3
Criação e mercado Livro analisa história da arte segundo o comércio das obras Natureza desvendada Biólogo e físico escrevem com leveza sobre suas especialidades Pág. S3 Pág. S8 Visuais S abátic o o o o UM TEMPO PARA A LEITURA estadão.com.br SARTRE, PRÓXIMA PARADA Decorridos 30 anos de sua morte, o instável legado do pensador e ícone da rebeldia de 1968, nas análises de Gilles Lapouge e Silviano Santiago. E os novos dilemas da esquerda, em entrevista de Bernard Henri-Lévy. Págs. S4 e S5 Ciência DIVULGAÇÃO S1 SÁBADO, 10 DE ABRIL DE 2010 ANO I – Nº 5 O ESTADO DE S. PAULO

SARTRE, PRÓXIMA PARADA · SARTRE, PRÓXIMA PARADA ... do,Cuba.Tantoscadáveres,tantasrecorda- ... A visita de Jean-Paul Sartre ao Brasil, em 1960, mobilizou o

  • Upload
    voliem

  • View
    273

  • Download
    2

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: SARTRE, PRÓXIMA PARADA · SARTRE, PRÓXIMA PARADA ... do,Cuba.Tantoscadáveres,tantasrecorda- ... A visita de Jean-Paul Sartre ao Brasil, em 1960, mobilizou o

Criação e mercadoLivro analisa história da artesegundo o comércio das obras

Natureza desvendadaBiólogo e físico escrevem comleveza sobre suas especialidades

Pág. S3

Pág. S8

Visuais

SabáticooooUM TEMPO PARA A LEITURA

estadão.com.br

SARTRE,PRÓXIMAPARADADecorridos 30 anos de suamorte, o instável legado dopensador e ícone da rebeldiade 1968, nas análises de GillesLapouge e Silviano Santiago. Eos novos dilemas da esquerda,em entrevista de BernardHenri-Lévy. Págs. S4 e S5

Ciência

DIVULGAÇÃO

%HermesFileInfo:S-1:20100410:S1 SÁBADO, 10 DE ABRIL DE 2010 ANO I – Nº 5 O ESTADO DE S. PAULO

7 8 9 10 11 12

Page 2: SARTRE, PRÓXIMA PARADA · SARTRE, PRÓXIMA PARADA ... do,Cuba.Tantoscadáveres,tantasrecorda- ... A visita de Jean-Paul Sartre ao Brasil, em 1960, mobilizou o

SILVIANO SANTIAGO

Jean-Paul Sartre era um buraco escandalo-so na obra de Jacques Derrida, o principalfilósofo que se lhe segue na cronologia fran-cesa. Derrida discorrera sobre todos os pre-decessores e contemporâneos, no entanto,ao final do milênio, o silêncio ainda afugen-tava o carismático Sartre. Por ocasião docinquentenário da revista Les Temps Moder-nes, Claude Lanzmann solicita a tão espera-da leitura ao pensador da desconstrução.

Definitivas são as palavras que abrem o en-saio: “Chega o dia da entrega, e não estoupronto. Algum dia estive preparado?”

Algum dia alguém esteve preparado paraescrever sobre Sartre? A obra livresca ganhapeso pela força dos deslocamentos ideológi-cos. As intervenções públicas são prova deinstabilidade política. O leitor ocasional na-vega sem norte por sua vida e obra; o espe-cialista não tem, ou (ainda) não sabe comodomar mobilidade e instabilidade. Leiturasindividuais são precá-rias. Alguém se prepa-ra para a síntese?

Numa cultura ondepredomina a conten-ção nas reações e a li-totes no estilo, Sartreé a exceção, assim co-mo o dramaturgoJean Racine e o poetaPaul Valéry são a re-gra. Ele é tão luxurioso em estilos quantoo renascentista François Rabelais e tão ex-cessivo ideologicamente quanto o con-temporâneo Louis-Ferdinand Céline.

A sucessão dos livros publicados, dos des-locamentos ideológicos e das intervençõespolíticas trabalha à semelhança dum com-plicado, preciso e lógico mapa ferroviáriofrancês. Livros, deslocamentos e interven-ções tentam domar pela emoção e a racio-nalidade do instante o indomável territórioda vida e da história, conduzindo o consu-

lente a ramificações em multidireções, cujatrama só ela desenharia a complexidade daexistência dum indivíduo. Daquele indiví-duo que se quis “sem importância coletiva”e a teve por causa dos excessos e da luxú-ria. Seu sucessor não é o nietzschiano De-leuze nem o desconstrucionista Derrida.Tampouco é algum “novo filósofo” midiáti-co. É o multiforme Michel Foucault.

Pela exposição dessas razões desarrazoa-das é que se devem ressaltar alguns traços

permanentes do legadosartriano. Alheio aos sis-temas fechados da filo-sofia, sempre seguro,no entanto, das suasconvicções político-ideológicas por antípo-das que se apresentas-sem em relação ao pas-sado recente, Sartre sedestaca pelo modo co-

mo exerceu a crítica da literatura. Suas leitu-ras de Baudelaire, Genet e Flaubert se torna-ram marcos. As coleções de ensaios cultu-rais, intituladas Situações, são obrigatórias.

Por duvidar da racionalidade imposta pe-la tradição filosófica e religiosa à experiên-cia existencial e por ser observador ferinodo drama de viver, Sartre tem momentosluminosos na sua dramaturgia, com desta-que para Huis-clos (Entre Quatro Paredes).Destaque ainda para As Mãos Sujas.

Também tem ele dois momentos notá-

veis na ficção. Refiro-me ao romance ANáusea e ao autobiográfico As Palavras. ANáusea é um romance dividido em duas par-tes. Na primeira, Roquentin investiga a fun-do a vida do medíocre marquês de Rolle-bon para escrever sua biografia. Tão bem jáconhece o objeto de estudo que já não seconhece a si mesmo. Decide, então, assassi-nar no papel o marquês. E passa a anotar odia-a-dia da própria vida nas folhas de pa-pel destinadas à biografia do marquês.

A cena culminante é tomada de emprésti-mo ao personagem Lafcadio, no romanceOs Porões do Vaticano, de André Gide. Na es-crivaninha, a folha de papel com quatro li-nhas escritas e um canivete. Roquentinnão hesita. Corta a palma da mão com a lâ-mina aberta. Enxerga com satisfação a man-cha de sangue. Acompanhemos o texto:“Quatro linhas escritas numa folha brancade papel, uma mancha de sangue, eis o quefaz uma bela lembrança”. A mancha de san-gue desmente a certeza da história burgue-sa de responsabilidade dos “salauds” e jus-tifica a estória dum indivíduo descompro-missado. Que esta seja “bela e dura como oaço e leve as pessoas a terem vergonha daprópria existência”! A história coletiva epessoal é uma folha manchada de sangue.

SILVIANO SANTIAGO É ESCRITOR, CRÍTICO

LITERÁRIO. AUTOR, ENTRE OUTROS, DO ROMANCE

HERANÇAS (ROCCO) E COLUNISTA DO SABÁTICO

O leitor ocasionalnavega sem norte por

suas páginas; já oscríticos não aprenderam

bem como domá-lo

GILLES LAPOUGECORRESPONDENTE / PARIS

Já faz 30 anos que ele nosdeixou,o homenzinho ex-tenuado que se via cami-nhar penosamente, aoanoitecer e à noite mes-mo, pelas ruas de Mont-parnasse, desajeitado, de-bilitado, cego e agarradoaobraçodeumajovem de-votada à sua fraqueza.

“Está vendo”, dizia ele sorrindo para sua com-panheira, Simone de Beauvoir, “é um espan-to como eu faço sucesso com as senhoritasdesde que fiquei velho e cego.” Será que elefaz o mesmo sucesso com jovens de 2010?Será que ainda o conhecem? Leem seus li-vros? Procuram uma bússola em sua obra?Quando vivo, ele gozava uma celebridadeinaudita. Essa foi a primeira contradição des-se homem tão racional que passou a vida secontradizendo. Muito jovem, na École Nor-male Supérieure, ele expressou seu desprezopelo conceito de “grande homem”. Ora, oque ocorreu em seguida? Durante a Guerrada Argélia, oficiais pediram a De Gaulle, en-tão chefe de Estado, para perseguir Jean-Paul Sartre (1905-1980), que havia convoca-do os jovens à “insubmissão”. Resposta dogeneral De Gaulle: “Não se prende Voltaire!”Passaram-se alguns anos e Sartre ganhou oPrêmio Nobel de Literatura (1964).

Ele o recusou. Não podia fazer escala emum país qualquer sem que os estudantes oaclamassem. Quando ele morreu, seu funeralno cemitério de Montparnasse, em Paris, foiassistido por uma multidão cosmopolita, porvezes em lágrimas. Desde Victor Hugo, ne-nhumcemitério francêsconhecerasemelhan-te delírio.Voltaire, VictorHugo, o PrêmioNo-bel: confessemos que, para um homem quesempre recusou o conceito de “grande ho-mem”, Jean-Paul Sartre errou o alvo.

Ele errou outros alvos. Teria conseguidoao menos sua sobrevivência literária? Nestemomento, ele está apagado. Ele se distan-ciou. Esse distanciamento se explica. Sartre,desde sua juventude, ou melhor, as partir dos25 anos (não antes), instalou-se no coraçãoda sociedade dos homens, de sua tragédia.Ele se fundiu a ela. Em vez de elaborar umaobra altiva, glacial e refugiada nas alturas im-passíveis da filosofia ou da literatura, ele quisser ao mesmo tempo o “contemporâneo” detodos os homens, o “vigia”, a testemunha e ocombatente das lutas de seu tempo.

Mas esse tempo se foi. Já não existe. Oscombates da segunda metade do século 20 seextinguiram. Tudo aquilo foi varrido comofolhas de outono pelos ventos da História.Os gritos, as indignações ou os entusiasmosde Jean-Paul Sartre foram levados com a épo-ca em que eles foram proferidos. Quais fo-ram as grandes causas que Jean-Paul Sartredefendeu, combateu ou ilustrou? O comunis-

mo, a guerra fria, a descolonização, o 3º Mun-do, Cuba. Tantos cadáveres, tantas recorda-ções mortas e que vão recuando, recuando...

Sartre empenhou sua honra em “esposar”seu tempo. Não espanta que ele tenha naufra-gado no mesmo momento em que esse tem-po expirava, na virada dos anos 1990.

Circunstância agravante: Sartre não só sebateu como um Dom Quixote contra moi-nhos de vento que deixaram de girar haviamuito tempo, como ainda se equivocou comuma constância, com uma regularidade sur-preendente. Para se equivocar o tempo todoe com tal talento, sem dúvida, é preciso umfaro que beira a genialidade.

Ele foi sempre do contra, sempre na con-tramão: antes da guerra, jovem superdota-do, ele só queria conhecer o pensamento, aliteratura, a filosofia. A política? Bá! Isso écoisa para simplórios. Ele lia Voltaire, Faulk-ner, Dos Passos. Ele foi a Berlim estudar osfilósofos alemães (Husserl, Hegel, Heideg-ger) e não via nada. Hitler, não conheço! Aguerra de 1939. Ele serviu no ridículo corpode “meteorologia militar”: assim, em vez dese arrastar na lama, ele passou a guerra comos olhos no céu, nas nuvens. Veio o debaclefrancês, a invasão nazista.

Político. Ele teria se comovido? Seja co-mofor, enquanto Camus e Malrauxlu-tavam na Resistência, Sartre escreviaseu enorme tratado de filosofiaL’Etre et le néant (O Ser e o Nada) nasmesas do Café de Flore. Para queele despertasse para o “político”, ecomo um furioso, seria preciso es-perar 1945. Essa nova paixão não oabandonaria mais. Dali em diante,ele estaria em todos os combates.Mas quais combates? Ele fazia zi-guezagues. No começo, foi deumaesquerdanãocomunista.De-pois,ei-lo“companheiro deestra-da” e companheiro frenético: “Omarxismo é o horizonte intrans-ponível deste tempo”, vaticinou.

Ele era antiamericano e antico-lonialista, mas, aqui também haviaum paradoxo ou um equívoco. Elese tornou inimigo frenético do general DeGaulle, que era, no entanto, o “grande desco-lonizador” francês e o campeão do antiameri-canismo (saída da Otan, denúncia da Guerrado Vietnã ...) Não se terminaria de enumeraras mancadas do grande Sartre que culmina-ram em sua grotesca virada para Cuba por-que elehavia compreendido que lá, nosTrópi-cos, estava se construindo a felicidade da hu-manidade! A velhice chegou. Chegaram tam-bém as revoltas de maio de 1968. E lá estavaSartre despertado com sobressalto de seu“sono dogmático”.

Aqueles estudantes o encantaram. Ele semeteu em suas escolas, ouviu suas lições,admirou seu saber. Ele compreendeu que oscomunistas eram “nulos” e que era precisoinventar uma nova extrema esquerda trots-

kista, ou maoista, ou libertária, pouco impor-tava, desde que fosse extrema. Em Billan-court, viu-se o velho encurvado sobre umtonel, diante das fábricas Renault, pregandoa revolta absoluta para operários que nãocompreendiam nada daquilo. Muito patéti-co. Muito belo. Depois, a cegueira. A deca-dência. Uma decadência nobre. Sartre nãopodia mais escrever. Ele falava e falava.

Conclusões: em política, isto é, no campoem que ele investiu mais passionalmente, ma-ciçamente, o balanço é uma catástrofe. Comuma dialética prodigiosa, uma linguagem ad-mirável, ele se equivocou em tudo, enquantoseu pequeno camarada da École Normale Su-périeure, Raymond Aron, com o estilo maissem graça do mundo, viu quase tudo.

Estruturalismo. Mas, então, onde está a ge-nialidade de Sartre? Em sua literatura? Emseu pensamento? Seu pensamento é podero-so. Mas surgiu um grande problema para essepensamento quando apareceram os chama-dos “estruturalistas”: Claude Lévi-Strauss,Roland Barthes, Michel Foucault, Louis Al-thusser. Um pensamento novo se alçava àglória: se o de Sartre estaca atravessado delado a lado pelo conceito de “História”, osestruturalistas tiram a História de campo.Eles só reconheciam o “sistema”. Nada de“sujeito”. O choque foi rude. Sartre já nãotinha a supremacia.

Resta a literatura, mas, aí também, o ba-lanço, por brilhante que seja, é desigual.Sartre se consagrou no teatro. Sua primei-

COM DISCRIÇÃOAo contrário do quese poderia imaginar,os 30 anos da mortede Sartre não estãoprovocando umaenxurrada editorialna França. Em outrospaíses – Brasil incluí-do – a situação é amesma. O últimolançamento dedestaque foi Talkingwith Sartre: Confes-sions and Debates(Yale UniversityPress, 2009), de JohnGerassi, que reúneextratos de diálogosentre os dois amigos,registrados noperíodo 1970-74.

Trabalho instável e atividadepolítica dificultam balanços

A BUSCACONTÍNUAPOR UMASÍNTESE

Capa

**

Jean-Paul Sartre, que morreu há três décadas, em 15 deabril de 1980, foi o filósofo mais célebre do seu tempo.Apesar disso, triunfou poucas vezes – e fracassou comfrequência. O que terá ficado de sua controversa obra?

**

UM HOMEM E SUASCONTRADIÇÕES

O pensador,por Loredano.Dívida com afilosofia alemãde autores comoMartin Heidegger

%HermesFileInfo:S-4:20100410:

S4 sabático SÁBADO, 10 DE ABRIL DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO

Page 3: SARTRE, PRÓXIMA PARADA · SARTRE, PRÓXIMA PARADA ... do,Cuba.Tantoscadáveres,tantasrecorda- ... A visita de Jean-Paul Sartre ao Brasil, em 1960, mobilizou o

ra peça, Huis Clos (Entre Quatro Paredes), égenial, as outras são fortes, mas embaladasem formas herdadas daquele século 19“burguês” que ele detestava.

Os romances? Uma obra-prima: seu pri-meiro livro, La Nausée (A Náusea). Depois,Les Chemins de la Liberté (Os Caminhos da Li-berdade), um belo esforço, mas uma forma doséculo precedente e ele se atrapalhou ao pon-to de não conseguir nem sequer terminá-lo.Ele se recuperou tarde com umpequeno gran-de livro, Les Mot (As Palavras), no qual nosfala de sua infância, de sua formação. Genial.Geniais também as biografias que consagroua alguns escritores – Baudelaire, Jean Genet(Saint Genet) e, sobretudo, Flaubert, L’Iidiotde la Famille (O Idiota da Família), monumen-to monstruoso de 2 mil páginas que permane-cerá, sem dúvida, como sua maior obra.

Aposta. Será possível esboçarmos uma ten-tativa de explicação? Como um tal gênio pro-duziu na ação, no pensamento ou nas “pala-vras” tantas obras-primas malogradas? Bizar-ramente, esse homem que devia ter sido um“vigia do presente e do futuro” não com-preendeu nada de seu tempo. Ele vasculhavaas nuvens e os céus da véspera. Ele perdeusua bela aposta porque nunca chegou a ver-ter sua arte, seu pensamento, nos moldes damodernidade. No teatro, ele escrevia comoAlexandre Dumas ou Scribe no mesmo ins-tante em que Brecht, Antonin Artaud, Be-ckett, Ionesco, Adamov inventavam o teatromoderno. No romance, admirava Faulknerou Joyce, mas escrevia como Roger Martin

du Gard ou Paul Bourget.Último paradoxo: esse homem cujo gê-

nio radiante teve tanta dificuldade emse encarnar, esse escritor cujas análi-

ses luminosas eram tão frequente-mente equivocadas, tolas até, nostocava, contudo. O adeus que o po-vo de Paris lhe deu no cemitério deMontparnasse numa antiga pri-mavera, as lágrimas que homensemulheres de Estocolmo ou Mar-selha, de Boston ou Madri verte-

ram naquele dia eram justas.Esse homenzinho havia sido

uma das figuras mais tocan-tes de seu século. Seu cora-ção era o coração pulsante do

tempo. Ele havia escolhido acoragem e a generosidade,

masseextraviou noslabi-rintos de uma época

“insensata”. Aomenos,querse-

ja em seus engaja- mentos polí-ticos delirantes, ou na sua ambiciosa fi-losofia, em sua literatura também, ele sem-pre jogou o grande jogo. O que torna grandeseu fracasso. Outros que jogaram jogos me-nores que ele conservaram melhor seu rumo.

Jean-Paul Sartre por vezes triunfou ecom frequência fracassou. Mas mesmoseu fracasso foi grandioso. E quem sabe senum outro tempo, um tempo ainda masca-rado pelos ouropéis de nosso jovem sécu-lo, não verá resplandecer de novo, em suaglória, a visão do grande Sartre? / TRADUÇÃO

DE CELSO M. PACIORNIK

Cronologia e livros no Brasil

Leia a íntegra deste texto

Do Suplemento Literário

VISITANTE ILUSTREA visita de Jean-PaulSartre ao Brasil, em1960, mobilizou oSuplemento de modoparticular; foram vá-rios artigos dedicadosa ele. Na edição do dia3 de setembro, CasaisMonteiro – ensaísta,poeta e professorportuguês, que seradicou no País em1954 e aqui morreuno ano de 1972 – jáhavia escrito sobrea participação deSartre no Congressode Crítica, em Recife.

FICHA DO AUTORNome: Bernard-Henri LévyIdade: 61 anosOrigem: Béni-Saf,na Argélia

estadão.com.br/e/s4

estadão.com.br/e/s5

O encontro entre marxismoe existencialismo e o debateem torno do problemade uma ficção nacionalverdadeiramente popular

10.9.1960

“ESQUERDA FRANCESAESTÁ MORIBUNDA”

ADOLFO CASAIS MONTEIRO

Não será tão cedo que se desvanecerão osmuitos equívocos por via dos quais, porexemplo, têm sido perguntado a Sartre coi-sas como estas: por que não se suicidou aos30 anos, se os existencialistas andam sujos,se dançavam nas caves etc. É o que o existen-cialismo vem a ser, para muita gente que faz

a sua cultura pelas secções de anedotas daimprensa, mais uma extravagância de france-ses decadentes. Pior, todavia, do que tais in-genuidades, é a má fé dos que, não tendo odireito de ignorar que o existencialismo éuma corrente fundamental do pensamentomoderno, também pretendem reduzi-lo agraciosas anedotas, coisa sem dúvida maisfácil que discuti-lo.

Uma senhora que o acaso sentou a meulado, na conferência sobre o sistema colo-nialista que Sartre fez no instituto Supe-rior de Estudos Brasileiros, ensinou-meque Sartre, dantes, era reacionário, masagora não; ante o meu tímido protesto,acrescentou que ele abjurara o existencia-lismo. Perante tamanha certeza, e com re-ceio de ser novamente desmentido, nãolhe citei uma frase que se acha no prefáciodo último livro do filósofo, e que diz assim:“Considero o marxismo a inultrapassávelfilosofia do nosso tempo (...) e tenho aideologia da existência e o seu método“compreensivo” como uma enclave do pró-prio marxismo, que ao mesmo tempo oengendra e o recusa” (Critique de la raisondialectique, pág. 9/10).

Por que cito a minha interlocutora e estafrase? Porque, aquela e esta, nos elucidamdesde logo sobre muita coisa, inclusive as

reações contraditórias das mais diversas gen-tes. É certo que muitas pessoas só conhecemde Sartre a obra literária e supõem o existen-cialismo mais uma escola literária; a idéia deSartre ser um filósofo pode não ter para elasum sentido muito claro. Outros, muito diver-samente, sabem que Sartre foi (como toda agente) largamente insultado por todos osstalinistas, e é, portanto, um reacionário...Estas duas noções sem sentido, mas muitocorrentes, não preparam evidentemente, assuas vítimas para se acharem diante dum ho-mem que lhes fala em termos que não ex-cluem o existencialismo nem o marxismo.Que isto se pode entender, mostra-o a brevemas excelente síntese de José GuilhermeMerquior, no Suplemento do “Jornal do Bra-sil”, de 27 de agosto, quando diz: “Uma huma-nidade condenada à liberdade se responsabi-liza pela História; era lógico assim que o pen-samento de Sartre desembocasse no marxis-mo, e mais ainda, que diante de um marxis-mo cristalizado ele erguesse uma filosofia dereconcretização marxista”.

Bernard-Henry Levy fala da atual crise dos progressistas

ANDREI NETTOCORRESPONDENTE / PARIS

Há pelo me-nos 30 anos,intelectuaisdiscutem aconsistênciae a atualida-de ou não determos co-mo esquer-

da e direita. Agora, filósofos e cientistas po-líticos parecem mais empenhados em reno-var outro debate: a própria relação com aesquerda. Proliferam pelas livrarias de Pa-ris títulos sobre o divórcio definitivo entreos intelectuais e o pensamento progressis-ta, para muitos sintoma da migração domarxismo ao neoconservadorismo.

Em Le Procès des Lumières – Pourquoi leMonde Vire à Droite (Seuil), o cientista polí-tico, historiador e ensaísta Daniel Linden-berg discorre sobre a aproximação crescen-te entre o pensamento conservador e o libe-ralismo econômico. E conclui: estamos emguerra. De um lado, afirma, estão os defen-sores da herança iluminista, progressistaspor natureza. De outro, os contrarrevolu-cionários, regressistas por definição.

Em Les Maoccidents – Un Néoconservatisveà la Française (Editora Stock), Jean Birn-baum segue a mesma linha acusatória.Aponta intelectuais como o filósofo AndréGlucksmann, um dos expoentes da “nova fi-losofia” de 1977, de esquerda, que 30 anosdepois se tornou cabo eleitoral de Sarkozy.Por sua vez, em Les Intellectuels Contre laGauche (Agone), Michael Christofferson,historiador, Ph.D. pela Universidade Colum-bia e professor da Universidade da Pensilvâ-nia, tenta entender como a intelectualidadede esquerda em um país como a França mi-grou do radicalismo contemporâneo, modosartriano – marcado pela defesa da classeoperária –, ao progressismo midiático.

E há Bernard-Henri Lévy, com De la Guer-re en Philosophie (Grasset), no qual esboçaa visão de que o exercício da filosofia pres-supõe o enfrentamento violento de ideias.De volta à filosofia após a publicação deuma série de ensaios nos últimos anos, Lé-vy falou ao Estado, em Paris, quando res-pondeu às críticas a seu livro e abordou ou-tro tema, espinhoso: a relação entre os inte-lectuais e o ideário de esquerda.

● Como o senhor filosofa?A tese essencial do livro é que a filosofia éuma guerra, não é um exercício sereno. Tra-ta-se de fixar compromissos, mas tambémse trata de um enfrentamento ideológica eculturalmente violento. Falo da violênciadas ideias, do choque de ideias.

● Seu livro seria muito bem acolhido pelacrítica, imagino, se não houvesse um trecho

no qual o senhor aborda Jean-Baptiste Botul,autor inventado por um jornalista, FrédéricPagès. O que Botul e toda essa polêmica re-presentam para o senhor?O autor existe e o livro também. Não há po-lêmica. É um autor que se chama na realida-de Pagès e que assinou seu livro como Bo-tul. Isso não muda nada. O livro existe e aideia que ele defende também.

● O senhor está em meio a uma guerra deideias. É preciso combater as críticas?Quando digo que a filosofia é uma guerra,não estou dizendo que é preciso fazer umaguerra contra um autor que tirei da obscuri-dade. A guerra é com os autores contra osquais eu me oponho, que defendem ideiasdiferentes das minhas. É essa a batalha dasideias. São elas que fazem a guerra.

● O senhor é um crítico da universidade e,além disso, é alguém de esquerda. Muitosestão criticando a sua obra em função desteerro. É oportunismo?As pessoas lutam com as armas que têm. Émuito interessante que se critique o meu li-vro a partir desta ideia. Quando observomeus erros ao longo dos anos, os verdadei-ros erros, de fundo e de pensamento, vejoque não são muito numerosos. Em umaépoca em que toda a intelligentsia se ligavaa Sarkozy, eu não o fiz. Na época em quetrês quartos da intelligentsia estava cega so-bre o genocídio em Darfur, eu fazia partedo grupo que o denunciava. Tive razão so-bre Barack Obama. Eu o anunciei, em umtexto que se chamava Black Clinton, quatroanos antes de sua eleição. Isso tudo é irri-tante. Alguém que erra tão pouco, que é tãolivre quanto eu... Não tenho nenhum com-promisso com o poder. Não sou comprávelpor nenhum poder. Alguém como eu é exas-perante. Quando se encontra uma pequenabrecha, uma pequena falha em um homemlivre, que se engana pouco sobre o essen-cial, as pessoas se atiram sobre como umpredador sobre sua presa.

● Isso é guerra. É guerra honesta?Não. Seria mais interessante me atacar so-bre minhas posições sobre Althusser, ou so-bre a minha tese. O que defendo nessaspoucas linhas (em que cita Botul) é que osgrandes filósofos têm corpos, que não sãopuros espíritos, cérebros etéreos, mas queseu pensamento é tributário de suas fisiolo-gias. É uma tese. Posso estar errado. Masseria mais interessante discuti-la.

● Como a obra de Botul foi parar em suasmãos? O senhor leu esse livro?Sim. Li como leio muitos outros livros, rapi-damente. O que me interessa mais é o meupensamento, as minhas ideias. Sou comoum pintor. Não passo duas horas a me per-guntar o que há dentro do tubo de tinta. Eutomo a tinta em mãos e jogo na tela. Um li-vro, para mim, é como um tubo de tinta. Se

suas ideias vêm ao encontro das minhas, su-portam as minhas teses, eu as uso.

● O que significa ser de esquerda hoje?É preferir, por exemplo, a desordem à injus-tiça. Há pessoas que dizem: “Não mexa nasinjustiças, porque vai desorganizar a socie-dade.” Prefiro desorganizar a sociedade,mas corrigir a injustiça.

● A bandeira brasileira ostenta o lemaOrdem e Progresso.Nossa, eu lhes aconselho mudar a bandeirae escrever “Justiça e Progresso”. Seria me-lhor para o Brasil. E estaria mais de acordocom o que ele é, este grande país. E tam-bém de acordo com o presidente nada malque vocês têm, que é Lula.

● Lula apertou a mão de Kadafi ano passadoe chamou Ahmadinejad de “amigo”.Eu ignorava isso. É um erro. Ahmadinejadnão pode ser amigo de Lula. É um homemde extrema direita. Suas referências ideoló-gicas são os anos 30 alemães, o pensamen-to nazista. É preciso informar Lula.

● O senhor concorda com a ideia de que exis-te um divórcio crescente entre os intelectuaise o pensamento de esquerda?Não. Há oportunismo de um ou outro... Al-guns intelectuais se consideram mais vir-tuosos que outros. Quando são cortejados,ficam fascinados. Não acho que exista umdivórcio entre a intelectualidade e a esquer-da. O que é certo, na França, é que existeum divórcio entre a esquerda e o pensa-mento. É uma esquerda moribunda.

● Lindenberg diz que a intelectualidade recu-sa o ideário iluminista e a ideia de Progressohoje. O que o senhor pensa a respeito?Eu não recuso nem o iluminismo, nem oprogresso.

● O senhor é uma exceção?Não creio. Mas é verdade que existe umasombra no iluminismo. O iluminismo nãoé apenas luminoso. Podemos cometer cri-mes em nome do progresso. Já aconteceu.Sou amante do iluminismo, nele estão asminhas raízes intelectuais. Mas eu sei, aomesmo tempo, que ele tem uma face negra.

● É o tema de La Barbarie à Visage Humain(1977), seu mais importante livro. Qual é aforça atual de uma obra como essa?O que é preciso guardar dela é que nin-guém fará, em lugar do homem, o trabalhode construir a própria liberdade. Não é pos-sível contar com nenhuma providência lai-ca ou nenhum recurso religioso para fazero trabalho em seu lugar. A barbárie existegraças ao que eu chamava de “messianis-mo profano”, as filosofias da História, oprogressismo entendido como “a Históriaque caminha sozinha”. É a ideia de quenão podemos fazer nada além do que sen-tar e esperar o futuro que canta. Há ver-sões de esquerda e de direita desse fenô-meno. A de direita é a ideia da mão invisí-vel do mercado, que conduz a sociedadeindependentemente do que possa aconte-cer. A de esquerda é a mão invisível da dia-lética, que conduz a sociedade em direçãoà sociedade “sem classes”, igual e melhor.Creio que essas duas visões são terríveis.Os homens têm uma tarefa, que é criar aprópria história, de não se deixar levarpor nenhuma dessas visões.

estadão.com.br

AINDASARTRE

estadão.com.br

DE LA GUERRE ENPHILOSOPHIEAutor: Bernard-Henri LévyEditora: Grasset(128 págs., € 12,50 + frete,na Amazon francesa)

O SUPLEMENTO LITERÁRIO CIRCULOU

NO ESTADO ENTRE 1956 E 1974. FOI MANTIDA

AQUI A ORTOGRAFIA ORIGINAL DO ARTIGO.

O ESTADO DE S. PAULO SÁBADO, 10 DE ABRIL DE 2010 sabático S5