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Traduzir Escrever é traduzir. Sempre o será. Mesmo quando estivermos a utilizar a nossa própria língua. Transportamos o que  vemos e o que sentimos (s upondo que o ver e osentir, como em geral os entendemos, sejam algo mais que as palavras com o que nos vem sendo relativament e possível epressar o visto e o sentido...! para um código convencional de signos, a escrita, e deiamos "s circunst#ncias e aos acasos da comunica$%o a responsa&ilidade de 'azer cegar " intelig)ncia do leitor, n%o a integridade da eperi)ncia que nos propusemos transmitir (inevitave lmente parcelar em rela$%o " realidade de que se avia alimentado!, mas ao menos uma som&ra do que no 'undo do nosso espírito sa&emos ser intraduzível, por eemplo, a emo$%o pura de um encontro, o deslum&ramento de uma desco&erta, esse instan te 'ugaz de sil)ncio anterior " palavra que vai 'icar na memória como o resto de um sono que o tempo n%o apagará por completo.* tra&alo de quem traduz consistirá, portanto, em passar a outro idioma (em princípio, o seu próprio! aquilo que na o&ra e no idioma originais já avia sido +tradu$%o, isto é, uma determinada percep$%o de uma realidade social, istórica, ideológica e cultural que n%o é a do tradutor, su&stanciada, essa percep$%o, num entramado linguístico e sem#ntico que igualmente n%o é o seu. * teto original representa unicamente uma das +tradu$-es possíve is da eperi)ncia da realidade do autor, estando o tradutor o&rigado a converter o +tetotradu$%o em +tradu$%oteto, inevitavel mente am&ivalen te, porquanto, depois de ter come$ado por captar a eperi)ncia da realidade o&jecto da sua aten$%o, o tradutor realiza o tra&alo maior de transportála intacta para o entramado linguístico e sem#ntico da realidade (outra! para que está encarregado de traduzir, respeitando, ao mesmo tempo, o lugar de onde veio e o lugar para onde vai . /ara o tradutor, o instante do sil)ncio anterior " palavra é pois como o limiar de uma passagem +alquímica em que o que é precisa de se trans'ormar noutra coisa para continuar a ser  o que avia sido. * diálogo entre o autor e o tradutor, na rela$%o entre o teto que é e o teto a ser, n%o é apenas entre duas personalidade s particulares que %ode completarse, é so&retudo um encontro entre duas culturas colectivas que devem reconecers e. http://caderno.josesaramago.org/2009/07/?page=5

Saramago Sobre Traduzir

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Saramago sobre o ato de traduzir

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7/21/2019 Saramago Sobre Traduzir

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Traduzir

Escrever é traduzir. Sempre o será. Mesmo quando estivermos a utilizar a nossa própria língua. Transportamos o que

 vemos e o que sentimos (supondo que o ver e osentir, como em geral os entendemos, sejam algo mais que as palavras

com o que nos vem sendo relativamente possível epressar o visto e o sentido...! para um código convencional de signos,

a escrita, e deiamos "s circunst#ncias e aos acasos da comunica$%o a responsa&ilidade de 'azer cegar " intelig)ncia do

leitor, n%o a integridade da eperi)ncia que nos propusemos transmitir (inevitavelmente parcelar em rela$%o " realidadede que se avia alimentado!, mas ao menos uma som&ra do que no 'undo do nosso espírito sa&emos ser intraduzível,

por eemplo, a emo$%o pura de um encontro, o deslum&ramento de uma desco&erta, esse instante 'ugaz de sil)ncio

anterior " palavra que vai 'icar na memória como o resto de um sono que o tempo n%o apagará por completo.*

tra&alo de quem traduz consistirá, portanto, em passar a outro idioma (em princípio, o seu próprio! aquilo que na o&ra

e no idioma originais já avia sido +tradu$%o, isto é, uma determinada percep$%o de uma realidade social, istórica,

ideológica e cultural que n%o é a do tradutor, su&stanciada, essa percep$%o, num entramado linguístico e sem#ntico que

igualmente n%o é o seu. * teto original representa unicamente uma das +tradu$-es possíveis da eperi)ncia da

realidade do autor, estando o tradutor o&rigado a converter o +tetotradu$%o em +tradu$%oteto, inevitavelmente

am&ivalente, porquanto, depois de ter come$ado por captar a eperi)ncia da realidade o&jecto da sua aten$%o, o tradutor

realiza o tra&alo maior de transportála intacta para o entramado linguístico e sem#ntico da realidade (outra! para que

está encarregado de traduzir, respeitando, ao mesmo tempo, o lugar de onde veio e o lugar para onde vai . /ara o

tradutor, o instante do sil)ncio anterior " palavra é pois como o limiar de uma passagem +alquímica em que o que éprecisa de se trans'ormar noutra coisa para continuar a ser o que avia sido. * diálogo entre o autor e o tradutor, na

rela$%o entre o teto que é e o teto a ser, n%o é apenas entre duas personalidades particulares que %ode completarse,

é so&retudo um encontro entre duas culturas colectivas que devem reconecerse.

http://caderno.josesaramago.org/2009/07/?page=5