmica
populacional deflagrada no processo de ocupação dos espaços que resulta em efeitos que
potencializam os problemas de segurança humana e acentuam a ocorrência de desastres.
Para o autor, o país vem enfrentando atualmente processos sociais de urbanização
acelerada e não planejada, marcados pela concentração da população em áreas urbanas, e pela
presença de uma dinâmica social e econômica com implicações para as relações sociais. No
Brasil, a urbanização não foi apenas resultado do desenvolvimento econômico ou do processo
de industrialização. A relação entre esses dois fatores gerou uma distribuição desigual de
ganhos e de custos sociais e ambientais para a população.
Ainda na perspectiva da Sociologia dos Desastres, Norma Valencio (2010) define
desastres como: “os acontecimentos sociais trágicos, referenciados no espaço e no tempo, cuja
eclosão reflete e, ao mesmo tempo, recrudesce as tensões no interior e entre as esferas privadas
e públicas” (p. 318). Portanto, os desastres devem ser entendidos como resultantes de inúmeras
“falhas na constituição política do conjunto de atores que produzem e compartilham os projetos
em torno de prevenção, preparação, resposta e reconstrução” (p. 320).
No campo da Psicologia Social, Ângela Coelho (2011) define desastre como fenômenos
humanos, sociais, complexos e multidimensionais que causam morte, sofrimento e perdas
econômicas, causando uma destruição severa que excede a capacidade de a comunidade afetada
recuperar-se.
Para a autora, os desastres não devem ser vistos como naturais, mas considerados como
eventos eminentemente humanos e sociais, pois manter a qualidade de naturais gera a sensação
de que o mundo é desta forma e nada pode ser feito. O significado de todo evento é uma
interação complexa entre o desastre, o passado e o presente da pessoa, bem como o seu contexto
social.
Sandra Assis-Silva (2012) buscou coletar subsídios para propor uma atuação preventiva
com enfoque coletivo no momento pré-desastre, enfatizando, nos termos da Psicologia Social
Sócio-Histórica, a condição de sujeito dos destinatários da ação de psicólogos com moradores
em áreas de risco. Ao discutir o conceito de desastre, a autora aponta que na discussão do termo
há uma profusão de interpretações que contribuem para que se observem os diversos aspectos
humanos e sociais do problema, sendo o mais relevante, o entendimento de que é um problema
social e estrutural.
Buscando uma definição do conceito de desastre no âmbito da Psicologia, a Comissão
Nacional das Emergências e Desastres do Conselho Federal de Psicologia (CFP) propõe no II
129
módulo do Curso: Psicologia da Gestão Integral de Riscos e Desastres, do Orientapsi,
ministrado por Ionara Rabelo, a seguinte conceituação:
Para a psicologia a conceituação de um evento como desastre depende da perspectiva
daquele que o nomeia e do lugar que ele ocupa nessa interação com o evento. Assim,
o conceito de desastre é utilizado para nomear muitos eventos e/ou processos com
características distintas. Parte-se da compreensão do desastre como uma ruptura do
funcionamento habitual de um sistema ou comunidade devido aos impactos no bem-
estar físico, social, psíquico econômico e ambiental de uma determinada localidade.
Tal evento afeta um grande número de pessoas, ocasionando destruição estrutural e/ou
material significativa e altera a geografia humana provocando desorganização social
pela destruição ou alteração de redes de funcionais. Os desastres podem provocar
medo, horror, sensação de impotência, confrontação com a destruição, com o caos,
com a própria morte e de outrem, bem como, perturbação aguda em crenças, valores
e significados. Para haver um desastre é necessária a combinação de um conjunto de
fatores, ameaças, exposição, condições de vulnerabilidade e insuficiente gestão
integral de riscos. O desastre deve ser compreendido, vinculado ao contexto no qual
ele ocorre, ou seja, é necessário considerar as dimensões sócio político culturais de
vulnerabilidade, capacidade, exposição de pessoas e bens, características e percepções
dos riscos e meio ambiente (RABELO, 2016).
Em âmbito mundial, conforme a Estratégia Internacional para a Redução de Desastres
(EIRD, 2015), desastre é o resultado de eventos que provocam intensas alterações na sociedade,
gerando riscos às pessoas, aos bens materiais e ao meio ambiente:
Desastre é uma séria interrupção do funcionamento de uma comunidade ou sociedade
que causa perdas humanas e/ou importantes perdas materiais, econômicas ou
ambientais; que excedem a capacidade da comunidade ou sociedade afetada de lidar
com a situação utilizando seus processos de risco. Resulta da combinação de ameaças,
condições de vulnerabilidade e insuficiente capacidade ou medidas para reduzir as
consequências negativas e potenciais do risco (EIRD, 2015, p. 8-9).
Quanto à Política Nacional de Proteção e Defesa Civil17, quando procuramos a definição
de desastres, encontramos nos documentos oficiais produzidos pelo Estado brasileiro (leis,
decretos, etc.), duas descrições que, apesar do conteúdo distinto, compartilham de uma mesma
lógica de raciocínio: são ferramentas decorrentes do uso de cálculos probabilísticos.
Num primeiro caso, encontramos a definição de desastre como “o resultado de eventos
adversos, naturais ou provocados pelo homem, sobre um ecossistema vulnerável, causando
danos humanos, materiais e/ou ambientais e consequentes prejuízos econômicos e sociais”
(Decreto nº 7.257 de 04 de agosto de 2010). No outro documento, mais recente, a Instrução
Normativa n. 1, de 24 de agosto de 2012, do Ministério da Integração Nacional (que estabelece
17 Defesa Civil é conceituada segundo a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil como “Conjunto de
ações preventivas, de socorro, assistenciais e recuperativas, destinadas a evitar desastres, a minimizar seus
impactos para a população e a restabelecer a normalidade social” (CEPED/UFSC, 2014, p 28).
130
os critérios para a decretação de situação de emergência ou estado de calamidade pública em
municípios e estados), os desastres são definidos como:
[...] o resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem sobre um
cenário vulnerável, causando grave perturbação ao funcionamento de uma
comunidade ou sociedade envolvendo extensivas perdas e danos humanos, materiais,
econômicos ou ambientais, que excede a sua capacidade de lidar com o problema
usando meios próprios (INSTRUÇÃO NORMATIVA N° 1 DE 24 DE AGOSTO DE
2012).
Nesse novo documento, a definição agrega os termos “cenário vulnerável” e a expressão
“capacidade de lidar com o problema usando meios próprios”, isso como uma forma de se
adequar à definição mundial da Estratégia Internacional para a Redução de Desastres. Portanto,
o impacto dos desastres pode causar danos à sociedade, sejam eles pessoais, sociais,
econômicos ou ambientais. Não é a intensidade do evento que determina o desastre, mas sim
as suas consequências em termos de danos18 (humanos, ambientais e materiais) e prejuízos19
(sociais e econômicos).
Segundo Lídia Tominaga (2015) para que um evento seja considerado um desastre é
necessário a ocorrência de pelo menos um dos seguintes critérios adotados no relatório
Estatístico Anual do Emergency Disaster Data Base (EM-DAT): a) 10 ou mais óbitos; b) 100
ou mais pessoas afetadas; c) declaração de estado de emergência; d) pedido de auxílio
internacional.
Existem ainda quatro critérios de classificação dos desastres: quanto à intensidade, à
evolução, à periodicidade e à origem:
Em relação à intensidade, os desastres são classificados em dois níveis, que obedecem
a critérios baseados na relação entre a necessidade de recursos para reestabelecer a situação de
normalidade e a disponibilidade desses, na área afetada e nos diferentes níveis do Sistema
Nacional de Proteção e Defesa Civil (SINPDEC)20:
a) Nível I – desastres de média intensidade que ensejam a decretação de situação de
emergência21:
18 Dano é o resultado das perdas humanas, materiais ou ambientais infligidas às pessoas, comunidades,
instituições, instalações e os ecossistemas, como consequência de um desastre (INSTRUÇÃO NORMATIVA N°
1 DE 24 DE AGOSTO DE 2012, p 30). 19 Prejuízo é a medida de perda relacionada com o valor econômico, social e patrimonial de um
determinado bem em circunstâncias de desastre (INSTRUÇÃO NORMATIVA N° 1 DE 24 DE AGOSTO DE
2012, p 30). 20 O SINPDEC atua na redução de desastres em todo território nacional (BRASIL, 2007). 21 Situação de emergência é a situação de alteração intensa e grave das condições de normalidade em um
determinado município, estado ou região, decretada em situação de desastre, comprometendo parcialmente sua
capacidade de resposta (INSTRUÇÃO NORMATIVA N° 1 DE 24 DE AGOSTO DE 2012, p 30).
131
São desastres de nível I aqueles em que os danos e prejuízos são suportáveis e
superáveis pelos governos locais e a situação de normalidade pode ser restabelecida
com os recursos mobilizados em nível local ou complementados com o aporte de
recursos estaduais e federais (INSTRUÇÃO NORMATIVA N° 1 DE 24 DE
AGOSTO DE 2012).
b) Nível II – desastres de grande intensidade que ensejam a decretação de estado de
calamidade pública22
São desastres de nível II aqueles em que os danos e prejuízos são suportáveis e
superáveis pelos governos locais e a situação de normalidade pode ser restabelecida
com os recursos mobilizados em nível local ou complementados com o aporte de
recursos estaduais e federais (INSTRUÇÃO NORMATIVA N° 1 DE 24 DE
AGOSTO DE 2012).
Quanto à evolução, os desastres são classificados em dois níveis:
a) Desastres súbitos ou de evolução aguda:
São desastres súbitos ou de evolução aguda os que se caracterizam pela velocidade
com que o processo evolui e pela violência dos eventos adversos causadores dos
mesmos, podendo ocorrer de forma inesperada e surpreendente ou ter características
cíclicas e sazonais, sendo assim facilmente previsíveis (INSTRUÇÃO NORMATIVA
N° 1 DE 24 DE AGOSTO DE 2012).
b) Desastres graduais ou de evolução crônica “são os que se caracterizam por
evoluírem em etapas de agravamento progressivo” (INSTRUÇÃO NORMATIVA
N° 1 DE 24 DE AGOSTO DE 2012).
Os desastres quanto à periodicidade, são classificados em: “a) esporádicos – aqueles
que ocorrem raramente com possibilidade limitada de previsão, e b) cíclicos ou sazonais –
aqueles que ocorrem periodicamente e guardam relação com as estações do ano e os fenômenos
associados” (INSTRUÇÃO NORMATIVA N° 1 DE 24 DE AGOSTO DE 2012).
Buscando adequar a classificação brasileira com as das demais instituições de gestão de
desastres no mundo, a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil passou a adotar a
classificação dos desastres relacionados à origem ou causa primária do agente causador, a
constante do Banco de Dados Internacional de Desastres (EM-DAT), do Centro para Pesquisa
sobre Epidemiologia de Desastres (CRED) da Organização Mundial de Saúde (OMS/ONU) e
a simbologia correspondente, classificando-os em:
22 Estado de calamidade pública é a situação de alteração intensa e grave das condições de normalidade
em um determinado município, estado ou região, decretada em relação de desastre, comprometendo
substancialmente sua capacidade de resposta (INSTRUÇÃO NORMATIVA N° 1 DE 24 DE AGOSTO DE 2012,
p 30).
132
c) Naturais:
São desastres naturais aqueles causados por processos ou fenômenos naturais que
podem implicar em perdas humanas ou outros impactos à saúde, danos ao meio
ambiente, à propriedade, interrupção dos serviços e distúrbios sociais e econômicos.
[...] sua categorização é definida como geológicos, hidrológicos, meteorológicos,
climatológicos e biológicos (INSTRUÇÃO NORMATIVA N° 1 DE 24 DE AGOSTO
DE 2012).
d) Tecnológicos:
São desastres tecnológicos aqueles originados de condições tecnológicas ou
industriais, incluindo acidentes, procedimentos perigosos, falhas na infraestrutura ou
atividades humanas específicas, que podem implicar em perdas humanas ou outros
impactos à saúde, danos ao meio ambiente, à propriedade, interrupção dos serviços e
distúrbios sociais e econômicos [...] Se categoriza como relacionados a substâncias
radioativas, produtos perigosos, incêndios urbanos, e transporte de passageiros e
cargas não perigosas (INSTRUÇÃO NORMATIVA N° 1 DE 24 DE AGOSTO DE
2012).
De modo geral, tanto no âmbito mundial, quanto nacional, os desastres são o resultado
de eventos que provocam muitas alterações sociais, colocando em risco a vida das pessoas e do
meio ambiente. Percebemos ainda que existem fatores relacionados aos desastres, como
ameaças e vulnerabilidades, que são os meios pelos quais as pessoas estão mais ou menos
expostas, ou determinam a ocorrência ou não do evento.
A Estratégia Internacional para a Redução de Desastres apresenta o conceito de ameaça,
como:
Evento físico, potencialmente prejudicial, fenômeno e/ou atividade humana que pode
causar a morte e/ou lesões, danos materiais, interrupção de atividade social e
econômica ou degradação ambiental. Isso inclui condições latentes que podem levar
a futuras ameaças ou perigos, as quais podem ter diferentes origens: natural
(geológico, hidrometeorológico, biológico) ou antrópico (degradação ambiental e
ameaças tecnológicas). As ameaças podem ser individuais, combinadas ou
sequenciais em sua origem e efeitos. Cada uma delas se caracteriza por sua
localização, magnitude ou intensidade, frequência e probabilidade (EIRD, 2015, p. 2).
No documento brasileiro, “Glossário de Defesa Civil, Estudos de Riscos e Medicina de
Desastres”, encontramos duas sugestões de definição de ameaça:
Ameaça é: 1. Risco imediato de desastre. Prenúncio ou indício de um evento
desastroso. Evento adverso provocador de desastre, quando ainda potencial.
2. Estimativa da ocorrência e magnitude de um evento adverso, expressa em
termos de probabilidade estatística de concretização do evento (ou acidente)
e da provável magnitude de sua manifestação (BRASIL, 2015, p. 18).
133
Nas duas definições, o conceito de ameaça é considerado um disparador, a probabilidade
de algo danoso acontecer para a sociedade, podendo ser potencialmente prejudicial se estiver
direcionado a populações ou cenários vulneráveis.
A distinção entre ameaças naturais e desastres nos possibilita compreender que os
desastres são na maior parte das vezes produzidos pelas ações do ser humano. Seguindo essas
definições, a classificação dos desastres quanto a sua origem, não se percebe nada de natural
nesse evento, a natureza é responsável pelas ameaças, e o ser humano ajuda a criar o desastre.
Ainda assim, a exposição não ocorre do mesmo modo em todos os lugares e para todas
as pessoas. A combinação de processos sociais com mudanças ambientais resulta na propensão
de determinados grupos sociais para uma condição de vulnerabilidade socioambiental.
O conceito de desastres coloca questões a serem analisadas tendo em vista a relação
causal ou natural, estando intrínseca aos eventos sua qualificação como naturais ou como
causados pela própria ação humana. Desse modo, os desastres são processos que evidenciam
uma série de problemas estruturais brasileiros, ou seja, há uma série de questões políticas,
econômicas e sociais que não dão conta de atuar nos desastres, nem tão pouco lidar com as
ameaças naturais.
As definições de desastres apontadas, mesmo não sendo totalmente coincidentes ou
concordes entre si, até porque nem sempre enfatizam os mesmos aspectos ou adotam os mesmos
enfoques, revelam-se como fenômenos complexos e multidimensionais que causam morte,
sofrimento, perdas emocionais e econômicas.
Dentre os inúmeros desastres que afetam a vida das pessoas no Brasil, principalmente nos
grandes centros urbanos, as inundações aparecem de forma cada vez mais frequente e intensa,
afetando de modo mais severo determinados grupos populacionais e espaços geográficos mais
vulneráveis, sendo esse o principal motivo pelo qual as escolhemos como foco dessa
dissertação.
SOBRE A OCORRÊNCIA DE CHUVAS NO ESTADO DE SÃO PAULO
Será apresentado um conjunto de dados obtidos no Atlas Brasileiro dos Desastres
Naturais 1991-2012, volume São Paulo, publicado pelo Centro Universitário de Estudos e
Pesquisas sobre Desastres da Universidade Federal de Santa Catarina em cooperação com a
Secretaria Nacional de Defesa Civil (CEPED-UFSC, 2013).
134
Importante ressaltar que os números apresentados estão relacionados apenas às áreas de
risco mapeadas e monitoradas no Estado e sabemos que, em função de um processo de
urbanização desordenado no país, muitos afetados pelos eventos deixam de ser considerados
por não constar no mapeamento. Outro fato relevante é que os dados se referem apenas aos
registros oficiais de inundações excepcionais caracterizadas como desastres conforme critérios
apontados anteriormente.
Conforme mencionado anteriormente, a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil
classifica os desastres em duas categorias: os naturais e os tecnológicos. Os desastres naturais
podem ser provocados por diversos fenômenos, tais como, inundações, escorregamentos,
erosão, terremotos, tornados, furacões, tempestades, estiagens, entre outros. Além da
intensidade dos fenômenos naturais, o acelerado processo de urbanização no país levou ao
crescimento das cidades, muitas vezes em áreas impróprias à ocupação, aumentando as
situações de perigo e de risco a desastres naturais.
As inundações que atingem a Vila América frequentemente compõem a categoria dos
desastres naturais e estão inseridos no grupo dos hidrológicos, que englobam também as
enxurradas e os alagamentos, segundo a nova Classificação e Codificação Brasileira de
Desastres (COBRADE), tais desastres são conceituados como:
Submersão de áreas fora dos limites normais de um curso de água em zonas que
normalmente não se encontram submersas. O transbordamento ocorre de modo
gradual, geralmente ocasionado por chuvas prolongadas em áreas de planície
(CEPED-UFSC, 2013).
135
Figura 1: Perfil esquemático do processo de enchente e inundação
Fonte: Ministério das Cidades, Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo – IPT, 2007.
Nas inundações ocorre o transbordamento de água da calha normal de rios, mares, lagos
e açudes, ou acúmulo de água por drenagem deficiente, e a forma como evoluem as classificam
como: enchentes ou inundações graduais, enxurradas ou inundações bruscas, alagamentos e
inundações litorâneas (BRASIL, 2014).
Além de inundação e enchente, existem também os conceitos de alagamento e
enxurrada. Seguem conceituações de acordo com o Ministério das Cidades/IPT (2007):
As enchentes e inundações representam um dos principais tipos de desastres naturais
que afligem constantemente diversas comunidades, sejam áreas rurais ou metropolitanas. Esses
fenômenos de natureza hidrometeorológica fazem parte da dinâmica natural e ocorrem
frequentemente deflagrados por chuvas rápidas e fortes, chuvas intensas de longa duração,
degelo nas montanhas e outros eventos climáticos tais como furacões e tornados, sendo
intensificados pelas alterações ambientais e intervenções urbanas produzidas pelas pessoas,
como a impermeabilização do solo, retificação dos cursos d’água e redução no escoamento dos
canais devido a obras ou por assoreamento (MINISTÉRIO DAS CIDADES/IPT, 2007).
Segundo Lídia Tominaga (2015) no Brasil, os principais fenômenos relacionados a
desastres naturais são derivados da dinâmica externa da Terra, tais como, inundações e
enchentes, escorregamentos de solos e/ou rochas e tempestades. Esses fenômenos ocorrem
normalmente associados a eventos pluviométricos intensos e prolongados, nos períodos
chuvosos.
Tomando como base o Relatório Estatístico Anual do Emergency Disaster Data Base
(EM-DAT) sobre desastres de 2007, a autora relata que o Brasil se encontra entre os países mais
136
atingidos do mundo por inundações e enchentes, e que esse dado se reflete por todo o Estado
de São Paulo, sendo a região metropolitana a que tem tido o maior número de óbitos em
consequência desses eventos, provavelmente devido ao adensamento populacional, com um
grande número de núcleos habitacionais ocupando terrenos marginais de cursos d’água.
Os dados publicados no Atlas Brasileiro dos Desastres Naturais 1991-2012 indicam que
os registros de ocorrências de desastres praticamente quintuplicaram nos últimos dez anos no
Estado de São Paulo, considerando um total de 1427 registros oficiais de desastres naturais
ocorridos entre 1991 e 2012.
Gráfico 1: Total de registros de desastres coletados no período de 1991 a 2012
Fonte: CEPED-UFSC, 2013
Mostram, também, a ocorrência dos seguintes eventos adversos: estiagem e seca,
movimentos de massa, erosões, alagamentos, enxurradas, inundações, granizo, vendavais,
incêndios e geadas. E que, dos 645 municípios do Estado de São Paulo, 425 foram atingidos ao
menos uma vez por algum dos tipos de desastres citados.
Vale ressaltar que as práticas de registro dos eventos classificados como desastres se
aprimorou nos últimos tempos. Mais especificamente no Estado de São Paulo, a Coordenadoria
Estadual de Defesa Civil (CEDEC) iniciou no ano de 2000 a organização dos dados de
atendimentos efetuados durante as Operações de Verão, implantada anualmente, e que ocorre
nos meses de dezembro, janeiro, fevereiro e março (TOMINAGA, 2015). Desse modo, sugerir
156 6
35
16 21
3
150
44
62
25
101
206
244
278
0
50
100
150
200
250
300
137
que os desastres vêm aumentando significativamente, desconsidera o fato que os desastres
fazem parte da história.
De acordo com os registros, os eventos adversos que apresentam os maiores números
de registros no Estado são: enxurrada, inundação, movimentos de massa, vendaval, estiagem e
seca e alagamento. Sendo que, inundações e enxurradas, que estão diretamente relacionados ao
aumento das precipitações pluviométricas, são os que estão entre os desastres mais frequentes.
Juntos, estes fenômenos somam 831 registros e equivalem a 68% dos registros de eventos
adversos do Estado de São Paulo:
Gráfico 2: Percentual dos desastres naturais mais recorrentes no Estado de São Paulo, no período de 1991 a 2012
Fonte: CEPED-UFSC, 2013
Além dos efeitos adversos atrelados a estes fenômenos, as enxurradas e inundações
muitas vezes ocorrem associadas a vendavais e também podem desencadear outros eventos,
que potencializam o efeito destruidor do desastre e aumentam os danos causados.
O Governo Federal realizou um levantamento para selecionar com base em critérios
específicos, tais como: recorrência de deslizamento, inundações, enxurradas, desabamentos,
número de óbitos, desabrigados e desalojados, registrados nos últimos 20 anos, os municípios
prioritários para receber ações visando à redução de desastres naturais. Desse levantamento
criou-se uma lista com 821 municípios, sendo que, no Estado de São Paulo, foram selecionadas
89 cidades, dentre elas Santo André.
8%
12%
8%
41%
17%
10%
4%
Estiagens e Secas Movimento de Massa Alagamentos Enxurradas
Inundação Vendaval Outros
138
Outro dado é que dos 645 municípios do Estado de São Paulo, segundo dados do Atlas
Brasileiro dos Desastres Naturais 1991-2012, em 141 constam ocorrências de inundação, dentre
eles Santo André, computando, no Estado, 238 registros oficiais de inundações excepcionais
caracterizadas como desastre, entre os anos de 1991 e 2012, ocorridas mais especificamente
nos meses de verão, que é a estação chuvosa. Mais de 300 mil pessoas foram afetadas ao longo
dos anos de 1991 e 2012, sendo registrados, oficialmente, 16 mortos, 109 feridos, 1521
enfermos, 7864 desabrigados, 38508 desalojados e 6423 pessoas atingidas por outros tipos de
danos:
Gráfico 3: Frequência anual de desastres por inundações no Estado de São Paulo no período de 1991 a 2012
Fonte: CEPED-UFSC, 2013
Como mencionado no início deste capítulo, os dados apresentados se referem aos
registros oficiais de inundações excepcionais caracterizadas como desastres, conforme critérios
objetivos adotados no relatório Estatístico Anual do EM-DAT. Dos números apresentados no
gráfico, Santo André aparece como um dos municípios afetados nos anos de 2004 e 2011.
Apresentaremos abaixo os dados disponibilizados no Relatório Pós-Chuvas pelo Centro de
Referência do Semasa de Santo André.
9
1
7
1 1
7
34
8
24
28
6569
0
10
20
30
40
50
60
70
80
139
Gráfico 4: frequência anual de inundações no município de Santo André do período de 2008 a 2014
Fonte: Relatório Pós-Chuvas do Centro de Referência – Semasa, 2015
Esse gráfico demostra que embora a cidade de Santo André conste nos registros oficiais
de inundações excepcionais caracterizadas como desastres apenas nos anos de 2004 e 2011,
isso não significa que não sofra frequentemente com as inundações no município e que esses
eventos ocorridos por precipitações prolongadas podem originar consequências negativas para
as comunidades, causando diversos danos.
De acordo com informações obtidas no Atlas, a recorrência dessas tipologias de
desastres não é proveniente apenas de fatores climáticos e meteorológicos, mas também do
resultado de um conjunto de elementos naturais ou antrópicos, como a falta de planejamento
nas cidades, que frequentemente resulta na ocupação de áreas de risco e com a total carência de
infraestrutura (CEPED-UFSC, 2013).
Realizando uma análise sobre as possíveis causas para os fenômenos acima citados
serem os de maior proporção no Estado, o Atlas atribui isso à ocorrência ao desenvolvimento
urbano que o Estado apresenta. A água, que anteriormente infiltrava no solo, com a urbanização
passa a escoar pelas tubulações pluviais aumentando o escoamento superficial do volume que
escoava de modo lento pela superfície do solo e ficava retido nas plantas, de tal maneira que
exige maior capacidade de escoamento. Esses eventos passaram a causar maiores danos à
população na medida em que, durante os anos, há registros confirmados e caracterizados como
desastres (CEPED-UFSC, 2013).
1 1 1 1 1
4
1
0
0,5
1
1,5
2
2,5
3
3,5
4
4,5
2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014
140
No entanto, vale ressaltar, esses resultados são frutos de informações referentes a dados
registrados oficialmente, conquanto se perceba que muitos eventos ocorridos, não somente no
Estado de São Paulo, mas em todo Brasil, não são confirmados oficialmente, assim como,
muitos outros erroneamente não são considerados desastres.
Como visto no capítulo anterior, o processo de urbanização da população brasileira não
aconteceu de maneira planejada e com equidade do espaço urbano, pois houve uma
concentração nas áreas urbanas, sem que houvesse o desenvolvimento de um espaço urbano
capaz de suprir as necessidades desse adensamento demográfico.
Com isso, evidenciamos que a recorrência dessas tipologias de desastres, classificados
como naturais, não é causado apenas por fatores climáticos e meteorológicos, mas também
como resultado de processos sociais, econômicos e culturais em desenvolvimento, constituindo
assim territórios críticos e vulneráveis (ORGANIZAÇÃO PANAMERICANA DA SAÚDE,
2014).
Ao nos aproximarmos dessa temática percebemos as fragilidades e a precariedade das
ações e políticas públicas em nosso país, sendo que apenas recentemente, em 10 de abril de
2012, aprovou-se a lei, que institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC)
e autoriza a criação do sistema de informações e monitoramento de desastres: a Lei nº 12.608.
141
APÊNDICE II – Termo de consentimento livre e esclarecido
CARTA DE INFORMAÇÃO SOBRE PESQUISA
Você está convidado a participar da pesquisa “Os sentidos dos riscos de desastres
associados às chuvas: um estudo com moradores da Vila América – Santo André/SP” (título
provisório), realizada por Sandra Luzia Assis da Silva, aluna do curso de mestrado do Programa
de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, sob orientação da Prof. Dra. Mary Jane Paris Spink. O objetivo dessa pesquisa é
contribuir para ampliar a compreensão sobre a questão da moradia, de pessoas que convivem
com inundações recorrentes em área de risco. Ao aceitar fazer parte desta pesquisa, você será
convidado (a) a participar de entrevistas sobre o assunto, que serão gravadas (áudio) de modo
a facilitar o registro das informações pela pesquisadora. A pesquisadora compromete-se e
assegura que:
a) A aceitação não implica que você estará obrigado (a) a participar, podendo
interromper sua participação a qualquer momento, mesmo que já tenha iniciado,
bastando, para tanto, comunicar à pesquisadora;
b) Os riscos da participação são mínimos, mas caso ocorram quaisquer
constrangimentos ou desconfortos estaremos disponíveis para dar o apoio que
o/a participante necessitar;
c) A sua participação é voluntária, neste caso não forneceremos quaisquer formas
de remuneração;
d) Na apresentação da pesquisa para a comunidade científica seu nome será
substituído por um pseudônimo de modo a garantir seu anonimato.
e) Você é livre para concordar ou não com este termo.
142
Eu, _____________________________________________________, após leitura de
CARTA DE INFORMAÇÃO SOBRE PESQUISA (acima), ciente da utilização do conteúdo
dos registros das entrevistas para pesquisa científica, não restando qualquer dúvida a respeito
do que foi lido e explicado a respeito desta pesquisa, permito que a entrevista seja gravada e
transcrita, sendo garantido o sigilo dos meus dados de identificação. Declaro estar ciente de que
estou autorizado (a) a encerrar minha participação no trabalho a qualquer momento que julgar
necessário sem sofrer qualquer tipo de penalidade.
O presente termo é assinado em duas vias, ficando uma em seu poder.
Santo André, __ de ____________ de 2016
_____________________________ ___________________________________
Participante Sandra Luzia Assis da Silva (Pesquisadora)
Telefone: (11) 98620-4288
143
APÊNDICE III - Termo de autorização de uso de imagem
Eu,__________________________________________, CPF__________________,
RG_______________________, depois de conhecer e entender os objetivos,
procedimentos metodológicos, riscos e benefícios da pesquisa, especificados no Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), AUTORIZO, por meio deste termo, a
pesquisadora SANDRA LUZIA ASSIS DA SILVA, responsável pelo projeto intitulado “Os
sentidos dos riscos de desastres associados às chuvas: um estudo com moradores da Vila
América – Santo André/SP” (título provisório), a realizar e/ou utilizar as fotos que se façam
necessárias, sem quaisquer ônus financeiros para nenhuma das partes.
Ao mesmo tempo, libero a utilização dessas fotos para fins científicos e de estudos
(livros, artigos, slides e transparências), em favor do pesquisador da investigação acima
especificada.
Local e data:___________________________, ______ de ____________ de 2016.
_________________________________ ________________________________
Participante da pesquisa Pesquisadora responsável pelo projeto
144
APÊNDICE IV - Exemplos de mapas dialógicos
SÍNTESE DA CATEGORIA TEMÁTICA RISCOS
Temas W N
chuva/alagamento/in
undação/enchente/ág
ua
L11 - W: porque você fala que aqui dá 2m de água, esse lugar? É um
centro, perto de um shopping, só que esse pedacinho aqui é abandonado,
são, acho que 88 famílias que está nessa condição.
L13 - W: era 55 famílias, e depois aumentou, porque a água está subindo,
sobe aqui nessa rua que é subida e vai dar quase em 6 ou 8 casas para
cima, e eu aqui, a pior parte é aqui e aquela rua onde o japonês mora, que
dá 2m, 2m e pouco.
L18 - W: Contato com o barro a gente tem 5 a 6 vezes no ano quando
dava enchente, porque tinha ano que dava 5 a 6 enchentes no ano, já teve
vezes de dar uma enchente e menos de 24h dá uma enchente de novo.
L164 - W: Agora, passar 5 a 6 enchentes em um ano não é brincadeira,
teve um fevereiro que deu 4. Quatro enchentes e fora os dias que você
fica, toda vez que escurece e dá trovão, a gente fica com medo.
L79 - W: É, porque a gente já está acostumado a 5 ou 6 enchentes a água
entrar um palmo na minha casa, eu já estou conformada. Para mim isso é
melhor, antes isso do que cair tudo. No começo eu chorei porque entrou
um palmo de água na minha casa. A primeira vez que deu queria ir
embora, fiquei 40 dias longe, mas depois minha mãe falou: o que você
vai fazer? Vai voltar para minha casa? Eu falei não, vou voltar para minha
casa então. Fiquei 40 dias, abandonei minha casa, eu não queria voltar
porque o susto foi demais, eu nunca tinha visto aquilo. Só que com o
tempo você vai ficando calejada, hoje entrar um palmo eu já estou até
L138 - N: Mas não pode encher 2,20m, isso daí é um absurdo e fica de 4
a 5 horas. Eu estou batendo nessa tecla, hoje ficamos de 4 a 5 horas
debaixo de àgua. 2,20m até chegar ao nível da rua demora 4 a 5 horas
para escoar, isso é um absurdo. Pode dar um alagamento quando dá cheia
e tal, você pode ver, em todo lugar dá um alagamento, mas não dá 2,20m
e ficar 4 a 5 horas debaixo da agua, mas aqui acontece isso.
L69 - N: Mesmo se eles fizerem o dreno vai resolver o problema das
enchentes? Não vai, vai diminuir e vai ficar, na minha opinião, a nível
aceitável e o que é nível aceitável? É um alagamento de meio metro e
com rápida escoação. Escoando a água com tempo menor, vai ter menos
sujeira, menos uma série de coisas, menos prejuízo. A gente sabe que
aqui é um lugar baixo, todo lugar de alagamento é alagamento, mas não
um absurdo como o que acontece nesse bairro aqui de dar 2m, 2m e meio
que cobre meu muro. Você pode ver, se você tirar uma fotografia aqui
você vai ver o risco da marca da água aqui, é o nível, o risco fica na
parede, então dá 1,90m aqui dentro de casa e lá fora cobre o muro de
2,20m. Lá pra lá, do outro lado ali no final da rua dá uns 3m, já teve
pessoal que quer passar inadvertidamente sem querer ou querer forçar
passar o carro, veio aqui quase que cai aqui dentro, aí dá uma tragédia ai
pessoas perde a vida bestamente, porque a pessoa não sabe que aqui é um
buraco, na pista está mais alto, você pode ver a pista, mas se cair aqui a
correnteza vem e dança. Quase que uma vez aconteceu uma tragédia, mas
graças a Deus ainda não aconteceu uma aqui, mas em outros lugares já
aconteceu, você pode ver nas televisões ai, olha deu uma enchente e a
145
contente. Para você ver a situação que a gente vai vivendo; um palmo
está bom. Quando chove tenho que erguer geladeira, cama, pois entra
água de esgoto na minha casa, de tudo que é feito em um banheiro e em
uma cozinha. Isso é o que entra na minha casa, eu morria de nojo disso,
tenho nojo disso ainda, tanto que eu e joguei tudo fora, tudo o que tem
aqui eu comprei de novo. Joguei panela, joguei roupa, fiquei com a roupa
do corpo porque pegou tudo, tudo, tudo o que você imagina. Imagina,
veio água quase no meu estômago aqui dentro, da minha vizinha veio na
testa, já teve casa de os bombeiros virem aqui e tirar a pessoa pelo teto,
bebê recém-nascido, tirar assim. Olha, mesmo assim ninguém faz nada.
L117 - W: Parece que na hora que começa a chover já vem tudo, imagina
passar por tudo aquilo de novo! E graças a Deus ninguém morreu, porque
a água me pegou na hora em que a tomada saiu e eu gritei e sai correndo,
aí meu marido e minha filha já estavam na porta aqui, meu filho nem fica,
porque ele tem medo, então a água me pegou e a porta bateu nas costas,
e se me tranca aqui dentro?
L121 - W: E além do prejuízo, eu falo que se algum dia eu sair daqui,
nunca mais vou ser a mesma pessoa. Onde eu vou eu já sei que dá
enchente, eu falo aqui dá enchente, e eu nunca tinha visto isto, só por
televisão.
L124 - W: Até os bichinhos que a gente tinha em casa tinha medo. O da
minha vizinha aqui quando começa a chover ele chora, ele fica apavorado
quando ela não está em casa, ele tem medo porque ele sabe que a dona
dele tem medo de chuva. Uma vez o cachorro da vizinha avisou a gente
que estava dando enchente. Onze e pouco o cachorro começou a berrar,
berrar e berrar, e ela falou: mas porque esse cachorro está chorando?
Quando ela olhou, estava, a água estava voltando. Porque a gente achou
que onze e pouco não era hora de dar enchente, sempre dá mais tarde,
mas aquele dia estava um dia chuvoso!
L125 - P: Onze e pouco da manhã?
mulher passou direto e caiu no córrego, bom, a mulher não tá sabendo, o
cara a pessoa que está usando o carro não tá sabendo que tem um córrego
ali, então a gente fica meio temeroso, a gente fica pensando na tragédia
que não aconteça.
L185 - N: E justamente acontece em época de verão que é uma temporada
que a turma sempre sai. Tem seus compromissos, tanto sociais como
profissionais também, ou senão geralmente nessa época do ano, final de
ano, está, tem escolas, tem eventos, uma série de eventos para participar
porque é verão, uma temporada boa para fazer os eventos e a gente às
vezes fica privado de sair.
146
L126 - W: Sim. Tirei meu menino pequeno da cama onze e pouco da
manhã, e ele foi comer dez e pouco da noite, criança pequena. E se o
cachorro não vê? Porque tem que tirar carro, tirar tudo, eu não deixo carro
na garagem. Enquanto você está deitada na sua cama dormindo, enquanto
está chovendo forte, a gente está na rua, está todo mundo nas ruas,
ninguém dorme, tem pavor.
L127 - P: Você havia comentado antes que o cachorro da vizinha da
frente morreu.
L128 - W: Não, ele enfiou a barriga na lança na enchente de 2011. Ela
pôs ele em cima da casa térrea, que está até vazia, ela pôs os dois
cachorros em cima, ele apavorou, ficou assustado e pulou dentro da água.
Aí ele foi tentar passar porque viu que estava muito fundo, tentou passar
pela grade do portão e enfiou a lança na barriga, não sei como! Nessa
hora caiu o meu muro aqui, eu corri para dentro e fiquei com aquela
imagem do cachorro berrando, achei que o bichinho tinha morrido. Aí
depois contaram que ela chamou o bombeiro, mas ele mesmo saiu da
lança, ela levou ele no veterinário e ele viveu ainda, conseguiu salvar o
bichinho. Mas até os bichinhos sofrem, que nem mereciam, porque não
sabem nem o que está acontecendo.
L130 - W: Eu tinha tudo, mas agora eu não viajo. Desde 1997 eu não saio
em final de ano, de dezembro a abril ninguém sai daqui. Se você está no
banco e dá um trovão, você larga conta para pagar e volta para casa, está
no mercado volta também. A vida da gente muda, eu trabalho agora das
17h às 22h, mas na época de enchente, eu trabalho das 10h às 14h, eu
mudo minha vida, todo mundo tem que se adaptar com isso. A gente não
sai, não arruma emprego longe, ninguém pode trabalhar, porque o que a
gente vai fazer, vai perder tudo todo ano? Vai ficar sem uma cama para
dormir? Porque não é baixo, minha casa que acho que tem 1m acima do
nível da rua, na minha casa, a água dá aqui no estômago se não tiver
comporta. As outras casas aqui dão na testa, então não é uma aguinha
pouca.
147
L133 - W: Eu de dieta tive um furúnculo e fiquei com ele por 1 ano, isso
aconteceu porque eu peguei enchente de dieta. Com 40 dias que eu tinha
ganhado neném, teve uma enchente e a minha filha de 10 anos ficou
segurando meu filho pequeno e eu fiquei segurando o portão, a gente
ficava amarrando ele para ele não cair porque ele vem para dentro né.
Aqui em casa todo mundo teve problema de saúde por causa das
enchentes, eu tive esse furúnculo e tenho cistos, meu marido hérnia e
minha filha tirou a coluna do lugar. Na verdade, já nem sei mais quantos
problemas de saúde tivemos.
L170 - W: Eu tinha que fazer cirurgia e não fiz, o meu marido tinha duas
hérnias e ainda teve que esperar porque os exames saíram perto da época
de enchente, então ele pediu para esperar o outro ano para operar, porque
como ele ia ficar em recuperação dentro de casa dando enchente? E se a
gente precisa travar comporta e erguer tudo?
Eu, olha o peso dessa mesa? Eu ergo até sem ver, eu carrego a mesa para
um canto para colocar as coisas em cima. Minha cama é muito pesada,
virou em cima do meu braço, por isso que eu estou com cisto, tenho que
tratar, fazer cirurgia. Fazer cirurgia como? Imagina uma criança de 10
anos tirar 9 vértebras da coluna, coitadinha. Ela tinha 10 anos, eu estava
de dieta, eu erguia a cama. Ela pôs o criado, eu joguei outra coisa em
cima e a cama virou, e, para não cair em cima de mim, ela segurou.
Porque ela sabia que eu estava de dieta, com cirurgia recente e o
pequenininho aqui dentro, dentro do carrinho. Aí depois que a gente
ergueu tudo, ela levou o menino para cima, o menino de três meses.
L171 - W: E todo mundo tem medo, minha família chora, minha irmã
quando se casou e mudou para o interior, quando chovia lá ela começava
a ficar apavorada mesmo minha mãe dizendo: mas aqui não vem água.
Eu tenho medo de chuva, eu tenho medo, é um trauma, o psicológico aqui
nesse lugar não é brincadeira não. A gente tem muito medo de água, a
gente tem até medo do que pode acontecer, não é só de perder as coisas,
mas também do que pode acontecer.
148
Córrego L21 - W: Construíram a avenida mais alta, porque ela não era mais alta.
Aí quando chove forte, é intempérie da natureza. Mas todos falam que
Deus que é culpado, não, é a mão do homem que construiu o rio, que
ergueu a pista e canalizou o rio, e deu documentação para a gente
construir aqui.
L27 - W: Aí quando a gente participou do orçamento participativo e
pediu obras no rio Guarará.
L28 - W: Pedimos no rio Guarará porque a gente sabe que ele é o
problema, por que? Porque ele chega ali e afunila, ele vem grande, vem
a galeria afunilada, o funil se você jogar muita água ele vaza, aí do lado
do Carrefour o rio é estreito, mas como que não dá enchente dentro do
Carrefour e dá na gente aqui? Porque ele afunila lá, chega lá a água chega
menos, então a gente queria isso aqui.
L50- N: Antigamente tinha uns córregos, aí taparam tudo e aterraram
tudo, e fizeram, o próprio Carrefour tem 1m e meio de altura lá, aterraram
lá, porque? O Carrefour ali, antigamente era uma fundição, era
antigamente caminhões internacionais
L51- P: E tinha o córrego que passava em frente?
L52 - N: Tinha não, o córrego é o mesmo, é esse córrego aqui, só que não
estava fechado.
L53 - P: Sim, só que antigamente não estava fechado, estava aberto?
L54 - N: Antigamente não estava fechado, estava todo aberto, então fazia
um serpenteamento no córrego, ele entrava, olha só, ele entrava uma
parte no Aramaçan, fazia o lago e voltava.
L58 - N: Isso aí fazia lá e era bonito, era bonito (risos) então serpenteava
aqui, serpenteava aqui, do outro lado, no estádio Bruno Daniel também,
fazia uns negócios. Quando fizeram o estádio Bruno Daniel tinhas as
lagoas lá, então aterraram lá também, aqui também. Na Nicolau Manoel
Barros tinha uns, não sei se você conhece taboa, aquelas plantas aquáticas
que subiam do brejo, estava aí e era um brejo, mas o que fizeram?
Aterraram tudo, estreitaram e deixaram um negócio reto, o córrego. Mas
a velocidade que vem a água da lá de cima, da Vila Luzita até aqui,
quando chega aqui, tem uma parede, dá uma trombada, o que acontece?
Sobe, transborda e chega aqui na gente.
L59 - N: Ao invés de fazer um dreno, ou um cano de escoamento, não,
fizeram isso aí nesse projeto. Isso daí é uma coisa lamentável, pois
levantaram a pista da Perimetral, que é a av. Santos Dumont aqui,
levantaram 1 metro 1 metro e pouco, por que? Porque antigamente dava
alagamento, mas assim mesmo, quando enche transborda e passa para o
outro lado e fica intransitável ali, fica uma coisa que cobre o carro
também.
149
L78 - N: porque é uma bacia aqui o Guarará e vai até, daqui vai até no
topo da represa lá no final da represa, no Jardim Santo André, é famosa
por uma série de coisas, Jardim Santo André lá em cima, lá no Jardim
Irene, daquele lá pra cá cai toda a água, quer dizer se você subir essa
Avenida Queirós Filho que começa aqui e vai lá em cima, vai até Jardim
Santo André, depois desce e tal, e pegando a avenida, Rua das Hortênsias,
Vila Helena, vai até a Avenida São Bernardo, naquele topo da Avenida
São Bernardo, toda a água desse lado cai tudo aqui, então é uma coisa
enorme, então, de uma forma ou de outra cai aqui, por que? Porque se
subir rua das hortênsias Vila Helena e tal cai para cá e é grande, você
deve conhecer por ali,
L88 - N: Vila Luzita, Parque João Ramalho, Vila João Ramalho, lá em
cima cai tudo aqui, então o que que está acontecendo? Está
impermeabilizando mais ainda por causa dos prédios.
L89 - N: Eu não sou contra os prédios, eu tô querendo, tem que ser feito
um projeto de segurar a água lá também, mas não tem nenhum projeto,
aliás, projeto tem, mas de boas intenções, mas ninguém faz. Então o que
que fizeram? Ah, vamos fazer o córrego correr mais. Então colocaram o
córrego para ficar o mais liso possível, colocaram as pedras, fizeram a
concretagem lá. Não sei, mas se água corre com mais velocidade e vai
dar mais tempo pra escoar, quando a água chega aqui e bate aqui no
paredão, aqui e o rio lá já encheu, então dá o retorno, realmente dá o
refluxo. Mas se tiver uma galeria maior dá menos refluxo ou senão deixar
aberto, aí ele vai fluir por toda a praça aqui embaixo, então vai diminuir
a altura. Mas eles não aceitam fazer isso, porque já fizeram um negócio
de canalização.
L90 - N: Ou senão, olha só, não quero prejudicar ninguém, mas então
canaliza tudo, não fica só a canalização na altura da 24 de Maio, na pista
para a gente aqui, vai até lá em cima, aí sabe o que vai acontecer? Vai
diminuir toda a água para todo mundo, vai molhar todo mundo, por que?
150
L91 - P; Vai ter uma quantidade menor de agua, só que para todo mundo?
L92 - N: Porque vai espalhar, vai diminuir porque não vai dar 2m e meio
aqui, vai dar tempo de a água escoar, quer dizer, ele vai alagar, se tá
canalizado tudo, vai sair água para algum lugar ou vai vir por cima, mas
vai espalhar por toda região.
Obras/Piscinão/Drena
gem/Ponte
L20 - W: E o que eu acho que piorou na nossa vida, eles falam que não,
mas foi o piscinão, porque a avenida ali é mais alta, já é porque
construíram a avenida mais alta, porque ela não era mais alta.
L29 - W: E aí como eles são engenheiros e são estudados, porque eles
acham que porque são estudados, mas eles não convivem aqui.
L30 – W: Fizeram o piscinão e o que acontece? O piscinão não é, não tira
a água do rio, primeiro o rio vaza e cai na nossa rua, depois vai pro
piscinão a água do rio quando transborda. Aí o piscinão joga no próprio
rio, três bombas, de novo no próprio rio, do rio passando de novo ali
fechado na galeria.
L31 – W: Aí a gente disse: isso vai funcionar? Vai, vai, a gente é
engenheiro, só que pergunta para eles, vai lá e faz com eles o quanto entra
de água e o quanto sai?
L32 - Antigamente a enchente, do mesmo jeito que o rio vinha com tudo
e vazava aqui na nossa rua, em 2h a gente estava sem água, agora o que
acontece, 5 ou 6h, fala para mim se não piorou o piscinão?
L12 - N: Eu participei das reuniões para fazer esse piscinão da Vila
América, mas eu não concordei que fizesse desse lado. Mas o atual, que
era o superintendente do Semasa, que é o atual hoje, nós fizemos reuniões
muitas vezes no ano 2000, eu falei olha, esse piscinão não vai dar certo.
Essas reuniões para fazer esse piscinão (risos), foram muitas brigas para
fazer, quer dizer muitas discussões, brigas no sentido de palavras, assim,
de discussões do que tinha que fazer, o que tinha que ser melhor.
L15 - N: Ultimamente fizeram esse piscinão que não vale nada também.
Eles optaram por fazer o piscinão desse lado da pista, não deveria,
deveria ter feito o piscinão do outro lado da pista, debaixo do viaduto,
porque aí daria folga da gente. Não é que não haveria enchente é que a
nossa enchente aqui dá 2m e meio, cobre o muro eu fico 4 a 5 horas
debaixo da água. Prevendo isso, eu falei olha não vai resolver porque a
água vem por cima da pista da Capitão Mário, da marginal Guarará aqui.
Vem por cima e não é a chuva que cai aqui na Vila América que vai dar
toda essa inundação é a água que vem lá de cima da Vila Luzita, de toda
a bacia do Guarará que enche aqui, então não vai ser suficiente porque
quando enche vira uma bacia aqui e sem ralo. Fizeram o piscinão, fizeram
com as bombas elétricas tudo, mas não fizeram, quando enche total,
quando dá essa enchente toda não tem uma forma de vazão, quer dizer,
deveria ter uma comporta mecânica que abrisse e ia embora, tipo
mecânica.
L16 - P: Há quanto tempo mais ou menos dá enchente de 2m de altura
aqui?
L17 - N: Ah, isso aí é desde 2000 que fechou aí.
151
L18 - P: Depois do piscinão?
L19 - N: Isso, depois do piscinão está dando isso aí com um tempo de
duração da enchente, 4 a 5h.
L73- N: O que a gente pede? Pra fazer uma melhoria pro bairro, essa
drenagem, fazer um cano pra escoar a água daqui e do outro lado,
L94 - N: Agora, pra nós que vivermos aqui a turma fala assim, tem que
melhorar a situação da drenagem, então toda a construção deveria ter um
local para armazenar agua, mas isso não está ocorrendo, tem os projetos
mas isso não está ocorrendo. Você faz um prédio e não tem lugar pra
fazer isso porque cai a água e vai embora. Eles fazem a galeria bonita do
lado da casa, da rua, do entorno, mas onde vai cair essa água? Vai cair no
córrego, entende! O córrego deveria ter a largura das avenidas. Mas
porque eles fizeram não fizeram isso? O que eles fizeram com o córrego?
Em uma parte, estreitaram o córrego e fizeram a pista do lado e em outra,
aterraram e fizeram a pista por cima. Mas deveria ter feito o contrário,
deveria ter feito as galerias embaixo das pistas aí, aí resolveria grande
parte.
L98 - N: se fizer uma galeria debaixo dessa pista toda, faz de um lado só,
resolve o problema, porque o que vai segurar é um piscinão na pista, não
precisa fazer um piscinão em uma área, reservar uma área pra fazer. Faz
a pista toda com galeria isso daí deveria ter feito antes; não fizeram, mas
deveria ter feito aos poucos, ou diferente, vamos supor estou aqui há vinte
anos, se fizesse uma parte, um lado só durante esses vinte anos, já teria
resolvido, ou se não tivesse resolvido, teria diminuído bastante esse
problema.
Casa/Moradia L1- W: É assim, depois de 8 anos de casada eu comprei essa casa aqui,
eu comprei em setembro. Comprei a casa, gastei tudo o que tinha e que
não tinha para reformar a casa, e 40 dias depois eu descobri que dava
enchente, no dia do aniversário da minha filha de 7 anos. Tinha um monte
de gente aqui em casa, e eu ainda só não tirei a comporta porque, eu falei,
L118 - N: aqui é um local ótimo para a gente ficar vivendo, está próximo
de tudo. Só que nós temos esse problema, quando chove muito enche de
agua aqui. Então é, a vida da gente aqui é meio temerária quando chega
a época de verão, mas fora isso aqui temos, a vizinhança é ótima, são
tudo pessoas que vivem há muito tempo aqui, gostam daqui porque o
152
olha que portão feio, eu não conhecia o que era comporta, olha que portão
feio, então eu não tirei a comporta porque o dinheiro acabou, porque a
casa estava muito destruída. Eu até falei, olha que pessoal relaxado, e
hoje comigo está destruída de novo, porque a gente vai perdendo o gosto
pela casa. Depois eu fui saber, tinha um muro remendado ali, porque
tinha dado uma enchente, tinha caído e a pessoa que morava aqui tentou
segurar a mesa, porque a pessoa se apega no que ela tem e aí cortou a
mão dela, ficou com a mão cortada e teve que dar ponto, então eles
desgostaram e venderam a casa. Só que eu não tenho coragem de vender
a casa e desfazer o sonho de uma pessoa também, eu vou vender, eu vou
falar e ninguém vai querer comprar.
L2 - P: Quando você comprou foi direto com o proprietário?
L3 - W: Comprei contrato de gaveta, porque eu trabalho por conta e
nosso país também não dá, não dava crédito para eu conseguir comprar
uma casa, comprei em contrato de gaveta e continuei pagando as
prestações dele que tinha e ainda tenho dívidas. Eu estou brigando com
o banco.
L4 - P: Então essa casa, com o antigo proprietário, era financiada?
L5 - W: Isso, e já não podia ser financiada aqui né.
L6 - P: Foi financiada por qual banco?
L7 - W: Pelo Itaú, e eu estou brigando na justiça por essa casa, porque a
prestação era muito alta, e quando eu terminei de pagar em 1998, era R$
806,00 e passou para R$ 1250,00 o resíduo, e é R$ 47.000,00, então, põe
aí R$ 1250,00, 60 prestações, eu geraria resíduo de novo, uma casa
impagável. Então eu estou aqui, não posso reformar, porque se eu
reformar, uma que a Prefeitura não deixa, eles falam que não pode subir
a casa, e eu moro em área de risco e eles não deixam fazer nova
construção.
local é de fácil acesso a tudo aqui, só que tem isso daí, o único problema
é a nossa enchente.
L130 - P: O senhor tem comporta aqui?
L131 - N: Não tem, já coloquei mas caiu
L132 - P: Então o senhor deixa a água entrar livremente
L133 - N: É logico, 2,20m do muro cobrir você tem que ter uma armação,
estrutura de concreto que nem uma piscina, tem que fazer uma muralha
aí, não é qualquer muro que vai segurar 2,20m de agua com a pressão que
tem. Então a área aí tem 10 a 11m de frente e 20 de fundo, como você vai
ficar segurando, você explode o muro.
L134 - P: 10m de frente e 20m de fundo a propriedade do senhor tem?
L135 - N: É, então o portão que tinha ali, que tá meio caído, caiu e caiu
um poste ali. Porque que caiu? Porque o portão não é comporta, é uma
cantoneira de 20 polegadas, para quem sabe uma cantoneira de 20
polegadas é cantoneira de fazer comporta mesmo (risos). Caiu o portão
inteiro, saiu a pilastra, a mureta, caiu tudo, rancou embaixo. Por que?
Porque tem que ter estrutura e num terreno que é baixo, tem que ter uma
tremenda estrutura para segurar isso e não é qualquer coisa. Mas caiu e
está sem o portão, tá só com a folha só para tampar, para dizer que tem
propriedade fechada, se não estaria aberto. Diante disso a Prefeitura nada
faz, mas nem material de construção traz aqui quando cai as coisas, então
deixa aí, eu estou vendo isso aí, tô vendo se vou aumentar as coisas, fazer
uma laje, alguma coisa aí para fazer uma estruturação melhor.
153
L19 - W: E antes quando na minha casa tinha móveis, a gente demora
quase 20 minutos para erguer a casa inteira, erguia tudo e com isso as
coisas foram acabando. Eu tenho um cisto e meu marido tem hérnia, mas
temos que erguer a geladeira para cima, quer dizer, essa é outra, uma eu
comprei e outra eu ganhei, porque eu perdi tudo, a casa em 2011 foi tudo
embora. Caiu o muro do vizinho e a parede da minha sala. A água quase
pegou eu aqui dentro, cobriu a pia da cozinha, pegou a metade da porta
do fogão que estava em cima da... sobrou nada, fiquei com a roupa do
corpo, sem água, porque aí acabou a água.
L23 - W: A comporta quem paga sou eu, já é a segunda comporta que eu
tenho, eu tenho bomba que eu ligo aqui, eu tenho válvula de retenção no
esgoto e na água de chuva que eu fecho, porque senão volta pela pia da
cozinha. Quando der o nível da rua lá na pia da cozinha vaza tudo e eu
só não perdi antes as coisas, porque eu, se eu soubesse que aquela parede
ia cair, eu tinha feito outra parede lá com um monte de coluna, porque
desse outro lado aqui eu fiz, eu gastei uma grana, peguei dinheiro do
cartão de crédito para fazer para não perder tudo, lutei tantos anos para
em 2011 chegar e cair.
L41 - W: A minha casa agora não dá mais, agora foi para o solo da casa
está ruim, o cara falou, a sua sala é perigosa, e você para onde sair? Eu
disse não. Então não vou tirar você daqui porque sua casa é térrea, porque
se fosse sobrado você teria que sair. Aí eu fiquei aqui e a sala está lá.
L73 - W: Você imagina destruindo sua casa assim, tudo que você tem
está dentro da sua casa, eu perdi minhas lembranças que ninguém vai
devolver, ninguém vai devolver minha vida passada, minhas fotos, fita
de formatura do pré da minha filha, foto. Minha filha estava para casar,
quase o casamento da minha filha não saiu, eu vendi meu carro para
poder pagar a festa da minha filha, porque ela tinha que ter a festa dela.
Mesmo com o que aconteceu eu disse, não vou deixar afetar a vida dela.
L72 - O psicológico de todo mundo aqui é afetado, além do bolso né, eu
não me recuperei mais depois de 2011. Pode passar o tempo que for que
154
eu nunca mais serei a mesma pessoa, perdi muita coisa que não volta
mais, um passado de lembranças, coisas da infância dos meus filhos. Para
onde quer que eu for carregarei as marcas das enchentes.
L88 - A gente já desanimou, já estou desanimada já, cansou de lutar, a
gente está cada um lutando com sua vida para ver se a gente consegue
sair daqui. Mas comprar uma casa da noite para o dia não é fácil, ainda
mais com a situação que está agora.
L92 - W: Você olha isso aqui, parece uma cidade fantasma, um monte de
casa abandonada já, porque quem tem condição vai embora, mas eu não
vou dar um pulo maior do que minha perna, porque eu já tomei esse
baque em 2011, eu trabalho aqui, perdi maquinário, perdi tudo. Eu vou
pagar aluguel como? Uma casa igual a essa, quanto é um aluguel de uma
casa igual a essa?
L118 – W: Porque é uma loucura segurar a água como a gente faz, o certo
seria deixar entrar. Está acabando com a casa mais ainda segurar, porque
a água fica em uma pressão, você não tem noção, o chão, as paredes, nem
sei explicar, parece que você sente a pressão da casa. A minha casa fica
toda cheia, daqui, aqui, ali, atrás. Às vezes, se as casas dos vizinhos
entram, e aí o que aconteceu: uma comporta caiu, e foi um efeito sanfona
por causa de uma comporta mal feita. Caiu a da vizinha porque não
aguentou e aí foi caindo de todo mundo, só que a minha, a hora que bateu
na minha comporta, ela aguentou. Só que bateu na da minha vizinha e ela
não aguentou, então minha parede lateral caiu, e foi a de muitas casas que
caiu. Ninguém pode com a água, o peso da água você não tem noção, a
comporta entorta, embarriga, comporta faz barulho, ela começa a ranger,
vem para dentro, assim (gesto). A gente já não sabe mais o que faz.
L122 - W: Quarenta dias depois que eu comprei minha casa aqui, toda
feliz que saí dos três cômodos da casa da minha sogra embaixo e vim
para essa “casona”, que eu descobri que dava enchente. Sorte que tinha
gente em casa, o meu irmão que ajudou, porque eu não sabia o que fazer,
eu só sentei e chorei. Eu era aquela pessoa que minha casa era um brinco,
155
muito enjoada com a casa. E hoje vivo desse jeito! Todo dia é assim,
minha casa cheirando bolor. Vivo com roupa na mala porque toda vez
que ameaça enchente eu coloco tudo dentro do carro, com medo de ficar
sem roupa de novo, e levo o carro para as ruas de cima que não dão
enchente. Eu tinha um monte de coisa, louça e um monte de coisa, mas
agora tenho o que está lá. Eu uso a metade do que eu tenho, nem sei o
que eu tenho. Roupa uso sempre a mesma porque o resto está sempre em
mala. Às vezes eu tiro e lavo o que está amarelando, e é desse jeito.
L123 - W: Minha filha morava comigo e teve que ir embora. Depois que
ela casou ficou um tempo aqui mas teve que ir embora porque eu falei:
filha, você pode ficar aqui até novembro mas depois você tem que ir
embora, porque virá enchente e os móveis que seu marido comprou,
porque ele morava no interior e veio embora e trouxe tudo para cá, vai
estragar tudo. Até isso, tudo afeta, afeta visita, afeta família, afeta meus
passeios, eu não saio no período das chuvas, nem adianta me chamarem
para nada, nunca mais soube o que era viajar. Minha mãe mora no interior
e viu uma vez um helicóptero aqui pela TV e ligou apavorada, minha
irmã grávida quando caiu tudo, a gente não sabia como contar para ela o
que tinha acontecido, ela passou mal, afeta a família inteira, é um ciclo.
L132 - W: Aqui é grande, são dois quartos, sala, cozinha e um banheiro,
só que são muito grandes. Acho que tem 200 e poucos m² o terreno, sendo
100 m² e pouco de construção. Tem a parte da gráfica do meu marido lá
no fundo, que é lá que a gente tem medo de pegar água, lá não pode, os
computadores mesmo, ficam lá em cima. E aquela salona lá está
abandonada, não posso ter nada. Isso aqui (móveis da cozinha), foi
presente, o pessoal foi me dando porque fui perdendo tudo, minha, tudo
o que eu tinha de 21 anos de casada foi embora.
L169 - W: Mas não tem nada mesmo, não tem nem vontade de ter.
Imagina você morar, não ter uma casa arrumada, panela dentro de caixa,
porque na hora que tem que erguer, tudo tem que erguer. Agora, eu ergo
bem alto, antes eu erguia assim (gesto), agora tem que erguer bem alto
para não perder, pelo menos para fazer a comida porque eu já fiquei sem
156
panela para comer. Tive comida porque eu levanto bem alto, porque a
parte debaixo do armário não tem nada, porque eu morro de nojo do
armário. Meu guarda-roupa eu tenho nojo dele, se eu fechar as portas ele
fede, esse já é outro guarda-roupa, já não sei quantos móveis eu perdi
aqui dentro, porque móveis não foram feitos para pegar água. Quem que
aguentaria erguer um guarda-roupa? Você imagina ter que erguer um
guarda-roupa com maleiro? Toda vez que dá enchente eu tenho que lavar
o guarda-roupa na parte de baixo. Tinha vez que eu via que a enchente
passou e aí eu pegava o guarda-roupa, tirava toda a roupa e colocava para
fora, isso uma vez por ano. Eu até brinco, não varre embaixo do guarda-
roupa não, não vai arrastar móveis não, porque quando a enchente vier a
gente é obrigada a arrastar mesmo e a limpar.
L172 - W: Só que eu não saio também, deixar toda vez a minha casa
sozinha. Se eu estou aqui dentro eu vou erguendo, mas esse dia não teve
jeito (2011), tive azar que caiu, perdeu tudo. Tinha bastante coisa que já
estava erguido, você não pode deixar sapato no chão, em dia de chuva
tudo fica erguido, nada fica no chão.
L174 – W: E minha família gostava, minha casa era a que o pessoal mais
gostava de vir, mudou minha vida em tudo. O resto da minha família
mora em apartamento ou casinha pequena, e eu tinha uma casa enorme,
em casa era sempre a reunião de família, era aqui.
Vizinhança L112 - W: Os próprios vizinhos daqui acham que eu e minha vizinha,
porque a gente trabalhou muito porque a gente era interesseira. Se
reformássemos a casa era porque a Prefeitura deu ou algum político. Mas
não é, ninguém nunca deu nada para gente; ao contrário, a gente tirava
dinheiro do nosso bolso para ir trabalhar voluntário. Para você ver, lá a
gente não era bem vista, vamos dizer assim, por trabalhar e morar em
local de enchente e brigar com eles. Aqui a gente é puxa-saco, e por Deus,
a gente só tentava fazer as coisas para o bem de todos. Porque se eu fizer
alguma coisa para mim os meus vizinhos também vão usufruir disso.
Então lá a gente era as cricris que brigava, e aqui as puxa-saco. Tudo o
L182 - N: A vizinhança é boa, o relacionamento é bom, todo mundo olha
a vizinhança. Não tenho queixa nenhuma, tanto é que nem os outros
devem ter queixas da gente, nós temos nossas virtudes e os nossos
defeitos, nós podemos tanto achar ruim como achar bom. Isso aí, nós
somos seres humanos, somos emotivos, tem uma série de coisas, isso daí
tem que levar tudo em consideração. Às vezes a pessoa pode olhar feio,
pode olhar bem humorado, às vezes o cara não levantou bem (risos).
Tudo isso daí é normal, o relacionamento da gente é normal; não tem
problema nenhum, não vai mudar isso daí o relacionamento das pessoas
daqui, simplesmente que chega numa época de cheia que todo mundo
157
que a gente fazia aqui achavam que a gente ganhou da Prefeitura ou de
um político, ganhou areia, ganhou bloco, e não é assim.
L135 - W: E a gente só não perde mais, porque a gente, nós, nós temos
um esquema já, e a gente tem que ajudar vizinho novo quando muda,
porque a gente avisa e a pessoa ri da cara da gente né, acha ruim, mas
quando acontece, tem que socorrer vizinho ainda.
L161 - W: O pessoal xinga, fica bravo com a gente, se a gente fala que
enche, fica bravo, depois, se dá enchente e não fala fica olhando para
gente de cara feia.
L162 - P: Você fala, as pessoas que ficam bravas são as que mudam para
cá?
L163 - W: É. A mulher que eu falei: olha, aqui dá enchente, a água passa
pela sua janela; é aluguel, se eu fosse você não morava aí. A mulher disse:
mas o aluguel está barato. Depois que encheu, ela disse chorando para
mim: eu falei, essa mulher é louca, acha que aqui dá enchente dessa
altura? Ela ficou com a roupa do corpo, a bolsa e o cachorro em cima do
negócio. Em outra casa aí, perdeu carro, perdeu tudo, tudo. E fomos nós
quem ajudamos ela a limpar o pouco que sobrou e a pegar as coisinhas
dela e ir embora. Porque a gente vai falar alguma coisa que não é? Eu
fico com dó, eu não quero que a pessoa passe pelo que eu passei, eu só
não vou embora porque eu não tenho para onde ir. Se eu morasse de
aluguel você acha que eu ia ficar aqui? Não ia, de jeito nenhum. Aí ela
perdeu tudo. A vizinha da frente está vendendo a casa. O meu marido, o
cara bateu aqui, perguntou da enchente. O meu marido falou, e ela veio
brigar com ele depois, você falou que minha casa dá enchente! Ele falou:
ué, ele bateu na minha porta e perguntou, e eu não vou falar? Depois ele
muda aí, e quem vai ficar vizinho dele sou eu. Eu falo, falo e mostro
ainda: vai na internet e coloca a rua aqui para você ver que não estou
falando mentira. Se você colocar, a minha casa está em um vídeo que o
vizinho gravou, ele colocou o vídeo que fez com o celular na hora, mas
é minha casa. E aquela enchente não foi a pior, não foi uma das mais
fica nervoso, todo mundo estressado. Dá uma chuva e todo mundo sai
fora aí e fala: ô alagou!
L183 - N: Às vezes chove aqui, não enche d’água, mas se choveu lá em
cima pode crê que vem e vem mesmo. Choveu 10 a 20 minutos de chuva
forte lá em cima e aqui continua chovendo e vai encher, aí quando para a
chuva lá depois de meia hora, a gente aqui está debaixo d’água ainda,
esse que é o problema. O pessoal construiu aí e melhorou? Melhorou,
mas não adianta construir, aumentar a altura da casa ou senão altura do
muro, você levanta a casa e sobe uma pilastra e tal, mas e depois quando
enche? Fica debaixo da água na rua, como você vai ficar saindo, não é?
Tem isso daí. A pessoa se livrou de ter um certo prejuízo, mas ela tá se
privando de sair, apesar que não acho que deve sair também (risos), mas
às vezes tem uma emergência, alguma coisa que aconteça dentro de casa,
que pode acontecer, às vezes o impossível acontece justo naquela hora e
tem uma emergência, vai fazer o que? Não pode sair, por isso não saiu
quando começa a chover, pois posso correr o risco de não conseguir
voltar para casa.
158
altas, a mais alta foi a de 2011, e o pessoal daqui falou que a de 1996, eu
comprei a casa em 1997, em 1996 tinha dado uma bem altona.
Desapropriação/Rem
oção
L83 - P: E em relação às casas, o que eles falam? Já falaram em remoção?
L84 - W: A gente pede remoção, eu acho que a gente deve ser indenizado
e retirado daqui, porque não tem jeito, eles mesmos já falaram: “lá não
tem jeito”. Se não tem jeito, tem que retirar a gente daqui ué! Como eles
tiram às vezes as pessoas de outros lugares? O nosso problema é que as
nossas casas aqui não são casas baratas, pelo IPTU, pelo local onde tá;
não são casas baratas. Se for pagar pelo valor das casas que vale aqui,
então são 88 casas, imagina o quanto dá! Porque nós aqui também já
desistimos, nós também achamos que tem que retirar, não tem o que
fazer, isso aqui já é um piscinão natural, se eles tirarem a gente daqui e
fizer um piscinão, para com a enchente em um monte de lugar.
L86 – W: Mas obra não adianta, vai gastar dinheiro, e daqui alguns anos
vai de novo, não tem o que fazer, porque a gente está abaixo do nível do
rio.
L 192 - P: E em relação a desapropriação, o que senhor acha?
L193 - N: Em relação à desapropriação, eu acho que eles não têm essa
viabilidade, por que a área aqui é muito assim, é uma área nobre, porque
está tudo próximo de tudo quanto é lugar. Você pode ir a pé para o centro
tranquilamente, 10 a 15 minutos você está no centro, tem toda a
infraestrutura, aqui tem próximo hospital, é próximo de grandes
supermercados, um dos melhores colégios que é o colégio São José está
próximo, o que, nem 500 metros daqui. Tem infraestrutura de escola, tem
tudo, tem a escola Moraes de Barros, tem o EMEI, o Carlos Drummond
de Andrade que é o EMEI próximo e que tem uma boa infraestrutura, tem
a escola Carlos de Campos, está tudo próximo, igreja tem tantas igrejas
evangélicas quanto cristã.
L194 - N: Tem um shoping novo aí que chegou aí porque eles viram que
é um local viável e tem um empreendimento grandioso aí também, além
de apartamentos, prédios comerciais, tudo, e isso aí futuramente vai ser
uma área bem valorizada.
L195 - N: E quanto à desapropriação, eu acho que deveria fazer uma
infraestrutura para diminuir esses alagamentos, porque não é viável, tem
tantos projetos que a Prefeitura fala, mas ninguém fala de desapropriação,
mas chega num ponto que fala não tem verba para isso, porque? Porque
a área é muito valorizada e não é certo ficar um piscinão numa área dessa,
a não ser que tenha uma intervenção de fazer um terminal rodoviário por
exemplo. Mas tem área que é a Praça 14 Bis aí, que é enorme, é só fazer
uma infraestrutura que não vai alagar também. É por isso que a gente
fala, fazendo as galerias, fazendo, mas subterrâneo, resolve? Resolve.
Também se melhorar a drenagem para o rio, logicamente o Rio
Tamanduateí também tem que melhorar, mas aí tem que fazer uma coisa
intercalada, mas fazer um projeto viável. Agora do jeito que está aqui, a
turma levanta uma parede lá para cima e enche de agua aqui, coloca mais
159
parede para encher mais de água aqui, então não é possível. Agora,
quanto à desapropriação eu não acho que é solução, não é a solução a
desapropriação do local, porque vai continuar enchendo e se vai encher
vai prejudicar a parte viária do município todo, a economia do município
gira em torno desse eixo aqui também, que é a Perimetral, que faz ligação
pra Mauá, e consequentemente pra Ribeirão Pires, então faz tudo, e tem
saída pro Rodoanel aqui em Mauá, então vai ser prejudicado todo o
comércio, toda a economia do município, e do pessoal que transita todo
aqui.
L198 - N: Então, quanto à desapropriação, não resolve o problema da
enchente não.
160
SÍNTESE DA CATEGORIA TEMÁTICA PODER PÚBLICO
Temas W N
Defesa
Civil/Semasa/NUPD
EC/Reunião de bairro
L48 - W: Por isso que agora, eles me chamam para fazer as coisas, e eu
não vou mais, agora vou cuidar da minha vida.
L49 - P: Por quanto tempo você trabalhou com eles?
L50 -W: Por 7 anos voluntária
L51 - P: O que você fazia nesse tempo, do que você participou?
L52 - W: Ah, de cadastro de área de risco.
L53 - P: Você os ajudava a fazer o cadastro das áreas de risco?
L54 - W: Isso, cadastro de área de risco com eles, fazia campanha na
nossa vila, a gente deu ideia de trocar o horário do lixo, a gente dava ideia
para eles, um monte de coisa a gente deu ideia. Levamos o Corpo de
Bombeiro e Eletropaulo nas escolas, a gente foi com eles nas escolas, a
escola que minha filha e a da vizinha estudavam. Era assim, era dia de
sábado, de domingo que a gente trabalhava, dia de semana não, mas ia
com eles de sábado e domingo fazer curso de primeiros socorros e um
monte de coisa.
L55 - P: Ainda tem esse trabalho aqui, alguém está participando?
L56 - W: Daqui da Vila não, a gente cansou, não foi mais, e a gente
também, sei lá, ganharam prêmio e a gente não ganhou nada com isso,
ganhou um prêmio e você pode consultar, foi por causa do NUPDEC,
tudo o que eles falavam a gente dava ideia, eu e minha vizinha era bem...,
eu acho que o local, onde as casas eram legalizadas, eram poucas pessoas
que iam, era diferente, eu e ela trabalhamos muito. Pedíamos doação nos
comércios, para ir nas escolas dar presentes para as crianças quando
terminasse os cursos, teve uma escola, não lembro o nome, mas aqui no
Antunes onde nossas filhas estudam a gente foi.
L71 - P: Tem algum tipo de ação sendo feita pela Defesa Civil, pela
Assistência Social ou da Saúde com vocês, o pessoal vem aqui conversar
com você para além das obras?
L72 - N: Olha, é, a Defesa Civil sempre participa, vem aqui dá uma
orientação e a gente também, tivemos um curso aí, fizemos reunião de
bairro, mas já desistimos, por quê? Porque já cansamos de ficar, não quer
prejudicar ninguém, tanto a Defesa Civil são prestativos, pessoal da
drenagem que quer fazer alguma coisa, falam isso, mas não fazem, chega
num momento e não começam a fazer as coisas.
L110 - P: Quando, por exemplo, ocorre essa inundação, quando tem uma
chuva forte como ocorreu a de janeiro, tem algum outro tipo de ação fora
da Defesa Civil? Alguém vem fazer algum trabalho com vocês? O
pessoal da Saúde com vacinação ou o pessoal da Assistência Social?
Como funciona?
L111 - N: A defesa civil tem comparecido, mas a Saúde não aparece não,
nem para tomar uma vacina antitetânica, ou essas coisas contra
leptospirose, fazer um programa, isso não aparece não.
L112 - P: Nem a Assistência Social?
L113 - N: Olha, eu não vi, se passou não veio aqui, vem a Defesa Civil
porque a gente solicita, telefona para lá, olha sua enchente, faz um laudo
aqui, aí eles vêm. Para mim é específico eles vem porque eu telefono,
mas deve acontecer que a Defesa Civil faz um rastreamento, isso não
resta a menor dúvida, encheu a pessoa não precisa nem avisar, mas eu
peço para ter o laudo da Defesa Civil para ter o que aconteceu isso ou
aquilo.
161
L58 - P: E como foi depois que vocês pararam o trabalho voluntário?
Continuam ainda algumas bem feitorias aqui, como está?
L59 - W: Não, lavar eles veem, porque a gente faz, pode perguntar lá que
todo mundo conhece, eu e a minha vizinha aqui, é pecinha rara, a gente
pede, a gente exige, quer, e eles tem que fazer. Lavar se deixar eu quero
que vem no outro dia, porque tem que ser rápido. Mas é porque a gente
pede, e porque a gente conhece algumas pessoas, a Marcia a gente
conhece há muitos anos, mas cesta básica eles não querem dar.
L60 - W: Por sinceridade, eu pegava a cesta básica e doava, na verdade
eu queria que ficasse registrado que eu tinha sido atendida, e outra coisa,
para ter desconto no IPTU, ou na água, na hora da enchente você tem que
ter um número de protocolo, você vai pensar lá em alguém, na hora que
você está com a casa enchendo, ou depois na hora que eu quero limpar a
casa? Você tem que ligar para Defesa Civil, você tem que registrar que
você ligou para você ter desconto depois. É muita burocracia, é tudo
dificultando para você desistir né, pra deixar para lá, e teve um tempo
atrás, que veio a Defesa Civil de São Paulo aqui, não sei por que.
L89 – W: O antigo superintendente da Defesa Civil, o coronel falou:
vocês têm que sair de lá. Mas eu vou comprar uma casa como? Um carro
que a gente perde a gente compra fácil.
L90 - P: Mas ele falou para vocês saírem daqui e fazerem o que com a
casa?
L91 - W: Ele falou em off, ele falou: uma vez eu morava em um lugar
que dava enchente, mas quando eu cresci eu sai de lá. Eu falei para ele:
mas eu não tenho dinheiro para comprar outra casa, tudo o que eu tinha
eu dei lá e ainda estou brigando na justiça com banco ainda.
L93 - W: É isso que eles não veem, para eles da Defesa Civil é fácil, é
fácil. Quando eles deitam na cama, falei para eles várias vezes, na hora
que você deita, você vai lá, você entra na água de esgoto, água de merda,
mas quando você vai para sua casa, sua casa está limpa, sua cama está
L114 - N: Aí presta serviço, às vezes presta serviço! Às vezes a Defesa
Civil com o pessoal são, não tenho queixas nenhuma como pessoas, agora
como a Defesa Civil é muito precária
L119 - N: E a gente faz a reunião com o pessoal, promete muitas coisas
e não sai do papel, é isso, é o que acontece, boa vontade, como diz o
pessoal, o inferno tá cheio, então, é, a gente fica esperando que uma alma
boa aí que resolva o nosso problema, porque pensar em promessa dos
nossos governantes aí é meio complicado, todo mundo fala que vão
resolver, minimizar, mas não resolvem nada, até agora nada aconteceu,
então espero, porque a esperança é a última que morre né, que aconteça,
que resolva alguma coisa no sentido de melhoria
162
cheirosinha. Então para você é fácil, você sai de lá e esquece, não é como
a gente que está vivendo, entendeu? Eles falam: eu sei o que você está
sentindo! Mas não sabe, você não viveu isso, você não está aqui, você
vai embora para a sua casa, é outra coisa.
L102 - Agora sumiu todo mundo, sumiu Defesa Civil. Só querem que a
gente vai em curso e esses negócios, e eu não tenho tempo, não estou
mais interessada nisso, estou cansada, não quero mais fazer curso, já
cansei de trabalhar voluntária e não ver nada, só minha casa acabando e
meu dinheiro indo embora, e a gente nessa luta aqui.
L144 - P: Vocês não recebem o aviso do Semasa pelo SMS que avisa da
chuva?
L145 - W: Tem.
L146 - P: Como é esse aviso?
L147 - W: Eles mandam pelo celular.
L148 - P: Mas eles mandam em que momento?
L149 - W: Eles mandam antes de chover, mas eu acho que eles olham o
próprio CGE, o CGE a gente também olha, não é tão preciso. Antes de
vir, eles mandam mensagens no celular de quem tem cadastro. Antes eles
avisavam por telefone, tinha uma época que era por telefone também,
eles ligavam e avisavam que ia ter chuva forte. Mas nesse dia (2011),
ninguém sabia de nada não, não tinha esse aviso. Mas o aviso adianta
muito o que? Eu vou fazer o que? Eu vou morar em um barco, colocar
um barco no lugar onde moro?
Prefeitura/administra
dores/governo/poder
público
L82 - O Prefeito Carlos Grana prometeu, em uma das 7 promessas dele
para o ABC, que a gente estaria incluso nisso aí, mas até agora nada! Já
se passou mais da metade do primeiro mandato dele e ele não fez nada.
Prometeram que ia fazer um dreno no rio, no nosso piscinão, para ir direto
e não cair no rio, ir, mas cair mais para frente, mas também não fizeram
L10 - N: Só que entra um administrador, entra outro, e sempre aquela
mesma conversa que vão fazer umas melhorias, que vão fazer isso, que
vão fazer aquilo, e nada resolvido.
L68 - N: Olha, boa vontade do pessoal técnico eles tem, agora falta uma
vontade política na minha opinião. Se o chefe do executivo quiser fazer
163
nada, não chamaram mais a gente para a reunião. E está nessa, a gente
fica aqui abandonado, a gente se sente abandonado é só promessa só, não
fazem nada.
L85 - Então o que a gente pede é isso, agora o Prefeito disse que ia fazer
alguma coisa
L87 - Já passou metade do mandato dele e ele não fez nada, e ele vai ser
mais um que vai prometer e não vai fazer nada.
L95 - Todo ano eu chamo reportagem aqui do Diário para mostrar que o
Prefeito não está fazendo, já tem 2 anos, todo janeiro. Esse ano eu não
consegui chamar porque acho que a menina que vinha fazer entrevista
não está lá, mas se você procurar tem. Procura que é uma promessa do
Prefeito, na hora da promessa, na hora de ganhar voto. Está tudo aí,
ganhou voto e sai todo mundo fora. Eu quero ver agora, na próxima vez
que ele for se candidatar se ele vai lembrar do que ele não fez.
L96 - P: Vocês fizerem alguma ação cobrando o que ele prometeu?
L97 - W: Não, porque na época que, estávamos eu e minha vizinha se
juntando aqui para fazer uma ação, e foi quando ele veio aqui e prometeu
que ele ia fazer alguma coisa.
L98 - P: Isso antes dele ganhar?
L99 - W: Isso, ele ganhou e a Prefeitura entrou.
L100 - P: Depois ele veio aqui?
L101 - W: É, ele veio algumas vezes aqui, depois sumiu.
L176 - W: Mas não é fácil não e não vejo esperança, não vejo ninguém
fazer nada. Duvido que alguém vai fazer, ainda mais porque 88 casas não
elegem ninguém, né! Não é uma área grande que vai dar voto para
alguém. Eu sou sincera, eu falo isso, eu já falei até para eles. Lá eu sou
tida como chata porque eu falo mesmo, cobro, falo, e eles sabem.
isso, ele vai fazer, agora tem que negociar com outras pessoas também,
mas se ele quiser fazer ele faz essa intervenção que a gente pede para
fazer um dreno para lá, agora, vai resolver a enchente, o alagamento?
L70 - N: Então o poder público tem que ver nessa parte, agora se as vidas
forem ceifadas como dizem a turma assim, de repente por causa disso, eu
acho que falta responsabilidade do Poder Público, né?
L77 - N: O Poder Público fala, tem bom interesse tem boas intenções,
mas na minha opinião, de boas intenções não adianta, tem que agir e
executar obras que a gente precisa, agora não fazem e vai piorando,
porque? Fica construindo mais prédios, mais habitações lá na pista aqui
na Marginal senão no entorno em si.
L95 - N: Aí eles não fazem porque obras debaixo de galeria ninguém
aparece, é esse que é o problema, não dá visibilidade. A questão não é
econômica é política.
L99 -N: Mas eles não fazem, porque? Sempre falam da verba, da verba,
só que eles tomam essas verbas que tem para melhoria do entorno de um
condomínio, isso daí vem no projeto do condomínio, isso daí toda lei, pra
você fazer um condomínio, um prédio, basicamente a Prefeitura vai falar
que vai botar filetes aí, só que no entorno, no entorno do prédio tem que
ter melhoria, tem que ter uma adequação pra ter uma estrutura pra pessoa
viver em um condomínio, se continuar a mesma estrutura não vai ter
como a pessoa morar em um condomínio ou em um condomínio
comercial, tem que ter uma estrutura, então tem que fazer não só o prédio,
construir a melhoria a readequação do entorno, é o que fizeram aqui
também no shopping, fizeram só que não fizeram de acordo, fizeram pra
eles, mas não sei se resolveu também , entende, ali fizeram uma
drenagem para não soltar, não alagar a pista, mas continua alagando.
L145 - N: Isso daí é pra despoluir o rio Tietê, isso é outro projeto antigo,
esse projeto é de 92, que fizeram um projeto de saneamento e esgoto,
quer dizer, no córrego, então aqui desse meu lado aqui da pista, Capitão
164
Antigamente o Diário do Grande ABC nem falava isso, eles não queriam
fazer matéria, nem isso eles faziam, não sei como há 2 anos essa menina
que estava lá fazia, mas que saiu, porque nem isso saia. A gente sabe que
um pequenininho não consegue nada, o poder é deles né, eles que sabem
o que eles querem, eles estão no bem bom, não querem pensar na gente.
E é isso.
Mario de Toledo aqui, passa um cano, acho que de um 1,60m, não 1,60m
é do outro lado, a 5m abaixo, do outro lado, sabe a Capitão Mario ali,
onde está o Polícia Científica, naquele gramado ali do lado, vai até a Vila
Pires lá para baixo, tem um cano de, um tubo de 1,60 de diâmetro, e desse
lado tem 80cm, aqui tá a 3m de profundidade desse lado, do outro lado
tá 5 metros, pra dar queda logicamente, pra dar queda pra ir o esgoto para
lá e outro, há uns 2 anos atrás, fizeram a intersecção, fizeram um tubo,
fizeram uma galeria passando por baixo, assim dizem que estava parado
ali e tinha uns negócios (risos).
L146 - P: E como o senhor sabe dessas informações todas, desses canos
dessas obras?
L147 - N: Eu sei por que eu presenciei, eu estou aqui desde 89.
L148 - P: Ah, tá, o senhor acompanha todas as obras?
L149 - N: Eu estou aqui desde 89, então a gente sabe que tem um cano
lá, ai esse ano, esse ano não, o ano passado, teve uma intervenção aqui
no meio da pista aqui da Afonso Pena, fizeram umas casinhas e a empresa
fez com um tipo de um tatuzinho, fizeram alguma coisa assim, fizeram,
assim dizem eles também, porque eu também não entrei lá embaixo para
ver (risos) e é um tubo que está ligado do outro lado, fizeram um desse
lado na galeria desse lado e outro do outro lado, e cruzaram, para que
isso? Para fazer o esgoto ligado do outro lado para depois fazer a ligação,
não está funcionado ainda, esse negócio do esgoto não está funcionando,
estão fazendo a ligação, começou em 92 isso aí.
L178 - N: Então eu acho que o Poder Público é responsável por isso aí,
não só esse como os outros, os anteriores também. Há quanto tempo isto
está acontecendo? Deveriam ter olhado melhor essa situação, mas eles
não olham, eles olham para parte econômica da coisa, aí esquece das
outras coisas, como a parte humana e a social. Tudo isso daí vão deixando
para depois, depois eu vejo, mas depois não tem jeito, depois que foi feito
o concreto, assentou lá na frente não tem jeito.
165
Empresas privadas:
Carrefour,
Supermercado
Roldão e Shoping
Atrium
L65 - W: E o shopping, a gente acha que o shopping também. Esses dias
o rio vazou, que chuva que deu tanto para o rio vazar? Esses dias o rio,
não por cima, mas as bocas de lobo não estavam mais aguentando mais,
então começou a vazar e a gente já ficou desesperado, eu estava
trabalhando e vim “quebrando as pernas”.
L66 - P: Quantos anos o shopping está aqui?
L67 - W: Esse ai eu acho que fazem uns 2 anos, mas ele fez uma mega
construção aí, mexeu na rede de esgoto, em tudo. Quanto mais esgoto
ligar na gente pior.
L68 - P: Pelo o que eu vi, não é somente o shopping, é um condomínio,
é um complexo com vários prédios, é isso?
L69 - W: É isso mesmo, vai ter um monte de coisa maior, vai ter hotel,
vai ter salas comerciais e prédio do outro lado.
L70 - W: Aí eu descobri esses tempos atrás, fuçando, que a água de lá de
esgoto vem tudo para cá, para perto, para o lado do piscinão. Eles já
sabem que aqui dá enchente e ao invés de ligar para lá não, é aqui. A
gente fuça em tudo né. Mas então está aqui desse jeito, a casa está do
jeito que você está vendo, a gente, ninguém tem...
L28 - N: Ultimamente também teve outra intervenção, fizeram o
shopping novo aqui, o Atrium e fizeram a drenagem. Fizeram uma galeria
ali na rua do lado do Atrium que sobe a Avenida Santos Dumont, ali perto
do Roldão, tudo ali. Só que fizeram a galeria deste lado da ponte que a
ponte vira um gargalo ali embaixo, é que não dá pra ver daqui, mas é lá
na ponte do Roldão.
L29 - P: Em frente ao Atrium?
L30 - N: Não, não, ali no Roldão, tem o supermercado Roldão, lá perto
do posto de gasolina do Carrefour ali.
L31 - P: Tá, tá.
L32 - N: Aquela ponte lá deveria ter um loteamento para dar uma vazão
maior.
L33 - P: Que é a ponte que sai da Mario de Toledo?
L34 - N: Não, não, é uma ponte baixa lá.
L35 - P: Tá
L36 - N: Antigamente ali, uma vez aconteceu isso, mas já faz muito
tempo que essa ponte está aí, está há mais de 50 anos, se não tiver 50
anos, está por volta de 50 anos, e ficou pequeno porque eles fizeram toda
a galeria da canalização em cima daquele lá, você pode ver que está
baixo, e não tem jeito lá, então o que acontece, vira um funil essa galeria
da marginal Guarará, chegou um ponto que dá o retorno, e trunca tudo e
transborda tudo.
L37 - S: Então piorou?
L38 - N: Piorou
L39 - P: E ainda mais depois do shopping?
166
L40 - N: Depois do shopping fizeram a galeria jogando antes da ponte,
deveria ser jogado após a ponte.
L41 - N: Tá.
L42 - N: Mas aí teria que intervir na entrada do Carrefour ali, do
supermercado e é questão de poder econômico.
L43 - N: Mas mesmo assim, se a Prefeitura negociasse com esse pessoal
eu acho que concordaria, porque isso não é só um benefício para a
população, é um benefício para o próprio comércio deles mesmo,
Carrefour, de Roldão, do shopping.
L44 - P: O senhor fala que a Prefeitura teria que negociar, por que eles
teriam que entrar com a parte de financiamento, porque é privado, é isso?
L45 - N: Não, não, intervir para colocar uma galeria no meio.
L46 - P: Então solicitar autorização para a realização de obras
subterrâneas?
L47 - N: Isso, ter obras, só isso, só alargar, fazer alguma coisa, porque
não tem como fazer isso daí, porque vai melhorar para eles isso aí, vai
melhorar o fluxo de trânsito porque quando enche atrapalha eles, o
comércio.
L48 - N: Isso daí é falta de diálogo da Prefeitura, do Poder Público com
o poder econômico. O poder econômico que eu digo é do comércio, do
Carrefour, do Shopping. Então o shopping também fez a galeria, mas
quem fez o projeto foi a Semasa, só que fizeram, e falaram: ah, mas é o
único meio de fazer é desse jeito.
L144 - N: Eu estou esquecendo! Drenagem do esgoto vem de lá, da Vila,
do shopping, do entorno do shopping, vem pra cá a drenagem do esgoto,
do esgoto, vem um tubo faz aqui e aqui tem um pv que liga esse aqui que
atravessa o esgoto por baixo da canalização.
167
L156 - N: Depois do shopping fizeram a galeria jogando antes da ponte,
deveria ser jogado após a ponte. Está difícil, fizeram o cano, agora
fizeram o cano de lá para cá, tá, e o que aconteceu agora? Resumindo
tudo o que aconteceu com esse esgoto, no dia 9 de janeiro, agora eu vou
falar agora, está ligado ali não sei o que, mas está parado. Sabe o que
aconteceu? Quando choveu veio todo o esgoto, veio água preta, água
barrenta, água preta e ficou aqui e transbordou. Aí a turma fala, não, não
é esgoto de lá, bom, mas nunca aconteceu de vir barro preto, é esgoto
sim.
L157 - P: Quando eles fizeram a obra do shopping?
L158 - N: Não eles fizeram e aterraram o cano.
L159 - P: Depois que o shopping estava pronto?
L160 - N: Sim, o shopping inaugurou ano passado, ano retrasado, não foi
agora.
L161 - P: Ah, tá, o senhor está falando da chuva que deu em janeiro desse
ano?
L162 - N: Isso, aconteceu isso.
L163 - P: Veio água de esgoto?
L164 - N: Veio água de esgoto e ficou áagua de esgoto, quando
sedimentou tudo e parou, quando se foi limpar, você pode ver que não é
terra vermelha, não é de areia, é água de esgoto.
L165 - P: Coisa que não tinha antes do shopping?
L166 - N: Não tinha, tá ocorrendo isso daí, e eu observei isso, antes não
tinha isso daí, agora não sei, aí eles falam, não, não é isso daí mas veio
esgoto de todo lado.
L194 - N: Tem um shoping novo aí que chegou aí porque eles viram que
é um local viável e tem um empreendimento grandioso aí também, além
169
SÍNTESE DA CATEGORIA TEMÁTICA DIREITOS
Temas W N
Direitos L22 W: Ninguém aqui é invadido, não que eu tenha nada contra, mas
ninguém aqui invadiu, como algumas favelas e fez uma casa em cima do
rio. Minha casa é legalizada, eu pago R$ 800,00 e pouco de IPTU e em
2011/ 2012 eu perdi tudo. Eu trabalho aqui além de tudo, o meu ganha pão
é aqui, eu perdi todo o meu maquinário, eu perdi estoque de papel, eu perdi
tudo, eu nunca vi meu marido tão desesperado de como foi isso aí.
L26 - W: Porque quando caiu, disse que eu tinha direito, direito do que?
De uma cesta básica que eles não querem dar para nós, dizem que a gente
não precisa de cesta, está bom, a gente não precisa de cesta básica, só que
eu sei que a cesta básica fica registrada que eu fui atendida, fica registrada.
Então imagina uma pessoa que é atendida desde 1997, bom, o atendimento
é provisório e alguma coisa teria que ser feita, porque desde 1997 que eu
moro aqui, eu, porque já tem gente que mora há muito mais tempo, é
atendido aqui? Porque eles quer dar cesta básica, tem que tentar dar um
jeito nisso aqui.
L37 - W: Eu só não perdi mais por mérito meu, é só prejuízo. Você gasta
água, tem desconto, mas é tudo burocracia, mas isso ninguém fala que fui
eu e a Cida quem conseguiu correndo atrás deles.
L38 - P: O que vocês conseguiram, o desconto?
L39 - W: A gente brigava porque estávamos tomando prejuízo, aí o pessoal
da Defesa Civil conseguiu através de uma lei que a gente tivesse desconto.
Se você pega os três últimos meses e teve um mês, acho que deu 4 ou 5
enchentes em fevereiro, acho que eu gastei de R$ 300,00 de água, mais
prejuízo, aí você vai lá e eles veem nos três meses o que você gastou e dá
o desconto. O IPTU também tem.
L108 - P: Queria também perguntar como é a documentação da casa do
senhor, o senhor paga IPTU, como que funciona?
L109 - N: Aqui tá tudo certo, tem IPTU tem tudo, aqui tá tudo legalizado,
a casa tem escritura tem tudo, está tudo certo. Paga-se IPTU? Paga-se IPTU
quando não ocorre enchente durante o ano, ou seja, quando não dá enchente
eu tô pagando IPTU. Agora, quando dá enchente, aí você tem que entrar
com um pedido na Prefeitura para isenção do IPTU, coisa que deveria ser
automático, não deveria ter que fazer as papeladas e pegar cópia disso e
cópia daquilo. Tem que pegar cópia de residência, tudo isso, daí e leva na
prefeitura ou na Semasa e protocola, tem que protocolar e aí esperar eles
avaliar e pegar o laudo da Defesa Civil para ver se aconteceu mesmo.
Então, tendo o laudo da Defesa Civil vai ter isenção mesmo, eu nem pago
mais o IPTU quando enche de água. Eles falam: olha é melhor o senhor
pagar, mas eu falo espera aí, se encheu de água como é que eu vou ficar
pagando? Aí eles falam: mas ressarce, a Prefeitura ressarce. Mas para que
que eu vou ficar pagando se eu tenho a certeza que tem isso aí, porque já
estou com laudo, o laudo da Defesa Civil já está avaliando isso daí. Então
não tem como ficar pagando e também não tem esse problema de a
Prefeitura ter que ressarcir, entendeu? Não tem como isso daí, se já está
certo, já está certo, tem que já carimbar e liberar, mas não, fala que tem que
avaliar. Então vai lá no departamento de obras, departamento de tributos e
a pessoa da fiscalização avaliar enquanto eu fico esperando. Isso aí sempre
ocorreu e sempre deu certo, eles isentam e tal, mas deveria ter uma coisa,
olha essa área ocorreu isso, pá, então você manda, já está isento, mas não,
tem que fazer toda essa burocracia para ser isento. Dizem que tem umas
leis aí de que quando é área de enchente, essa coisa está isenta, mas aqui
só isenta quando o Semasa ou Prefeitura fala que dá. Mas ainda bem, eu
170
L40 - O IPTU também tem desconto, mas tenho contrato de gaveta e em
uma das enchentes eu perdi um dos documentos que todo ano tenho tem
que apresentar, porque todo ano tenho que apresentar toda documentação
de novo. Eles estão carecas de saber que aqui dá enchente, não poderia ter
um processo já e o nome ficar cadastrado lá? Não, então nesses dois anos
eu não consegui e estou atrasada com o IPTU. É R$ 800,00 e pouco que
fazem falta, principalmente para mim que perde tudo, tem prejuízo direto,
você conserta de um lado e vaza de outro, então você tenta consertar.
L47 - W: Pois é! Sabe o que eu acho engraçado? No nosso país a pessoa
que mora na favela tem mais direito que eu que pago imposto, porque que
eu sou menos do que eles? Já teve vezes de eles virem aqui e falarem a
gente vai lá levar marmita para o pessoal lá de cima que desmoronou tudo,
mas eu estou sem comer, como que faz?
L150 - W: O que mais dói na gente é que ninguém faz nada, porque eu
comprei minha casa, eu não invadi, eu comprei, o meu IPTU é caro
entendeu? Eu moro legalizado. Então eu acho, eu não estou falando de
ninguém, mas eu sinto que o tratamento é diferente para mim e de quem
mora em um lugar que invadiu, eles conseguem mais do que eu. Eles dizem
que eu tenho uma renda, só que a minha renda, quando ela é afetada, o meu
tombo é maior, porque as minhas contas não vão parar de vir só porque
perdi tudo. Sempre vão achar que o meu é pior que o do outro, só que falo:
eu pago os meus impostos, eu trabalho, nunca ganhei nada de graça de
ninguém, eu não acho certo dar nada de graça para ninguém, a pessoa tem
que merecer o que tem e eu, sempre o que eu tive foi trabalhando.
vou lá e faço esse requerimento, agora tem pessoas que não vai, tem
pessoas que aí perde essa isenção.
L115 - N: A Defesa Civil quando chega aqui fala para esperar a água
baixar. Eu tô, eu e meus vizinhos tudo limpando a casa, deveria ter trazido
uma água, um suco, alguma coisa, mas não traz, eles falam: ah, vocês não
precisam. Espera um pouquinho, eu não preciso, como assim? Vocês não
precisam porque vocês têm condições, estão morando aqui no centro e tal,
a propriedade é sua. Mas se fosse um local de baixa renda o que vocês
fariam? Ah, teria que trazer isso, isso e assado. Então, e para nós nada, nós
que somos os flagelados da enchente (risos) como diz as pessoas, os outros
também são flagelados, todos nós somos filhos de Deus. Eu falei assim:
deveria ser o mesmo tratamento.
L116 - P: Os mesmos direitos?
L117 - N: Sim, mas não. Eles falam que é a direção que fala isso, aquilo e
assado, e diz que tem gente piores que a gente. Ótimo, mas na atual situação
quando dá enchente, nós somos todos iguais e nós podemos perder a vida
aqui como lá, onde está lá, mas não estamos meio esperto aqui para
preservar nossa vida, então tudo bem. Mas o prejuízo, talvez seja o nosso
prejuízo seja maior que o do pessoal de baixa renda, de mais necessidade,
por que? Porque a gente perde muitas coisas, e além do mais, a gente está
perdendo a nossa dignidade, das pessoas de viver em um local bom.