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12° Encontro Internacional de Arte e Tecnologia (#12.ART): prospectiva poética Mesa 1 – Magia e tecnologia, arte e política Fotografia e Inconsciente Ótico Sandra Rey UFRGS/CNPq Resumo Como situar, hoje, os conceitos de arte, magia e política, a partir das questões colocadas por W. Benjamin? O artigo propõe uma releitura dos textos “Pequena História da Fotografia” (1931) e “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica (1936) e propõe o estudo dos conceitos de magia e política a partir do da noção de inconsciente ótico ligado à natureza tecnológica do dispositivo fotográfico . Palavras-chave inconsciente ótico, fotografia, percepção, magia. Resumé Comment peut-on situer aujourd’hui les concepts d’art, magie et politique a partir des questions posées par W. Benjamin? L’article propose une relecture des texte “Petite Histoire de la Photographie” (1931) et “L’œuvre d’Art à l’ère de la Reproductibilité Technique” (1936) et propose d’étudier les concepts de magie et politique a partir de la notion d’inconscient optique lié à la nature technologique du dispositif photographique. Mots-clé inconscient optique, photographie, perception, magie Arte e reprodutibilidade O tema do Encontro propõe como desafio debater possibilidades poéticas da arte e tecnologia a partir do conjunto de pesquisas reunidas, e lançar um olhar a distância, para a frente, no sentido de prospectar possibilidades futuras. O ato poético envolve sempre alguma ressignifcação semântica de determinados elementos dentro de um contexto habitual e, consequentemente, a atribuição de novos sentidos e valores. Então penso que o 12#ART constitui um ensejo para examinar rumos que as pesquisas, e produções artísticas que lhe são resultantes, projetam, pensando que qualquer prospectiva poética mediada pela tecnologia deve levar em conta

Sandra Rey

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12° Encontro Internacional de Arte e Tecnologia (#12.ART): prospectiva poética

Mesa 1 – Magia e tecnologia, arte e política

Fotografia e Inconsciente Ótico Sandra Rey UFRGS/CNPq Resumo Como situar, hoje, os conceitos de arte, magia e política, a partir das questões colocadas por W. Benjamin? O artigo propõe uma releitura dos textos “Pequena História da Fotografia” (1931) e “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica (1936) e propõe o estudo dos conceitos de magia e política a partir do da noção de inconsciente ótico ligado à natureza tecnológica do dispositivo fotográfico . Palavras-chave inconsciente ótico, fotografia, percepção, magia. Resumé Comment peut-on situer aujourd’hui les concepts d’art, magie et politique a partir des questions posées par W. Benjamin? L’article propose une relecture des texte “Petite Histoire de la Photographie” (1931) et “L’œuvre d’Art à l’ère de la Reproductibilité Technique” (1936) et propose d’étudier les concepts de magie et politique a partir de la notion d’inconscient optique lié à la nature technologique du dispositif photographique. Mots-clé inconscient optique, photographie, perception, magie Arte e reprodutibilidade O tema do Encontro propõe como desafio debater possibilidades poéticas da arte e tecnologia a partir do conjunto de pesquisas reunidas, e lançar um olhar a distância, para a frente, no sentido de prospectar possibilidades futuras. O ato poético envolve sempre alguma ressignifcação semântica de determinados elementos dentro de um contexto habitual e, consequentemente, a atribuição de novos sentidos e valores. Então penso que o 12#ART constitui um ensejo para examinar rumos que as pesquisas, e produções artísticas que lhe são resultantes, projetam, pensando que qualquer prospectiva poética mediada pela tecnologia deve levar em conta

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as negociações entre um sujeito-Nós, modelado pela experiência tecnestésica e um sujeito-Eu que resgataria a expressão de uma subjetividade irredutível aos mecanismos técnicos, singular e móvel, ligada à história individual e ao imaginário (Couchot, 2003, p.17). O tema da mesa para a qual fui convidada constitui uma oportunidade para reler dois textos fundamentais sobre as mudanças na ordem visual que se produziu no regime figurativo inaugurado pela fotografia, e as questões inerentes à reprodutibilidade que afetaram profundamente as artes visuais. Me refiro aos textos de W. Benjamin1, Pequena História da Fotografia (1931) e A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1036) que oferecem, ainda hoje, material e conteúdos para pensar questões da arte em relação à tecnologia. Como situar, hoje, os conceitos de arte, magia e política, a partir das questões colocadas por Benjamin? Mais precisamente, pode-se no séc. XXI falar em magia face à programação e cálculo que regem os processos artísticos mediados pela tecnologia? Essa foi a pergunta que ficou subjacente à minha leitura e condiciona o recorte que apresento no artigo. Face da radicalidade das mudanças no regime de figuração devido à automatização de seus procedimentos, em vista da globalização da sociedade contemporânea e diante das inúmeras possibilidades de circulação e difusão da arte, hoje, proponho uma mirada retrospectiva guiada por esses textos para examinar como questões que permeiam os dispositivos técnicos da fotografia, e seus processos de pós-produção mediados pela tecnologia, podem se entrelaçar com ressignificações poéticas através de fios que enlaçam a arte em ligações, às vezes tênues, outras nem tanto, com a magia e a política. Benjamin introduziu o conceito de “inconsciente ótico” (1931, p.94; 1936, p.189) para fazer a demonstração e argumentar que “a diferença entre a técnica e a magia é uma variável totalmente histórica” (1931, p. 95). Para situar o conceito em relação às questões ligadas à tecnologia vamos revisar exemplos na história da fotografia e abordar produções na arte atual para perceber como se enlaçam os fios que ligam a arte com magia e política entendendo que a primeira influencia e condiciona a segunda como constatamos nas noções de “valor de culto” e “valor de exposição” colocadas por Benjamin:

Com a fotografia, o valor de culto começa a recuar, em todas as frentes, diante do valor de exposição. (Benjamin, 1994, p.174)

                                                                                                               1  Pequena História da Fotografia, publicado em 1931 na revista cultural (Die Literarische Welt) a qual Benjamin colabora desde 1925; “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, escrito entre 1935-36, e publicado em 1936 em francês na revista do Instituto de Investigação Social, quando o autor se encontrava refugiado em Paris.  

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A noção de valor de culto inscreve-se desde as origens na pré-história da arte, quando esta nasce no registro de imagens com funções práticas, tanto como ensinamento, quanto como objeto de contemplação à qual se atribuíam efeitos mágicos. Os temas dessa arte eram o homem e seu meio, respondendo à exigências de uma sociedade cuja técnica se fundia inteiramente com o ritual (1936, p.173-4). A arte surge e se mantém por longo tempo no ocidente a serviço da magia, e passa depois à tutela religiosa. E no Renascimento esse valor se manifesta nas formas profanas de culto ao Belo. Benjamin considera que a ligação ao rito que desencadeia a tradição de culto à obra de arte, sofrerá abalo considerável com a primeira técnica de reprodução verdadeiramente revolucionária, a fotografia, que levou a arte a uma profunda crise que redefiniria suas funções. E vamos entender mais adiante quando na argumentação considera que a reprodução técnica destitui a obra de arte de seu valor de culto fundado na aura de um objeto único e original, — e na sua apreciação diante da presença física, no aqui e agora, — a favor do acesso mais democrático da obra de arte reprodutível. A perda da aura, em função da reprodutibilidade técnica, desencadearia uma modificação na função social da arte tendo em vista a possibilidade de democratização estética.

Com a reprodutibilidade técnica, a obra de arte se emancipa, pela primeira vez na história, de sua existência parasitária, destacando-se do ritual. (Benjamin, 1936, p.171).

A posição de Benjamin distingue-se da de seus contemporâneos na escola de Frankfourt. Enquanto Adorno e Horkheimer, pensam que a obra de arte original está à disposição de uma elite que manipula aqueles que não possuem acesso às obras originais, e analisam que toda reprodução contribui para a perda da originalidade, Benjamin considera que a reprodução técnica ocasionaria a emancipação do valor de culto ligado à obra de arte desde as origens de sua inserção no contexto da tradição. O valor de culto pela obra reprodutível tecnicamente seria inversamente proporcional ao valor de exposição. Pode-se explicar essa observação na medida em que, com a reprodução técnica aumentam a oportunidades de exposição, a obra torna-se acessível a maior número de observadores. Se o valor de culto supõe o contato com a obra original e a apreciação por grupos restritos que têm acesso a ela, com a reprodutibilidade a arte se tornaria acessível a grande número, o valor de culto cederia lugar ao valor de exposição. Dessa maneira, a arte produto da reprodução técnica como a fotografia e o cinema, (são esses os exemplos analisados, principalmente no segundo texto) deixaria de se fundar no rito e no culto para se fixar na práxis política.

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A dimensão política do valor de exposição A diferença da posição marcada por Benjamin em relação a Adorno e Horkheimer é que ele lança um olhar sobre o futuro, vê ou tenta ver adiante e tem o alcance de perceber que a reprodutibilidade da arte promovida pela técnica é parte da nova lógica cultural proposta pela modernidade e pelo capitalismo. O valor de exposição consistiria na ampliação da penetração da obra de arte a diferentes públicos e, desde que a obra reprodutível tecnicamente conserve as características daquilo que chamaríamos de original2 estaria contribuindo para sensibilização estética na formação de senso crítico. Isso se evidencia quando afirma que “no momento em que o critério de autenticidade deixa de aplicar-se à produção artística, toda função da arte se transforma” (1936, p.171), a arte reprodutível tecnicamente seria capaz de gerar uma politização passível de moldar o senso crítico daquele que observa. O acaso no que existe de planejado na técnica No texto Pequena História da Fotografia3 Benjamin desenvolve dois aspectos do que considera uma atualização do aspecto mágico da obra de arte diante da reprodutibilidade. Encontramos o primeiro aspecto quando esboça uma ideia original: a fotografia, para além da simples representação permite o acesso ao ser, ou o segredo do ser naquilo que lhe é mais íntimo (com sua variação no plano estético: a superação da arte feita pela fotografia). Esse aspecto se apoia sobre duas imagens reproduzidas na revista Die Literarische Welt, uma delas o retrato de "Karl Dauthendey com sua noiva tirada após sua primeira visita à igreja em 1º de setembro de 1857” e que Benjamin descreve nesses termos:

Ou então descobrimos a imagem de Dauthendey, o fotógrafo, pai do poeta, no tempo de seu noivado com aquela mulher que ele um dia encontrou com os pulsos cortados, em seu quarto de Moscou, pouco depois do nascimento de seu sexto filho. Nessa foto, ele pode ser visto ao seu lado e parece segurá-la; mas o olhar dela não o vê, está fixado em algo distante e catastrófico. Depois de mergulharmos suficientemente fundo em imagens assim, percebemos que também aqui os extremos se tocam: a técnica mais exata pode dar às suas criações um valor mágico que um quadro nunca mais terá para nós. Apesar de toda a perícia do fotógrafo e de tudo o que existe de planejado em seu comportamento, o observador sente a necessidade irresistível de procurar nessa imagem a pequena centelha do acaso, do

                                                                                                               2  Isso fica claro quando ele toma por exemplo as fotos que podem ser feitas através de um mesmo negativo. Na verdade, quem poderia distinguir a primeira foto feita a partir de um negativo de uma segunda?  3  Texto publicado originalmente em 1931 na revista cultural Die literarische Welt que Walter Benjamin colaborava desde 1925.  

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aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar um lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em instantes únicos, há muito extinto se com tanta eloquência que podemos descobri-lo, olhando para trás. A natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente. (Benjamin, 1994,94).  

 O que interessa a Benjamin na fotografia do casal (Karl Dauthendey e sua noiva) é a dimensão do "aqui e agora" presente na fotografia, que mais tarde será caracterizado por Barthes como “isso foi”. “Isso foi” refere-se ao mesmo tempo a uma relação com a realidade e a uma relação com o tempo. Mas também evoca para Benjamin o que pode ser chamado a justaposição de temporalidade. Olhando essa fotografia Benjamin viu no mesmo lance de olhar um tempo que já passou (aquele do casal fotografado) e um tempo futuro (a morte trágica da mulher), observando de seu tempo presente.

Fotografia de Karl Dauthendey, St Petesbourg, 1837

Essa passagem pode ser comparada a certas páginas da Câmara Clara quando Roland Barthes evoca o “punctum” da fotografia. A noção de punctum seria a superação da arte feita pela fotografia e não está relacionada com as intenções do fotógrafo, com a cultura do operador, com

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sua visão do mundo, depende do espectador se sentir tocado, ferido, pungido por determinada imagem para ressignificá-la para além do que que foi a intenção do artista. “O punctum de uma foto é esse acaso que nela me fere (mas também me mortifica, me apunhala).” (Barthes, 1998 p. 47). A natureza que fala à câmara O segundo aspecto diz respeito à natureza do dispositivo fotográfico que “substitui um espaço trabalhado conscientemente pelo homem por uma espaço que ele percorre inconscientemente”. Esse aspecto é introduzido no primeiro texto (e aprofundado no segundo) e constitui o conceito de inconsciente ótico que é desenvolvido com base na constatação que a máquina dá a ver melhor que o olho humano pode perceber. Percebemos, graças à câmara, aspectos da realidade que seriam impossíveis de ver com o olho humano. “A natureza que se dirige à câmara não é a mesma que a que se dirige ao olhar”, afirma Benjamin (1936, p.189), essa diferença de natureza entre aquilo que o olho vê e o que a câmara registra, Benjamin situa, por exemplo, “no espaço em que o homem age conscientemente é substituído por outro em que sua ação é inconsciente”. Ele exemplifica:

se podemos perceber o caminhar de uma pessoa, ainda que em grandes traços, nada sabemos, em compensação, sobre sua atitude precisa na fração de segundo em que ela dá um passo. (Benjamin, 1931, p.94; 1936, p.189)

A magia da técnica, na visão de Benjamin é orientada através da ideia que o aparelho ótico pode captar melhor que a visão humana, diferentes aspectos de acontecimentos e ampliar a percepção que se tem da realidade, trazendo à luz aspectos não consciente. Se a câmara (fotográfica e filmadora) nos abre, pela primeira vez, à experiência do inconsciente ótico uma vez que o aparelho pode registrar os múltiplos aspectos da realidade que situam-se grande parte fora do espectro de uma percepção sensível normal, o alcance histórico dessa refuncionalização da arte em relação à sua função primitiva estreitamente ligada à magia é considerável em vista de facetas da realidade que a tecnologia permite ascender. Isso se dá, afirma Benjamin, porque os extremos se tocam, apesar de tudo que possa existir de planejado no comportamento técnico. Nos textos de Benjamin não existe menção às experiências de Marey e Muybridge mas a definição de inconsciente ótico está relacionada com os experimentos de cronofotografia realizados por esses dois artistas. Étienne-Jules Marey (inventor da cronofotografia através da invenção do fuzil fotográfico, um instrumento capaz de registrar fotograficamente 12 imagens por segundo e fixar fotograficamente várias fases de um corpo em

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movimento). A cronofotografia é um processo de análise do movimento através de fotografias sucessivas. Dão a ilusão do movimento e constituem o fundamento teórico do cinema.

Marey: cronofotografia, estudo do movimento

Marey criou o cronofotógrafo (1882), instrumento formado por um disco com furos que girava à frente de uma placa sensível que registava as várias imagens. O desenvolvimento do trabalho de Marey está estreitamente vinculado a invenções científicas.

Eadweard Muybridge, Galloping Horse, 1878

Eadweard Muybridge, fotógrafo britânico, igualmente notabilizou-se por seus experimentos com a cronofotografia. As cronofotografias de Muybridge

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revelaram, como nunca antes, o movimento dos corpos de pessoas e animais. A sequência mais famosa, foi realizada em 1878 com mais de vinte câmeras e diante da imprensa, mostra um cavalo galopando para comprovar que o animal ficava com as quatro patas fora do chão enquanto corria. Os experimentos da cronofotografia contribuíram para os estudos do movimento e ampliaram a percepção visual. Ampliação como processo de ressignificação É também nesse sentido que podemos perceber o trabalho Karl Blossfeldt (1865 – 1932), citado por Benjamin (1994,p.95). Blossfeldt fez muitas de suas fotos com uma câmera caseira que poderia ampliar o tema até 30 vezes o seu tamanho real, revelando detalhes dentro da estrutura natural da planta. Publicado em 1928, quando tinha 63 anos, o livro “As Formas Originais da Arte” com 120 reproduções apresentando detalhes de plantas fotografadas com lentes macro que mostram detalhes de plantas revelando formas abstratas e estruturas de um mundo invisível, altamente estetizado que influenciaram os ornamentos orgânicos de design e das artes.

E assim que, nas suas surpreendentes fotografias de plantas, Blossfeldt mostrou no equisseto as formas mais antigas das colunas, no feto arborescente a mitra episcopal, nos brotos das castanheiras e acereaceas, aumentadas dez vezes, mastros totêmicos, no cardo um edifício gótico. (Benjamin, 1931, p.95)

Karl Blossfeldt: As formas originais da Arte, 1928.

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      Karl Blossfeldt: As formas originais da Arte, 1928.

Essa ressignificação do olhar pelo dispositivo ótico também repercute na arte contemporânea, a exemplo do trabalho de Patric Tosani na série de fotografias com o título Ongle4.

Patric Tosani: Ongle, 1990.

                                                                                                               4  Fotografias apresentadas na exposição Reflexio: imagem contemporânea na França, apresentada no Santander Cultural, Porto Alegre, 2009.

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A série mostra fotografias em que amplia, em escala monumental, isolando do contexto da mão, a imagem de uma unha. O estranhamento provocado por esse isolamento e desdimensionamento da escala leva o observador a hesitar em reconhecer aquilo que vê. É o título da obra que devolve a dimensão de realidade à imagem, já que esta opera no sentido contrário, o de nos destituir da noção de temos de realidade. A fotografia, apesar de conservar seu caráter indicial que é o de remeter ao referente, precisa do título nos ancorar nele. Não existe, em Tosani, o interesse em qualquer manipulação, mas em tornar ambígua a relação entre o que vemos e o que é denominado no título. As fotografias dessa série induz questionar os paradigmas da relação da fotografia com o referente que lhe deu origem. As fotos dessa série chamam atenção sobre como o dispositivo ótico altera a percepção que temos da realidade. Cruzamentos entre o espaço real e virtual Nesse sentido também trabalha Georges Rousse que ressignifica espaços através da intervenção em lugares abandonados para transformá-los em espaço pictórico onde inscreve formas geométricas, palavras ou grafismos, pintando paredes, chão, colunas e teto para produzir uma imagem virtual somente perceptível do ponto de vista fotografado, único capaz de restituir a totalidade da imagem virtual, inscrita no espaço real.

Georges Rousse

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Rousse não apresenta ao público a instalação que considera como parte do processo, o que apresenta é a fotografia. Seu trabalho é uma reflexão poética sobre a construção da imagem pelo aparelho ótico e o submissão da imagem fotográfica ao ponto de vista. Nas fotografias de Rousse, a figura que vemos inscrita na imagem não existe no espaço real, existe apenas virtualmente e só se revela se a percebermos no exato lugar onde o artista se posicionou para a tomada fotográfica. Ressignificações do referente através de processos de pós-produção Por fim gostaria de trazer o trabalho de pós-produção que venho realizando desde 2005 com base na repetição dos dados visuais de algumas fotografias realizadas durante caminhadas na natureza, no desenvolvimento do projeto DesDOBRAmentos da Paisagem.

Sandra  Rey:  Soft  Dreams.  Fotografia,  2013.  

 Os trabalhos da série Soft Dreams se dá através da multiplicação dos dados visuais de uma ou duas fotografias numa série de combinações por procedimentos de justaposição e sobreposição fazendo dobrar a imagem sobre si mesma, de diferentes maneiras. Nesse trabalho de ressignificação

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dos elementos visuais da imagem o referente da fotografia se desajusta para dar lugar a formas inusitadas que surgem pela repetição, recorte e justaposição de elementos reordenados. Certas formas contidas nas imagens, quando repetidas, configuram formas ficcionais que perdem a contiguidade com o referente na natureza e tendem ao fantástico, porém é importante salientar que todos elementos trabalhados preexistem na imagem fotográfica, todas as formas que constituem a nova imagem encontram-se previamente nas fotografias selecionadas. A imagem é composta por seus próprios fragmentos inúmeras vezes repetidos que se compõem e recompõem segundo novas ordenações que surgem no processo de montagem. A tecnologia é parte intrínseca do meu processo de trabalho desde a captura de imagens através da fotografia digital à pós-produção quando coloco em trabalho esses dados brutos do real, na imagem. Porém, não é a única questão que o define. Outras igualmente contam muito no meu processo como a noção de experiência nas caminhadas, a produção de documentação dessa experiência através da fotografia e os processos de arquivamento, o trabalho conceitual com a escrita, por exemplo. Os novos regimes figurativos que se inauguram com a fotografia e as questões inerentes à reprodutibilidade não cessam de se alargar e expandir com os meios tecnológicos e isso se constitui estímulo e desafio, mas o que me move é a possibilidade de atribuição de novos sentidos e ressignifcação semântica de contextos habituais e do mundo que conhecemos. Se continua atual a afirmação de Benjamin “a diferença entre a técnica e a magia é uma variável totalmente histórica”, a função mágica e política da arte pós meios tecnológicos pode situar-se em dar a ver e perceber aspectos surpreendentes habitando as coisas e situações mais inusitadas.   Referências Bibliográficas  BARTHES, Roland. 1998. A câmara clara. Lisboa: Ed. 70,. BENJAMIN, Walter. Pequena História da Fotografia (1931) e A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1036) in Magia, técnica, arte e política. Obras escolhidas, vol. 1. 1994. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7.ed. São Paulo: Brasiliense. COUCHOT, Edmond. A Tecnologia na arte, da fotografia a realidade virtual. Tradução Sandra Rey. Porto Alegre: UFRGS, 2003. DUBOIS, P. 2000. L’acte photographique et autres essays. Paris : Nathan, 1990. O ato fotográfico e outros ensaios. Trad. Marina Appelzeller, São Paulo, Ed. Papirus. ROUILLÉ, André. 2005. La photographie. Paris : Gallimard. SOULAGES, François. 2001. Esthétique de la Photographie. Paris : Nathan.