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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIENCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA MESTRADO EM LINGUISTICA RONCALLI DANTAS PINHEIRO SÃO JORGE: PERFORMANCE NÔMADE DE UMA VOZ ENTRE EUROPA, ÁFRICA E BRASIL NOS TERREIROS AFRO – BRASILEIROS DE JOÃO PESSOA. JOÃO PESSOA 2011

SÃO JORGE: PERFORMANCE NÔMADE

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Dissertação Mestrado em Linguística, Autor: Roncalli Dantas Pinheiro.SÃO JORGE: PERFORMANCE NÔMADE DE UMA VOZ ENTRE EUROPA, ÁFRICA EBRASIL NOS TERREIROS AFRO – BRASILEIROS DE JOÃO PESSOA.

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA CENTRO DE CIENCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGUSTICA

    MESTRADO EM LINGUISTICA !!!!!!!!! RONCALLI DANTAS PINHEIRO !!! !!!!!

    SO JORGE: PERFORMANCE NMADE DE UMA VOZ ENTRE EUROPA, FRICA E BRASIL NOS TERREIROS AFRO BRASILEIROS DE JOO PESSOA. !!!!!!!!!!!!! !!!!!

    JOO PESSOA 2011

  • RONCALLI DANTAS PINHEIRO !!!!!!!!!! !! !!!!SO JORGE: PERFORMANCE NMADE DE UMA VOZ ENTRE EUROPA, FRICA E

    BRASIL NOS TERREIROS AFRO BRASILEIROS EM JOO PESSOA ! !!

    Trabalho de dissertao apresentado ao Programa de Ps-graduao em Lingstica (PROLING) da Uni-versidade Federal da Paraba para obteno do ttulo de Mestre em Lingstica !Orientadora: Profa. Dra. Beliza urea de Arruda Melo ! ! !!!!!!!!!!!

    JOO PESSOA 2011

  • !RONCALLI DANTAS PINHEIRO !!!!!!!!

    SO JORGE: PERFORMANCE NMADE DE UMA VOZ ENTRE EUROPA, FRICA E BRASIL PRESENTE NOS TERREIROS AFRO BRASILEIROS EM JOO PESSOA ! !! !

    Trabalho de dissertao apresentado ao Programa de Ps-graduao em Lingstica (PROLING) da Uni-versidade Federal da Paraba para obteno do ttulo de Mestre em Lingstica !Orientadora: Profa. Dra. Beliza urea de Arruda Melo ! !

    Aprovada em: ____ de____de____. !!COMISSO EXAMINADORA !!!!!

    Professor Dr. Luiz Assuno !!!Professora Dr. Maria Claurnia Abreu de Andrade Silveira !!!

    Professora Dr. Beliza urea de Arruda Melo !!

    http://www.cchla.ufpb.br/proling//index.php?option=com_content&task=view&id=62&itemid=31
  • AGRADECIMENTOS

    !!

    Agradeo ao Centro de Umbanda Nossa Senhora do Carmo, atravs de Pai Mari-

    naldo e Dona Marina pela disponibilidade, orientao e autorizao durante festas e rituais e

    tambm ao Terreiro de Candombl Kwe Ceja Azirin pelo acolhimento e adoo.

    Ao antroplogo Luis Assuno pelo exemplo de postura tica acadmica em rela-

    o ao universo religioso Afro-Brasileiro.

    s Professora Maristela Oliveira de Andrade e Maria Claurnia Abreu de Andrade

    Silveira pelas contribuies e sujestes na feitura do trabalho final.

    s colegas: Luanna Vaz e Alessandra Ferreira por suportarem minhas ausncias

    no programa de ensino distancia da UFPB.

    Beliza urea, por ser orientadora, co-idealizadora, interlocutora e quase me

    em alguns momentos desta jornada.

    Aos amigos e amigas: Talita Paz, Dani Calao, Sheila Fadja, Alessandra Isis Cir-

    ne, Marta Penner, Marco Aurlio, Iris Helena, Prince Daniele, Dani Travassos, Digenes

    Chaves, Cris Carvalho, Adriano Barreto, Manoel Fernandes, Rachel Stanick, Jernimo, Joo

    Marcos, Gabriela Arruda, Leonardo Davino, Marlia Gessa e Washigton Cardoso pelos mo-

    mentos felizes durante estes anos de elaborao do trabalho. ! !!!!!!!!!!!!!!!!

    http://www.cchla.ufpb.br/proling//index.php?option=com_content&task=view&id=62&itemid=31
  • !!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!Dedico : !!

    Francisco Dantas, Josefa Dantas,

    meus irmos, Levi, Tatiana, Me Edite

    e memria de Me Maria dos Prazeres

  • !SUMRIO

    !INTRODUO 10

    1 O NOMADISMO DE SO JORGE/OGUM NA ESTRUTURA URBANA MTICA.......... 12

    1.1 O espao, o territrio e os significantes urbanos.................................... 15

    1.2 O espao mtico do drago e da cavalaria.............................................. 17

    1.3 O castelo de So Jorge.. 20

    1.4 O territrio de Ogum na frica e no Candombl da Bahia... 24

    1.5 So Jorge/ Ogum em Joo Pessoa.. 28

    2 CONTEXTUALIZAO HISTRICA DAS FAMLIAS DE SANTO PESQUISADAS. 41

    3 A ESCRITURA PERFORMTICA....................................................................... 48

    3.1 So Jorge e a celebrao de Corpus Christi Em Lisboa . 48

    3.2 Ogum na frica ....................................................................................... 54

    3.3 Metodologia utilizada para pesquisa de performances............................ 573.3.1 As interpenetraes culturais na leitura de performances ... 58

    3.4 O ritual de Ogum/So Jorge em Joo Pessoa 613.4.1 Descrio analtica da performance de Ogum 66

    3.4.1.1 A Africa e Portugal nas vestimentas dos cultos afro-Brasileiros... 66

    3.4.1.2 Alguns aspectos sobre a comida de Ogum e o reflexo da mestiagem . 72

    4 O MITO E AS LINGUAGENS............................................................................. 74

    4.1 O mito e o universo verbal. 744.1.1 So Jorge do Romanceiro ibrico s corimbas brasileiras de Ogum. 76

    4.1.2 Os Pontos cantados para Ogum...................................................................... 81

    4.2 A escritura mtica da fotografia em relao linguagem verbal. 904.2.1 A relao entre as linguagens em Pierre Verger ... 91

  • !!

    4.2.1.1 Verger e a escritura verbal.................. 91

    4.2.1.2 Verger e a escritura visual... 944.2.1.2.2 A linguagem fotogrfica de Verger 98

    5 CONSIDERAES FINAIS .. 100

    REFERNCIAS .. 101

  • RESUMO

    !!

    A histria de So Jorge, um mrtir que nasceu na Capadcia, territrio

    pertencente atualmente Turquia, se deslocou por vrios lugares, traduzido de

    diferentes formas, em diferentes suportes. Em Portugal se fixou na religiosidade

    catlica popular, que se recriou continuamente na tradio oral, atravs das fes-

    tas de Copus christhi e representado urbanisticamente pelo castelo. Durante a

    colonizao no Brasil, o Santo Guerreiro entra em contato com Ogum, vindo da

    Africa, gerando um Orix Afro-Brasileiro acaboclado nas casas de Umbanda. Esta

    pesquisa qualitativa, foi realizada inicialmente a partir de documentao bibli-

    ogrfia envolvendo questes sobre territorializaes e performances ritualisticas.

    Posteriormente com base na tcnica de observao participante durante dois

    anos, considerando a realidade entre dois terreiros de religio afro-pessoense e

    com objetivo de descrever as relaes interculturais existentes na expresso reli-

    giosa deste personagem hbrido, foi realizado coleta de dados atravs de entre-

    vistas no estruturada, em que se verificou a complexidade das interaes entre

    as diversas matrizes tnicas formadora da religiosidade popular em Joo pessoa.

    !!Palavras Chaves: So Jorge, Ogum, Linguagens

    .

    !!!

  • ABSTRACT !!The story of St. George, a martyr who was born in Cappadocia, currently a territory belonging to Turkey, moved to various places, translated from different forms in diffe-rent media. In Portugal settled in Catholic religiosity popular, they recreated continu-ously in the oral tradition through the holiday Copus Christher and represented by the urban planning castle. During colonization in Brazil, the Holy Warrior comes into con-tact with Ogun, coming from Africa, generating an Orisha Afro-Brazilian acaboclado the homes of Umbanda. This qualitative research was conducted initially from pu-blished references issues involving territorialization and ritualistic performances. La-ter based on technique of participant observation for two years considering the reality between two terraces of religion african-pessoense and aims to describe the relati-onship existing cross-cultural religious expression in this hybrid character, was ac-complished through data collection unstructured interviews, which showed the com-plexity of the interactions between different arrays Ethnic shaper of popular piety in Joo Pessoa. !!Word Keys: St. George, Ogun, Languages

  • !10

    1 Introduo !!

    O mito de So Jorge uma voz que nasceu na Capadcia, territrio 1 2

    pertencente atualmente Turquia e se deslocou por vrios lugares, traduzido de

    diferentes formas, em diferentes suportes. Ele est fixado inicialmente na Pedra

    da religiosidade catlica popular, embora sendo desprezado por alguns Pedros 3

    de Roma. Sua existncia secular, embora registrada em escritos considerados

    apcrifos, ganhou atravs da voz de sujeitos, sua existncia que se transmuta e

    se recria continuamente no transcorrer da histria oral de vrios povos.

    Esta voz chega em Portugal e fixa-se nas pedras e ameias de um

    castelo de lembranas contrudo ritualisticamente por mais de quatro sculos na

    festa de Corpus Christi e deslocado em caravelas para outros continentes.

    Chegando ao Brasil, a voz amolece ao sabor das mucamas. - Feito 4

    feijo duro que, cozido, ganha consistncia macia, So Jorge se despe da sua

    armadura e veste-se de Ogum, que por sua vez, se expressa nos filhos de santo

    durante rituais em terreiros afro-brasileiros.

    Expresso em cores, corpos, gestos, danas, sabores e odores, So

    Jorge poeticamente uma voz nmade entre o rgido e o fluido, a tradio ora

    fixa nos muros, ora recriada ao abrir caminhos, se amalgamando a culturas difer-

    entes. Um cavaleiro de armadura de ferro, espada na mo, danando, girando

    leve, escorrendo no meio da comunidade.

    Mito remete ao conceito elaborado por Eliade (2008, p. 84-89). Ao realizada por seres divinos no 1comeo do tempo, atualizada periodicamente atravs dos ritos

    Voz, por Zumthor (2005, p. 62-63), se estabelece como algo material, definido por tom, timbre, al2 -cance, altura, registro, detentor de qualidades simblicas e sensaes que estrapolam o campo da linguagem.

    Refernte ao papado romano3

    Refere-se metfora que Gilberto Freyre estabelece sobre a influncia da cultura africana na lngua 4portuguesa desde o Brasil colnia, presente no livro Casa Grande e Senzala.

  • !11

    A voz de So Jorge um fio que une culturas e costura raas com fi5 -

    bras de cores diferentes. Assim, compreender as relaes que constrem este

    personagem mtico multifacetrio, multireligioso e multilingustico fornece bases

    para o entendimento cultural do Brasil e de suas matrizes tnicas formadoras.

    A pesquisa foi realizada inicialmente a partir de uma documentao

    bibliogrfica, envolvendo questes territoriais, e posteriormente um estudo de

    campo envolvendo as performances ritualisticas e as relaes entre as lingua-

    gens verbais e visuais, tendo como base a observao direta e participante da

    realidade atual e complexa entre dois terreiros de religio afro-pessoense.

    Para sistematizao das anlises, o trabalho foi dividido em trs

    partes: inicialmente foi abordado as relaes territoriais entre Ogum na Africa,

    So Jorge em Portugal e o hibridismo que ocorre no Brasil; depois tem-se a leitu-

    ra da performance do sujeito em Joo Pessoa, tendo como suporte a anlise de

    fotografias e a contextualizao histrica, observando os movimentos corporais,

    as vestes e a comida; e, por ultimo, o foco da pesquisa volta-se para as lingua-

    gens verbais e visuais, incluindo os textos orais do Romanceiro Portugus, os

    pontos cantados nos terreiros e a potica fotogrfica de Pierre Verger, utilizado

    como paradigma para a captura das imagens e postura acadmica de

    pesquisador na comunidade.

    !!

    Referente ao conceito de cultura por Laraia (2009, p. 59). Sistemas de padres socialmente trans5 -mitidos que adaptam comunidades humanas aos seus embasamentos biolgicos.

  • !12

    !1 O NOMADISMO DE SO JORGE/OGUM NA ESTRUTURA URBANA MTICA !!

    A presena do Castelo So Jorge em Lisboa no alto da colina para

    Pessoa (2008) uma referncia memorial dos tempos do imprio Portugus (ver

    citao na pgina 17), um smbolo que produz diferentes significados atravs da

    histria conforme se observa no Romance de Almeida Garret (1999, p. 164), em 6

    constante dilogo com o desenho urbano dos bairros centrais, e com o corpo so-

    cial de Lisboa.

    Entender a complexidade do homem urbano de Lisboa em relao com

    a escritura territorial da cidade fornece pistas de como se organiza o imaginrio

    desta sociedade em relao ao mito de So Jorge, que posteriormente, se deslo-

    cou, se mesclando ao terreno cultural hbrido brasileiro.

    O conceito de territrio envolve muitas facetas que ao longo dos scu-

    los foi estudado pelas diversas reas do conhecimento. Fsica, matemtica,

    filosofia, teologia, arte e arquitetura se dedicaram sobre problemas e questes

    que revelaram as determinaes mentais, psicobiolgicas na orientao do es-

    pao, trazendo, segundo Santaella (2007), informaes sobre os processos de

    representaes lingusticas.

    Orlandi (2004) inclui a cidade em seus estudos lingusticos, mas di-

    vergindo de Santaella, no considera a lingustica como o desenvolvimento nat-

    ural das outras reas cientficas no estudo da cidade. Ela inclui a cidade sim-

    plesmente porque descarta a possibilidade de desenvolver um estudo sobre os

    discursos de sujeitos sociais sem relacionar com o que ela chama de corpo da

    cidade. A autora de cidade dos sentidos compreende que o espao urbano

    um corpo dinmico que envolve, dialoga e molda os sujeitos da mesma forma que

    a comunicao verbal pode moldar o discurso entre interactantes no momento da

    enunciao.

    Em Viagens na minha terra, Almeida Garret narra a mudana do padroeiro de Portugal de So Tia6 -go para So Jorge.

  • !13

    Maingueneau (1997 p. 34) em relao a cena da enunciao, disserta

    que a atual tendncia em Anlise do Discurso questiona a topografia que coloca a

    realidade e o discurso como exteriores um ao outro. Para o autor os lugares soci-

    ais s podem existir atravs de uma rede de lugares discursivos.

    A argumentao de Orlandi e Mainguenau desenvolve o raciocnio de

    que o lugar no apenas um elemento referencial como est presente nos estu-

    dos lingusticos clssicos de Jakobson (2005), mas um elemento essencial du-

    rante a interao entre indivduos, porque ao ouvir (comunicao verbal) inclui-se

    o gestual que se caracteriza pela multiplicidade de sentidos. Portanto, o que vi-

    sualizado, ouvido, sentido espacialmente e pelo olfato, integra-se na interao

    entre gestuais no lugar simultaneamente que entre gestuais dos interactantes.

    Tericos do campo da filosofia e da antropologia, embora busquem fins

    diferentes da lingustica, demonstram tambm a afinidade que h entre esses

    campos. Como exemplos, Gilles Deleuze desenvolveu dois argumentos sobre a

    relao entre espao e enunciados.

    Inicialmente em crtica aos modelos psicanalticos, Deleuze (2004) de-

    fende que o desejo surge por construo, agenciamentos com multiplas causali-

    dades e objetivando a produo de territrios aliados a enunciados bem demar-

    cados. O enunciado se conecta aos territrios na orientao de rituais no cotidi-

    ano. Assim, por exemplo, uma mulher que deseja comprar um sapato, est inter-

    essada em construir o seu entorno, ela imagina a reao das amigas, que comen-

    trios podero surgir a partir da utilizao do utenslio de moda. J o outro argu-

    mento mais radical, Deleuze (2005) defende que a representao territrial

    pode ser deformada pela ao verbal e cita o exemplo da voz de terroristas que

    podem transformar um voo comum de avio em voo-priso a partir da voz.

    O antroplogo Geertz (1985, p.4) compara sua anlise etnografica ao

    trabalho de algum que constri uma leitura a partir de manuscritos estranhos,

    desbotados, com emendas suspeitas, contendo comentrios tendnciosos, es-

    crito no s com os sinais do som, mas com exemplos transitrios de comporta-

    mentos modelados. Portanto, para Geertz, a construo etnogrfica uma leitura

    situacionista com espao/tempo especficos e o resultado do trabalho uma es-

    critura hbrida, sem hierarquias, entre indivduos que pertencem a culturas distin-

    tas.

  • !14

    Independente da rea de estudo, escrituras, indivduos e espao ur-

    bano esto em contnua interao. A diferena que, enquanto a antroplogia

    busca, atravs das interaes, entender os exemplos transitrios de comporta-

    mentos modelados dos indivduos de uma comunidade, a lingustica busca de-

    codificar os exemplos transitrios de comportamentos modelados para entender

    as linguagens interativas, sejam verbais, como duas pessoas no telefone, ou

    hbridas, envolvendo os varios sentidos em relao com o espao, como na per-

    formance, envolvendo verbo, gestos, odores e o seu entorno, a arquitetura.

    Portanto, o entorno, o espao que envolve as performances hbridas

    de So Jorge e Ogum nos diversos territrios so parte intrnseca do discurso,

    formam uma estrutura una com os sujeitos, um contnuo dilogo entre voz, identi-

    dade, espaos, executando movimentos entre odores, cores, sabores.

    !

  • !15

    !1.1 O espao, o territrio e os significantes urbanos. !!

    Analisar o espao urbano de Lisboa e Joo Pessoa para ouvir o dis-

    curso de So Jorge e Ogum faz deslocar o objeto de estudo deste primeiro cap7 -

    tulo para o campo do no verbal. , portanto, necessrio expandir os conceitos

    de texto e escritura (os objetos de estudo da lingustica) de maneira que possa

    envolver o universo urbano da cidade. Para isso optou-se por uma fundamen-

    tao baseada na conceituao desses elementos elaborada por Barthes (1974,

    p.124), em que o texto situa-se em um intervalo, num locus movente e mutante

    entre linguagens e sentidos, entranhada nas materialidades do dia-dia. Essa in-

    stabilidade (o texto) ao ser fixado quando algum a retm em um suporte (escritu-

    ra), transforma-a instantaneamente em algo para alm da linguagem representa-

    tiva, possuindo um cdigo prprio, estabelecendo funo direta entre criao e

    recepo, carregada de liberdade e memria.

    Na viso de Barthes, as escrituras rompem os limites do verbal e inclui

    as representaes da cidade no discurso. As construes, assim como as

    palavras, se agregam formando universos, que falam aos seus habitantes, mas

    se o espao urbano possui um discurso, podem existir locais em silncio, vazios

    de significados para uma determinada comunidade.

    Discurso remete s prticas discursivas por Michel Foucault (2008) no livro Arqueologia do Saber. 7 [Prticas discursivas] um conjunto de regras annimas, histricas, sempre determinadas no tempo e no espao, que definiram, em uma dada poca e para uma determinada rea social, econmica, geogrfica ou lingustica, as condies de exerccio da funo enunciativa.

  • !16

    Sobre estes aspectos, os gregos so os primeiros a sistematizar e

    classificar as diferenas entre os locais do ponto de vista cultural. Segundo Sodr

    (2002), Os gregos entendiam o espao como um topos, um espao-lugar, local

    marcado, um espao demarcado que afeta os corpos materiais. Heidegger (2005)

    retoma os estudos clssicos e acrescenta que a criatividade atuando no espao

    o que produz o lugar, distinguindo o espao-lugar, com limites especficos, do es-

    pao, este sendo como um spatium, em latim, a extenso descontnua e het-

    erognea entre dois pontos. O espao-lugar o resultado do morar, algo que

    indica a identidade do grupo, que possui as marcas impressas na terra, nas ar-

    vores, nos rios, escrituras, que vo fixar o ordenamento simblico da comu-

    nidade. Com o passar dos tempos, a maneira como os indivduos ordenam essas

    relaes entre a terra, a gua, e os outros homens, criam uma demarcao na

    diferena com outros espaos que do identidade. Esse espao exclusivo, difer-

    enciado e possuindo uma carga de identidade chama-se territrio.

    Portanto pode-se dizer que o espao fsico demarcado pelos habi-

    tantes intencionalmente, imprimindo significantes, fornecendo significados de

    identidade para a sociedade local. Decodificar um territrio urbano entender

    como as estruturas fsicas e as relaes entre elas e o corpo social esto pre-

    sentes no convvio catico e dinmico da cidade. Sodr (2002) apresenta os sig-

    nificantes da linguagem arquitetnica e faz uma associao dos elementos mate-

    riais ao imaginrio, coordenando significaes de entrada, sada, gravidade, verti-

    calidade, interiores, volumes, decorao, aparncia e fachada, com sua articu-

    lao nas prticas sociais. Para o autor, esses elementos de linguagem ocupam

    um lugar no imaginrio infinitamente maior que a realidade concreta, pois ela reg-

    istra variveis polticas, econmicas e ideolgicas, articulando a padronizao

    das diferenas sexuais, confirmando as hierarquias e certas formas de controles

    sociais alm de servir como pano de fundo para uma memria nem sempre con-

    sciente dos habitantes.

  • !17

    !!

    1.2 O espao mtico do drago e da cavalaria !!

    Observando o espao, o cenrio das imagens que contm a luta mi-

    tolgica entre o santo guerreiro e o drago, percebe-se sempre que o local, o es-

    pao em torno do evento est sempre fora dos muros da cidade. O drago per-

    tence a um ambiente fora do territrio, ele ocupa o espao heterognio sem iden-

    tidade, o prprio spatium. uma floresta, uma caverna mida, sempre um am-

    biente que no tem significados decodificados. Le Goff (1993 p. 240) analisando

    as imagens medievais e renascentistas que retratam as relaes entre os santos

    e os animais selvagens, cita So Francisco com seu lobo e So Jernimo com o

    leo. Em ambos encontramos as faces tranquilas e os animais domesticados,

    simbolizando o poder dos santos em transformar a natureza selvagem (FIG. 1 e

    2).

    !

    " Fig. 1: So Jernimo em seu quarto.

    Fonte: Autor annimo. Site culturageralsaibamais. 8!

    http://culturageralsaibamais.wordpress.com/2009/08/28/o-leao-de-sao-jeronimo. Acesso em 15 de 8maio de 2011

    http://culturageralsaibamais.wordpress.com/2009/08/28/o-leao-de-sao-jeronimo
  • !18

    " Fig. 2: So Francisco e o lobo

    Fonte: Autor annimo. Site noviciado de varatojo . 9!So Jernimo, como exemplo, est inclusive escrevendo em seu quar-

    to de estudo, sua morada, seu territrio, enquanto o leo encontra-se em paz, na

    maioria das vezes, agachado aos ps do santo. Na imagem de So Francisco,

    embora o espao seja fora da cidade, a natureza est simbolicamente ordenada

    atravs da imagem corporal do lobo selvagem.

    Diferentemente, nas imagens de So Jorge, o Drago a besta no

    domesticvel, o que deve ser expulso ou morto, habitando um territrio no de-

    codificvel no discurso imagtico. Na fig. 3, So Jorge est armado, com uma

    lana, apontando para a boca ou pescoo, fixando em imagem o momento em

    que h um domnio das foras do santo em relao ao mal, que habita em um lo-

    cal no demarcado significativamente para a populao.

    http://noviciadofm.blogspot.com/2011/03/outra-lenda-dos-fioretti-florinhas-diz.html Acesso em 2/fev/20119

    http://noviciadofm.blogspot.com/2011/03/outra-lenda-dos-fioretti-florinhas-diz.html
  • !19

    Fig 3: So Jorge

    Fonte: Pintura de Tintoretto. Site allposters 10!Le Goff (1993 p. 241) sugere que a vitria sobre um drago mais do

    que derrotar o mal, tambm a possibilidade de ordenar um stio natural, a flores-

    ta, ou um lodaal. Derrotar um drago simbolicamente civilizar, demarcar um

    local no conquistado ainda e tem relaes fortes com o empreendedorismo de

    uma comunidade. Expulsar o drago expandir o espao significativo, e, portan-

    to, aumentar o territrio da comunidade.

    http://www.allposters.pt/-sp/St-George-and-the-Dragon-posters_i1342052_.htm Acesso em: fev 201110

    http://www.allposters.pt/-sp/st-george-and-the-dragon-posters_i1342052_.htm
  • !20

    Outro ponto importante considerar o arqutipo do cavaleiro medieval

    em relao ao espao geogrfico. So Jorge na Idade mdia foi acolhido como

    mrtir pelos cavaleiros, uma classe social que ascendeu principalmente a partir

    do sec X com as cruzadas e as guerras de reconquista na Europa. Assim a cav-

    alaria a instituio que vai conectar espacialmente a catedral, o castelo e os

    pontos de peregrinao. Em outras palavras, a cavalaria o elo entre o espao

    politico do clero, da nobreza, dos militares e o espao heterognio, sem identi-

    dade, do desconhecido, do medo, das reas no habitadas, porque o cavaleiro

    medieval um ser errante, no possui conforme Le Goff (2009 p.118) natureza

    hereditria.

    !!1.3 O castelo de So Jorge !!

    Via de regra, o castelo medieval era um local auto sustentvel, uma

    cidade. Um ambiente delimitado que frequentemente se encontrava em algum

    montculo habitado por castelos, sendo o ncleo de aldeias e povoados circun-

    vizinhos. Em Lisboa, o espao urbano envolveu o castelo de So Jorge, e este se

    envolveu na cidade. Observe a descrio Fernando Pessoa.

    !Quase em frente ao limoeiro, a rua da saudade, que leva ao

    Castelo de So Jorge (...). Construdo num alto de onde se domina uma ampla vista do Tejo e de grande parte da cidade (PESSOA, 2008 p 24) !

  • !21

    " Fig. 4: Mapa de Lisboa em 1844 desenhado por Joseph Meyer. Em destaque: O castelo de So Jorge

    em vermelho, a Baixa Pombalina em amarelo e o Bairro Alto em azul. Fonte: Bibliographischen Instituts Hildburghausen 11!

    O local domina o centro de Lisboa, que durante os sculos XIII a XVI

    foi a morada dos reis. No pice das grandes navegaes, os governantes

    reinavam do castelo. Assim ele acumulou o status fsico de lugar militar, real e

    artstico, visto que as peas de Gil Vicente eram encenadas no castelo inicial-

    mente. Observe a descrio do imaginrio lisboeta na voz de Fernando Pessoa:

    !O castelo tem trs portas principais (...). Todas elas so muito anti-

    gas. O prprio castelo assaz e notvel, com suas grossas muralhas, ameias e torres. Deles fizeram os reis sua residncia e foi tambm cenrio de muitos eventos notveis da histria poltica de Portugal.(PES-SOA, 2008 p 34) !

    http://www.davidrumsey.com/luna/servlet/detail/RUMSEY~8~1~21842~670081:Lissabon,-11Lisboa,-1844---with-view-?sort=Date%2CDate&printerFriendly=1, Acesso em: 10 fev 2011

    http://www.davidrumsey.com/luna/servlet/detail/rumsey~8~1~21842~670081:lissabon,-lisboa,-1844---with-view-?sort=date%25252cdate&printerfriendly=1
  • !22

    Ainda hoje o castelo domina a vista em seu redor. O Tejo e o conjunto

    urbano que vai do Rossio Baixa Pombalina, construdo logo aps o terremoto

    no sec XVII para ser o corao atual administrativo e econmico esto em inferi-

    oridade topogrfica. Seja qual for o nvel social do cidado lisboeta, ele estar

    topograficamente abaixo diante da fortificao.

    O castelo de So Jorge uma edificao que revela atravs do imag-

    inrio lisboeta, o testemunho de um perodo de poder e ostentao, confirmando

    Sodr (2002), que para ele, as estratgias oculares traam limites, estabelecendo

    planos polticos, atribuindo domnios e territrios populao.

    !

    " Fig. 5: Centro de Lisboa vista da sacada do elevador Santa Justa em 2006.

    Fonte: Autor da pesquisa !No entanto, ocorre tambm um esquecimento, um apagamento desta

    memria por parte dos lisboetas.

    O smbolo de Portugal imperialista e monrquico, expresso na suntuosi-

    dade de um castelo na colina em pleno centro comercial urbano e que acompanhou

    a histria local desde a formao da nao, tambm alvo de uma desconexo cul-

    tural.

  • !23

    Isso facilmente detectvel com moradores mais jovens da cidade. Du-

    rante a pesquisa foi estabelecido um contato com um Jovem Lisboeta, Artista Plsti-

    co, durante um festival de cinema em lngua portuguesa na cidade de Joo Pessoa,

    o Cineport.

    Aps conversa verificou-se, coincidentemente, que a nica relao forte

    que ele tinha com So Jorge era o Jorge que havia em seu nome, batizado pela sua

    av.

    No romance Noutros tempos foi So Jorge o meu Patrono, em Fontes

    (1987 p. 1151) observa-se um misto de saudade e desgosto pela situao de aban-

    dono e desprezo s tradies mais antigas portuguesas. Neste romance, o Eu lrico

    invoca a identidade do castelo, se torna um com ele, bordado nas ameias de suas

    muralhas e assume o esquecimento de So Jorge pela populao

    Noutros tempos foi So Jorge o meu Patrono !Cantada por Aurora Celeste Campos, nascida em 1907. Avelanoso/Bragan-a. Coleta em 31 julho de 1980. Fontes (1987 p.1151). !Noutros tempos foi So Jorge o meu patrono Aos herois aos guerreiros dei abrigo Hoje vivo desprezado, ao abandono Sem o culto da saudade dum amigo !Velho baluarte Das sete Colinas Sou forte estandarte Do pendo da esquina !Das ameias que me bordam na muralha Ao reverdo (?) resisti aos Castelhanos Insensvel aos assaltos e metralha Muito embora j bregado pelos anos !Humilde hospedagem Eu dou os meus braos famosa imagem Do senhor dos passos !!

  • !24

    Portanto, o castelo um smbolo identitrio portugus relacionado ao im-

    perialismo, monarquia dos Avis, aos mitos de So Jorge, s suas relaes polticas

    com a Inglaterra, s idias de fortaleza e estabilidade contra os invasores histricos

    da pennsula ibrica e os Mouros.

    !!1.4 O territrio de Ogum na frica e no Candombl da Bahia !!

    Conforme Bastide (2005) Ogum, originalmente, vive na terra longnqua

    da Africa. Ele no est no Brasil, mas mesmo assim, atrado pelo sangue dos

    sacrifcios e pelos toques dos tambores, vem para comer e para danar encarna-

    do no corpo de seus filhos. Ogum fixado, escrito em pedras, pedaos de ferro,

    na cabea de seus filhos entre frica e Brasil, ocupando, assim como os outros

    orixs, um intermezo entre o invisvel (orum) espao espiritual, simbolicamente, o

    mato, a Africa, e o visvel (ay) o espao fsico, construdo geogrfico/performti-

    co no Brasil, que se interpenetram criando uma cosmogonia prpria.

    Essa geografia sagrada entrecortada pelo no observvel, carregada

    de significados mais do que um projeto terico, , como afirma Eliade (2005 p.

    32), a prpria realidade dos iniciados, pois o mito real, um espao organizado

    simbolicamente.

    Na Africa, os filhos de santo so segregados de acordo com sua pater-

    nidade espiritual, os lugarejos so dedicados aos cultos de entidades especficas.

    Tem-se uma ciadade de oxum, outra de iemanj e assim por diante. Verger

    (1999) analizou o espao do culto Ogum na aldeia de Ishd, em que 95% da

    populao filho do Orix ferreiro.

    O templo de Ogum, nessa localidade, ocupa um lugar na vizinhana da

    urbe. uma clareira no meio do mato contendo algumas cabanas.

    !

  • !25

    " Fig. 6: Templo de Ogum em Eshd Fonte: Foto de Pierre Verger (2002) !

    A partir dos deslocamentos dos participantes do culto de Ogum que

    Verger (2002) desenhou, possivel estabelecer as relaes espaciais, descrever

    a cidade sagrada e observar as relaes entre Ogum, Exu, Oxossi; entre os

    orixs e os outros ancestrais, os eguns; as presenas dos ogans, percutindo os

    tambores e das mulheres, que vo proporcionar ordem durante todo ritual.

    !

  • !26

    " Fig 7: Movimentos dos participantes durante culto para Ogum em Eshd Africa

    Fonte: Desenho de Pierre Verger (1999) !Enquanto So Jorge ocupa o centro urbanstico de Lisboa, Ogum em

    Eshd, na frica, ocupa um territrio, no menos importante, porm, deslocado

    da urbe. Est presente em sua cidade prpria. O local dos rituais para Ogum

    possui demarcaes simblicas que estabelece o territrio do Orix.

    No Brasil e principalmente na Bahia os rituais afros mais tradicionais

    de Candombl se estabeleceram como espelho do territrio original africano, con-

    tudo em consequncia do convvio das diversas etnias e naes africanas nas

    senzalas durante o perodo da escravido no Brasil, o Candombl aglutinou os

    diversos Orixs, que, separados em diversas aldeias na Africa, passou a compar-

    tilhar territrios nos interiores das casas de candombl. Portanto, os orixs podem

    dividir espacialmente o mesmo Pegi, local sagrado onde esto depositados, as-

    sentados, os objetos simblicos que representam a presena dos orixs como

    ocorrem em Gantois (FIG. 9), ou obedecer a orientao territorial conforme a

    casa de nao ketu do Engenho Velho (FIG. 8), em que os orixs mais impor-

    tantes ocupam cmodos diferentes na casa.

    !

  • !27

    " Fig. 8 Planta baixa do terreiro do Engenho Velho de nao Ktu at o ano de 1948.

    Fonte: Edison Carneiro [s.d] ! possvel perceber que a casa do Engenho Velho (FIG. 8) no

    morada de famlia ou de lderes da comunidade, mas frequentado por pessoas

    que esto cumprindo tarefas, desepenhando alguma funo na comunidade,

    sendo organizado de acordo com a distribuio especfica geogrfica que cada

    orix exerce no corpo religioso do Candombl. Cada orix ocupa um territrio da

    casa e o barraco o ambiente que ocorre a festa, envolvendo todos os orixs e

    filhos de santo nos dias especficos durante o ano.

    Diferentemente do que ocorre no terreiro de Engenho Velho, a casa de

    Gantois a residncia fixa da tradio genealgica das mes de santo da casa.

    Assim, observando a sua planta baixa (FIG.9), pode-se observar que o territrio

    dos Orixs encontra-se aglomerados, dividindo espao com as yas e a Me de

    Santo.

    !

  • !28

    " Fig 9: Planta baixa do terreiro de Gantois.

    Fonte: Arthur Ramos (1988) Tanto em Gantois, quanto no Engenho Velho, os Orixs j no habitam

    mais um territrio semelhante ao que ocorre na Africa. A mata, a clareira, o es-

    pao selvagem, natural, adjcente cidade, substituido pela casa, mesmo que

    este espao esteja sendo utilizado sempre em dilogo simblico com o ambiente

    africano. !!

    1.5 So Jorge/ Ogum em Joo Pessoa !

    A expanso horizontal do espao territorial urbano de Joo Pessoa no

    sculo XIX aconteceu de maneira vertiginosa, sendo fator preponderante que atu-

    ou na identidade do Pessoense atravs da maneira como a comunidade se rela-

    cionou com estas mudanas, influenciando tambm na territorializao religiosa

    dos terreiros da cidade.

  • !29

    Conforme Trajano (2006 p. 32), durante tres sculos, Joo Pessoa es-

    teve espremida entre a colina que repousa a Rua Nova, hoje, Rua General Os-

    rio, e o Rio Sanhau. As ruas, na medida em que crescia a populao, iam

    tomando novos contornos, se adaptando, encurtando, ora se abrindo em largos,

    ora fechando em becos (ver Fig. 11), traando desenhos urbanos que no es-

    tavam de acordo com as novas tendncias urbansticas, estimuladas pela mod-

    ernizao da Capital Federal, Rio de Janeiro. !

    " Fig. 11: Vista area atual de Joo Pessoa a partir do Rio Sanhau

    Fonte: Foto de Felipe Gesteira 12!Logo no incio do sculo, a partir da disputa poltica entre os par-

    tidrios da reformulao do Porto de Capim no centro de Joo Pessoa e os que

    queriam o Porto de Cabedelo como escoamento dos produtos paraibanos,

    comeou-se uma especulao sobre a instalao de um novo porto na enseada

    de Tamba. Entretanto, antes mesmo da construo desse porto, que nunca ex-

    istiu, uma avenida foi aberta no meio do mato, ligando o que seria o futuro porto

    zona urbana. Nasce em 1918 a avenida Epitcio Pessoa.

    http://felipegesteira.com/blog/?page_id=936 Acesso em: abril de 201112

    http://felipegesteira.com/blog/?page_id=936
  • !30

    Mesmo com a Avenida construida, foi somente entre os anos 1923 e

    1926, na gesto do prefeito Walfredo Guedes Pereira, estudante de medicina no

    Rio de Janeiro entre 1902 e 1908 que se empreendeu uma srie de medidas

    com o objetivo de melhorar a locomoo; atravs do alargamento de vias, de-

    molio de prdio, igrejas e favorecer a higiene com implantao de abstecimen-

    to de agua e rede de esgotos. Com esses benefcios, a populao de Joo Pes-

    soa ultrapassa o limite da Lagoa e incia a expanso em direo leste, via Epit-

    cio Pessoa.

    Ainda seguindo a tendncia modernista, em 1932, o urbanista Nestor

    Egydio de Figueiredo cria um plano que idealizou a conexo entre o rio Sanhau

    e o mar de Tamba, integrando os bairros de Cruz das Armas e Tambi, tendo a

    Lagoa Soln de Lucena como elemento central de articulaco entre o rio, o mar e

    os bairros adjacentes.

    Com intenses voltadas sobretudo para deslocar as camadas mais

    populares das regies mais centrais, o plano de Nestou Egydio foi colocado em

    prtica e ocupou-se definitivamente as margens da avenida Epitcio Pessoa. O

    Bairro da Torre, bero da Tribo Africanos da Torre desde 1918, do carnaval

    tradio e tambm do Centro de Umbanda Nossa Senhora do Carmo, vai surgir

    destas primeiras investidas do governo estadual (FIG. 12)

    A partir da dcada de 1950, o investimento pblico no setor da

    habitao, resultado do Montepio dos Funcionrios Pblicos, do Instituto de

    Aposentadoria e Penso (IAPs) e da Fundao da Casa Popular, promove em-

    preendimentos habitacionais de pequeno e mdio porte, seguindo o modelo de

    residncia unifamiliar de conjuntos habitacionais. O Bairro dos Expedicionrios

    surge neste contexto histrico em 1955, onde vai sediar o Terreiro Ogum Toper-

    in.

  • !31

    Na dcada de 1960 com a ao do Sistema Financeiro de Habitao

    (SFH) e do Banco Nacional de Habitao (BNH), o modelo de empreendimento

    ganha novos financiamentos. Os investimentos passam a associar servios de

    infra-estrutura urbana e rede viria. A orientao da expanso territorial se distan-

    cia ainda mais do centro e passa a seguir em direo sudeste. Criam-se os eixos

    rodovirios da BR-101 e da BR-230, a implantao do Campus da Universidade

    Federal da Paraba, do Distrito Industrial e dos conjuntos Castelo Branco, Fun-

    cionrios e Costa e Silva.

    A partir da dcada de 1970 intensifica mais ainda a ideologia de ex-

    panso em direo sudeste da cidade. Neste perodo, o objetivo principal foi

    recolher populaes das favelas que comeavam a proliferar rapidamente na cap-

    ital. Assim atingiu-se um nvel vertiginoso de periferizao com a construo de

    grandes conjuntos habitacionais tais como Mangabeira e Valentina Fiqueiredo,

    local onde Me Lcia vai morar com sua me, Me Edite e fundar o terreiro de

    Candombl Kwe Ceja Azirin (FIG. 13).

    !

    " Fig. 12: Mapa de Joo Pessoa dos anos 1930 Fonte: Prefeitura Municipal de Joo Pessoa 13!

    http://www.geociencias.ufpb.br/~paulorosa/tcc/Mono_Ivo.pdf . Acesso em: 3/maro/201113

    http://www.geociencias.ufpb.br/~paulorosa/tcc/mono_ivo.pdf
  • !32

    Os terreiros Afro-Pessoense vo surgindo e se deslocando obedecen-

    do esta tendncia de expanso territorial no transcorrer da histria da cidade.

    Pois as comunidades que praticam os rituais so em sua maioria formada por

    famlias menos favorecidas economicamente e, portanto, seguem o fluxo desta

    poltica de segregao espacial. Como exemplo, o centro de Umbanda Ogum

    Toperin, com antiga sede no Bairro dos Expedicionrios, mas que no suportan-

    do a presso imobiliria, o lder vende a casa em 1992

    Alm dos deslocamentos da populao mais pobre, esta expanso ter-

    ritorial ocasionou tambm uma fenda cultural na classe mdia de Joo Pessoa.

    Um apagamento de referenciais simblicos provocado pela fuga imobiliria que

    produziu uma nova gerao em torno do mar, desconectada com a memria sim-

    blica do centro de Joo Pessoa e bairros adjacentes, ocupada em torno do Rio

    Sanhau durante tres sculos.

    Desconexo que, consequentemente, provocou uma segregao so-

    cial com base territorial entre as populaes das regies da orla envolvendo Cabo

    Branco, Manara e Bessa e os bairros da regio sudeste, entre eles, Magabeira e

    Valentina Figueiredo.

    Comparando os dois mapas pode-se observar a grande expanso ur-

    bana da cidade em direo ao sudoeste. O Bairro da Torre, juntamente com os

    Expedicionrios foram inicialmente bairros da periferia (ver Fig. 12), aos poucos

    foi adquirindo caractersicas de bairro residencial de classe mdia durante os

    anos 1970 e atualmente, 2011, boa parte de seu espao ocupado por estab-

    elecimentos comerciais.

    Assim pode-se deduzir porque em bairros como a Torre residem ter-

    reiros antigos da cidade, enquanto que os abertos mais recentemente esto nos

    bairros construdos a partir dos anos 1970, entre eles, o bairro de Valentina. !!

  • !33

    "

    " Fig 13: Mapa da cidade de Joo Pessoa em 2011

    Fonte: Legendas elaboradas por Roncalli a partir do mapa da Prefeitura Municipal de Joo Pessoa 14!.

    www.joaopessoa.pb.gov.br. Acesso em: 3 abril de 201114

    http://www.joaopessoa.pb.gov.br
  • !34

    Diferentemente de So Jorge em Lisboa, como signo esttico urbano,

    representado pelo Castelo (Fig 5, p. 18) e Ogum em Eshd na Africa (Fig 6, p.

    20), dono de seu prprio territrio, em uma clareira prxima a urbe, Ogum/ So

    Jorge se deslocam para Joo Pessoa habitando as margens da cidade, obede-

    cendo o fluxo expansionista imobilirio. E alm de estarem na periferia, histori-

    camente, se restringiram ao espao privado, um espao interno, no confinamento

    dos oratrios catlicos e nos gongs afro-pessoense, o qual representa tambm

    o confinamento de Ogum, dividindo espao com outros Orixs africanos, em

    convivncia com outras entidades, tais como preto velhos, caboclos, pombagiras,

    boiadeiros com origens diversificadas. !

    " Fig 14: Gong, oratrio do terreiro Nossa Senhora do Carmo. So Jorge ao lado de Maria, Yemanj,

    Oxum e Joo Batista Fonte: Foto de Roncalli Dantas. !

    No interior deste espao devocional, cada sistema possui seu territrio

    especfico, fisicamente demarcado. Os orixs no se misturam com entidades de

    origem indgena ou santos catlicos, eles possuem um Pegi, espcie de quarto,

    altar, onde esto depositados os materiais simblicos, os assentamentos, que

    so, para os iniciados, a presena dos orixs na casa. Contudo a relao entre

    Ogum e So Jorge to forte que se observa normalmente nos gongs de inicia-

    dos e das casas de Umbanda, a presena de imagens de So Jorge ao lado de

    santos e orixs (FIG. 14).

  • !35

    Do espao urbano de Joo Pessoa para o territrio das casas, a partir

    das plantas baixas de dois terreiros em Joo Pessoa possvel observar a

    grande complexidade territorial destes espaos interiores, privativos da comu-

    nidade e entender as representaes de poder que exercem cada sistema cultur-

    al nas diversificadas relaes que existem entre as entidades.

    !

    " Fig. 15 Planta baixa do Terreiro Nossa Senhora do Carmo at o ano 2008

    Fonte: Anotaes de Roncalli Dantas !O terreiro de Umbanda Nossa Senhora do Carmo, fundada em 1973

    no bairro da Torre, uma das casas mais tradicionais em Joo Pessoa. Embora

    tendo sido aberta em um perodo de valorizao imobiliria no bairro, e tendo o

    marido como comerciante de pescado, a casa de Me Maria dos Prazeres, con-

    struda em Taipa demonstra a situao econmica nos primeiros anos de trabal-

    ho espiritual, tempos em que a Torre era ainda periferia da cidade.

  • !36

    Conforme se observa na figura 15, a comunidade estabelece a organi-

    zao territrial entre os Orixs e as entidades amerndias. Cada sistema possui

    seu habitat e exigem performances diferentes dos iniciados em cada espao. O

    cigarro, a bebida e as vestes sensuais, com exceo das festas de Exu, so im-

    pedidos no territrio dos orixs, assim tambm como os elementos representa-

    tivos da Jurema, de origem amerndia, que no tem acesso ao territrio de santi-

    dade dos Orixs. Em relao aos elementos fsicos da estrutura arquitetonica

    dos ambientes, enquanto a casa da Jurema possui o piso em cimento queimado

    e paredes pintadas de verde, o local dos orixs ocupa um espao fsico maior,

    ocupando toda largura do terreno, mais claro, no fundo da casa, construda em

    cermica branca.

    Contudo, diante dessa organizao simblica da religiosidade, a est-

    tua de So Jorge, assim como os demais santos cristos tem liberdade de se

    deslocarem entre os dois universos. So Jorge est presente tanto no gong,

    oratrio, de cultos de jurema quanto no oratrio em cultos de orixs, mesmo que

    o oratrio esteja em alguns momentos, coberto com cortina.

    O Segundo terreiro pesquisado se localiza no bairro de Valentina

    Figueiredo. O Terreiro de Candombl Kwe Ceja Azirin abriu as suas portas para a

    comunidade em 1989, bairro que tambm criado a partir das polticas de ex-

    panso habitacionais na cidade em direo ao sudoeste conforme o mapa da

    cidade (Fig. 13).

  • !37

    " Fig. 16: Planta baixa do Terreiro de Candombl Kwe Ceja Azirin, bairro de Valentina

    Fonte: Anotaes de Roncalli Dantas !

  • !38

    O desenho da planta baixa conforme figura 16, no possui os dois es-

    paos distintos entre as entidades de Jurema e Orixs. Segundo o lder da casa,

    Pai Marcelo, eles no tiveram recursos financeiros para tanto. Assim, a organiza-

    o dos universos religiosos se d de maneira mais complexa. As rodas de gira

    para Orix e para as entidades de Jurema ocorrem no mesmo local, mas os quar-

    tos da casa que servem de assentamento aos elementos simblicos, os Pegis,

    existem separadamente em dois quartos. Um ao fundo, o maior, comporta os el-

    ementos de Orixs, e outro ao lado, pequeno, fechado por uma esteira de plsti-

    co, dedicado s entidades de Jurema: os Caboclos, os Mestres, os Boiadeiros,

    e Pretos Velhos. Nas paredes do barraco, existem elementos que simbolizam

    Oxum, orix que rege a casa, a Cortina amarela e a foto da matriarca Me Edite

    (Fig 17), alm de um certificado fixado no umbral da casa que confirma a comu-

    nidade como casa de Candombl desde o ano 1989.

    !

    " Fig 17: Me Edite.

    Fonte: Foto de Roncalli Dantas, acervo do Terreiro de Candombl Kwe Ceja Azirin !

  • !39

    Mesmo tendo uma formao forte na matriz afro, pertencente ao can-

    dombl, os lderes de Valentina foram iniciados primeiramente em uma casa dita

    de Umbanda, na convivncia entre os diversos sistemas de entidades, partindo

    do mesmo tronco espiritual do Terreiro de Nossa Senhora do Carmo no bairro da

    Torre, visto que a me biolgica da Me de Santo de Valentina, foi me-pequena

    do terreiro de Umbanda Ogum Toperin de Pai Valdivino de Lima Morais, casa

    que deu origem as duas comunidades estudadas. Atualmente, a casa do Valenti-

    na uma casa de Candombl de nao Jeje, mesmo que, por respeito Me

    Edite, que continua fiel aos rituais de Umbanda, a casa dedique parte de seu es-

    pao e do seu calendrio de festas anuais s entidades de Jurema.

    Mas no s harmonia e boa convivncia que ocorrem nas casas de

    religio afro-pessoenses. Na Torre, o processo de transio de liderana vem

    sendo o principal gerador de mudanas na casa, afetando tambm a estrutura

    arquitetnica. Aps a lder Me Maria dos Prazeres em 2009, decorrente do Mal

    de Azheimer, perder a memria, muitos filhos da casa se dispersaram, abriram

    terreiro e outros levaram seus objetos para as respectivas residncias pessoais.

    Do ponto de vista arquitetnico, a casa fsica tambm acompanhou as

    mudanas. O local de culto para os orixs ruiu, ficando intacto apenas o quarto do

    Pegi e o gong, como se observa na figura 18. A velha casa de taipa, antiga

    residncia de Me Maria dos Prazeres tambm foi demolida, dando lugar a uma out-

    ra de alvenaria, no mesmo local, via projeto da prefeitura, que subsidia a construo

    de casas populares.

    Pai Nno, filho biolgico de Me Maria dos Prazeres assumiu a liderana

    espiritual da casa em 2010.

  • !40

    " Fig. 18: A gira no Centro de Umbanda Nossa Senhora do Carmo aps desabamento em 2009.

    Fonte: foto Roncalli Dantas

  • !41

    !!2 Contextualizao histrica das famlias de santo pesquisadas !!

    Neste captulo, tem-se uma contextualizao da formao das duas co-

    munidades pesquisada e a descrio da genealogia espiritual a partir dos relatos de

    Pai Marcelo Jos Ferreira Santos, 33 anos de idade; Me Lcia de Ftima Ferreira

    Santos, 52 anos de idade e de Me Edite Ferreira de Lima, 88 anos de idade.

    Embora ocorram diferenas entre as duas casas estudadas, com cada

    comunidade possuindo autonomia espiritual, ambas so terreiros de Oxum e tm a

    mesma ancestralidade espiritual.

    O Tenente militar dos Bombeiros, Pai Valdivino de Lima Morais (Fig I), fil-

    ho espiritual de Pai Moiss, vindo do Xang, ritual de candombl de nao Nag, foi

    o lder espiritual de Me Edite , de Me Lcia, que geraram a famlia de santo em

    Valentina e tambm foi ancestral espiritual de Me Maria dos Prazeres, que gerou a

    famlia de santo no bairro da Torre. Me Edite e Me Maria dos Prazeres, as duas

    lderes dos terreiros estudados, vivenciaram a Umbanda nos conturbados anos da

    dcada de 1950.

    At meados dos anos sessenta, como em todo resto do pais, somente a

    religio catlica gozava de prestgio social. Na memria de Me Edite, em con-

    cordncia com a pesquisa de Stnio Soares (2009), figura-se o governo de Pedro

    Gondim entre os anos de 1958 a 1966 como a poca de forte perseguio aos cul15 -

    tos afro Pessoense, quando a polcia invadia terreiros, apreendia objetos de culto,

    batia e prendia os adeptos.

    Governador da Paraba de 1958 at 1960 e de 1961 at 1966 pelo partido da ARENA, filiando-se 15depois ao PMDB

  • !42

    " Fig. I A sequncia genealgia espiritual. Pai Moiss, Me Edite e Pai Valdivino (de capa) no terreiro

    de Umbanda Ogum Toperin, Bairro dos Expedicionrios. 1969 Fonte: Acervo pessoal de Me Edite

    Neste perodo do Governo de Pedro Gondim, a casa de Pai Valdivino as-

    cende em Joo Pessoa como refgio, agregando filhos de santo de outras casas.

    Me Edite, que foi uma refugiada no castelo do cavaleiro de Umbanda Pai Valdivi-

    no, nos d pistas de como isso ocorreu. !

    Eu entrei na Umbanda por que vivia doente. Comecei na casa de Sebastio da Gama em Cruz das Armas, mas a casa foi invadida pela polcia pouco antes dele fazer minha cabea. Sebastio ficou muito desgostoso, fechou a casa, nos deixou () e foi embora para o Rio de Janeiro. Fiquei sem casa e sem orientao. Foi quando Pai Valdivino me recebeu e deu continuidade. Ele quem fez minha cabea. Eu sou filha de santo dele. Ele era Tenente

  • !43

    dos Bombeiros. Era conhecido dos policiais. Ningum importunava a casa dele.(EDITE 2010) 16!

    O neto biolgico de Me Edite, Pai Marcelo, que foi ogn na casa de

    Ogum Toperin, relata sobre as festas principais que ocorria na casa de Pai Valdivi-

    no. As festas principais do ano eram para Ogum, Ians, Exu, que se comemo-rava o aniversrio de Valdivino, em 16 de agosto, e para Yemanj, pois ele era tambm devoto de Nossa Senhora da Conceio. No dia da festa de Yemanj descia todos da casa dos expedicionri-os para a praia de Cabo Branco. Um andor com a imagem de Nossa Senho-ra da Conceio escoltado por ele com o seu cavalo branco. Valdivino cria-va aquele cavalo somente para o cortejo de yemanj() O terreiro nos Expedicionrios era enorme, era terreno para stio de granja, em torno de 40 por 50 metros. E o ambiente ainda se tornava pe-queno nas festas, pois se formavam at cinco giras ao mesmo tempo no barraco. A gente se revesava, pois o toque comeava as 5 da tarde e s acabava as 5 horas da manh. Vinha filho de santo de tudo que bairro de Joo Pessoa. (MARCELO 2010) 17!

    Aps o Governo de Pedro Gondim, com a eleio de Joo Agripino em

    1966, instalou-se a legalizao do culto.

    !Joo Agripino ainda hoje reverenciado pelo povo de santo como nosso governador, ou salvador, aquele que liberou a religies afro-brasileiras na Paraba. Ele oficializou a prtica desses cultos retirando-os da clandestini-dade. (SOARES 2009 p. 143). !

    O art. 5 da Lei Estadual 3.443/66 proposto por Joo Agripino de Vascon-

    celos Maia Filho delega s Federaes de Culto Afro-Brasileiro disciplina, o exer18 -

    ccio dos cultos no Estado e representao legal das atividades de suas filiadas, reti-

    rando do estado o poder de fiscalizao e represso sobre as casas. Assim Instalou-

    se uma liberdade mediada por federaes que eram inexistentes ainda em nosso

    estado, desencadeando um processo desordenado de organizao entre as diver-

    sas casas, surgindo um desequilbrio entre a autonomia das comunidades e a ne-

    cessidade de se filiar a instituies com o objetivo de entrar na legalidade.

    No mesmo ano de 1966, foi instituda a festa de Yemanj no dia 8 de de-

    zembro. Esse evento marca simbolicamente a sada da clandestinidade do povo de

    santo em manifestao pblica de expresso religiosa de conquista do territrio ur-

    Dados de pesquisa de campo realizada no Bairro de Valentina em dez/201016

    Dados de pesquisa de campo realizada no Bairro de Valentina em dez/201017

    Governador da Paraba de 31 de Janeiro de 1966 at 15 de marco de 1971 pelo partido da ARENA18

  • !44

    bano de Joo Pessoa. O que antes era restrito e relegado aos fundos das casas ou,

    quando muito, limitado aos descampados nos arredores da cidade, se tornou uma

    celebrao popular envolvendo a sociedade, incluindo o cidado comum, leigo aos

    rituais de yemanj (ver fig II).

    !

    " Fig. II: Primeiro cortejo da Festa de Yemanj em Dezembro de 1966, organizado por Pai Valdivino.

    Fonte: Acervo pessoal de Me Edite. !A celebrao final do cortejo se dava em frente antiga casa de Joo

    Agripino, na praia de Cabo Branco.

    No contexto de maior liberdade de culto, a Irm de santo de Me Edite na

    casa de Ogum Toperin, Em 1973, Me Maria dos Prazeres, abriu terreiro no Bairro

    da Torre e em 1987, Me Lcia abriu a sua casa para receber seus clientes no 19

    bairro de Valentina . A casa de santo em Valentina inicialmente se denomina casa 20

    de Umbanda Oxum Belein e continuou seguindo a tradio como filha da casa de

    Ogum Toperin.

    Bairro perifrico no incio do sculo XX, que possuia grande envolvimento nas culturas populares, 19sendo alvo da visita de Mario de Andrade quando esteve em Joo Pessoa entre os dias 28 de janeiro a 7 de fevereiro de 1929 conforme Carnicel (1994, p. 138 -139)

    Bairro construido nos anos 1980 que vai receber a populao de outras periferias da cidade 20

  • !45

    Em 1992, Pai Valdivino vende a casa nos expedicionrios e muda-se para

    Mangabeira. Este deslocamento provoca a disperso de boa parte das filhas de san-

    to mais antigas, dentre elas, Pai Marcelo cita em depoimento, Me Edite, Maria Pa-

    trcia, Me Mocinha e Maria do Carmo. Algumas delas foram para o Valentina, o que

    provocou sucessivas reconstrues da casa para acomodar as pessoas que

    chegavam.

    Em 1997, pai Marcelo conhece o Candombl de rito Jje da casa de Me

    Renilda em Cruz das Armas e logo em seguida Me Lcia segue a mesma atitude 21

    de mudar de folha, que a expresso que significa a mudana de orientao espir-

    itual. A casa de Umbanda Oxum Belein que era de orientao umbandista, descen-

    dente direta da casa de Ogum Toperin, se transforma em casa de Candombl Kwe

    Ceja Azirin de nao Jje, trazendo consigo todas as mudanas contidas ao mudar a

    origem cultural dos ritos, inclusive na comunicao verbal, pois as celebraes e os

    rituais no que diz respeito a matriz afro (celebraes para orix) so agora realiza-

    dos utilizando lnguas de origem africanas.

    Portanto, atualmente, na casa de Candombl Kwe Ceja Azirin coabitam

    pessoas que produzem rituais individuais distintos e consequentemente perfor-

    mances distintas. Os remanescentes que continuam seguindo os rituais da casa de

    Ogum Toperin e os novos filhos, j formados em Candombl. Vale salientar que ex-

    iste uma unanimidade na opinio entre eles relativo ao aspecto de que todos tiveram

    boa formao nos ensinamentos de Orix, pois a casa formadora inicial era forte-

    mente influenciada pela matriz afro vinda do Xang de Recife, candombl de rito

    Nag. Por outro lado, a mesma casa de candombl perpetua, no seu calendrio an-

    ual, os toques para Jurema, principalmente em respeito aos filhos mais antigos. So-

    bre os rituais na casa de Ogum Toperin e a influncia das diferentes matrizes cul-

    turais na viso de Pai Valdivino, Pai Marcelo explica: !A Umbanda em Pai Valdivino, que deu origem a grande parte das casas de Joo Pessoa, tinha o rito Nag do Xang [Candombl] de Recife. mais a parte branca, a parte clara. () Ele [Pai Valdivino] nunca raspou cabea de nenhum de seus filhos(). Cantava-se em portugus, mas se fazia curi-ao[matana de animais] (MARCELO, Valentina) 22

    Bairro perifrico enquanto o territrio de Joo Pessoa ainda se limitava at a Lagoa Soln de Lu21 -cena no incio do Sculo XX. Localiza-se logo ao sul do centro histrico (Ver fig 13)

    Dados de pesquisa de campo realizada no Bairro Valentina em 12/201022

  • !46

    Em 2003, Pai Valdivino se desloca novamente e abre nova casa em Pe-

    dras de Fogo . Em 2007 ele fecha definitivamente sua casa, deixando seus objetos 23

    rituais com Pai Severino, que o acompanhou desde os tempos dos expedicionrio.

    O cavaleiro de Umbanda, j vivo, retorna para Joo Pessoa idoso, fican-

    do aos cuidados de uma filha de Santo, Me Irene no bairro de Mangabeira.

    Em Aroeiras, cidade vizinha de Pedras de Fogo, Pai Severino tambm

    muda a folha e procura o terreiro de Me Renilda. Pai Severino, que era filho de Val-

    divino e Irm de Santo de Me Lcia, passa a ser filho de santo de pai Marcelo no

    Candombl, aumentando a complexidade das relaes de genealogia que produz as

    relaes de hierarquia no interior dos rituais e no cotidiano das casas. (ver os dia-

    gramas 1 e 2)

    Cidade localizada no sul da Paraba, a 42 km de Joo Pessoa 23

  • !47

    !

    " Diagrama 1: Genealogia em Umbanda. !!!!

    " Diagrama 2: Genealogia aps mudana da Umbanda Para o Candombl. !

  • !48

    !3 A escritura Performtica !!

    Aps a representao do espao fisico e simblico entre os territrios de

    Ogum e So Jorge em suas respectivas cidades simblicas, e de contextualizar

    histricamente o sujeito que vivencia as prticas afro-pessoense, necessrio a

    compreenso de como este territrio dialoga com as comunidades atravs da leitu-

    ra das narrativas performticas que os indivduos produzem.

    Neste captulo, Inicialmente, tem-se um esboo do que foi a presena do

    patrono de Portugal, So Jorge, durante o cortejo da celebrao do dia de Corpus

    Christi, celebrado ano aps ano, por mais de 3 sculos e registrado pelas lentes de

    Joshua Benoliel. Depois tem-se a narrativa da celebrao para Ogum em Eshd,

    Africa, fundamentado nas fotografias de Pierre Verger. E por ultimo, a narrativa da

    performance de Ogum/ So Jorge registrado pelo autor da pesquisa em abril de

    2008.

    . !3.1 So Jorge e a celebrao de Corpus Christi Em Lisboa ! !

    A celebrao de Corpus Christi teve origem em 1243, em Lige, na

    Blgica, no sculo XIII, quando a freira Juliana de Cornillon teria tido vises de

    Cristo desejoso de que o mistrio da Eucaristia fosse celebrado com maior

    destaque. Em 1264, o papa Urbano IV atravs da Bula Papal estendeu a festa

    para toda a Igreja e em Portugal, a celebrao ordenada pelo rei Dom Dinis no

    ano de 1284.

    A partir da implantao da dinastia de Avis em 1385, Portugal cria vncu-

    los com a Inglaterra, que tinha So Jorge como patrono, atravs do tratado de Wind-

    sor em maio 1386 e do casamento do Rei Dom Joo I com a filha de Jonh of Gaunt,

    Filipa de Lancaster em 1387, que introduziu vrios usos ingleses em Portugal.

    Durante este perodo, So Jorge se eleva a categoria de patrono de Por-

    tugal para substituir a antiga relao lusa com Castela atravs da figura de So Tia-

    go e ainda em 1387, a imagem de So Jorge includa na principal festa do calen-

    drio portugus.

  • !49

    Em uma palestra, Georgina S. Santos descreve a presena do Santo na 24

    procisso de Corpus Christi em Portugal durante o antigo regime atravs do cronista

    Barbosa Machado que ocorreu em 1719.

    ()Mas foi de fato a introduo do santo [So Jorge] na procisso do Cor-po de Deus, ainda em 1387, a grande responsvel pela transformao do mrtir numa entidade popular. Realizada em todo torro portugus, a pro-cisso em honra Eucaristia era a festa mais importante da Igreja lusa. Or-ganizado pela Cmara local e financiado pelos participantes, o cortejo con-tava com a presena dos oficiais camarrios, dos oficiais mecnicos, da clerezia e, s vezes, do prprio monarca. Os preparativos para o evento mobilizavam pessoas do lugar, dos arredores e coalhava as ruas de gente. Por determinao municipal, as vias eram tapizadas de flores e ervas, nas sacadas e janelas punham-se veludos e damascos (SANTOS 2006 p. 5). !

    Toda populao mobilizava-se durante os preparativos da cerimnia e ha-

    via um momento em que So Jorge reapropriava-se do Castelo, local que durante a

    dinastia de Avis, foi smbolo da realeza imperialista em Lisboa.

    !Nas cidades massacradas outrora pelos cercos castelhanos a apario de So Jorge era o clmax da festa. Em Lisboa, So Jorge sobre um cavalo era escoltado por um pajem, um alferes, o popular homem de ferro, e por cava-larios vistosamente trajados. No encerramento da festa, ano aps ano, o santo tomava posse de seu castelo e recebia ali, vista de uma multido entusiasmada, as honras de general ( SANTOS 2006 p.5) !

    O cronista Barbosa Machado descreve com detalhes a formalidade da en-

    trada do personagem no cortejo e a presena do vermelho, presente nas vestes

    carmesin, e os metais ferro e prata.

    A presena de So Jorge no cortejo de Corpus Christi simbolizava a funda-o da dinastia dos Descobrimentos e imprimia no evento um carter cvico que se transformou em tradio. Em 1719, no reinado de D. Joo V, o santo fez uma apario memorvel segundo o cronista Barbosa Machado. Trom-beteiros a cavalo, vestidos de veludo carmesim, guarnecidos de gales de prata, abriam passagem para um cavaleiro vestido e calado de ferro com viseira e colete, que se mostrava como o alferes da milcia antiga. Levando uma comprida bandeira, o mancebo liderava a apario de quarenta e seis cavalos da caudelaria real, conduzidos mo pelo mesmo nmero de mo-os das cavalarias, calando luvas brancas e vestidas em libr da Casa Real. (SANTOS 2006, p.5) !

    Palestra para o Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro em 9 de agosto de 200624

  • !50

    No final do sculo XIX, a monarquia Portuguesa entra em crise devido ao

    aumento de impostos, dficit da balana comercial e endividamento externo, geran-

    do descontentamentos populares, que fizeram crescer a influncia dos republicanos.

    Em 1891 estoura a primeira revoluo na cidade do Porto, mas a monar-

    quia e o governo respondem com represso culminando com o estabelecimento da

    ditadura por Joo Franco em maio de 1907. O apoio do Rei D. Carlos ditadura

    coloca-o em oposio s duas tendncias politicas de Portugal, os monarquistas e

    republicanos, ocasionando o regicdio e assassinato de seu filho, herdeiro do trono,

    no dia 1 de fevereiro de 1908 na Praa do Comrcio.

    O Segundo filho de D.Carlos, D. Manoel II recebe a coroa e fica no trono

    at a revoluo em outubro de 1910, quando os republicanos tomam o poder e im-

    plantam o estado laico, fortemente influenciado pelos ideais positivistas, diminuindo

    a fora da igreja no pas

    O captulo III da Lei de Separao da Igreja do Estado enftico quanto

    s limitaes das manifestaes pblicas da igreja, entre elas, a procisso de Cor-

    pus Christi.

    !Artigo 55 e 57 Os actos de culto de qualquer religio fora dos lugares a isso destinados, incluindo os funerais ou honras fnebres com cerimnias cultuais, importam a pena de desobedincia, aplicvel aos seus promotores e dirigentes, quando no se tiver obtido, ou for negado, o consentimento por escrito da respectiva autoridade administrativa. As cerimnias, procisses e outras manifestaes exteriores do culto no podero permitir-se seno onde e enquanto constiturem um costume inveterado dos cidados da respectiva circunscrio, e devero ser imediata e definitivamente proibidas nas localidades onde os fiis, ou outros indivdu-os sem seu protesto, provocarem, por ocasio delas, tumultos ou alteraes da ordem pblica (PORTUGAL, 1911). !!

    Durante os dois anos que D. Manoel reinou em Portugal, o fotgrafo

    Joshua Benoliel registrou a procisso de Corpus Christi. Embora decadente, con-

    forme o texto da reportagem, ainda continha a pompa do perodo monrquico (ver

    fig. 19)

  • !51

    !

    " Fig. 19: A procisso de corpus Christi em Lisboa.

    Fonte: Revista Illustrao Portugueza, No. 123, 20 de junho de 1908 p. 20 25!

    http://revistaantigaportuguesa.blogspot.com/2010_02_14_archive.html25

  • !52

    Em recorte, detalhe da revista Ilustrao Portuguesa (fig. 20) em que

    possvel observar a performance de So Jorge no cortejo durante o antigo regime,

    ilustrando a descrio do cronista Barbosa Machado contida na pgina 37.

    Esto presentes na imagem: os pajens, o Santo Guerreiro devidamente

    paramentado sobre o cavalo adornado, e, no ultimo plano da fotografia, a populao

    por tras do muro confinada e vestida formalmente, acompanhando o cortejo !

    " Fig. 20: So Jorge na procisso de corpus Christi em Lisboa.

    Fonte: Revista Illustrao Portugueza, No. 123, 20 de junho de 1908 p. 20 26!

    http://revistaantigaportuguesa.blogspot.com/2010_02_14_archive.html. Acesso em 2 agosto 201026

    http://revistaantigaportuguesa.blogspot.com/2010_02_14_archive.html
  • !53

    !!Joshua Benoliel tambm registrou a presena de negros durante o even-

    to, acompanhando o cavaleiro de ferro.

    !

    " Fig. 21: Os negros na procisso de Corpus Christi

    Fonte: Revista Illustrao Portugueza, No. 123, 20 de junho de 1908 p. 20 27!

    http://revistaantigaportuguesa.blogspot.com/2010_02_14_archive.html acesso em 2 agosto 201027

    http://revistaantigaportuguesa.blogspot.com/2010_02_14_archive.html
  • !54

    !3.2 Ogum na Africa !!

    Ogum o Deus dos ferreiros e de todos que usam o ferro: guerreiros,

    pescadores, caadores, lenhadores, lavradores, cabeleireiros, mecnicos. Ogum

    um s, mas conforme Verger (1999 p. 151) possui vrios nomes, assim como ocorre

    na Umbanda Afro- Brasileira.

    Ele representado por franjas de folhas de palmeiras desfiadas denomi-

    nadas de mariwo, elemento principal das vestes do Orix ferreiro. O mariwo tam-

    bm instrumento de orculo. Alado na entrada de caminhos ou colocado prximo

    ao cho produzir diferentes significados relacionados a passagens, impedimentos

    de trnsitos.

    Ogum o Orix que abre ou fecha caminhos, que relaciona-se com os

    deslocamentos espaciais, que representa o desenvolvimento e o empreendedoris-

    mo. Por isso, Ele saudado logo em seguida a Exu.

    Na Africa, Verger (2002 p. 149) descreve um ritual para Ogum na cidade

    de Eshd que ocorreu no dia 8 de junho de 1958.

    Inicialmente, Verger apresenta os personagens Onisengum (Ver fig. 22) e

    Olupan

    !A manifestao da presena de Ogum acompanhada pela presena de Oxossi e Exu, que incorporam respectivamente em Onisegum e Oluponan. Uma mulher, Yafero encarregada de acalmar Ogum se ele se tornar muito violento. Ela participa de todas as danas do ritual. () O cho da clareira cuidadosamente varrido, os sacerdotes dos Orixs e os dignatrios chegam uns aps o outro e tomam assento nos lugares determinados pela tradio (VERGER 2002 p. 152).

  • !55

    " Fig. 22 : Onisengum assentado em frente ao templo de Oxssi

    Fonte: Foto de Pierre Verger !Logo em seguida tem-se a narrativa das saudaes entre os participantes

    !Os diversos participantes, quando ao incio da cerimnia, eles vo se saudar uns aos outros e se oferecem, reciprocamente, sementes de cola. () Essas trocas [de oferendas] no so simples demonstrao de deli-cadeza, mas uma refeio entre os interessados e os deuses. !

    Aps o silncio das saudaes, ocorre a entrada das percusses. Com os

    atabaques e as danas, a harmonia se estabelece e ocorre o transe (ver Fig.23)

    !A orquestra composta de tres atabaques entra em ao e os sacerdotes dos Orixs Seba, Oxogum, Oluponan e Yafero entram em transe e danam em harmonia perfeita, uma espcie de quadrilha. () Eles vo e vem, saudam os notveis e dignatrios presentes. Os Egbelas, soldados de Ogum, acompanham suas evoluoes armados de faco (VERGER 2002 p. 152).. !

  • !56

    " Fig. 23: Transe de Saba (possudo por Ogum) e de Yafero, acompanhados pelos Egbenlas

    Fonte: foto de Pierre Verger (2002) !

  • !57

    !3.3 Metodologia utilizada para pesquisa de performances.

    !!

    Antes de iniciar a anlise da Performance de Ogum em terreiros afro-

    pessoense, necessrio a discusso em torno da metodologia utilizada para a

    leitura, tendo em vista a dificuldade de conter semioticamente a complexidade

    expressiva da performance e o desafio de interpretar uma cultura predominante-

    mente oral a partir da escrita.

    Conforme Zumthor (2007), seja qual for a mdia utilizada, impossvel

    reproduzir, repetir uma Performance, porque ela no se encontra no campo semi-

    tico. A performance no signo mediado, uma voz que no est representan-

    do algo. o prprio Ogum, sua presena mtica, que se entroniza e performatiza

    juntamente com os demais no ambiente. A semntica do significante movente que

    se apreende em tais evolues corporais no se relaciona apenas com audio,

    paladar, olfato, tato etc. , antes de tudo, uma multiplicidade dos sentidos, sendo

    algo que se presencia somente no instante do evento, graas s trocas e comuni-

    caes com aquele pblico especfico, naquele tempo especfico. Ento surge a

    dificuldade da transcrio de uma linguagem que no possui representatividade

    em sua atuao mais global (a performance) para um outro cdigo (a escrita),

    que reivindica para si sua semioticidade.

    !!

  • !58

    !3.3.1 As interpenetraes culturais na leitura de performances !

    Alm da dificuldade de envolver semiticamente a Performance, existe

    o desafio tambm da compreenso da enunciao, visto que ocorrem diferenas

    culturais entre um pesquisador que pertence cultura escrita e comunidades que

    privilegiam a cultura oral.

    O ponto de partida desta discusso o olhar tico de Verger e o seu

    envolvimento como pesquisador. - At que ponto imprescindvel que o

    pesquisador seja um membro da comunidade para imergir de maneira eficaz em

    outra cultura com intuito de interpretar a multiplicidade expressiva cultural? Pois

    Verger tentou ser ele prprio tambm o objeto de sua pesquisa. Ele iniciou-se na

    religio, se tornou mestre do If (orculo africano que se assemelha ao jogo de

    bzios), sendo ele respeitado por toda comunidade afro-brasileira como perten-

    cente comunidade do candombl.

    Em acordo com a postura de Verger, Laraia (2008) tambm defende

    que toda cultura possui uma lgica prpria que no transponvel sem perdas de

    um sistema para outro.

    !A coerncia de um hbito cultural somente pode ser analisada a par-

    tir do sistema a que pertence (LARAIA 2008 p.87)

    Laraia defende essa posio levando em considerao o contexto et-

    nocntrico, em que se pregava a superioridade de culturas cientficas em relao

    s primitivas, de pensamento mgico. Mas retirando a afirmativa do seu contexto

    original, observando-a isoladamente, pode-se problematizar as questes de hib-

    ridismos culturais no Brasil como forma de questionamento do posicionamento de

    Laraia. - Ser que impossvel analisar aspectos da cultura europia tomando

    como ponto de partida o olhar do afro-brasileiro, por que eles eram formados em

    outro sistema cultural durante o processo de colonizao no Brasil?

    A performance de Ogum nos terreiros de umbanda uma expresso

    cultural que resulta tambm da leitura que esses povos fizeram de uma outra cul-

    tura. Assimilaram para si e produziram algo hbrido entre duas regies de culturas

    distintas e distantes geograficamente.

  • !59

    Do ponto de vista histrico, sabemos dos elementos sociais, polticos e

    econmicos pelo qual os africanos passaram no Brasil. A escravido, a proibio

    na realizao dos seus cultos, a dificuldade de comunicao nas senzalas devido

    a presena das diferentes etnias que propositadamente estavam juntas para evi-

    tar rebelies. Mas, observando as performances de Ogum em terreiros de Um-

    banda, elas envolvem tambm, intrinsecamente, uma leitura Africana dos elemen-

    tos da cultura europia, uma sistematizao, resultado de mescla, tendo os com-

    ponentes culturais africanos trazidos pelos negros.

    Outro elemento a levar em considerao na leitura da performance de

    Ogum a dinmica de mudana cultural envolvida. Pois ela existe independente

    do sistema a qual esteja estudando. So mudanas que ocorrem com maior ou

    menor velocidade, dependendo da rea cultural que esteja em foco. A liturgia reli-

    giosa composta por noes sociais que costumam ter uma dinmica mais lenta

    do que as mudanas tecnolgicas, cientficas. Ento, a tendncia seria possuir

    uma dinmica restrita, com poucas mudanas no transcorrer do tempo, o que de

    fato no ocorreu na umbanda. Essa assimilao, tomando como base os con-

    ceitos de interstcios culturais de Homi Bhabha (2007), resultante mais de um

    embate fronteirio de culturas do que parte de um continuum de passado-pre-

    sente gerado no seio de um sistema cultural, de uma dinmica interna. Para As-

    suno (2006 p. 22) o universo religioso da umbanda nordestina formado e

    reelaborado pela mistura dinmica de elementos oriundos do candombl, da ju-

    rema, do espiritismo kardecista e do catolicimo popular

    Assim, entender a Performance de Ogum considerar uma dinmica

    cultural de entre lugares, que perfomatiza-se nmade e impura entre culturas dis-

    tintas conforme Santiago (2000 p. 9-26 ). tambm apreender uma lgica tica,

    em que a alteridade celebrada, mas que tambm existe jogos de hierarquias

    complexas entre santos, entidades que variam no transcorrer do tempo. E por ul-

    timo, ter a conscincia de que a descrio das vivncias nunca estaro esgo-

    tadas do ponto de vista analtico e semitico devido a multiplicidade expressiva

    dos participantes durante o ritual.

    Portanto, devido a complexidade interpretativa em apreenso dos signifi-

    cantes performticos, ao desafio de decodificar enunciados que possuem diferenas

    culturais entre o pesquisador e o objeto de estudo, e a dinamica cultural que envolve

  • !60

    o universo religioso da Umbanda, jugou-se necessrio fazer uma pesquisa com

    abordagem qualitativa utilizando a tcnica de observao participante, que conforme

    Queiroz (2007 p.278) consiste na insero do pesquisador no interior do grupo ob-

    servado, tornando-se parte dele, interagindo com os sujeitos, buscando partilhar o

    seu cotidiano para sentir o que significa estar naquela situao, embora, no caso

    desta pesquisa, no possui autoria de um iniciado na religio.

    Na observao participante, tem-se a oportunidade de unir o objeto ao

    seu contexto, contrapondo-se ao princpio de isolamento. Tem-se tambm a oportu-

    nidade de incluir as impresses do pesquisador durante a observao, pois confor-

    me Queiroz (2007 p.278) um princpio importante na observao participante a in-

    tegrao do observador sua observao, e do conhecedor ao seu conhecimento.

    !

  • !61

    !

    3.4 O ritual de Ogum/So Jorge em terreiro de Joo Pessoa !!

    O ritual narrado nesta pesquisa comeou dias antes da festa do Orix

    guerreiro, a partir da reunio dos participantes, filhos da casa, para preparar a festa

    na sede da comunidade religiosa. A descrio continua com a performance de Dona

    Marina Fernandes da Silva durante a festa que aconteceu em abril de 2008, no 28

    Centro de Umbanda Nossa Senhora do Carmo, situado no bairro da Torre, em Joo

    Pessoa.

    Todo ritual est narrado tendo a cozinha como eixo narrativo, pois o

    elemento que est presente em todas as etapas do ritual. Incia-se com a curiao,

    sacrifcio de animais para o Orix e a prepao do alimento, que ocorrem antes da

    festa. Durante a celebrao, ao trmino da gira, ocorre a distribuio dos alimentos

    entre os participantes, convidados e visitantes, e, por ultimo, a devoluo natureza

    das partes dos animais sacrificados que no so comestveis, ocorrendo geralmente

    no dia seguinte da festa.

    O sacrifcio comeou em frente a um pequeno quarto com p direito bai-

    xo, localizado na entrada do terreiro, um espao que dedicado a Exu. Enquanto

    sacrificavam as galinhas, cantavam em voz alta, derramando o sangue em alguida-

    res. Eu, atras da casa de Exu, distante, apenas acompanhava os cantos e uma jo-

    vem se aproximou e disse: Vai l ver, no tenha medo, porque eu no posso partici-

    par. Somente homens participam dessa curiao para Ex. Logo depois, os sacrif-

    cios continuaram no espao onde se dana a gira, com a matana de vrias gali-

    nhas e um bode, que faz parte do cardpio de Ogum, espalhando sangue entre os

    alguidares, exalando odor no ambiente, enquanto cantavam pontos em homenagem

    ao Orix.

    Com as carnes prontas, inicia-se a preparao da comida, geralmente

    encarregada por Dona Marina, que, alm de ser filha de Ogum, tem relao com

    Xang e Iemanj, exercendo um papel de liderana na cozinha da casa.

    Dona Marina no sabe ao certo informar a sua idade, apenas sabe que nasceu entre os anos 1930 28e 1943

  • !62

    A preparao na cozinha em forno de alvenaria lenha leva algum tempo,

    as vezes dias e obedece a uma sequncia de cozimento do qual no tive acesso.

    Segundo um Pai de Santo da casa, cada etapa realizada obedecendo a um es-

    quema ritual mgico, finalizando com a feitura da feijoada completa, da farofa, da

    galinha cozida, do arroz, sendo acompanhado tambm por algumas frutas como la-

    ranja e melo.

    " Fig. 24: incio da cerimnia para Ogum

    Fonte: Autor da pesquisa !Dois dias depois eu retorno ao barraco, agora todo decorado com folhas

    de espada de So Jorge cruzadas, bandeirolas em azul, vermelho e verde no teto e

    nas paredes. O espao, as pessoas, as comidas, tudo est preparado para o desfe-

    xo, a festa de Ogum.

    O momento em que se canta para Ogum , por tradio, logo depois de

    Exu, no incio da celebrao. Ento os filhos de santo, embalados pelas percusses

    e pelos pontos cantados giram em crculo, com todas as filhas vestidas de verde e

    vermelho e alguns filhos de branco, at que entra um membro com um tecido tra-

    zendo as cores de Ogum. Neste instante, todos se prostram em direo ao tecido e

    comea uma sequncia de gestuais de reverncia aos filhos de Ogum da casa (Ver

    fig.24).

  • !63

    !

    " Fig 25: Dona Marina em performance de Ogum, vestida com as armas de Jorge

    Fonte: foto de Roncalli Dantas !A gira segue com os pontos cantados para Ogum at que o prprio Orix

    toma como cavalo, expresso utilizada pelos prprios praticantes, o corpo de Dona

    Marina. Ela, uma das filhas mais antigas da casa, recebe o Orix e se transforma na

    figura viril, de esprito guerreiro, cortando o ar com as mos, como abrindo caminhos

    na mata. Os olhos expressam impetuosidade, violncia e ela comea a circular no

    ambiente sem obedecer a regularidade da gira. Logo depois, alguns a cercam e le-

    vam-na para o pegi, onde ela se veste com as armas de So Jorge, voltando triunfal

    ao barraco, evoluindo a performance de Ogum ( Ver fig. 25 e 26) !

  • !64

    " Fig 26: Evoluo da performance de Ogum atravs de Dona Marina

    Fonte: foto de Roncalli Dantas !Pouco a pouco, os outros filhos de santo prestam reverncia presena

    de Ogum na gira, se curvando diante dela em respeito ao antigo Orix vencedor de

    demandas. Os visitantes tambm observam atentamente e respondem os pontos

    para Ogum sentados ou em p, enquanto outros filhos vo recebendo tambm o

    Orix ferreiro.

    A gira continua com todos cantando para Ogum e So Jorge at que uma

    ekede, pessoa na gira que no recebe entidades e que tem a funo de dar suporte

    aos que esto em transe, retorna com Dona Marina ao pegi, onde ela retira a sua

    armadura e retorna para a gira vestida como antes.

    Mesmo sendo um dia especfico para Ogum, Os Orixs so homenagea-

    dos um a um atravs dos pontos cantados. Assim dada a cada filho, a oportunida-

    de de receber seu prprio Orix e de reverenci-lo.

    Depois de cantarem para alguns Orixs durante a noite de celebrao,

    pra-se tudo e trazem, ao centro do barraco, o banquete preparado nos dias ante-

    riores (ver Fig 28)

    !

  • !65

    " Fig. 28: Comidas de Ogum

    Fonte: foto de Roncalli Dantas !As pessoas so servidas comeando pelos ogans, que so aqueles que

    tocam os ils, instrumento de percusso. Enquanto todos comem com as mos, sem

    auxlio de colheres, garfos e facas, realizada a comunho em meio a conversas e

    uma rpida limpeza na casa. Aos poucos, os participantes vo se despedindo, ter-

    minando o ritual.

  • !66

    3.4.1 Descrio analtica da performance de Ogum

    !!Para descrever as relaes performticas entre Ogum e So Jorge du-

    rante o ritual da festa de Ogum narrada no tpico acima, optou-se por limitar-se ao

    estudo das vestimentas e das comidas.

    !!

    3.4.1.1 A Africa e Portugal nas vestimentas dos cultos afro-Brasileiros !!Para Raul Lody (2001), a suntuosidade das vestimentas que as filhas

    de santo se apresentam nos terreiros ou quando saem s ruas com seus tab-

    uleiros tem origem na Idade Mdia, quando o catolicismo se caracterizava por

    uma fase mais alegrica, com realizaes suntuosas como as missas, procis-

    ses, beatificaes, rituais de grandiosidade cnica e de impacto audiovisual.

    Especificamente ao considerar o conjunto de tecidos das quituteiras e

    quitandeiras do Brasil no sec XIX, contrariamente a Nina Rodrigues (2008), Raul

    Lody observa: O conjunto de tecidos e suas diferentes disposies na formulao

    dos trajes das quituteiras e quitandeiras sem dvida tem muito mais de por-tugus do que de africano. As roupas das negras de ganho [quituteiras, qui-tandeiras] do sec. XIX so projees das roupas das vendedeiras portugue-sas do sec. XVIII e XIX, aquelas mulheres que vendiam nas ruas, nas praas e mercados principalmente de Lisboa, Porto e Coimbra, o que fornece, inclusive, grandes informaes visuais para o estudo de uma das roupas mais brasileiras: a baiana. (LODY 2001, p. 44) !

    Ao comparar fotos das Varinas, vendedeiras de Lisboa (Fig. 29), com

    mulheres de ganho, vendedeiras no Rio de Janeiro do sculo XVIII (Fig. 30), pos-

    svel observar as semelhanas entre estas personagens femininas. Observe o patu

    no pescoo da vendedeira na imagem da aquarela como evidncia de tratar-se de

    uma religiosa de matriz afro, no entanto, a forma como o tecido envolvido no corpo

    e a maneira como dispe o produto para a venda so muito semelhantes s Varinas

    e muito semelhantes ao que se encontra nos terreiros afro-brasileiros atualmente

  • !67

    " Fig 29: A Varina, vendedeira de Lisboa no sec XIX

    Fonte: Foto de Joshua Benoliel para Edio 339 da revista Ilustrao Portuqueza. 19 de agosto 1912 29!

    http://revistaantigaportuguesa.blogspot.com/2010_02_14_archive.html. Acesso em 2 ago 201029

    http://revistaantigaportuguesa.blogspot.com/2010_02_14_archive.html
  • !68

    " Fig 30: Vendedeiras no Rio de Janeiro do Sc. XVII

    Fonte: Aquarela de Carlos Julio, Lody (2001) !Dentre os acessrios utilizados pelo povo de santo, os fios de contas, que

    nas religies afro-brasileiras tem fora simblica durante a iniciao religiosa, eles

    guardam relao maior com a Africa, embora guarde tambm a memria da relao

    entre as demais matrizes tnicas brasileiras, dependendo da casa de santo obser-

    vada.

    Os colares em fios de contas ou guias so corforme Bastide (2005) impor-

    tantes para o elo de vnculo entre o iniciado e a entidade. A relao individual e

    representado na maneira que disposta durante os rituais.

    Para a compreeno da gramtica dos colares da religio afro-brasileiras,

    utilizou-se a descrio classificativa das contas em candombl proposto por Raul

    Lody (2001) em comparao com o que se encontrou nas performances de Ogum

    em Umbanda na cidade de Joo Pessoa.

    O autor, que museolgo da fundao Gilberto Freyre e da Fundao

    Pierre Verger classifica a disposio dos fios de contas por tres enfoques: de acordo

    com o cdigo cromtico, com a morfologia, ou seja, o material fisico de que compe,

    e com a taxionomia, a maneira e a quantidade disposta no corpo do iniciado.

  • !69

    Cromaticamente, a tradio da representao de Ogum no Candombl

    o azul, morfologicamente pela pedra africana Segui, de forte cor azul marinho e tax-

    ionomicamente, se estabelece de diferentes modos dependendo do tempo e da

    posio do iniciado na hierarquia da casa.

    Comparando com o que foi observado no Centro de Umbanda Nossa

    Senhora do Carmo, as cores predominantes em festas para Ogum so o verde e o

    vermelho. Poucos filhos de santo usam azul em festa de Ogum, ainda que esteja

    presente nas paredes da casa referncias em cor azul marinho.

    Veja a fotografia dos fios de contas (fig. 31) durante a performance e ob-

    serve que a cor azul quase ausente. Portanto, morfologicamente, a pedra de

    Segui, um material raro e importado da Africa de cor azul substituido por outras

    pedras, principalmente, mianga de cor vermelha e verde, de menor valor financeiro,

    mas que cumpre simblicamente a funo cromtica e morfolgica de representar o

    santo e a posio hierrquica do iniciado na comunidade do terreiro.

    Segundo Dona Marina, a conta de cor azul claro, presente na figura 31

    representa Yemanj, e os outros fios representam Xang e Ogum.

    !

  • !70

    !!

    " Fig. 31: Fios de contas no pescoo de Dona Marina

    Fonte: Foto do autor da pesquisa !!A cor vermelha inserida nos rituais de Umbanda, dependendo da lin-

    hagem tnica de influncia na casa, pode ter origem da relao entre Ogum e So

    Jorge, pois o vermelho a cor caracterstica de So Jorge, presente na sua ban-

    deira alm de no encontrar relao do vermelho na descrio simblica de Verger

    na frica relativo a Ogum, nem na tradio de candombl Nag, Jeje e Ketu da

    Bahia, que predomina o azul marinho e o verde(fig. 32)

    !

  • !71

    !.

    " Fig : 32 Bandeira tradicional de So Jorge

    Fonte: Desenho de Roncalli Dantas !Outra caracterstica importante da introduo da simbologia europia no

    ritual de Ogum so as formas da espada e do capacete.

    !

    " Fig. 33: Espada de Ogum na Africa Fonte: Foto de Pierre Verger (2002) !

    Na performance de Ogum em continente Africano, a espada tem