Santaella - Projeto de Pesquisa

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    O PROJETO DE PESQUISA E SEUS PASSOS*Lcia Santaella

    Este captulo ser dedicado s orientaes para se elaborar um projeto

    de pesquisa. H uma farta bibliografia sobre isso e toda ela bastanteconsensual quanto aos tpicos que uma tal elaborao deve considerar e aospassos que devem ser seguidos para que ela seja bem sucedida. nesseponto que toda pesquisa comea: pela elaborao de seu projeto. Sem isso, apesquisa j estaria comprometida de sada, pois seria o mesmo que fazer umaviagem sem conhecimento de seu caminho. Iniciar uma pesquisa sem projeto apostar alto demais na improvisao, alm de revelar ignorncia quanto aoslimites que a improvisao apresenta. Isso, se no forem mencionadas asconfuses, inseguranas, ingenuidades, dispndio temporal, esforos erecursos mal gastos em que uma tal aventura incorreria.

    Um mau projeto no muito diferente da ausncia de projeto. Issoexplica por que tantas pesquisas comeam sem terminar, ou por que terminammal. Sem planejamento rigoroso, mesmo quando consegue realizar a etapa dacoleta de dados, o investigador se ver perdido em um cipoal, em umemaranhado de dados, sem saber como analis-los e interpret-los pordesconhecer seu significado e importncia no contexto maior de um problemabem demarcado, de hipteses apropriadamente formuladas e dos objetivos queuma pesquisa visa atingir.

    O projeto funciona como uma viso antecipada, um planejamento dospassos que sero dados pela pesquisa. Churchman (1971: 190, apud RUDIO,ibid.: 45) nos diz que "planejar significa traar um curso de ao que podemosseguir para que nos leve s nossas finalidades desejadas". Isso no deve serentendido necessariamente como ausncia de criatividade e fechamento paraas surpresas do caminho, pois quanto mais o curso de uma ao estiver bemplanejado, mais equipados estaremos para reconhecer e lidar com oinesperado, enquanto que, sem planos, via de regra, nos perdemos nasbrumas confusas de um jogo sem regras.

    Projetar significa, portanto, antever e metodizar as etapas ou fases paraa operacionalizao de um trabalho. Qualquer trabalho humano processo

    explcita ou implicitamente projetado. A especializao do trabalho cientficoexige a construo prvia de um instrumento tcnico que conduza a aesorientadas para um fim e sustentadas sobre uma base de recursos humanos,tcnicos, materiais e financeiros. Esse instrumento tcnico o projeto depesquisa. Sua elaborao em forma acabada no deve, contudo, serintimidante a ponto de paralisar a flexibilidade do pesquisador para se adaptara possveis mudanas que podem surgir, e quase sempre surgem, no decorrerda execuo de uma pesquisa. Quando o projeto se coloca em ato, noprocesso de execuo, aparecem os momentos de fertilidade em que brotameventuais descobertas de dados no previstos, junto com o aprofundamentodas idias iniciais.

    Este o captulo IV do livro Comunicao e Pesquisa, de Lcia Santaella

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    Como tal, o projeto apenas uma das etapas da pesquisa. Ele serve deguia para a execuo propriamente dita e esta, por sua vez, deve ser seguidade sua apresentao em forma comunicvel, na imensa maioria das vezes,

    atravs da escrita. Por isso mesmo, Peirce colocou no terceiro ramo dasemitica, junto com a metodutica, a retrica especulativa, isto , o estudo daeficcia comunicativa da investigao cientfica. No momento, ficaremosapenas na primeira etapa, a da elaborao do projeto.

    1. QUESTES DE UM PROJETO

    Tudo deve estar previsto em um projeto de pesquisa, desde a escolhade um tema, a coleta de informaes preliminares, a delimitao de umproblema, sua justificativa frente ao que j foi realizado no assunto em que ele

    se insere, a fixao dos objetivos, o levantamento das hipteses, adeterminao de um referencial terico e de uma metodologia que sejamadequados para testar as hipteses e resolver o problema colocado, a coletados dados, sua anlise e interpretao e as tcnicas prprias para isso, at apreviso de recursos humanos e instrumentais, do cronograma, tudo isso paraterminar na elaborao de um relatrio final, de uma tese ou de um livro.

    Inclusas em todos esses passos esto as perguntas clssicas que umprojeto deve enfrentar: o qu?, por qu?, para qu e para quem?, onde?,como?, com qu? quanto e quando?, quem?, com quanto? Traduzindo: o queser pesquisado? Por que a pesquisa necessria? Como ser pesquisado?Que recursos humanos, intelectuais, bibliogrficos, tcnicos, instrumentais efinanceiros sero mobilizados? Em que perodo?

    Previstas e respondidas todas essas perguntas, o projeto possibilitar aopesquisador "impor-se uma disciplina de trabalho no s na ordem dosprocedimentos lgicos, mas tambm em termos de organizao do tempo, deseqncia de roteiros e cumprimento de prazos" (SEVERINO, 2000: 159).

    Uma viso panormica do projeto de pesquisa ser apresentada abaixopara ser depois seguida pela discusso detalhada de cada um dos seus

    passos.Um projeto comea pela escolha de um tema ou assunto sobre o qual a

    pesquisa versar. Uma vez que nenhum projeto surge do nada, ele deve serintroduzido por uma apresentao voltada para a gnese do tema. Como opesquisador chegou a ele? Quais os motivos relevantes que fisgaram suacuriosidade e produziram nele dvidas a respeito desse tema, Essas dvidasso providenciais, pois delas que o problema da pesquisa ir brotar.

    Temas, entretanto, no so virgens. Por isso mesmo, qualquer projetodeve ser antecedido por estudos preliminares sobre o tema. Mas que estudos

    preliminares so esses? Sabemos que a realidade uma trama finamenteurdida de determinaes e a cincia e, mais ainda, a filosofia, esto longe de

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    terem comeado hoje. Felizmente os temas que escolhemos, ou pelos quaissomos escolhidos, no abraam a realidade inteira, principalmente porquenosso olhar e nosso pensamento j esto conformados a um certo modo de verque depende dos referenciais tericos que dominamos. Esses referenciais soespecficos, prprios das distintas reas de conhecimento em que a cincia se

    subdivide. Uma vez que nos constitumos como pesquisadores dentro dealguma rea de conhecimento, os estudos preliminares j esto previamentedelimitados pela rea de insero do pesquisador. Dentro de cada rea, hainda delimitaes que lhe so prprias e que se constituem nas suas sub-reas. Dentro das sub-reas, encontram-se estratificaes de temas, junto squais o tema de nossa escolha, via de regra, se localiza.

    Tendo assim localizado o tema, os estudos preliminares envolvem desdeleituras bibliogrficas, visitas a locais especficos, quando o tema exigir, atdiscusses com especialistas e colegas. Esses estudos preliminares sosubstanciais para a delimitao do problema de pesquisa. Alm disso, neles

    tem incio uma das exigncias fundamentais de um projeto de pesquisa: areviso bibliogrfica, que s poder se complementar quando o problemaestiver pelo menos relativamente definido. De todo modo, atravs da busca deinformao sobre o tema que as dvidas vo gradativamente se tomandomais claras e o problema pode ir se delineando.

    Tudo isso necessrio porque um tema no ainda um problema. Esteltimo se constitui na questo mais fundamental de toda a pesquisa, por issomesmo, deve ser precisamente recortado, delimitado e claramente formulado.Isso no acontece por passe de mgica, nem da noite para o dia. Da anecessidade de estudos preliminares, de momentos de concentraocuidadosa e meditativa, de discernimento das fronteiras do problema sem oque no seria possvel extra-Io do contexto de infindveis determinaes emque um tema se situa.

    claro que nos casos em que uma pesquisa se origina de outrapesquisa, a delimitao do problema sempre mais simples, visto que essadelimitao, via de regra, j brota enquanto a pesquisa anterior est sendorealizada. Poucas so as pesquisas que no funcionam como geradoras deoutras pesquisas. por isso que os verdadeiros pesquisadores fazem pesquisaa vida inteira, pois, enquanto fazem uma, j so mordidos pela curiosidade em

    relao a novos problemas que vo aparecendo no meio do caminho e que tmde ser guardados para uma outra ocasio. Ao mesmo tempo que respondem aum problema proposto, as pesquisas so fontes inesgotveis de novosproblemas. Isso no se d por acaso, mas fruto do aprofundamento que aspesquisas nos obrigam a ter em relao aos fenmenos.

    Definido o problema, deve ser elaborada a reviso bibliogrfica oupesquisa sobre o estado da questo, quando so estudados os trabalhos quese situam na circunvizinhana do problema, trabalhos que versam sobreproblemas similares. A elaborao da reviso bibliogrfica deve ter em vista acontraposio dos trabalhos j publicados em relao ao problema que a

    pesquisa prope. V-se a por que a reviso bibliogrfica importante. De umlado, ela deve comprovar que o pesquisador no est querendo realizar algo

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    que j foi feito, de outro lado, ela ajuda a encaminhar o passo seguinte dapesquisa, a justificativa, quer dizer, a argumentao sobre a relevncia dotrabalho, no apenas enfatizando que ele ainda no foi feito por outropesquisador, mas principalmente por que ele deve ser realizado.

    Justificado o problema, o projeto se encaminha para a definio dosobjetivos, quer dizer, que fins a pesquisa visa atingir? Quais so os aspectosque o problema envolve e em que sua soluo resultar no tocante a cada umdesses aspectos?

    Depois disso, o pesquisador passa para a formulao das hipteses.Como suposies de respostas para o problema proposto, as hipteses seresponsabilizam pelo direcionamento da pesquisa, na medida em que so elasque a pesquisa ter por finalidade demonstrar ou testar e comprovar ou no.Ora, no h formulao de hipteses sem um quadro terico de referncia. por isso que essa formulao j encaminha o pesquisador para a explicitao

    do seu quadro terico. Este se constitui em um "universo de princpios,categorias e conceitos, formando sistematicamente um conjunto logicamentecoerente, dentro do qual o trabalho do pesquisador se fundamenta e sedesenvolve" (SEVERINO, ibid.: 162).

    Tendo chegado neste ponto, o projeto pode ento se debruar sobre asquestes metodolgicas, tcnicas e instrumentais. Enquanto o mtodo serefere a procedimentos de raciocnio e analticos mais amplos, as tcnicas sooperacionalizaes do mtodo das quais os instrumentos so suportes.

    no momento da indicao dos procedimentos metodolgicos que opesquisador deve localizar o tipo de pesquisa que est realizando, terica ouaplicada, histrica ou tipolgica, crtica ou sistmica, emprica com trabalho decampo ou de laboratrio, etc. A metodologia est sempre estreitamente ligadaa essa tipologia. Alm disso, os mtodos devem estar perfeitamente afinadoscom o problema proposto e com as hipteses. Tendo o problema em mente, opesquisador deve se perguntar: "como e com que meios poderei resolv-Io?"Este "como e com que meios" entrelaa as hipteses e o mtodo. As hiptesesfuncionam como sinalizaes para o caminho a ser percorrido. Por isso, omtodo deve estar sintonizado nessas sinalizaes. Alm disso, no podehaver contradio entre o mtodo e o quadro terico de referncia, tambm

    chamado de fundamentao terica, pois, muitas vezes, o mtodo advmdiretamente do quadro terico.

    Por fim, o cronograma da pesquisa deve ser estabelecido com indicaodas etapas a serem cumpridas em cada perodo. A ele se segue a indicaodos recursos humanos e materiais necessrios e sua justificativa, tendo emvista o que a pesquisa mobilizar. Ao final de tudo, deve comparecer a listabibliogrfica preliminar, pois a bibliografia definitiva s pode e deve sercomplementada no decorrer da execuo do projeto. Muitas vezes opesquisador divide a bibliografia em duas partes. Uma parte j consultada paraa elaborao do projeto e outra parte a ser pesquisada no decorrer da

    execuo do trabalho.

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    Tendo esse panorama geral como pano de fundo, podemos passar parao detalhamento de suas partes. Inicio pelas etapas que devem anteceder elaborao do projeto, visto que so elas que tornaro essa elaboraopossvel.

    2. A ESCOLHA DO TEMA

    Quando uma pesquisa se desenvolve no seio de uma instituio comprogramas de pesquisa pr-definidos nos quais o pesquisador est engajadoou quando uma pesquisa encomendada por alguma empresa,evidentemente, seu tema no fruto da escolha do pesquisador. No mundouniversitrio, entretanto, a imensa maioria das pesquisas nasce da livreescolha do pesquisador.Vem do pesquisador a necessidade de estudar umdeterminado assunto. Mas quais so as motivaes que nos levam a escolherum tema?

    Segundo Barros e Lehfeld (1991: 26-27), os temas podem surgir daobservao do cotidiano, da vida profissional, do contato e relacionamento comespecialistas, do feedback de pesquisas j realizadas ou do estudo de literaturaespecializada. Conforme Lakatos e Marconi (1992: 45), alm daspossibilidades acima, as fontes para a escolha de um assunto podem aindaoriginar-se da experincia pessoal, de estudos e leituras, da descoberta dediscrepncias entre trabalhos ou da analogia com temas de estudos de outrasdisciplinas ou reas cientficas. Enfim, completam as autoras (ibid.: 102), otema pode surgir de uma dificuldade prtica, de uma curiosidade cientfica, dedesafios encontrados na leitura de outros trabalhos ou da prpria teoria.

    A despeito de todas essas diferentes possibilidades, algo comum aelas: um tema surge quase sempre de uma inteno ainda imprecisa. Umaimpreciso que s pode ser indicadora de que a escolha de um tema advmmuito menos de uma vontade racional do que de motivos sobre os quais temospouco domnio consciente. De fato, um tema algo que nos fisga, para o qualnos sentimos atrados sem saber bem por qu. Por isso mesmo, temas depesquisa no devem ser mudados diante da primeira dificuldade que seapresenta ou diante de influncias alheias. Um tema nasce de um desejo, que, por sua prpria natureza, sempre obscuro, e no costuma adiantar muito atentativa de lhe virar as costas. Em outras palavras, no podemos ser infiis ao

    desejo que s se deixa mostrar escondendo-se por trs de uma intenoimprecisa atravs da qual um tema de pesquisa aparece.

    No obstante a impreciso, claro que os temas tm tudo a ver com ahistria de vida e, especialmente, com a histria intelectual do pesquisador. Emque rea cientfica est inserido, que repertrio j adquiriu nessa rea, qual aintensidade de seus contatos com outros pesquisadores e com especialistas narea, seu noviciado ou sua experincia em pesquisa so todos fatoresdeterminantes para a escolha de um tema. Entretanto, esses fatores no socapazes de impedir que os temas surjam, o mais das vezes, de modo vago,muito geral e indefinido. A apreciao de Demo (1985: 49-50) sobre isso

    especialmente lcida e importante para que um pesquisador iniciante no sesinta perdido em meio s incertezas iniciais e ctico em relao sua

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    capacidade de definir mais precisamente seu tema. Quando nos propomos arealizar um trabalho cientfico, diz o autor,

    " normal que a primeira impresso seja de perplexidade. No sabemos por ondecomear, sobretudo se nunca nos tnhamos metido antes no assunto. Todavia, asituao normal de quem se julga pesquisador e no detentor de saber evidente e prvio.[...] Quem parte de evidncias, nada tem a pesquisar. O processo de superao dessaperplexidade inicial algo central na formao cientfica de uma pessoa.

    Enfim, a indefinio inicial de um tema normal, pois o que importa no o seu modo de ser, mas a elaborao que deve ser realizada para que ele vgradativamente ganhando concretude, preciso e determinao. Para isso,entretanto, o pesquisador deve se entregar aos estudos preliminares, sem osquais seria impossvel caminhar da impreciso para a definio.

    3. ESTUDOS PRELIMINARES

    Por onde comear? Buscando informaes sobre o tema, seja de ordemfactual, seja de ordem terica. Rudio (1992: 39) muito apropriadamente noslembra que, para a realizao dos estudos preliminares, de mximaimportncia sabermos em que rea, e melhor ainda, em que sub-rea doconhecimento "nosso tema se situa para que possamos determinar osfundamentos tericos que lhe servem de base, isto , estabelecer quais asrelaes entre o assunto de nossa pesquisa e a Teoria Cientfica quedesejamos utilizar". Foi por ter essa necessidade em vista que, no segundocaptulo deste livro, busquei construir o mapeamento da rea de comunicaopara que o pesquisador possa localizar em qual territrio seu assunto se situa equais so as interfaces desse territrio com os territrios vizinhos. Tanto quantoposso ver, a visualizao desses territrios nos ajuda a compreender de queteorias esses territrios dependem para existir cientificamente. Justo por isso,procurei tambm inserir no mapa as teorias que so prprias a cada territrio.

    Com uma viso relativamente clara da rea de insero de seu tema, preciso que o pesquisador v para a biblioteca ler sobre o assunto. Vale notarque biblioteca quer dizer tudo que se pode encontrar nela: enciclopdias, livros,peridicos especializados, que so fundamentais sob o ponto de vista daatualizao sobre o tema, catlogos, teses e dissertaes, jornais, vdeos, isso

    sem mencionar o acesso a bancos de dados que hoje se pode ter a partir doscomputadores localizados nas bibliotecas ou em nossas prprias casas. Ocontato com esse acervo fundamental no apenas para buscar subsdios queorientem e dem mais segurana sobre a escolha do tema, mas que ajudem aformular o seu enunciado. De resto, tambm para saber se o assunto que sepretende estudar j foi objeto de outras pesquisas e sob que ngulos essaspesquisas o enfocaram.

    certo que as leituras tomam muito do nosso tempo, mas, na realidade,elas ajudam a diminuir o tempo estril das idias confusas e pouco definidasque so sempre motivos de angstia para o pesquisador.

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    Segundo Bastos (1999: 19-20), o levantamento bibliogrfico preliminar imprescindvel. Antes de tomarmos qualquer deciso sobre a nossa pesquisa,precisamos ter o maior nmero de informaes e de leituras que so possveisnessa etapa de desenvolvimento do projeto, no s para melhor delimitar oassunto, "mas tambm para desenvolv-Io longe de um ponto de vista do

    senso comum". Juntamente com o acesso a material bibliogrfico, Bastosconsidera a necessidade de dilogo com especialistas para discutir e aprimoraro tema escolhido, confrontando sempre que possvel as sugestes e crticas deum especialista com as de outros especialistas. Essa multiplicidade de pontosde vista fundamental para que o pesquisador no fique, de sada, fixado emum modo de ver, em um nico tipo de fundamentao terica, mas que saibafazer uso da riqueza dessa fase preparatria para explorar a diversidade que prpria a qualquer uma das reas das cincias humanas.

    Vale enfatizar que todo o esforo despendido nos estudos preliminaresse volta produtivamente para a clarificao gradativa do tema, rumo definio

    de uma questo, de um problema a ser pesquisado. Contudo, o segredo dosestudos preliminares est na arte do pesquisador para saber exatamente omomento em que deve interromp-los. A massa de literatura existentedesdobra-se infinitamente. Dela Jorge L. Borges j nos forneceu uma versocriadora na sua Biblioteca de BabeI. Os estudos preliminares devem, portanto,cercar as obras mais fundamentais, tendo em vista um panorama de fundo quehabilite o pesquisador a situar sua questo para poder melhor defini-Ia. Essaarte de saber onde parar , nesse caso, auxiliada pelo fato de que a pesquisabibliogrfica no se reduz a isso, alm de que essa pesquisa preliminar deverdepois ser incorporada ao projeto junto com sua complementao em umtpico sob o ttulo de "Reviso bibliogrfica" ou "Estado da questo';, conformeser melhor definido no momento oportuno.

    3.1 O PR-PROJETO

    Pouco a pouco, dos estudos preliminares um problema de pesquisacomea a se delinear. A partir disso, o pesquisador deve criar coragem e,apesar de o momento ainda lhe parecer precoce, ensaiar a elaborao de umpr-projeto. Embora tudo parea ainda muito vago, preciso aproveitar asincertezas iniciais para delas extrair seu sumo. O lusco-fusco da impreciso

    propcio para despertar aquilo que Peirce chamou de uberty, "uberdade", isto ,capacidade de responder criativamente aos estmulos que nos chegam tantodo exterior quanto, principalmente, do interior de nossa mente. Passeandovivamente pelas idias e contemplando-as com interesse desprendido, opensamento fica entregue ao musement, estado de concentrao distrada,condio para a "uberdade" (ver SEBEOKet aI., 1993). em momentos comoesse que, via de regra, brotam as hipteses que iro conduzir a pesquisa.Tanto isso verdade que nunca somos capazes de explicar como chegamoss hipteses. Elas parecem estar simplesmente l, nossa espera. De fato, deacordo com a teoria peirceana da abduo, hipteses so frutos de umaespcie de adivinhao, capacidade de que o ser humano dotado para

    adivinhar os desgnios das coisas, tanto quanto o pssaro dotado do podervoador.

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    Parece evidente que a "uberdade" s premia aqueles que buscam. A

    mente s pode passear entre idias, quando nela as idias so frteis, casocontrrio temos de nos contentar com idias fixas, que so o lado do avesso da"uberdade". Vem da uma outra boa razo para justificar a necessidade dos

    estudos preliminares.

    O anteprojeto assim uma primeira proposta de sistematizao para sertestada, modificada e aperfeioada na medida em que a delimitao daquesto a ser pesquisada for amadurecendo. Trata-se de um ponto de partidaque brota sob efeito do pensamento sinttico, onde tudo aparece ao mesmotempo. Realmente, um projeto no nasce parte por parte, mas em algunslampejos em que tudo aparece junto e ainda confuso. O anteprojeto aprimeira tentativa de organizar os tios dessa trama sinttica. Para essaorganizao, juntamente com os resultados das correes sucessivas a que oanteprojeto vai sendo submetido, deve entrar em ao o pensamento analtico,

    aquele que guiar os passos da elaborao do projeto.

    4. A ELABORAO DO PROJETO

    No detalhamento dos passos a seren1 dados para a elaborao doprojeto de pesquisa, irei me deter com mais demora em questes que dizemrespeito a pesquisas no-experimentais e no quantitativas, pois para asexperimentais e quantitativas j existe um abundante material bibliogrfico (verespecialmente a extensa obra de Laville e Dione, 1999, as competentes obrasde Lakatos e Marconi (1982a, 1982b e 1992) ou a mais breve, mas no menosexcelente obra de Rudio, 1992). Uma vez que os manuais de orientao paraas pesquisas quantitativas se detm muito pouco nas questes que tm maispeso nas pesquisas qualitativas, tais como estado da questo, quadro tericode referncia, discusso das estratgias metodolgicas no-quantitativas esuas justificativas, para elas que estarei chamando mais ateno.

    4.1. OS ANTECEDENTES

    Muitas vezes o pesquisador se sente tmido em se mostrar presente no

    seu discurso. Realmente, no fcil encontrar o ponto certo e justo daenunciao de um discurso cientfico em que a pessoalidade no caia, de umlado, na mera confisso subjetiva adocicada e enjoativa ou, de outro, nopedantismo de uma neutralidade forada e artificial. De todo modo, buscandoevitar esses dois extremos, h um momento inicial na abertura de um projetode pesquisa em que a figura do pesquisador deve aparecer. Chamo essemomento de "antecedentes" ou "histrico" para com isso designar o quadro dereferncia pessoal da proposta de pesquisa.

    A presena desse quadro de referncia muito comum nos casos daspesquisas que brotam diretamente de pesquisas anteriores, o que pode

    acontecer, por exemplo, quando o pesquisador decide continuar no doutoradocom uma questo que no foi possvel desenvolver ou aprofundar no mestrado.

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    Para introduzir um novo projeto, o pesquisador procede ao breve relato dasconcluses ou resultados alcanados na pesquisa anterior, com ateno para oponto em que sua ateno foi despertada para uma nova questo. Nessemomento, o relato inclui obrigatoriamente o quadro de referncia pessoal, querdizer, em que medida o pesquisador est implicado naquilo que deseja realizar.

    Mesmo no caso de uma pesquisa no estar na linha de continuidade deuma outra j realizada pelo pesquisador, o interesse por um assunto, um temaou uma questo no surge do vcuo. Ele fruto de uma histria de vida, deexperincias profissionais, intelectuais, constru das mediante caminhosprprios, dos valores e escolhas que nos definem. Tem-se a a gnese do temada pesquisa cujas vicissitudes j foram discutidas acima. Trata-se agora, nomomento de elaborao do projeto, de incorporar em um relato aquilo que,dessas vicissitudes, tem pertinncia para a apresentao do tema e daquiloque conduziu sua escolha.

    Embora no comparea em outros livros de metodologia como um passonecessrio elaborao de um projeto de pesquisa, considero essaapresentao muito importante. Afinal, ns pesquisadores somos seresviventes. A pesquisa no algo estranho, margem de nossa histria de vida,mas nela se integra de maneira indissolvel. Quando bem dosado, evitando omero biografismo inoportuno, o relato de como o pesquisador chegou ao temapode dar sabor de vida ao projeto. Alm disso, ao incorporar aquilo querealmente importa, isto , como foi se dando o estreitamente gradativo daamplitude do tema para a delimitao do problema da pesquisa, o quadro dereferncia pessoal vai pouco a pouco se encaminhando para o tpico seguinte,o mais importante do projeto, ou seja, a delimitao da questo proposta pelapesquisa.

    4.2. A DEFINIO DO PROBLEMA

    Para Laville e Dionne (1999: 27), conscientizar-se de um problema depesquisa

    "depende daquilo que dispomos no fundo de ns mesmos: conhecimentos de diversasordens - brutos e construdos -- e entre esses conceitos e teorias; conhecimentos queganham sentido em funo de valores ativados por outros valores: curiosidade,

    ceticismo, confiana no procedimento cientfico e conscincia dos seus limites."

    Na fase de definio do problema, entretanto, como j foi discutido etambm querem os autores, as capacidades intuitivas ganham importncia,pois a percepo inicial de um problema , o mais das vezes, pouco racional.

    Para se sair da problemtica sentida, imprecisa e vaga e se chegar a umaproblemtica consciente e objetivada, uma problemtica racional, Laville eDione (ibid.: 98) aconselham o pesquisador "a jogar o mais possvel de luzsobre as origens do problema e as interrogaes iniciais que concernem a ele,sobre a sua natureza e sobre as vantagens que se teria em resolv-lo, sobre o

    que se pode prever como soluo e sobre o modo de a chegar".

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    Rudio (ibid.: 72) fornece uma exemplificao muito oportuna para secompreender a passagem gradativa em que um tema ainda vago vai sendodelimitado de modo a ir se transformando em um problema de pesquisa.Suponhamos que algum diga que quer fazer uma pesquisa sobredelinqncia juvenil, essa afirmao apenas indica de modo muito vago e geral

    um dos elementos do campo de observao: a populao. Mas se acrescentaque seu interesse est nos crimes cometidos pelos delinqentes, passa a nosindicar, ento, uma das variveis a serem observadas. Se complementa quedeseja saber se certos crimes que os delinqentes cometem so ocasionadospelo efeito do uso de txicos, tem-se a a inteno de relacionar duas variveis:se o uso de txicos (varivel independente) ocasiona os crimes (variveldependente), cometidos por delinqentes juvenis. claro que a delimitao daquesto no pra a, pois h outros elementos no campo de observao aserem levados em considerao. De todo modo, quando aparecem as duasvariveis, a amplitude do tema j se especificou em uma pergunta, que substancial para a definio de um problema. Enfim, como parece bvio, para

    se passar do tema ao problema, o tema deve ser problematizado.

    O que , portanto, um problema de pesquisa? Vejamos algumas dasdefinies que j foram formuladas sobre isso. No h problema sem umaindagao central, uma dificuldade que se quer resolver. Desse modo, oproblema de pesquisa uma interrogao que implica em uma dificuldade nos em termos tericos ou prticos, mas que seja tambm capaz de sugerir umadiscusso que pode, inclusive, em alguns casos, passar por um processo demensurao, para terminar em uma soluo vivel atravs de estudosistematizado (BASTOS, 1999: 114). Do ponto de vista formal, um problema um enunciado interrogativo. Semanticamente, uma dificuldade ainda semsoluo que deve ser determinada com preciso para que se possa realizarseu exame, avaliao, crtica, tendo em vista sua soluo (ASTI VERA, 1974:94).

    Certamente nem todos os problemas que existem podem se prestar pesquisa cientfica. Para ser problema de pesquisa, ele deve ser um problemaque se pode resolver, com conhecimentos e dados j disponveis, alm deoutros passveis de serem produzidos. No se trata de um problema que podeser resolvido pela intuio, especulao ou senso comum, pois um problemade pesquisa "supe que informaes suplementares podem ser obtidas a fim

    de cerc-Io, compreend-Io, resolv-lo ou eventualmente contribuir para a suaresoluo". Finalmente, um verdadeiro problema de pesquisa deve ser capazde produzir compreenso que fornea novos conhecimentos para o tratamentode questes a ele relacionadas (LAVILLE e DIONNE, 1999: 87-88).

    As concluses pragmticas que podem ser extradas das definies acimaindicam que um problema deve ser formulado como uma pergunta. H, noentanto, perguntas e perguntas. Indagaes gerais, to gerais quanto o prpriotema, esto muito longe de permitir o detalhamento do projeto. Alm disso, aformulao deve ser clara e precisa. Essa clareza se constitui em passofundamental, pois dela dependero os passos subseqentes do projeto,

    sobretudo a formulao das hipteses e a obteno de parmetros para asescolhas metodolgicas. A pergunta deve tambm ser significativa, deve conter

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    a promessa de que uma soluo pode ser esperada, caso contrrio nohaveria razo para se fazer uma pesquisa. O problema deve ser, alm disso,vivel, exeqvel, quer dizer, ele pode ser objetivamente verificado. Em suma,formular um problema, segundo Rudio (ibid,: 75),

    "consiste em dizer, de maneira explcita, clara, compreensvel e operacional, qual adificuldade com a qual nos defrontamos e que pretendemos resolver, limitando seucampo e apresentando suas caractersticas. Dessa forma, o objetivo da formulao doproblema da pesquisa torn-Io individualizado, especfico, inconfundvel".

    Cumpre lembrar aqui que o pesquisador no deve passar para a prximaetapa do projeto, a reviso da literatura, antes de ter circunscrito muito bem seuproblema atravs da formulao de sua pergunta. Sem isso, correr o risco dese deixar levar deriva nas inesgotveis fontes de pesquisa. Para avanar comeficcia nos passos do projeto, preciso saber bem o que se procura. S comesse trunfo nas mos, o pesquisador pode mergulhar nas leituras e consultas,o que no significa que, no percurso, estas no possam produzir reorientaesno problema.

    4.3 O ESTADO DA QUESTO

    Tambm chamado de "reviso bibliogrfica" ou "bibliografia comentada",este passo da elaborao do projeto j teve seu incio nos estudospreliminares. Neste novo momento, entretanto, uma vez circunscrito oproblema com clareza necessria, para funcionar como um fio condutor eajudar o pesquisador a dar prosseguimento ao seu projeto, o contorno da

    reviso bibliogrfica torna-se tambm mais ntido.O conhecimento se d em um continuum. As interpretaes que

    fazemos das coisas, fatos e pessoas esto sempre a meio caminho, tm algode provisrio. Essa a regra nmero um que se pode extrair da noo desemiose peirceana. As crenas que adquirimos atravs da cincia no somuito diferentes. Nada h nelas de eternidade. Tambm na pesquisa cientfica,estamos sempre a meio caminho. E s deixamos de estar quando cessamosde ter dvidas porque perdemos a disponibilidade para ouvir o que o outro tema dizer. Em suma, nenhuma pesquisa parte da estaca zero. Mesmo em um tipomuito simples de pesquisa, a exploratria, que visa meramente avaliao de

    uma situao concreta desconhecida, algum em algum lugar j deve ter tidouma preocupao semelhante. Por isso, a procura cuidadosa e paciente, porvezes at mesmo obstinada, de fontes documentais ou bibliogrficas imprescindvel.

    Raros so os problemas e as perguntas que no foram previamentelevantados. Mais uma vez Borges quem nos lembra que os grandesproblemas j foram pensados pelos gregos, de modo que a proeza do tempo a de levar o ser humano a incansavelmente recoloc-los sob novas e maisalargadas entonaes. Mesmo quando o pesquisador no vai to longe, no sedeslocando muito na direo do passado, a abbada ideativa que recobre as

    sociedades e culturas histricas, determinando os limiares daquilo que d paraser pensado em cada momento histrico dado, traz como conseqncia que,

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    mesmo que as perspectivas possam diferir, as interrogaes equestionamentos de cada historicidade acabam no sendo a rigor muitodistintos. H, enfim, um inegvel Zeitgeist, esprito de tempo, ou aquilo que,com muito mais preciso, Foucault chamaria de episteme, que coloca opesquisador em um crculo de questes no qual muitos esto simultaneamente

    inseridos.

    Por isso mesmo, a reviso bibliogrfica significa, muitas vezes, conformeas palavras de Laville e Dionne (ibid.: 113) "seguir a informao como umdetetive procura pistas: com imaginao e obstinao. , alis, esse aspectodo trabalho, agir como um detetive, que, com freqncia, torna prazerosa arealizao da reviso da literatura".

    Alongo-me tanto - e me alongarei ainda mais - nos meandros da questobibliogrfica, em primeiro lugar, porque nas pesquisas no-experimentais eno-quantitativas, essa a etapa que lhes d alma. Dela advir a melhor

    escolha de uma teoria ou snteses de teorias e conceitos que nortearo aescolha do mtodo e, conseqentemente, o teste, muitas vezes argumentativo,de nossas hipteses. Se no vamos utilizar mtodos e tcnicas para medir umcerto aspecto bem recortado da realidade, devemos, em troca, enfrentar osdesafios da impreciso qualitativa. Para isso, temos de nos valer da ajuda tantoquanto possvel alargada do pensamento do outro a que podemos ter acesso.Em segundo lugar, chamo tanta ateno para a pesquisa bibliogrfica porque atpica indigncia das bibliotecas nas universidades brasileiras muitas vezesacaba por criar em ns uma espcie de autodefesa inconsciente que semanifesta na negligncia e at mesmo no desprezo pela obstinao naperseguio das fontes. Disso decorre, via de regra, uma autocomplacnciamuito satisfeita, despida de inquietao, como so satisfeitas todas as formasde ignorncia. Tanto se sedimentou em nosso pas a cultura da neglignciacom as fontes que, mesmo quando tm o privilgio de freqentar universidadescom boas bibliotecas e com acesso informao bibliogrfica, que hoje setornou to facilitada pela internet, os estudantes continuam se contentandocom bem pouco.

    Enfim, fazer a reviso da literatura para a constituio do estado daquesto significa passar em revista todos os trabalhos disponveis, objetivandoselecionar tudo que possa servir em uma pesquisa. Nela, o pesquisador tenta

    encontrar essencialmente"os saberes e as pesquisas relacionadas com a sua questo; deles se serve paraalimentar seus conhecimentos, afinar suas perspectivas tericas, precisar e objetivar seuaparelho conceitual. Aproveita para tornar ainda mais conscientes e articuladas suasintenes e, desse modo, vendo como os outros procederam em suas pesquisas,vislumbrar sua prpria maneira de faz-Io" (LAVILLE e DIONNE, ibid.: 112).

    Nesse ponto, as autoras acima alertam para dois fatores: em primeirolugar, o cuidado que o pesquisador deve ter nessa etapa do trabalho para "nose deixar levar por suas leituras como um cata-vento ao vento", A indagaoque foi formulada na circunscrio de seu problema no pode ser perdida de

    vista e deve funcionar como um centro de gravidade. No fundo, o que deve serfeito aqui considerar a afirmao de Borges (esse grande esteta da arte de

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    ler) de que somos inelutavelmente leitores distrados com atenes parciais.No caso da reviso bibliogrfica, aceitar essa limitao no tarefa fcil,especialmente quando falta ao pesquisador a experincia de numerosasleituras anteriores, experincia da qual sempre se extrai uma espcie demetodologia prpria da leitura.

    Na ausncia de um repertrio j formado de leituras, o pesquisador, via deregra, se v perdido em um labirinto de idias, tendncias e posies, semconseguir, de imediato, dar a elas uma configurao coerente. Quando issoacontece, Lavil1e e Dionne (ibid.: 112) aconselham o pesquisador a usar atcnica do zoom, partindo "de uma tomada ampla de sua pergunta, sobre umespao documental que a ultrapasse grande mente, mas sem dela desviar osolhos e, assim que possvel, fechar progressivamente o ngulo da objetivasobre ela".

    De minha experincia em pesquisas que realizei, algumas delas sobre

    temas que me eram quase inteiramente novos, extrai um ensinamento quetalvez possa ajudar o pesquisador iniciante nessa fase de seu trabalho.Quando damos incio ao levantamento do estado da arte relativo questo queestamos pesquisando, geralmente dispomos de um certo nmero de ttuloscolhidos durante a fase de estudos preliminares. Cada um desses ttulos jfunciona como uma fonte para novos ttulos, nas citaes e referncias que faz,de modo que a listagem bibliogrfica que consta no final de cada obra seconstitui tambm em uma fonte inestimvel de pesquisa. Quando lemos, defato, os livros com cuidado, essa fonte costuma ser bastante preciosa, pois dela que comeamos a destacar os ttulos de maior interesse para ns.

    Conforme vamos avanando nessas leituras e na coleta dessas fontes, aum dado momento, sentimo-nos, de fato, perdidos em um labirinto, semvislumbre de qualquer fio que possa nos tirar dele. Entretanto, se nodesistirmos antes da hora, chegar um outro momento em que ns, comoleitores, comearemos a reconhecer e, inclusive saber localizar, em termos delinha de pensamento e posio terica, as citaes que os autores fazem unsdos outros. Quando as redes de referncias comeam a ser reconhecidas porns, isso significa que j estamos conseguindo desenhar mentalmente aconfigurao panormica de um tema ou problema de pesquisa. A chegadoo momento de interromper o estado da arte para dar prosseguimento s outras

    fases da elaborao do projeto, de modo que s voltamos s consultasbibliogrficas, quando, na execuo da pesquisa, deparamo-nos com dvidasno previstas e conseqentemente ainda no resolvidas, algo que sempreacontece.

    O segundo fator da reviso bibliogrfica para o qual Lavil1e e Dione (ibid.:112-113) chamaram ateno diz respeito necessidade de se evitar que essaatividade se assemelhe a "uma caminhada no campo onde se faz um buqucom todas as flores que se encontra". A reviso , sobretudo, um percursocrtico que deve ter em mira a pergunta que se quer responder. Por issomesmo, em funo da contribuio que podem trazer para nosso trabalho, o

    interesse que as obras despertam em ns so desiguais. Ademais, nem tudoque se l realmente bom. Da vem a outra expresso sinonmica de reviso

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    bibliogrfica, "bibliografia comentada". No se trata, portanto, de simplesmenteresumir, parafraseando o que est escrito nos livros, mas sim de fazerconsideraes, interpretaes e escolhas, explicando e justificando essasescolhas, sempre em funo do problema posto pela pesquisa.

    Felizmente no h receitas a serem dadas para a bibliografia comentada,sobretudo porque se trata de uma arte ensastica que s pode ser dominadacom a prtica e com a observao interessada em como ensastascompetentes a realizam. Em segundo lugar, porque as diretrizes de umareviso bibliogrfica dependem muito do tipo de pesquisa que est sendorealizada. Luna destaca que

    "uma reviso bibliogrfica que procure recuperar a evoluo de determinados conceitosenfatizar aspectos muito diferentes daqueles contemplados em um trabalho de revisoque tenha como objetivo, por exemplo, familiarizar o pesquisador com o que j foiinvestigado sobre um determinado problema de interesse".

    Como resumo final, cumpre assinalar que a reviso bibliogrfica deveexistir para que clichs sejam evitados, para que esforos no sejamduplicados, para que se possa apreender o grau de originalidade de umapesquisa. Outro aspecto de relevncia de uma bibliografia comentada, muitobem lembrado por Luna (ibid.: 82), reside na sua constituio - na medida emque condensa os pontos importantes do problema em questo - tanto de fontede consulta para futuros pesquisadores que se iniciam na rea, quanto de fontede atualizao para pesquisadores fora da rea na qual se realiza o estudo.

    4.4 A APRESENTAO DAS JUSTIFICATIVASNos passos para a elaborao de um projeto de pesquisa, muitos

    metodlogos costumam colocar a fundamentao terica ou quadro dereferncia terico de uma pesquisa junto ou dando seqncia revisobibliogrfica. Prefiro colocar a justificativa logo em seguida da revisobibliogrfica. De um lado, porque julgo que a fundamentao terica deve virimediatamente antes da metodologia, pois, nas pesquisas qualitativas, emmuitos casos, o mtodo deriva ou de uma teoria que funciona tambm comoum modelo aplicativo ou da operacionalizao dos conceitos tericos tendo emvista sua aplicao.

    De outro lado, porque, no decorrer da bibliografia comentada, ao citar asprincipais concluses a que outros autores chegaram, ao indicar discrepnciasentre tendncias ou constatar certos entraves tericos ou prticos, ao consultaralguma lacuna que sua pesquisa pode vir a preencher, o pesquisador j deve irconduzindo seu texto na direo da contribuio que se espera da pesquisa aser realizada.

    Essa contribuio constitui-se em uma chave que abre as portas deacesso justificativa, uma vez que, frente aos estudos j realizados sobre oproblema, a justificativa visa colocar em relevo a importncia da pesquisa

    proposta, quer no campo da teoria quer no da prtica, para a rea deconhecimento em que a pesquisa se desenvolve.

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    Portanto, a contribuio pode ser de ordem cientfico-terica, quando o

    conhecimento que advir da pesquisa proporcionar a construo de uma novateoria, caso este evidentemente mais raro, ou auxiliar na ampliao doconhecimento terico j existente, ou preencher lacunas detectadas no

    conhecimento da rea, ou ajudar na compreenso de conceitos tericoscomplexos. Mas a contribuio pode tambm ser de ordem cientfico-prtica,quando se pretende dar respostas a um aspecto novo que a realidadeapresenta como fruto do desenvolvimento das foras produtivas, tcnicas etc.,ou quando se busca aplicar uma teoria a um dado fenmeno julgadoproblemtico, ou ainda quando se tem a inteno de sugerir caminhos parauma determinada aplicao tecnolgica e assim por diante.

    A contribuio pode ainda ser de ordem social, por exemplo, quando oconhecimento que resultar da pesquisa estiver voltado para a reflexo e debateem torno de problemas sociais ou quando um conhecimento prtico buscado

    como meio de interveno na realidade social.

    Parece bvio que impossvel apresentar justificativas sem dispor deum problema de pesquisa muito bem circunscrito e de uma reviso bibliogrficacaprichosa. Como justificar algo que no est bem definido e bem recortadocontra o pano de fundo dos estudos que j foram realizados no mesmo circuitode questes no qual uma pesquisa se insere?

    Enfim, a justificativa deve apresentar os elementos que respondem squestes: "por que a pesquisa relevante"?, "de onde vem sua pertinncia"?"qual o mbito ou quais so os mbitos da contribuio que ela trar"? Pararespond-Ias, Lakatos e Marconi (1992: 103) fornecem o seguinte roteiro:frente ao estgio em que a teoria se encontra, indicar as contribuies tericasque a pesquisa pode trazer, a saber: em termos de confirmao geral; emtermos de confirmao na sociedade particular em que se insere a pesquisa;sua especificao para casos particulares; clarificao da teoria; resoluo depontos obscuros etc. Alm disso, o roteiro inclui: importncia do tema de umponto de vista geral; sua importncia para casos particulares em questo;possibilidades de sugerir modificaes no mbito da realidade abarcada pelotema proposto; descoberta de solues para casos gerais e/ ou particularesetc.

    A apresentao da contribuio que a pesquisa pode trazer umaexcelente ponte de passagem para a explicitao de seus objetivos.

    4.5 A EXPLlCITAO DOS OBJETIVOS

    A palavra "objetivo" um derivativo do termo latino objectus, "objeto", quesignifica algo que lanado diante dos nossos sentidos ou mente. O derivativo"ivo", presente em "objetivo", indica uma tendncia para ter o carter de objeto.

    Um sinnimo adequado para a palavra "objetivo", no contexto de umapesquisa, a palavra "alvo" ou fim que se pretende atingir, um fim movido por

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    um propsito. Quando se atira uma flecha, mira-se em um alvo. Os objetivos dapesquisa se parecem, portanto, com uma flecha na direo de um alvo. Umavez que o mirar do alvo antecede o lanamento da flecha, os objetivos tambmtrazem dentro de si o sentido de inteno que guia a mirada. O que a pesquisavisa alcanar? Esta a questo central inclusa nos objetivos.

    Objetivos, via de regra, so hierarquicamente divididos em objetivosgerais e objetivos especficos. Os gerais dizem respeito a uma viso global eabrangente do problema, do contedo intrnseco quer dos fenmenos eeventos, quer das idias estudadas. Os objetivos especficos tm uma funointermediria e instrumental de modo a permitir que o objetivo geral sejaatingido ou que ele seja aplicado a situaes particulares (LAKATOS eMARCONI, 1992: 103).

    Por ser uma explicitao da natureza do trabalho, tendo em vista oproblema que ele visa resolver, a gama dos objetivos pode ser mais extensa do

    que sua diviso em objetivo geral e objetivos especficos. Assim, os objetivospodem tambm ser de longo prazo ou imediatos, podem ser intrnsecos,quando se referem ao problema que se quer resolver, ou extrnsecos, quandochegam at a explicitao dos resultados esperados.

    curioso observar que a maior parte dos livros sobre metodologiacientfica no reserva muito espao para o tratamento dos objetivos. Carvalhoet aI. (2000: 107) nos explicam que essa ausncia deve se dar porque se aformulao do problema for bem estruturada, a explicitao dos objetivos dispensvel, a no ser que o pesquisador queira colocar nfase nos resultadosque pretende alcanar ao final de seu trabalho. De todo modo, os autoresindicam que, na descrio dos objetivos, " importante que os verbos sejamutilizados no infinitivo, por exemplo: analisar, compreender, identificar einterpretar.

    Luna (ibid.: 35) constata a confuso que costuma existir entre problemae objetivos, mas acredita que o bom-senso deva ser suficiente para dirimirdvidas. Assim sendo, ou os objetivos coincidem com o problema e, ento, no necessrio dar entrada a eles no projeto, ou, com a sua entrada, pretende-sechamar ateno para a aplicabilidade dos resultados.

    Mesmo assim, bom lembrar que, quando elaboramos projetos paraagncias de fomento ou para orientadores de pesquisa, nesses casos somosobrigados a inserir os objetivos em nosso projeto; muito provavelmente porquea explicitao dos objetivos nos fora a sintetizar, em itens muito claros, ohorizonte do projeto, os fios que ligam o problema s conseqncias queresultaro de sua possvel soluo, assim como as habilidades intelectuais queesto implicadas nos procedimentos que sero utilizados para que os finspretendidos sejam alcanados.

    4.6 A FORMULAO DAS HIPTESES

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    A hiptese, segundo passo mais importante na hierarquia dos itens doprojeto, est ligada por um cordo umbilical ao problema da pesquisa. Deve,por isso mesmo, ser obrigatoriamente inserida em um projeto de pesquisa. Novem do acaso, mas muito justamente da importncia do papel que as hiptesesdesempenham em um projeto, o grande espao que os livros de metodologia

    cientfica dedicam a elas. Alguns epistemlogos chegam a afirmar que aessncia da pesquisa consiste apenas em enunciar e verificar hipteses.

    O problema que o pesquisador circunscreveu, isto , conseguiu recortarde um fundo temtico muito amplo, tem a forma de uma indagao, umainterrogao, uma pergunta para a qual, no seu percurso, a pesquisa buscarrespostas. Ora, a hiptese uma resposta antecipada, suposta, provvel eprovisria que o pesquisador lana e que funcionar como guia para os passossubseqentes do projeto e do percurso da pesquisa. Se o problema tem umaforma interrogativa, a hiptese tem uma forma afirmativa. No se trata,entretanto, de uma afirmao indubitvel, mas apenas provvel. Funciona

    como uma aposta do pesquisador de que a resposta a que o desenvolvimentoda pesquisa levar ser a mesma ou estar muito perto da resposta enunciadana hiptese. Ela cria, por isso mesmo, uma expectativa na mente dopesquisador, expectativa esta que costuma dar ao percurso da pesquisaemoes similares quelas que nos acompanham em uma situao desuspense, pois como toda aposta, a hiptese pode ser confirmada ou cair novazio, caso em que a hiptese tem de ser repensada e as estratgiasreconduzidas.

    Trata-se, pois, de uma suposio objetiva "que se faz na tentativa deexplicar o que se desconhece". Para ter bases slidas, ela deve estarassentada e suportada por boas teorias e "por matrias primas consistentes darealidade observvel". Portanto, "no pode ter fundamento incerto". Mas por tera natureza de uma suposio, a hiptese tem por caracterstica o fato de serprovisria, devendo, portanto, ser testada para se verificar sua validade"(RUDIO, ibid.: 78).

    Embora seja importante que a hiptese esteja vinculada "a uma teoriaque a sustente para ter maior poder de explicao e ter possibilidade de sercomprovada ou verificada na pesquisa" (CARVALHO et aI.: ibid.: 103), emboraela tenha muito a ver com a experincia e a competncia do pesquisador,

    embora sua formulao implique em uma elaborao racional, uma hiptesesurge sempre como um lampejo cuja formao escapa completamente denosso controle consciente.

    Peirce desenvolveu sua belssima teoria da abduo justamente paraevidenciar que uma hiptese nasce como fruto de uma luz natural que advmda capacidade humana para adivinhar, na cincia, as leis que regulam osfenmenos e, na vida cotidiana, as veias secretas das coisas. Nessacapacidade, residem os arcanos de nossa alma criativa. Por isso mesmo,nenhum pesquisador obrigado a justificar por que fez a opo por uma certahiptese e no outra qualquer. Cada um livre para escolher a que lhe parece

    mais razovel. Uma vez que a freqncia com que os pesquisadores atinamcom a hiptese correta muito grande comparativamente espontaneidade

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    imediata e livre com que as hipteses irrompem em suas mentes, isso funcionacomo indicador de que a se localiza a fonte do poder humano para adescoberta. Mesmo assim, uma hiptese o mais frgil dos argumentos. Emrazo disso, para receber seu veredicto, necessita passar pelo teste daexperincia.

    Segundo Lakatos e Marconi (1992: 104), h diferentes formas dehipteses. Em primeiro lugar, elas se dividem em hiptese bsica e hiptesessecundrias. A primeira corresponde resposta fundamental que as segundascomplementam. Entre as hipteses bsicas, h aquelas "que afirmam, em dadasituao, a presena ou ausncia de certos fenmenos", ou aquelas "que sereferem natureza ou caractersticas de dados fenmenos, em uma situaoespecfica". H ainda "aquelas que apontam a existncia ou no dedeterminadas relaes entre fenmenos" ou tambm aquelas "que prevemvariao concomitante, direta ou inversa, entre certos fenmenos etc.

    Na sua natureza de complementos da hiptese bsica, as secundriaspodem "abarcar em detalhes o que a hiptese bsica afirma em geral", podemtambm "englobar aspectos no especificados na bsica", ou ainda "indicarrelaes deduzidas das primeiras", assim como "decompor em pormenores aafirmao geral" ou "apontar outras relaes possveis de serem encontradas".

    O modo de aparecimento de uma hiptese em nossas mentes , via deregra, to repentino quanto um relmpago, fruto da agilidade natural de nossospoderes de iluminao diante de tudo aquilo para que buscamos respostas.Entretanto, no contexto da cincia, que sempre especializado, podem surgirdificuldades para se chegar a uma hiptese. Goode e Hatt (1968: 75) dizemque isso se d, sobretudo, quando falta ao pesquisador um quadro dereferncia terico claro, quando lhe falta tambm habilidade para utilizarlogicamente esse esquema terico ou quando ele desconhece as tcnicas depesquisa existentes.

    Mesmo que as dificuldades acima no existam e a hiptese emerja comcerta rapidez, isso no deve nos levar a crer que a hiptese possa prescindirdo crivo de nosso esprito crtico e a sua formulao, ou seja, o enunciado dashipteses, tenha de ser desordenada e confusa. Para evitar que se incorranesses defeitos, Rudio (ibid.: 80-83) elaborou alguns critrios que podem servir

    como "balizas demarcando um campo", sem que, com isso, a liberdade dopesquisador na proposta de sua hiptese seja constrangida.

    Assim sendo, cabe hiptese ser plausvel, isto , "deve indicar umasituao passvel de ser admitida, de ser aceita; ela deve tambm terconsistncia, termo este que indica que o enunciado da hiptese no podeestar "em contradio nem com a teoria e nem com o conhecimento cientficomais amplo", do mesmo modo que no pode existir contradio dentro doprprio enunciado; o enunciado da hiptese deve ainda "ser especit1cado,dando as caractersticas para identificar o que deve ser observado"; almdisso, "a hiptese deve ser verificvel pelos processos cientficos" em curso;

    seu enunciado precisa ser claro, isto , "constitudo por termos que ajudemrealmente a compreender o que se pretende afirmar e indiquem, de modo

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    denotativo, os fenmenos a que se referem"; no basta ser claro, o enunciadoprecisa ser tambm simples, quer dizer, "ter todos os termos e somente ostermos que so necessrios compreenso"; da simplicidade decorre que oenunciado deve ser tambm econmico, ou seja, alm de utilizar to somenteos termos necessrios compreenso, deve faz-lo na menor quantidade

    possvel. Por fim, "uma das finalidades bsicas de uma hiptese servir deexplicao para o problema que foi enunciado". Se isso no acontece, ahiptese no tem razo de ser".

    Toda e qualquer pesquisa deve contar com a formulao das hipteses,caso contrrio, estar lhe faltando um norte, pois a funo da hiptese servircomo uma bssola. Ela est no cerne das pesquisas experimentais, poisnestas, a observao de um fenmeno leva o pesquisador a supor tal ou talcausa ou conseqncia, suposio esta que se constitui na hiptese que spode ser demonstrada por meio do teste dos fatos, ou seja, daexperimentao. Embora implique em procedimentos lineares que j foram

    sobejamente criticados, quando se trata de transpor esse modelo para ascincias humanas, essa linearidade nos ajuda a compreender o papelarticulador que a hiptese deve desempenhar em qualquer processo depesquisa, como soluo possvel antecipada e ordenadora das operaes quedevem resultar dessa antecipao, de modo a verificar seu fundamento ou no.

    Nas pesquisas empricas, que nascem da observao de fatosconcretos, as operaes que resultam da hiptese consistem em levar opesquisador a saber se a explicao antecipada e plausvel que a hiptese lheforneceu resiste prova dos fatos. Para tal, o pesquisador deve armar asestratgias de verificao, determinando as informaes que seronecessrias, as fontes s quais recorrer e a maneira de recolh-Ias e analis-Ias para tirar concluses.

    Nas pesquisas quantitativas que, deve-se salientar, so muitoespecializadas, visto que implicam em conhecimentos ou assessorias emestatstica, deve-se distinguir a hiptese da pesquisa, aquela de que viemostratando at agora, da hiptese da estatstica, isto , aquela que vai serutilizada para aplicao das tcnicas estatsticas e que, de modo geral,costuma ser a primeira traduzida para uma linguagem numrica. De acordocom Rudio (ibid.: 8485), uma hiptese pode ser constituda de apenas uma

    varivel; pode ter duas ou mais variveis relacionadas entre si sem vnculo decausalidade ou pode ainda ter duas ou mais variveis relacionadas por vnculode causalidade.

    Barros e Lehfeld (ibid.: 30) classificam as hipteses de acordo com suanatureza em: hipteses de relao causal e hipteses nulas. As causais"demonstram que a todo valor x corresponde um valor y", apresentando assimuma relao de causa e efeito entre duas variveis, quando um acontecimentoou caracterstica se apresentam como fatores que determinam outracaracterstica ou fenmeno. As autoras nos fornecem como exemplo a seguintehiptese: "A falta de desenvolvimento de atividade de lazer conduz

    intensificao do grau de tenso do indivduo que vive nas cidades". Adefinio da hiptese nula parece muito complicada para os leigos em

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    estatstica (ver ibid.: 31 e Rudio, ibid.: 86-87). De todo modo, ela basicamenteum resultado possvel da observao de um fenmeno que pode ser verificadoestatisticamente. A definio do tipo de hiptese depende dos objetivos dapesquisa e do nvel de conhecimento que o pesquisador possui docomportamento das variveis e das possibilidades de mensurao.

    No contexto das pesquisas quantitativas conduzidas segundo preceitosestatsticos, a hiptese sempre teve significados e funes precisas. ConformeLuna (ibid.: 34), a primazia quase absoluta da pesquisa quantitativa, duranteanos, chegou ao ponto de tornar impensvel que se dispensasse o uso detestes estatsticos para encaminhar os resultados da pesquisa. Quando, nascincias humanas, "comearam a ser introduzidos novos modelos depesquisas, a estatstica inferencial teve seu uso drasticamente reduzido, doque decorreu uma confuso entre problema e hiptese". Para muitos,simplesmente porque confundem problema de pesquisa com hipteseestatstica, falar em problema parece evocar ecos da pesquisa estatstica, de

    modo que lhes parece desnecessria a preocupao com a preciso daformulao do problema da pesquisa.

    A meu ver, essas confuses e despreocupaes que resultam da faltade informao e do descuido, sob a alegao confortvel do anti-positivismo eanti-cientificismo, podem chegar disperso mais leviana e ao extremo daperverso do esprito que deve guiar os procedimentos da pesquisa cientfica.Sem problema bem definido e hipteses bem elaboradas, no possvel haverpesquisa, seja ela emprica, experimental, quantitativa ou qualitativa, terica ouaplicada, O que difere nesses tipos no a ausncia ou presena de problemae hipteses, mas os meios, isto , os mtodos, que so mais apropriados acada uma para testar suas hipteses e, conseqentemente, o modo como oprocesso de testagem diferentemente compreendido em cada uma delas. Atmesmo em uma pesquisa puramente terica, h sempre uma tese que proposta para ser defendida. Essa tese o problema em relao ao qual asidias que se desenvolvem so hipteses particulares "cuja demonstraopermite alcanar as vrias etapas que se deve atingir para a construo totaldo raciocnio" (SEVERINO, ibid.: 161). Para isso, preciso, em primeiro lugar,no confundir hiptese com evidncia prvia e, em segundo lugar, dominarcom segurana o quadro terico em que se funda o raciocnio.

    4.7 O QUADRO TERICO DE REFERNCIA

    No apenas temos o direito, mas tambm o dever de dispensar, quandoisso se mostra necessrio, -a preciso dos clculos matemticos que dalicerce s pesquisas quantitativas. Essa dispensa pode se dar por motivosvrios, entre eles, para buscar o acesso complexidade alinear e nomensurvel, exuberncia com que pulsa diante de ns a realidade tanto nasua dimenso abstrata quanto concreta. Quando essa dispensa se d,entretanto, o que se perde do seu peso em preciso e confiabilidade, deve sercompensado pela fundamentao terica de uma pesquisa. Vem da a grande

    importncia do papel que esse passo, ou melhor, mergulho, desempenha naspesquisas no-quantitativas. Enquanto as quantitativas dispem de um padro

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    de base repetvel para ser aplicado a quaisquer pesquisas, as no-quantitativasdevem encontrar seu caminho em um emaranhado intrincado de teorias emtodos.

    Alm disso, enquanto as pesquisas quantitativas partem de

    pressupostos epistemolgicos tcitos e, portanto, sem exigncias dequestionamentos que so prprios do empiricismo, o mais das vezespositivista, as no-quantitativas devem levar em considerao a posioepistemolgica que assumem, uma vez que elas se propem no-quantitativas justamente porque colocam em questo os pressupostos das quantitativas.Como se pode ver, tudo tem seu preo. E o preo das pesquisas no-quantitativas, em termos de investimento intelectual, inelutavelmente alto.

    De fato, teorias no caem do cu para nos auxiliar a enfrentar asdificuldades em que a resoluo de um problema de pesquisa sempre acarreta.Muito menos cai do cu a familiaridade que precisamos adquirir para lidar com

    seus conceitos. Problemas especficos exigem solues especficas, domesmo modo que solues especficas s podem ser encontradas por meio doauxlio de teorias que se adquam s solues buscadas. Por isso mesmo,escolhas tericas no podem ser feitas por impulso, ainda menos porimposio, ou para estar de acordo com a especialidade do orientador de umapesquisa, ou, o que pior, simplesmente para agrad-Io. Opes tericas spodem nascer das exigncias internas que o problema da pesquisa cria. Paraoptar, precisamos conhecer as alternativas que se apresentam. Isso implica emse debruar demoradamente sobre os livros com curiosidade edesprendimento, com a pacincia do conceito.

    Infelizmente, o mercado pedaggico muitas vezes nos obriga a dar auma pesquisa a velocidade de uma pista de corrida. Por isso mesmo, os nveisde complexidade das pesquisas devem ser dosados de acordo com aexperincia prvia que o pesquisador j acumulou ou no, e em funo dotempo que se tem para realizar uma pesquisa. Em suma, os meios para seevitar a leviandade devem ser pensados.

    Tambm chamado de "fundamentao terica", "embasamento terico"ou de "teoria de base", o quadro terico de referncia algo que brotadiretamente do levantamento bibliogrfico para a elaborao do estado da

    questo de um problema de pesquisa. Tendo brotado do estado da questo, afundamentao terica implica um avano em relao quele, na medida emque resulta de uma escolha consciente, crtica e avaliativa da teoria oucompsito terico que est melhor equipado para fundamentar odesenvolvimento da pesquisa, em consonncia com a metodologia quedesigna.

    O quadro de referncia terico consiste no corpo terico no qual apesquisa encontrar seus fundamentos. Ora, todo pensamento existe em umacorrente de pensamento. Pensamentos tm genealogia, situando-se, portanto,em um contexto terico maior. Por isso, quando um corpo terico escolhido

    pelo pesquisador, este precisa ter em mente o contexto mais amplo em queesse corpo se insere. Com isso, evita-se um problema muito comum nos

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    trabalhos de pesquisadores iniciantes: a salada de teorias com genealogiasbastante distintas e, muitas vezes, epistemologicamente antagnicas eincompatveis.

    Em suma, todo projeto deve conter os pressupostos tericos com os

    quais as interpretaes iro se conformar. Eles so inevitveis simplesmenteporque no podemos descartar os pressupostos, sob pena de ficarmos imersosto somente no senso comum. Por essa razo no apenas temos de escolherpressupostos, mas temos de escolh-los com carinho, pois so eles que daroforma e cores s nossas interpretaes. Formas e cores devem ser escolhidasse no as queremos impostas sobre ns.

    Teorias lidam com princpios, conceitos, definies e categorias. Essesso os legtimos habitantes das teorias, entidades que sintetizam umaquantidade de fenmenos particulares em abstraes gerais. Conceitos podemter significados diferentes dependendo do quadro de referncia ou da cincia

    em que so empregados. Alm disso, formam conjuntos sistemticoslogicamente coerentes, nisso consistindo a essncia de uma teoria. com tudoisso que temos de nos familiarizar para nos tornarmos capazes de empregar osconceitos com segurana e mesmo operacionaliz-los quando, em pesquisasaplicadas, isso se faz necessrio.

    S conseguimos fazer uso realmente eficaz dos conceitos tericosquando eles como que entram em nossa corrente sangnea com tal intimidadea ponto de no sentirmos mais sua presena como estranha. S assim nostornamos capazes de utiliz-los com flexibilidade como diretrizes para oscaminhos da reflexo e no meramente como frmulas rgidas a seremobedientemente aplicadas. Quanto mais conhecemos uma teoria, no confrontocom outras teorias, mais nos tornamos capazes de dialogar com ela e menosescravizados nos tornamos moldura referencial em que toda teoria nosenquadra. Se as teorias so inevitveis, para que no se lide com a reflexoapenas com os instrumentos mentais que o senso comum nos fornece, que,pelo menos, elas sejam escolhidas atravs do filtro da qualidade.

    4.8 A SELEO DO MTODO

    Com o mtodo chegamos ao terceiro termo, completando-se o trio qued suporte a uma pesquisa. Do problema para a hiptese e desta para omtodo, tem-se a a coluna dorsal que d sustentao a um projeto depesquisa. Como querem Laville e Dione (ibid.: 124), trata-se de doismovimentos que se unem na constituio de uma trade coesamenteconfigurada: quando o problema desemboca na hiptese, tem-se o ponto dechegada do primeiro movimento de um itinerrio de pesquisa. Este ponto dechegada, entretanto, torna-se o ponto de partida do segundo movimento,indicando a direo a ser seguida para que se possa resolver o problema departida: verificar sua soluo antecipada. Para se chegar a uma confirmao,so os mtodos que nos fornecem os meios.

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    Uma vez que todo o captulo 3 deste livro foi dedicado problemtica dametodologia e dos mtodos, no necessrio repetir aqui o que j foi dito l.Limito-me, por isso, a chamar ateno para alguns pontos que, a meu ver,devem ser retidos em nossa mente.

    Na etapa da metodologia, fundamental que o pesquisador estejaconsciente do tipo de pesquisa que est realizando, pois desse tipodependero os regramentos metodolgicos a serem utilizados. A melhorpesquisa no aquela que mais se aproxima dos mtodos das cinciasnaturais, mas sim aquela cujo mtodo o mais adaptado ao seu objeto. Antesde tudo, preciso explicitar se a pesquisa emprica, com trabalho de campoou de laboratrio, se terica, histrica, tipolgica ou se tem uma tipologiahbrida, o que, na rea da comunicao, pode ser bem provvel. Alm do tipode pesquisa, deve-se tentar evidenciar qual o ngulo de abordagem dapesquisa: econmico, poltico, social, cultural, histrico, tcnico etc. O mapa darea de comunicao que foi tentativamente desenhado no captulo 2 pode ser

    de utilidade para essa tarefa.

    Mais uma vez, nesta fase relativa ao terceiro sustentculo do trip, omtodo, em que se erige um projeto de pesquisa, cumpre enfatizar que aspesquisas no-empricas e as no-quantitativas no podem ser utilizadas comolibis para a negligncia metodolgica. Se no h pesquisa sem problema, seno h rota que encaminhe para a resoluo desse problema sem hipteses,estas existem para serem testadas. A est a tarefa precpua de uma pesquisa,contanto que se saiba encontrar para cada tipo de pesquisa o tipo de teste queela permite.

    Pesquisas no-quantitativas exigem que sejam seguidos os mesmospassos das quantitativas, com a diferena de que a natureza interna dessespassos difere de um tipo de pesquisa para outra. Embora no exista um padroparadigmtico a que as pesquisas no-quantitativas se ajustem, elas tambmdependem da observao, da coleta de dados, da anlise dos dados coletadose de sua interpretao. Sem isso, a pesquisa fica sem cho, flutuando no ar.

    At mesmo uma pesquisa terica, fundamental, apresenta todos essesitens, quando se sabe adaptar seus significados s novas situaes depesquisa em que eles surgem. Assim, a palavra observao no se restringe

    necessariamente observao emprica, daquilo que estreitamentecostumamos chamar de realidade, mas se estende para a observaodocumental, estendendo-se at mesmo at a observao abstrativa, quandocriamos diagramas mentais da rede de conceitos tericos com os quaisestamos lidando, observando suas configuraes e modificando-as conformeas necessidades da conduo de uma argumentao. Tanto quanto qualqueroutra, a pesquisa terica tambm depende de uma grande coleta de dados,com a diferena de que esses dados so idias, conceitos, categorias que tmde ser manipuladas tcnica, criativamente e, sobretudo, metodologicamente.Se isso j verdadeiro para as pesquisas tericas, no preciso nosestendermos em consideraes sobre as pesquisas aplicadas, especialmente

    porque nestas a metodologia est estreitamente ligada s teorias que dosuporte pesquisa.

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    Em suma, a tarefa metodolgica uma tarefa a ser enfrentada sem

    escusas, pois dela que nos vm os meios para comprovar ou no ashipteses nas quais apostamos.

    4.9 A EQUIPE DE PESQUISA

    Neste item, cabe nomear quais so os responsveis pela pesquisa,desenhando o perfil de cada um e indicando com clareza quais a tarefas que acada membro da equipe cabe desenvolver.

    4.10 O CRONOGRAMA

    Este item diz respeito ao planejamento do tempo de desenvolvimento da

    pesquisa. Cada etapa deve ser cuidadosamente pensada, inclusive prevendo otempo que cada uma deve levar para se desenvolver. Quanto mais bemformulado estiver o projeto, mais clareza e segurana se ter na previso desua consecuo.

    4.11 OS RECURSOS NECESSRIOS

    Embora a palavra "recursos" parea indicar apenas os recursosmateriais, infra-estruturais e financeiros, eles devem ser pensados em termosmais amplos. Parece muito bom que o pesquisador tambm pense no tempoque tem para se dedicar pesquisa, sobretudo na sua disponibilidade paraassumir o modo de vida que a realizao de uma pesquisa sempre exige.Enfim, olhando bem no fundo de si mesmo, neste item dos recursos, opesquisador deve se perguntar se ter persistncia, desprendimento de muitosoutros apegos ou hbitos e mesmo obstinao para efetuar seu trabalho.Esses recursos so, s vezes, tanto ou mais fundamentais do que os materiais.

    4.12. A BIBLIOGRAFIA

    Quando fazemos tanto a reviso bibliogrfica quanto seleo do quadroterico de referncia para a pesquisa proposta, ou seja, sua fundamentaoterica ou escolha de uma teoria de base, essas atividades podem nos levar aenxergar um horizonte bibliogrfico pertinente pesquisa muito mais amplo doque aquele que podemos absorver enquanto estamos elaborando o projeto.Nesse caso, que, alis, seria o ideal, no final do projeto devem aparecer duaslistagens bibliogrficas, aquela que j foi consultada e aquela que dever serconsultada no decorrer da pesquisa. Muitas vezes, esta ltima j se insinua emcomentrios presentes na escolha da fundamentao terica, visto que esta sempre muito mais especfica e especializada do que havia sido a revisobibliogrfica.

    4.13 NOTA FINAL

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    Enfim, a elaborao de um projeto de pesquisa exige o cuidado paciente

    com os detalhes a que todo bom planejamento nos obriga. preciso ter amorpelas mincias e capacidade de olhar de frente para as dvidas, semsubterfgios, sem esquivas. Saber lidar com elas, atend-Ias com ateno e

    energia, conscientes de que isso significa interromper o fluxo de nossascertezas e partir para as fontes que nos vm do discurso do outro.

    Em meio s muitas compensaes que um bom projeto nos traz, entreelas especialmente uma certa garantia de que a jornada dever chegar comxito ao seu destino, a compensao mais gratificante se encontra naquelesmomentos em que a pesquisa comea a adquirir fora e determinaesprprias, exigncias internas to eloqentes como se viessem de um corpovivo. De agente do processo, o pesquisador passa para o estatuto deinterlocutor, apalpando e auscultando as determinaes internas do seutrabalho. Mais gratificantes ainda, como se fossem iluminaes sbitas no meio

    do caminho, sem que saibamos bem de onde elas vm, so os momentos emque nos defrontamos com as surpresas das descobertas imprevistas.

    Alm de cumprir a funo social de fazer avanar o conhecimento, tarefaprecpua de toda pesquisa, pesquisas tambm decifram para cada um de ns omistrio dos prazeres muito prprios e decididamente intransferveis que a vidaintelectual traz consigo.