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Revista Estudos Feministas ISSN: 0104-026X [email protected] Universidade Federal de Santa Catarina Brasil Abdel-Moneim Grussing, Sarah O Ciborgue Zapatista: tecendo a poética virtual de resistência no Chiapas cibernético Revista Estudos Feministas, vol. 10, núm. 1, jan., 2002, pp. 39-64 Universidade Federal de Santa Catarina Santa Catarina, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=38110103 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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Revista Estudos Feministas

ISSN: 0104-026X

[email protected]

Universidade Federal de Santa Catarina

Brasil

Abdel-Moneim Grussing, Sarah

O Ciborgue Zapatista: tecendo a poética virtual de resistência no Chiapas cibernético

Revista Estudos Feministas, vol. 10, núm. 1, jan., 2002, pp. 39-64

Universidade Federal de Santa Catarina

Santa Catarina, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=38110103

Como citar este artigo

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Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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ESTUDOS FEMINISTAS 39 1/2002

SARAH GRUSSING ABDEL-MONEIMMacalaster College

O Ciborgue Zapatista: tecendo aO Ciborgue Zapatista: tecendo aO Ciborgue Zapatista: tecendo aO Ciborgue Zapatista: tecendo aO Ciborgue Zapatista: tecendo apoética virpoética virpoética virpoética virpoética virtual de resistência notual de resistência notual de resistência notual de resistência notual de resistência no

Chiapas cibernéticoChiapas cibernéticoChiapas cibernéticoChiapas cibernéticoChiapas cibernético

RRRRResumo:esumo:esumo:esumo:esumo: A circulação global, entre 1994 e 2001, do neo-zapatismo e do ativismo solidárionão-indígena como símbolos de resistência no ciber-espaço sugere a necessidade de novasformas de leitura dos movimentos sociais na era digital. Uma leitura feminista do binarismolocal/global do espaço discursivo em torno da rebelião maia em Chiapas tanto afirma quantocontesta teorias predominantes pós-modernas sobre a relação entre corpo humano etecnologias cibernéticas. Esse espaço híbrido transgride e confirma fronteiras entre ator/atrize audiência, escritor/a e leitor/a, humano e máquina. A relação entre o teatro da resistênciamaterial na Zona de Conflito e o crescimento da resistência virtual no Ciber-Chiapas ilustra anatureza ciborgue material/tecnológica da rebelião de Chiapas.PPPPPalavras-chave:alavras-chave:alavras-chave:alavras-chave:alavras-chave: zapatista, Chiapas, México, Internet, feminismo, movimentos sociais.

A circulação de ativistas de solidariedade neozapatistase não-indígenas como símbolos de resistência no espaçocibernético durante os últimos sete anos sugere a necessidadede métodos novos para entender os movimentos sociais nestaera virtual. Esta monografia1 é parte de um estudo maior sobreimplicações teóricas do papel da tecnologia na criação eexpansão desse espaço discursivo e do teatro global daresistência associada à recente rebelião indígena em Chiapas,México.2

Eu gostaria de concentrar-me aqui na �des-locação�dos corpos e das vozes indígenas de �Um lugar chamadoChiapas� (como o documentário de Nettie Wild o classificou)ao sul do México para um espaço incorpóreo. Como é que osindígenas engajados na resistência são deslocados da zonamaterial de conflito em Chiapas (de fato um �não-lugar� vistode uma perspectiva antes de 1994) para uma zona semfronteiras e sem dimensões, que é simultaneamente �em lugarnenhum� e �em todo lugar�? Quais são as contradiçõesenvolvidas quando rebeldes maias, de um movimento queprocura ligação com outros movimentos sociais globais, viajampelo espaço cibernético como ícones de multimídia? Apesar

1 Uma versão preliminar maisreduzida deste trabalho foipublicada na edição deoutono1999 do boletimFeministas Unidas sob o título�Virtual Voices, ElectronicBodies: Women and thePoetics of Resistance in Cyber-Chiapas�.2 Ver Sarah GRUSSING, 2000.

Coyright 2002 by RevistaEstudos Feministas

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SARAH GRUSSING ABDEL-MONEIM

do modelo militar do Exército Zapatista de Libertação Nacional(EZLN), embora invertido, será que a digitalização do movimentorebelde dá caminho, paradoxalmente, à transcendência desuas origens militares enquanto é tecida uma rede globaldescentralizada de solidariedade? Será que a tecedura dessarede de solidariedade também se qualifica como ato deresistência que se apropria do próprio espaço cibernético �espaço esse que teve sua origem como arma militar de defesae que se encontra atualmente dominado pelo capital global?

Parte das séries de desplazamientos a que me refiroenvolve a representação e a participação das mulheres nesseespaço tecnologicamente mediado, como, também, arelevância do feminismo para a análise desse espaço. Atecnologia muitas vezes tem sido representada como aspectodo domínio e da autoria masculinos da cultura �moderna� e,de fato, �pós-moderna�, em que o agenciamento da mulher émal recebido e mesmo visto como não natural. Apesar de tudo,a teórica feminista Sadie Plant nos lembra que a computaçãoe a rede de computadores seguem o modelo de atividadetradicionalmente feminina da tecedura. Sadie Plant tambémnos lembra que uma mulher, Ada Lovelace, foi uma pioneirade destaque no processo de invenção do primeiro protótipode computador no século XIX.3 Com as afirmações dessa autoraem mente, eu gostaria de explorar a questão de como as teoriasfeministas, ao estabelecer relações entre tecnologiasemergentes e os modelos para visualização de articulaçõespolíticas radicais, podem fornecer insights úteis quanto aofenômeno de Chiapas e quanto ao sucesso da tecedura deum espaço alternativo para novas formas de visualizações erealizações de políticas locais e globais. De suma importânciapara esse ato de tecer espaço são os vários processos de �des-locação� dos indígenas e dos corpos das mulheres enquantoviajam pelo espaço cibernético, assim como a �des-locação�experimentada pelos agentes não-indígenas e pelo públicona produção de textos multimídia de solidariedadetransnacionais.4 Tomando por empréstimo as idéias daspesquisadoras feministas Donna Haraway e Anne Balsamo,discutirei como o fenômeno dos �Zapatistas no espaçocibernético� ao mesmo tempo afirma e contesta teorias pós-modernas prevalecentes sobre a relação entre o corpo humanoe as tecnologias cibernéticas. Antes de dar início à exploraçãodessas questões teóricas, porém, fornecerei um breve sumáriosobre a rebelião indígena em Chiapas e a rede nacional eglobal de solidariedade, a qual emerge em resposta àquelarebelião e que vem produzindo, ativamente, matérias para aimprensa convencional e multimídia em apoio às demandasdos/as rebeldes por justiça e dignidade.

3 Sadie PLANT, 1995, p. 45.

4 Um formato tradicional deimpressão não possui oalcance ilustrativo de umdocumento multimídia dehipertexto eletrônico, e poressa razão convido os/as lei-tores/as a visitar alguns doswebsites dedicados à cons-cientização sobre a crise emChiapas. Um bom ponto departida é a extensa bibliogra-fia de links da Acción Zapa-tista, no Zapatistas inCyberspace: An AnnotatedGuide to Resources andAnalysis.

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O CIBORGUE ZAPATISTA

De nenhuma parDe nenhuma parDe nenhuma parDe nenhuma parDe nenhuma parte para toda parte para toda parte para toda parte para toda parte para toda parteteteteteNo dia de Ano Novo em 1994, um exército de homens e

mulheres maias autodenominado Exército Zapatista deLiberação Nacional (EZLN) emergiu de �nenhum lugar� paratomar posse de várias vilas e centros de comunicação emChiapas, no mesmo dia em que entrou em vigor o NAFTA(Acordo de Livre Comércio entre México e Estados Unidos). Nocontexto dos acordos de livre comércio, a emenda adicionadapelo presidente Salinas ao Artigo 27 da Constituição mexicanapôs um fim às diretrizes de divisão de terras tradicionais semresolver a crise agrária sofrida pelas comunidades camponesase indígenas do México e sem, tampouco, gerar suficientesoportunidades para que esses setores da sociedade pudessemlevar uma vida com dignidade. No discurso do EZLN, as medidasdo plano de ação neoliberal são vistas como produtos da NovaOrdem Mundial, que é baseada na injustiça social, econômicae política, apesar da retórica democrática usada para apoiá-la.

O símbolo de Zapata, há muito tempo cooptado peloPartido Revolucionário Institucional (PRI) , tem sido sempre umelemento-chave na disputa pelo sentido da RevoluçãoMexicana. Por defender a causa em prol de um novosignificado, embora historicamente ligado à luta zapatista e àluta do México por uma democracia inclusiva geral, o discursoneozapatista re-apropria-se do significado do heróirevolucionário camponês martirizado, assim como de outrossímbolos culturais em circulação. A �significância excessiva�desses símbolos muitas vezes subverte sua interpretação pelasinstituições mexicanas. É por essa razão, entre outras, que euchamo de �neozapatista� essa nova forma de resistência, paraque a possamos diferenciar do movimento zapatista originalda Revolução Mexicana.

A rebelião neozapatista está profundamente enraizadana história mexicana; entretanto, seu programa de demandase a visão de mundo que a orienta estão bem ligados aocontexto mundial atual. A arma mais efetiva dos neozapatistasé o seu convite para a re-articulação da identidade mexicana� e da identidade humana � através da busca por dignidade,democracia, e justiça social e econômica. Depois dos primeirosdias de conflito armado, o EZLN, na maioria das vezes, utiliza-se de estratégias não-violentas; uma delas é uma chamada àsolidariedade da sociedade civil mexicana e do públicointernacional. Um elemento importante para o sucesso dos/dasrebeldes em resistir às tentativas do exército que os queresmagar é a circulação efetiva de comunicações via e-mail ewebsites, assim como a divulgação de informações sobre acrise através do apelo às organizações não-governamentais(ONGs) que produzem boletins de ação urgente e publicam

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SARAH GRUSSING ABDEL-MONEIM

casos de abusos de direitos humanos na Internet. Tais iniciativasde contatos através do espaço cibernético ajudam a transmitirnotícias de minuto a minuto que complementam, corrigem econtradizem as reportagens mais comuns e convencionais.Além disso, a agenda dos/das rebeldes tem despertado ointeresse de uma grande variedade de indivíduos e grupos,tais como ativistas de direitos humanos, acadêmicos, artistas,músicos populares, jornalistas progressistas e gruposecumênicos em prol da justiça social, que têm realizadoproduções simbólicas pela Internet. A �Guerra da Tinta e daInternet� do EZLN, como é chamada,5 tem sido tão triunfanteque os �atos da fala� dos neozapatistas ressoam dentro docontexto do discurso global de direitos humanos. O crescenteacesso e manipulação da Internet, com as suas possibilidadesutópicas e democratizantes, resulta na criação e na expansãocontínua de um espaço dinâmico e discursivo em que aspalavras, imagens e atos de resistência diária nas comunidadesde base zapatistas na Zona de Conflito adquirem numerososníveis de significância.

A luta das comunidades autoproclamadas autônomasem Chiapas ressoa profundamente em muitos setores dasociedade civil mexicana que também estão tentandorearticular uma identidade nacional que não mais exclua osgrupos que historicamente ocuparam e continuam ocupandoposições marginalizadas. Os/as rebeldes mascarados dentrodessa �colônia interna�6 na fronteira sul têm convidado o seupúblico no México e no estrangeiro para participar do processode exposição da imagem ilusória do México como nação quepretende entrar para o �Primeiro Mundo�, uma imagem que temsido projetada para solicitar investimento internacional. Aodesconstruir o mito de uma nação democrática e inclusiva erevelar o �outro México�, os/as rebeldes também encorajam aconstrução de alianças através das fronteiras de etnia, gêneroe classe da sociedade civil de maneira que possam promovero nascimento de instituições sociais e políticas maisdemocráticas e justas.

Apesar dos esforços do Estado e do exército mexicanospara limitar a rebelião a uma pequena �Zona de Conflito�através da contenção física das comunidades rebeldes, arebelião armada de Chiapas ironicamente abriu um espaçodiscursivo que vai muito além do nível local. A subversãoneozapatista de esquemas estabelecidos de diálogo entre osindígenas e o Estado começou com o pedido do EZLN pelamediação por parte da sociedade civil nesse diálogo, natentativa de achar alternativas de paz para a resolução doconflito armado. Esse convite zapatista à sociedade civil,atraente para grupos e agentes tão diversos quanto ossindicatos trabalhistas, ativistas de direitos homossexuais, gruposem defesa de direitos indígenas, ativistas lutando por reformas

5 �O conflito armado emChiapas é uma guerra de tin-ta, de palavra escrita, umaguerra na Internet. Chiapas,anote por favor, é um lugaronde não houve um disparonos últimos 15 meses. Osdisparos duraram dez dias, edesde então a guerra temsido uma guerra da palavraescrita, uma guerra pela Inter-net� (um byte sonoro freqüen-temente citado de um discur-so proferido em 25 de abril de1995 por José Angel Gurria,então secretário de RelaçõesExteriores do México, no WorldTrade Center).

6 Para mais detalhes sobre aidéia de Chiapas como umacolônia interna, sobre ahistória de lutas pela cons-cientização e sobre a sofis-ticada organização políticana década de 1970 entre ascomunidades de campe-sinos, ver George COLLIER,1994.

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O CIBORGUE ZAPATISTA

eleitorais, estudantes, artistas e escritores/as, jornalistas, homense mulheres de partidos políticos, músicos populares e até mesmoos setores desarticulados de classe média, resultou em umamediação física entre o Estado e os rebelados através daformação de um cinturón de paz durante as primeiras fasesde negociação. O convite também inspirou a criação e ofortalecimento de novas organizações políticas e sociais quese dedicam a vários aspectos da luta pela democracia, justiçae pluralidade, e que fazem pressão por reformas políticas. �Loszapatistas abrieron la puerta, y nosotros nos estamos metiendo�,disse Arturo Sanabria, diretor da Gestión de Servicios de Salud,uma organização que ajuda a desenvolver alternativascentradas nas comunidades para limitar os serviços médicosoferecidos pelo exército mexicano como parte de suaestratégia de guerrilha de baixa intensidade.7 Essa aberturarealizada pelo discurso neozapatista reflete uma transformaçãoradical nos velhos processos da mediação cultural.

TTTTTecendo a teia da Internetecendo a teia da Internetecendo a teia da Internetecendo a teia da Internetecendo a teia da InternetEm um artigo publicado em janeiro de 1999 por um jornal

mexicano, La Jornada, Fabrizio Mejía Madrid assim resumiu atrajetória da rebelião em Chiapas desde que esta apareceuem janeiro de 1994: �La história de estos cinco años va delagrarismo tradicional a la penosa contrucción de um lugar enel que nadie ha estado, de ocupación de tierras a la identidadsin territorio definido�.

Comunidades indígenas em resistência em Chiapas têmadquirido importância transnacional dentro do contexto daglobalização dos projetos neoliberais. Comunidadesautônomas, situadas em uma das mais isoladas emarginalizadas regiões de México, agora se encontram nocentro de um espaço discursivo que vem transgredindo muitasfronteiras. Nesse espaço, o futuro dos direitos humanos édiscutido, assim como são as questões de autonomia cultural,o enfraquecimento ou desaparecimento de tradicionaisfronteiras geográficas, econômicas, políticas e culturais, e apossibilidade de construção de comunidades locais e globais.Através da produção de milhares de textos eletrônicos einterativos, imagens de zapatistas circulam como símbolos daspossibilidades subversivas de rearticulação de um sentido dacomunidade contestatória do modelo IBM de �Vila Global�.

Nos textos de mediação do contraditório mas efetivoporta-voz não-indígena do EZLN, o subcomandante Marcos,assim como no discurso de muitos ativistas políticos eorganizações de direitos humanos mexicanos e transnacionais,a palavra �Chiapas� representa o modelo de dignidade queinspira tentativas de articulação de modelos novos de justiçasocial e ligação com outros modelos. Não vem ao caso se aestrutura de poder utópico popular do EZLN e das suas

7 Arturo Sanabria, represen-tante do México junto à ONGGestión de Servicios de Salud,em conferência proferida noFrente del Norte, uma orga-nização de solidariedade aoszapatistas sediada emMinneapolis, Minnesota,Estados Unidos.

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SARAH GRUSSING ABDEL-MONEIM

comunidades de base realmente funciona de modo tão ideal,como Marcos e outras vozes neozapatistas o descrevem; elatem causado o aparecimento de esquemas descentralizadosde solidariedade e comunicação. Talvez seja principalmentea mediação eficiente do maia-de-honra Marcos, entre os váriosdiscursos culturais e intelectuais em níveis locais, nacionais eglobais, a razão pela qual os neozapatistas têm recebido tantaatenção de todo o mundo, e pela qual o �Chiapas�, como signomediador, tem adquirido importância em outras lutas porautonomia ou justiça social em outras partes do mundo. Porém,o convite dos neozapatistas para novas visualizações tornoupossível a formação de articulações discursivas que refletem aestrutura descentralizada das ligações hipertextuais no espaçocibernético. O slogan �Todos somos Marcos; todos somos índios;todos somos Chiapas� é repetido não só no México, mastambém na Irlanda, no Japão, na Holanda, na Itália, nos EstadosUnidos, e em muitos outros lugares onde os/as �leitores/as� ou o�público� dos textos ou performances multimídia, realizados porou sobre os neozapatistas, também se tornam escritores/as eatores/atrizes no teatro global da resistência virtual contra arepressão das minorias, o neocolonialismo dos Estados e aexpansão dos planos de ação neoliberais.

O uso de tecnologias emergentes na amplificação dasvozes indígenas, assim como na criação e distribuição de textosem que os/as rebeldes neozapatistas circulam como símbolosmultifacetados da resistência, tem sido fundamental no novoprocesso de mediação entre as vozes indígenas e as culturashegemônicas de um México mestiço e de uma vila globaldesde 1994. Por exemplo, internautas em visita ao website daComissão Nacional pela Democracia no México podemcomprar camisetas que dizem �soy Zapatista�. Galerias de fotosna Internet exibem cenas do dia-a-dia nas comunidadesautônomas e correntes de mulheres e crianças indígenas nãoarmadas tentando impedir, com seus próprios corpos, quesoldados de tropas de choque entrem nas suas vilas eplantações de milho. Especialmente desde o massacre de maisque 40 pacifistas indígenas (principalmente mulheres ecrianças) de um grupo chamado Las Abejas, em dezembro de1997, muitos websites promovem vídeos que documentamviolações de direitos humanos e entrevistam vítimas e militanteslocais. Em alguns sites, vários videoclipes e filmes de entrevistasestão disponíveis para serem vistos on-line. O site da AcciónZapatista, patrocinado pela comissão de solidariedade emAustin, Texas, ostenta uma impressionante bibliografia anotadade websites sobre os/as rebeldes, ilustrados com a rendiçãográfica de Marcos como ciberpunk, uma produçãoembelezada por técnicas eletrônicas de uma foto verdadeirado subcomandante do EZLN. Muitos outros desses websites são

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O CIBORGUE ZAPATISTA

conjuntamente mantidos por ativistas mexicanos einternacionais.

Des-locar e re-colocar os corposDes-locar e re-colocar os corposDes-locar e re-colocar os corposDes-locar e re-colocar os corposDes-locar e re-colocar os corposA circulação das vozes e dos corpos indígenas como

símbolos de resistência nos textos multimídia do espaçocibernético envolve vários processos de �des-locamento� dosatores e do público nesse teatro global. Embora esse des-locamento afete a todos aqueles que participam dessarepresentação interativa, podemos argumentar que os váriosníveis de des-locamento que as mulheres indígenasexperimentam quando se juntam à luta nesse espaçotecnologicamente mediado de Chiapas são os mais visíveis.Embora eu queira me concentrar aqui nos desplazamientosdevido à mediação tecnológica, também é importante indicarque o �des-locar� dos corpos das mulheres indígenas começanão no espaço cibernético, mas na própria Zona de Conflito,nos altiplanos de Chiapas. A ocupação de Chiapas peloexército mexicano produziu milhares de refugiados internos, aquem a imprensa e os grupos de direitos humanos se referemliteralmente como �os deslocados�. Mulheres fugindo daameaça de violência de militares e paramilitares tentam sesustentar e cuidar das famílias em acampamentos temporáriosou nos esconderijos nas montanhas. Por outro lado, a imprensaconvencional imediatamente interessou-se pelo curioso fatode que muitos dos soldados zapatistas uniformizados, queparticiparam da captura de várias vilas e centros decomunicação em janeiro de 1994, eram mulheres. O própriomovimento rebelde �deslocou�, de suas casas e das estruturasfamiliares tradicionais, mulheres indígenas que se apresentaramcomo voluntárias para o combate junto ao EZLN e que forampara acampamentos militares de guerrilha � uma mudançade identidade muitas vezes veiculada na imprensa através daimagem chocante das jovens maias rebeldes usando uniformesmilitares em vez de trajes típicos e carregando armas em vezde bebês. Tanto a imprensa convencional como as fontes denotícias alternativas baseadas na Internet publicaram fotos demulheres maias das comunidades de apoio civil rebeldesusando trajes típicos com bandanas cobrindo as faces. Elas seapresentaram desse modo em protestos pelas ruas de SanCristobal ou da Cidade do México ou quando formavam umbloco humano contra as incursões do exército mexicano. Talvezo exemplo mais bem conhecido desse �deslocamento� seja ocaso da agente de polícia zapatista de fala mansa Ramona,que, mesmo sofrendo de uma doença terminal, aprendeu oespanhol para poder tomar de assalto a Cidade do México eo espaço cibernético quando ali chegou pela primeira vezcomo delegada do EZLN. As mulheres das comunidades civis

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SARAH GRUSSING ABDEL-MONEIM

do EZLN também têm escrito e insistido na ratificação das �LeisRevolucionárias das Mulheres� por parte do EZLN, declarandoo seu direito de poderem escolher o seu esposo, determinar onúmero de crianças que elas queiram ter e participarigualmente em todas as atividades políticas e decisões dacomunidade. Mulheres na Zona de Conflito tambémestabeleceram pequenas indústrias cooperativas, produzindotecelagem e outros artesanatos para obter saídas criativas parao seu isolamento econômico.

Embora se possa argumentar que sejam subprodutosdo movimento autônomo indígena neozapatista original, asdistintas interpretações das mulheres sobre o que deveriasignificar tal autonomia cultural em nível comunitário exerceminfluências cada vez mais visíveis no cenário internacional. Aparticipação das mulheres na Zona de Conflito vemdespertando o interesse de muitos envolvidos na rede globalde solidariedade criada em torno da rebelião. Livros edissertações acadêmicas sobre as mulheres zapatistas,8 jáforam publicados grupos de solidariedade criados, tais comoo da Comissão Nacional por Democracia e o das Irmãs doMéxico Além das Fronteiras. Também vão se abrindo espaçoscibernéticos, como os websites interativos do Fórum sobre asMulheres Zapatistas. As mulheres zapatistas e as mulheres não-indígenas, inspiradas pelos/as rebeldes neozapatistas daorganização militar ou da base civil, tornaram-se importantescontatos na campanha internacional pelos direitos humanos epela democracia em Chiapas e, em geral, no México. Porexemplo, a fundadora da Comissão Nacional pela Democraciano México, Cecilia Rodríguez, uma cidadã americana dedescendência mexicana, tornou-se a �embaixadora� do EZLNpara os Estados Unidos, e a atriz e ativista mexicana OféliaMedina continua sendo uma líder vociferante junto aomovimento mexicano em apoio às comunidades rebeldes.Mulheres como Teresa Ortiz, da ONG binacional sediada emSan Cristobal, Cloudforest Initiatives, ajudam a patrocinarexcursões internacionais de palestrantes cujas vozes nãopoderiam ser ouvidas de outro modo (assegurando, porexemplo, que a esposa indígena monolíngüe de um líderbilíngüe de Las Abejas � o grupo alvo de um massacreparamilitar a civis em Acteal � também tenha a oportunidadede falar durante a excursão internacional). Ajudam, também,a patrocinar um projeto de alfabetização comunitária, ouprojetos alternativos de desenvolvimento econômico paracooperativas autônomas de mulheres na Zona de Conflito.

Volto-me agora a duas questões: a função da tecnologiaemergente na tecedura dos espaços globais de resistênciacontra as injustiças econômicas, políticas e sociais; e aspossibilidades que novas tecnologias poderão fornecer paraa tecedura futura que conecte as lutas locais com os temas

8 Ver, por exemplo, Rosa Rojas,Chiapas: ¿y las mujeres qué?,originalmente publica-do emdois volumes em espanhol, noMéxico, por La Correa Femi-nista, e agora disponível online em inglês. Ver também ofilme Zapatista Women (deGuadalupe Miranda e MaríaInes Roque, 1995, com títuloem espanhol Las com-pañeras tienen grado), degrande circulação no inícioda crise.

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O CIBORGUE ZAPATISTA

globais. Será que essas novas tecnologias vão nos alienar aindamais da nossa humanidade e de cada um de nós, ou vão nostornar mais unidos/as? Observou-se muitas vezes que aconstrução de auto-estradas nos Estados Unidoscorresponderam ao fim do sentido de comunidade que havianos centros urbanos. O crescimento rápido da muito faladainformation superhighway, dominada pelos interessescorporativistas, poderia ter conseqüências semelhantes parao sentido da comunidade no espaço cibernético. Por outro lado,o modelo mais descentralizado da Internet, com as suaspossibilidades utópicas de construção de comunidades semfronteiras, contesta o modelo Al Gore/IBM/Microsoft dainformation superhighway. A disputa pela apropriação doespaço cibernético está atualmente baseada na oposiçãoentre esses dois modelos da net e da highway. A informationsuperhighway não contesta estruturas de poder injustas, masem vez disso reproduz velhos modelos de exploração em nomeda democratização. Construída para propósitos comerciais emilitares, a information surperhighway transforma seres humanosem uma base de dados. Alguns teóricos até falam do �estupro�dos dados como sendo sua função.9 Em contraste, o modeloda Internet é baseado numa extensão virtual da humanidadeque permite a criação de novos modelos de conexão,comunidade e comunicação descentralizada, e em que aindaé possível sonhar com estruturas sociais alternativas.

Várias teorias pós-modernas sobre o futuro dahumanidade no contexto digital, assim como aquelasarticuladas por Arthur Kroker e Michael Weinstein no seu livroData Trash, falam do desaparecimento, ou invasão, do corpohumano.10 Quando tais teóricos tentam visualizar asmanifestações do corpo no espaço cibernético, ondeparâmetros físicos não existem, eles falam da �virtualização� docorpo: o corpo eletrônico. A idéia do desaparecimento docorpo pode ser um conceito útil quando analisamos espaçosdiscursivos moldados pela tecnologia emergente. Seja comofor, a idéia do desaparecimento do corpo no espaçocibernético também pode ser problemática. Talvez isso ocorradevido ao papel importante que o corpo humano continua ater quanto à definição de idéias de comunidade. No seu ensaio�Forms of Technological Embodiment�, Anne Balsamo observaque

A história feminista do corpo pós-moderno começa com asuposição de que os corpos são sempre engendrados emarcados pela raça. O que falta [na idéia de que �o corpo� éuma abstração idealista] é uma dimensão material que levaem conta as marcas incorporadas da identidade cultural. [...]O corpo nem sempre pode ser construído como uma entidadepuramente discursiva. Por outro lado, ele nunca pode serreduzido a um objeto puramente materialista. [...] O material e

9 Arthur KROKER e MichaelWEINSTEIN, 1994.

10 KROKER e WEINSTEIN, 1994.

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SARAH GRUSSING ABDEL-MONEIM

o discursivo são mutuamente determinantes e não-exclusivos.[...] O corpo material permanece um fator constante dacondição pós-humana, pós-moderna. Ele tem certasqualidades materiais inegáveis que são, por seu turno,culturalmente determinadas e discursivamente governadas;qualidades que são ligadas à sua psicologia e aos contextosculturais dentro dos quais ele faz sentido, tais como as suasidentidades de gênero e raça.11

Enquanto reconhece o poder das observações deKroker em relação à �cultura virtual� e ao desaparecimento docorpo, Balsamo questiona a idéia atualmente muito defendidade que vivemos em um mundo pós-corpo, onde o corpohumano é apenas uma construção pós-moderna de dados.Nós podemos adicionar à sua asserção a observação de queos aspectos materiais e discursivos �mutuamente determinantes�do corpo continuam a funcionar enquanto as narrativas e ascontranarrativas da modernidade e da pós-modernidade sechocam e se intersectam nos espaços globais.

Nos textos cibernéticos que são encontrados no espaçodiscursivo em Chiapas, podemos observar a circulaçãosimbólica de corpos indígenas e/ou corpos femininos; isto é,corpos humanos marcados como �outro� no discursohegemônico cultural. Na literatura latino-americana, desde operíodo colonial, o corpo feminino tem sido muitas vezesrepresentado como o lugar mediador de discursos da nação,da raça e da etnia, e do poder. Com a figura da mulata noCaribe e no Brasil, ou a figura de La Malinche no México, porexemplo, os corpos das mulheres não-brancas servem comolugares de figuração da invasão de discursos culturais quetambém os definem, marcam e oprimem. Desde 1994, corposindígenas e corpos femininos �marcados� circulam comoentidades discursivas no espaço discursivo de �Chiapas�, maso corpo eletrônico ou virtual como representação tambémdepende das condições materiais para ser transformado emsímbolo eficaz de resistência às estruturas de poder opressor.As �galerias virtuais de fotos� de comunidades indígenas emterritórios rebeldes colocadas na Internet por fotógrafos,jornalistas e ativistas ilustram a importância que essas �marcas�de raça (e de gênero e etnia, já que as imagens favoritas dasmáquinas fotográficas parecem ser de mulheres vestidas emtrajes típicos) adquirem em um contexto visual de pobreza eisolamento físico (da selva ou das plantações de milho) paracomunicar a luta neozapatista à comunidade transnacional.Outras imagens favoritas são aquelas de soldados indígenasdo EZLN em botas de borracha levando espingardas demadeira falsas, tais quais acessórios de teatro, ou fotos demulheres adolescentes das comunidades rebeldes, descalças,com bandanas cobrindo seus rostos e levando bebês às costas,repelindo as linhas militares com os seus braços nus e pardos.12

11 Anne BALSAMO, 1995, p.219-220.

12 Ver, por exemplo, a repro-dução da foto de La Jornadana página Pastors for PeaceChiapas Organizing Infor-mation.

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Nós não podemos desligar o corpo eletrônico que resiste noespaço cibernético das suas referências às condições materiaisdo corpo físico � condições que são muitas vezes determinadaspela maneira como as questões de raça e/ou gênero sãoinscritas nas narrativas modernas de identidade.

Direitos (pós)humanos e o corpo digitadoDireitos (pós)humanos e o corpo digitadoDireitos (pós)humanos e o corpo digitadoDireitos (pós)humanos e o corpo digitadoDireitos (pós)humanos e o corpo digitadoNão é uma coincidência que o discurso de direitos

humanos, com o seu foco nas condições materiais de nossaexistência, estruture os textos produzidos nesse espaçoeletrônico. Na Internet, corpos femininos indígenas servem comosites de mediação eficazes, ou como pontes entre ascomunidades de resistência indígenas isoladas em Chiapas eos espaços nacionais e globais, pois esses sites revelam, emum nível material e simbólico, as rupturas nos discursos doneoliberalismo e da globalização econômica. Os indígenas e/ou corpos femininos circulam no setor �Chiapas� do espaçocibernético não só como objetos de discurso intelectual, mastambém como sujeitos na performance multimídia do teatrode resistência, que é a vida diária na Zona de Conflito. Entrecentenas ou até milhares de tais atuações rebeldes�virtualizadas� em vários dos websites mexicanos, norte-americanos, europeus e japoneses, um exemplo é quandoIrma, uma agente do EZLN, em uma entrevista transmitida porQuicktime, fala sobre a sua falta de oportunidades ao crescerem uma comunidade empobrecida e isolada do altiplano, esobre as razões para unir-se ao exército rebelde.13

Tradicionalmente, Irma era duplamente invisível como indígenae como mulher, mas sua voz calma e digitalizada e seu corpotrajado de uniforme camuflado surgiram de �nenhuma parte�da selva Lacondan vizinha e ressonaram nas telas decomputadores em todo o mundo. Em videofilmagensespontâneas, em jornais on-line, nas webpáginas dasorganizações não-governamentais nacionais e transnacionais,circulam imagens visuais e aurais de mulheres e criançasdesarmadas que usam os seus corpos e vozes (gritando �¡Fuerael ejército, fuera!�)14 para impedir o exército mexicano deinvadir as suas comunidades. Grupos paramilitares, assim comoo exército mexicano, continuam usando a tortura e a violênciasexual como armas de guerrilha de baixa intensidade na Zonade Conflito. Mas as torturas e os estupros, estratégias de controlesocial que inscrevem a retórica do poder no corpo do outro,adquirem diferentes significados no Chiapas Vir tual.Proclamando 500 anos de sofrimento, mulheres indígenascontam as suas histórias pessoais de opressão e violação, e osseus testemunhos são amplificados e circulados pelo espaçocibernético juntamente com os testemunhos de mulheresativistas, figuras de mediação não-indígenas. O exército egrupos paramilitares têm atribuído a essas mulheres uma

13 ACTLAB, 1999.

14 Como conseqüência domassacre de dezembro,1997, em Acteal, voluntáriosjunto à Organização ChiapasSchools trabalhavam naconstrução da primeiraescola secundária emterritório rebelde e fizeramcinco horas de filmagem �emtempo real� de um confronto,em uma vila desarmada,entre mulhe-res e crianças eas tropas federais � estas emnúmero infinitamente superioràquele dos habitantes dacomuni-dade. Embora nãotenha sido oficialmente�publicado�, esse vídeocirculou na sua impres-sionante forma original (semcortes) através da rede desolidariedade no México enos Estados Unidos. Pude vê-lo em março de 1998. OutraONG, Cloudforest Initiatives,patrocinou a produção deum vídeo sobre o massacreem Acteal e suas conse-qüências, intitulado Victims ofthe War in Chiapas. As cenasforam tomadas por artistas devídeo locais. Muitas dúzias depro-jetos similares têmcirculado imagens de corposem con-fronto com as linhasmilitares e com a violênciaparamilitar.

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categoria indígena �virtual� por causa do seu ativismo mediadornos espaços discursivos e físicos de Chiapas. Isso é umamanifestação dos perigos e riscos que podem acompanhar aafirmação de solidariedade, muitas vezes repetida, de que�todos somos índios; todos somos Chiapas�. Por exemplo, CeciliaRodriguez, a líder da Comissão Nacional por Democracia noMéxico e representante do EZLN nos Estados Unidos, foi violadasexualmente em 1995 por paramilitares. O seu testemunhoescrito, marcado pela coragem e por contínuo ativismo esolidariedade para com as comunidades rebeldes, foireproduzido por listas de mala direta mundiais e ilustrou cartazesde solidariedade a Chiapas, distribuídos de forma impressa etambém pela Internet, por conta da cooperativa de artistasResistant Strains, de Vermont, Estados Unidos.

Houve muitos outros exemplos de violência sexual sofridapor ativistas indígenas e não-indígenas na Zona de Conflito.No entanto, esses atos de intimidação e repressão nãosilenciaram suas vozes, mas, sim, resultaram na suaamplificação através da rede de solidariedade que continuaa crescer. Os testemunhos desses homens e dessas mulherestornam-se um símbolo de resistência que inspira maissolidariedade e mais resistência virtual fora da zona física deconflito. Embora seja importante distinguir entre atos físicos deresistência contra ocupação militar e ações paramilitares quepõem �corpos na linha de fogo� (e outros tipos de resistênciaque não o fazem), a resistência virtual e a emergência doespaço discursivo de Chiapas têm sido importantes paralevantar o nível de consciência sobre as lutas daqueles corposresistentes e para articular simbolicamente tais lutas com outras,mundo afora. Muitas vezes, essas ligações tornam-se mais doque simbólicas. Espectadores(as)/leitores(as) de textoseletrônicos no espaço de �Chiapas� acham que a sua interaçãocom esses textos torna-se o estímulo para ações futuras ligandodiscurso e práxis. Zonas da paz criados por observadoresinternacionais de direitos humanos tornam-se anteparoshumanos entre o exército e as comunidades em Chiapas,milhares de ativistas participam de �Reuniões para Humanidadee Contra Neoliberalismo� nos níveis �Continental�,�Intercontinental� e �Intergalático� patrocinados pelos/asrebeldes em Chiapas e no estrangeiro, e tribos indígenas dosEstados Unidos e Canadá organizam peregrinações para forados Estados Unidos e do Canadá a fim de assinar os seus própriosacordos comercias alternativos com os seus correlativos nascomunidades maias.

Os processos de mediação no espaço discursivo em�Chiapas� também têm suas próprias contradições. O EZLN abriuesse espaço para desconstruir instituições baseadas emestruturas de poder desigual e para promover a construção deoutros modelos mais inclusivos. Contudo, muitas feministas, assim

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como outros críticos, indicam que o militarismo do EZLN reproduzvelhos modelos patriarcais de resolução de conflito,constituindo-se, por isso, em um molde inautêntico para aconstrução de novos modelos sociais e políticos. Outracontradição é que, apesar das possibilidades de não-intermediação (amplificação mais direta das vozes indígenasvia Internet), a necessidade de mediação por parte deintelectuais não-indígenas não foi eliminada. Nas suas funçõesde intelectuais e/ou militantes e na sua produção simbólicadentro e fora das fronteiras físicas das comunidades autônomasindígenas em Chiapas, aqueles/as que participam na rede desolidariedade transnacional neozapatista ainda servem comomediadores/as entre as vozes indígenas e os espaços deprivilégio ao qual pertencem.

Apesar do fato de que ativistas e escritores prolíficos doespaço cibernético (como o professor da Universidade do TexasHarry Cleaver e seu grupo Acción Zapatista) afirmem que arede de solidariedade neozapatista seja um espaçodescentralizado, em que relações desiguais de poder globaisnão são reproduzidas, há uma certa desigualdade que nãopode ser apagada, mesmo em um espaço cibernético utópico.Nós podemos afirmar que há possibilidades utópicas para aconstrução de novas comunidades democráticas no espaçocibernético, mas o fato é que só os mais privilegiados têm oacesso direto a esse espaço. A participação em A RevoluçãoIrá Ser Digitada,15 o website interativo de alta tecnologia deActlab, no Zapnet, por exemplo, exige equipamento de últimageração e o mais recente software de busca do tipo plug-in.Nem todos os nódulos da rede de solidariedade são tãoexclusivos: há muitos grupos de notícias, quadros de aviso earquivos menos avançados tecnologicamente. De qualquermaneira, computadores são portas ao espaço cibernético, eem áreas mais economicamente marginalizadas, comoChiapas, o acesso e o treinamento para o uso de hardwaregeralmente não existem. Comunidades indígenas dependemda mediação de estrangeiros e de alguns mexicanos ligadosà Internet para poder ter entrada no espaço cibernético. Ofato de as comunidades de resistência em Chiapas solicitaremdoações de máquinas fotográficas e computadores indica, porparte dessas comunidades marginalizadas, o nível deconsciência sobre o poder desses novos métodos decomunicação. Com acesso a esse tipo de equipamento, osindígenas em Chiapas e outros grupos marginalizados domundo inteiro podem documentar os atos de resistência dassuas vidas diárias. Assim foi que a organização binacionalProjecto de Mídia Chiapas foi criado. Essa organização, filiadaà Rede de Solidariedade do México, patrocina delegaçõesdos Estados Unidos e do México que incluem artistas de vídeoindígenas e outros mexicanos com experiência e treinamento

15 Todo o projeto de webinterativa está disponível emformato CD-ROM e no site<www.actlab.utexas.edu:80/~zapatistas/rev.html>

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em projetos alternativos de mídia. Esses peritos mexicanostreinam os seus correlativos em Oventic e Morelia (no coraçãodo território neozapatista, na parte rural de Chiapas) eacompanham delegados internacionais que levamequipamentos doados. Esse programa permite a essascomunidades �contarem as suas histórias, em suas própriaspalavras�, para poder contestar a imagem muitas vezes poucocorreta da realidade veiculada pela imprensa convencional �imagem esta que irá influenciar tomadas de decisões externascom impacto nas comunidades. Dentro do Projecto de MídiaChiapas, vídeos são mandados a estações de televisão ou sãoenviados como �cartas-vídeo� para as comunidades indígenasou para outras áreas do México ou de outros países. Em breve,as comunidades em Chiapas que participam do projetotambém poderão registrar as violações de direitos humanos einseri-las na Internet em �tempo-real�.16

O Ciborgue ZapatistaO Ciborgue ZapatistaO Ciborgue ZapatistaO Ciborgue ZapatistaO Ciborgue ZapatistaA idéia de que essas comunidades marginalizadas

podem, dentro do contexto de luta por autonomia, articular asrupturas no discurso de globalização econômica e subverterprocessos de alienação pós-modernos, no sentido detransformá-los em processos de rearticulação de comunidadee de realidade material em um nível global, mostra osparadoxos presentes nesse espaço discursivo tecno-logicamente mediado. Zapatistas virtualizados são umalembrança das condições materiais da vida humana. Corposindígenas e/ou femininos no espaço discursivo do Chiapaseletrônico representam simbolicamente todos os grupos quesão excluídos dos projetos globais neoliberais; são corpos quese recusam a desaparecer sob a Nova Ordem Mundial. Oneozapatismo marca uma nova etapa na Revolução Mexicana;um novo estágio de resistência indígena sem fronteiras. Tambémsugere modelos subversivos inovadores que atravessamfronteiras para estabelecer ligações intertextuais ouhipertextuais entre atos anteriormente isolados de produçãosimbólica e de crítica cultural. Em vez de visualizar a rede globalneozapatista como um fenômeno relacionado ao �corpo emdesapa-recimento�, talvez seja mais produtivo vê-la comoresultado do nascimento do Ciborgue Neozapatista, umconceito que ao mesmo tempo incorpora e atravessa fronteiras.Anne Balsamo observa que

o ciborgue � o �ser humano-tecnológico� � tornou-se umafiguração familiar do sujeito da pós-modernidade. Por qualqueroutra coisa que possa insinuar, esta junção conta com uma re-conceitualização do corpo humano como figura de fronteirapertencendo simultaneamente a pelo menos dois sistemasanteriores de significados incompatíveis � �o orgânico/natural�e �o tecnológico/cultural�. À medida que o corpo é re-

16 CHIAPAS MEDIA PROJECT,1999.

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conceitualizado não como uma parte fixa da natureza, mascomo um conceito de fronteira, nós testemunhamos uma lutade forças ideológicas opostas entre sistemas de significaçãocontrários que incluem e, em parte, definem as lutas materiaisdos corpos físicos.17

Tomada como uma coalescência de muitas variações/mutações pelas quais tem passado no espaço discursivo deChiapas, a figura de um zapatista com máscara de esquiador� tal como é (co)imaginada e diversamente definida em várioscontextos inter e hipertextuais � tornou-se um ícone de ciborgue.A tensão constante entre a naturalidade visceral propriamentedita do discurso zapatista, o discurso cibernético desolidariedade e a naturalidade tecnológica/artificial do espaçode Chiapas deram à luz essa função dinâmica de ciborgue. Ociborgue atravessa fronteiras entre o material e o artificial, entre�carne� e �máquina�. Desde o aparecimento do ensaio inovadorde Donna Haraway �A Cyborg Manifesto: Science, Technology,and Socialist Feminism in The Late Twentieth Century� (um divisorde águas nos meados de 1980), o ciborgue, como símbolocultural, representa o potencial subversivo do que Harawaychama de �acoplamentos produtivos� de articulação políticaradical.18 O neozapatista como símbolo adquire a suaqualidade de ciborgue ao circular entre os textos multimídiamoldados por uma tecnologia emergente somente imaginadana época em que o ensaio de Haraway foi escrito. O CiborgueZapatista é um símbolo mediador cuja eficiência como signocontinua a adquirir camadas de significância globalexatamente em função desse tipo de associação que atravessafronteiras entre elementos muitas vezes contraditórios. A imagemde zapatista pode ter sido originalmente baseada nos corposdos/das rebeldes indígenas, mas esses corpos são desde entãoescaneados e, depois, regenerados eletronicamente. Deixandode ser propriedade intelectual do EZLN, do subcomandanteMarcos, ou de qualquer jornalista, o Ciborgue Zapatista anti-copyright toma forma e adquire vida própria ilegítima no seupróprio espaço cibernético. Entretanto, com o CiborgueZapatista, nós podemos ver que a observação de Anne Balsamoquanto ao corpo duplo material/discursivo em espaços pós-modernos é verdadeira. No Zapnet, VR quer dizer ResistênciaVirtual, assim como Realidade Virtual. O signo quixotesco dozapatista inclinado sobre moinhos de vento multinacionais noespaço cibernético continua a apontar para a existênciamaterial dos corpos que são deixados para trás no outro ladoda tela enquanto a Nova Ordem Mundial é digitada.�Resistência virtual� global através de e-mail e Internet torna-semais e mais sofisticada quando protestos interativos coordenamnão só campanhas de inundação de e-mails dirigidos às figuraspolíticas no México, nos Estados Unidos ou nas Nações Unidas,mas também enormes protestos do tipo sit-ins eletrônicos nas

17 BALSAMO, 1995, p. 215.

18 O artigo de DonnaHARAWAY, publicado emportuguês como �Um mani-festo para os cyborgs:ciência, tecnologia efeminismo socia-lista nadécada de 80�. In:HOLLANDA, Heloísa Buarquede (Org.). Tendências eimpasses: o feminismo comocrítica da cultura. Rio deJaneiro: Rocco, 1994. p. 243-288 (N. R.).

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bolsas de valor. Essas campanhas procuram revelar e tornarpública a cumplicidade multinacional corporativista diante darepressão militar no território rebelde, assim como expressarapoio à resistência dos/das rebeldes de Chiapas à globalizaçãopolíticas neoliberais.19

Como o ciborgue de Haraway, os zapatistas no espaçocibernético viraram �criaturas da realidade social assim comocriaturas de ficção�.20 Os �zaps� são uma construção ficcional/retórica do espaço discursivo de Chiapas, uma imagem geradapor computador extremamente significativa que atrai nossaatenção em uma era de conexões rápidas na Internet e deuma rápida barragem de imagens multimídia, que nos apontapara aqueles/as deixados/as do outro lado da tela � aqueles/as que são procurados/as em função dos seus olhos atentos ededos rápidos em maquiladoras21 na fronteira dos EstadosUnidos com o México, naquela terra de ninguém. Será queZapnet é uma cibermetaficção pós-moderna, ou uma rede detestemunhos de direitos humanos que registra, precisamente,as vítimas de carne-e-osso da interseção de narrativasincompatíveis da modernidade? Podemos sugerir que Zapneté ambas as coisas. O ciberzapatista funciona como o nossoguia para o Chiapas Virtual nos moldes da ficção de Haraway,que mapeia �realidade social e corpórea�.22

O Ciborgue Zapatista como imagem retórica multimídiaé produto de um espaço discursivo transnacional em torno dasrecentes e contínuas contendas por autonomia cultural,democracia, e justiça social e econômica nas comunidadesindígenas no México. Minha análise do poder desse instrumentoretórico de nenhuma forma tenciona diminuir a atenção sobreos homens e as mulheres nas comunidades rebeldes emChiapas que continuam a dedicar os seus corpos e vozes àslutas contínuas e diárias por dignidade. O Ciborgue Zapatistadeve a sua força e a sua �humanidade� à determinação dessesindivíduos e suas comunidades. A resistência indígena nasAméricas está firmemente enraizada em um sentido decontinuidade histórica, já que permanece contestandomodelos coloniais de injustiça, exclusão e opressão aindavigentes, embora mascarados pela retórica dos �pós�. O debateesotérico sobre a natureza do �mundo pós-moderno� muitasvezes parece desligado da realidade vivida nas comunidadesautônomas de Chiapas, ou em quaisquer outras comunidadescomprometidas com a resistência contínua contra a opressãocom base nas lutas �modernas� em torno da identidade, daformação nacional e do desenvolvimento. Mas Zapata e outrasinúmeras testemunhas mortas dos 500 anos de resistênciaindígena tornaram-se �os fantasmas na máquina�. Ociberzapatismo como fenômeno transnacional deve a suacapacidade para �transgressões frutíferas� de fronteiras aosmodelos �transgressores�23 originais da selva Lancondan. A

20 HARAWAY, 1991, p. 149.

21 Fábricas que explorammão-de-obra barata e ilegalnas zonas de fronteira entreEstados Unidos e México (N.T.).

22 HARAWAY, 1991, p. 150.

23 O rótulo �transgresores dela ley� foi primeiro atribuídoaos/às rebeldes pelo ex-presidente do México,Salinas, em 5 de janeiro de1994, durante uma confe-rência coletiva. Esse rótulo égeralmente usado em refe-rências governamentais aoEZLN e também foi apropri-ado para vantagens retóricaspelos/as próprios/as rebeldes.

19 Por exemplo, ver o arquivode artigos, descrição deações de protesto, etc. emtorno do caso da reportagemdo Chase Manhattan Bank(1995), apelando para que ogoverno mexicano �eliminas-se� os zapatistas para a pro-teção de investimentosestrangeiros no México. Estádisponível no arquivoChiapas95 no endereço:< g o p h e r : / /mundo.eco.utexas.edu:70/1 m / m a i l i n g /chiapas95.archive/chase>

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coalescência de significados de Chiapas como signo desde odia 1º de janeiro de 1994, todavia, advém, em grande medida,da mediação desse embate diário por meio da amplificaçãoe representação intertextual e hipertextual em uma produçãosimbólica estruturada por tecnologias emergentes. O CiborgueNeozapatista é capaz de nos des-locar ao nos convidar aatravessar fronteiras geográficas, étnicas e de classe, e aparticipar, na qualidade de leitores(as)/escritores(as)/espectadores(as)/atores(atrizes) de textos/performances de umaguerrilha multimídia, de esforços de resistência virtual contraprojetos globais neoliberais. O Ciborgue Zapatista é maiseficiente na sua habilidade para nos des-locar: para nos incitara afirmar e transgredir diferenças, e para entrever novas �uniõesradicais� na busca de solidariedade com outros indivíduos egrupos. O ciberzapatista nos convida a abandonar os nossoscorpos em vôos utópicos de imaginação sobre o futuro dahumanidade, mas ao mesmo tempo enraíza profundamente asua retórica em um sentido de história e de realidade materialque nos faz lembrar da nossa própria localização, bem comoda dos camponeses no México, tal como elas são ditadas pelasrelações de poder locais e globais.

O meu uso do conceito de ciborgue para explorar ozapatista no espaço cibernético como signo de oposição tomauma grande dose de licença poética ao lidar com o instrumentoretórico de Haraway. O ciborgue de Haraway foi visualizadocomo um modelo para a formação de uma rede que iria cruzaras fronteiras entre feministas e fazer novas conexões parciaisentre outros grupos de oposição para poder se re-apropriar denovas tecnologias do complexo industrial militar que ameaçouprovocar um armagedon nos meados da década de 1980.Mas a chamada original de Haraway para novos modelos demilitância social que subverteriam visões totalizantes a partirda evocação de �uniões radicais� continua sendo relevante.Como ela própria explica, �isto é um sonho não de uma línguacomum, mas de uma heteroglóssia infiel poderosa... Significatanto construir como destruir máquinas, identidades, categorias,relações, histórias de espaço�.24 Nos primeiros anos do séculoXXI, tal ciborgue de oposição procura transgredir fronteiras efazer ligações �ilegítimas� para poder se re-apropriar do espaçocibernético das suas origens militares e do seu controle pelocapital multinacional, que iria converter seres humanos embases de dados. O Ciborgue Zapatista é um símbolo desobrevivência na nossa era de globalização e virtualização.Esse �ciborgue da oposição� neozapatista transgride fronteirasglobais e locais no esforço de evitar, como Kroker e Weinsteintão eloqüentemente disseram, a �carcaças ao longo doinformation superhighway�.25 A explosão do espaço discursivoglobal des-centralizado ao redor da rebelião aponta para odesenvolvimento de novos modelos imaginativos na tecedura

25 KROKER e WEINSTEIN, 1994,p. 8.

24 HARAWAY, 1991, p. 181.

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de conexões, os quais não só transcendem as origens militares(ou de defesa) da tecnologia que emoldura esse espaço, mastambém vão além da questão de identidade militar do EZLN.

Kroker e Weinstein escrevem sobre interesses corporativosno information superhighway que ameaçam liquidar o aspecto�público� da internet. Por seu turno, de uma maneira queprefigurou o esforço atual sobre a apropriação do espaçocibernético no fim dos anos 1990, Haraway sugere que�networking é ao mesmo tempo uma prática feminista e umaestratégia da corporação multinacional � tecelagem de teiascibernéticas é para ciborgues de oposição�.26 Hoje, podemosver que a Internet é um instrumento que está disponível para osdois lados da luta. Muitos interesses procuram construir fronteirasno que é imaginado por outros como espaço utópico, semfronteiras. Organizações militares e de segurança, como aAgência de Inteligência Aérea das Forças Armadas dos EstadosUnidos, patrulham o espaço cibernético e estão engajadas na�guerra da Internet� contra todos os usos �subversivos�perceptíveis da mesma, incluindo as atividades �conectoras�das ciberguerrilhas neozapatistas. Em desvantagem no jogoglobal da propaganda, o governo mexicano, então dominadopelo Partido Revolucionário Institucional (PRI), aprendeu com asua oposição e investiu intensamente para estabelecer a suaprópria presença eficiente e �legítima� na Internet, inclusive comsites especiais dedicados à perspectiva do governo sobre oconflito em Chiapas. Esses sites contêm textos completos derelatórios patrocinados pelo Estado sobre o massacre de Acteal(que contradizem os fatos descobertos por investigadoresexternos de direitos humanos) e vídeos de discursos dopresidente sobre campanhas de serviço social e progressoeconômico em Chiapas. Assinaturas gratuitas dos comunicadosà imprensa do presidente Zedillo estiveram disponíveis em e-mail.27 Embora a histórica derrota eleitoral do PRI possa terassinalado mudanças no clima político do país, a administraçãopresente continua a expandir o ataque de Zedillo à nova mídia.

Movimentos transnacionais cibernéticosMovimentos transnacionais cibernéticosMovimentos transnacionais cibernéticosMovimentos transnacionais cibernéticosMovimentos transnacionais cibernéticossociais: ficção ciberpunk ou futurosociais: ficção ciberpunk ou futurosociais: ficção ciberpunk ou futurosociais: ficção ciberpunk ou futurosociais: ficção ciberpunk ou futuro(vir(vir(vir(vir(virtualmente) real?tualmente) real?tualmente) real?tualmente) real?tualmente) real?

Os primeiros seis anos de rebelião neozapatista emChiapas e de minhas pesquisas sobre o espaço discursivo dessarebelião coincidiram com o ciclo presidencial de seis anos noMéxico. Os/as rebeldes mantiveram um cessar-fogo no verãode 1994 para poder promover um esforço civil objetivandomudanças democráticas através de eleições limpas. Mas outravitória do PRI naquelas eleições foi desanimadora para aqueles/as que procuravam uma grande abertura democrática noMéxico e uma mudança de direção através da urna. Com as

26 HARAWAY, 1991, p. 170.

27 Chiapas Press RoomSpecial Coverage:<www.presidencia.gab.mx/w e l c o m e / c h i a p a s /chiapas.htm>.

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negociações com o governo mexicano em uma crise perpétua,o EZLN passou os anos seguintes tentando construir uma frentecivil, primeiro por meio de uma convenção nacionaldemocrática a la Woodstock, em Aguascalientes, e, depois,através de conferências �para a humanidade e contra oneoliberalismo�, tanto em território rebelde quanto noestrangeiro. Mas embora a Internet seja reconhecida como oelemento-chave que atrai a atenção do mundo para o discursoe a atuação neozapatistas, ela canalizou o que até então sedelineava como um crescimento gratuito e quase orgânico doespaço discursivo multimídia acerca das atividades rebeldes.Líderes rebeldes e ativistas que tentaram planejar conferênciasna Internet e campanhas em nome da Frente Zapatista deLiberação Nacional acharam difícil controlar ou direcionar oque havia sido quase um fenômeno de geração espontânea.Esse espaço cresceu rapidamente porque era descentralizado,mas tal descentramento significava que a Frente Zapatista,centrada na sociedade civil, não podia impor a forma oupredizer a natureza das ligações que iria fazer em torno daresistência de Chiapas no espaço cibernético três anos depoisque o fenômeno começara. Muito se tem dito em relação àmanipulação da imprensa pelos/as rebeldes, porém, emboraMarcos fosse um perito ao se preparar para entrevistas e eventosda mídia, ele e outros ativistas tiveram dificuldade para �dirigir�com êxito a circulação da imagem de rebelde no espaçocibernético. Aquela imagem ainda está em freqüentecirculação, mas o website do EZLN continua sendo só um entremuitos websites que formam nodos em um espaço discursivodescentralizado.

Assim como os/as rebeldes correram o risco tático deabrirem um espaço cujos parâmetros não podiam moldar, ecujo conteúdo não podiam predizer, eles também correram orisco de não patrocinar nenhum candidato político específicoem 1994 ou 2000, pedindo por um diálogo aberto e pelaconstrução de mais instituições democráticas que permitissemà �sociedade civil� determinar o futuro do México através dedebate e consenso. Mas se os/as rebeldes neozapatistas tinhamesperanças de que a queda do PRI através da pressão civilpor reforma eleitoral e por democracia fosse necessariamenteindicar o triunfo da nova esquerda no México, uma novaesquerda que colocasse a nação de volta no caminho�verdadeiro� da revolução, essa esperança foi destruída.Enquanto os/as rebeldes e a Frente Zapatista lutavam paradespertar nas pessoas uma consciência de que a imagem doMéxico como Primeiro Mundo era uma falsa realidade, eencorajavam aqueles/as � para quem a realidade do Méxicoera inaceitável � a sonhar com uma sociedade aberta e deinstituições democráticas, os/as eleitores/as mexicanos/as em2000 retiraram o PRI do poder, mas elegeram um candidato

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com as maiores tendências autocráticas � Vicente Fox, ocandidato da ala direita do Partido de Acción Nacional (PAN).

Enquanto el conflicto em Chiapas aparecia tão amiúdenas manchetes em 1994 quanto as eleições nacionais, ou,muitas vezes, aparecia nas mesmas proporções que aseleições, o mesmo não aconteceu ao final do ciclo eleitoralmexicano seguinte. O conflito em Chiapas era um dos maisurgentes assuntos discutidos pela política nacional durante ascampanhas eleitorais, mas não se tornou a mesma metáforaque fora usada, em 1994, para mudanças (segundo alguns)ou para desastres (segundo outros) nas áreas política, social eeconômica. A eleição que expulsou o PRI não assinalou que oMéxico tivesse se tornado democrático de um dia para o outro.Podemos ver que essas eleições fizeram parte de um processode transformação, um processo que permanece, até certoponto, em aberto. Ao procurar fazer um balanço dos primeirosseis anos de neozapatismo � real e virtual � que terminou coma eleição do primeiro presidente do México revolucionário nãopertencente ao PRI, deparei-me, em vez disso, com o fin abierto,que é tão característico da narrativa hipertextual.

Ao escrever a rebelião como uma meta-rebelião, Marcosfez uma performance rebelde para o mundo como se fosseum teatro grego de máscaras e ícones provocando umacatarse mundial. A solidariedade com Chiapas passou a serum meta-texto para militância e transformação sociais, e,encorajando conexões com outras lutas, Marcos tambémcorreu o risco de apresentar a resistência maia como símbolode tudo para todos � uma missão impossível que deverá, aofinal, desencadear desilusão para alguns. Ao final, talvez umretrato mais fiel da rebelião � em vez de um retrato de indivíduosbuscando o �re-encantamento da humanidade�28 � seráaquele que manterá o movimento pela autonomia indígenaem Chiapas vivo, sem transformá-lo em um fiasco de sonhos epromessas irrealizados, de uma frouxa rede transnacional dealmas buscando salvação global. Por certo nenhum dospequenos grupos de marginalizados do México rural deveráesperar carregar nos ombros, para sempre, o peso simbólicodos medos, das necessidades espirituais e das fantasias domundo. O slogan do EZLN � �Para nosostros, nada, para todos,todo�� poderia provar ser ironicamente apropriado, já que oexército continua a se infiltrar nos últimos vestígios do territóriozapatista, re-impondo as regras de velhas instituições, tirandoproveito das rupturas nas estruturas sociais, políticas eeconômicas da região causadas pelo deslocamentopopulacional interno e pela violência paramilitar, e tentandoimpedir a sobrevivência e disseminação da resistência atravésde estratégias de guerrilha de baixa intensidade.

Assim como os altiplanos de Chiapas, o espaçocibernético também é um não-lugar contestado, e não se sabe

28 Termo usado por MurrayBOOKCHIN, 1996.

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por quanto tempo a Internet permanecerá aberta comoespaço para resistência. Com o crescente esforço corporativistae político contra o �entrelaçamento� da rede e do sentido daWeb, fica a dúvida se o Ciborgue Zapatista continuará suasmutações para poder oferecer um modelo relevante deoposição para a apropriação do ciberespaço e a construçãode novos modelos de mediação e solidariedade global. Acirculação neozapatista no espaço cibernético é possívelgraças à energia às vezes descoordenada mas, mesmo assim,persistente de um movimento virtual que tem mantido seumomentum eletrônico transnacional por um período de tempocuja extensão talvez seja sem precedentes, mas que agoraparece estar sendo um pouco desacelerado, pois websites elistas de e-mails são atualizados com menor freqüência.Enquanto ativistas experientes e dedicados assumiram o desafioem prol da criação de uma rede de solidariedade globalarticulada pelos/as rebeldes, a visibilidade dos neozapatistastambém vem de um flerte quase erótico entre os/as rebeldes(geralmente através de Marcos) e ícones pop e também figurasconhecidas de uma cultura literária mais elitizada.

O perigo das causas apoiadas e transformadas emmodismos por celebridades da cultura pop, artistas e escritores/as não era desconhecido � nos anos de 1980 e 1990campanhas pop a favor do uso de artefatos de pêlos artificiais,ou da libertação do Tibete, ou de denúncia da pena de mortesentenciada a um prisioneiro inocente podiam ser vistas, porespectadores/as já um pouco insensibilizados/as, como umasérie de produtos oferecidos no mercado pela mídia do tipo�Clube da Causa do Mês�, que se tornou vítima dasexcentricidades e superficialidades da moda. Com maiorvisibilidade na mídia pop, surge, então, a vulnerabilidade, jáque uma causa digna torna-se moda ultrapassada e outra mais�quente�. Essas causas, sem importar quão justas oumerecedoras de nosso apoio, também se tornam vítimas denossa �fadiga de compaixão� se elas não nos oferecem umafonte inovadora de espetáculo.

A narrativa de hipertexto global de solidariedade ecrítica aos/às rebeldes de Chiapas foi inspirada pelo apeloneozapatista de �!No nos dejen solos!� após os primeiros diasde conflito armado em janeiro de 1994 e de retaliação e táticasantiinsurreição por parte dos militares. O slogan da ConvençãoDemocrática Nacional do EZLN � �Para nosotros nada, paratodos, todo� � suplicou-nos que acabássemos com aquela�fadiga de compaixão� através do argumento de que todas ascausas são somente uma causa, e que, de algum mododesconcertante, os índios mascarados carregando AK-47,foices, ou apenas usando suas vozes, estão lutando por nós,seres desesperançados/as, e não o contrário, nós por eles/elas.De certa forma nasce uma relação simbiótica entre o Chiapas

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virtual e o Chiapas real. A idéia lançada em comunicado apóscomunicado, testemunho após testemunho, é que sem ociberzapatismo as comunidades neozapatistas�desaparecerão�, como tantos outros/as rebeldes invisíveis aolongo da história � mas que, também, sem essas comunidadesindígenas muitos de nós jamais teríamos visto aquele lugar como qual sonhamos diante do arco-íris cibernético, aquele espaçoutópico hipertextual reservado para compartilharmos �históriasespaciais� e construir modelos virtuais de interação humana. Aligação efetiva do material e do virtual é um modelo quereconhecemos através da ficção (científica) e com o qualsonhamos em nossa vida real. No espaço simbiótico deChiapas, a morte do ciberzapatismo também poderáliteralmente significar a morte dos/das rebeldes na Zona deConflito ocupada pelo exército e economicamentemarginalizada. Essa relação simbiótica dá uma urgência de�vida real� ao épico de ficção científica em busca daqueleelemento místico que dá vida às �de dados�.29

Não é nenhuma novidade a idéia de que apreocupação e a ação globais em torno de qualquermovimento social ou questão de direitos humanos dependemde como o assunto é �mantido vivo� e promovido pela mídia.Ao final dos anos 1990 e nos primeiros anos do século XXI,porém, a relação simbiótica entre resistência virtual por meioda tecnologia cibernética (com suas crescentes conexões comvários tipos de mídia) e a presença física de militantes demovimentos sociais tornou-se ainda mais pronunciada. Noespaço discursivo de Chiapas, com a ressonância do apelo�no nos dejen solos�, vemos que a resistência virtual pelacirculação de lutas através de textos multimídia inspira efortalece os ativistas desse movimento fisicamente engajadosna resistência, assim como esses ativistas inspiram e fortalecema resistência virtual. Os guerrilheiros virtuais que manipulam amídia têm dado fôlego ao movimento rebelde na Zona deConflito em momentos em que maiores ajudas pareciam fúteis,e a resistência dos/das rebeldes, do mesmo modo, alimentouo movimento virtual em épocas em que a atenção mundial sevoltava para outros lugares. Resta-nos ver como é que essavulnerável relação simbiótica atuará nos próximos anos.

PPPPProcessando os dados (mutantes)rocessando os dados (mutantes)rocessando os dados (mutantes)rocessando os dados (mutantes)rocessando os dados (mutantes)Os/as rebeldes são acusados de não possuir ideologia

por se recusarem a formar um partido político de vanguarda.Por outro lado, a �sociedade civil� mexicana e global éencorajada a fazer articulações, consultar e formar aliançasatravés das fronteiras de etnia, classe, gênero e geopolíticaseguindo o modelo comunitário de consulta (ampla edemocrática) dos processos decisórios dos/das rebeldes aonível local. Para a confusão de muitas pessoas de direita e de

29 Nasci nos anos 1960 nosEstados Unidos e escrevo deum lugar com o privilégio (àsvezes questionável) deacesso a programas Star Trekpara televisão, romances deficção científica e filmesciberpunks de Hollywood.Enquanto que minhasnarrativas mestras ciberpunkspossam se diferen-ciardaqueles/as que lêem deoutros lugares, a globaliza-ção da mídia e da tecnocul-tura faz com que muitas dasnossas histórias espaciaiscompartilhem das mesmasnarrativas globais, com ape-nas pequenas variações lo-cais. Compartilhar �leituras�ra-dicais dessas históriasespaci-ais sob perspectivaslocais po-deria ser umpoderoso instru-mento deresistência política e social.Entretanto, aqui es-colhopassar por cima de al-gumasrepresentações ques-tionáveis de raça e gêneronessas ficções, de modo a ex-plorar algumas metáforasbásicas que ilustrarão nossomodelo de �tecedura� ciber-nética social ra-dical. Nasformas de vida simbiótica deficção cibernética, tal comoo personagem alienígena (nocorpo �hóspede� de umamulher bela) no popular pro-grama de tele-visão america-no Star Trek: Deep Space

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esquerda, não se promoveu uma narrativa totalizante deidentidade nacional ou global. A fraqueza apontada na faltade uma visão totalizadora tornou-se uma das maiores forçasde apelo do fenômeno neozapatista, já que os/as rebeldesadquirem capital simbólico através da circulação de textostradicionais e eletrônicos. A força da rebelião neozapatista, ummovimento social difícil de definir por causa de seu duploparâmetro material/virtual e de suas ligações com outrosmovimentos, encontra-se no crescimento e evolução do espaçodiscursivo de Chiapas, em vez de situar-se no resultado exatoda �Revolução�. A �revolução� tem ocorrido no processo decriação e leitura da narrativa aberta em hipertexto dessaresistência. Entretanto, esse espaço, de conscientização sociale de construção comunitária, depara-se com um futuro incerto,tal como ocorre com as comunidades indígenas autônomasem Chiapas, as quais instigaram sua criação.

A vulnerabilidade dos movimentos sociais nutridos pelamídia, que mencionei anteriormente, é algo que se podeobservar recentemente em muitos esforços organizacionaistransnacionais em torno de questões comuns no passadorecente. Margaret Keck e Kathryn Sikkink observam que talorganização transnacional é às vezes mais eficaz em algunsmomentos que em outros, dependendo do vigor dos nodos darede e da eficácia das conexões entre eles. Entretanto, taisredes são, por definição, não estagnadas, e, quando asatividades se desaceleram ou deixam de existir em torno deuma questão específica, uma boa parte da rede pode serremodelada e reutilizada quando uma questão nova ourelacionada começa a circular. Podemos ver que o poder daevolução das narrativas hipertextuais do ciborgue, articulandoquestões locais e globais, tem se tornado mais evidente nosúltimos tempos. A evolução/mutação do espaço discursivo emtorno do neozapatismo e do conflito de Chiapas está provandoser uma lição eficaz em termos de ativismo social no contextoda globalização. O processo de ligar o local ao global no Ciber-Chiapas vem inspirando uma nova geração de ativistas e re-inspirando uma geração mais idosa. Ofereço dois exemplosde testemunho pessoal, em que me vejo instruída por meus/minhas próprios/as alunos/as quanto ao significado dofenômeno Chiapas em relação ao processo de criação demovimentos que transgridem fronteiras. Um de meus alunos degraduação expressou uma sofisticada conexão entre seuapreço pelo modelo neozapatista de construção de coalizãoinclusiva na �sociedade civil� e sua experiência comoambientalista gay numa comunidade rural do Pacífico Noroestedos Estados Unidos, onde cresceu. Essa comunidade eracomposta de lenhadores sem poder cujas crianças buscavamadquirir poder através de filiação a grupos extremistas dedireita.

Nine, a fusão co-dependentede duas distintas entidadesvivas juntas define umaexistência que, se sepa-rada,não pode sobreviver. OSeven-of-Nine da Star TrekVoyager também não podeviver sem seus implantes Borg,que lhe dão habilidadessuperiores para processarinformação e ainda paraformar uma identidade de�colméia� com outros indi-víduos. No recente megas-sucesso de Hollywood, TheMatrix, o ferimento ou mortevirtual de rebeldes nas suasbatalhas em espaço ciberné-tico causa sangramento físicoou morte de corpos recosta-dos. E, obviamente, o perso-nagem andróide Data doStar Trek: The Next Generationé a figura máxima deciborgue como máquina embusca de sua própriahumanidade.

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Outra aluna voltou do agora infame protesto em Seattlecontra a Organização Mundial de Comércio depois de passaruma noite hospitalizada devido ao espancamento e a tiros debala de borracha recebidos da polícia quando fazia parte deuma corrente humana pacífica em volta do prédio onde sereunia a OMC. Pouco antes de partir para o protesto em Seattle,ela participara de uma sessão de debates no campus sobre acrise em Chiapas em que tentou explicar sua inspiração paraações sociais e políticas. Afirmou que obtivera essa inspiraçãoao conversar com delegadas das comunidades zapatistas queconhecera durante uma conferência sobre globalizaçãoeconômica em Washignton, D. C., alguns meses antes. EmSeattle, onde entrelaçou os braços com desconhecidosrepresentantes de grupos de �interesses especiais� variados(lenhadores, ambientalistas, sindicalistas, feministas, advogadosde direitos da criança, grupos religiosos, etc.), ela se lembrouda insistência das mulheres maias de que a força do seumovimento apoiava-se no �processo por si próprio� e não emqualquer objetivo predeterminado.

A força desse processo também foi demonstrada pelapresença maciça de pessoas reunidas nos comícios de apoioe pelas boas-vindas aos/às rebeldes neozapatistas quemarcharam até a Cidade do México, apesar do fato de que oMéxico elegera uma administração de direita vários mesesantes. Com o seu avanço, a fé neozapatista na sabedoria dasociedade civil mexicana (e global) ainda poderá provar-secorreta. Afinal, o poder das narrativas hipertextuais e suasmúltiplas e criativas veredas de conexão global e local, materiale virtual, não poderá ser melhor ilustrado do que por meio dessetipo de catalisador de uma massiva formação de coalizõespró-resistência que temos visto, recentemente, coalescer emprotestos de enormes proporções.

As contradições que encontramos nas narrativashipertextuais, como aquelas que minha aluna descobriu emcirculação na coalizão sociopolítica em Seattle, são sintomasdos �acoplamentos radicais� que determinam a natureza�ciborgue� de tais espaços discursivos. As contradições nohipertexto em que o Ciborgue Zapatista navega � como, porexemplo, as tensões entre autonomia indígena e hibridismocultural � ocorrem não em função da integração de narrativascontestadoras a uma nova narrativa mestra global, mas, sim,da dupla afirmação e transgressão de limites e fronteiras. Taistensões merecem mais análises profundas no futuro do querecebem neste estudo. O uso da metáfora do hipertextoreafirma a idéia de analisarmos os movimentos sociais eidentidades nacionais ou étnicas como textos (epopéia, teatro,narrativa, espetáculo, etc., conceitos esses utilizados comometáforas úteis em minha pesquisa), ao mesmo tempo quereafirma a idéia de transgredirmos as fronteiras entre os gêneros

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com o objetivo de abordar a natureza híbrida dos espaçosdiscursivos multimídia estruturados e mediados por tecnologiasemergentes. O hipertexto tanto transgride como reafirma asfronteiras entre ator/atriz e espectadores/as, escritor/a e leitor/a, ser humano e máquina. A relação entre teatro de resistênciamaterial na Zona (física) de Conflito e o crescimento do Ciber-Chiapas proporciona um exemplo da natureza hipertextual dosmovimentos sociais transnacionais contemporâneos enraizadosem condições locais específicas. A luta de Chiapas nos deixaráo legado de um novo processo de tecedura de teias digitaiscom resistência material. Meu modelo de análise do espaçodiscursivo de Chiapas e dos deslocamentos e re-localizaçõesque nele ocorrem é aqui apresentado com a esperança deque será relevante às investigações de outros movimentos deresistência local ou global que, sem dúvida, continuarão a seremoldurados e instilados por tecnologia cibernética demaneiras cada vez mais sofisticadas. Tanto nas análises dehipertextos como nas narrativas hipertextuais, o meu fim poderáser o seu princípio.

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[Recebido em julho de 2001 e aceito para publicação em novembro de 2001]

The Zapatista CyborThe Zapatista CyborThe Zapatista CyborThe Zapatista CyborThe Zapatista Cyborg: Wg: Wg: Wg: Wg: Weaving a Vireaving a Vireaving a Vireaving a Vireaving a Virtual Ptual Ptual Ptual Ptual Poetics of Roetics of Roetics of Roetics of Roetics of Resistance in Cyberesistance in Cyberesistance in Cyberesistance in Cyberesistance in Cyber-----ChiapasChiapasChiapasChiapasChiapasAbstract: Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: The global circulation of Neo-Zapatistas and non-Indigenous solidarity activists assymbols of resistance in cyberspace between 1994 and 2001 suggests the need for new waysto read social movements in the digital age. A feminist reading of the dual local/globalcharacteristics of the discursive space surrounding the Maya rebellion in Chiapas both affirmsand contests prevalent postmodern theories about the relationship between the human bodyand cybernetic technologies. This hybrid space both transgresses and affirms borders betweenactor and audience, writer and reader, human and machine. The relationship between thetheater of material resistance in the physical Conflict Zone and the growth of virtual resistancein Cyber-Chiapas illustrates the �cyborg� material/technological nature of the Chiapas rebellion.Keywords:Keywords:Keywords:Keywords:Keywords: Zapatista, Chiapas, Mexico, Internet, feminism, social movements.

Tradução de Regina Borges e Dário Borim Jr.Revisão de Claudia de Lima Costa