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SOCIEDADE PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE INSTITUTO DE PSICANÁLISE ANALISABILIDADE: EVOLUÇÃO DO CONCEITO E VICISSITUDES Autora: Sandra Regina S. Machado Wolffenbüttel Orientador: Mauro Gus

Sandra Wolffenbuttel Analisabilidade Evolucao Do Conceito e Vicissitudes

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SOCIEDADE PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE

INSTITUTO DE PSICANÁLISE

ANALISABILIDADE: EVOLUÇÃO DO CONCEITO E VICISSITUDES

Autora: Sandra Regina S. Machado Wolffenbüttel

Orientador: Mauro Gus

Porto Alegre, setembro de 2003

Versão Modificada em 2007

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ANALISABILIDADE: EVOLUÇÃO DO CONCEITO E VICISSITUDES

Sandra Wolffenbüttel*

INTRODUÇÃO

Etchegoyen (1987), referindo-se às indicações terapêuticas da Psicanálise,

afirma que estas constituem um tema relevante tanto por sua importância prática

quanto por revelar um fundo teórico de real complexidade. Ferro (1998) descreve

que a literatura a respeito dos critérios de analisabilidade é ao mesmo tempo

muito vasta e com pontos de vista muito diversos em relação ao tema. Partindo

destas questões, da necessidade de começar a estabelecer minha pretendida

nova identidade de psicanalista e busca por tentar diferenciar a abrangência da

psicanálise da de outras formas terapêuticas em saúde mental, que aqui não são

focos de discussão, apresento uma breve revisão e discussão dos critérios e do

conceito de analisabilidade a partir do modelo clássico de Freud (1904), incluindo

sua evolução ao longo deste século de Psicanálise e conceitualização atual, com

o intuito de melhor compreender e adequar à indicação de tratamento

psicanalítico.

REVISÃO E DISCUSSÃO

As indicações e contra-indicações para a Psicanálise foram fixadas por

Freud em Conferência realizada no Colégio Médico de Viena em 12 de dezembro

de 1904. Nesta, desde cedo, já enfatizou que a indicação deve levar em conta não

somente a doença, mas a personalidade do indivíduo. Sempre sob este

referencial, considerava que devessem ser recusados os pacientes que não

possuam certo grau de formação e um caráter razoavelmente digno de confiança,

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* Médica Psiquiatra pela UFRGS, Membro candidato da SPPA.

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os que não buscam tratamento por seu sofrimento, mas sim atendendo a outros, e

os casos em que houver urgência em eliminar os sintomas com rapidez. Freud

acreditava que a idade do paciente teria muita importância na escolha do

tratamento, argumentando que às pessoas próximas dos cinqüenta anos de idade

faltaria suficiente plasticidade dos processos anímicos e que o material a ser

elaborado prolongaria indefinidamente a duração do tratamento. Em relação às

indicações segundo o diagnóstico clínico, reivindicou a Psicanálise como método

de escolha no tratamento de todas as formas crônicas de histeria com fenômenos

residuais, o vasto campo dos estados obsessivos, as abulias e similares, ou seja,

o que hoje denominamos Neuroses. Considerava-a contra-indicada nas psicoses,

apesar de deixar em aberto a possibilidade de abordagem futura mediante uma

modificação apropriada do método, descartando seu emprego nos estados

confusionais, de deterioração ou retardo mental. Com relação às psicoses, Freud

(1917) considerava que, sendo os pacientes psicóticos essencialmente narcísicos,

não seriam acessíveis à Psicanálise porque não desenvolveriam uma Neurose de

Transferência, mas uma Neurose Narcísica, de resistência intransponível. Tal

posicionamento foi mantido em toda sua obra. Ainda que Freud tenha insistido que

se tratassem somente os neuróticos, seus próprios casos nem sempre o eram,

ocorrendo-me como prováveis exemplos o Homem dos Lobos e o Homem dos

Ratos.

Cabe referir que na atualidade, as restrições de Freud para o tratamento de

crianças e idosos se modificaram muito, sendo a análise aplicável às crianças de

primeira infância (Melanie Klein, 1926, Anna Freud, 1946), enquanto os indivíduos

de mais idade são vistos com mais otimismo, podendo manter suficiente

plasticidade, pois a acessibilidade em grande parte é determinada pela estrutura

de caráter, não sendo impedimento um acúmulo de material a elaborar já que,

como ensinou o próprio Freud, os acontecimentos decisivos abarcam o período da

amnésia infantil, repetindo-se sem cessar ao longo da vida e na transferência,

assim permitindo o tratamento psicanalítico (apud Etchegoyen).

Dando seguimento à revisão da evolução do conceito de analisabilidade,

verifiquei que para Fenichel (1945), a dificuldade de uma análise corresponde à

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profundidade da regressão patológica, sendo os pontos de fixação nas neuroses

decisivos à acessibilidade. De acordo com este raciocínio, a psicanálise seria

indicada na seguinte ordem decrescente: na histeria, na neurose obsessiva, nas

neuroses pré-genitais de conversão, nas depressões neuróticas e nos transtornos

de caráter. As perversões, adições e neuroses impulsivas, comparáveis aos

transtornos de caráter severos (fronteiriços), têm por ele sua analisabilidade

questionada e determinada pelas características individuais de cada caso. Já os

casos de distúrbio psicossomático poderiam corresponder à categoria de qualquer

outra neurose (apud Fenichel).

A psicanálise para Fenichel estaria contra-indicada nas psicoses, nos casos

maníaco-depressivos severos e nas esquizofrenias.

Referindo-se ao posicionamento de Freud com relação às psicoses, o autor

ponderou que esta regra geral tem exceções importantes, não sendo absoluta a

distinção entre neurose e psicose, podendo o que resta de relações objetais nas

psicoses servir de base para que se restabeleça um mínimo de capacidade

transferencial na análise, tornando o paciente acessível ao método.

Com relação às contra-indicações relativas, não baseadas no diagnóstico

clínico, Fenichel acrescentou àquelas já descritas por Freud, situações

desfavoráveis de vida que excluam toda possibilidade de gratificação e em que a

neurose propicie uma espécie de ilusão: a trivialidade de certa neurose, onde o

transtorno causado não compense o esforço, tempo, dinheiro e energia

necessários à análise; a presença de ganhos secundários suficientes para que

haja uma recusa em abrir mão da neurose; a contra-indicação da análise com um

determinado analista, considerando aspectos não só do paciente, mas do próprio

analista e do par analítico.

Em uma revisão histórica, Etchegoyen (1987), inicia referindo-se ao

Simpósio de Arden House de 1954, destacando entre os trabalhos apresentados

os de Leo Stone, Edith Jacobson e Anna Freud. Tendo considerado o trabalho de

Stone como de valor perdurável, descreveu que Stone estabeleceu o uso do

método psicanalítico, ainda que com a introdução de parâmetros, como forma de

tratamento para distúrbios que ultrapassam as fronteiras da neurose.

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Stone considerou que além dos critérios nosográficos psiquiátricos devam

ser levados em conta os elementos dinâmicos da personalidade do paciente. Sua

avaliação final foi a de que ainda que as neuroses de transferência e os

transtornos de caráter de grau de psicopatologia associados continuem sendo as

indicações gerais ideais para o método clássico, a abrangência e os objetivos da

psicanálise se ampliaram, para incluir praticamente todas as categorias

nosológicas psicogênicas (apud Wallerstein, 2005).

Paradoxalmente, Stone postulava que os transtornos neuróticos de média

gravidade e aqueles tratáveis farmacologicamente não configurariam indicações

para a análise. Jacobson abordou o tratamento de depressões severas, incluindo

as reativas graves, borderlines e a psicose circular, opinando também serem

tratáveis apesar das dificuldades no desenvolvimento e análise da transferência.

Já o comentário de Anna Freud coincidia com o de Stone.

A conclusão na Conferência de Arden House foi de que o método

psicanalítico seria aplicável aos transtornos psicogênicos que ultrapassam os

limites da neurose, ainda que a tarefa seja bastante difícil.

Alguns anos após, em 1958, Natcht e Lebovici, em El Psicoanálisis Hoy,

retornaram aos critérios de indicação de Freud, tornando-os ainda mais estritos.

Seguindo a Freud (1904) e Fenichel (1945), dividiram as indicações e contra-

indicações da psicanálise em função do diagnóstico clínico e da personalidade do

paciente.

Com relação às indicações pelo diagnóstico, Natcht e Lebovici

consideraram a psicanálise aplicável às neuroses sintomáticas, muito menos

aplicável às neuroses de caráter, sendo as indicações mais difíceis de serem

estabelecidas nas perversões, válidas as tentativas de tratamento nas psicoses

menos graves e de difícil aplicação nos casos francos de psicose. Salientaram

ainda a força do ego como fator de primeira importância. Apesar de admitirem

exceções, consideraram que somente os adultos jovens, até os quarenta anos,

seriam de incumbência da análise. Como fatores de importância para a contra-

indicação, destacaram a existência de ganho secundário muito arraigado, o

narcisismo e o masoquismo nas formas mais primitivas, as tendências

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homossexuais latentes com influência no funcionamento do ego (perversidade) e

os casos com marcada facilidade para o acting-out.

Também contrastando com o Simpósio de 1954, no Simpósio de

Copenhagen, em 1967, foi reafirmado um estreitamento nas indicações para a

psicanálise (apud Etchegoyen). Neste, fundamentando-se na teoria clássica,

Elizabeth R. Zetzel introduziu seu conceito de analisabilidade.

Em seu trabalho, entre 1956 e 1969, Zetzel realizou uma investigação sobre

a transferência e a aliança terapêutica e, partindo do conceito de que as relações

de objeto se estabelecem antes da situação edípica e são de natureza diádica,

destacou a importância da consolidação da relação diádica enquanto pré-requisito

para que se possa enfrentar a relação triangular do Complexo de Édipo.

Partindo da definição de que o que falha no neurótico é a relação edípica,

que é alcançada na análise pela via regressiva, como neurose de transferência,

postulou que enquanto a neurose de transferência reproduz o Complexo de Édipo,

a aliança terapêutica é pré-genital e diádica. Deste modo, para ela somente uma

firme relação diádica com a mãe e com o pai (confiança básica de Erickson) cria

as condições para estruturar e resolver a situação edípica, já que equivale a

capacidade de distinguir a realidade interna da externa.

Em “The Analytic Situation” (1966), a Dra. Zetzel expõe seus critérios de

analisabilidade, registrando as funções básicas para o desenvolvimento da aliança

terapêutica, que seriam: a capacidade de manter a confiança básica na ausência

de gratificação imediata; a capacidade de manter a discriminação entre o objeto e

o self na ausência do objeto; e a capacidade potencial de admitir as limitações da

realidade. Seus critérios de analisabilidade buscam precisar as indicações e

contra-indicações da psicanálise que estão além das categorias diagnósticas, pois

Zetzel baseia-se na teoria das funções autônomas do ego. Para ela, a

incapacidade de reconhecer e tolerar uma situação triangular autêntica e de

discriminar a realidade interna da externa tornaria impossível a aliança

terapêutica, base para que se instaure uma neurose de transferência analisável. A

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autora considerou também que não seria analisável o paciente cujas defesas

houvessem se estabelecido prematuramente (antes da situação edípica genital).

Mesmo autores da escola de Zetzel (como Stone e Jacobson, e a própria

Anna Freud), não compartilharam totalmente dos seus critérios. Para Etchegoyen,

os critérios da Psicologia do Ego são válidos para medir as dificuldades de um

caso e estabelecer um prognóstico, mas não para definir uma contra-indicação

para a análise.

Greenson (1967), neste mesmo período, partiu do pensamento de Freud

com relação aos pacientes psicóticos e argumentou que muitos dos pacientes que

procuram tratamento não podem ser classificados com precisão porque têm

características tanto da neurose quanto da psicose.

Para o autor o diagnóstico clínico é importante para determinar a disposição

do paciente para a análise, mas em geral leva-se muito tempo até que se obtenha

um diagnóstico definitivo, sendo que este informa pouco dos recursos saudáveis

do paciente. Também os sintomas não estão ligados a síndromes específicas,

podendo não informar sobre a estrutura de personalidade do paciente. Sendo

assim, deve-se avaliar o paciente como um todo e não apenas por seu diagnóstico

clínico ou patologia.

Além de suficiente motivação e sofrimento para aceitar as exigências da

análise, o autor destaca como de muita importância a existência de certa

flexibilidade e elasticidade nas funções do ego do paciente, com capacidade em

regredir, em abandonar o controle de seus pensamentos e emoções, renunciar

parcialmente ao seu teste de realidade, e ainda assim nos compreender, fazer por

conta própria algum trabalho analítico, controlar suas ações e emoções após a

sessão e manter-se em contato com a realidade (capacidade para regredir e sair

da regressão no relacionamento com o analista).

Greenson ainda destaca ser necessária a capacidade de empatia, a qual

depende da capacidade para uma identificação parcial e temporária com outros,

que precisa estar presente tanto no paciente quanto no analista. Ele preconiza a

análise de experiência, dizendo ser deliberadamente vago com o paciente quanto

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ao tempo que irá precisar para definir sua indicação terapêutica, considerando que

somente a experiência real de um período de análise pode determinar, com

segurança, se um paciente está apto para fazer análise. Neste ponto, parece-me

que um período prolongado de uma análise de experiência, passa a ser

simplesmente uma análise e, como tal, sujeita às vicissitudes do processo

analítico, em especial a questão da acessibilidade.

Ainda que tenha citado os bons resultados terapêuticos obtidos por

Rosenfeld (1952) com o uso da análise clássica em pacientes psicóticos, afirmou

que a maioria dos psicanalistas considera que os pacientes fixados

narcisicamente exigem modificações no procedimento psicanalítico padronizado.

Deste modo, se por um lado o autor reafirma os critérios de Fenichel (1945)

quanto às indicações de análise clássica, por outro abre a possibilidade de

tratamento analítico, ainda que com modificações, para pacientes não neuróticos.

Posteriormente, contrapondo-se ao conceito de analisabilidade de Zetzel

surgiu o conceito de acessibilidade de Betty Joseph (apud Etchegoyen).

Joseph (1975), focalizando um determinado grupo de pacientes muito

diversificados em sua psicopatologia (mas que têm em comum uma cisão da

personalidade) observou que a acessibilidade depende da personalidade profunda

do paciente e não corresponde a uma categoria diagnóstica, havendo pacientes

de mais difícil acesso do que outros.

Seu conceito de acessibilidade surge do próprio trabalho analítico e

consiste em buscar acesso ao paciente, considerando o fenômeno a partir do

narcisismo e tipos especiais de dissociação, propondo-se a tratá-los. O paciente

de difícil acesso de Joseph vincula-se a personalidade como se de Helen Deusth

(1942), ao falso self de Winnicott (1960), a pseudo-maturidade de Meltzer (1966) e

aos pacientes narcisistas de Rosenfeld (1964), com sua excisão das partes

dependentes do self (apud Joseph).

Etchegoyen (1987) considera que pelo conceito de analisabilidade se

buscaria detectar e classificar previamente, enquanto que a acessibilidade

somente poderá ser estabelecida no próprio curso da análise, sendo que o

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conceito de analisabilidade pode incluir o analista, enquanto o conceito de

acessibilidade é mais vincular.

Considerando os fatores pessoais do paciente, Etchegoyen destaca a

importância da motivação como critério para a análise, já que quem se analisa

empreende um caminho, pois a análise é quase uma escolha de vida por muitos

anos, uma escolha por buscar a verdade, aonde o que temos a oferecer é um

tratamento longo e penoso, cuja premissa básica é conhecer a si mesmo.

Citando Bion (1962), refere que a atitude mental frente à verdade e ao

conhecimento de si mesmo influi muito no desenvolvimento do tratamento

analítico. Alerta que mesmo a busca espontânea ou a falta dela podem não nos

auxiliar a identificar um desejo autêntico de se tratar, podendo estar encadeada

com a própria patologia do paciente e, sendo assim, ser parte da tarefa analisar e

tentar resolver. Por outro lado, refere que uma pessoa que seja solitária e que não

disponha de um meio que lhe dê suporte na falta da análise, é sempre difícil de

ser analisada. Devem ser considerados no momento da indicação, ainda que não

sejam a essência, fatores como a dependência real e concreta de outros, incluindo

a dependência financeira e meio familiar hostil à análise.

No final da década de 80, Etchegoyen referia não achar convincente o

conceito de que a situação analítica seja determinada pelo par, porém propunha-

se a discutir o conceito de par analítico. Para tal, tomou como base os conceitos

de Liberman e Baranger.

Liberman (1969) parte de suas idéias sobre os estilos lingüísticos

complementares, e postula que o analista tenha um ego idealmente plástico.

Quanto maior a plasticidade do ego do analista, maior a riqueza de tons em sua

personalidade, podendo assim formar o par necessário com as notas que faltam

ao paciente.

Em trabalhos de maior relevância os Baranger (1961/62, 1964) partem da

teoria do campo e do baluarte. Descrevem que o Campo é uma situação

basicamente nova, criada pela análise e atravessada por linhas de forças de

ambos os componentes da dupla. No processo, o campo se cristaliza ao redor de

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um baluarte, o qual é construído pelo paciente, mas está sempre ligado às

limitações do analista. O campo se estrutura sobre a base de uma fantasia

inconsciente que pertence a ambos. O par poderá fracassar pelo que o paciente

fizer e pelo que o analista não puder resolver. Tal conceito implica uma limitação

individual de cada analista com relação a pacientes a quem possa ou não analisar.

Considero que a partir da teorização dos Baranger passa-se a enfatizar o

trabalho da dupla analítica e a capacidade de cada analista como critérios

fundamentais para a acessibilidade e analisabilidade do paciente.

Segundo Etchegoyen, o conceito de reverie de Bion (1962) também se

apóia no conceito de par analítico e, quanto mais reverie tiver o analista, mais apto

estará para receber qualquer paciente. Este modo de compreender está também

presente no conceito de holding de Winnicott (1955), como uma condição do

analista, que não depende especialmente do paciente.

Etchegoyen posiciona-se considerando ser possível analisar o

desenvolvimento pré-edípico, sendo tarefa do próprio trabalho analítico ir

delimitando gradualmente as duas áreas que sempre existem, mesmo nos casos

mais perturbados.

A capacidade em diferenciar a realidade externa da realidade psicótica não

se dá de modo absoluto, e sim aumenta com o crescimento e desenvolvimento

mental, sendo função principal do analista promovê-los. Todo paciente em algum

momento passará por situações psicóticas. O analista vai ter que travar a batalha

nos piores lugares, porque ali será colocado pelo analisado, e sair-se-á bem na

medida em que possa superar suas dificuldades pessoais e suas limitações

técnicas e teóricas. Ocorre-me aqui a importância da análise didática enquanto

instrumento fundamental para a disponibilidade do analista no trabalho com o

paciente.

O autor ainda pondera que os casos francos de psicose, perversão, adição

e psicopatia são sempre difíceis e deve-se pensar detidamente antes de tomá-los.

Autores na França, Inglaterra e América do Sul pensam que o método

psicanalítico seja também aplicável a outros tipos de pacientes, diferentes

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daqueles que estabelecem uma neurose de transferência. Para estes, podem ser

analisados, ainda que sejam mais difíceis, os aspectos psicóticos, farmacológicos,

perversos ou psicopáticos da transferência (apud Etchegoyen).

Wallerstein (2005), em um trabalho sobre as raízes históricas e situação

atual da psicanálise e da psicoterapia de orientação analítica, refere que à medida

que pacientes mais doentes e mais desorganizados (especialmente transtornos de

personalidade narcisista e organização borderline de personalidade) foram

incluídos dentro da esfera de ação psicanalítica (p. 55), os parâmetros da

psicanálise, inicialmente conceitualizada para pacientes neuróticos, foram

estendidos para além da interpretação (Gedo, 1979, apud Wallerstein), sendo seu

foco desenvolvido sobre a interação de duas subjetividades (do analista e do

analisando).

Antonino Ferro (1998), partindo de uma definição complexa e abrangente

de Campo (1986) como uma função cujo valor depende da sua posição no

espaço-tempo: sistema de infinitos graus de liberdade, dotados de infinitas

determinações possíveis que este assume a cada ponto do espaço e a cada

instante do tempo, propõe o que chamou de um vértice radical para os critérios de

analisabilidade. Para ele, de maior importância é o que nomeou critério de

capacidade de pôr-se à prova, pelo qual todo analista deveria ter consciência, com

base na própria análise, no seu funcionamento mental e grau de tolerância ao

risco e à frustração, até onde pode ir ao analisar. Descreve o conceito de

analisabilidade enquanto possibilidade de cura, ponto de chegada. Coloca, no

entanto, que este conceito foi acrescido, e em boa parte substituído por outros

dois: o da idoneidade para análise, concebido como capacidade de estar no

setting e de viver um processo transformador (Limentani, 1972); e o da

acessibilidade à análise (Joseph, 1985), conceito pelo qual podemos tão somente

fazer uma distinção do grau de dificuldade de acesso a um paciente (apud Ferro).

Referindo-se às situações de interrupções da análise, Ferro coloca como

válida uma análise que vá até onde possa ser feita por uma determinada dupla,

considerando que analisável não signifique garantia de um processo que chegará

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até a suposta conclusão de uma última etapa prevista. Em uma análise, descreve

como infinitas as aberturas de sentido e os mundos possíveis que podem ser

ativados.

Ferro comenta que para ele o critério de analisabilidade é um critério a

posteriori, pois não sabemos a princípio quais “histórias” (da dupla, do mundo

interno, da história) ocorrerão durante a análise e o quanto a função Alfa do

Campo e o aparelho para pensar os pensamentos de Campo serão capazes de

transformar os elementos Beta do Campo e, assim, manter o processo. Para ele,

todo o paciente difícil, ou não analisável segundo alguns parâmetros, tão somente

nos confronta com aspectos desconhecidos de nós mesmos, dele e das nossas

teorias (Gaburri; Ferro, 1988).

Receber um novo paciente implica também riscos à vida mental do analista,

pois os pacientes muito graves comportam o confronto e a metabolização de

angústias muito primitivas e por vezes catastróficas.

Ferro acrescenta que, sem ser um critério de analisabilidade, já no primeiro

encontro deva-se avaliar a possibilidade de operações transformadoras na

sessão, com relação às capacidades de formar imagens, histórias, reveries que se

ativam na dupla, como indicativos do funcionamento futuro desta dupla e do que

terão a tratar.

Por fim, refere que a atenção dos que se dedicaram ao tema da

analisabilidade deslocou-se significativamente do estudo das características do

paciente, para as características da dupla e da interação entre um determinado

paciente com um determinado analista. Em seu modo de conceber a

analisabilidade, enfatiza predominantemente o campo e a capacidade e

disponibilidade do analista e bem menos as características do paciente.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo exposto, fica evidente que ao longo deste século de psicanálise houve

uma oscilação nas fronteiras de sua abrangência como método terapêutico, por

vezes estendendo-se, por vezes recuando.

O próprio conceito de analisabilidade modificou-se desde o início,

primeiramente destinado a definir a indicação ou contra-indicação da análise,

depois incluindo o conceito de acessibilidade, até chegar à concepção de Ferro,

como possível de ser estabelecido somente durante a análise e abrangendo até

seu término, demonstrando ser um conceito que permeia todo momento da

análise e a qualquer momento importante e útil de ser pensado para nortear nosso

trabalho.

Nos primórdios da psicanálise, o próprio Freud deixou em aberto a

possibilidade de conseguir no futuro uma maneira de tratar os casos que não

estivessem no âmbito das neuroses de transferência. Neste século de psicanálise

a clínica passou a requerer um constante questionamento da especificidade do

método analítico e do possível alargamento do que se compreende analisável,

sendo a analisabilidade cada vez mais relacionada à capacidade do analista e da

contratransferência.

Considero o deslocamento na ênfase para as características da dupla e

interação entre um determinado paciente com um determinado analista, o Campo

e principalmente a capacidade e disponibilidade do analista e bem menos as

características do paciente, como resultante do aprofundamento na compreensão

do “fenômeno” analítico em si, tendo por trás uma fronteira de indicações e contra-

indicações que já foi, dentro do possível, estabelecida anteriormente. Ainda hoje

são úteis muitas das recomendações de Freud (1904), suas indicações e contra-

indicações, redefinidas e aprimoradas por Fenichel (1945) e Greenson (1967).

Os desenvolvimentos que se seguiram aos conceitos de holding, objeto

transicional e espaço potencial de Winnicott e a função de reverie de Bion,

especialmente as questões de Campo dos Baranger, da intersubjetividade e mais

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recentemente as teorizações de Green (1999) e do casal Botella (2002) do

irrepresentável e da figurabilidade (Botella; Botella, 2003), voltados à necessidade

de construir o não-construído, tem contribuído muito para que possamos ter

acesso terapêutico a pacientes das chamadas patologias do vazio, borderlines,

ampliando os recursos técnicos e as fronteiras da analisabilidade.

Adicionalmente, a introdução de parâmetros, incluindo o uso de

psicofármacos, pode permitir uma abrangência ainda maior, favorecendo a

acessibilidade para o tratamento de pacientes com diagnósticos clínicos mais

graves.

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