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REGINA ECHEVERRIA Sarney A BIOGRAFIA

Sarney - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Oct/sarney_a_biografia_cyoy.pdf · já estavam a bordo do helicóptero que os levou ao Alvorada, onde en-contraram o resto da família. Sarney reuniu

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R E G I N A E C H E V E R R I A

SarneyA B I O G R A F I A

SUMARIO

Prefácio ............................................... 9

CAPÍTULO 1 A solidão do dia seguinte .................... 15

CAPÍTULO 2 Nas águas de abril .............................. 23

CAPÍTULO 3 Início da peregrinação, mudança

radical ............................................... 37

CAPÍTULO 4 A vida em São Luís,

independência na meninice ................. 47

CAPÍTULO 5 O jovem acadêmico

e a iniciação política ........................... 63

CAPÍTULO 6 Casamento, família

e política partidária ............................ 73

CAPÍTULO 7 Em ritmo de bossa nova

na velha UDN. ................................... 93

CAPÍTULO 8 Da campanha à renúncia de Jânio:

abandono e desilusão....................... 107

CAPÍTULO 9 Tempos difíceis: a morte do sogro,

o golpe de 1964. .............................. 133

CAPÍTULO 10 As últimas eleições diretas:

o Maranhão Novo do

governador Sarney ............................ 157

CAPÍTULO 11 O AI-5 e as perseguições .................. 183

CAPÍTULO 12 O Senado da República:

Arena e governo Médici .................... 205

CAPÍTULO 13 O governo Geisel. As perseguições

de Vitorino. O PDS ........................... 223

CAPÍTULO 14 Começa o governo Figueiredo:

Sarney na Academia

Brasileira de Letras ........................... 247

CAPÍTULO 15 A catarse de Sarney:

enfim o basta! ................................. 269

CAPÍTULO 16 A eleição indireta. A véspera da posse.

A Nova República............................. 291

CAPÍTULO 17 Sarney é o presidente:

o governo se instala. ......................... 325

CAPÍTULO 18 Apogeu e declínio do Cruzado

(e do próprio Sarney!). ..................... 345

CAPÍTULO 19 A Constituinte, a moratória, novo plano

econômico, novo fracasso ................ 373

CAPÍTULO 20 A nova Constituição:

o mandato de cinco anos ................. 399

CAPÍTULO 21 Fim de governo ................................ 417

CAPÍTULO 22 De volta ao Senado.

O impeachment de Collor.

O governo Itamar ............................. 439

CAPÍTULO 23 Na presidência do Senado:

Governo Fernando Henrique ............. 467

CAPÍTULO 24 O fator Roseana.

O governo Lula.

A segunda presidência do Senado ..... 503

CAPÍTULO 25 A terceira e atribulada

presidência do Senado ..................... 531

CAPÍTULO 26 Até agora ......................................... 563

Nota da autora ................................ 569

Agradecimentos ............................... 571

Bibliografia ...................................... 573

Bibliografia de José Sarney ................ 583

Índice onomástico ............................ 587

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CAPÍTULO 1

Praia do Calhau, São Luís, Maranhão, 16 de março de 1990.

A casa está em silêncio, cortado ape-nas pelo ruído do vento que vem da baía de São Marcos e a invade inteirinha. É o mesmo vento que alivia o corpo e estremece a alma nas noites em que derruba coisas feito assom-bração. A construção parece um convento, com um pátio espanhol interno e os quar-tos construídos ao redor. Intimidade zero. Ouve-se tudo. Os filhos sempre lhe disseram que a casa é a cara dele, uma praça pública. Acordou muito cedo, como de costume nos últimos cinco anos, e abriu os olhos ainda tonto com os acontecimentos da véspera, dia em que passara a faixa ao novo presidente, desejou-lhe boa sorte e desceu a rampa do Palácio do Planalto.

Um turbilhão de sentimentos o inva-dia naquele início de manhã na capital mara-nhense. Nas últimas 24 horas, ainda no sítio de Pericumã, antes de ir para Brasília, onde cumpriria o derradeiro ritual na presidência, era o primeiro encontro com ele mesmo e sua nova realidade. Já não havia compromis-sos, cerimonial a respeitar, qualquer pessoa a atender e, na agenda, nada. Chegara o momento de prestar contas a si mesmo, en-frentar o mais duro, implacável e cruel julga-mento a que se podia submeter.

Sentou-se na cadeira de balanço ao lado da biblioteca e tentou se concentrar em seu destino. Ainda não havia completado

A SOLIDÃO DO DIA SEGUINTE

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60 anos. Lembrou-se da casa de seu avô Zé Costa no dia em que ele morreu. Das palavras da avó Madona alertando que, a partir daquele momento, a “punga” estava com ele, como no auge do ritual do tam-bor de crioula do folclore maranhense, em que o dançante é alvo da umbigada. O avô, guardião dos assuntos da família, já não mais dançava no centro da roda para receber uma “umbigada”; passara-lhe a vez, o bastão, a responsabilidade. Ele sabia que seria difícil libertar-se daquela “punga”, e da missão que ali assumia – a de ser, para sempre, um dele-gado do destino e dos fatos.

Na véspera, acordara para o derradeiro dia na presidência. Eram seis da manhã. A cerimônia de transmissão de cargo estava marcada para as dez. Marly, sua mulher desde 1952, com quem teve três filhos, 13 ne-tos e dois bisnetos, acompanhava-o, tensa. Os dois haviam ficado até de madrugada no jantar oferecido aos chefes de Estado na Granja do Torto. O argentino Raúl Alfonsín, o português Mário Soares e o uruguaio Julio María Sanguinetti, os mais próximos de Sarney, estavam lá, como também Fidel Castro, de Cuba, Felipe González, da Espanha, Carlos Menem, da Argentina, Andrés Rodríguez, do Paraguai, e outras autoridades.

Em seu discurso protocolar, disse que estava arrumando as malas há quatro meses. Citou o primeiro-ministro inglês Winston Churchill (1874-1965) ao lembrar que o regime democrático era aquele em que, se às seis da manhã tocam a campainha de sua casa, você tem certeza absoluta de que se trata do leiteiro. No Brasil, a democracia era tão forte que o presidente, tranquilamente, podia arrumar sua bagagem: nada de medo de golpes! Risos gerais. Havia uma tentativa velada de relaxar o ambiente, a ponto de o general paraguaio Rodríguez, de terno, brincar com o presidente cubano:

– Fidel, está na hora de tirarmos a farda e arrumar as maletas. Eu já tirei a minha.

Fidel respondeu: – Eu não tenho terno.– Então – retrucou Rodríguez – vamos fazer uma contribuição

geral para te presentear com três trajes.Cinco anos depois, em 1995, Fidel Castro usou terno e grava-

ta pela primeira vez desde 1959, durante uma reunião de cúpula da ONU, na Dinamarca.

Uma preocupação martelava a mente de José Sarney: o que po-deria acontecer no dia seguinte, quando, com toda a civilidade que a situação exigia, ele entregasse os destinos do país a Fernando Affonso Collor de Mello, que se elegera às custas de uma campanha violenta e desrespeitosa contra ele?

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Era meia-noite e meia quando o casal deixou a Granja do Torto. Dali até a fazenda São José do Pericumã, de sua propriedade, percor-reram 70 quilômetros, 15 dos quais por estrada de terra. Às seis e meia já estavam a bordo do helicóptero que os levou ao Alvorada, onde en-contraram o resto da família. Sarney reuniu todos para um pequeno discurso antes de seguir para o Planalto:

Meus filhos. Seu pai fez o que pôde fazer. Cumpriu seu dever para com o país. Em frente ao palácio há uma multidão. A metade para aplaudir o presidente que entra. A outra metade, partidários do candi-dato derrotado, para agredir o presidente que entra. Ambas as correntes para me agredir e me vaiar. Não temos chance. Vamos nos preparar e erguer a cabeça.

A cerimônia de transmissão foi rápida. Sarney avistou a multidão na Praça dos Três Poderes, ainda com o coração apertado. Ao iniciar a descida, porém, ex-presidente, puxou do bolso um lenço branco e acenou para o povo. Naquele momento, seus maiores temores se des-mancharam, pois a multidão, superando todas as expectativas, rompeu em aclamações.

Quando chegou ao pé da rampa, muita gente chorava. Antônio Carlos Magalhães, ex-ministro das Comunicações, não conseguiu con-ter as lágrimas. Em uma cadeira de rodas, o assessor especial Thales Ramalho também não controlou o choro. O jornal O Estado de S.Paulo descreveu o estado emocional do ex-presidente, que, com um “sorriso fixo, olhos marejados, mas uma expressão serena” despedia-se do poder.

O cordão de isolamento rompeu-se, algumas pessoas consegui-ram alcançar o ex-presidente e o envolveram em abraços. Sarney en-trou no ônibus em frente ao Planalto, e passou lentamente junto à mul-tidão. O ex-presidente continuou acenando o lenço branco. No trajeto para a base aérea, uma frota de taxistas, a quem o governo concedera a isenção de impostos para compra de carro, acompanhou-o como uma guarda de honra. A banda de música da Aeronáutica executou a “Valsa do Adeus”.

Sarney caminhou até o avião e parou, instintivamente, no lugar em que sempre recebia continência e o toque de comandante. Nada aconteceu. Apenas silêncio.

“Foi quando senti que não era mais o presidente!”Eram 15 h quando o jato presidencial desceu no aeroporto do

Tirirical, em São Luís. No avião, os filhos Roseana, Fernando e Sarney

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Filho, quatro netos, três ex-ministros, deputados e senadores da bancada maranhense e funcionários do Palácio do Planalto. Pela primeira vez em cinco anos, a tripulação do boeing da presidência desceu toda antes de Sarney e se postou para as despedidas. Seus ajudantes de ordens despoja-ram-se dos talabartes e os ofereceram ao ex-presidente como recordação.

Uma multidão estimada em dez mil pessoas se comprimia no aeroporto. Minutos depois de descer do jato presidencial, Sarney foi carregado pelo povo. A mãe, Kiola, sequer conseguiu chegar perto do filho. Marly perdeu os óculos ao ser arrastada pela onda humana. A casa da família Sarney, na Praia do Calhau, foi literalmente invadida por centenas de populares.

O vice-governador João Alberto, no exercício do cargo de go-vernador, havia decretado ponto facultativo nas repartições públicas, o comércio fechou as portas às 10 h da manhã e a televisão local fez chamadas frequentes para a recepção. Em palanque improvisado na carroceria de um caminhão, Sarney fez um breve pronunciamento:

Passei a faixa ao presidente da República de cabeça erguida. Deixo o país na maior liberdade de sua história. O povo é dono de seu destino. Saí com o carinho do povo brasileiro. Volto à minha casa com a compreensão do povo e das minhas dificuldades.

A recepção foi um bálsamo para Sarney, que, ao chegar à casa do Calhau, encontrou toda aquela gente. Ficou na porta recebendo cum-primentos até o anoitecer. Ainda tinha fila, mas ele precisava sair. Tinha prometido a si mesmo visitar a sepultura do pai, no velho cemitério da cidade. E foi. Conversou longamente em seu silêncio com o homem de quem herdara a capacidade de conciliar – a paciência ele atribuía à mãe. Saiu do cemitério imaginando que a lição que receberia do pai naquele momento seria para que guardasse a alma nas águas do amor.

Como não conseguia dormir, telefonou a um velho companhei-ro, que não atendeu. A secretária, depois de alguns minutos, disse que o companheiro não estava, mas que retornaria depois. Nunca houve a ação. Todos viviam a expectativa do plano de Collor, que havia prome-tido acabar com a inflação com um tiro só. Menos mal que a noite seria curta. Sarney voltou ao quarto e acordou Marly. Precisavam sair para a viagem ao Curupu.

– Vamos nos preparar. Maré não espera. Temos de ir. O Curupu nos espera.

Na manhã do dia 16 de março, tomou café com os filhos. Falou sobre o desejo de descansar, escrever livros, libertar-se da

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política. Depois dirigiu ele mesmo o carro da casa do Calhau até o por-to de Timbuba, onde embarcaria para a Ilha de Curupu. Seguia junto Joaquim Campelo Marques, amigo dos tempos do colégio Marista e seu revisor mais do que qualificado nos tempos da presidência. A pre-sença de Campelo na comitiva dava a possibilidade de conversas sobre livros e literatura. Integrava ainda o seleto grupo o jornalista Napoleão Sabóia, outro grande amigo.

Ao abrir o portão da casa do Calhau, muitos jornalistas o espe-ravam. Sarney lembrou-se de Castello Branco e usou praticamente as mesmas palavras que ouvira do ex-presidente:

“Eu não sou mais notícia. Sou o Sol que desapareceu. Caminhem para o Sol que se levanta.”

No pequeno porto de Timbuba, uma velha casa de palha beira- mangue serve de embarque. Sarney arregaça as calças, coloca as san-dálias e despede-se dos jornalistas. Sobe na canoa empurrada na lama antes de embarcar no barco que o levaria a Curupu. Nada tinha a dizer.

“Não sou mais notícia!”Quando o catamarã já estava partindo, repentinamente voltou ao

porto. Sarney pediu aos amigos Joaquim Campelo e Napoleão Sabóia que o acompanhassem até a ilha do Curupu. Seu primeiro ato foi ti-rar a camisa que vestia e trocá-la por um velho paletó de pijama, tão confortável quanto aquele sapato puído que a gente não tem coragem de jogar fora. Pediu uma latinha de cerveja e apertou a mão de Marly. Estava tudo terminado?

Sentia-me estraçalhado. Mais do que ninguém eu achava que podia ter ido muito melhor. Agora iriam me trucidar. Imaginei que o pior estava por vir: as acusações, as ingratidões. Estava tomado de um profundo sentimento de culpa.

Em cinco anos de governo, o maior problema econômico de Sarney foi controlar a inflação. Foram várias as tentativas, entre elas, o congelamento de preços e a correção automática dos salários. No último ano de governo, a inflação, controlada em níveis moderados até as vésperas da eleição, foi contaminada pelo efeito que mais tarde se chamou de “Risco Lula”, durante o período eleitoral, e pela declaração do presidente eleito, Collor de Mello, de que daria um tiro na testa da inflação. Houve uma disparada da inflação, deixando uma taxa de variação de 1.319%,1 a quarta maior da História.

1 IGP-DI, FGV.

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A balança comercial atingiu 67 bilhões de dólares, a maior até 2002. O desemprego médio no período foi de 3,86%, o menor da História do Brasil – foi atingido também o menor índice mensal, 2,16%. O país registrou crescimento, com 99,11% no PIB per capita e 119,20% no PIB total,2 com uma média anual de 17,44%. A relação dívida/PIB (só havia, na época, dívida externa) caiu de 50% a 28% do PIB, passando em termos absolutos de 105 para 115 bilhões de dólares. Números considerados até excelentes para anos de crise.

Mas a grande conquista fora, sem dúvida, a retomada da prática democrática, com a convocação da Assembleia Nacional Constituinte, a legalização de partidos então clandestinos, a liberdade aos sindicatos, o direito de voto ao analfabeto, o fim da prática da censura, a garantia ao direito de expressão.

Para Sarney, a ilha de Curupu tinha um sentido místico. Imaginou que lá encontraria a cura milagrosa de seus pesares. Perguntou a José Ayres, velho barqueiro da família:

– Como está o mar? – Mais macio que peito de moça!O ex-presidente passou três meses no retiro em Curupu. No pro-

cesso de cura, começou a tomar notas para um livro de memórias que até hoje não concluiu. Sem dinheiro – a exemplo do que ocorreu com milhões de brasileiros, as contas bancárias haviam ficado retidas pelo Plano Collor –, Sarney brincou com Marly imaginando que na ilha poderiam resistir durante meses. A natureza lhes garantiria a comida, pois ali havia bois, peixe, carneiros e galinhas. Ele havia acompanhado pela televisão o anúncio das medidas econômicas.

Sarney estava vacinado contra a depressão que o atacara em 1982, aos 52 anos. Às vésperas de completar 60, era preciso sair daquele buraco negro de pensamentos obsessivos a lhe fechar os horizontes. Era preciso acreditar que havia chegado à Presidência em razão de suas qualidades, e não dos seus defeitos. Era preciso exercer a paciência her-dada de dona Kiola.

Agosto de 2008

“Bem, o que vocês acham que vão me perguntar?”José Sarney vai ser sabatinado pelo jornal Folha de S.Paulo.

Ele tem 78 anos, 50 de parlamento, três mandatos de deputado fe-deral, um de governador de Estado, um de senador da República

2 FGV, em dólares por variação cambial.

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(em seu quinto mandato, o terceiro pelo PMDB do Amapá) e um de presidente do Brasil.

Sarney fez três reuniões exaustivas com poucos assessores antes de sentar-se no auditório da Folha, no shopping Pátio Higienópolis, na capital paulista, na manhã de terça-feira, 26, e enfrentar, por duas ho-ras, as perguntas de jornalistas e do público. Ele tem por hábito carre-gar vários papéis, em que anota ideias e opiniões, para, posteriormente, juntar tudo e constituir a sua.

A disposição para ser um homem aplicado e com enorme paciên-cia para a prática democrática não diminuiu com o passar dos anos. Desde menino Sarney é assim. No Senado, ainda cumpre as obrigações como um novato. Não falta às sessões, e seu gabinete, no 6º andar do Anexo I, continua lotado de gente que o procura para todo tipo de pe-didos e costuras. Ele é mestre em costuras.

Ao longo da vida criou a imagem de homem poderoso, que co-nhece os bastidores, os meandros da política. Os adversários não acre-ditam quando ele diz que é incapaz de cultivar o ódio. Muitos lhe atribuem poderes maquiavélicos. Outros admiram seu estômago desco-munal para acomodar todos os sapos que engoliu na política.

Sarney mora em casa própria no Lago Sul, Península dos Ministros, em Brasília, depois de viver por 30 anos em apartamen-to funcional destinado aos deputados e senadores da República.3 Extremamente disciplinado, é um homem formal na aparência – en-contrá-lo impecável de terno e gravata às 8 h da manhã é mais do que normal. Vai ao Senado de segunda a sexta e não tem qualquer preguiça de pegar um avião e voar para qualquer ponto do Brasil ou do exterior. Considera absolutamente normal viajar por nove horas e ir direto para o trabalho. Fica surpreso com o cansaço dos outros.

Nunca praticou um esporte na vida. Seu negócio é ler. Disciplinado, anota tudo, até nos livros, todos rabiscados. Metódico, nunca falhou com seu artigo semanal para a Folha de S.Paulo, que sai todas as sextas-feiras desde que começou a escrever ali, em 1983 – atividade interrompida durante o período da presidência, de 1985 a 1990.

Não resiste a dar esmolas, assim como faziam seu pai e sua mãe. Mantém uma relação extremamente carinhosa com os filhos e com os netos. Não troca por nada a água-de-colônia Pour un Homme, da marca Caron, à qual é fiel há 40 anos.

3 Como deputado federal, morou de 1960 a 1965 em apartamento funcional. Depois, como senador, de 1971 a 1985 e de 1991 a 1999.

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É o decano do Congresso Nacional. Católico praticante, tem medo do pecado. É hipocondríaco. Costuma viajar com sua bolsinha de remédios e toma uma quantidade espantosa de pílulas todos os dias. É leitor compulsivo de bulas e tem sempre uma receita pronta para os amigos que o consultam sobre dores e indisposições. Também é supers-ticioso – não chega perto de bicho empalhado e de pinguim de geladei-ra e jamais comprará um carro verde. Gosta de contar piadas e histórias picantes. A conversa é sua fortaleza e arma de sedução.

Com a palavra, construiu uma carreira de escritor e político.

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José Ribamar Ferreira de Araújo Costa nasceu na Baixada maranhense, onde o ho-rizonte não tem fim e o olhar se perde pelas planícies. Em tempos de chuva, a paisagem muda e se transforma em lagos e pântanos. Água e amplidão numa serenidade perturba-dora. Zona de transição antes da Amazônia, é aquele pedaço que representa no mapa o “Meio-Norte”, onde acabam as chapadas do Planalto Central e do Nordeste.

O ano era 1930, o dia, 24 de abril, a cidade, Pinheiro, quase um povoado a então remotos 102 quilômetros da capital São Luís. Uma quinta-feira, às 7h30 da manhã. A lua havia nascido às duas horas e 34 minutos e se exibia em quarto minguante. De acordo com o Almanaque Bristol, o tempo seria de “fortes tempestades” em todo o Estado, previsão de impacto zero para seus leitores, uma vez que a chuva costumava cair sem dó nem piedade naqueles dias do ano na Baixada. Abril, chuvas mil. Maio, trovão e raio, rezava o ditado popular.

A jovem Kiola, de 19 anos, sofre com as dores de violentas contrações. Entra em trabalho de parto às 7 h da noite do dia 23. Na luta para dar à luz, ela conta com a ajuda da sogra, Madona, e de Mãe Calu, parteira e ex-escrava. As dores aumentam com o passar das horas, até que, debaixo de chuva forte, o marido, Sarney, sai à procura de ajuda. Volta com outra parteira, mais velha ainda, Dona Severa, que chega à casa de chão de terra ba-tida, os 50 metros quadrados do jovem casal Araújo Costa, carregada em rede de taboca.

CAPÍTULO 2

NAS ÁGUAS DE ABRIL

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As parteiras pouco ou nada puderam fazer; aliás, pouco sabiam, além de dar conselhos e puxar a criança. Mais uma vez, o futuro pai pediu ajuda, agora para o dono da farmácia da cidade, que lhe re-ceitou duas injeções de pituitrina, um hormônio capaz de acelerar as contrações, largamente utilizado na época. Ainda assim, a jovem Kiola sofreu madrugada afora e somente às 7h30 da manhã do dia 24 Madona anunciou:

– Nasceu José Adriano.O pai, Sarney, corrigiu imediatamente: – Não, o nome tem que ser José Ribamar!Tratava-se do cumprimento da promessa que fizera quando o par-

to se anunciou difícil. O nascimento de mais um José Ribamar (nome, popularíssimo no Estado, do santo protetor do Maranhão, São José de Ribamar) virou notícia de jornal. Com tiragem para 32 assinantes, o Cidade de Pinheiro registrou em nota de primeira página na edição do domingo, dia 27:

Nascimentos – JOSÉ – Dr. Sarney de Araújo Costa, digno pro-motor público, esteve com o seu lar feliz em festas no dia 24 deste mês. É que a sua Exma. esposa D. Kiola de Araújo deu à luz ao seu primogê-nito, que ao nascer recebeu o nome de José. Ao casal Araújo Costa apre-sentamos os nossos mais sinceros parabéns e fazemos ardentes votos ao Criador para que o inocente José tenha sempre uma vida feliz cercado das melhores ternuras dos seus distintos progenitores.

Na mesma edição, uma pequena nota revela em que tempo vivia a pequena Pinheiro ao nascer José Ribamar:

“Pinheiro está progredindo. Dona Manuela adquiriu uma má-quina de costura que faz pontajur e 47 pontos de ir e voltar.”

José Ribamar nasceu “empelicado” e com duas voltas do cordão umbilical enroladas no pescoço. Para dar sorte, as mulheres o coloca-ram numa bacia de água morna com todas as joias da casa: alianças e dois antigos cordões de ouro. Durante 20 dias, o menino não saiu do quarto fechado, até que Kiola o levou à igreja e o apresentou ao padroeiro de Pinheiro, Santo Inácio. O batismo aconteceu na igreja de São Bento, em 8 de dezembro daquele ano, dia da maior festa religiosa da época, consagrada à Virgem da Conceição, tendo como padrinhos os avós paternos, José Adriano e Rita Amélia, a Madona.4

4 Na cerimônia de batismo, os avós paternos foram representados por Dulce e Ivan de Araújo e Souza – primo do Dr. Sarney Costa. Ivan, no futuro, seria desembargador no Rio de Janeiro. Os nomes constam da certidão de batismo.