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São Luiz do Paraitinga: sobre o imaginário fundacional e suas projeções São Luiz do Paraitinga: sobre el imaginario fundacional y sus proyecciones Renata Rendelucci Allucci 1 , Posurb-PUC Campinas, [email protected] Maria Cristina da Silva Schicchi 2 , Posurb-PUC Campinas, [email protected] 1 Renata Rendelucci Allucci, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Mestre em História pela PUC/SP. Especialista em Bens Culturais: Cultura, Economia e Gestão pela FGV/SP. Graduada em Desenho Industrial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Desenvolve trabalhos de pesquisa nas áreas de patrimônio cultural, festas populares, cadeia produtiva da cultura e urbanismo. Integrante do Grupo de Pesquisa Patrimônio, Políticas de Preservação e Gestão Territorial. Bolsista CAPES. 2 Maria Cristina da Silva Schicchi Professora titular e pesquisadora do Programa de Pós- Graduação em Urbanismo (Mestrado e Doutorado) e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Pós- doutora junto ao Programa Oficial de Postgrado de la Universidad de Sevilla (jan/jul 2010). Coordenadora de projetos junto à CAPES, CNPq e FAPESP. É bolsista de produtividade em pesquisa CNPq Nível 2. É líder do grupo de pesquisa “Patrimônio, políticas de preservação e gestão territorial”. É editora-chefe da Revista Oculum Ensaios - PUC-Campinas (desde 2014). Secretária Executiva da ANPARQ - Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (gestão 2015- 2016)

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SãoLuizdoParaitinga:sobreoimagináriofundacionalesuasprojeçõesSãoLuizdoParaitinga:sobreelimaginariofundacionalysusproyecciones

RenataRendelucciAllucci1,Posurb-PUCCampinas,[email protected]

MariaCristinadaSilvaSchicchi2,Posurb-PUCCampinas,[email protected]

1RenataRendelucciAllucci,DoutorandadoProgramadePós-GraduaçãoemUrbanismodaPontifíciaUniversidadeCatólicadeCampinas.MestreemHistóriapelaPUC/SP.EspecialistaemBensCulturais:Cultura,EconomiaeGestãopelaFGV/SP.GraduadaemDesenhoIndustrialpelaUniversidadePresbiterianaMackenzie.Desenvolvetrabalhosdepesquisanasáreasde patrimônio cultural, festas populares, cadeia produtiva da cultura e urbanismo. Integrante do Grupo de PesquisaPatrimônio,PolíticasdePreservaçãoeGestãoTerritorial.BolsistaCAPES.2Maria Cristina da Silva Schicchi Professora titular e pesquisadora do Programa de Pós- Graduação em Urbanismo(MestradoeDoutorado)edaFaculdadedeArquiteturaeUrbanismodaPontifíciaUniversidadeCatólicadeCampinas.Pós-doutorajuntoaoProgramaOficialdePostgradodelaUniversidaddeSevilla(jan/jul2010).CoordenadoradeprojetosjuntoàCAPES,CNPqeFAPESP.ÉbolsistadeprodutividadeempesquisaCNPqNível2.Élíderdogrupodepesquisa“Patrimônio,políticas de preservação e gestão territorial”. É editora-chefe da RevistaOculum Ensaios - PUC-Campinas (desde 2014).SecretáriaExecutivadaANPARQ-AssociaçãoNacionaldePesquisaePós-GraduaçãoemArquiteturaeUrbanismo(gestão2015-2016)

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DESENVOLVIMENTO,CRISEERESISTÊNCIA:QUAISOSCAMINHOSDOPLANEJAMENTOURBANOEREGIONAL? 2

RESUMO

Apartirdacompreensãodashistóriasdafundação,daurbanizaçãoedospatrimôniosculturaisdacidade paulista de São Luiz do Paraitinga, percebemos como o encadeamento de certosacontecimentos vão formando um arcabouço que, posteriormente, será apropriado compropósitosdiversospelosestudosacadêmicos,pelaspolíticaspúblicaseporalgunsgrupossociaisconstituídospormoradores.Alicerçadospelatradição,opatrimônioarquitetônicoeotraçadourbanodessacidadeencontramnahistória–notempoenoespaço–delimitadoresqueasseguramsuapermanênciaevalidamsuacontinuidade, legitimados não apenas pelo instrumento do tombamento como também pelosdiscursosdeseusgovernanteseporpartedeseus10.000habitantes.Um fato incomum, a enchente ocorrida em 2010, trouxe à tona reflexões sobre a utilização damemóriaparareconstruirfísicaemoralmenteacidadeesobrecomoessareconstruçãopretendeumanteraidentidadeconquistada,muitasvezescomoformaderesistência.Aintençãoreveladadedeterotemponolugarsuscitaquestionamentossobreosusosdopassado;para isso,novamente, são invocadasa tradiçãoeamemória,emumcircuitoque,emprocesso,auxiliaeservecomoestratégiaparaafirmaçãodaassociaçãoentretempo,tradiçãoehistória.Paracompreenderoqueaquisepropõe,foiadotadoométodohistórico-analítico,comcoletadeinformações em fontes primárias (processos de tombamento, documentos do município) elevantamentodecampofotográfico.Outrasinformaçõesforampesquisadasnabibliografiasobreacidadeeemestudostécnicosanteriores,alémdaleituradeautoresquetratamdostemasaquipropostos.

PalavrasChave:SãoLuizdoParaitinga.Históriaurbana.Gestãourbana.

RESUMEN

A partir de la comprensión de las historias de la fundación, la urbanización y los patrimoniosculturalesdelaciudadpaulistadeSãoLuizdoParaitinga,percibimoscómoelencadenamientodeciertosacontecimientosva formandounmarcoque,posteriormente, seráutilizadocondiversospropósitos por los estudios académicos, por las políticas públicas y por algunos grupos socialesconstituidosporsushabitantes.Arraigados en la tradición, el patrimonio arquitectónico y el trazado urbano de esta ciudadencuentran en la historia, en el tiempo y en el espacio, delimitadores que aseguran supermanencia y validan su continuidad, legitimados no solo por el instrumento de inventariado,sinotambiénporlosdiscursosdesusgobernantesyporpartedesus10.000habitantes.partir de un hecho inusual, la inundación que tuvo lugar en 2010, emergieron reflexiones sobre lautilización de la memoria para reconstruir física y moralmente la ciudad, y sobre cómo esareconstrucciónpretendiómantenerlaidentidadconquistada,muchasvecescomoformaderesistencia.La intención revelada de detener el tiempo en el lugar suscita cuestionamientos sobre los usos delpasado;paraeso,denuevo,soninvocadaslatradiciónylamemoria,enuncircuitoque,enelproceso,auxiliaysirvecomoestrategiaparalaafirmacióndelaasociaciónentretiempo,tradiciónehistoria.Paracomprenderloqueaquísepropone,fueadoptadoelmétodoanalíticohistórico,conrecogidade información en fuentes primarias (procesos de inventariado, documentos del municipio) ylevantamiento de campo fotográfico. Otra parte de la información fue encontrada en labibliografíasobrelaciudadyenestudiostécnicosanteriores,ademásdelalecturadeautoresquetratanlostemasaquípresentados.

PalabrasClave:SãoLuizdoParaitinga.Historiaurbana.Gestiónurbana.

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INTRODUÇÃOMnemósine,mãedasmusase,portanto,detodacriação-namitologiagrega,bempersonificavaa“funçãodamemória,sagrada”,decompensarasameaçasdeLethé,aságuasdoesquecimentoqueamorteexigeatravessar.3

Em2010, as águas invadiram a cidade. Levaram objetos, documentos, roupas, móveis, casasinteiras.Prenunciaramofimdaquelelugar.Aoarrastaremtudoqueestavaaoseualcance,derampistasdequenadasobraria.MasesserionãoeraLethé.EraParahytinga,o“riodeáguasclaras”,esuas águas, no lugar do esquecimento, revigoraram as lembranças, aguçaram os sentidos efortaleceramamemória.Amortenãoatravessouorio.

AFUNDAÇÃODESÃOLUIZDOPARAITINGA

Acidade,SãoLuizdoParaitinga, localiza-senaporçãopaulistadoValedoParaíba,a180kmdacapital. A história de sua fundação, em 1769, está ligada à política de urbanização de D. LuísAntôniodeSouzaBotelhoMourão,oMorgadodeMateus,nomeadoparagovernadorecapitão-general da capitania de São Paulo, por indicação do Marquês de Pombal, ministro do rei dePortugalD.JoséI.

AcapitaniadeSãoPaulo,tendosidodesmembradadasMinasGeraisem1748,ficousubordinadaàadministraçãodaCapitaniadoRiodeJaneiro.Peladificuldadedesegovernarasduascapitanias,SãoPauloficoubastanteabandonada.OMorgadorecebeu,então,amissãoderestaurá-la.

TorrãoFilho(2005,p.146)elencaosdiversosinteressesqueorientaramessarestauração,entreosquaisdestaca:

[...]amudançadoeixopolíticoparaosudestedacolônia,comatransferênciada capital para o Rio de Janeiro em 1763, o desejo da Coroa em policiar ocontrabando das minas, os interesses dos mercadores paulistas em tergovernopróximo,queatentasseaosseusinteresseseasquestõesdefronteiracom os castelhanos no sul, que por mais de uma vez quase chegaram àdeclaraçãodeguerraentreosdois reinos ibéricos. Enãodevemosdescartartambém o desejo do governo pombalino de varrer de seus territórios edomínios a presença dos jesuítas, tão clara ainda em São Paulo do Campomesmoanosdepoisdesuaexpulsão.

D.LuísAntoniodesembarcouemterrasbrasileirasem1ºdejulhode1765enelasficouaté1775.NacapitaniadeSãoPaulo,aformaçãodepovoaçõeseafixaçãodepopulaçõesforamalgumasdasprimeiraseprincipaispreocupaçõesdoMorgadodeMateus,queseriam,paraele,promotorasdeseu desenvolvimento econômico. Mas as questões religiosas e sociais também precisavam serresolvidas; ele as aponta como causadoras, em grande medida, da decadência em que seencontravaacapitania(TorrãoFilho,2005,p.153).

3DUARTE, Luiz Fernando Dias.Memória e reflexividade na cultura ocidental. In: ABREU, Regina, CHAGAS,Mário (orgs.)Memóriaepatrimônio.RiodeJaneiro:Lamparina,2009,p.305.

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AfreguesiadeSãoLuizdoParaitingafoicriadanoTermodaViladeTaubaté:"a2demaiode1769ogovernador-geralD.LuísAntôniodeSousaBotelhoeMourãodefereumapetiçãoparaquesejafundadaumapovoaçãoentreTaubatéeUbatuba,dandoonomedeSãoLuíseSantoAntôniodoParaitinga,eàigrejaainvocaçãodeN.S.dosPrazeres."(Pinto,1903,apudPetrone,1959,p.77)4.Ainda nesse ano, no dia 8 demaio, o sargento-morManuel Antônio de Carvalho foi nomeadofundadoregovernadordanovapovoação.

MapaSãoLuizdoParaitinga.InstituloGeográficoeGeológico.1939.DisponívelemformatodigitalnositedoArquivoPúblicodoEstadodeSãoPaulo.

Em9de janeirode1773,SãoLuizdoParaitingafoielevadaàcondiçãodevila,emcerimônianaqual se assentou o pelourinho na praça projetada para os edifícios públicos – Igreja, Casa deCâmeraeCadeia–que seriamconstruídosposteriormente.Em30deabrilde1857, recebeuosforosdecidade.

OVALEDOPARAÍBA

ÉnotóriaapresençaeaimportânciadosriosnoValedoParaíba,sendoqueeste,quedánomeàregião,cortaosestadosdoRiodeJaneiro,deMinasGeraisedeSãoPaulo;assimcomotambémasserrassãomarcantesemsuapaisagem.Tirapeli(2014,p.19)descreve:4PINTO,AdolfoAugusto-HistóriadaViaçãoPública,deSãoPaulo,(Brasil)-SãoPaulo,1903,p.504.

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ORioParaíba(emtupi,riodaságuasruins)serpenteiaentreaSerradoMar,separando-a da Serra da Mantiqueira (mãe das águas ou de onde vem achuva).Depois,percorreadivisadeMinasGeraisedeságuanafaixalitorâneadoestadodoRiodeJaneiro.NoAltoValedoParaíbacorremosriosParaibuna(riodas águasescuras) eParaitinga (riodas águas claras), osquais cortamaSerradoMareformamoParaíbadoSul[...]Doisriosquecorrememdireçõesdiferentes, ao longo dos quais nasceram as cidades dos ciclos do ouro e docafé. No Médio Vale propriamente dito, onde as serras do Mar e daMantiqueiraseabremeorioserpenteianafaixadeterraplana,háformaçõesemmeia-laranja,suaves,outroracobertasporflorestastropicais.

OscaminhosnoValedoParaíba,porrioeporterra,serviram,emseusegmentopaulista,desdemeadosdoséculoXVII,“paracaminhodosbandeiranteseentradistasembuscadogentioparaserescravizado, e depois, das jazidas de ouro e das pedras em Minas Gerais, e mesmo por todosertão”(Telles,2006,p.13).IssopropiciouafundaçãodearraiaisevilasduranteosséculosXVIIeXVIII, como os núcleos paulistas de “Guaratinguetá (1654), Taubaté (1670), Pindamonhangaba(finaldoXVII),atéossetecentistas–SãoJosédosCampos(1767),Lorena(1788)etc.,queforamimplantadosaolongodessecaminhoeàmargemdireitadorioParaíba”(Telles,2006,p.45).

Comodeclíniodamineração,entreofinaldoséculoXVIIIeiníciodoXIX,começaaseestabelecerocultivodacana-de-açúcar,quechegaaSãoPauloporincentivodoMorgadodeMateus,emumainiciativaquefaziapartedeumprojeto“destinadoaalterarafisionomiapobreedespovoadadeSão Paulo” (Camargo, 2004, p. 106). Dos núcleos urbanos do Vale do Paraíba, o de maiorexpressãonaagriculturacanavieirafoiGuaratinguetá.

OesgotamentodasminastambémprovocouatransferênciadealgunsmineradoresparaoValedoParaíba, onde, por suas condições financeiras, puderam adquirir terras. Em sua maioria,começaramaorganizarfazendasdecafé,comamontagemdeestruturaparaocultivoecompradeescravos.Constituírampoderososclãs rurais, sendoconhecidoscomoBarõesdoCafé (Telles,2006, p.43). Em todo o Vale do Paraíba há bens tombados5, quase todos ligados ao cicloeconômicodocafénaregião.

Marins (2004,p. 133) assimdefinea alteraçãonosmodosde vidanoValedoParaíba causadospelaeconomiadocafé

Ariquezaproporcionadapelocultivodocafénasterraspaulistasacabouporalterar substancialmentemuitos costumes e práticas culturais ali existentes.Da arquitetura aos objetos domésticos, dos modos de vestir aos de falar,pode-se dizer que o século XIX foi um período de verdadeira revolução, noqual traços comportamentais vindos do passado indígena, do períodosertanistaedostemposáureosdoaçúcarforamrapidamente justapostosoumestiçados à intensa europeização permitida pelas imensas fortunasexportadoras,pelarapidezdostrense,especialmente,pelaentradamaciçadedezenasdeetniasdeimigrantes.

Masnãotardouparaqueocorresseoesgotamentodosolo,causadopelaerosão,emfunçãodosistema adotado na plantação cafeeira. A isso juntou-se a libertação dos escravos, em 1888,responsáveis pela produção do café; a Proclamação da República, em 1889, e o denominado

53AlgunsbenstombadosdoValedoParaíba:CasadaFazendaResgate(Bananal);CasadeRodriguesAlves(Guaratinguetá);CasadaFazendaEngenhoD’Água(Ilhabela);FazendadaConceição(Paraibuna);CasadaFazendaPonteAlta(RedençãodaSerra);CasadaFazendadoPaud’Alho(SãoJosédoBarreiro);SobradoAltinoArantes(SãoSebastião);CapeladeNossaSenhoradoPilareChácaradoVisconde(Taubaté)eSobradodoPorto(Ubatuba).Disponívelemhttps://casadopatrimoniovp.wordpress.com/bens-tombados/.Acessoemnovembro/2016

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“encilhamento”6,em1890,queatingiuossetoreseconômicosdeproduçãodopaís,oquefezcomque os fazendeiros, em sua maioria endividados, ficassem à mercê dos bancos e dos agiotas(Telles,2006).

Essa situação atingiu a maior parte das cidades do Vale do Paraíba, incluindo São Luiz doParaitinga,mas aquelas tiveramdestino diferente como passar do tempo e das circunstâncias,comodepreende-sedadescriçãodeVieira(2009,p.98e99)

Se, por um lado, o domínio político da elite cafeeira dificultava aimplementação de política que visasse ao processo de industrialização, poroutrolado,aprópriarendageradapeladinâmicaeconômicaregionalfoicapazdepromoverocrescimentodasatividadesurbanasnossetoressecundárioseterciáriosduranteociclodocafé.NoValedoParaíbapaulista,aindústriaveioem decorrência das dificuldades do setor agrícola. Durante o século XIX, aregiãoeraumdosprincipaispólosdaeconomiacafeeiradoPaís;entretanto,noiníciodoséculoXX,ascidadespareciamcaminharparaoostracismo[...]

EssanovaeconomianoValedoParaíbatambémestavaatreladaàspossibilidadesdetransporte.Suascidades,primeiramenteinterligadaspelaEstradadeFerroD.PedroIIe,apartirde1928,pelaligaçãorodoviáriaRio-SãoPaulo–queviriaasetornar,em1951,aViaDutra–configuraramumterritóriomarcadopelaindustrialização.

AURBANIZAÇÃOEOPATRIMÔNIOARQUITETÔNICODESÃOLUIZDOPARAITINGA

Apartirdosanos1960,principalmentepelo interessee influênciadeLuísSaia7,acidadedeSãoLuiz do Paraitinga começou a ter seu patrimônio pesquisado. Em 1963, ela foi mencionada noensaioQuadroGeraldosMonumentosPaulistas,deautoriadeSaia,contidoemseulivroMoradaPaulista,quandoelecita,comoexemplodasocupações instituídasnonortedacapitaniadeSãoPaulopeloMorgadodeMateus,“asvilasdeCunha,SãoLuizdoParaitingaeLorena”(2005[1963],p.44).

Em1973,LuísSaiapublicouoartigoEvoluçãodeSãoLuísdoParaitinga,nosanaisdoVIISimpósioNacional dos Professores Universitários de História, que se realizou em Belo Horizonte, emsetembro daquele ano. Nele, o autor esclarece pontos relevantes para a discussão que aqui sepretende:

Nopresentecaso,devilasfundadasporiniciativadogovernoesegundoumaidéiapreestabelecidadecolonização-eesteéocasoespecíficodoMorgadodeMateus-aracionalidadequetranspiranotextodotermodeereçãodeSão

6NosprimeirosanosapósaproclamaçãodaRepública,DeodorodaFonsecasedeparavacomumBrasilpossuidordeumaestruturaeconômicaarcaica,baseadanocafé;eumretrógradosistemafinanceiro.Paramudartalsituação,oMinistrodaFazenda,RuiBarbosa,baseadonosistemabancárionorte-americano,estabeleceuumapolíticamonetáriafocadanalivreemissãodecréditosmonetários.Destaforma,paraestimularaindustrializaçãoeodesenvolvimentodenovosnegócios,osbancospassariamaliberarempréstimoslivrementeàspessoas,semmesmosaberdesuasreaiscondiçõesdepagamento.Estapolíticaficouconhecidacomoencilhamento,expressãoextraídadovocabulárioutilizadoemhipódromos,equedesignavaoclimadeconfusão,desordemefebriljogatinaquereinavanoslocaisdascorridasondeosjóqueisencilhavamseuscavalos.(RevistaIPEA.2011.Ano8.Edição65).7LuísSaiafoidirigentedoInstitutodoPatrimônioHistóricoeArtísticoNacional (Iphan)emsuaregionaldeSãoPaulode1938 (quandoesteainda sedenominavaSphan) até1975, anode seu falecimento. Saia atuou tambémnoConselhodeDefesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat), entre 1969 e1975.

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Luís, representaria um reflexo do iluminismo europeu que desembocaria narevolução francesa e que povoaria a cabeça de um estudioso como LuísAntonio de Souza BotelhoMourão, oMorgado deMateus. Antes do séculoXVIII, salvo uma ou outra iniciativa do governo metropolitano, e emcontraposiçãoaoqueacontecianaAméricaEspanhola,ondeacolonizaçãoeraorientadapeloespíritoorganizadodasLeisdasÍndias,aformaçãodascidadesbrasileiras eramatrizadapelo empirismoda geografia, do sítio escolhido, datopografiaedorendimentoimediatodainstalação.Ovírusinstiladopeloracionalismo do Morgado de Mateus perseguiu a vila de São Luís doParaitinga, onde se estabelece uma luta surda entre o que os dirigenteschamam de "elegância" da praça, das ruas e da cidade, e o interesseimediatista dos moradores, sempre dispostos a se aproveitar dascircunstânciasparareceberumquinhãomaisrefartodasituaçãourbana(Saia,1973,p.432).

PesquisasdesenvolvidasporSaiaemparceriacomohistoriadorJaelsonBitranTrindade,entreosanos de 1972 e 1974, resultaram na publicação São Luís do Paraitinga: levantamento métrico,arquitetônicoefotográficoeestudosdeformaçãodeumacidadetradicionalpaulista,editadopeloCondephaatem1977(posteriormenteaofalecimentodeSaia).

Em seus estudos, os autores vincularam amalha urbana de São Luiz do Paraitinga ao conjuntoarquitetônicoali instaladoaum“fenômenodemaioramplitude”,queteriaocorridonasegundametade do século XVIII: “o projeto ‘pombalino’, ‘ilustrado’, de fundar povoações ordenadas,regulares,noReinoenasColôniase,maisdiretamente,aumplanodeestruturaçãoterritorialdaCapitaniadeSãoPaulo[...]”(Iphan,2010a,p.14).

OprojetourbanizadornoBrasildoséculoXVIIIincluiuafundaçãodevilasecidadesearefundaçãodealdeamentosmissionários,sendotodos integradosemumaredeurbana.ParaTeixeira (2012,p.59)encontram-se,nessesdoiscasos,

[...] as mesmas preocupações de regularidade e de ordenamento e oentendimentodacidadecomoelementocivilizacionalquesedeviaexpressarpor meio de sua boa organização espacial. A racionalidade iluminista vaitraduzir-se em traçados urbanos rigorosamente geométricos. A regularidadepassou a estar presente não apenas no traçado urbano, mas também napadronizaçãodasestruturasdequarteirõesedeloteamento,noalinhamentoderuasedefachadasenaadoçãodeprogramasarquitetônicosuniformesaosquaistodasasconstruçõesdeviamobedecer.

Mesmo que o traçado urbano seja do tempo do Morgado, as edificações foram realizadasposteriormente, como indicaram os mesmos Saia e Trindade (1977, p.22 e 24): “O projeto da‘cidade iluminista’ se consolidou, portanto, por volta da década de 1840”. Verificando adocumentaçãodaépoca,ospesquisadoresencontraramindicaçõesdeque“asquestõesrelativasà ‘formosura’, simetria e regularidade, postas desde o início do povoado, prevaleceram naconfiguração do cenário urbano local” (Saia, Trindade, 1977), tanto em relação à praça centralquantonoalinhamentodasedificações.

Sobreaépocadasconstruções,NestorGoulartReisesclarece(Iphan,2010b,Ata,fl.147,p.82):

Quando o café prosperou, na segunda metade do século XIX, é que ossobradosdapraçaprincipalforamconstruídosjácomtraçosneoclássicos.Eoqueéimpressionante,nofinaldoséculoXIX,em1880,1890,faziamsobradoscomalinhamentoquehaviamsidoestabelecidosaotempodoMorgado,oquemostra a força do padrão urbanístico, das normas que foram estabelecidasnaquelaépoca.

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Reis cita a economia cafeeira, responsável por grande parte do desenvolvimento econômico esocial na região do Vale do Paraíba, cujo auge se deu por volta dos anos 1840. Sem estarcompletamentealienadadesseprocesso,SãoLuizdoParaitingaoviveudeformamaisdistanciada;talvez por não ter alcançadoomesmoêxito das cidades da região comesse tipo de cultivo, osefeitosdasmudançasdaeconomiacafeeiraetudoqueelarepresentounãoforampercebidoscomtantaforça.Suaarquitetura,emboracomalgunsrepresentantesdemaiordestaque,não

apresenta a suntuosidade de edificações encontradas em outras cidades, em sua maioriapertencentesaosbarõesdocafé,queasconstruíamnoslocaismaissignificativos–geralmentenapraçaprincipal.OssobradosdeSãoLuizdoParaitingaapresentavam,issosim,uniformidade,pois,comojádito,seguiamoalinhamentoestabelecidonaépocadoMorgadodeMateus.

Tambémadificuldadedeacessoàcidade,sualocalizaçãoemencostadeserraseaspossibilidadesdeenchentesaliadasàsprecáriasinfraestruturasurbanaseafaltadeinvestimentos,tantopúblicoquantoprivados,acrescidasdaausênciadesualigaçãocomoutrosnúcleosurbanos,contribuíramparaalentidãodeseudesenvolvimento.

Oacessosemprefoiumdosimpeditivosparaseucrescimento–nãosópelafaltadaferrovia,mastambémporviasterrestres(nosanosde1940,opercursodeTaubatéaSãoLuizdoParaitinga,emseus45km,demoravaporvoltade4horas).ArodoviaOswaldoCruz,atual ligaçãoTaubaté-SãoLuizdoParaitinga-Ubatubasófoicompletamenteinauguradaem1976.

Isto concorreu para que São Luiz do Paraitinga ficasse à margem do crescimento econômico,urbanístico e social que se verificou no eixo doVale do Paraíba. Apenas a partir demeados dadécada de 1980, sua economia será retomada, mas agora na perspectiva de desenvolvimentobaseado no turismo histórico-cultural e de natureza, para o qual seu patrimônio cultural seráacionado,principalmentecoma“descoberta”edivulgaçãodesuasfestaspopulares.

OSTOMBAMENTOS:CONVERGÊNCIAS

Auniãoeoentrelaçamentodashistóriassobreafundaçãoeaurbanizaçãodacidadealicerçaramasjustificativasparaqueseupatrimônioarquitetônicofossetombadopelosórgãosdepreservaçãoestadual e federal, em sucessivos processos que se iniciaram em 1975.Inicialmente foramtombadas algumas edificações isoladas; posteriormente, em 1982, o Condephaat tombou seuCentroHistórico.

Estetombamentosedeuapartirdaabstraçãoplanimétricaqueconsolidouageometrizaçãoearacionalidadedotraçado, jádescritosanteriormente.Foramestesoselementosquedefiniramotecidoconsideradohistórico,ficandodeforaoutroselementosdivergentes.

EntreosmotivosquejustificavamaconservaçãoeavalorizaçãodacidadeperanteoCondephaateoIphan,otextorecuperadodosestudosdeSaiaeTrindade(1977)apresentava:acidaderegular;oespaçoondesedeua implantaçãodoplanoprévioparafundaronúcleo;osajustesefetuadosentre 1769 e 1850; o legado arquitetônico constituído ao longo do tempo; a disposição dasedificaçõesqueprescreviaa integraçãodaarquitetura,pormeiodauniformidadeedasimetria,emharmoniacomotraçadoracionaldacidade.

Esselegadoarquitetônicofoi,emgrandeparte,construídocomtécnicastradicionais,comoataipadepilãoeopau-a-pique.

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AENCHENTE:DIVERGÊNCIAS

Nosprimeirosdiasdejaneirode2010,umaconfluênciadefatoresfezorioParaitingatransbordar14 metros acima de seu leito, provocando a maior enchente já sofrida pela cidade. Muitosedifícios– a maior parte deles localizados no Centro Histórico – ficaram submersos e nãoresistiram:ruíramparcialoutotalmente.

Entreosedifíciosqueruíramestavamduasigrejas,aMatrizeaCapeladasMercês;oantigoGrupoEscolar(cujoprojetodeadaptaçãohaviasidorealizadoporEuclidesdaCunha);inúmerossobradose casas térreas, além de estabelecimentos comerciais como padarias, farmácias, restaurantes,bancos,cartório.Tambémforamperdidosdocumentação,móveiseobjetosoficiaisepessoaisdosmoradores.

Porém, o processo de tombamento do Centro Histórico pelo Iphan estava em curso háaproximadamente3anos.Comaenchente,oInstitutodesenvolveuaçõesemergenciaisparadarsuporteàsequipeslocaissobreprocedimentosparaminimizarasperdaseiniciarumprocessoderecuperação.Mas faltava ao Iphan, para que pudesse desenvolver essas atividades demaneiraintegral,orespaldolegalparaatuarnosalvamentodosremanescenteseparadirigirasaçõesnacidade:otombamento.

Assim, no começo de fevereiro de 2010, foi constituído um processo para o tombamentoprovisório,acatadopeloDepartamentodePatrimônioMaterialeFiscalização(Depam),permitindoao Iphan tomar a frente em algumas resoluções sobre a reconstrução de parte dos edifíciostombados(Iphan,2010b).

Paradarbaseaostombamentosesubsidiarasalvaguardadopatrimônio,foipreparadooDossiêSãoLuizdoParaitinga,estudocoordenadoporJaelsonTrindade,combaseemseusestudoscomLuísSaia.ODossiê“avaliaosignificadohistóricodoplanourbano,astransformaçõesecaráterdasuamorfologia,comotambémdaconfiguraçãotipológicadasconstruçõesedosespaçosabertos,e a partir destes, da pertinência do tombamento e da regulamentação da sua área depreservação”(Iphan,2010,p.11).

Em 2010, seu CentroHistórico foi inscrito no Livro do TomboHistórico e em 2012 a cidade foiinscrita no Livro do TomboArqueológico, Etnográfico e Paisagístico como “ConjuntoHistórico ePaisagísticodeSãoLuizdoParaitinga”,ambasinscriçõesrealizadaspeloIphan.

Porém, efetivamente, da recuperação fizeram parte várias estratégias urbanísticas, nãounicamentecomoobjetivoderecuperaçãodopatrimônioedificado.Umadestasestratégias,queimpactaram a área objeto de tombamento pelo Iphan, foi a de provimento de novasmoradiasparaapopulaçãodesalojadapelaenchente.Oplanodeprovimentohabitacional já vinha sendoelaboradoantesdaenchente, tendoapenas seaceleradocomela.Aurgêncianasoperaçõesderesgate e de recuperação das condições de vida da cidade levou à definição de projetos deimplantaçãodeunidadeshabitacionaispróximasàáreaatingidapelaenchenteenaprópriaáreaatingida.Seapropostafoiumasinalizaçãonosentidodeincluirapopulaçãoafetadae,emmuitoscasos,semrecursosparaobterumanovahabitação,poroutro,nãosedefiniramparâmetrosdeusoeocupaçãoemharmoniacomaslocalizaçõesepreexistênciasurbanas,sendoasintervençõesguiadas pelosmesmos critérios utilizados em qualquer empreendimento habitacional social, ouseja,oscustos/benefícios.

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CentrohistóricodeSãoLuizdoParaitinganaenchente.2010.ArquivodoIphan/SP.

ConjuntoHabitacionalCasinhaBranca.ConstruçãoCDHU.SãoLuizdoParaitinga.2013.FotoRenataR.Allucci.

Houve neste processo o trabalho conjunto entre os agentes públicos e da população, porém, oresultado foi uma divergência marcante da paisagem, com casas perfiladas em áreas muito

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próximasdodenominado“centrohistórico”.

Damesmaforma,noPlanoDiretorParticipativo,quejávinhasendoelaboradodesde2006,muitasdasZonasPrioritariamenteResidenciaisdefinidaseramáreasdeocupaçãoderiscoatingidaspelaenchente, irregulares em relação às normas de conservação ambiental, e que necessitavam deintervençãoparasuaregularização.

Destaforma,apósaenchente,aadministraçãomunicipal,apartirdacriaçãodeumGrupogestor,passaadelimitarváriasáreascomoprioritáriaspararegularizaçãofundiária,asquais,noentanto,coincidemcomasprópriasáreasatingidaseacabamporsetransformaremuminstrumentolegalparadeterminar/restringirondesequeriaqueapopulaçãopermanecesseouparaondedeveriaserdeslocada.Éesteobjetivooqueexplicaanecessidadedeestabelecercategoriasdentrodestamesmazona,taiscomoasáreasderemoção(ZEIS-AMBI),asderegularizaçãoeconsolidaçãodoexistente (ZEIS-AMB II) e as áreas onde, além da regularização, seriam permitidas novasconstruções(ZEIS-AMBIII)68.

Dequalquermodo,aexpansãourbana,quejásetornaravisívelnoentorno(MorrodoCruzeiroeoutras zonas periféricas), continuava a interferir na visualidade do perímetro histórico, um dospontosdestacadosnodossiêdetombamentocomorequisitosdevalorizaçãodapaisagem.

Ouseja,ozoneamentopropostoreiterouasegregaçãourbanaexistenteenovamenteoterritóriodo centro histórico delimitado no dossiê, tornou-se espaço prioritário de recuperação, emdetrimentodeumavisãodeplanejamentointegraldacidade.

A EVOCAÇÃO DA TRADIÇÃO E DO PASSADO: A MEMÓRIA.ESTRATÉGIAETÁTICAPARAOPRESENTE

Em São Luiz do Paraitinga, a tradição é evocada para validar e legitimar seu patrimônioarquitetônicotombado.Comatradição,busca-seo tempono lugar.Oencontrocomopassado,nessacidade,émediadopelopatrimônioconservado,pelomododevidatranscorridoemritmostemporais menos intensos, pelas festas, pela religiosidade. O lugar propicia uma percepçãodiferentedotempo,expressanapossibilidadedesuafruição.

NareflexãodeAgudoTorrico(2012,p.46,traduçãolivre)

O valor da tradição recai precisamente em sua capacidade de evocar umtempoatemporal,denostrasladara tempos imaginariamentedetidose,por

8AsZEIS-AMBsãodefinidasemtrêscategorias(Art.70-A,inseridonarevisão):

- ZEIS-AMB I – Áreas prioritárias à remoção de famílias: áreas de alta vulnerabilidade ambiental e social, definidas pormapeamentoderiscoscitadonoPlanoesemdeterminantesanãoserquedeveriaserproduzidoporórgãosespecializadosem geologia e geotecnia. As famílias dessas ZEIS-AMB I terão prioridade nos programas e projetos habitacionais doMunicípio.

–ZEIS-AMB II–Áreasprioritáriasà regularização fundiária,congelamentodeocupaçõesexistenteseproibiçãodenovasconstruções:apontadacomoocupaçãoconsolidadaemáreadepreservaçãoambiental,cujaconsolidaçãoéjustificadaporexistênciadeinfra-estruturaurbanaouequipamentospúblicos,parapassaremporprocessoderegularizaçãofundiária.Sãoregularizadasconstruçõesconsolidadasatéaaprovaçãodestarevisão,impedindonovasocupações.

–ZEIS-AMBIII–Áreasprioritáriasàregularizaçãofundiáriacompossibilidadedenovasconstruções,desdequeatendidosos critérios do Plano Diretor: define áreas de preservação ambiental e de risco, que tem ocupação justificada porexistência de infra-estrutura e de equipamentos públicos. Nestas áreas são permitidas novas ocupações cumprindoformalidadeslegaiseíndicesurbanísticosdeterminadosnoPlano,comacondiçãodaexecuçãodeobrasdecontençãoderisco.

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isso,intrinsicamentesentidoscomopróprios,identificadoresdascomunidadesque os mantem, em contraposição às realidades cotidianas. Realidadescotidianas que também podem ser vividas e sentidas como modos de vidatradicionais.

AconstruçãomemorialísticadeSãoLuizdoParaitingaremontaàfundaçãodacidadeesuarelaçãocomoMorgadodeMateuseestápresentenãoapenascomoargumentonosprocessosdeseustombamentos – onde é reforçada –, mas também na elaboração de seus moradores, em umprocessosimilardefinidoporCarrión(2010,p.132-133,traduçãolivre):

Os imaginários fundacionais se caracterizam pelo peso que tem desde aorigemdacidade;sãoprotagonistasdeseudesenvolvimentoatéaatualidade,obviamente com as mudanças em cada conjuntura urbana. Trata-se dosimagináriosquesempreaparecemmarcandoaseushabitantese,portanto,acidade,pelaforçadosignificadoedouniversosimbólicoquecarregam.

Aoladodesseimagináriofundacional,osluizensesvalem-sedaconstruçãoidentitária,devivênciassobrepostas: para corroborar essa identidade – e preservarem-se do esquecimento–acionam amemória. Um fator primordial para a permanência dessas memórias é seu patrimônioarquitetônico,cujaconservação,preservaçãoevalorizaçãopelostombamentos,transforma-oemelementodefortalecimentodasidentidadeslocais.

Porém, questões contemporâneas tais como “o desenvolvimento urbano, a mercantilização, asindústrias culturais e o turismo” (García Canclini, 1994, p.95), muitas vezes fazem São Luiz doParaitinga viver uma situação limítrofe: a mercantilização de seu patrimônio cultural que, semresistência, pode derivar em sua exploração indiscriminada; e, no caso do patrimônioarquitetônico,aconciliaçãoentreaspossíveisespeculaçãoimobiliáriaedegradaçãourbanacomatradiçãolocal.

CarnavalnoCentroHistóricodeSãoLuizdoParaitinga.2012.FotoDegiovaniLopesdaSilva.

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A grande procura por parte de pesquisadores, historiadores, fotógrafos, antropólogos e outrospelas manifestações culturais que se realizam em São Luiz do Paraitinga, desloca o seureconhecimento–queatéentãoerainternoàprópriacomunidade–aumpúblicoexterno,eessavalorizaçãotrouxemudançasnapercepçãodosluizensesquantoàsuacultura.

Muitos estudos acadêmicos têm sido realizados sobre o patrimônio da cidade.Uns voltam-se àanálisedesuaarquitetura,pelasespecificidadesdastécnicasconstrutivase,maisrecentemente,pelanecessidadedereconstruçãoerestauração,paraasquaisdiscutempossibilidadesteóricasdeescolas divergentes sobre o tema e sobre as escolhas realizadas; outros tem como objeto aspráticasculturaisdeSãoLuizdoParaitinga,compesquisasquebuscamumamelhorcompreensãodeseusrumos.Ambosseapoiam,emgrandeparte,naestratégiadeconheceracidadeatravésdareflexãoobtidapelaconstruçãodememóriadeseushabitantes.

Neste sentido, a enchente, ao mesmo tempo em que foi uma catástrofe sem precedentes,também foi ocasião de atenções por parte dos órgãos públicos e da imprensa e da entrada derecursos financeiros, colocando São Luiz do Paraitinga em destaque. Foi também o fato quemotivou a reativação das memórias, usadas como resposta e reação à tragédia comum,fortalecendoos luizensesparaareconstruçãofísicadacidadeerevigorando-osparareergueremsuasvidas.

NoentenderdeMarinaMelloeSouza(2008,p.28),oshabitantessevalemdoespaçodacidade,nosentidoemque

O espaço ajuda a reconstruir pensamentos e lembranças comuns, deacontecimentosesensaçõesvividasnaquelelugar.Porintermédiodoslugares,quetêmaestabilidadedascoisasmateriais,opensamentocoletivotemmaisoportunidadedeperdurar.O espaço é umadas condições de existência dosgrupos,queimprimemdealgumaformasuamarcasobreolugarqueocupam,sendoindissociáveldamemória.

Por isso, tradição ememória são algumas das estratégias de valorização do patrimônio culturalusadas pelos luizenses, que também fazem escolhas na construção dos caminhos para seapropriarem de seu patrimônio. Como define Lenclud (2013, p. 158) “A utilidade geral de umatradiçãoéforneceraopresenteumacauçãoparaoqueeleé.Aoenunciá-lo,umaculturajustifica,decertomodo,suasituaçãocontemporânea”.

Sob esse aspecto, aos remanescentes construídos se agregampráticas sociais diversas, entre asquaisasfestasecomemoraçõesquedãomovimentoàpaisagematravésdadefiniçãodepercursosedefiniçãodelugaresdeencontro,ondesereiteramformasdeapropriação,formasdefruiçãoecaminhospreferenciais.

CONSIDERAÇÕESFINAIS

Embora os vestígios do traçado urbano no presente sejam os elementos que sustentam apatrimonialização da cidade e os interesses turísticos, a fragilidade das políticas urbanasimplementadasparadarsuporteàsatividadesgeradasporestes,aolongodotempo,podelevaraum agravamento das condições de vida de distintas populações que hoje convivemcotidianamente,umavezqueoseventos turísticospreenchemo calendárioda cidadede formaplena,aolongodetodooano.EnquantoEstânciaTurística,SãoLuizdoParaitingadependedestavalorizaçãodesuaarquiteturatípica,dadoqueseudesenvolvimentoeconômicoestábaseadono

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turismocultural.

Énecessárioqueanoçãode conjunto sejaopontodepartidaparaanálisedoespaçourbanoeedificado,extrapolandoadelimitaçãodocentrohistóricoquefoidefinidoapartirdeseutraçadogeométricoeracional.Apreservação,hojeconfiguradaporumperímetrodepreservaçãovisual,precisasedisporaabarcarefetivamenteoutrasáreasqueestãoalémdocentrohistórico,e issodemandaareavaliaçãodosdiscursos,daspolíticaspúblicasedasaçõesdevalorizaçãodealgunslugaresemdetrimentodeoutros.

Alémdisso, apesardeo centrohistóricode São LuizdoParaitinga concentrar adinâmica sócio-econômica local, os tombamentos e a interferência de órgãos de preservação, principalmentesobreopatrimônioedificado,tendemaafastarosmoradoresdessecentro,peladificuldadequeencontram, cada vezmais, namanutenção de imóveis privados e na fruição e apropriação doslugares públicos. Em um futuro próximo, isso pode torná-los locais reservados somente aosturistaseaospoucosmoradorescomcondiçõesdearcarcomoônusdapatrimonialização.

Por outro lado, são os estudos acadêmicos, conforme apontamos, a base inicial tanto parajustificarquantoparadefinirvaloraoconjuntoedificadoe,nestesentido,éimportanteseatentarparaoentendimentodacidadeemsuatotalidade,deformaaampliaroespectrodereflexãodosagentesquandodaelaboraçãodepolíticaspúblicas,garantindoumdesenvolvimentoharmônicoeintegraldacidadeparaosseusmoradores.

Reitera-se, portanto, a necessidade de um alinhamento às discussões mais abrangentes querelacionam patrimônio cultural e território, através da análise da paisagem produzida e daproteçãodascaracterísticassingularesdoslugares-semdistinçãoapriorientreaspectosmateriaisou imateriais ou entre a priorização de seu valor histórico, arquitetônico e paisagístico e amanutençãode suasqualidadesurbanísticas–paraque seuse,efetivamente, apreservaçãodopassadocomoestratégiadefuturo.

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