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política de atenção à saúde do homem no Brasil: os paradoxos da medicalização do corpo masculino* | 1Sérgio Carrara, 2Jane A. Russo, 3Livi Faro | Resumo: Este artigo trata do lançamento da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem pelo governo brasileiro, em 2008. Analisamos as ações da Sociedade Brasileira de Urologia (SBU) nos anos que precederam o lançamento dessa política, e sua atuação durante sua implantação, focalizada na caracterização da disfunção erétil como problema de saúde pública. Examinamos em seguida o documento “Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (princípios e diretrizes)”, disponibilizado pelo Ministério da Saúde em agosto de 2008. A partir desses dados, buscamos discutir o modo como o discurso dos especialistas (no caso, os médicos urologistas) se articula ao discurso militante dos movimentos sociais, tendo como objetivo a medicalização do corpo masculino. Argumentamos que tal objetivo, sustentado na afirmação do direito à saúde, implica a ideia de uma masculinidade em si “insalubre”, e visa, ao contrário das políticas voltadas para as mulheres e outras minorias, ao “desempoderamento” do sujeito à qual se dirige. Palavras-chave: sexualidade masculina; saúde do homem; medicalização. 1 Doutor em Antropologia Social, professor adjunto do Instituto de Medicina Social da UERJ; Coordenador Geral do Centro Latino-americano em Sexualidade e Direitos Humanos/IMS/UERJ; bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. Endereço eletrônico: [email protected]. 2 Doutora em Antropologia Social, professora adjunta do Instituto de Medicina Social da UERJ; Coordenadora para o Brasil do Centro Latinoamericano em Sexualidade e Direitos Humanos/IMS/UERJ; bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. Endereço eletrônico: [email protected]. 3 Mestre em Saúde Coletiva, Instituto de Medicina Social da UERJ; pesquisadora do Centro Latino-americano em Sexualidade e Direitos Humanos/IMS/UERJ. Endereço eletrônico: [email protected]. Recebido em: 01/09/2009. Aprovado em: 18/09/2009. | Sérgio Carrara, Jane A. Russo e Livi Faro |

Saúde do Homem

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Saúde do homem

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Page 1: Saúde do Homem

poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutededo homem no Brasilos paradoxos da medicalizaccedilatildeo do corpomasculino| 1Seacutergio Carrara 2Jane A Russo 3Livi Faro |

Resumo Este artigo trata do lanccedilamento da PoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem pelogoverno brasileiro em 2008 Analisamos as accedilotildees daSociedade Brasileira de Urologia (SBU) nos anos queprecederam o lanccedilamento dessa poliacutetica e sua atuaccedilatildeodurante sua implantaccedilatildeo focalizada na caracterizaccedilatildeo dadisfunccedilatildeo ereacutetil como problema de sauacutede puacuteblicaExaminamos em seguida o documento ldquoPoliacutetica Nacional deAtenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepios ediretrizes)rdquo disponibilizado pelo Ministeacuterio da Sauacutede emagosto de 2008 A partir desses dados buscamos discutir omodo como o discurso dos especialistas (no caso os meacutedicosurologistas) se articula ao discurso militante dos movimentossociais tendo como objetivo a medicalizaccedilatildeo do corpomasculino Argumentamos que tal objetivo sustentado naafirmaccedilatildeo do direito agrave sauacutede implica a ideia de umamasculinidade em si ldquoinsalubrerdquo e visa ao contraacuterio daspoliacuteticas voltadas para as mulheres e outras minorias aoldquodesempoderamentordquo do sujeito agrave qual se dirige1048680 Palavras-chave sexualidade masculina sauacutede do homemmedicalizaccedilatildeo1 Doutor em AntropologiaSocial professor adjunto doInstituto de Medicina Social daUERJ Coordenador Geral doCentro Latino-americano emSexualidade e DireitosHumanosIMSUERJ bolsista deprodutividade em pesquisa doCNPq Endereccedilo eletrocircnicocarraraimsuerjbr2 Doutora em AntropologiaSocial professora adjunta doInstituto de Medicina Social daUERJ Coordenadora para oBrasil do Centro Latinoamericanoem Sexualidade eDireitos HumanosIMSUERJbolsista de produtividade empesquisa do CNPq Endereccediloeletrocircnico jrussoimsuerjbr3 Mestre em Sauacutede ColetivaInstituto de Medicina Social daUERJ pesquisadora do CentroLatino-americano emSexualidade e DireitosHumanosIMSUERJ EndereccediloeletrocircnicolivifarogmailcomRecebido em 01092009Aprovado em 18092009| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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IntroduccedilatildeoDesde a segunda metade do seacuteculo XIX quando a sauacutede se torna questatildeo deEstado e intervenccedilotildees de diferentes feitios passam a atravessar o ldquocorpordquo social como objetivo de saneaacute-lo ou de aperfeiccediloaacute-lo eugenicamente determinados sujeitos

mereceram atenccedilatildeo especial singularizando-se na medida em que a accedilatildeo do Estadoos interpelava Alguns deles como criminosos loucos ou homossexuais receberamtal atenccedilatildeo pelo perigo social que supostamente representavam outros como foio caso das mulheres durante grande parte do seacuteculo XX pela responsabilidadeque lhes era atribuiacuteda na reproduccedilatildeo de uma raccedila forte e sadia (STOCKLE 1993)outros ainda como crianccedilas ou velhos por serem considerados particularmentefraacutegeis frente a doenccedilas e outros infortuacutenios Mas qualquer que tenha sido ajustificativa para tal singularizaccedilatildeo na medida em que seus corpos erammedicalizados alguns sujeitos ganhavam visibilidade1 enquanto outrospermaneciam na penumbra Esse eacute especialmente o caso dos homensDo ponto de vista da histoacuteria das poliacuteticas de sauacutede voltadas a ldquopopulaccedilotildeesespeciacuteficasrdquo podemos considerar a recente criaccedilatildeo pelo Ministeacuterio da Sauacutedebrasileiro de um Programa de Sauacutede do Homem como momento significativo nolongo e paradoxal processo que se desenrola em torno da medicalizaccedilatildeo do corpomasculino Natildeo se pode dizer que ao longo do uacuteltimo seacuteculo meacutedicos e sanitaristasnatildeo tenham percebido que algumas prerrogativas de gecircnero faziam dos homensseres especialmente perigosos (e em perigo) do ponto de vista da sauacutede puacuteblicaEmbora natildeo tenham veiculado um discurso que objetivasse explicitamente oshomens ou a masculinidade como foco de preocupaccedilatildeo as campanhas contra oalcoolismo e contra as chamadas ldquodoenccedilas veneacutereasrdquo natildeo deixavam de tentarhigienizar alguns espaccedilos de sociabilidade eminentemente masculinos como barese bordeacuteis e transformar certas convenccedilotildees relativas agrave masculinidade como oexerciacutecio da sexualidade fora dos limites do casamento Tambeacutem natildeo se podeconsiderar mera coincidecircncia o fato de ter sido justamente no acircmbito da lutacontra as doenccedilas sexualmente transmissiacuteveis que nos anos 1930 e 1940 foiproposta pioneiramente no Brasil a criaccedilatildeo de uma andrologia definida como aldquociecircncia dos problemas sexuais masculinosrdquo (cf CARRARA 1996 2004)Tudo isso natildeo foi suficiente poreacutem para que se formulassem poliacuteticas puacuteblicas

voltadas especificamente agrave populaccedilatildeo masculina ao menos natildeo no mesmo passoem que o eram para as mulheres e para outras categorias sociais Tampouco seA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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consolidou uma especialidade meacutedica que se ocupasse exclusivamente dos homensSe a intensidade com que a medicina investiu sobre os corpos femininos fez comque jaacute em finais do seacuteculo XIX a ginecologia se institucionalizasse (cf ROHDEN2001) a andrologia nunca chegou a ter o mesmo estatuto Isso quer dizer que umaciecircncia sobre o homem como sujeito generificado e natildeo como representante universalda espeacutecie humana encontrou e ainda encontra grande dificuldade para se implantarNa primeira deacutecada do seacuteculo XXI entretanto esse panorama parece se alterarsignificativamente e o processo de objetificaccedilatildeo2 dos homens e de seus corpos pordiferentes disciplinas cientiacuteficas ganha novo ritmo Uma configuraccedilatildeo complexade processos econocircmicos poliacuteticos culturais e tecnoloacutegicos contribui para issoDe um lado o aprofundamento da criacutetica dos movimentos feminista e LGBT aomachismo tem feito com que os homens percam progressivamente a posiccedilatildeo derepresentantes universais da espeacutecie humana e a relativa invisibilidadeepistemoloacutegica que tal posiccedilatildeo lhes proporcionava De outro a transformaccedilatildeo dasestruturas familiares e de padrotildees de masculinidade tem permitido aos homensemergirem como consumidores de bens e serviccedilos - entre eles os serviccedilos de sauacutede- antes voltados agraves mulheres ou vistos como intrinsecamente femininos Aleacutemdisso a constataccedilatildeo de que a resoluccedilatildeo de graves problemas de sauacutede (como adisseminaccedilatildeo da Aids a reproduccedilatildeo natildeo-planejada ou o recrudescimento da violecircnciaurbana) passa necessariamente pela mobilizaccedilatildeo da populaccedilatildeo masculina e odesenvolvimento de tratamentos especiacuteficos e relativamente eficazes para aldquoimpotecircnciardquo rebatizada nesse novo contexto de ldquodisfunccedilatildeo ereacutetilrdquo precipitam amedicalizaccedilatildeo dos corpos masculinos3

Eacute portanto contra esse pano de fundo que o significado da criaccedilatildeo do Programa

de Sauacutede do Homem deve ser analisado O presente artigo procura refletir acercado modo como o programa foi (ou estaacute sendo) formulado numa curiosa articulaccedilatildeoentre especialistas meacutedicos - no caso os urologistas - gestores e formuladores depoliacuteticas puacuteblicas e representantes dos ldquomovimentos organizadosrdquo produzindoem linguagem muitas vezes hiacutebrida uma proposta capaz de dar conta de interessesbastante diversos Para tanto focalizamos de um lado as accedilotildees da Sociedade Brasileirade Urologia em torno do lanccedilamento do programa e de outro os princiacutepios ediretrizes contidos no documento ldquoPoliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutededo Homemrdquo4 cuja primeira versatildeo foi lanccedilada pelo Departamento de AccedilotildeesProgramaacuteticas e Estrateacutegicas do Ministeacuterio da Sauacutede em 2008| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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Uma poliacutetica de sauacutede para o homemPara as mulheres medidas especiais de sauacutede comeccedilam a surgir no Brasil jaacute nosanos 1930 centradas na chamada sauacutede materno-infantil Em 1983 com a criaccedilatildeodo PAISM (Programa de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher) esse foco mudouFruto de uma estreita colaboraccedilatildeo entre grupos feministas e o Ministeacuterio da Sauacutedeo PAISM foi implantado em serviccedilos de sauacutede no paiacutes como um todo (cf COSTA1999) Funcionando atraveacutes de dinacircmicas de grupo e workshops os grupos decontracepccedilatildeo planejados pelo PAISM tinham como objetivo levar as mulheres atomar consciecircncia do proacuteprio corpo bem como enfatizar sua autonomia no quetange agrave sua vida sexual e reprodutiva (cf PEREIRA 2008) O objetivo era substituira concepccedilatildeo tradicional de sauacutede materno-infantil por uma agenda mais poliacuteticaque englobasse os direitos reprodutivosQuase 25 anos depois em seu discurso de posse de marccedilo de 2007 o meacutedicosanitarista Joseacute Gomes Temporatildeo Ministro da Sauacutede nomeado por Luiz InaacutecioLula da Silva em seu segundo mandato presidencial listou a implantaccedilatildeo de umaldquopoliacutetica nacional para a assistecircncia agrave sauacutede do homemrdquo entre as metas a serem

perseguidas durante sua gestatildeo5 Um ano mais tarde em marccedilo de 2008 foicriada no acircmbito do Departamento de Accedilotildees Programaacuteticas Estrateacutegicas daSecretaria de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede a Aacuterea Teacutecnica de Sauacutede do Homem6

ficando soba coordenaccedilatildeo de Ricardo Cavalcanti meacutedico ginecologista e um dos fundadoresda moderna sexologia brasileira7 No departamento os ldquohomensrdquo passam entatildeo ater um lugar ao lado de outros sujeitos focos mais antigos de accedilotildees de sauacutedeespeciacuteficas aleacutem das ldquomulheresrdquo ldquoadolescentes e jovensrdquo ldquoidososrdquo ldquopessoas comdeficiecircnciardquo usuaacuterios de serviccedilos de sauacutede mental e indiviacuteduos sob a custoacutedia doEstado Desse modo como Cavalcanti reconheceria em tom ufanista meses maistarde no lanccedilamento da Campanha Nacional de Esclarecimento da Sauacutede doHomem o Brasil se tornou ldquoo segundo paiacutes da Ameacuterica que tem um setor para asauacutede do homem Soacute o Canadaacute tem essa pasta nem os EUA a possuirdquo8

Eacute importante desde jaacute destacar o papel da Sociedade Brasileira de Urologia(SBU) em todo esse processo e apontar a ironia que isso representa do ponto devista histoacuterico uma vez que durante os anos 19301940 o meacutedico e sexoacutelogoJoseacute de Albuquerque que se proclamava criador da andrologia tinha justamenteos urologistas entre seus principais alvos Eles mereciam criacuteticas contundentes dosexoacutelogo por quererem monopolizar o estudo e a intervenccedilatildeo sobre os problemasA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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sexuais masculinos Para Albuquerque ao lado da ginecologia a andrologia deviaser considerada subespecialidade da sexologia A urologia devia se ater segundo ofundador da andrologia aos problemas do sistema urinaacuterio de homens e mulheresComo parte da sexologia a andrologia deveria articular aleacutem de conhecimentosbioloacutegicos os de outras disciplinas como a psicologia e sociologia (cf CARRARA1996 2004) Mas nessa disputa a vitoacuteria coube agrave urologia pois atualmente aandrologia aparece como parte da urologia e eacute nesse acircmbito definida como a

subespecialidade uroloacutegica que ldquocuida do sistema reprodutor da funccedilatildeo sexual eda regulaccedilatildeo de hormocircnios sexuais masculinosrdquo tratando sobretudo de problemascomo o Distuacuterbio Androgecircnico do Envelhecimento Masculino (DAEM) a infertilidademasculina as disfunccedilotildees ereacuteteis a ejaculaccedilatildeo precoce Eacute curioso ainda perceber queembora a urologia natildeo seja uma especialidade voltada apenas para o homem aproacutepria SBU tende a apresentaacute-la como tal tatildeo grande eacute o peso das questotildees desauacutede masculina em sua pautaDesde pelo menos 2004 a SBU vinha se dedicando agrave causa da sauacutede do homeme ao longo de todo o ano de 2008 passa a exercer forte pressatildeo junto a diferentessetores do governo a parlamentares aos conselhos de sauacutede (CONASS eCONASEMS9) e a outras sociedades meacutedicas para o lanccedilamento de uma poliacuteticaespeciacutefica voltada agrave sauacutede do homem Em sua atuaccedilatildeo aleacutem do estabelecimentodas diretrizes dessa poliacutetica estavam em jogo questotildees coorporativas como o valordos honoraacuterios pagos ao urologista pelo SUS ou a obrigatoriedade de os urologistasvinculados ao SUS serem credenciados pela sociedadeUma das primeiras accedilotildees do grupo que assumiu a direccedilatildeo da SBU em janeirode 2008 foi procurar o Ministro da Sauacutede para discutir a implantaccedilatildeo do programade sauacutede do homem e defender a importacircncia da nomeaccedilatildeo de um chefe para aaacuterea teacutecnica Simultaneamente reuacutene-se com os presidentes da Sociedade Brasileirade Cardiologia e da Associaccedilatildeo Brasileira de Psiquiatria para discutir os principaisproblemas a serem incorporados ao programa10

No mecircs de julho daquele mesmo ano um acordo de cooperaccedilatildeo teacutecnica seriaassinado entre o Ministeacuterio da Sauacutede e a SBU com o objetivo de promover aassistecircncia ao homem no sistema puacuteblico de sauacutede e reduzir as taxas de mortalidademasculina A ideia era natildeo apenas treinar os meacutedicos do sistema puacuteblico de sauacutedea diagnosticar doenccedilas uroloacutegicas mas tambeacutem auxiliar na promoccedilatildeo de campanhasdirigidas ao puacuteblico leigo visando agrave prevenccedilatildeo dessas doenccedilas atraveacutes do incentivo| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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agrave busca dos serviccedilos de sauacutede A primeira dessas campanhas foi a CampanhaNacional de Esclarecimento da Sauacutede do Homem que a SBU promoveu comapoio do Ministeacuterio entre julho e setembro de 2008 O tema escolhido para acampanha foi a disfunccedilatildeo ereacutetil (DE) Segundo informaccedilotildees obtidas no site daSBU essa escolha foi feita por trecircs razotildees Em primeiro lugar cerca de 50 doshomens adultos acima de 40 anos teria ldquoalgum tipo de queixa relacionada agrave funccedilatildeoereacutetilrdquo Ao mesmo tempo menos de 10 dos homens que sofrem de ldquoalgumgrau de disfunccedilatildeo ereacutetilrdquo procurariam assistecircncia meacutedica por vergonha ou medodo diagnoacutestico Aleacutem disso a DE estaria frequentemente associada a outrasdoenccedilas (como a diabete ou problemas cardiovasculares) ou poderia ser causadapor outras doenccedilas uroloacutegicas (como o decliacutenio do hormocircnio masculino emidosos ou o tratamento do cacircncer de proacutestata) Para justificar a necessidade deuma campanha de esclarecimento do puacuteblico em geral a SBU citou dados doMinisteacuterio da Sauacutede segundo os quais em 2007 167 milhotildees de mulheresconsultaram-se com um ginecologista ao passo que apenas 27 milhotildees de homensse consultaram com um urologistaNo dia 28 de julho de 2008 a campanha nacional da SBU foi lanccedilada emBrasiacutelia num jantar que reuniu 130 convidados entre os quais vaacuterias autoridadesdo Ministeacuterio da Sauacutede incluindo o coordenador da Aacuterea Teacutecnica da Sauacutede doHomem Na ocasiatildeo foi apresentado um comercial de 30 segundos focalizandoa disfunccedilatildeo ereacutetil a ser transmitido por TV aberta durante os meses de agosto esetembro e um folheto de divulgaccedilatildeo Por apresentar aspectos cruciais dointrincado processo de medicalizaccedilatildeo do corpo masculino esse materialpublicitaacuterio merece aqui uma anaacutelise mais detidaO folheto mostra um casal com idade entre 35 e 45 anos (ela mais jovem queele) ambos brancos bem vestidos magros felizes e exibindo alianccedila na matildeoesquerda prestes a se beijar Ao fundo um pocircr-do-sol sobre um mar dourado

compotildee um cenaacuterio paradisiacuteaco Na parte de baixo em letras grandes lemos ldquoosbons momentos de voltardquo mais acima agrave direita em letras menores ldquocerca de 40dos homens apresentam algum grau de dificuldade de ereccedilatildeo Trazer os bonsmomentos de volta soacute depende de vocecircrdquo Abaixo da imagem um texto em corpoainda menor adverteA dificuldade de ereccedilatildeo atinge milhotildees de homens no Brasil Os tratamentos hojeem dia satildeo muito eficazes Uma vida sexual insatisfatoacuteria pode estar relacionadaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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a diversos fatores como diabetes e hipertensatildeo Fale com seu urologista e tragaos bons momentos de volta11

Eacute importante perceber os deslizamentos entre diferentes expressotildees no decorrerda campanha A campanha da SBU eacute centrada na disfunccedilatildeo ereacutetil Os argumentosapresentados pela sociedade falam que 40 dos homens acima de 40 anosapresentam alguma queixa relacionada agrave funccedilatildeo ereacutetil No folheto o termo usadoeacute dificuldade de ereccedilatildeo que eacute remetida a uma vida sexual insatisfatoacuteria Do mesmomodo a faixa etaacuteria citada no website da SBU (homens acima dos 40) eacute suprimidaPassamos entatildeo de ldquoalgum tipo de queixa relacionada a funccedilatildeo ereacutetilrdquo paradificuldade de ereccedilatildeo ambas expressotildees subsumidas pela categoria disfunccedilatildeo ereacutetilque eacute como indicado pela proacutepria SBU o verdadeiro foco da campanha Essedeslizamento em nenhum momento eacute objeto de explicaccedilatildeo ou discussatildeo sejanos documentos da SBU seja naqueles produzidos pela Aacuterea Teacutecnica da Sauacutededo Homem Outra caracteriacutestica interessante do folheto eacute seu duplo apelo Eacutefaacutecil perceber que as expressotildees dificuldade de ereccedilatildeo ou vida sexual insatisfatoacuterianatildeo necessariamente se enquadram na categoria doenccedila O texto chama atenccedilatildeopara ldquoos bons momentosrdquo (em primeiro plano e em letras grandes) apresentandouma imagem extremamente positiva - o lindo e (quase) jovem casal abraccedilado -que natildeo se associa agrave ideia de doenccedila mas de felicidade e sauacutede Eacute possiacutevelportanto para aquele que vecirc o anuacutencio entender que a dificuldade de ereccedilatildeo natildeoeacute de fato uma doenccedila O anuacutencio entretanto visa a levar os homens ao meacutedico

Por que ir ao meacutedico se natildeo se estaacute doente As frases em letra menor na parteinferior direita da imagem ao mesmo tempo em que contecircm uma ameaccedila (ldquoumavida sexual insatisfatoacuteria pode estar relacionada a diversos fatores como diabetese hipertensatildeordquo) oferecem uma espeacutecie de desculpa para os homens queinsatisfeitos com sua performance tecircm vergonha de procurar um meacutedico Ouseja poderatildeo buscar um urologista devido agrave sua preocupaccedilatildeo com um problemapropriamente meacutedico e natildeo sexualEacute tambeacutem significativo que dentre os vaacuterios perigos letais que rondariam os homensa disfunccedilatildeo ereacutetil tenha sido escolhida para tema de uma campanha cujo tiacutetulo prometeum geneacuterico ldquoesclarecimento da sauacutede do homemrdquo Um dos grandes obstaacuteculos agravepromoccedilatildeo da sauacutede dos homens conforme repetido inuacutemeras vezes ao longo do processode construccedilatildeo da nova poliacutetica eacute justamente a centralidade da ideia de invulnerabilidadeou seja da ideia de potecircncia na construccedilatildeo da masculinidade hegemocircnica Por essa| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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razatildeo os homens seriam como declara o presidente da Associaccedilatildeo Meacutedica de Brasiacuteliano lanccedilamento da campanha ldquorelapsosrdquo com sua sauacutede procurando menosfrequentemente os meacutedicos que as mulheres Mas ao centrar a felicidade dos homensna potecircncia sexual vista como capacidade de obter uma ereccedilatildeo a campanha acabareforccedilando a centralidade dos valores que supostamente pretende combaterParadoxalmente ao prometer devolver-lhes a potecircncia perdida os urologistas natildeo deixamde procurar atrair os homens aos cuidados de sauacutede justamente a partir da configuraccedilatildeode valores que os afastaria de tais cuidados e que como eacute o caso da virilidade compotildeemos fundamentos mesmos da masculinidade hegemocircnica12

Na luta pela implantaccedilatildeo da nova poliacutetica que a SBU manteacutem ao longo do anode 2008 outro momento importante eacute a audiecircncia puacuteblica convocada pela Cacircmarados Deputados no acircmbito do IV Foacuterum Poliacuteticas Puacuteblicas de Sauacutede do Homemrealizado em agosto13 Nela o Ministeacuterio da Sauacutede apresenta seu projeto para a

aacuterea Quase simultaneamente o Ministeacuterio divulgaria o documento ldquoPoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homemrdquo (PNAISH) Iniciava assimuma discussatildeo que envolveria diferentes atores (setores do governo conselhos desauacutede associaccedilotildees meacutedicas pesquisadores profissionais de sauacutede e representantesda sociedade civil) e se estenderia ateacute maio do ano seguinte quando a versatildeo finaldo documento eacute oficialmente divulgada Ao lado da urologia entre as associaccedilotildeesmeacutedicas participam sobretudo aquelas relacionadas aos problemas maiscomumente identificados como ldquomasculinosrdquo (cardiologia sauacutede mentalgastroenterologia e pneumologia)Aleacutem de influir decisivamente no conteuacutedo do novo programa a SBU trabalhatambeacutem no sentido de garantir sua sustentaccedilatildeo poliacutetica Em maio de 2009 porexemplo distribui folhetos no XXV Congresso Nacional de Secretarias Municipaisde Sauacutede visando a ldquosolicitar apoio para poliacuteticas puacuteblicas voltadas para o sexomasculinordquo Segundo noticia-se no website da sociedade ldquoo objetivo eacute sensibilizaros gestores municipais a adotarem poliacuteticas que visem a uma assistecircncia uroloacutegicamais efetiva nos hospitais puacuteblicos Aleacutem disso a SBU quer conscientizaacute-los sobrea Poliacutetica Nacional de Sauacutede do Homem do Ministeacuterio da Sauacutede e agregaacute-los naluta para que tal programa entre em vigor o quanto antesrdquo No folheto distribuiacutedocompara-se a situaccedilatildeo de mulheres apresentadas como sujeitos que reivindicamseus direitos e de homens apresentados em linguagem um tanto confusa comosujeitos passivos cuja sauacutede tem sido negligenciadaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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A mulher brasileira tem conquistado avanccedilos em nossa sociedade ganhandodignidade disputando com isonomia diferentes funccedilotildees que as igualam agraves condiccedilotildeesdos homens Com isso as autoridades governamentais tem [sic] desenvolvidoimportantes accedilotildees de poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede da mulher no acircmbito do SUSOs homens por sua vez continuam deixando de ser contemplados por essas accedilotildeesgovernamentais evoluindo para o distanciamento das soluccedilotildees de seus principaisagravos na aacuterea da sauacutede gerando informaccedilotildees desencontradas e sem base cientiacuteficao que sobremaneira resulta em grande prejuiacutezo social (grifo nosso)14

A nova poliacutetica de sauacutede seria finalmente lanccedilada em agosto de 2009 no bojode uma seacuterie de atividades relativas agrave campanha pela sauacutede do homem Em 10 de

agosto um dia apoacutes o Dia dos Pais o Presidente Lula trata da sauacutede do homemem seu programa de raacutedio ldquoCafeacute com o Presidenterdquo e anuncia que o MS lanccedilaraacuteem breve a Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem O Presidentediz entatildeo que no que concerne agrave sauacutede os homens mereceriam ldquoum puxatildeo deorelhardquo por terem ldquomedo de agulhardquo indo pouco ao meacutedico e soacute iniciandotratamento depois do agravamento do quadro Em sua intervenccedilatildeo tambeacutemcompara homens e mulheres apontando a ldquoculturardquo como raiz do problemaTodos noacutes homens temos essa bobagem na cabeccedila que eacute o medo de fazer o examede proacutestata e isso tem sido a causa da morte de muitos homens por causa docacircncer de proacutestata Soacute para vocecirc ter uma ideia segundo estimativa do SUS paracada oito consultas ginecoloacutegicas feitas em 2007 soacute teve uma uroloacutegica Enquantoquase 17 milhotildees de mulheres foram ao ginecologista em 2007 apenas 26 milhotildeesde homens procuraram um urologista Veja todo homem depois de uma certaidade tem que procurar o urologista A verdade eacute que ainda tem muitos que tecircmmedo de procurar o urologista e fazer exame de toque por conta da proacutestata Essaatitude estaacute muito ligada agrave nossa cultura Mas isso estaacute na hora de mudar issonatildeo combina com a vida moderna Temos que acompanhar as mudanccedilas nomundo e encarar nossas fragilidades Precisamos ter haacutebitos saudaacuteveis fazer examede prevenccedilatildeo e rotina (grifo nosso)15

Por beberem mais fumarem mais e serem mais sedentaacuterios que as mulheres oshomens teriam uma menor expectativa de vida Segundo o Presidente em largamedida dependeria deles a transformaccedilatildeo desse quadro Nesse sentido termina aentrevista com um apelo ldquoEntatildeo o meu apelo para os homens no Dia dos Pais eacuteque a partir de agora vamos nos cuidar porque noacutes precisamos viver mais e vivermelhor Afinal de contas a nossa famiacutelia depende muito de noacutesrdquo16| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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Ainda em agosto realiza-se na Cacircmara dos Deputados o V Foacuterum de PoliacuteticasPuacuteblicas e Sauacutede do Homem cujo objetivo seria segundo o presidente da SBUldquomanter a lembranccedila e pressatildeo junto aos oacutergatildeos governamentais e parlamentaressobre a importacircncia da poliacutetica nacional de sauacutede do homem que resgata umalacuna e inclui o gecircnero masculino ainda secundarizado nas poliacuteticas puacuteblicasrdquo17

Durante o Foacuterum o presidente da SBU recebe a notiacutecia do lanccedilamento oficial dapoliacutetica Ao comemorar revela o papel central desempenhado pelos urologistasFinalizamos um importante ciclo no sentido de sensibilizar as autoridades atraveacutes

de simpoacutesios e Foacuteruns quanto agrave importacircncia da inclusatildeo de projetos especiacuteficosvoltados para o gecircnero masculino Estamos felizes com o lanccedilamento desta poliacuteticapelo Governo Federal Dentre todas as especialidades eacute inegaacutevel que a Urologiaguarda uma estreita poreacutem natildeo exclusiva relaccedilatildeo com o homem Iniciaremos umoutro ciclo que eacute o plano de accedilatildeo desta poliacutetica nos estados e municiacutepios e aimportacircncia que os gestores daratildeo a estas accedilotildees O homem brasileiro agradece(grifo nosso)18

Finalmente em 28 de agosto de 2009 no auditoacuterio da Organizaccedilatildeo Pan-Americana de Sauacutede em Brasiacutelia o Ministeacuterio da Sauacutede lanccedila oficialmente a PoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem Em seu discurso o ministroressaltaria a importacircncia da Sociedade Brasileira de Urologia na construccedilatildeo danova poliacutetica que conforme declara o presidente da SBU ldquovaloriza o homembrasileiro fortalece a atividade uroloacutegica e o urologista no Sistema Uacutenico de Sauacutederdquo19

Salvar os homens de si mesmos o documento ldquoPoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes)rdquoComo dito acima em agosto de 2008 o Departamento de Accedilotildees Programaacuteticas eEstrateacutegicas ao qual se subordina a Aacuterea Teacutecnica de Sauacutede do Homem lanccedilou aprimeira versatildeo do documento ldquoPoliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede doHomem (princiacutepios e diretrizes)rdquo20 O documento eacute apresentado como fruto deuma parceria entre gestores do SUS sociedades cientiacuteficas sociedade civilorganizada pesquisadores acadecircmicos e agecircncias de cooperaccedilatildeo internacional Aindana apresentaccedilatildeo lemos que a sauacutede do homem eacute uma das prioridades do governoe que a poliacutetica a ser implementada traduziria ldquoum longo anseio da sociedade aoA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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reconhecer que os agravos do sexo masculino constituem verdadeiros problemasde sauacutede puacuteblicardquo (PNAISH 2008 p 3)Segundo o documento estudos comparativos tecircm demonstrado que os homenssatildeo mais vulneraacuteveis a doenccedilas do que as mulheres especialmente agraves enfermidadescrocircnicas e graves e que morrem mais cedo Apesar deste fato jaacute bem documentadoos homens natildeo satildeo captados pelos serviccedilos de atenccedilatildeo primaacuteria (como ocorre com

as mulheres) Sua entrada no sistema de sauacutede se daria principalmente pela atenccedilatildeoambulatorial e hospitalar de meacutedia e alta complexidades configurando um perfilque favorece o agravo da morbidade pela busca tardia ao atendimentoPara explicar a ldquoresistecircncia masculina agrave atenccedilatildeo primaacuteriardquo o texto lanccedila matildeo depesquisas qualitativas21 que apontam diversas razotildees para o fenocircmeno agrupadasem dois tipos de determinantes ldquobarreiras institucionaisrdquo e ldquobarreirassocioculturaisrdquo As ldquobarreiras institucionaisrdquo dizem respeito agrave dificuldade de acessoaos serviccedilos assistenciais e satildeo tratadas de forma bastante breve O documentoenfatiza as chamadas ldquovariaacuteveis culturaisrdquoestereoacutetipos de gecircnero enraizados haacute seacuteculos na cultura patriarcal produzempraacuteticas baseadas em crenccedilas e valores do que eacute ser masculino A doenccedila eacuteconsiderada um sinal de fragilidade que os homens natildeo reconhecem como inerentesagrave sua proacutepria condiccedilatildeo bioloacutegica O homem se julga invulneraacutevel o que acaba porcontribuir para que ele cuide menos de si mesmo e se exponha mais agraves situaccedilotildeesde risco (PNAISH 2008 p 6)Mais abaixo lecirc-seAinda que o conceito de masculinidade venha sendo atualmente contestado e tenhaperdido seu rigor original na dinacircmica do processo cultural [] a concepccedilatildeo aindaprevalente e hegemocircnica de masculinidade eacute o eixo estruturante pela natildeo-procuraaos serviccedilos de sauacutede (Idem)Uma vez explicitadas o que satildeo as ldquovariaacuteveis culturaisrdquo o documento afirma queo grande desafio de uma poliacutetica voltada para os homens eacute mobilizar a ldquopopulaccedilatildeomasculina brasileira para a luta pela garantia de seu direito social agrave sauacutederdquo Paratanto a poliacutetica em questatildeo pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para oreconhecimento e a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para queadvenham sujeitos protagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio egozo dos direitos de cidadaniardquo (PNAISH 2008 p 7)| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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No item ldquoMetodologia de construccedilatildeo da poliacuteticardquo o texto afirma que a ideiacentral do documento foi desenvolvida de modo articulado com a Poliacutetica Nacionalde Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher ldquorecuperando experiecircncias e conhecimentosproduzidos naquela aacuterea promovendo accedilotildees futuras em consonacircncia tanto emprinciacutepios como em praacuteticasrdquo (PNAISH 2008 p 9) Esta articulaccedilatildeo com a poliacuteticavoltada para as mulheres seraacute objeto de discussatildeo mais adianteO item do documento intitulado ldquoDiagnoacutesticordquo eacute bastante extenso e como o

nome indica procura oferecer um quadro amplo acerca dos agravos agrave sauacutedemasculina22 percorrendo temas como violecircncia alcoolismo e tabagismo indicadoresde mortalidade e de morbidade Aleacutem dessas temaacuteticas nas quais reconhecemos alinguagem mais tradicional da epidemiologia e da sauacutede puacuteblica encontramosoutros temas que embora possam ser vistos como parte do campo da sauacutede nosentido lato extrapolam seus limites uma vez que tecircm ressonacircncias mais claramentepoliacuteticas eou juriacutedicas ldquoadolescecircncia e velhicerdquo e ldquodireitos sexuais e reprodutivosrdquoLogo na introduccedilatildeo desse item lemos queOs temas mais recorrentes no estudo sobre a sauacutede do homem podem se estruturarem torno de trecircs eixos violecircncia tendecircncia agrave exposiccedilatildeo a riscos com consequecircncianos indicadores de morbi-mortalidade e sauacutede sexual e reprodutiva (PNAISH2008 p 11)Como veremos adiante dentre esses trecircs eixos o terceiro - sauacutede sexual ereprodutiva - seraacute enfatizado em detrimento dos demais embora na apresentaccedilatildeodos diversos subitens de que trata o item ldquoDiagnoacutesticordquo os dois primeiros eixossejam mais extensamente tratados com a apresentaccedilatildeo de um conjunto expressivode dados e argumentos O subitem ldquoDireitos sexuais e reprodutivosrdquo ao contraacuteriodos demais natildeo traz dados sobre agravos ou ameaccedilas agrave sauacutede sexual e reprodutivamas expotildee uma espeacutecie de agenda poliacutetica afirmando a necessidade da implementaccedilatildeodos direitos sexuais e reprodutivos dos homens A linguagem dos direitos se impotildeee a categoria ldquosauacutederdquo natildeo eacute mencionada O documento afirma por exemplo que eacutenecessaacuterio ldquosuperar a restriccedilatildeo da responsabilidade sobre as praacuteticas contraceptivas agravesmulheresrdquo de modo a assegurar aos homens ldquoo direito agrave participaccedilatildeo no planejamentoreprodutivordquo a paternidade devendo ser vista como ldquoum direito do homem a participarde todo o processo desde a decisatildeo de ter ou natildeo filhos como e quando tecirc-los bemcomo do acompanhamento da gravidez do parto do poacutes-parto e da educaccedilatildeo dacrianccedilardquo (PNAISH 2008 p 20) Eacute curiosa essa formulaccedilatildeo uma vez que a demandaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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pela participaccedilatildeo masculina nas decisotildees reprodutivas eacute uma bandeira do movimento

feminista Normalmente tal participaccedilatildeo aparece como exigecircncia das mulherescomo um dever do qual o homem tende a escapar No documento o que antes eraconsiderado um dever se transforma em direitoA insistecircncia na temaacutetica da sauacutede sexual e reprodutiva atravessa o documentoe surge com forccedila no item ldquoObjetivosrdquo Satildeo trecircs os objetivos especiacuteficos listados(1) Organizar implantar qualificar e humanizar em todo territoacuterio brasileiro aatenccedilatildeo integral a sauacutede do homem dentro dos princiacutepios que regem o SistemaUacutenico de Sauacutede(2) Estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeo da assistecircncia em sauacutede sexual ereprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede(3) Ampliar atraveacutes da educaccedilatildeo o acesso dos homens agraves informaccedilotildees sobre asmedidas preventivas contra os agravos e enfermidades que atingem a populaccedilatildeomasculina destacando seus direitos sexuais e reprodutivos (PNAISH 2008 p 39grifos nossos)O segundo dos objetivos especiacuteficos - estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeoda assistecircncia em sauacutede sexual e reprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede -tem uma extensa lista de subitens Dentre estes aleacutem de metas mais tradicionaisrelativas ao planejamento reprodutivo masculino contracepccedilatildeo ciruacutergica voluntaacuteriae prevenccedilatildeo de DSTAids encontramos os seguintes objetivos- estimular implantar implementar e qualificar pessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildeessexuais masculinas- promover a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem nas populaccedilotildees indiacutegenas negrasquilombolas gays bissexuais travestis transexuais trabalhadores rurais homenscom deficiecircncia em situaccedilatildeo de risco em situaccedilatildeo carceraacuteria desenvolvendoestrateacutegias voltadas para a promoccedilatildeo da equidade para distintos grupos sociais- associar as accedilotildees governamentais com as da sociedade civil organizada paraefetivar a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem com protagonismo social na enunciaccedilatildeodas reais condiccedilotildees de sauacutede da populaccedilatildeo heterogecircnea de homens (PNAISH2008 p 39)Destacamos aqui dois pontos que comentaremos mais adiante nas conclusotildeesO primeiro diz respeito agrave associaccedilatildeo entre o discurso da SBU (presente na ideia deldquoatenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) e o dos movimentos da ldquosociedade civilorganizadardquo O segundo refere-se ao fato de que a ecircnfase colocada sobre sauacutedesexual e direitos sexuais e reprodutivos natildeo aparece do mesmo modo quando se| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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trata de outros temas como a violecircncia reconhecidamente uma das mais relevantescausas de morbidade e mortalidade entre homens adultos jovens23

Assim emboradiscuta e exponha extensamente os fatores considerados pela sauacutede puacuteblica como

mais relevantes agrave sauacutede masculina o documento dirige seu foco para as novastemaacuteticas da sauacutede sexual e dos direitos sexuais e reprodutivos Ateacute entatildeo pelomenos no que diz respeito a estes uacuteltimos tais temaacuteticas pareciam mais ligadas aosdiscursos feministas em torno da sauacutede da mulherAlgumas conclusotildees possiacuteveisO documento de algum modo afirma o caraacuteter ldquoinsalubrerdquo de certa masculinidadesendo os homens apresentados como viacutetimas de sua proacutepria masculinidade ouseja das crenccedilas e valores que constituiriam as ldquobarreiras socioculturaisrdquo que seantepotildeem agrave medicalizaccedilatildeo O objetivo principal do programa eacute enfraquecer aresistecircncia masculina agrave medicina de uma forma geral ou seja medicalizar oshomens24 Para tanto uma accedilatildeo educativa bem feita ldquomodernizariardquo os homensbrasileiros dissipando o pensamento maacutegico que os (des)orienta e que os tornapresas de seu proacuteprios preconceitosEntretanto a questatildeo nos parece bastante mais complexa do que imaginam osdefensores da nova poliacutetica pois essa situaccedilatildeo paradoxal dos homens em relaccedilatildeo asua proacutepria sauacutede e ao seu corpo - sua cultura somaacutetica como diria Luc Boltanski(1979) - deriva em larga medida da posiccedilatildeo que (ainda) ocupam na hierarquia degecircnero A questatildeo natildeo eacute de ldquoculturardquo portanto mas do modo como a cultura estaacuteimbricada ou implicada em relaccedilotildees de poder bem concretas que o discursovitimaacuterio e paternalista incorporado agrave nova poliacutetica contribui mais para ocultar doque revelar Para os homens articular reivindicaccedilotildees a partir de uma posiccedilatildeogenerificada e tornar-se visiacuteveis enquanto ldquohomensrdquo significa colocar-se no mesmoplano que as mulheres Perderiam assim a posiccedilatildeo de representantes universais daespeacutecie e arriscariam a perder tambeacutem suas prerrogativas na hierarquia de gecircneroTalvez seja por isso mesmo que eles natildeo o fazem natildeo havendo (ainda) organizaccedilotildeesldquomasculinistasrdquo como existem organizaccedilotildees ldquofeministasrdquoDesse modo a condiccedilatildeo para que ocorra a mudanccedila cultural necessaacuteria para

fazer com que os homens (heterossexuais) tenham uma relaccedilatildeo tatildeo reflexiva comseus proacuteprios corpos quanto seus vaacuterios ldquooutrosrdquo (mulheres homossexuais travestis)eacute que tais ldquooutrosrdquo tenham o mesmo poder e prestiacutegio que eles Tudo se passaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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como se os homens precisassem se tornar socialmente vulneraacuteveis para poderperceber sua vulnerabilidade bioloacutegica e para ver algum sentido na luta porultrapassaacute-la Dito de outro modo mostrar-se invulneraacutevel faz parte do exerciacuteciodo poder pelos homens e o poder tem um ldquopreccedilordquo (uma vida mais curta ou menossaudaacutevel) que parece os homens ainda estatildeo dispostos a pagar Diferentementedas mulheres que organizadas num amplo movimento procuraram atraveacutes depoliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas sair da posiccedilatildeo de subordinaccedilatildeo a que historicamenteestavam relegadas os homens soacute podem aparecer entatildeo como sujeitos passivosfrente agrave interpelaccedilatildeo que lhes dirigem a medicina e o Estado Acabam assimsendo retoricamente representados pelos meacutedicos sobretudo urologistas e pelosformuladores e executores de uma poliacutetica que supostamente se implanta em nomedeles mas sem sua participaccedilatildeoQuanto agrave ecircnfase dada aos direitos sexuais e reprodutivos parece-nos que taistemas tecircm uma dupla entrada no programa - atraveacutes da urologia (ou medicinasexual) e da incorporaccedilatildeo da retoacuterica de movimentos poliacuteticos organizados ASBU aparece como ator fundamental na formulaccedilatildeo da poliacutetica Como vimos oacordo de cooperaccedilatildeo teacutecnica assinado com o Ministeacuterio da Sauacutede teve como umde seus principais desdobramentos a campanha centrada na disfunccedilatildeo ereacutetil(lanccedilada antes mesmo da publicaccedilatildeo do documento) Eacute o tipo de pressatildeo quevem dos especialistas neste caso com um objetivo muito claro transformar adisfunccedilatildeo ereacutetil num problema de sauacutede puacuteblica o que eacute facilitado por doisfatores a declaraccedilatildeo do entatildeo Secretaacuterio Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede Joseacute Gomes

Temporatildeo em 200625 e a nomeaccedilatildeo de Ricardo Cavalcanti para a Coordenaccedilatildeoda Aacuterea Teacutecnica da Sauacutede do Homem Cavalcanti eacute um dos pais fundadores damoderna sexologia brasileira e embora sendo ginecologista de formaccedilatildeocertamente facilitou o diaacutelogo entre o governo e a SBU Neste caso a afirmaccedilatildeodos direitos sexuais passa pela sexologia e pela medicina sexualA leitura do documento nos leva agrave conclusatildeo de que a poliacutetica de aproximaccedilatildeocom o Ministeacuterio da Sauacutede e os formuladores de poliacuteticas puacuteblicas empreendidapela SBU foi bem-sucedida jaacute que a preocupaccedilatildeo com a sauacutede sexual (explicitadapor exemplo no objetivo de ldquoestimular implantar implementar e qualificarpessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) ultrapassa em grau deimportacircncia pelo menos no documento outros problemas possiacuteveis dentre osquais poderiacuteamos citar aleacutem da violecircncia os relacionados agrave sauacutede mental Por| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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outro lado a linguagem dos especialistas convive com uma outra tiacutepica doschamados movimentos sociais (lembremos que o documento afirma como umdos objetivos do programa ldquoincluir o enfoque de gecircnero orientaccedilatildeo sexualidentidade de gecircnero e condiccedilatildeo eacutetnico-racial nas accedilotildees educativasrdquo) produzindoum discurso hiacutebrido em que caminhos diversos parecem levar a um mesmoobjetivo final - a medicalizaccedilatildeo do corpo masculinoDe fato a presenccedila no documento do discurso dos movimentos sociaisnormalmente voltados para poliacuteticas identitaacuterias nos parece bastante forte Voltamosaqui a um trecho na introduccedilatildeo do documento segundo o qual o programa desauacutede do homem pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para o reconhecimentoe a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para que advenham sujeitosprotagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio e gozo dos direitos decidadaniardquo Isto eacute os homens devem paradoxalmente ser transformados em ldquosujeitosprotagonistas de suas demandasrdquo Atraveacutes do movimento organizado atransformaccedilatildeo das mulheres em ldquoprotagonistas de suas demandasrdquo envolveu seu

relativo ldquoempoderamentordquo No caso dos homens o ldquoprotagonismordquo implicajustamente o contraacuterio isto eacute assumir sua fragilidade e vulnerabilidade aprendendoa enunciar suas demandas Utiliza-se assim a mesma linguagem e os mesmosargumentos comumente presentes no discurso dos movimentos organizados paraefeitos aparentemente opostosNo acircmbito do documento uma das formas encontradas para lidar com esseaparente paradoxo que consiste em formular uma poliacutetica puacuteblica como se elafosse reivindicada pelos sujeitos por ela visados eacute desmembrar a categoria ldquohomemrdquoem uma seacuterie de subcategorias - iacutendios negros gays travestis portadores dedeficiecircncias trabalhadores rurais etc - que por outras razotildees satildeo historicamentemarginalizadas Ao que parece as mulheres podem formar mais facilmente umacategoria unificada mas os homens natildeo Homem pura e simplesmente semqualquer adjetivo natildeo parece ser uma identidade que se precise assumir (contra aspressotildees da sociedade) ou que se deva fortalecer ou pela qual se precise lutar Porisso talvez a necessidade de despedaccedilaacute-la num sem-nuacutemero de categorias demodo a tornar visiacutevel sua vulnerabilidade A politizaccedilatildeo e sensibilizaccedilatildeo do homemportanto tem por objetivo tornaacute-lo consciente dessa vulnerabilidade Soacute entatildeo eacutepossiacutevel medicalizaacute-lo Neste caso consciecircncia poliacutetica ldquoprotagonismordquo emedicalizaccedilatildeo aparecem como indissociaacuteveisA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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ReferecircnciasBOLTANSKI L As classes sociais e o corpo Rio de Janeiro Graal 1979BOURDIEU P O campo cientiacutefico In ORTIZ R (Org) Pierre Bourdieu Sociologia Satildeo PauloAacutetica 1983______ La domination masculine Paris Seuil 1998BRASIL Ministeacuterio da Sauacutede Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes) Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIAS Port2008PT-09-CONSpdf Acesso em maio 2009CARRARA S Tributo a Vecircnus a luta contra a siacutefilis no Brasil da passagem do seacuteculo aos anos 1940Rio de Janeiro Fiocruz 1996

______ Une science deacuterisoire Lacuteandrologie au Bregravesil entre les deux guerres Vibrant ndash VirtualBrazilian Anthropology v 1 n frac12 jan-dez 2004COSTA A M Desenvolvimento e Implantaccedilatildeo do PAISM no Brasil In GIFFIN Karen COSTAS H (Org) Questotildees da sauacutede reprodutiva Rio de Janeiro Fiocruz 1999FOUCAULT M Vigiar e punir Petroacutepolis Vozes 1977GOMES R Sexualidade masculina e sauacutede do homem proposta para uma discussatildeo CiecircnciaSauacutede Coletiva Rio de Janeiro n 8 p 825-9 2003GOMES R NASCIMENTO E F ARAUacuteJO F C Por que os homens buscam menos os serviccedilosde sauacutede do que as mulheres As explicaccedilotildees de homens com baixa escolaridade e homens comensino superior Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 23 n 3 mar 2007GOMES R NASCIMENTO E F A produccedilatildeo do conhecimento da sauacutede puacuteblica sobre arelaccedilatildeo homem-sauacutede uma revisatildeo bibliograacutefica Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 22n 5 p 901-911 maio 2006MEDRADO B LYRA J AZEVEDO M GRANJA E e VIEIRA S Princiacutepios diretrizes erecomendaccedilotildees para uma atenccedilatildeo integral aos homens na sauacutede Recife Instituto PAPAI 2009OLIVEIRA P P de A construccedilatildeo social da masculinidade Belo Horizonte UFMG 2004PEREIRA A L Accedilotildees educativas em contracepccedilatildeo teoria e praacutetica dos profissionais de sauacutede Tese(Doutorado em Sauacutede Coletiva) - Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio dejaneiro Rio de Janeiro 2008ROHDEN F Uma ciecircncia da diferenccedila sexo e gecircnero na medicina da mulher Rio de JaneiroFiocruz 2001SCHRAIBER L B GOMES R COUTO M T Homens e sauacutede na pauta da sauacutede coletivaCiecircncia e Sauacutede Coletiva v 10 n 1 p 7-17 2005| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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STOCKLE V Is Sex to Gender as Race is to Ethnicity In DEL VALLE T (Ed) GenderedAnthropology London Routledge 1993

Notas Uma primeira versatildeo deste texto foi apresentada no simpoacutesio The Future of Sexual Health SexualHealth in Public Health Policies no XIX Congresso da World Association for Sexual Health Gotemburgojunho de 2009 tendo utilizado dados colhidos na pesquisa ldquoDiferenccedilas de gecircnero na recentemedicalizaccedilatildeo do envelhecimento e sexualidade a criaccedilatildeo das categorias menopausa andropausa edisfunccedilatildeo sexualrdquo coordenada por Fabiacuteola Rohden e apoiada pelo CNPq1 A partir das reflexotildees de Michel Foucault (1977) em torno do panopticismo pode-se afirmar quedeterminados regimes de visibilidade configuram certos sujeitos que de outro modo inexistiriam ouexistiriam de modo inteiramente diferente Natildeo se trata aqui de entrarmos na polecircmica entreconstrutivismo e essencialismo ou seja de decidir se alguns sujeitos estavam sempre laacute agrave espera deserem descoberto ou se satildeo criados pela proacutepria ldquoluzrdquo que os ilumina2 Com ldquoobjetificaccedilatildeordquo natildeo nos referimos aqui a um processo de negaccedilatildeo aos homens de seu estatuto de

pessoa humana mas ao processo de instituiccedilatildeo de certos temas problemas ou sujeitos como objetoslegiacutetimos de conhecimento em determinado campo cientiacutefico conforme formulado originalmente porPierre Bourdieu (1983)3 A partir dos anos 1990 esse processo vem sendo acompanhado pela progressiva transformaccedilatildeo doshomens e da masculinidade em objeto de conhecimento tambeacutem das ciecircncias sociais configurandonovas aacutereas de conhecimento como os chamados ldquomenrsquos studiesrdquo Para isso ver entre outros Oliveira(2004)4 Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIASPort2008PT-09-CONSpdf (acessoem maio 2009)5 Eacute importante destacar que Joseacute Gomes Temporatildeo em 2006 quando ainda era Secretaacuterio Nacionalde Atenccedilatildeo agrave Sauacutede no Ministeacuterio da Sauacutede tentou criar centros de atenccedilatildeo agrave sauacutede no setor privadopara melhorar a assistecircncia agrave sauacutede do homem Em declaraccedilatildeo publicada no jornal O Estado de SatildeoPaulo em janeiro de 2006 Temporatildeo afirmou que o Ministeacuterio da Sauacutede estava analisando a possibilidadede oferecer tratamento para a disfunccedilatildeo ereacutetil atraveacutes da rede puacuteblica incluindo a distribuiccedilatildeo demedicamentos O governo estaria examinando o impacto financeiro de tal medida6 Ao que parece havia no acircmbito do MS desde 2006 uma Coordenaccedilatildeo de Sauacutede do Homem7 Nove meses depois foi substituiacutedo pelo Dr Baldur Schubert um assessor da sua equipe especialistaem seguridade social e sauacutede do trabalho8 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)9 Respectivamente Conselho Nacional de Secretaacuterios de Sauacutede e Conselho Nacional de SecretaacuteriosMunicipais de SauacutedeA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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10 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)11 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrpdf2008_saudehomempdf (acesso em maio 2009)12 Para a discussatildeo sobre a dominaccedilatildeo masculina ver Bourdieu (1998)13 Tais foacuteruns vecircm sendo organizados anualmente pela Comissatildeo de Seguridade Social e Famiacutelia daCacircmara dos Deputados em parceria com a SBU14 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrimagesfolder_noticiajpg (acesso em maio 2009)15 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)16 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)17 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)18 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)19 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)20 O documento passou por uma consulta puacuteblica e foi aprovado pelo Conselho Nacional de Sauacutede emjulho de 200921 O documento lanccedila matildeo de trabalhos importantes que no campo da sauacutede vecircm discutindo amasculinidade como Gomes (2003) Gomes e Nascimento (2006) Gomes et al (2007) Schraiber etal (2005)22 Lemos no documento que ldquoos indicadores apresentados visam a oferecer uma visatildeo ampliada doprocesso de adoecimento e de vulnerabilidade e agravos agrave sauacutede na populaccedilatildeo de homensrdquo (PNAISH2008 p 11)23 Esse aspecto foi tambeacutem destacado em reaccedilatildeo agraves diretrizes do Programa expressa em ldquodocumentomarcordquoproduzido por iniciativa de importantes organizaccedilotildees natildeo-governamentais brasileiras que haacute

muitos anos trabalham com o tema das masculinidades O texto aborda o Programa com base em umaleitura feminista de gecircnero Aleacutem de criticar a centralidade assumida pelas doenccedilas do aparelhogeniturinaacuterio na nova poliacutetica enfatiza-se tambeacutem a relativa desvalorizaccedilatildeo da promoccedilatildeo agrave sauacutede emfavor da oferta de serviccedilos de assistecircncia (MEDRADO et al 2009)24 Eacute interessante pensar como esse movimento vai de encontro agrave luta feminista contra a medicalizaccedilatildeodo corpo feminino25 Ver nota 2| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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mereceram atenccedilatildeo especial singularizando-se na medida em que a accedilatildeo do Estadoos interpelava Alguns deles como criminosos loucos ou homossexuais receberamtal atenccedilatildeo pelo perigo social que supostamente representavam outros como foio caso das mulheres durante grande parte do seacuteculo XX pela responsabilidadeque lhes era atribuiacuteda na reproduccedilatildeo de uma raccedila forte e sadia (STOCKLE 1993)outros ainda como crianccedilas ou velhos por serem considerados particularmentefraacutegeis frente a doenccedilas e outros infortuacutenios Mas qualquer que tenha sido ajustificativa para tal singularizaccedilatildeo na medida em que seus corpos erammedicalizados alguns sujeitos ganhavam visibilidade1 enquanto outrospermaneciam na penumbra Esse eacute especialmente o caso dos homensDo ponto de vista da histoacuteria das poliacuteticas de sauacutede voltadas a ldquopopulaccedilotildeesespeciacuteficasrdquo podemos considerar a recente criaccedilatildeo pelo Ministeacuterio da Sauacutedebrasileiro de um Programa de Sauacutede do Homem como momento significativo nolongo e paradoxal processo que se desenrola em torno da medicalizaccedilatildeo do corpomasculino Natildeo se pode dizer que ao longo do uacuteltimo seacuteculo meacutedicos e sanitaristasnatildeo tenham percebido que algumas prerrogativas de gecircnero faziam dos homensseres especialmente perigosos (e em perigo) do ponto de vista da sauacutede puacuteblicaEmbora natildeo tenham veiculado um discurso que objetivasse explicitamente oshomens ou a masculinidade como foco de preocupaccedilatildeo as campanhas contra oalcoolismo e contra as chamadas ldquodoenccedilas veneacutereasrdquo natildeo deixavam de tentarhigienizar alguns espaccedilos de sociabilidade eminentemente masculinos como barese bordeacuteis e transformar certas convenccedilotildees relativas agrave masculinidade como oexerciacutecio da sexualidade fora dos limites do casamento Tambeacutem natildeo se podeconsiderar mera coincidecircncia o fato de ter sido justamente no acircmbito da lutacontra as doenccedilas sexualmente transmissiacuteveis que nos anos 1930 e 1940 foiproposta pioneiramente no Brasil a criaccedilatildeo de uma andrologia definida como aldquociecircncia dos problemas sexuais masculinosrdquo (cf CARRARA 1996 2004)Tudo isso natildeo foi suficiente poreacutem para que se formulassem poliacuteticas puacuteblicas

voltadas especificamente agrave populaccedilatildeo masculina ao menos natildeo no mesmo passoem que o eram para as mulheres e para outras categorias sociais Tampouco seA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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consolidou uma especialidade meacutedica que se ocupasse exclusivamente dos homensSe a intensidade com que a medicina investiu sobre os corpos femininos fez comque jaacute em finais do seacuteculo XIX a ginecologia se institucionalizasse (cf ROHDEN2001) a andrologia nunca chegou a ter o mesmo estatuto Isso quer dizer que umaciecircncia sobre o homem como sujeito generificado e natildeo como representante universalda espeacutecie humana encontrou e ainda encontra grande dificuldade para se implantarNa primeira deacutecada do seacuteculo XXI entretanto esse panorama parece se alterarsignificativamente e o processo de objetificaccedilatildeo2 dos homens e de seus corpos pordiferentes disciplinas cientiacuteficas ganha novo ritmo Uma configuraccedilatildeo complexade processos econocircmicos poliacuteticos culturais e tecnoloacutegicos contribui para issoDe um lado o aprofundamento da criacutetica dos movimentos feminista e LGBT aomachismo tem feito com que os homens percam progressivamente a posiccedilatildeo derepresentantes universais da espeacutecie humana e a relativa invisibilidadeepistemoloacutegica que tal posiccedilatildeo lhes proporcionava De outro a transformaccedilatildeo dasestruturas familiares e de padrotildees de masculinidade tem permitido aos homensemergirem como consumidores de bens e serviccedilos - entre eles os serviccedilos de sauacutede- antes voltados agraves mulheres ou vistos como intrinsecamente femininos Aleacutemdisso a constataccedilatildeo de que a resoluccedilatildeo de graves problemas de sauacutede (como adisseminaccedilatildeo da Aids a reproduccedilatildeo natildeo-planejada ou o recrudescimento da violecircnciaurbana) passa necessariamente pela mobilizaccedilatildeo da populaccedilatildeo masculina e odesenvolvimento de tratamentos especiacuteficos e relativamente eficazes para aldquoimpotecircnciardquo rebatizada nesse novo contexto de ldquodisfunccedilatildeo ereacutetilrdquo precipitam amedicalizaccedilatildeo dos corpos masculinos3

Eacute portanto contra esse pano de fundo que o significado da criaccedilatildeo do Programa

de Sauacutede do Homem deve ser analisado O presente artigo procura refletir acercado modo como o programa foi (ou estaacute sendo) formulado numa curiosa articulaccedilatildeoentre especialistas meacutedicos - no caso os urologistas - gestores e formuladores depoliacuteticas puacuteblicas e representantes dos ldquomovimentos organizadosrdquo produzindoem linguagem muitas vezes hiacutebrida uma proposta capaz de dar conta de interessesbastante diversos Para tanto focalizamos de um lado as accedilotildees da Sociedade Brasileirade Urologia em torno do lanccedilamento do programa e de outro os princiacutepios ediretrizes contidos no documento ldquoPoliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutededo Homemrdquo4 cuja primeira versatildeo foi lanccedilada pelo Departamento de AccedilotildeesProgramaacuteticas e Estrateacutegicas do Ministeacuterio da Sauacutede em 2008| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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Uma poliacutetica de sauacutede para o homemPara as mulheres medidas especiais de sauacutede comeccedilam a surgir no Brasil jaacute nosanos 1930 centradas na chamada sauacutede materno-infantil Em 1983 com a criaccedilatildeodo PAISM (Programa de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher) esse foco mudouFruto de uma estreita colaboraccedilatildeo entre grupos feministas e o Ministeacuterio da Sauacutedeo PAISM foi implantado em serviccedilos de sauacutede no paiacutes como um todo (cf COSTA1999) Funcionando atraveacutes de dinacircmicas de grupo e workshops os grupos decontracepccedilatildeo planejados pelo PAISM tinham como objetivo levar as mulheres atomar consciecircncia do proacuteprio corpo bem como enfatizar sua autonomia no quetange agrave sua vida sexual e reprodutiva (cf PEREIRA 2008) O objetivo era substituira concepccedilatildeo tradicional de sauacutede materno-infantil por uma agenda mais poliacuteticaque englobasse os direitos reprodutivosQuase 25 anos depois em seu discurso de posse de marccedilo de 2007 o meacutedicosanitarista Joseacute Gomes Temporatildeo Ministro da Sauacutede nomeado por Luiz InaacutecioLula da Silva em seu segundo mandato presidencial listou a implantaccedilatildeo de umaldquopoliacutetica nacional para a assistecircncia agrave sauacutede do homemrdquo entre as metas a serem

perseguidas durante sua gestatildeo5 Um ano mais tarde em marccedilo de 2008 foicriada no acircmbito do Departamento de Accedilotildees Programaacuteticas Estrateacutegicas daSecretaria de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede a Aacuterea Teacutecnica de Sauacutede do Homem6

ficando soba coordenaccedilatildeo de Ricardo Cavalcanti meacutedico ginecologista e um dos fundadoresda moderna sexologia brasileira7 No departamento os ldquohomensrdquo passam entatildeo ater um lugar ao lado de outros sujeitos focos mais antigos de accedilotildees de sauacutedeespeciacuteficas aleacutem das ldquomulheresrdquo ldquoadolescentes e jovensrdquo ldquoidososrdquo ldquopessoas comdeficiecircnciardquo usuaacuterios de serviccedilos de sauacutede mental e indiviacuteduos sob a custoacutedia doEstado Desse modo como Cavalcanti reconheceria em tom ufanista meses maistarde no lanccedilamento da Campanha Nacional de Esclarecimento da Sauacutede doHomem o Brasil se tornou ldquoo segundo paiacutes da Ameacuterica que tem um setor para asauacutede do homem Soacute o Canadaacute tem essa pasta nem os EUA a possuirdquo8

Eacute importante desde jaacute destacar o papel da Sociedade Brasileira de Urologia(SBU) em todo esse processo e apontar a ironia que isso representa do ponto devista histoacuterico uma vez que durante os anos 19301940 o meacutedico e sexoacutelogoJoseacute de Albuquerque que se proclamava criador da andrologia tinha justamenteos urologistas entre seus principais alvos Eles mereciam criacuteticas contundentes dosexoacutelogo por quererem monopolizar o estudo e a intervenccedilatildeo sobre os problemasA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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sexuais masculinos Para Albuquerque ao lado da ginecologia a andrologia deviaser considerada subespecialidade da sexologia A urologia devia se ater segundo ofundador da andrologia aos problemas do sistema urinaacuterio de homens e mulheresComo parte da sexologia a andrologia deveria articular aleacutem de conhecimentosbioloacutegicos os de outras disciplinas como a psicologia e sociologia (cf CARRARA1996 2004) Mas nessa disputa a vitoacuteria coube agrave urologia pois atualmente aandrologia aparece como parte da urologia e eacute nesse acircmbito definida como a

subespecialidade uroloacutegica que ldquocuida do sistema reprodutor da funccedilatildeo sexual eda regulaccedilatildeo de hormocircnios sexuais masculinosrdquo tratando sobretudo de problemascomo o Distuacuterbio Androgecircnico do Envelhecimento Masculino (DAEM) a infertilidademasculina as disfunccedilotildees ereacuteteis a ejaculaccedilatildeo precoce Eacute curioso ainda perceber queembora a urologia natildeo seja uma especialidade voltada apenas para o homem aproacutepria SBU tende a apresentaacute-la como tal tatildeo grande eacute o peso das questotildees desauacutede masculina em sua pautaDesde pelo menos 2004 a SBU vinha se dedicando agrave causa da sauacutede do homeme ao longo de todo o ano de 2008 passa a exercer forte pressatildeo junto a diferentessetores do governo a parlamentares aos conselhos de sauacutede (CONASS eCONASEMS9) e a outras sociedades meacutedicas para o lanccedilamento de uma poliacuteticaespeciacutefica voltada agrave sauacutede do homem Em sua atuaccedilatildeo aleacutem do estabelecimentodas diretrizes dessa poliacutetica estavam em jogo questotildees coorporativas como o valordos honoraacuterios pagos ao urologista pelo SUS ou a obrigatoriedade de os urologistasvinculados ao SUS serem credenciados pela sociedadeUma das primeiras accedilotildees do grupo que assumiu a direccedilatildeo da SBU em janeirode 2008 foi procurar o Ministro da Sauacutede para discutir a implantaccedilatildeo do programade sauacutede do homem e defender a importacircncia da nomeaccedilatildeo de um chefe para aaacuterea teacutecnica Simultaneamente reuacutene-se com os presidentes da Sociedade Brasileirade Cardiologia e da Associaccedilatildeo Brasileira de Psiquiatria para discutir os principaisproblemas a serem incorporados ao programa10

No mecircs de julho daquele mesmo ano um acordo de cooperaccedilatildeo teacutecnica seriaassinado entre o Ministeacuterio da Sauacutede e a SBU com o objetivo de promover aassistecircncia ao homem no sistema puacuteblico de sauacutede e reduzir as taxas de mortalidademasculina A ideia era natildeo apenas treinar os meacutedicos do sistema puacuteblico de sauacutedea diagnosticar doenccedilas uroloacutegicas mas tambeacutem auxiliar na promoccedilatildeo de campanhasdirigidas ao puacuteblico leigo visando agrave prevenccedilatildeo dessas doenccedilas atraveacutes do incentivo| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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agrave busca dos serviccedilos de sauacutede A primeira dessas campanhas foi a CampanhaNacional de Esclarecimento da Sauacutede do Homem que a SBU promoveu comapoio do Ministeacuterio entre julho e setembro de 2008 O tema escolhido para acampanha foi a disfunccedilatildeo ereacutetil (DE) Segundo informaccedilotildees obtidas no site daSBU essa escolha foi feita por trecircs razotildees Em primeiro lugar cerca de 50 doshomens adultos acima de 40 anos teria ldquoalgum tipo de queixa relacionada agrave funccedilatildeoereacutetilrdquo Ao mesmo tempo menos de 10 dos homens que sofrem de ldquoalgumgrau de disfunccedilatildeo ereacutetilrdquo procurariam assistecircncia meacutedica por vergonha ou medodo diagnoacutestico Aleacutem disso a DE estaria frequentemente associada a outrasdoenccedilas (como a diabete ou problemas cardiovasculares) ou poderia ser causadapor outras doenccedilas uroloacutegicas (como o decliacutenio do hormocircnio masculino emidosos ou o tratamento do cacircncer de proacutestata) Para justificar a necessidade deuma campanha de esclarecimento do puacuteblico em geral a SBU citou dados doMinisteacuterio da Sauacutede segundo os quais em 2007 167 milhotildees de mulheresconsultaram-se com um ginecologista ao passo que apenas 27 milhotildees de homensse consultaram com um urologistaNo dia 28 de julho de 2008 a campanha nacional da SBU foi lanccedilada emBrasiacutelia num jantar que reuniu 130 convidados entre os quais vaacuterias autoridadesdo Ministeacuterio da Sauacutede incluindo o coordenador da Aacuterea Teacutecnica da Sauacutede doHomem Na ocasiatildeo foi apresentado um comercial de 30 segundos focalizandoa disfunccedilatildeo ereacutetil a ser transmitido por TV aberta durante os meses de agosto esetembro e um folheto de divulgaccedilatildeo Por apresentar aspectos cruciais dointrincado processo de medicalizaccedilatildeo do corpo masculino esse materialpublicitaacuterio merece aqui uma anaacutelise mais detidaO folheto mostra um casal com idade entre 35 e 45 anos (ela mais jovem queele) ambos brancos bem vestidos magros felizes e exibindo alianccedila na matildeoesquerda prestes a se beijar Ao fundo um pocircr-do-sol sobre um mar dourado

compotildee um cenaacuterio paradisiacuteaco Na parte de baixo em letras grandes lemos ldquoosbons momentos de voltardquo mais acima agrave direita em letras menores ldquocerca de 40dos homens apresentam algum grau de dificuldade de ereccedilatildeo Trazer os bonsmomentos de volta soacute depende de vocecircrdquo Abaixo da imagem um texto em corpoainda menor adverteA dificuldade de ereccedilatildeo atinge milhotildees de homens no Brasil Os tratamentos hojeem dia satildeo muito eficazes Uma vida sexual insatisfatoacuteria pode estar relacionadaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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a diversos fatores como diabetes e hipertensatildeo Fale com seu urologista e tragaos bons momentos de volta11

Eacute importante perceber os deslizamentos entre diferentes expressotildees no decorrerda campanha A campanha da SBU eacute centrada na disfunccedilatildeo ereacutetil Os argumentosapresentados pela sociedade falam que 40 dos homens acima de 40 anosapresentam alguma queixa relacionada agrave funccedilatildeo ereacutetil No folheto o termo usadoeacute dificuldade de ereccedilatildeo que eacute remetida a uma vida sexual insatisfatoacuteria Do mesmomodo a faixa etaacuteria citada no website da SBU (homens acima dos 40) eacute suprimidaPassamos entatildeo de ldquoalgum tipo de queixa relacionada a funccedilatildeo ereacutetilrdquo paradificuldade de ereccedilatildeo ambas expressotildees subsumidas pela categoria disfunccedilatildeo ereacutetilque eacute como indicado pela proacutepria SBU o verdadeiro foco da campanha Essedeslizamento em nenhum momento eacute objeto de explicaccedilatildeo ou discussatildeo sejanos documentos da SBU seja naqueles produzidos pela Aacuterea Teacutecnica da Sauacutededo Homem Outra caracteriacutestica interessante do folheto eacute seu duplo apelo Eacutefaacutecil perceber que as expressotildees dificuldade de ereccedilatildeo ou vida sexual insatisfatoacuterianatildeo necessariamente se enquadram na categoria doenccedila O texto chama atenccedilatildeopara ldquoos bons momentosrdquo (em primeiro plano e em letras grandes) apresentandouma imagem extremamente positiva - o lindo e (quase) jovem casal abraccedilado -que natildeo se associa agrave ideia de doenccedila mas de felicidade e sauacutede Eacute possiacutevelportanto para aquele que vecirc o anuacutencio entender que a dificuldade de ereccedilatildeo natildeoeacute de fato uma doenccedila O anuacutencio entretanto visa a levar os homens ao meacutedico

Por que ir ao meacutedico se natildeo se estaacute doente As frases em letra menor na parteinferior direita da imagem ao mesmo tempo em que contecircm uma ameaccedila (ldquoumavida sexual insatisfatoacuteria pode estar relacionada a diversos fatores como diabetese hipertensatildeordquo) oferecem uma espeacutecie de desculpa para os homens queinsatisfeitos com sua performance tecircm vergonha de procurar um meacutedico Ouseja poderatildeo buscar um urologista devido agrave sua preocupaccedilatildeo com um problemapropriamente meacutedico e natildeo sexualEacute tambeacutem significativo que dentre os vaacuterios perigos letais que rondariam os homensa disfunccedilatildeo ereacutetil tenha sido escolhida para tema de uma campanha cujo tiacutetulo prometeum geneacuterico ldquoesclarecimento da sauacutede do homemrdquo Um dos grandes obstaacuteculos agravepromoccedilatildeo da sauacutede dos homens conforme repetido inuacutemeras vezes ao longo do processode construccedilatildeo da nova poliacutetica eacute justamente a centralidade da ideia de invulnerabilidadeou seja da ideia de potecircncia na construccedilatildeo da masculinidade hegemocircnica Por essa| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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razatildeo os homens seriam como declara o presidente da Associaccedilatildeo Meacutedica de Brasiacuteliano lanccedilamento da campanha ldquorelapsosrdquo com sua sauacutede procurando menosfrequentemente os meacutedicos que as mulheres Mas ao centrar a felicidade dos homensna potecircncia sexual vista como capacidade de obter uma ereccedilatildeo a campanha acabareforccedilando a centralidade dos valores que supostamente pretende combaterParadoxalmente ao prometer devolver-lhes a potecircncia perdida os urologistas natildeo deixamde procurar atrair os homens aos cuidados de sauacutede justamente a partir da configuraccedilatildeode valores que os afastaria de tais cuidados e que como eacute o caso da virilidade compotildeemos fundamentos mesmos da masculinidade hegemocircnica12

Na luta pela implantaccedilatildeo da nova poliacutetica que a SBU manteacutem ao longo do anode 2008 outro momento importante eacute a audiecircncia puacuteblica convocada pela Cacircmarados Deputados no acircmbito do IV Foacuterum Poliacuteticas Puacuteblicas de Sauacutede do Homemrealizado em agosto13 Nela o Ministeacuterio da Sauacutede apresenta seu projeto para a

aacuterea Quase simultaneamente o Ministeacuterio divulgaria o documento ldquoPoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homemrdquo (PNAISH) Iniciava assimuma discussatildeo que envolveria diferentes atores (setores do governo conselhos desauacutede associaccedilotildees meacutedicas pesquisadores profissionais de sauacutede e representantesda sociedade civil) e se estenderia ateacute maio do ano seguinte quando a versatildeo finaldo documento eacute oficialmente divulgada Ao lado da urologia entre as associaccedilotildeesmeacutedicas participam sobretudo aquelas relacionadas aos problemas maiscomumente identificados como ldquomasculinosrdquo (cardiologia sauacutede mentalgastroenterologia e pneumologia)Aleacutem de influir decisivamente no conteuacutedo do novo programa a SBU trabalhatambeacutem no sentido de garantir sua sustentaccedilatildeo poliacutetica Em maio de 2009 porexemplo distribui folhetos no XXV Congresso Nacional de Secretarias Municipaisde Sauacutede visando a ldquosolicitar apoio para poliacuteticas puacuteblicas voltadas para o sexomasculinordquo Segundo noticia-se no website da sociedade ldquoo objetivo eacute sensibilizaros gestores municipais a adotarem poliacuteticas que visem a uma assistecircncia uroloacutegicamais efetiva nos hospitais puacuteblicos Aleacutem disso a SBU quer conscientizaacute-los sobrea Poliacutetica Nacional de Sauacutede do Homem do Ministeacuterio da Sauacutede e agregaacute-los naluta para que tal programa entre em vigor o quanto antesrdquo No folheto distribuiacutedocompara-se a situaccedilatildeo de mulheres apresentadas como sujeitos que reivindicamseus direitos e de homens apresentados em linguagem um tanto confusa comosujeitos passivos cuja sauacutede tem sido negligenciadaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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A mulher brasileira tem conquistado avanccedilos em nossa sociedade ganhandodignidade disputando com isonomia diferentes funccedilotildees que as igualam agraves condiccedilotildeesdos homens Com isso as autoridades governamentais tem [sic] desenvolvidoimportantes accedilotildees de poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede da mulher no acircmbito do SUSOs homens por sua vez continuam deixando de ser contemplados por essas accedilotildeesgovernamentais evoluindo para o distanciamento das soluccedilotildees de seus principaisagravos na aacuterea da sauacutede gerando informaccedilotildees desencontradas e sem base cientiacuteficao que sobremaneira resulta em grande prejuiacutezo social (grifo nosso)14

A nova poliacutetica de sauacutede seria finalmente lanccedilada em agosto de 2009 no bojode uma seacuterie de atividades relativas agrave campanha pela sauacutede do homem Em 10 de

agosto um dia apoacutes o Dia dos Pais o Presidente Lula trata da sauacutede do homemem seu programa de raacutedio ldquoCafeacute com o Presidenterdquo e anuncia que o MS lanccedilaraacuteem breve a Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem O Presidentediz entatildeo que no que concerne agrave sauacutede os homens mereceriam ldquoum puxatildeo deorelhardquo por terem ldquomedo de agulhardquo indo pouco ao meacutedico e soacute iniciandotratamento depois do agravamento do quadro Em sua intervenccedilatildeo tambeacutemcompara homens e mulheres apontando a ldquoculturardquo como raiz do problemaTodos noacutes homens temos essa bobagem na cabeccedila que eacute o medo de fazer o examede proacutestata e isso tem sido a causa da morte de muitos homens por causa docacircncer de proacutestata Soacute para vocecirc ter uma ideia segundo estimativa do SUS paracada oito consultas ginecoloacutegicas feitas em 2007 soacute teve uma uroloacutegica Enquantoquase 17 milhotildees de mulheres foram ao ginecologista em 2007 apenas 26 milhotildeesde homens procuraram um urologista Veja todo homem depois de uma certaidade tem que procurar o urologista A verdade eacute que ainda tem muitos que tecircmmedo de procurar o urologista e fazer exame de toque por conta da proacutestata Essaatitude estaacute muito ligada agrave nossa cultura Mas isso estaacute na hora de mudar issonatildeo combina com a vida moderna Temos que acompanhar as mudanccedilas nomundo e encarar nossas fragilidades Precisamos ter haacutebitos saudaacuteveis fazer examede prevenccedilatildeo e rotina (grifo nosso)15

Por beberem mais fumarem mais e serem mais sedentaacuterios que as mulheres oshomens teriam uma menor expectativa de vida Segundo o Presidente em largamedida dependeria deles a transformaccedilatildeo desse quadro Nesse sentido termina aentrevista com um apelo ldquoEntatildeo o meu apelo para os homens no Dia dos Pais eacuteque a partir de agora vamos nos cuidar porque noacutes precisamos viver mais e vivermelhor Afinal de contas a nossa famiacutelia depende muito de noacutesrdquo16| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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Ainda em agosto realiza-se na Cacircmara dos Deputados o V Foacuterum de PoliacuteticasPuacuteblicas e Sauacutede do Homem cujo objetivo seria segundo o presidente da SBUldquomanter a lembranccedila e pressatildeo junto aos oacutergatildeos governamentais e parlamentaressobre a importacircncia da poliacutetica nacional de sauacutede do homem que resgata umalacuna e inclui o gecircnero masculino ainda secundarizado nas poliacuteticas puacuteblicasrdquo17

Durante o Foacuterum o presidente da SBU recebe a notiacutecia do lanccedilamento oficial dapoliacutetica Ao comemorar revela o papel central desempenhado pelos urologistasFinalizamos um importante ciclo no sentido de sensibilizar as autoridades atraveacutes

de simpoacutesios e Foacuteruns quanto agrave importacircncia da inclusatildeo de projetos especiacuteficosvoltados para o gecircnero masculino Estamos felizes com o lanccedilamento desta poliacuteticapelo Governo Federal Dentre todas as especialidades eacute inegaacutevel que a Urologiaguarda uma estreita poreacutem natildeo exclusiva relaccedilatildeo com o homem Iniciaremos umoutro ciclo que eacute o plano de accedilatildeo desta poliacutetica nos estados e municiacutepios e aimportacircncia que os gestores daratildeo a estas accedilotildees O homem brasileiro agradece(grifo nosso)18

Finalmente em 28 de agosto de 2009 no auditoacuterio da Organizaccedilatildeo Pan-Americana de Sauacutede em Brasiacutelia o Ministeacuterio da Sauacutede lanccedila oficialmente a PoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem Em seu discurso o ministroressaltaria a importacircncia da Sociedade Brasileira de Urologia na construccedilatildeo danova poliacutetica que conforme declara o presidente da SBU ldquovaloriza o homembrasileiro fortalece a atividade uroloacutegica e o urologista no Sistema Uacutenico de Sauacutederdquo19

Salvar os homens de si mesmos o documento ldquoPoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes)rdquoComo dito acima em agosto de 2008 o Departamento de Accedilotildees Programaacuteticas eEstrateacutegicas ao qual se subordina a Aacuterea Teacutecnica de Sauacutede do Homem lanccedilou aprimeira versatildeo do documento ldquoPoliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede doHomem (princiacutepios e diretrizes)rdquo20 O documento eacute apresentado como fruto deuma parceria entre gestores do SUS sociedades cientiacuteficas sociedade civilorganizada pesquisadores acadecircmicos e agecircncias de cooperaccedilatildeo internacional Aindana apresentaccedilatildeo lemos que a sauacutede do homem eacute uma das prioridades do governoe que a poliacutetica a ser implementada traduziria ldquoum longo anseio da sociedade aoA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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reconhecer que os agravos do sexo masculino constituem verdadeiros problemasde sauacutede puacuteblicardquo (PNAISH 2008 p 3)Segundo o documento estudos comparativos tecircm demonstrado que os homenssatildeo mais vulneraacuteveis a doenccedilas do que as mulheres especialmente agraves enfermidadescrocircnicas e graves e que morrem mais cedo Apesar deste fato jaacute bem documentadoos homens natildeo satildeo captados pelos serviccedilos de atenccedilatildeo primaacuteria (como ocorre com

as mulheres) Sua entrada no sistema de sauacutede se daria principalmente pela atenccedilatildeoambulatorial e hospitalar de meacutedia e alta complexidades configurando um perfilque favorece o agravo da morbidade pela busca tardia ao atendimentoPara explicar a ldquoresistecircncia masculina agrave atenccedilatildeo primaacuteriardquo o texto lanccedila matildeo depesquisas qualitativas21 que apontam diversas razotildees para o fenocircmeno agrupadasem dois tipos de determinantes ldquobarreiras institucionaisrdquo e ldquobarreirassocioculturaisrdquo As ldquobarreiras institucionaisrdquo dizem respeito agrave dificuldade de acessoaos serviccedilos assistenciais e satildeo tratadas de forma bastante breve O documentoenfatiza as chamadas ldquovariaacuteveis culturaisrdquoestereoacutetipos de gecircnero enraizados haacute seacuteculos na cultura patriarcal produzempraacuteticas baseadas em crenccedilas e valores do que eacute ser masculino A doenccedila eacuteconsiderada um sinal de fragilidade que os homens natildeo reconhecem como inerentesagrave sua proacutepria condiccedilatildeo bioloacutegica O homem se julga invulneraacutevel o que acaba porcontribuir para que ele cuide menos de si mesmo e se exponha mais agraves situaccedilotildeesde risco (PNAISH 2008 p 6)Mais abaixo lecirc-seAinda que o conceito de masculinidade venha sendo atualmente contestado e tenhaperdido seu rigor original na dinacircmica do processo cultural [] a concepccedilatildeo aindaprevalente e hegemocircnica de masculinidade eacute o eixo estruturante pela natildeo-procuraaos serviccedilos de sauacutede (Idem)Uma vez explicitadas o que satildeo as ldquovariaacuteveis culturaisrdquo o documento afirma queo grande desafio de uma poliacutetica voltada para os homens eacute mobilizar a ldquopopulaccedilatildeomasculina brasileira para a luta pela garantia de seu direito social agrave sauacutederdquo Paratanto a poliacutetica em questatildeo pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para oreconhecimento e a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para queadvenham sujeitos protagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio egozo dos direitos de cidadaniardquo (PNAISH 2008 p 7)| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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No item ldquoMetodologia de construccedilatildeo da poliacuteticardquo o texto afirma que a ideiacentral do documento foi desenvolvida de modo articulado com a Poliacutetica Nacionalde Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher ldquorecuperando experiecircncias e conhecimentosproduzidos naquela aacuterea promovendo accedilotildees futuras em consonacircncia tanto emprinciacutepios como em praacuteticasrdquo (PNAISH 2008 p 9) Esta articulaccedilatildeo com a poliacuteticavoltada para as mulheres seraacute objeto de discussatildeo mais adianteO item do documento intitulado ldquoDiagnoacutesticordquo eacute bastante extenso e como o

nome indica procura oferecer um quadro amplo acerca dos agravos agrave sauacutedemasculina22 percorrendo temas como violecircncia alcoolismo e tabagismo indicadoresde mortalidade e de morbidade Aleacutem dessas temaacuteticas nas quais reconhecemos alinguagem mais tradicional da epidemiologia e da sauacutede puacuteblica encontramosoutros temas que embora possam ser vistos como parte do campo da sauacutede nosentido lato extrapolam seus limites uma vez que tecircm ressonacircncias mais claramentepoliacuteticas eou juriacutedicas ldquoadolescecircncia e velhicerdquo e ldquodireitos sexuais e reprodutivosrdquoLogo na introduccedilatildeo desse item lemos queOs temas mais recorrentes no estudo sobre a sauacutede do homem podem se estruturarem torno de trecircs eixos violecircncia tendecircncia agrave exposiccedilatildeo a riscos com consequecircncianos indicadores de morbi-mortalidade e sauacutede sexual e reprodutiva (PNAISH2008 p 11)Como veremos adiante dentre esses trecircs eixos o terceiro - sauacutede sexual ereprodutiva - seraacute enfatizado em detrimento dos demais embora na apresentaccedilatildeodos diversos subitens de que trata o item ldquoDiagnoacutesticordquo os dois primeiros eixossejam mais extensamente tratados com a apresentaccedilatildeo de um conjunto expressivode dados e argumentos O subitem ldquoDireitos sexuais e reprodutivosrdquo ao contraacuteriodos demais natildeo traz dados sobre agravos ou ameaccedilas agrave sauacutede sexual e reprodutivamas expotildee uma espeacutecie de agenda poliacutetica afirmando a necessidade da implementaccedilatildeodos direitos sexuais e reprodutivos dos homens A linguagem dos direitos se impotildeee a categoria ldquosauacutederdquo natildeo eacute mencionada O documento afirma por exemplo que eacutenecessaacuterio ldquosuperar a restriccedilatildeo da responsabilidade sobre as praacuteticas contraceptivas agravesmulheresrdquo de modo a assegurar aos homens ldquoo direito agrave participaccedilatildeo no planejamentoreprodutivordquo a paternidade devendo ser vista como ldquoum direito do homem a participarde todo o processo desde a decisatildeo de ter ou natildeo filhos como e quando tecirc-los bemcomo do acompanhamento da gravidez do parto do poacutes-parto e da educaccedilatildeo dacrianccedilardquo (PNAISH 2008 p 20) Eacute curiosa essa formulaccedilatildeo uma vez que a demandaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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pela participaccedilatildeo masculina nas decisotildees reprodutivas eacute uma bandeira do movimento

feminista Normalmente tal participaccedilatildeo aparece como exigecircncia das mulherescomo um dever do qual o homem tende a escapar No documento o que antes eraconsiderado um dever se transforma em direitoA insistecircncia na temaacutetica da sauacutede sexual e reprodutiva atravessa o documentoe surge com forccedila no item ldquoObjetivosrdquo Satildeo trecircs os objetivos especiacuteficos listados(1) Organizar implantar qualificar e humanizar em todo territoacuterio brasileiro aatenccedilatildeo integral a sauacutede do homem dentro dos princiacutepios que regem o SistemaUacutenico de Sauacutede(2) Estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeo da assistecircncia em sauacutede sexual ereprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede(3) Ampliar atraveacutes da educaccedilatildeo o acesso dos homens agraves informaccedilotildees sobre asmedidas preventivas contra os agravos e enfermidades que atingem a populaccedilatildeomasculina destacando seus direitos sexuais e reprodutivos (PNAISH 2008 p 39grifos nossos)O segundo dos objetivos especiacuteficos - estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeoda assistecircncia em sauacutede sexual e reprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede -tem uma extensa lista de subitens Dentre estes aleacutem de metas mais tradicionaisrelativas ao planejamento reprodutivo masculino contracepccedilatildeo ciruacutergica voluntaacuteriae prevenccedilatildeo de DSTAids encontramos os seguintes objetivos- estimular implantar implementar e qualificar pessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildeessexuais masculinas- promover a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem nas populaccedilotildees indiacutegenas negrasquilombolas gays bissexuais travestis transexuais trabalhadores rurais homenscom deficiecircncia em situaccedilatildeo de risco em situaccedilatildeo carceraacuteria desenvolvendoestrateacutegias voltadas para a promoccedilatildeo da equidade para distintos grupos sociais- associar as accedilotildees governamentais com as da sociedade civil organizada paraefetivar a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem com protagonismo social na enunciaccedilatildeodas reais condiccedilotildees de sauacutede da populaccedilatildeo heterogecircnea de homens (PNAISH2008 p 39)Destacamos aqui dois pontos que comentaremos mais adiante nas conclusotildeesO primeiro diz respeito agrave associaccedilatildeo entre o discurso da SBU (presente na ideia deldquoatenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) e o dos movimentos da ldquosociedade civilorganizadardquo O segundo refere-se ao fato de que a ecircnfase colocada sobre sauacutedesexual e direitos sexuais e reprodutivos natildeo aparece do mesmo modo quando se| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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trata de outros temas como a violecircncia reconhecidamente uma das mais relevantescausas de morbidade e mortalidade entre homens adultos jovens23

Assim emboradiscuta e exponha extensamente os fatores considerados pela sauacutede puacuteblica como

mais relevantes agrave sauacutede masculina o documento dirige seu foco para as novastemaacuteticas da sauacutede sexual e dos direitos sexuais e reprodutivos Ateacute entatildeo pelomenos no que diz respeito a estes uacuteltimos tais temaacuteticas pareciam mais ligadas aosdiscursos feministas em torno da sauacutede da mulherAlgumas conclusotildees possiacuteveisO documento de algum modo afirma o caraacuteter ldquoinsalubrerdquo de certa masculinidadesendo os homens apresentados como viacutetimas de sua proacutepria masculinidade ouseja das crenccedilas e valores que constituiriam as ldquobarreiras socioculturaisrdquo que seantepotildeem agrave medicalizaccedilatildeo O objetivo principal do programa eacute enfraquecer aresistecircncia masculina agrave medicina de uma forma geral ou seja medicalizar oshomens24 Para tanto uma accedilatildeo educativa bem feita ldquomodernizariardquo os homensbrasileiros dissipando o pensamento maacutegico que os (des)orienta e que os tornapresas de seu proacuteprios preconceitosEntretanto a questatildeo nos parece bastante mais complexa do que imaginam osdefensores da nova poliacutetica pois essa situaccedilatildeo paradoxal dos homens em relaccedilatildeo asua proacutepria sauacutede e ao seu corpo - sua cultura somaacutetica como diria Luc Boltanski(1979) - deriva em larga medida da posiccedilatildeo que (ainda) ocupam na hierarquia degecircnero A questatildeo natildeo eacute de ldquoculturardquo portanto mas do modo como a cultura estaacuteimbricada ou implicada em relaccedilotildees de poder bem concretas que o discursovitimaacuterio e paternalista incorporado agrave nova poliacutetica contribui mais para ocultar doque revelar Para os homens articular reivindicaccedilotildees a partir de uma posiccedilatildeogenerificada e tornar-se visiacuteveis enquanto ldquohomensrdquo significa colocar-se no mesmoplano que as mulheres Perderiam assim a posiccedilatildeo de representantes universais daespeacutecie e arriscariam a perder tambeacutem suas prerrogativas na hierarquia de gecircneroTalvez seja por isso mesmo que eles natildeo o fazem natildeo havendo (ainda) organizaccedilotildeesldquomasculinistasrdquo como existem organizaccedilotildees ldquofeministasrdquoDesse modo a condiccedilatildeo para que ocorra a mudanccedila cultural necessaacuteria para

fazer com que os homens (heterossexuais) tenham uma relaccedilatildeo tatildeo reflexiva comseus proacuteprios corpos quanto seus vaacuterios ldquooutrosrdquo (mulheres homossexuais travestis)eacute que tais ldquooutrosrdquo tenham o mesmo poder e prestiacutegio que eles Tudo se passaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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como se os homens precisassem se tornar socialmente vulneraacuteveis para poderperceber sua vulnerabilidade bioloacutegica e para ver algum sentido na luta porultrapassaacute-la Dito de outro modo mostrar-se invulneraacutevel faz parte do exerciacuteciodo poder pelos homens e o poder tem um ldquopreccedilordquo (uma vida mais curta ou menossaudaacutevel) que parece os homens ainda estatildeo dispostos a pagar Diferentementedas mulheres que organizadas num amplo movimento procuraram atraveacutes depoliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas sair da posiccedilatildeo de subordinaccedilatildeo a que historicamenteestavam relegadas os homens soacute podem aparecer entatildeo como sujeitos passivosfrente agrave interpelaccedilatildeo que lhes dirigem a medicina e o Estado Acabam assimsendo retoricamente representados pelos meacutedicos sobretudo urologistas e pelosformuladores e executores de uma poliacutetica que supostamente se implanta em nomedeles mas sem sua participaccedilatildeoQuanto agrave ecircnfase dada aos direitos sexuais e reprodutivos parece-nos que taistemas tecircm uma dupla entrada no programa - atraveacutes da urologia (ou medicinasexual) e da incorporaccedilatildeo da retoacuterica de movimentos poliacuteticos organizados ASBU aparece como ator fundamental na formulaccedilatildeo da poliacutetica Como vimos oacordo de cooperaccedilatildeo teacutecnica assinado com o Ministeacuterio da Sauacutede teve como umde seus principais desdobramentos a campanha centrada na disfunccedilatildeo ereacutetil(lanccedilada antes mesmo da publicaccedilatildeo do documento) Eacute o tipo de pressatildeo quevem dos especialistas neste caso com um objetivo muito claro transformar adisfunccedilatildeo ereacutetil num problema de sauacutede puacuteblica o que eacute facilitado por doisfatores a declaraccedilatildeo do entatildeo Secretaacuterio Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede Joseacute Gomes

Temporatildeo em 200625 e a nomeaccedilatildeo de Ricardo Cavalcanti para a Coordenaccedilatildeoda Aacuterea Teacutecnica da Sauacutede do Homem Cavalcanti eacute um dos pais fundadores damoderna sexologia brasileira e embora sendo ginecologista de formaccedilatildeocertamente facilitou o diaacutelogo entre o governo e a SBU Neste caso a afirmaccedilatildeodos direitos sexuais passa pela sexologia e pela medicina sexualA leitura do documento nos leva agrave conclusatildeo de que a poliacutetica de aproximaccedilatildeocom o Ministeacuterio da Sauacutede e os formuladores de poliacuteticas puacuteblicas empreendidapela SBU foi bem-sucedida jaacute que a preocupaccedilatildeo com a sauacutede sexual (explicitadapor exemplo no objetivo de ldquoestimular implantar implementar e qualificarpessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) ultrapassa em grau deimportacircncia pelo menos no documento outros problemas possiacuteveis dentre osquais poderiacuteamos citar aleacutem da violecircncia os relacionados agrave sauacutede mental Por| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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outro lado a linguagem dos especialistas convive com uma outra tiacutepica doschamados movimentos sociais (lembremos que o documento afirma como umdos objetivos do programa ldquoincluir o enfoque de gecircnero orientaccedilatildeo sexualidentidade de gecircnero e condiccedilatildeo eacutetnico-racial nas accedilotildees educativasrdquo) produzindoum discurso hiacutebrido em que caminhos diversos parecem levar a um mesmoobjetivo final - a medicalizaccedilatildeo do corpo masculinoDe fato a presenccedila no documento do discurso dos movimentos sociaisnormalmente voltados para poliacuteticas identitaacuterias nos parece bastante forte Voltamosaqui a um trecho na introduccedilatildeo do documento segundo o qual o programa desauacutede do homem pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para o reconhecimentoe a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para que advenham sujeitosprotagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio e gozo dos direitos decidadaniardquo Isto eacute os homens devem paradoxalmente ser transformados em ldquosujeitosprotagonistas de suas demandasrdquo Atraveacutes do movimento organizado atransformaccedilatildeo das mulheres em ldquoprotagonistas de suas demandasrdquo envolveu seu

relativo ldquoempoderamentordquo No caso dos homens o ldquoprotagonismordquo implicajustamente o contraacuterio isto eacute assumir sua fragilidade e vulnerabilidade aprendendoa enunciar suas demandas Utiliza-se assim a mesma linguagem e os mesmosargumentos comumente presentes no discurso dos movimentos organizados paraefeitos aparentemente opostosNo acircmbito do documento uma das formas encontradas para lidar com esseaparente paradoxo que consiste em formular uma poliacutetica puacuteblica como se elafosse reivindicada pelos sujeitos por ela visados eacute desmembrar a categoria ldquohomemrdquoem uma seacuterie de subcategorias - iacutendios negros gays travestis portadores dedeficiecircncias trabalhadores rurais etc - que por outras razotildees satildeo historicamentemarginalizadas Ao que parece as mulheres podem formar mais facilmente umacategoria unificada mas os homens natildeo Homem pura e simplesmente semqualquer adjetivo natildeo parece ser uma identidade que se precise assumir (contra aspressotildees da sociedade) ou que se deva fortalecer ou pela qual se precise lutar Porisso talvez a necessidade de despedaccedilaacute-la num sem-nuacutemero de categorias demodo a tornar visiacutevel sua vulnerabilidade A politizaccedilatildeo e sensibilizaccedilatildeo do homemportanto tem por objetivo tornaacute-lo consciente dessa vulnerabilidade Soacute entatildeo eacutepossiacutevel medicalizaacute-lo Neste caso consciecircncia poliacutetica ldquoprotagonismordquo emedicalizaccedilatildeo aparecem como indissociaacuteveisA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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ReferecircnciasBOLTANSKI L As classes sociais e o corpo Rio de Janeiro Graal 1979BOURDIEU P O campo cientiacutefico In ORTIZ R (Org) Pierre Bourdieu Sociologia Satildeo PauloAacutetica 1983______ La domination masculine Paris Seuil 1998BRASIL Ministeacuterio da Sauacutede Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes) Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIAS Port2008PT-09-CONSpdf Acesso em maio 2009CARRARA S Tributo a Vecircnus a luta contra a siacutefilis no Brasil da passagem do seacuteculo aos anos 1940Rio de Janeiro Fiocruz 1996

______ Une science deacuterisoire Lacuteandrologie au Bregravesil entre les deux guerres Vibrant ndash VirtualBrazilian Anthropology v 1 n frac12 jan-dez 2004COSTA A M Desenvolvimento e Implantaccedilatildeo do PAISM no Brasil In GIFFIN Karen COSTAS H (Org) Questotildees da sauacutede reprodutiva Rio de Janeiro Fiocruz 1999FOUCAULT M Vigiar e punir Petroacutepolis Vozes 1977GOMES R Sexualidade masculina e sauacutede do homem proposta para uma discussatildeo CiecircnciaSauacutede Coletiva Rio de Janeiro n 8 p 825-9 2003GOMES R NASCIMENTO E F ARAUacuteJO F C Por que os homens buscam menos os serviccedilosde sauacutede do que as mulheres As explicaccedilotildees de homens com baixa escolaridade e homens comensino superior Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 23 n 3 mar 2007GOMES R NASCIMENTO E F A produccedilatildeo do conhecimento da sauacutede puacuteblica sobre arelaccedilatildeo homem-sauacutede uma revisatildeo bibliograacutefica Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 22n 5 p 901-911 maio 2006MEDRADO B LYRA J AZEVEDO M GRANJA E e VIEIRA S Princiacutepios diretrizes erecomendaccedilotildees para uma atenccedilatildeo integral aos homens na sauacutede Recife Instituto PAPAI 2009OLIVEIRA P P de A construccedilatildeo social da masculinidade Belo Horizonte UFMG 2004PEREIRA A L Accedilotildees educativas em contracepccedilatildeo teoria e praacutetica dos profissionais de sauacutede Tese(Doutorado em Sauacutede Coletiva) - Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio dejaneiro Rio de Janeiro 2008ROHDEN F Uma ciecircncia da diferenccedila sexo e gecircnero na medicina da mulher Rio de JaneiroFiocruz 2001SCHRAIBER L B GOMES R COUTO M T Homens e sauacutede na pauta da sauacutede coletivaCiecircncia e Sauacutede Coletiva v 10 n 1 p 7-17 2005| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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STOCKLE V Is Sex to Gender as Race is to Ethnicity In DEL VALLE T (Ed) GenderedAnthropology London Routledge 1993

Notas Uma primeira versatildeo deste texto foi apresentada no simpoacutesio The Future of Sexual Health SexualHealth in Public Health Policies no XIX Congresso da World Association for Sexual Health Gotemburgojunho de 2009 tendo utilizado dados colhidos na pesquisa ldquoDiferenccedilas de gecircnero na recentemedicalizaccedilatildeo do envelhecimento e sexualidade a criaccedilatildeo das categorias menopausa andropausa edisfunccedilatildeo sexualrdquo coordenada por Fabiacuteola Rohden e apoiada pelo CNPq1 A partir das reflexotildees de Michel Foucault (1977) em torno do panopticismo pode-se afirmar quedeterminados regimes de visibilidade configuram certos sujeitos que de outro modo inexistiriam ouexistiriam de modo inteiramente diferente Natildeo se trata aqui de entrarmos na polecircmica entreconstrutivismo e essencialismo ou seja de decidir se alguns sujeitos estavam sempre laacute agrave espera deserem descoberto ou se satildeo criados pela proacutepria ldquoluzrdquo que os ilumina2 Com ldquoobjetificaccedilatildeordquo natildeo nos referimos aqui a um processo de negaccedilatildeo aos homens de seu estatuto de

pessoa humana mas ao processo de instituiccedilatildeo de certos temas problemas ou sujeitos como objetoslegiacutetimos de conhecimento em determinado campo cientiacutefico conforme formulado originalmente porPierre Bourdieu (1983)3 A partir dos anos 1990 esse processo vem sendo acompanhado pela progressiva transformaccedilatildeo doshomens e da masculinidade em objeto de conhecimento tambeacutem das ciecircncias sociais configurandonovas aacutereas de conhecimento como os chamados ldquomenrsquos studiesrdquo Para isso ver entre outros Oliveira(2004)4 Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIASPort2008PT-09-CONSpdf (acessoem maio 2009)5 Eacute importante destacar que Joseacute Gomes Temporatildeo em 2006 quando ainda era Secretaacuterio Nacionalde Atenccedilatildeo agrave Sauacutede no Ministeacuterio da Sauacutede tentou criar centros de atenccedilatildeo agrave sauacutede no setor privadopara melhorar a assistecircncia agrave sauacutede do homem Em declaraccedilatildeo publicada no jornal O Estado de SatildeoPaulo em janeiro de 2006 Temporatildeo afirmou que o Ministeacuterio da Sauacutede estava analisando a possibilidadede oferecer tratamento para a disfunccedilatildeo ereacutetil atraveacutes da rede puacuteblica incluindo a distribuiccedilatildeo demedicamentos O governo estaria examinando o impacto financeiro de tal medida6 Ao que parece havia no acircmbito do MS desde 2006 uma Coordenaccedilatildeo de Sauacutede do Homem7 Nove meses depois foi substituiacutedo pelo Dr Baldur Schubert um assessor da sua equipe especialistaem seguridade social e sauacutede do trabalho8 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)9 Respectivamente Conselho Nacional de Secretaacuterios de Sauacutede e Conselho Nacional de SecretaacuteriosMunicipais de SauacutedeA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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10 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)11 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrpdf2008_saudehomempdf (acesso em maio 2009)12 Para a discussatildeo sobre a dominaccedilatildeo masculina ver Bourdieu (1998)13 Tais foacuteruns vecircm sendo organizados anualmente pela Comissatildeo de Seguridade Social e Famiacutelia daCacircmara dos Deputados em parceria com a SBU14 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrimagesfolder_noticiajpg (acesso em maio 2009)15 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)16 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)17 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)18 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)19 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)20 O documento passou por uma consulta puacuteblica e foi aprovado pelo Conselho Nacional de Sauacutede emjulho de 200921 O documento lanccedila matildeo de trabalhos importantes que no campo da sauacutede vecircm discutindo amasculinidade como Gomes (2003) Gomes e Nascimento (2006) Gomes et al (2007) Schraiber etal (2005)22 Lemos no documento que ldquoos indicadores apresentados visam a oferecer uma visatildeo ampliada doprocesso de adoecimento e de vulnerabilidade e agravos agrave sauacutede na populaccedilatildeo de homensrdquo (PNAISH2008 p 11)23 Esse aspecto foi tambeacutem destacado em reaccedilatildeo agraves diretrizes do Programa expressa em ldquodocumentomarcordquoproduzido por iniciativa de importantes organizaccedilotildees natildeo-governamentais brasileiras que haacute

muitos anos trabalham com o tema das masculinidades O texto aborda o Programa com base em umaleitura feminista de gecircnero Aleacutem de criticar a centralidade assumida pelas doenccedilas do aparelhogeniturinaacuterio na nova poliacutetica enfatiza-se tambeacutem a relativa desvalorizaccedilatildeo da promoccedilatildeo agrave sauacutede emfavor da oferta de serviccedilos de assistecircncia (MEDRADO et al 2009)24 Eacute interessante pensar como esse movimento vai de encontro agrave luta feminista contra a medicalizaccedilatildeodo corpo feminino25 Ver nota 2| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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voltadas especificamente agrave populaccedilatildeo masculina ao menos natildeo no mesmo passoem que o eram para as mulheres e para outras categorias sociais Tampouco seA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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consolidou uma especialidade meacutedica que se ocupasse exclusivamente dos homensSe a intensidade com que a medicina investiu sobre os corpos femininos fez comque jaacute em finais do seacuteculo XIX a ginecologia se institucionalizasse (cf ROHDEN2001) a andrologia nunca chegou a ter o mesmo estatuto Isso quer dizer que umaciecircncia sobre o homem como sujeito generificado e natildeo como representante universalda espeacutecie humana encontrou e ainda encontra grande dificuldade para se implantarNa primeira deacutecada do seacuteculo XXI entretanto esse panorama parece se alterarsignificativamente e o processo de objetificaccedilatildeo2 dos homens e de seus corpos pordiferentes disciplinas cientiacuteficas ganha novo ritmo Uma configuraccedilatildeo complexade processos econocircmicos poliacuteticos culturais e tecnoloacutegicos contribui para issoDe um lado o aprofundamento da criacutetica dos movimentos feminista e LGBT aomachismo tem feito com que os homens percam progressivamente a posiccedilatildeo derepresentantes universais da espeacutecie humana e a relativa invisibilidadeepistemoloacutegica que tal posiccedilatildeo lhes proporcionava De outro a transformaccedilatildeo dasestruturas familiares e de padrotildees de masculinidade tem permitido aos homensemergirem como consumidores de bens e serviccedilos - entre eles os serviccedilos de sauacutede- antes voltados agraves mulheres ou vistos como intrinsecamente femininos Aleacutemdisso a constataccedilatildeo de que a resoluccedilatildeo de graves problemas de sauacutede (como adisseminaccedilatildeo da Aids a reproduccedilatildeo natildeo-planejada ou o recrudescimento da violecircnciaurbana) passa necessariamente pela mobilizaccedilatildeo da populaccedilatildeo masculina e odesenvolvimento de tratamentos especiacuteficos e relativamente eficazes para aldquoimpotecircnciardquo rebatizada nesse novo contexto de ldquodisfunccedilatildeo ereacutetilrdquo precipitam amedicalizaccedilatildeo dos corpos masculinos3

Eacute portanto contra esse pano de fundo que o significado da criaccedilatildeo do Programa

de Sauacutede do Homem deve ser analisado O presente artigo procura refletir acercado modo como o programa foi (ou estaacute sendo) formulado numa curiosa articulaccedilatildeoentre especialistas meacutedicos - no caso os urologistas - gestores e formuladores depoliacuteticas puacuteblicas e representantes dos ldquomovimentos organizadosrdquo produzindoem linguagem muitas vezes hiacutebrida uma proposta capaz de dar conta de interessesbastante diversos Para tanto focalizamos de um lado as accedilotildees da Sociedade Brasileirade Urologia em torno do lanccedilamento do programa e de outro os princiacutepios ediretrizes contidos no documento ldquoPoliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutededo Homemrdquo4 cuja primeira versatildeo foi lanccedilada pelo Departamento de AccedilotildeesProgramaacuteticas e Estrateacutegicas do Ministeacuterio da Sauacutede em 2008| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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Uma poliacutetica de sauacutede para o homemPara as mulheres medidas especiais de sauacutede comeccedilam a surgir no Brasil jaacute nosanos 1930 centradas na chamada sauacutede materno-infantil Em 1983 com a criaccedilatildeodo PAISM (Programa de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher) esse foco mudouFruto de uma estreita colaboraccedilatildeo entre grupos feministas e o Ministeacuterio da Sauacutedeo PAISM foi implantado em serviccedilos de sauacutede no paiacutes como um todo (cf COSTA1999) Funcionando atraveacutes de dinacircmicas de grupo e workshops os grupos decontracepccedilatildeo planejados pelo PAISM tinham como objetivo levar as mulheres atomar consciecircncia do proacuteprio corpo bem como enfatizar sua autonomia no quetange agrave sua vida sexual e reprodutiva (cf PEREIRA 2008) O objetivo era substituira concepccedilatildeo tradicional de sauacutede materno-infantil por uma agenda mais poliacuteticaque englobasse os direitos reprodutivosQuase 25 anos depois em seu discurso de posse de marccedilo de 2007 o meacutedicosanitarista Joseacute Gomes Temporatildeo Ministro da Sauacutede nomeado por Luiz InaacutecioLula da Silva em seu segundo mandato presidencial listou a implantaccedilatildeo de umaldquopoliacutetica nacional para a assistecircncia agrave sauacutede do homemrdquo entre as metas a serem

perseguidas durante sua gestatildeo5 Um ano mais tarde em marccedilo de 2008 foicriada no acircmbito do Departamento de Accedilotildees Programaacuteticas Estrateacutegicas daSecretaria de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede a Aacuterea Teacutecnica de Sauacutede do Homem6

ficando soba coordenaccedilatildeo de Ricardo Cavalcanti meacutedico ginecologista e um dos fundadoresda moderna sexologia brasileira7 No departamento os ldquohomensrdquo passam entatildeo ater um lugar ao lado de outros sujeitos focos mais antigos de accedilotildees de sauacutedeespeciacuteficas aleacutem das ldquomulheresrdquo ldquoadolescentes e jovensrdquo ldquoidososrdquo ldquopessoas comdeficiecircnciardquo usuaacuterios de serviccedilos de sauacutede mental e indiviacuteduos sob a custoacutedia doEstado Desse modo como Cavalcanti reconheceria em tom ufanista meses maistarde no lanccedilamento da Campanha Nacional de Esclarecimento da Sauacutede doHomem o Brasil se tornou ldquoo segundo paiacutes da Ameacuterica que tem um setor para asauacutede do homem Soacute o Canadaacute tem essa pasta nem os EUA a possuirdquo8

Eacute importante desde jaacute destacar o papel da Sociedade Brasileira de Urologia(SBU) em todo esse processo e apontar a ironia que isso representa do ponto devista histoacuterico uma vez que durante os anos 19301940 o meacutedico e sexoacutelogoJoseacute de Albuquerque que se proclamava criador da andrologia tinha justamenteos urologistas entre seus principais alvos Eles mereciam criacuteticas contundentes dosexoacutelogo por quererem monopolizar o estudo e a intervenccedilatildeo sobre os problemasA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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sexuais masculinos Para Albuquerque ao lado da ginecologia a andrologia deviaser considerada subespecialidade da sexologia A urologia devia se ater segundo ofundador da andrologia aos problemas do sistema urinaacuterio de homens e mulheresComo parte da sexologia a andrologia deveria articular aleacutem de conhecimentosbioloacutegicos os de outras disciplinas como a psicologia e sociologia (cf CARRARA1996 2004) Mas nessa disputa a vitoacuteria coube agrave urologia pois atualmente aandrologia aparece como parte da urologia e eacute nesse acircmbito definida como a

subespecialidade uroloacutegica que ldquocuida do sistema reprodutor da funccedilatildeo sexual eda regulaccedilatildeo de hormocircnios sexuais masculinosrdquo tratando sobretudo de problemascomo o Distuacuterbio Androgecircnico do Envelhecimento Masculino (DAEM) a infertilidademasculina as disfunccedilotildees ereacuteteis a ejaculaccedilatildeo precoce Eacute curioso ainda perceber queembora a urologia natildeo seja uma especialidade voltada apenas para o homem aproacutepria SBU tende a apresentaacute-la como tal tatildeo grande eacute o peso das questotildees desauacutede masculina em sua pautaDesde pelo menos 2004 a SBU vinha se dedicando agrave causa da sauacutede do homeme ao longo de todo o ano de 2008 passa a exercer forte pressatildeo junto a diferentessetores do governo a parlamentares aos conselhos de sauacutede (CONASS eCONASEMS9) e a outras sociedades meacutedicas para o lanccedilamento de uma poliacuteticaespeciacutefica voltada agrave sauacutede do homem Em sua atuaccedilatildeo aleacutem do estabelecimentodas diretrizes dessa poliacutetica estavam em jogo questotildees coorporativas como o valordos honoraacuterios pagos ao urologista pelo SUS ou a obrigatoriedade de os urologistasvinculados ao SUS serem credenciados pela sociedadeUma das primeiras accedilotildees do grupo que assumiu a direccedilatildeo da SBU em janeirode 2008 foi procurar o Ministro da Sauacutede para discutir a implantaccedilatildeo do programade sauacutede do homem e defender a importacircncia da nomeaccedilatildeo de um chefe para aaacuterea teacutecnica Simultaneamente reuacutene-se com os presidentes da Sociedade Brasileirade Cardiologia e da Associaccedilatildeo Brasileira de Psiquiatria para discutir os principaisproblemas a serem incorporados ao programa10

No mecircs de julho daquele mesmo ano um acordo de cooperaccedilatildeo teacutecnica seriaassinado entre o Ministeacuterio da Sauacutede e a SBU com o objetivo de promover aassistecircncia ao homem no sistema puacuteblico de sauacutede e reduzir as taxas de mortalidademasculina A ideia era natildeo apenas treinar os meacutedicos do sistema puacuteblico de sauacutedea diagnosticar doenccedilas uroloacutegicas mas tambeacutem auxiliar na promoccedilatildeo de campanhasdirigidas ao puacuteblico leigo visando agrave prevenccedilatildeo dessas doenccedilas atraveacutes do incentivo| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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agrave busca dos serviccedilos de sauacutede A primeira dessas campanhas foi a CampanhaNacional de Esclarecimento da Sauacutede do Homem que a SBU promoveu comapoio do Ministeacuterio entre julho e setembro de 2008 O tema escolhido para acampanha foi a disfunccedilatildeo ereacutetil (DE) Segundo informaccedilotildees obtidas no site daSBU essa escolha foi feita por trecircs razotildees Em primeiro lugar cerca de 50 doshomens adultos acima de 40 anos teria ldquoalgum tipo de queixa relacionada agrave funccedilatildeoereacutetilrdquo Ao mesmo tempo menos de 10 dos homens que sofrem de ldquoalgumgrau de disfunccedilatildeo ereacutetilrdquo procurariam assistecircncia meacutedica por vergonha ou medodo diagnoacutestico Aleacutem disso a DE estaria frequentemente associada a outrasdoenccedilas (como a diabete ou problemas cardiovasculares) ou poderia ser causadapor outras doenccedilas uroloacutegicas (como o decliacutenio do hormocircnio masculino emidosos ou o tratamento do cacircncer de proacutestata) Para justificar a necessidade deuma campanha de esclarecimento do puacuteblico em geral a SBU citou dados doMinisteacuterio da Sauacutede segundo os quais em 2007 167 milhotildees de mulheresconsultaram-se com um ginecologista ao passo que apenas 27 milhotildees de homensse consultaram com um urologistaNo dia 28 de julho de 2008 a campanha nacional da SBU foi lanccedilada emBrasiacutelia num jantar que reuniu 130 convidados entre os quais vaacuterias autoridadesdo Ministeacuterio da Sauacutede incluindo o coordenador da Aacuterea Teacutecnica da Sauacutede doHomem Na ocasiatildeo foi apresentado um comercial de 30 segundos focalizandoa disfunccedilatildeo ereacutetil a ser transmitido por TV aberta durante os meses de agosto esetembro e um folheto de divulgaccedilatildeo Por apresentar aspectos cruciais dointrincado processo de medicalizaccedilatildeo do corpo masculino esse materialpublicitaacuterio merece aqui uma anaacutelise mais detidaO folheto mostra um casal com idade entre 35 e 45 anos (ela mais jovem queele) ambos brancos bem vestidos magros felizes e exibindo alianccedila na matildeoesquerda prestes a se beijar Ao fundo um pocircr-do-sol sobre um mar dourado

compotildee um cenaacuterio paradisiacuteaco Na parte de baixo em letras grandes lemos ldquoosbons momentos de voltardquo mais acima agrave direita em letras menores ldquocerca de 40dos homens apresentam algum grau de dificuldade de ereccedilatildeo Trazer os bonsmomentos de volta soacute depende de vocecircrdquo Abaixo da imagem um texto em corpoainda menor adverteA dificuldade de ereccedilatildeo atinge milhotildees de homens no Brasil Os tratamentos hojeem dia satildeo muito eficazes Uma vida sexual insatisfatoacuteria pode estar relacionadaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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a diversos fatores como diabetes e hipertensatildeo Fale com seu urologista e tragaos bons momentos de volta11

Eacute importante perceber os deslizamentos entre diferentes expressotildees no decorrerda campanha A campanha da SBU eacute centrada na disfunccedilatildeo ereacutetil Os argumentosapresentados pela sociedade falam que 40 dos homens acima de 40 anosapresentam alguma queixa relacionada agrave funccedilatildeo ereacutetil No folheto o termo usadoeacute dificuldade de ereccedilatildeo que eacute remetida a uma vida sexual insatisfatoacuteria Do mesmomodo a faixa etaacuteria citada no website da SBU (homens acima dos 40) eacute suprimidaPassamos entatildeo de ldquoalgum tipo de queixa relacionada a funccedilatildeo ereacutetilrdquo paradificuldade de ereccedilatildeo ambas expressotildees subsumidas pela categoria disfunccedilatildeo ereacutetilque eacute como indicado pela proacutepria SBU o verdadeiro foco da campanha Essedeslizamento em nenhum momento eacute objeto de explicaccedilatildeo ou discussatildeo sejanos documentos da SBU seja naqueles produzidos pela Aacuterea Teacutecnica da Sauacutededo Homem Outra caracteriacutestica interessante do folheto eacute seu duplo apelo Eacutefaacutecil perceber que as expressotildees dificuldade de ereccedilatildeo ou vida sexual insatisfatoacuterianatildeo necessariamente se enquadram na categoria doenccedila O texto chama atenccedilatildeopara ldquoos bons momentosrdquo (em primeiro plano e em letras grandes) apresentandouma imagem extremamente positiva - o lindo e (quase) jovem casal abraccedilado -que natildeo se associa agrave ideia de doenccedila mas de felicidade e sauacutede Eacute possiacutevelportanto para aquele que vecirc o anuacutencio entender que a dificuldade de ereccedilatildeo natildeoeacute de fato uma doenccedila O anuacutencio entretanto visa a levar os homens ao meacutedico

Por que ir ao meacutedico se natildeo se estaacute doente As frases em letra menor na parteinferior direita da imagem ao mesmo tempo em que contecircm uma ameaccedila (ldquoumavida sexual insatisfatoacuteria pode estar relacionada a diversos fatores como diabetese hipertensatildeordquo) oferecem uma espeacutecie de desculpa para os homens queinsatisfeitos com sua performance tecircm vergonha de procurar um meacutedico Ouseja poderatildeo buscar um urologista devido agrave sua preocupaccedilatildeo com um problemapropriamente meacutedico e natildeo sexualEacute tambeacutem significativo que dentre os vaacuterios perigos letais que rondariam os homensa disfunccedilatildeo ereacutetil tenha sido escolhida para tema de uma campanha cujo tiacutetulo prometeum geneacuterico ldquoesclarecimento da sauacutede do homemrdquo Um dos grandes obstaacuteculos agravepromoccedilatildeo da sauacutede dos homens conforme repetido inuacutemeras vezes ao longo do processode construccedilatildeo da nova poliacutetica eacute justamente a centralidade da ideia de invulnerabilidadeou seja da ideia de potecircncia na construccedilatildeo da masculinidade hegemocircnica Por essa| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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razatildeo os homens seriam como declara o presidente da Associaccedilatildeo Meacutedica de Brasiacuteliano lanccedilamento da campanha ldquorelapsosrdquo com sua sauacutede procurando menosfrequentemente os meacutedicos que as mulheres Mas ao centrar a felicidade dos homensna potecircncia sexual vista como capacidade de obter uma ereccedilatildeo a campanha acabareforccedilando a centralidade dos valores que supostamente pretende combaterParadoxalmente ao prometer devolver-lhes a potecircncia perdida os urologistas natildeo deixamde procurar atrair os homens aos cuidados de sauacutede justamente a partir da configuraccedilatildeode valores que os afastaria de tais cuidados e que como eacute o caso da virilidade compotildeemos fundamentos mesmos da masculinidade hegemocircnica12

Na luta pela implantaccedilatildeo da nova poliacutetica que a SBU manteacutem ao longo do anode 2008 outro momento importante eacute a audiecircncia puacuteblica convocada pela Cacircmarados Deputados no acircmbito do IV Foacuterum Poliacuteticas Puacuteblicas de Sauacutede do Homemrealizado em agosto13 Nela o Ministeacuterio da Sauacutede apresenta seu projeto para a

aacuterea Quase simultaneamente o Ministeacuterio divulgaria o documento ldquoPoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homemrdquo (PNAISH) Iniciava assimuma discussatildeo que envolveria diferentes atores (setores do governo conselhos desauacutede associaccedilotildees meacutedicas pesquisadores profissionais de sauacutede e representantesda sociedade civil) e se estenderia ateacute maio do ano seguinte quando a versatildeo finaldo documento eacute oficialmente divulgada Ao lado da urologia entre as associaccedilotildeesmeacutedicas participam sobretudo aquelas relacionadas aos problemas maiscomumente identificados como ldquomasculinosrdquo (cardiologia sauacutede mentalgastroenterologia e pneumologia)Aleacutem de influir decisivamente no conteuacutedo do novo programa a SBU trabalhatambeacutem no sentido de garantir sua sustentaccedilatildeo poliacutetica Em maio de 2009 porexemplo distribui folhetos no XXV Congresso Nacional de Secretarias Municipaisde Sauacutede visando a ldquosolicitar apoio para poliacuteticas puacuteblicas voltadas para o sexomasculinordquo Segundo noticia-se no website da sociedade ldquoo objetivo eacute sensibilizaros gestores municipais a adotarem poliacuteticas que visem a uma assistecircncia uroloacutegicamais efetiva nos hospitais puacuteblicos Aleacutem disso a SBU quer conscientizaacute-los sobrea Poliacutetica Nacional de Sauacutede do Homem do Ministeacuterio da Sauacutede e agregaacute-los naluta para que tal programa entre em vigor o quanto antesrdquo No folheto distribuiacutedocompara-se a situaccedilatildeo de mulheres apresentadas como sujeitos que reivindicamseus direitos e de homens apresentados em linguagem um tanto confusa comosujeitos passivos cuja sauacutede tem sido negligenciadaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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A mulher brasileira tem conquistado avanccedilos em nossa sociedade ganhandodignidade disputando com isonomia diferentes funccedilotildees que as igualam agraves condiccedilotildeesdos homens Com isso as autoridades governamentais tem [sic] desenvolvidoimportantes accedilotildees de poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede da mulher no acircmbito do SUSOs homens por sua vez continuam deixando de ser contemplados por essas accedilotildeesgovernamentais evoluindo para o distanciamento das soluccedilotildees de seus principaisagravos na aacuterea da sauacutede gerando informaccedilotildees desencontradas e sem base cientiacuteficao que sobremaneira resulta em grande prejuiacutezo social (grifo nosso)14

A nova poliacutetica de sauacutede seria finalmente lanccedilada em agosto de 2009 no bojode uma seacuterie de atividades relativas agrave campanha pela sauacutede do homem Em 10 de

agosto um dia apoacutes o Dia dos Pais o Presidente Lula trata da sauacutede do homemem seu programa de raacutedio ldquoCafeacute com o Presidenterdquo e anuncia que o MS lanccedilaraacuteem breve a Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem O Presidentediz entatildeo que no que concerne agrave sauacutede os homens mereceriam ldquoum puxatildeo deorelhardquo por terem ldquomedo de agulhardquo indo pouco ao meacutedico e soacute iniciandotratamento depois do agravamento do quadro Em sua intervenccedilatildeo tambeacutemcompara homens e mulheres apontando a ldquoculturardquo como raiz do problemaTodos noacutes homens temos essa bobagem na cabeccedila que eacute o medo de fazer o examede proacutestata e isso tem sido a causa da morte de muitos homens por causa docacircncer de proacutestata Soacute para vocecirc ter uma ideia segundo estimativa do SUS paracada oito consultas ginecoloacutegicas feitas em 2007 soacute teve uma uroloacutegica Enquantoquase 17 milhotildees de mulheres foram ao ginecologista em 2007 apenas 26 milhotildeesde homens procuraram um urologista Veja todo homem depois de uma certaidade tem que procurar o urologista A verdade eacute que ainda tem muitos que tecircmmedo de procurar o urologista e fazer exame de toque por conta da proacutestata Essaatitude estaacute muito ligada agrave nossa cultura Mas isso estaacute na hora de mudar issonatildeo combina com a vida moderna Temos que acompanhar as mudanccedilas nomundo e encarar nossas fragilidades Precisamos ter haacutebitos saudaacuteveis fazer examede prevenccedilatildeo e rotina (grifo nosso)15

Por beberem mais fumarem mais e serem mais sedentaacuterios que as mulheres oshomens teriam uma menor expectativa de vida Segundo o Presidente em largamedida dependeria deles a transformaccedilatildeo desse quadro Nesse sentido termina aentrevista com um apelo ldquoEntatildeo o meu apelo para os homens no Dia dos Pais eacuteque a partir de agora vamos nos cuidar porque noacutes precisamos viver mais e vivermelhor Afinal de contas a nossa famiacutelia depende muito de noacutesrdquo16| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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Ainda em agosto realiza-se na Cacircmara dos Deputados o V Foacuterum de PoliacuteticasPuacuteblicas e Sauacutede do Homem cujo objetivo seria segundo o presidente da SBUldquomanter a lembranccedila e pressatildeo junto aos oacutergatildeos governamentais e parlamentaressobre a importacircncia da poliacutetica nacional de sauacutede do homem que resgata umalacuna e inclui o gecircnero masculino ainda secundarizado nas poliacuteticas puacuteblicasrdquo17

Durante o Foacuterum o presidente da SBU recebe a notiacutecia do lanccedilamento oficial dapoliacutetica Ao comemorar revela o papel central desempenhado pelos urologistasFinalizamos um importante ciclo no sentido de sensibilizar as autoridades atraveacutes

de simpoacutesios e Foacuteruns quanto agrave importacircncia da inclusatildeo de projetos especiacuteficosvoltados para o gecircnero masculino Estamos felizes com o lanccedilamento desta poliacuteticapelo Governo Federal Dentre todas as especialidades eacute inegaacutevel que a Urologiaguarda uma estreita poreacutem natildeo exclusiva relaccedilatildeo com o homem Iniciaremos umoutro ciclo que eacute o plano de accedilatildeo desta poliacutetica nos estados e municiacutepios e aimportacircncia que os gestores daratildeo a estas accedilotildees O homem brasileiro agradece(grifo nosso)18

Finalmente em 28 de agosto de 2009 no auditoacuterio da Organizaccedilatildeo Pan-Americana de Sauacutede em Brasiacutelia o Ministeacuterio da Sauacutede lanccedila oficialmente a PoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem Em seu discurso o ministroressaltaria a importacircncia da Sociedade Brasileira de Urologia na construccedilatildeo danova poliacutetica que conforme declara o presidente da SBU ldquovaloriza o homembrasileiro fortalece a atividade uroloacutegica e o urologista no Sistema Uacutenico de Sauacutederdquo19

Salvar os homens de si mesmos o documento ldquoPoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes)rdquoComo dito acima em agosto de 2008 o Departamento de Accedilotildees Programaacuteticas eEstrateacutegicas ao qual se subordina a Aacuterea Teacutecnica de Sauacutede do Homem lanccedilou aprimeira versatildeo do documento ldquoPoliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede doHomem (princiacutepios e diretrizes)rdquo20 O documento eacute apresentado como fruto deuma parceria entre gestores do SUS sociedades cientiacuteficas sociedade civilorganizada pesquisadores acadecircmicos e agecircncias de cooperaccedilatildeo internacional Aindana apresentaccedilatildeo lemos que a sauacutede do homem eacute uma das prioridades do governoe que a poliacutetica a ser implementada traduziria ldquoum longo anseio da sociedade aoA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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reconhecer que os agravos do sexo masculino constituem verdadeiros problemasde sauacutede puacuteblicardquo (PNAISH 2008 p 3)Segundo o documento estudos comparativos tecircm demonstrado que os homenssatildeo mais vulneraacuteveis a doenccedilas do que as mulheres especialmente agraves enfermidadescrocircnicas e graves e que morrem mais cedo Apesar deste fato jaacute bem documentadoos homens natildeo satildeo captados pelos serviccedilos de atenccedilatildeo primaacuteria (como ocorre com

as mulheres) Sua entrada no sistema de sauacutede se daria principalmente pela atenccedilatildeoambulatorial e hospitalar de meacutedia e alta complexidades configurando um perfilque favorece o agravo da morbidade pela busca tardia ao atendimentoPara explicar a ldquoresistecircncia masculina agrave atenccedilatildeo primaacuteriardquo o texto lanccedila matildeo depesquisas qualitativas21 que apontam diversas razotildees para o fenocircmeno agrupadasem dois tipos de determinantes ldquobarreiras institucionaisrdquo e ldquobarreirassocioculturaisrdquo As ldquobarreiras institucionaisrdquo dizem respeito agrave dificuldade de acessoaos serviccedilos assistenciais e satildeo tratadas de forma bastante breve O documentoenfatiza as chamadas ldquovariaacuteveis culturaisrdquoestereoacutetipos de gecircnero enraizados haacute seacuteculos na cultura patriarcal produzempraacuteticas baseadas em crenccedilas e valores do que eacute ser masculino A doenccedila eacuteconsiderada um sinal de fragilidade que os homens natildeo reconhecem como inerentesagrave sua proacutepria condiccedilatildeo bioloacutegica O homem se julga invulneraacutevel o que acaba porcontribuir para que ele cuide menos de si mesmo e se exponha mais agraves situaccedilotildeesde risco (PNAISH 2008 p 6)Mais abaixo lecirc-seAinda que o conceito de masculinidade venha sendo atualmente contestado e tenhaperdido seu rigor original na dinacircmica do processo cultural [] a concepccedilatildeo aindaprevalente e hegemocircnica de masculinidade eacute o eixo estruturante pela natildeo-procuraaos serviccedilos de sauacutede (Idem)Uma vez explicitadas o que satildeo as ldquovariaacuteveis culturaisrdquo o documento afirma queo grande desafio de uma poliacutetica voltada para os homens eacute mobilizar a ldquopopulaccedilatildeomasculina brasileira para a luta pela garantia de seu direito social agrave sauacutederdquo Paratanto a poliacutetica em questatildeo pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para oreconhecimento e a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para queadvenham sujeitos protagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio egozo dos direitos de cidadaniardquo (PNAISH 2008 p 7)| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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No item ldquoMetodologia de construccedilatildeo da poliacuteticardquo o texto afirma que a ideiacentral do documento foi desenvolvida de modo articulado com a Poliacutetica Nacionalde Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher ldquorecuperando experiecircncias e conhecimentosproduzidos naquela aacuterea promovendo accedilotildees futuras em consonacircncia tanto emprinciacutepios como em praacuteticasrdquo (PNAISH 2008 p 9) Esta articulaccedilatildeo com a poliacuteticavoltada para as mulheres seraacute objeto de discussatildeo mais adianteO item do documento intitulado ldquoDiagnoacutesticordquo eacute bastante extenso e como o

nome indica procura oferecer um quadro amplo acerca dos agravos agrave sauacutedemasculina22 percorrendo temas como violecircncia alcoolismo e tabagismo indicadoresde mortalidade e de morbidade Aleacutem dessas temaacuteticas nas quais reconhecemos alinguagem mais tradicional da epidemiologia e da sauacutede puacuteblica encontramosoutros temas que embora possam ser vistos como parte do campo da sauacutede nosentido lato extrapolam seus limites uma vez que tecircm ressonacircncias mais claramentepoliacuteticas eou juriacutedicas ldquoadolescecircncia e velhicerdquo e ldquodireitos sexuais e reprodutivosrdquoLogo na introduccedilatildeo desse item lemos queOs temas mais recorrentes no estudo sobre a sauacutede do homem podem se estruturarem torno de trecircs eixos violecircncia tendecircncia agrave exposiccedilatildeo a riscos com consequecircncianos indicadores de morbi-mortalidade e sauacutede sexual e reprodutiva (PNAISH2008 p 11)Como veremos adiante dentre esses trecircs eixos o terceiro - sauacutede sexual ereprodutiva - seraacute enfatizado em detrimento dos demais embora na apresentaccedilatildeodos diversos subitens de que trata o item ldquoDiagnoacutesticordquo os dois primeiros eixossejam mais extensamente tratados com a apresentaccedilatildeo de um conjunto expressivode dados e argumentos O subitem ldquoDireitos sexuais e reprodutivosrdquo ao contraacuteriodos demais natildeo traz dados sobre agravos ou ameaccedilas agrave sauacutede sexual e reprodutivamas expotildee uma espeacutecie de agenda poliacutetica afirmando a necessidade da implementaccedilatildeodos direitos sexuais e reprodutivos dos homens A linguagem dos direitos se impotildeee a categoria ldquosauacutederdquo natildeo eacute mencionada O documento afirma por exemplo que eacutenecessaacuterio ldquosuperar a restriccedilatildeo da responsabilidade sobre as praacuteticas contraceptivas agravesmulheresrdquo de modo a assegurar aos homens ldquoo direito agrave participaccedilatildeo no planejamentoreprodutivordquo a paternidade devendo ser vista como ldquoum direito do homem a participarde todo o processo desde a decisatildeo de ter ou natildeo filhos como e quando tecirc-los bemcomo do acompanhamento da gravidez do parto do poacutes-parto e da educaccedilatildeo dacrianccedilardquo (PNAISH 2008 p 20) Eacute curiosa essa formulaccedilatildeo uma vez que a demandaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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pela participaccedilatildeo masculina nas decisotildees reprodutivas eacute uma bandeira do movimento

feminista Normalmente tal participaccedilatildeo aparece como exigecircncia das mulherescomo um dever do qual o homem tende a escapar No documento o que antes eraconsiderado um dever se transforma em direitoA insistecircncia na temaacutetica da sauacutede sexual e reprodutiva atravessa o documentoe surge com forccedila no item ldquoObjetivosrdquo Satildeo trecircs os objetivos especiacuteficos listados(1) Organizar implantar qualificar e humanizar em todo territoacuterio brasileiro aatenccedilatildeo integral a sauacutede do homem dentro dos princiacutepios que regem o SistemaUacutenico de Sauacutede(2) Estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeo da assistecircncia em sauacutede sexual ereprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede(3) Ampliar atraveacutes da educaccedilatildeo o acesso dos homens agraves informaccedilotildees sobre asmedidas preventivas contra os agravos e enfermidades que atingem a populaccedilatildeomasculina destacando seus direitos sexuais e reprodutivos (PNAISH 2008 p 39grifos nossos)O segundo dos objetivos especiacuteficos - estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeoda assistecircncia em sauacutede sexual e reprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede -tem uma extensa lista de subitens Dentre estes aleacutem de metas mais tradicionaisrelativas ao planejamento reprodutivo masculino contracepccedilatildeo ciruacutergica voluntaacuteriae prevenccedilatildeo de DSTAids encontramos os seguintes objetivos- estimular implantar implementar e qualificar pessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildeessexuais masculinas- promover a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem nas populaccedilotildees indiacutegenas negrasquilombolas gays bissexuais travestis transexuais trabalhadores rurais homenscom deficiecircncia em situaccedilatildeo de risco em situaccedilatildeo carceraacuteria desenvolvendoestrateacutegias voltadas para a promoccedilatildeo da equidade para distintos grupos sociais- associar as accedilotildees governamentais com as da sociedade civil organizada paraefetivar a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem com protagonismo social na enunciaccedilatildeodas reais condiccedilotildees de sauacutede da populaccedilatildeo heterogecircnea de homens (PNAISH2008 p 39)Destacamos aqui dois pontos que comentaremos mais adiante nas conclusotildeesO primeiro diz respeito agrave associaccedilatildeo entre o discurso da SBU (presente na ideia deldquoatenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) e o dos movimentos da ldquosociedade civilorganizadardquo O segundo refere-se ao fato de que a ecircnfase colocada sobre sauacutedesexual e direitos sexuais e reprodutivos natildeo aparece do mesmo modo quando se| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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trata de outros temas como a violecircncia reconhecidamente uma das mais relevantescausas de morbidade e mortalidade entre homens adultos jovens23

Assim emboradiscuta e exponha extensamente os fatores considerados pela sauacutede puacuteblica como

mais relevantes agrave sauacutede masculina o documento dirige seu foco para as novastemaacuteticas da sauacutede sexual e dos direitos sexuais e reprodutivos Ateacute entatildeo pelomenos no que diz respeito a estes uacuteltimos tais temaacuteticas pareciam mais ligadas aosdiscursos feministas em torno da sauacutede da mulherAlgumas conclusotildees possiacuteveisO documento de algum modo afirma o caraacuteter ldquoinsalubrerdquo de certa masculinidadesendo os homens apresentados como viacutetimas de sua proacutepria masculinidade ouseja das crenccedilas e valores que constituiriam as ldquobarreiras socioculturaisrdquo que seantepotildeem agrave medicalizaccedilatildeo O objetivo principal do programa eacute enfraquecer aresistecircncia masculina agrave medicina de uma forma geral ou seja medicalizar oshomens24 Para tanto uma accedilatildeo educativa bem feita ldquomodernizariardquo os homensbrasileiros dissipando o pensamento maacutegico que os (des)orienta e que os tornapresas de seu proacuteprios preconceitosEntretanto a questatildeo nos parece bastante mais complexa do que imaginam osdefensores da nova poliacutetica pois essa situaccedilatildeo paradoxal dos homens em relaccedilatildeo asua proacutepria sauacutede e ao seu corpo - sua cultura somaacutetica como diria Luc Boltanski(1979) - deriva em larga medida da posiccedilatildeo que (ainda) ocupam na hierarquia degecircnero A questatildeo natildeo eacute de ldquoculturardquo portanto mas do modo como a cultura estaacuteimbricada ou implicada em relaccedilotildees de poder bem concretas que o discursovitimaacuterio e paternalista incorporado agrave nova poliacutetica contribui mais para ocultar doque revelar Para os homens articular reivindicaccedilotildees a partir de uma posiccedilatildeogenerificada e tornar-se visiacuteveis enquanto ldquohomensrdquo significa colocar-se no mesmoplano que as mulheres Perderiam assim a posiccedilatildeo de representantes universais daespeacutecie e arriscariam a perder tambeacutem suas prerrogativas na hierarquia de gecircneroTalvez seja por isso mesmo que eles natildeo o fazem natildeo havendo (ainda) organizaccedilotildeesldquomasculinistasrdquo como existem organizaccedilotildees ldquofeministasrdquoDesse modo a condiccedilatildeo para que ocorra a mudanccedila cultural necessaacuteria para

fazer com que os homens (heterossexuais) tenham uma relaccedilatildeo tatildeo reflexiva comseus proacuteprios corpos quanto seus vaacuterios ldquooutrosrdquo (mulheres homossexuais travestis)eacute que tais ldquooutrosrdquo tenham o mesmo poder e prestiacutegio que eles Tudo se passaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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como se os homens precisassem se tornar socialmente vulneraacuteveis para poderperceber sua vulnerabilidade bioloacutegica e para ver algum sentido na luta porultrapassaacute-la Dito de outro modo mostrar-se invulneraacutevel faz parte do exerciacuteciodo poder pelos homens e o poder tem um ldquopreccedilordquo (uma vida mais curta ou menossaudaacutevel) que parece os homens ainda estatildeo dispostos a pagar Diferentementedas mulheres que organizadas num amplo movimento procuraram atraveacutes depoliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas sair da posiccedilatildeo de subordinaccedilatildeo a que historicamenteestavam relegadas os homens soacute podem aparecer entatildeo como sujeitos passivosfrente agrave interpelaccedilatildeo que lhes dirigem a medicina e o Estado Acabam assimsendo retoricamente representados pelos meacutedicos sobretudo urologistas e pelosformuladores e executores de uma poliacutetica que supostamente se implanta em nomedeles mas sem sua participaccedilatildeoQuanto agrave ecircnfase dada aos direitos sexuais e reprodutivos parece-nos que taistemas tecircm uma dupla entrada no programa - atraveacutes da urologia (ou medicinasexual) e da incorporaccedilatildeo da retoacuterica de movimentos poliacuteticos organizados ASBU aparece como ator fundamental na formulaccedilatildeo da poliacutetica Como vimos oacordo de cooperaccedilatildeo teacutecnica assinado com o Ministeacuterio da Sauacutede teve como umde seus principais desdobramentos a campanha centrada na disfunccedilatildeo ereacutetil(lanccedilada antes mesmo da publicaccedilatildeo do documento) Eacute o tipo de pressatildeo quevem dos especialistas neste caso com um objetivo muito claro transformar adisfunccedilatildeo ereacutetil num problema de sauacutede puacuteblica o que eacute facilitado por doisfatores a declaraccedilatildeo do entatildeo Secretaacuterio Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede Joseacute Gomes

Temporatildeo em 200625 e a nomeaccedilatildeo de Ricardo Cavalcanti para a Coordenaccedilatildeoda Aacuterea Teacutecnica da Sauacutede do Homem Cavalcanti eacute um dos pais fundadores damoderna sexologia brasileira e embora sendo ginecologista de formaccedilatildeocertamente facilitou o diaacutelogo entre o governo e a SBU Neste caso a afirmaccedilatildeodos direitos sexuais passa pela sexologia e pela medicina sexualA leitura do documento nos leva agrave conclusatildeo de que a poliacutetica de aproximaccedilatildeocom o Ministeacuterio da Sauacutede e os formuladores de poliacuteticas puacuteblicas empreendidapela SBU foi bem-sucedida jaacute que a preocupaccedilatildeo com a sauacutede sexual (explicitadapor exemplo no objetivo de ldquoestimular implantar implementar e qualificarpessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) ultrapassa em grau deimportacircncia pelo menos no documento outros problemas possiacuteveis dentre osquais poderiacuteamos citar aleacutem da violecircncia os relacionados agrave sauacutede mental Por| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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outro lado a linguagem dos especialistas convive com uma outra tiacutepica doschamados movimentos sociais (lembremos que o documento afirma como umdos objetivos do programa ldquoincluir o enfoque de gecircnero orientaccedilatildeo sexualidentidade de gecircnero e condiccedilatildeo eacutetnico-racial nas accedilotildees educativasrdquo) produzindoum discurso hiacutebrido em que caminhos diversos parecem levar a um mesmoobjetivo final - a medicalizaccedilatildeo do corpo masculinoDe fato a presenccedila no documento do discurso dos movimentos sociaisnormalmente voltados para poliacuteticas identitaacuterias nos parece bastante forte Voltamosaqui a um trecho na introduccedilatildeo do documento segundo o qual o programa desauacutede do homem pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para o reconhecimentoe a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para que advenham sujeitosprotagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio e gozo dos direitos decidadaniardquo Isto eacute os homens devem paradoxalmente ser transformados em ldquosujeitosprotagonistas de suas demandasrdquo Atraveacutes do movimento organizado atransformaccedilatildeo das mulheres em ldquoprotagonistas de suas demandasrdquo envolveu seu

relativo ldquoempoderamentordquo No caso dos homens o ldquoprotagonismordquo implicajustamente o contraacuterio isto eacute assumir sua fragilidade e vulnerabilidade aprendendoa enunciar suas demandas Utiliza-se assim a mesma linguagem e os mesmosargumentos comumente presentes no discurso dos movimentos organizados paraefeitos aparentemente opostosNo acircmbito do documento uma das formas encontradas para lidar com esseaparente paradoxo que consiste em formular uma poliacutetica puacuteblica como se elafosse reivindicada pelos sujeitos por ela visados eacute desmembrar a categoria ldquohomemrdquoem uma seacuterie de subcategorias - iacutendios negros gays travestis portadores dedeficiecircncias trabalhadores rurais etc - que por outras razotildees satildeo historicamentemarginalizadas Ao que parece as mulheres podem formar mais facilmente umacategoria unificada mas os homens natildeo Homem pura e simplesmente semqualquer adjetivo natildeo parece ser uma identidade que se precise assumir (contra aspressotildees da sociedade) ou que se deva fortalecer ou pela qual se precise lutar Porisso talvez a necessidade de despedaccedilaacute-la num sem-nuacutemero de categorias demodo a tornar visiacutevel sua vulnerabilidade A politizaccedilatildeo e sensibilizaccedilatildeo do homemportanto tem por objetivo tornaacute-lo consciente dessa vulnerabilidade Soacute entatildeo eacutepossiacutevel medicalizaacute-lo Neste caso consciecircncia poliacutetica ldquoprotagonismordquo emedicalizaccedilatildeo aparecem como indissociaacuteveisA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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ReferecircnciasBOLTANSKI L As classes sociais e o corpo Rio de Janeiro Graal 1979BOURDIEU P O campo cientiacutefico In ORTIZ R (Org) Pierre Bourdieu Sociologia Satildeo PauloAacutetica 1983______ La domination masculine Paris Seuil 1998BRASIL Ministeacuterio da Sauacutede Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes) Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIAS Port2008PT-09-CONSpdf Acesso em maio 2009CARRARA S Tributo a Vecircnus a luta contra a siacutefilis no Brasil da passagem do seacuteculo aos anos 1940Rio de Janeiro Fiocruz 1996

______ Une science deacuterisoire Lacuteandrologie au Bregravesil entre les deux guerres Vibrant ndash VirtualBrazilian Anthropology v 1 n frac12 jan-dez 2004COSTA A M Desenvolvimento e Implantaccedilatildeo do PAISM no Brasil In GIFFIN Karen COSTAS H (Org) Questotildees da sauacutede reprodutiva Rio de Janeiro Fiocruz 1999FOUCAULT M Vigiar e punir Petroacutepolis Vozes 1977GOMES R Sexualidade masculina e sauacutede do homem proposta para uma discussatildeo CiecircnciaSauacutede Coletiva Rio de Janeiro n 8 p 825-9 2003GOMES R NASCIMENTO E F ARAUacuteJO F C Por que os homens buscam menos os serviccedilosde sauacutede do que as mulheres As explicaccedilotildees de homens com baixa escolaridade e homens comensino superior Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 23 n 3 mar 2007GOMES R NASCIMENTO E F A produccedilatildeo do conhecimento da sauacutede puacuteblica sobre arelaccedilatildeo homem-sauacutede uma revisatildeo bibliograacutefica Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 22n 5 p 901-911 maio 2006MEDRADO B LYRA J AZEVEDO M GRANJA E e VIEIRA S Princiacutepios diretrizes erecomendaccedilotildees para uma atenccedilatildeo integral aos homens na sauacutede Recife Instituto PAPAI 2009OLIVEIRA P P de A construccedilatildeo social da masculinidade Belo Horizonte UFMG 2004PEREIRA A L Accedilotildees educativas em contracepccedilatildeo teoria e praacutetica dos profissionais de sauacutede Tese(Doutorado em Sauacutede Coletiva) - Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio dejaneiro Rio de Janeiro 2008ROHDEN F Uma ciecircncia da diferenccedila sexo e gecircnero na medicina da mulher Rio de JaneiroFiocruz 2001SCHRAIBER L B GOMES R COUTO M T Homens e sauacutede na pauta da sauacutede coletivaCiecircncia e Sauacutede Coletiva v 10 n 1 p 7-17 2005| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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STOCKLE V Is Sex to Gender as Race is to Ethnicity In DEL VALLE T (Ed) GenderedAnthropology London Routledge 1993

Notas Uma primeira versatildeo deste texto foi apresentada no simpoacutesio The Future of Sexual Health SexualHealth in Public Health Policies no XIX Congresso da World Association for Sexual Health Gotemburgojunho de 2009 tendo utilizado dados colhidos na pesquisa ldquoDiferenccedilas de gecircnero na recentemedicalizaccedilatildeo do envelhecimento e sexualidade a criaccedilatildeo das categorias menopausa andropausa edisfunccedilatildeo sexualrdquo coordenada por Fabiacuteola Rohden e apoiada pelo CNPq1 A partir das reflexotildees de Michel Foucault (1977) em torno do panopticismo pode-se afirmar quedeterminados regimes de visibilidade configuram certos sujeitos que de outro modo inexistiriam ouexistiriam de modo inteiramente diferente Natildeo se trata aqui de entrarmos na polecircmica entreconstrutivismo e essencialismo ou seja de decidir se alguns sujeitos estavam sempre laacute agrave espera deserem descoberto ou se satildeo criados pela proacutepria ldquoluzrdquo que os ilumina2 Com ldquoobjetificaccedilatildeordquo natildeo nos referimos aqui a um processo de negaccedilatildeo aos homens de seu estatuto de

pessoa humana mas ao processo de instituiccedilatildeo de certos temas problemas ou sujeitos como objetoslegiacutetimos de conhecimento em determinado campo cientiacutefico conforme formulado originalmente porPierre Bourdieu (1983)3 A partir dos anos 1990 esse processo vem sendo acompanhado pela progressiva transformaccedilatildeo doshomens e da masculinidade em objeto de conhecimento tambeacutem das ciecircncias sociais configurandonovas aacutereas de conhecimento como os chamados ldquomenrsquos studiesrdquo Para isso ver entre outros Oliveira(2004)4 Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIASPort2008PT-09-CONSpdf (acessoem maio 2009)5 Eacute importante destacar que Joseacute Gomes Temporatildeo em 2006 quando ainda era Secretaacuterio Nacionalde Atenccedilatildeo agrave Sauacutede no Ministeacuterio da Sauacutede tentou criar centros de atenccedilatildeo agrave sauacutede no setor privadopara melhorar a assistecircncia agrave sauacutede do homem Em declaraccedilatildeo publicada no jornal O Estado de SatildeoPaulo em janeiro de 2006 Temporatildeo afirmou que o Ministeacuterio da Sauacutede estava analisando a possibilidadede oferecer tratamento para a disfunccedilatildeo ereacutetil atraveacutes da rede puacuteblica incluindo a distribuiccedilatildeo demedicamentos O governo estaria examinando o impacto financeiro de tal medida6 Ao que parece havia no acircmbito do MS desde 2006 uma Coordenaccedilatildeo de Sauacutede do Homem7 Nove meses depois foi substituiacutedo pelo Dr Baldur Schubert um assessor da sua equipe especialistaem seguridade social e sauacutede do trabalho8 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)9 Respectivamente Conselho Nacional de Secretaacuterios de Sauacutede e Conselho Nacional de SecretaacuteriosMunicipais de SauacutedeA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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10 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)11 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrpdf2008_saudehomempdf (acesso em maio 2009)12 Para a discussatildeo sobre a dominaccedilatildeo masculina ver Bourdieu (1998)13 Tais foacuteruns vecircm sendo organizados anualmente pela Comissatildeo de Seguridade Social e Famiacutelia daCacircmara dos Deputados em parceria com a SBU14 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrimagesfolder_noticiajpg (acesso em maio 2009)15 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)16 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)17 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)18 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)19 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)20 O documento passou por uma consulta puacuteblica e foi aprovado pelo Conselho Nacional de Sauacutede emjulho de 200921 O documento lanccedila matildeo de trabalhos importantes que no campo da sauacutede vecircm discutindo amasculinidade como Gomes (2003) Gomes e Nascimento (2006) Gomes et al (2007) Schraiber etal (2005)22 Lemos no documento que ldquoos indicadores apresentados visam a oferecer uma visatildeo ampliada doprocesso de adoecimento e de vulnerabilidade e agravos agrave sauacutede na populaccedilatildeo de homensrdquo (PNAISH2008 p 11)23 Esse aspecto foi tambeacutem destacado em reaccedilatildeo agraves diretrizes do Programa expressa em ldquodocumentomarcordquoproduzido por iniciativa de importantes organizaccedilotildees natildeo-governamentais brasileiras que haacute

muitos anos trabalham com o tema das masculinidades O texto aborda o Programa com base em umaleitura feminista de gecircnero Aleacutem de criticar a centralidade assumida pelas doenccedilas do aparelhogeniturinaacuterio na nova poliacutetica enfatiza-se tambeacutem a relativa desvalorizaccedilatildeo da promoccedilatildeo agrave sauacutede emfavor da oferta de serviccedilos de assistecircncia (MEDRADO et al 2009)24 Eacute interessante pensar como esse movimento vai de encontro agrave luta feminista contra a medicalizaccedilatildeodo corpo feminino25 Ver nota 2| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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Page 4: Saúde do Homem

de Sauacutede do Homem deve ser analisado O presente artigo procura refletir acercado modo como o programa foi (ou estaacute sendo) formulado numa curiosa articulaccedilatildeoentre especialistas meacutedicos - no caso os urologistas - gestores e formuladores depoliacuteticas puacuteblicas e representantes dos ldquomovimentos organizadosrdquo produzindoem linguagem muitas vezes hiacutebrida uma proposta capaz de dar conta de interessesbastante diversos Para tanto focalizamos de um lado as accedilotildees da Sociedade Brasileirade Urologia em torno do lanccedilamento do programa e de outro os princiacutepios ediretrizes contidos no documento ldquoPoliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutededo Homemrdquo4 cuja primeira versatildeo foi lanccedilada pelo Departamento de AccedilotildeesProgramaacuteticas e Estrateacutegicas do Ministeacuterio da Sauacutede em 2008| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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Uma poliacutetica de sauacutede para o homemPara as mulheres medidas especiais de sauacutede comeccedilam a surgir no Brasil jaacute nosanos 1930 centradas na chamada sauacutede materno-infantil Em 1983 com a criaccedilatildeodo PAISM (Programa de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher) esse foco mudouFruto de uma estreita colaboraccedilatildeo entre grupos feministas e o Ministeacuterio da Sauacutedeo PAISM foi implantado em serviccedilos de sauacutede no paiacutes como um todo (cf COSTA1999) Funcionando atraveacutes de dinacircmicas de grupo e workshops os grupos decontracepccedilatildeo planejados pelo PAISM tinham como objetivo levar as mulheres atomar consciecircncia do proacuteprio corpo bem como enfatizar sua autonomia no quetange agrave sua vida sexual e reprodutiva (cf PEREIRA 2008) O objetivo era substituira concepccedilatildeo tradicional de sauacutede materno-infantil por uma agenda mais poliacuteticaque englobasse os direitos reprodutivosQuase 25 anos depois em seu discurso de posse de marccedilo de 2007 o meacutedicosanitarista Joseacute Gomes Temporatildeo Ministro da Sauacutede nomeado por Luiz InaacutecioLula da Silva em seu segundo mandato presidencial listou a implantaccedilatildeo de umaldquopoliacutetica nacional para a assistecircncia agrave sauacutede do homemrdquo entre as metas a serem

perseguidas durante sua gestatildeo5 Um ano mais tarde em marccedilo de 2008 foicriada no acircmbito do Departamento de Accedilotildees Programaacuteticas Estrateacutegicas daSecretaria de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede a Aacuterea Teacutecnica de Sauacutede do Homem6

ficando soba coordenaccedilatildeo de Ricardo Cavalcanti meacutedico ginecologista e um dos fundadoresda moderna sexologia brasileira7 No departamento os ldquohomensrdquo passam entatildeo ater um lugar ao lado de outros sujeitos focos mais antigos de accedilotildees de sauacutedeespeciacuteficas aleacutem das ldquomulheresrdquo ldquoadolescentes e jovensrdquo ldquoidososrdquo ldquopessoas comdeficiecircnciardquo usuaacuterios de serviccedilos de sauacutede mental e indiviacuteduos sob a custoacutedia doEstado Desse modo como Cavalcanti reconheceria em tom ufanista meses maistarde no lanccedilamento da Campanha Nacional de Esclarecimento da Sauacutede doHomem o Brasil se tornou ldquoo segundo paiacutes da Ameacuterica que tem um setor para asauacutede do homem Soacute o Canadaacute tem essa pasta nem os EUA a possuirdquo8

Eacute importante desde jaacute destacar o papel da Sociedade Brasileira de Urologia(SBU) em todo esse processo e apontar a ironia que isso representa do ponto devista histoacuterico uma vez que durante os anos 19301940 o meacutedico e sexoacutelogoJoseacute de Albuquerque que se proclamava criador da andrologia tinha justamenteos urologistas entre seus principais alvos Eles mereciam criacuteticas contundentes dosexoacutelogo por quererem monopolizar o estudo e a intervenccedilatildeo sobre os problemasA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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sexuais masculinos Para Albuquerque ao lado da ginecologia a andrologia deviaser considerada subespecialidade da sexologia A urologia devia se ater segundo ofundador da andrologia aos problemas do sistema urinaacuterio de homens e mulheresComo parte da sexologia a andrologia deveria articular aleacutem de conhecimentosbioloacutegicos os de outras disciplinas como a psicologia e sociologia (cf CARRARA1996 2004) Mas nessa disputa a vitoacuteria coube agrave urologia pois atualmente aandrologia aparece como parte da urologia e eacute nesse acircmbito definida como a

subespecialidade uroloacutegica que ldquocuida do sistema reprodutor da funccedilatildeo sexual eda regulaccedilatildeo de hormocircnios sexuais masculinosrdquo tratando sobretudo de problemascomo o Distuacuterbio Androgecircnico do Envelhecimento Masculino (DAEM) a infertilidademasculina as disfunccedilotildees ereacuteteis a ejaculaccedilatildeo precoce Eacute curioso ainda perceber queembora a urologia natildeo seja uma especialidade voltada apenas para o homem aproacutepria SBU tende a apresentaacute-la como tal tatildeo grande eacute o peso das questotildees desauacutede masculina em sua pautaDesde pelo menos 2004 a SBU vinha se dedicando agrave causa da sauacutede do homeme ao longo de todo o ano de 2008 passa a exercer forte pressatildeo junto a diferentessetores do governo a parlamentares aos conselhos de sauacutede (CONASS eCONASEMS9) e a outras sociedades meacutedicas para o lanccedilamento de uma poliacuteticaespeciacutefica voltada agrave sauacutede do homem Em sua atuaccedilatildeo aleacutem do estabelecimentodas diretrizes dessa poliacutetica estavam em jogo questotildees coorporativas como o valordos honoraacuterios pagos ao urologista pelo SUS ou a obrigatoriedade de os urologistasvinculados ao SUS serem credenciados pela sociedadeUma das primeiras accedilotildees do grupo que assumiu a direccedilatildeo da SBU em janeirode 2008 foi procurar o Ministro da Sauacutede para discutir a implantaccedilatildeo do programade sauacutede do homem e defender a importacircncia da nomeaccedilatildeo de um chefe para aaacuterea teacutecnica Simultaneamente reuacutene-se com os presidentes da Sociedade Brasileirade Cardiologia e da Associaccedilatildeo Brasileira de Psiquiatria para discutir os principaisproblemas a serem incorporados ao programa10

No mecircs de julho daquele mesmo ano um acordo de cooperaccedilatildeo teacutecnica seriaassinado entre o Ministeacuterio da Sauacutede e a SBU com o objetivo de promover aassistecircncia ao homem no sistema puacuteblico de sauacutede e reduzir as taxas de mortalidademasculina A ideia era natildeo apenas treinar os meacutedicos do sistema puacuteblico de sauacutedea diagnosticar doenccedilas uroloacutegicas mas tambeacutem auxiliar na promoccedilatildeo de campanhasdirigidas ao puacuteblico leigo visando agrave prevenccedilatildeo dessas doenccedilas atraveacutes do incentivo| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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agrave busca dos serviccedilos de sauacutede A primeira dessas campanhas foi a CampanhaNacional de Esclarecimento da Sauacutede do Homem que a SBU promoveu comapoio do Ministeacuterio entre julho e setembro de 2008 O tema escolhido para acampanha foi a disfunccedilatildeo ereacutetil (DE) Segundo informaccedilotildees obtidas no site daSBU essa escolha foi feita por trecircs razotildees Em primeiro lugar cerca de 50 doshomens adultos acima de 40 anos teria ldquoalgum tipo de queixa relacionada agrave funccedilatildeoereacutetilrdquo Ao mesmo tempo menos de 10 dos homens que sofrem de ldquoalgumgrau de disfunccedilatildeo ereacutetilrdquo procurariam assistecircncia meacutedica por vergonha ou medodo diagnoacutestico Aleacutem disso a DE estaria frequentemente associada a outrasdoenccedilas (como a diabete ou problemas cardiovasculares) ou poderia ser causadapor outras doenccedilas uroloacutegicas (como o decliacutenio do hormocircnio masculino emidosos ou o tratamento do cacircncer de proacutestata) Para justificar a necessidade deuma campanha de esclarecimento do puacuteblico em geral a SBU citou dados doMinisteacuterio da Sauacutede segundo os quais em 2007 167 milhotildees de mulheresconsultaram-se com um ginecologista ao passo que apenas 27 milhotildees de homensse consultaram com um urologistaNo dia 28 de julho de 2008 a campanha nacional da SBU foi lanccedilada emBrasiacutelia num jantar que reuniu 130 convidados entre os quais vaacuterias autoridadesdo Ministeacuterio da Sauacutede incluindo o coordenador da Aacuterea Teacutecnica da Sauacutede doHomem Na ocasiatildeo foi apresentado um comercial de 30 segundos focalizandoa disfunccedilatildeo ereacutetil a ser transmitido por TV aberta durante os meses de agosto esetembro e um folheto de divulgaccedilatildeo Por apresentar aspectos cruciais dointrincado processo de medicalizaccedilatildeo do corpo masculino esse materialpublicitaacuterio merece aqui uma anaacutelise mais detidaO folheto mostra um casal com idade entre 35 e 45 anos (ela mais jovem queele) ambos brancos bem vestidos magros felizes e exibindo alianccedila na matildeoesquerda prestes a se beijar Ao fundo um pocircr-do-sol sobre um mar dourado

compotildee um cenaacuterio paradisiacuteaco Na parte de baixo em letras grandes lemos ldquoosbons momentos de voltardquo mais acima agrave direita em letras menores ldquocerca de 40dos homens apresentam algum grau de dificuldade de ereccedilatildeo Trazer os bonsmomentos de volta soacute depende de vocecircrdquo Abaixo da imagem um texto em corpoainda menor adverteA dificuldade de ereccedilatildeo atinge milhotildees de homens no Brasil Os tratamentos hojeem dia satildeo muito eficazes Uma vida sexual insatisfatoacuteria pode estar relacionadaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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a diversos fatores como diabetes e hipertensatildeo Fale com seu urologista e tragaos bons momentos de volta11

Eacute importante perceber os deslizamentos entre diferentes expressotildees no decorrerda campanha A campanha da SBU eacute centrada na disfunccedilatildeo ereacutetil Os argumentosapresentados pela sociedade falam que 40 dos homens acima de 40 anosapresentam alguma queixa relacionada agrave funccedilatildeo ereacutetil No folheto o termo usadoeacute dificuldade de ereccedilatildeo que eacute remetida a uma vida sexual insatisfatoacuteria Do mesmomodo a faixa etaacuteria citada no website da SBU (homens acima dos 40) eacute suprimidaPassamos entatildeo de ldquoalgum tipo de queixa relacionada a funccedilatildeo ereacutetilrdquo paradificuldade de ereccedilatildeo ambas expressotildees subsumidas pela categoria disfunccedilatildeo ereacutetilque eacute como indicado pela proacutepria SBU o verdadeiro foco da campanha Essedeslizamento em nenhum momento eacute objeto de explicaccedilatildeo ou discussatildeo sejanos documentos da SBU seja naqueles produzidos pela Aacuterea Teacutecnica da Sauacutededo Homem Outra caracteriacutestica interessante do folheto eacute seu duplo apelo Eacutefaacutecil perceber que as expressotildees dificuldade de ereccedilatildeo ou vida sexual insatisfatoacuterianatildeo necessariamente se enquadram na categoria doenccedila O texto chama atenccedilatildeopara ldquoos bons momentosrdquo (em primeiro plano e em letras grandes) apresentandouma imagem extremamente positiva - o lindo e (quase) jovem casal abraccedilado -que natildeo se associa agrave ideia de doenccedila mas de felicidade e sauacutede Eacute possiacutevelportanto para aquele que vecirc o anuacutencio entender que a dificuldade de ereccedilatildeo natildeoeacute de fato uma doenccedila O anuacutencio entretanto visa a levar os homens ao meacutedico

Por que ir ao meacutedico se natildeo se estaacute doente As frases em letra menor na parteinferior direita da imagem ao mesmo tempo em que contecircm uma ameaccedila (ldquoumavida sexual insatisfatoacuteria pode estar relacionada a diversos fatores como diabetese hipertensatildeordquo) oferecem uma espeacutecie de desculpa para os homens queinsatisfeitos com sua performance tecircm vergonha de procurar um meacutedico Ouseja poderatildeo buscar um urologista devido agrave sua preocupaccedilatildeo com um problemapropriamente meacutedico e natildeo sexualEacute tambeacutem significativo que dentre os vaacuterios perigos letais que rondariam os homensa disfunccedilatildeo ereacutetil tenha sido escolhida para tema de uma campanha cujo tiacutetulo prometeum geneacuterico ldquoesclarecimento da sauacutede do homemrdquo Um dos grandes obstaacuteculos agravepromoccedilatildeo da sauacutede dos homens conforme repetido inuacutemeras vezes ao longo do processode construccedilatildeo da nova poliacutetica eacute justamente a centralidade da ideia de invulnerabilidadeou seja da ideia de potecircncia na construccedilatildeo da masculinidade hegemocircnica Por essa| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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razatildeo os homens seriam como declara o presidente da Associaccedilatildeo Meacutedica de Brasiacuteliano lanccedilamento da campanha ldquorelapsosrdquo com sua sauacutede procurando menosfrequentemente os meacutedicos que as mulheres Mas ao centrar a felicidade dos homensna potecircncia sexual vista como capacidade de obter uma ereccedilatildeo a campanha acabareforccedilando a centralidade dos valores que supostamente pretende combaterParadoxalmente ao prometer devolver-lhes a potecircncia perdida os urologistas natildeo deixamde procurar atrair os homens aos cuidados de sauacutede justamente a partir da configuraccedilatildeode valores que os afastaria de tais cuidados e que como eacute o caso da virilidade compotildeemos fundamentos mesmos da masculinidade hegemocircnica12

Na luta pela implantaccedilatildeo da nova poliacutetica que a SBU manteacutem ao longo do anode 2008 outro momento importante eacute a audiecircncia puacuteblica convocada pela Cacircmarados Deputados no acircmbito do IV Foacuterum Poliacuteticas Puacuteblicas de Sauacutede do Homemrealizado em agosto13 Nela o Ministeacuterio da Sauacutede apresenta seu projeto para a

aacuterea Quase simultaneamente o Ministeacuterio divulgaria o documento ldquoPoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homemrdquo (PNAISH) Iniciava assimuma discussatildeo que envolveria diferentes atores (setores do governo conselhos desauacutede associaccedilotildees meacutedicas pesquisadores profissionais de sauacutede e representantesda sociedade civil) e se estenderia ateacute maio do ano seguinte quando a versatildeo finaldo documento eacute oficialmente divulgada Ao lado da urologia entre as associaccedilotildeesmeacutedicas participam sobretudo aquelas relacionadas aos problemas maiscomumente identificados como ldquomasculinosrdquo (cardiologia sauacutede mentalgastroenterologia e pneumologia)Aleacutem de influir decisivamente no conteuacutedo do novo programa a SBU trabalhatambeacutem no sentido de garantir sua sustentaccedilatildeo poliacutetica Em maio de 2009 porexemplo distribui folhetos no XXV Congresso Nacional de Secretarias Municipaisde Sauacutede visando a ldquosolicitar apoio para poliacuteticas puacuteblicas voltadas para o sexomasculinordquo Segundo noticia-se no website da sociedade ldquoo objetivo eacute sensibilizaros gestores municipais a adotarem poliacuteticas que visem a uma assistecircncia uroloacutegicamais efetiva nos hospitais puacuteblicos Aleacutem disso a SBU quer conscientizaacute-los sobrea Poliacutetica Nacional de Sauacutede do Homem do Ministeacuterio da Sauacutede e agregaacute-los naluta para que tal programa entre em vigor o quanto antesrdquo No folheto distribuiacutedocompara-se a situaccedilatildeo de mulheres apresentadas como sujeitos que reivindicamseus direitos e de homens apresentados em linguagem um tanto confusa comosujeitos passivos cuja sauacutede tem sido negligenciadaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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A mulher brasileira tem conquistado avanccedilos em nossa sociedade ganhandodignidade disputando com isonomia diferentes funccedilotildees que as igualam agraves condiccedilotildeesdos homens Com isso as autoridades governamentais tem [sic] desenvolvidoimportantes accedilotildees de poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede da mulher no acircmbito do SUSOs homens por sua vez continuam deixando de ser contemplados por essas accedilotildeesgovernamentais evoluindo para o distanciamento das soluccedilotildees de seus principaisagravos na aacuterea da sauacutede gerando informaccedilotildees desencontradas e sem base cientiacuteficao que sobremaneira resulta em grande prejuiacutezo social (grifo nosso)14

A nova poliacutetica de sauacutede seria finalmente lanccedilada em agosto de 2009 no bojode uma seacuterie de atividades relativas agrave campanha pela sauacutede do homem Em 10 de

agosto um dia apoacutes o Dia dos Pais o Presidente Lula trata da sauacutede do homemem seu programa de raacutedio ldquoCafeacute com o Presidenterdquo e anuncia que o MS lanccedilaraacuteem breve a Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem O Presidentediz entatildeo que no que concerne agrave sauacutede os homens mereceriam ldquoum puxatildeo deorelhardquo por terem ldquomedo de agulhardquo indo pouco ao meacutedico e soacute iniciandotratamento depois do agravamento do quadro Em sua intervenccedilatildeo tambeacutemcompara homens e mulheres apontando a ldquoculturardquo como raiz do problemaTodos noacutes homens temos essa bobagem na cabeccedila que eacute o medo de fazer o examede proacutestata e isso tem sido a causa da morte de muitos homens por causa docacircncer de proacutestata Soacute para vocecirc ter uma ideia segundo estimativa do SUS paracada oito consultas ginecoloacutegicas feitas em 2007 soacute teve uma uroloacutegica Enquantoquase 17 milhotildees de mulheres foram ao ginecologista em 2007 apenas 26 milhotildeesde homens procuraram um urologista Veja todo homem depois de uma certaidade tem que procurar o urologista A verdade eacute que ainda tem muitos que tecircmmedo de procurar o urologista e fazer exame de toque por conta da proacutestata Essaatitude estaacute muito ligada agrave nossa cultura Mas isso estaacute na hora de mudar issonatildeo combina com a vida moderna Temos que acompanhar as mudanccedilas nomundo e encarar nossas fragilidades Precisamos ter haacutebitos saudaacuteveis fazer examede prevenccedilatildeo e rotina (grifo nosso)15

Por beberem mais fumarem mais e serem mais sedentaacuterios que as mulheres oshomens teriam uma menor expectativa de vida Segundo o Presidente em largamedida dependeria deles a transformaccedilatildeo desse quadro Nesse sentido termina aentrevista com um apelo ldquoEntatildeo o meu apelo para os homens no Dia dos Pais eacuteque a partir de agora vamos nos cuidar porque noacutes precisamos viver mais e vivermelhor Afinal de contas a nossa famiacutelia depende muito de noacutesrdquo16| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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Ainda em agosto realiza-se na Cacircmara dos Deputados o V Foacuterum de PoliacuteticasPuacuteblicas e Sauacutede do Homem cujo objetivo seria segundo o presidente da SBUldquomanter a lembranccedila e pressatildeo junto aos oacutergatildeos governamentais e parlamentaressobre a importacircncia da poliacutetica nacional de sauacutede do homem que resgata umalacuna e inclui o gecircnero masculino ainda secundarizado nas poliacuteticas puacuteblicasrdquo17

Durante o Foacuterum o presidente da SBU recebe a notiacutecia do lanccedilamento oficial dapoliacutetica Ao comemorar revela o papel central desempenhado pelos urologistasFinalizamos um importante ciclo no sentido de sensibilizar as autoridades atraveacutes

de simpoacutesios e Foacuteruns quanto agrave importacircncia da inclusatildeo de projetos especiacuteficosvoltados para o gecircnero masculino Estamos felizes com o lanccedilamento desta poliacuteticapelo Governo Federal Dentre todas as especialidades eacute inegaacutevel que a Urologiaguarda uma estreita poreacutem natildeo exclusiva relaccedilatildeo com o homem Iniciaremos umoutro ciclo que eacute o plano de accedilatildeo desta poliacutetica nos estados e municiacutepios e aimportacircncia que os gestores daratildeo a estas accedilotildees O homem brasileiro agradece(grifo nosso)18

Finalmente em 28 de agosto de 2009 no auditoacuterio da Organizaccedilatildeo Pan-Americana de Sauacutede em Brasiacutelia o Ministeacuterio da Sauacutede lanccedila oficialmente a PoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem Em seu discurso o ministroressaltaria a importacircncia da Sociedade Brasileira de Urologia na construccedilatildeo danova poliacutetica que conforme declara o presidente da SBU ldquovaloriza o homembrasileiro fortalece a atividade uroloacutegica e o urologista no Sistema Uacutenico de Sauacutederdquo19

Salvar os homens de si mesmos o documento ldquoPoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes)rdquoComo dito acima em agosto de 2008 o Departamento de Accedilotildees Programaacuteticas eEstrateacutegicas ao qual se subordina a Aacuterea Teacutecnica de Sauacutede do Homem lanccedilou aprimeira versatildeo do documento ldquoPoliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede doHomem (princiacutepios e diretrizes)rdquo20 O documento eacute apresentado como fruto deuma parceria entre gestores do SUS sociedades cientiacuteficas sociedade civilorganizada pesquisadores acadecircmicos e agecircncias de cooperaccedilatildeo internacional Aindana apresentaccedilatildeo lemos que a sauacutede do homem eacute uma das prioridades do governoe que a poliacutetica a ser implementada traduziria ldquoum longo anseio da sociedade aoA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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reconhecer que os agravos do sexo masculino constituem verdadeiros problemasde sauacutede puacuteblicardquo (PNAISH 2008 p 3)Segundo o documento estudos comparativos tecircm demonstrado que os homenssatildeo mais vulneraacuteveis a doenccedilas do que as mulheres especialmente agraves enfermidadescrocircnicas e graves e que morrem mais cedo Apesar deste fato jaacute bem documentadoos homens natildeo satildeo captados pelos serviccedilos de atenccedilatildeo primaacuteria (como ocorre com

as mulheres) Sua entrada no sistema de sauacutede se daria principalmente pela atenccedilatildeoambulatorial e hospitalar de meacutedia e alta complexidades configurando um perfilque favorece o agravo da morbidade pela busca tardia ao atendimentoPara explicar a ldquoresistecircncia masculina agrave atenccedilatildeo primaacuteriardquo o texto lanccedila matildeo depesquisas qualitativas21 que apontam diversas razotildees para o fenocircmeno agrupadasem dois tipos de determinantes ldquobarreiras institucionaisrdquo e ldquobarreirassocioculturaisrdquo As ldquobarreiras institucionaisrdquo dizem respeito agrave dificuldade de acessoaos serviccedilos assistenciais e satildeo tratadas de forma bastante breve O documentoenfatiza as chamadas ldquovariaacuteveis culturaisrdquoestereoacutetipos de gecircnero enraizados haacute seacuteculos na cultura patriarcal produzempraacuteticas baseadas em crenccedilas e valores do que eacute ser masculino A doenccedila eacuteconsiderada um sinal de fragilidade que os homens natildeo reconhecem como inerentesagrave sua proacutepria condiccedilatildeo bioloacutegica O homem se julga invulneraacutevel o que acaba porcontribuir para que ele cuide menos de si mesmo e se exponha mais agraves situaccedilotildeesde risco (PNAISH 2008 p 6)Mais abaixo lecirc-seAinda que o conceito de masculinidade venha sendo atualmente contestado e tenhaperdido seu rigor original na dinacircmica do processo cultural [] a concepccedilatildeo aindaprevalente e hegemocircnica de masculinidade eacute o eixo estruturante pela natildeo-procuraaos serviccedilos de sauacutede (Idem)Uma vez explicitadas o que satildeo as ldquovariaacuteveis culturaisrdquo o documento afirma queo grande desafio de uma poliacutetica voltada para os homens eacute mobilizar a ldquopopulaccedilatildeomasculina brasileira para a luta pela garantia de seu direito social agrave sauacutederdquo Paratanto a poliacutetica em questatildeo pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para oreconhecimento e a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para queadvenham sujeitos protagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio egozo dos direitos de cidadaniardquo (PNAISH 2008 p 7)| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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No item ldquoMetodologia de construccedilatildeo da poliacuteticardquo o texto afirma que a ideiacentral do documento foi desenvolvida de modo articulado com a Poliacutetica Nacionalde Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher ldquorecuperando experiecircncias e conhecimentosproduzidos naquela aacuterea promovendo accedilotildees futuras em consonacircncia tanto emprinciacutepios como em praacuteticasrdquo (PNAISH 2008 p 9) Esta articulaccedilatildeo com a poliacuteticavoltada para as mulheres seraacute objeto de discussatildeo mais adianteO item do documento intitulado ldquoDiagnoacutesticordquo eacute bastante extenso e como o

nome indica procura oferecer um quadro amplo acerca dos agravos agrave sauacutedemasculina22 percorrendo temas como violecircncia alcoolismo e tabagismo indicadoresde mortalidade e de morbidade Aleacutem dessas temaacuteticas nas quais reconhecemos alinguagem mais tradicional da epidemiologia e da sauacutede puacuteblica encontramosoutros temas que embora possam ser vistos como parte do campo da sauacutede nosentido lato extrapolam seus limites uma vez que tecircm ressonacircncias mais claramentepoliacuteticas eou juriacutedicas ldquoadolescecircncia e velhicerdquo e ldquodireitos sexuais e reprodutivosrdquoLogo na introduccedilatildeo desse item lemos queOs temas mais recorrentes no estudo sobre a sauacutede do homem podem se estruturarem torno de trecircs eixos violecircncia tendecircncia agrave exposiccedilatildeo a riscos com consequecircncianos indicadores de morbi-mortalidade e sauacutede sexual e reprodutiva (PNAISH2008 p 11)Como veremos adiante dentre esses trecircs eixos o terceiro - sauacutede sexual ereprodutiva - seraacute enfatizado em detrimento dos demais embora na apresentaccedilatildeodos diversos subitens de que trata o item ldquoDiagnoacutesticordquo os dois primeiros eixossejam mais extensamente tratados com a apresentaccedilatildeo de um conjunto expressivode dados e argumentos O subitem ldquoDireitos sexuais e reprodutivosrdquo ao contraacuteriodos demais natildeo traz dados sobre agravos ou ameaccedilas agrave sauacutede sexual e reprodutivamas expotildee uma espeacutecie de agenda poliacutetica afirmando a necessidade da implementaccedilatildeodos direitos sexuais e reprodutivos dos homens A linguagem dos direitos se impotildeee a categoria ldquosauacutederdquo natildeo eacute mencionada O documento afirma por exemplo que eacutenecessaacuterio ldquosuperar a restriccedilatildeo da responsabilidade sobre as praacuteticas contraceptivas agravesmulheresrdquo de modo a assegurar aos homens ldquoo direito agrave participaccedilatildeo no planejamentoreprodutivordquo a paternidade devendo ser vista como ldquoum direito do homem a participarde todo o processo desde a decisatildeo de ter ou natildeo filhos como e quando tecirc-los bemcomo do acompanhamento da gravidez do parto do poacutes-parto e da educaccedilatildeo dacrianccedilardquo (PNAISH 2008 p 20) Eacute curiosa essa formulaccedilatildeo uma vez que a demandaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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pela participaccedilatildeo masculina nas decisotildees reprodutivas eacute uma bandeira do movimento

feminista Normalmente tal participaccedilatildeo aparece como exigecircncia das mulherescomo um dever do qual o homem tende a escapar No documento o que antes eraconsiderado um dever se transforma em direitoA insistecircncia na temaacutetica da sauacutede sexual e reprodutiva atravessa o documentoe surge com forccedila no item ldquoObjetivosrdquo Satildeo trecircs os objetivos especiacuteficos listados(1) Organizar implantar qualificar e humanizar em todo territoacuterio brasileiro aatenccedilatildeo integral a sauacutede do homem dentro dos princiacutepios que regem o SistemaUacutenico de Sauacutede(2) Estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeo da assistecircncia em sauacutede sexual ereprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede(3) Ampliar atraveacutes da educaccedilatildeo o acesso dos homens agraves informaccedilotildees sobre asmedidas preventivas contra os agravos e enfermidades que atingem a populaccedilatildeomasculina destacando seus direitos sexuais e reprodutivos (PNAISH 2008 p 39grifos nossos)O segundo dos objetivos especiacuteficos - estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeoda assistecircncia em sauacutede sexual e reprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede -tem uma extensa lista de subitens Dentre estes aleacutem de metas mais tradicionaisrelativas ao planejamento reprodutivo masculino contracepccedilatildeo ciruacutergica voluntaacuteriae prevenccedilatildeo de DSTAids encontramos os seguintes objetivos- estimular implantar implementar e qualificar pessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildeessexuais masculinas- promover a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem nas populaccedilotildees indiacutegenas negrasquilombolas gays bissexuais travestis transexuais trabalhadores rurais homenscom deficiecircncia em situaccedilatildeo de risco em situaccedilatildeo carceraacuteria desenvolvendoestrateacutegias voltadas para a promoccedilatildeo da equidade para distintos grupos sociais- associar as accedilotildees governamentais com as da sociedade civil organizada paraefetivar a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem com protagonismo social na enunciaccedilatildeodas reais condiccedilotildees de sauacutede da populaccedilatildeo heterogecircnea de homens (PNAISH2008 p 39)Destacamos aqui dois pontos que comentaremos mais adiante nas conclusotildeesO primeiro diz respeito agrave associaccedilatildeo entre o discurso da SBU (presente na ideia deldquoatenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) e o dos movimentos da ldquosociedade civilorganizadardquo O segundo refere-se ao fato de que a ecircnfase colocada sobre sauacutedesexual e direitos sexuais e reprodutivos natildeo aparece do mesmo modo quando se| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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trata de outros temas como a violecircncia reconhecidamente uma das mais relevantescausas de morbidade e mortalidade entre homens adultos jovens23

Assim emboradiscuta e exponha extensamente os fatores considerados pela sauacutede puacuteblica como

mais relevantes agrave sauacutede masculina o documento dirige seu foco para as novastemaacuteticas da sauacutede sexual e dos direitos sexuais e reprodutivos Ateacute entatildeo pelomenos no que diz respeito a estes uacuteltimos tais temaacuteticas pareciam mais ligadas aosdiscursos feministas em torno da sauacutede da mulherAlgumas conclusotildees possiacuteveisO documento de algum modo afirma o caraacuteter ldquoinsalubrerdquo de certa masculinidadesendo os homens apresentados como viacutetimas de sua proacutepria masculinidade ouseja das crenccedilas e valores que constituiriam as ldquobarreiras socioculturaisrdquo que seantepotildeem agrave medicalizaccedilatildeo O objetivo principal do programa eacute enfraquecer aresistecircncia masculina agrave medicina de uma forma geral ou seja medicalizar oshomens24 Para tanto uma accedilatildeo educativa bem feita ldquomodernizariardquo os homensbrasileiros dissipando o pensamento maacutegico que os (des)orienta e que os tornapresas de seu proacuteprios preconceitosEntretanto a questatildeo nos parece bastante mais complexa do que imaginam osdefensores da nova poliacutetica pois essa situaccedilatildeo paradoxal dos homens em relaccedilatildeo asua proacutepria sauacutede e ao seu corpo - sua cultura somaacutetica como diria Luc Boltanski(1979) - deriva em larga medida da posiccedilatildeo que (ainda) ocupam na hierarquia degecircnero A questatildeo natildeo eacute de ldquoculturardquo portanto mas do modo como a cultura estaacuteimbricada ou implicada em relaccedilotildees de poder bem concretas que o discursovitimaacuterio e paternalista incorporado agrave nova poliacutetica contribui mais para ocultar doque revelar Para os homens articular reivindicaccedilotildees a partir de uma posiccedilatildeogenerificada e tornar-se visiacuteveis enquanto ldquohomensrdquo significa colocar-se no mesmoplano que as mulheres Perderiam assim a posiccedilatildeo de representantes universais daespeacutecie e arriscariam a perder tambeacutem suas prerrogativas na hierarquia de gecircneroTalvez seja por isso mesmo que eles natildeo o fazem natildeo havendo (ainda) organizaccedilotildeesldquomasculinistasrdquo como existem organizaccedilotildees ldquofeministasrdquoDesse modo a condiccedilatildeo para que ocorra a mudanccedila cultural necessaacuteria para

fazer com que os homens (heterossexuais) tenham uma relaccedilatildeo tatildeo reflexiva comseus proacuteprios corpos quanto seus vaacuterios ldquooutrosrdquo (mulheres homossexuais travestis)eacute que tais ldquooutrosrdquo tenham o mesmo poder e prestiacutegio que eles Tudo se passaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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como se os homens precisassem se tornar socialmente vulneraacuteveis para poderperceber sua vulnerabilidade bioloacutegica e para ver algum sentido na luta porultrapassaacute-la Dito de outro modo mostrar-se invulneraacutevel faz parte do exerciacuteciodo poder pelos homens e o poder tem um ldquopreccedilordquo (uma vida mais curta ou menossaudaacutevel) que parece os homens ainda estatildeo dispostos a pagar Diferentementedas mulheres que organizadas num amplo movimento procuraram atraveacutes depoliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas sair da posiccedilatildeo de subordinaccedilatildeo a que historicamenteestavam relegadas os homens soacute podem aparecer entatildeo como sujeitos passivosfrente agrave interpelaccedilatildeo que lhes dirigem a medicina e o Estado Acabam assimsendo retoricamente representados pelos meacutedicos sobretudo urologistas e pelosformuladores e executores de uma poliacutetica que supostamente se implanta em nomedeles mas sem sua participaccedilatildeoQuanto agrave ecircnfase dada aos direitos sexuais e reprodutivos parece-nos que taistemas tecircm uma dupla entrada no programa - atraveacutes da urologia (ou medicinasexual) e da incorporaccedilatildeo da retoacuterica de movimentos poliacuteticos organizados ASBU aparece como ator fundamental na formulaccedilatildeo da poliacutetica Como vimos oacordo de cooperaccedilatildeo teacutecnica assinado com o Ministeacuterio da Sauacutede teve como umde seus principais desdobramentos a campanha centrada na disfunccedilatildeo ereacutetil(lanccedilada antes mesmo da publicaccedilatildeo do documento) Eacute o tipo de pressatildeo quevem dos especialistas neste caso com um objetivo muito claro transformar adisfunccedilatildeo ereacutetil num problema de sauacutede puacuteblica o que eacute facilitado por doisfatores a declaraccedilatildeo do entatildeo Secretaacuterio Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede Joseacute Gomes

Temporatildeo em 200625 e a nomeaccedilatildeo de Ricardo Cavalcanti para a Coordenaccedilatildeoda Aacuterea Teacutecnica da Sauacutede do Homem Cavalcanti eacute um dos pais fundadores damoderna sexologia brasileira e embora sendo ginecologista de formaccedilatildeocertamente facilitou o diaacutelogo entre o governo e a SBU Neste caso a afirmaccedilatildeodos direitos sexuais passa pela sexologia e pela medicina sexualA leitura do documento nos leva agrave conclusatildeo de que a poliacutetica de aproximaccedilatildeocom o Ministeacuterio da Sauacutede e os formuladores de poliacuteticas puacuteblicas empreendidapela SBU foi bem-sucedida jaacute que a preocupaccedilatildeo com a sauacutede sexual (explicitadapor exemplo no objetivo de ldquoestimular implantar implementar e qualificarpessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) ultrapassa em grau deimportacircncia pelo menos no documento outros problemas possiacuteveis dentre osquais poderiacuteamos citar aleacutem da violecircncia os relacionados agrave sauacutede mental Por| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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outro lado a linguagem dos especialistas convive com uma outra tiacutepica doschamados movimentos sociais (lembremos que o documento afirma como umdos objetivos do programa ldquoincluir o enfoque de gecircnero orientaccedilatildeo sexualidentidade de gecircnero e condiccedilatildeo eacutetnico-racial nas accedilotildees educativasrdquo) produzindoum discurso hiacutebrido em que caminhos diversos parecem levar a um mesmoobjetivo final - a medicalizaccedilatildeo do corpo masculinoDe fato a presenccedila no documento do discurso dos movimentos sociaisnormalmente voltados para poliacuteticas identitaacuterias nos parece bastante forte Voltamosaqui a um trecho na introduccedilatildeo do documento segundo o qual o programa desauacutede do homem pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para o reconhecimentoe a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para que advenham sujeitosprotagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio e gozo dos direitos decidadaniardquo Isto eacute os homens devem paradoxalmente ser transformados em ldquosujeitosprotagonistas de suas demandasrdquo Atraveacutes do movimento organizado atransformaccedilatildeo das mulheres em ldquoprotagonistas de suas demandasrdquo envolveu seu

relativo ldquoempoderamentordquo No caso dos homens o ldquoprotagonismordquo implicajustamente o contraacuterio isto eacute assumir sua fragilidade e vulnerabilidade aprendendoa enunciar suas demandas Utiliza-se assim a mesma linguagem e os mesmosargumentos comumente presentes no discurso dos movimentos organizados paraefeitos aparentemente opostosNo acircmbito do documento uma das formas encontradas para lidar com esseaparente paradoxo que consiste em formular uma poliacutetica puacuteblica como se elafosse reivindicada pelos sujeitos por ela visados eacute desmembrar a categoria ldquohomemrdquoem uma seacuterie de subcategorias - iacutendios negros gays travestis portadores dedeficiecircncias trabalhadores rurais etc - que por outras razotildees satildeo historicamentemarginalizadas Ao que parece as mulheres podem formar mais facilmente umacategoria unificada mas os homens natildeo Homem pura e simplesmente semqualquer adjetivo natildeo parece ser uma identidade que se precise assumir (contra aspressotildees da sociedade) ou que se deva fortalecer ou pela qual se precise lutar Porisso talvez a necessidade de despedaccedilaacute-la num sem-nuacutemero de categorias demodo a tornar visiacutevel sua vulnerabilidade A politizaccedilatildeo e sensibilizaccedilatildeo do homemportanto tem por objetivo tornaacute-lo consciente dessa vulnerabilidade Soacute entatildeo eacutepossiacutevel medicalizaacute-lo Neste caso consciecircncia poliacutetica ldquoprotagonismordquo emedicalizaccedilatildeo aparecem como indissociaacuteveisA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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ReferecircnciasBOLTANSKI L As classes sociais e o corpo Rio de Janeiro Graal 1979BOURDIEU P O campo cientiacutefico In ORTIZ R (Org) Pierre Bourdieu Sociologia Satildeo PauloAacutetica 1983______ La domination masculine Paris Seuil 1998BRASIL Ministeacuterio da Sauacutede Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes) Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIAS Port2008PT-09-CONSpdf Acesso em maio 2009CARRARA S Tributo a Vecircnus a luta contra a siacutefilis no Brasil da passagem do seacuteculo aos anos 1940Rio de Janeiro Fiocruz 1996

______ Une science deacuterisoire Lacuteandrologie au Bregravesil entre les deux guerres Vibrant ndash VirtualBrazilian Anthropology v 1 n frac12 jan-dez 2004COSTA A M Desenvolvimento e Implantaccedilatildeo do PAISM no Brasil In GIFFIN Karen COSTAS H (Org) Questotildees da sauacutede reprodutiva Rio de Janeiro Fiocruz 1999FOUCAULT M Vigiar e punir Petroacutepolis Vozes 1977GOMES R Sexualidade masculina e sauacutede do homem proposta para uma discussatildeo CiecircnciaSauacutede Coletiva Rio de Janeiro n 8 p 825-9 2003GOMES R NASCIMENTO E F ARAUacuteJO F C Por que os homens buscam menos os serviccedilosde sauacutede do que as mulheres As explicaccedilotildees de homens com baixa escolaridade e homens comensino superior Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 23 n 3 mar 2007GOMES R NASCIMENTO E F A produccedilatildeo do conhecimento da sauacutede puacuteblica sobre arelaccedilatildeo homem-sauacutede uma revisatildeo bibliograacutefica Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 22n 5 p 901-911 maio 2006MEDRADO B LYRA J AZEVEDO M GRANJA E e VIEIRA S Princiacutepios diretrizes erecomendaccedilotildees para uma atenccedilatildeo integral aos homens na sauacutede Recife Instituto PAPAI 2009OLIVEIRA P P de A construccedilatildeo social da masculinidade Belo Horizonte UFMG 2004PEREIRA A L Accedilotildees educativas em contracepccedilatildeo teoria e praacutetica dos profissionais de sauacutede Tese(Doutorado em Sauacutede Coletiva) - Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio dejaneiro Rio de Janeiro 2008ROHDEN F Uma ciecircncia da diferenccedila sexo e gecircnero na medicina da mulher Rio de JaneiroFiocruz 2001SCHRAIBER L B GOMES R COUTO M T Homens e sauacutede na pauta da sauacutede coletivaCiecircncia e Sauacutede Coletiva v 10 n 1 p 7-17 2005| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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STOCKLE V Is Sex to Gender as Race is to Ethnicity In DEL VALLE T (Ed) GenderedAnthropology London Routledge 1993

Notas Uma primeira versatildeo deste texto foi apresentada no simpoacutesio The Future of Sexual Health SexualHealth in Public Health Policies no XIX Congresso da World Association for Sexual Health Gotemburgojunho de 2009 tendo utilizado dados colhidos na pesquisa ldquoDiferenccedilas de gecircnero na recentemedicalizaccedilatildeo do envelhecimento e sexualidade a criaccedilatildeo das categorias menopausa andropausa edisfunccedilatildeo sexualrdquo coordenada por Fabiacuteola Rohden e apoiada pelo CNPq1 A partir das reflexotildees de Michel Foucault (1977) em torno do panopticismo pode-se afirmar quedeterminados regimes de visibilidade configuram certos sujeitos que de outro modo inexistiriam ouexistiriam de modo inteiramente diferente Natildeo se trata aqui de entrarmos na polecircmica entreconstrutivismo e essencialismo ou seja de decidir se alguns sujeitos estavam sempre laacute agrave espera deserem descoberto ou se satildeo criados pela proacutepria ldquoluzrdquo que os ilumina2 Com ldquoobjetificaccedilatildeordquo natildeo nos referimos aqui a um processo de negaccedilatildeo aos homens de seu estatuto de

pessoa humana mas ao processo de instituiccedilatildeo de certos temas problemas ou sujeitos como objetoslegiacutetimos de conhecimento em determinado campo cientiacutefico conforme formulado originalmente porPierre Bourdieu (1983)3 A partir dos anos 1990 esse processo vem sendo acompanhado pela progressiva transformaccedilatildeo doshomens e da masculinidade em objeto de conhecimento tambeacutem das ciecircncias sociais configurandonovas aacutereas de conhecimento como os chamados ldquomenrsquos studiesrdquo Para isso ver entre outros Oliveira(2004)4 Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIASPort2008PT-09-CONSpdf (acessoem maio 2009)5 Eacute importante destacar que Joseacute Gomes Temporatildeo em 2006 quando ainda era Secretaacuterio Nacionalde Atenccedilatildeo agrave Sauacutede no Ministeacuterio da Sauacutede tentou criar centros de atenccedilatildeo agrave sauacutede no setor privadopara melhorar a assistecircncia agrave sauacutede do homem Em declaraccedilatildeo publicada no jornal O Estado de SatildeoPaulo em janeiro de 2006 Temporatildeo afirmou que o Ministeacuterio da Sauacutede estava analisando a possibilidadede oferecer tratamento para a disfunccedilatildeo ereacutetil atraveacutes da rede puacuteblica incluindo a distribuiccedilatildeo demedicamentos O governo estaria examinando o impacto financeiro de tal medida6 Ao que parece havia no acircmbito do MS desde 2006 uma Coordenaccedilatildeo de Sauacutede do Homem7 Nove meses depois foi substituiacutedo pelo Dr Baldur Schubert um assessor da sua equipe especialistaem seguridade social e sauacutede do trabalho8 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)9 Respectivamente Conselho Nacional de Secretaacuterios de Sauacutede e Conselho Nacional de SecretaacuteriosMunicipais de SauacutedeA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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10 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)11 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrpdf2008_saudehomempdf (acesso em maio 2009)12 Para a discussatildeo sobre a dominaccedilatildeo masculina ver Bourdieu (1998)13 Tais foacuteruns vecircm sendo organizados anualmente pela Comissatildeo de Seguridade Social e Famiacutelia daCacircmara dos Deputados em parceria com a SBU14 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrimagesfolder_noticiajpg (acesso em maio 2009)15 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)16 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)17 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)18 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)19 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)20 O documento passou por uma consulta puacuteblica e foi aprovado pelo Conselho Nacional de Sauacutede emjulho de 200921 O documento lanccedila matildeo de trabalhos importantes que no campo da sauacutede vecircm discutindo amasculinidade como Gomes (2003) Gomes e Nascimento (2006) Gomes et al (2007) Schraiber etal (2005)22 Lemos no documento que ldquoos indicadores apresentados visam a oferecer uma visatildeo ampliada doprocesso de adoecimento e de vulnerabilidade e agravos agrave sauacutede na populaccedilatildeo de homensrdquo (PNAISH2008 p 11)23 Esse aspecto foi tambeacutem destacado em reaccedilatildeo agraves diretrizes do Programa expressa em ldquodocumentomarcordquoproduzido por iniciativa de importantes organizaccedilotildees natildeo-governamentais brasileiras que haacute

muitos anos trabalham com o tema das masculinidades O texto aborda o Programa com base em umaleitura feminista de gecircnero Aleacutem de criticar a centralidade assumida pelas doenccedilas do aparelhogeniturinaacuterio na nova poliacutetica enfatiza-se tambeacutem a relativa desvalorizaccedilatildeo da promoccedilatildeo agrave sauacutede emfavor da oferta de serviccedilos de assistecircncia (MEDRADO et al 2009)24 Eacute interessante pensar como esse movimento vai de encontro agrave luta feminista contra a medicalizaccedilatildeodo corpo feminino25 Ver nota 2| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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Page 5: Saúde do Homem

perseguidas durante sua gestatildeo5 Um ano mais tarde em marccedilo de 2008 foicriada no acircmbito do Departamento de Accedilotildees Programaacuteticas Estrateacutegicas daSecretaria de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede a Aacuterea Teacutecnica de Sauacutede do Homem6

ficando soba coordenaccedilatildeo de Ricardo Cavalcanti meacutedico ginecologista e um dos fundadoresda moderna sexologia brasileira7 No departamento os ldquohomensrdquo passam entatildeo ater um lugar ao lado de outros sujeitos focos mais antigos de accedilotildees de sauacutedeespeciacuteficas aleacutem das ldquomulheresrdquo ldquoadolescentes e jovensrdquo ldquoidososrdquo ldquopessoas comdeficiecircnciardquo usuaacuterios de serviccedilos de sauacutede mental e indiviacuteduos sob a custoacutedia doEstado Desse modo como Cavalcanti reconheceria em tom ufanista meses maistarde no lanccedilamento da Campanha Nacional de Esclarecimento da Sauacutede doHomem o Brasil se tornou ldquoo segundo paiacutes da Ameacuterica que tem um setor para asauacutede do homem Soacute o Canadaacute tem essa pasta nem os EUA a possuirdquo8

Eacute importante desde jaacute destacar o papel da Sociedade Brasileira de Urologia(SBU) em todo esse processo e apontar a ironia que isso representa do ponto devista histoacuterico uma vez que durante os anos 19301940 o meacutedico e sexoacutelogoJoseacute de Albuquerque que se proclamava criador da andrologia tinha justamenteos urologistas entre seus principais alvos Eles mereciam criacuteticas contundentes dosexoacutelogo por quererem monopolizar o estudo e a intervenccedilatildeo sobre os problemasA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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sexuais masculinos Para Albuquerque ao lado da ginecologia a andrologia deviaser considerada subespecialidade da sexologia A urologia devia se ater segundo ofundador da andrologia aos problemas do sistema urinaacuterio de homens e mulheresComo parte da sexologia a andrologia deveria articular aleacutem de conhecimentosbioloacutegicos os de outras disciplinas como a psicologia e sociologia (cf CARRARA1996 2004) Mas nessa disputa a vitoacuteria coube agrave urologia pois atualmente aandrologia aparece como parte da urologia e eacute nesse acircmbito definida como a

subespecialidade uroloacutegica que ldquocuida do sistema reprodutor da funccedilatildeo sexual eda regulaccedilatildeo de hormocircnios sexuais masculinosrdquo tratando sobretudo de problemascomo o Distuacuterbio Androgecircnico do Envelhecimento Masculino (DAEM) a infertilidademasculina as disfunccedilotildees ereacuteteis a ejaculaccedilatildeo precoce Eacute curioso ainda perceber queembora a urologia natildeo seja uma especialidade voltada apenas para o homem aproacutepria SBU tende a apresentaacute-la como tal tatildeo grande eacute o peso das questotildees desauacutede masculina em sua pautaDesde pelo menos 2004 a SBU vinha se dedicando agrave causa da sauacutede do homeme ao longo de todo o ano de 2008 passa a exercer forte pressatildeo junto a diferentessetores do governo a parlamentares aos conselhos de sauacutede (CONASS eCONASEMS9) e a outras sociedades meacutedicas para o lanccedilamento de uma poliacuteticaespeciacutefica voltada agrave sauacutede do homem Em sua atuaccedilatildeo aleacutem do estabelecimentodas diretrizes dessa poliacutetica estavam em jogo questotildees coorporativas como o valordos honoraacuterios pagos ao urologista pelo SUS ou a obrigatoriedade de os urologistasvinculados ao SUS serem credenciados pela sociedadeUma das primeiras accedilotildees do grupo que assumiu a direccedilatildeo da SBU em janeirode 2008 foi procurar o Ministro da Sauacutede para discutir a implantaccedilatildeo do programade sauacutede do homem e defender a importacircncia da nomeaccedilatildeo de um chefe para aaacuterea teacutecnica Simultaneamente reuacutene-se com os presidentes da Sociedade Brasileirade Cardiologia e da Associaccedilatildeo Brasileira de Psiquiatria para discutir os principaisproblemas a serem incorporados ao programa10

No mecircs de julho daquele mesmo ano um acordo de cooperaccedilatildeo teacutecnica seriaassinado entre o Ministeacuterio da Sauacutede e a SBU com o objetivo de promover aassistecircncia ao homem no sistema puacuteblico de sauacutede e reduzir as taxas de mortalidademasculina A ideia era natildeo apenas treinar os meacutedicos do sistema puacuteblico de sauacutedea diagnosticar doenccedilas uroloacutegicas mas tambeacutem auxiliar na promoccedilatildeo de campanhasdirigidas ao puacuteblico leigo visando agrave prevenccedilatildeo dessas doenccedilas atraveacutes do incentivo| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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agrave busca dos serviccedilos de sauacutede A primeira dessas campanhas foi a CampanhaNacional de Esclarecimento da Sauacutede do Homem que a SBU promoveu comapoio do Ministeacuterio entre julho e setembro de 2008 O tema escolhido para acampanha foi a disfunccedilatildeo ereacutetil (DE) Segundo informaccedilotildees obtidas no site daSBU essa escolha foi feita por trecircs razotildees Em primeiro lugar cerca de 50 doshomens adultos acima de 40 anos teria ldquoalgum tipo de queixa relacionada agrave funccedilatildeoereacutetilrdquo Ao mesmo tempo menos de 10 dos homens que sofrem de ldquoalgumgrau de disfunccedilatildeo ereacutetilrdquo procurariam assistecircncia meacutedica por vergonha ou medodo diagnoacutestico Aleacutem disso a DE estaria frequentemente associada a outrasdoenccedilas (como a diabete ou problemas cardiovasculares) ou poderia ser causadapor outras doenccedilas uroloacutegicas (como o decliacutenio do hormocircnio masculino emidosos ou o tratamento do cacircncer de proacutestata) Para justificar a necessidade deuma campanha de esclarecimento do puacuteblico em geral a SBU citou dados doMinisteacuterio da Sauacutede segundo os quais em 2007 167 milhotildees de mulheresconsultaram-se com um ginecologista ao passo que apenas 27 milhotildees de homensse consultaram com um urologistaNo dia 28 de julho de 2008 a campanha nacional da SBU foi lanccedilada emBrasiacutelia num jantar que reuniu 130 convidados entre os quais vaacuterias autoridadesdo Ministeacuterio da Sauacutede incluindo o coordenador da Aacuterea Teacutecnica da Sauacutede doHomem Na ocasiatildeo foi apresentado um comercial de 30 segundos focalizandoa disfunccedilatildeo ereacutetil a ser transmitido por TV aberta durante os meses de agosto esetembro e um folheto de divulgaccedilatildeo Por apresentar aspectos cruciais dointrincado processo de medicalizaccedilatildeo do corpo masculino esse materialpublicitaacuterio merece aqui uma anaacutelise mais detidaO folheto mostra um casal com idade entre 35 e 45 anos (ela mais jovem queele) ambos brancos bem vestidos magros felizes e exibindo alianccedila na matildeoesquerda prestes a se beijar Ao fundo um pocircr-do-sol sobre um mar dourado

compotildee um cenaacuterio paradisiacuteaco Na parte de baixo em letras grandes lemos ldquoosbons momentos de voltardquo mais acima agrave direita em letras menores ldquocerca de 40dos homens apresentam algum grau de dificuldade de ereccedilatildeo Trazer os bonsmomentos de volta soacute depende de vocecircrdquo Abaixo da imagem um texto em corpoainda menor adverteA dificuldade de ereccedilatildeo atinge milhotildees de homens no Brasil Os tratamentos hojeem dia satildeo muito eficazes Uma vida sexual insatisfatoacuteria pode estar relacionadaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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a diversos fatores como diabetes e hipertensatildeo Fale com seu urologista e tragaos bons momentos de volta11

Eacute importante perceber os deslizamentos entre diferentes expressotildees no decorrerda campanha A campanha da SBU eacute centrada na disfunccedilatildeo ereacutetil Os argumentosapresentados pela sociedade falam que 40 dos homens acima de 40 anosapresentam alguma queixa relacionada agrave funccedilatildeo ereacutetil No folheto o termo usadoeacute dificuldade de ereccedilatildeo que eacute remetida a uma vida sexual insatisfatoacuteria Do mesmomodo a faixa etaacuteria citada no website da SBU (homens acima dos 40) eacute suprimidaPassamos entatildeo de ldquoalgum tipo de queixa relacionada a funccedilatildeo ereacutetilrdquo paradificuldade de ereccedilatildeo ambas expressotildees subsumidas pela categoria disfunccedilatildeo ereacutetilque eacute como indicado pela proacutepria SBU o verdadeiro foco da campanha Essedeslizamento em nenhum momento eacute objeto de explicaccedilatildeo ou discussatildeo sejanos documentos da SBU seja naqueles produzidos pela Aacuterea Teacutecnica da Sauacutededo Homem Outra caracteriacutestica interessante do folheto eacute seu duplo apelo Eacutefaacutecil perceber que as expressotildees dificuldade de ereccedilatildeo ou vida sexual insatisfatoacuterianatildeo necessariamente se enquadram na categoria doenccedila O texto chama atenccedilatildeopara ldquoos bons momentosrdquo (em primeiro plano e em letras grandes) apresentandouma imagem extremamente positiva - o lindo e (quase) jovem casal abraccedilado -que natildeo se associa agrave ideia de doenccedila mas de felicidade e sauacutede Eacute possiacutevelportanto para aquele que vecirc o anuacutencio entender que a dificuldade de ereccedilatildeo natildeoeacute de fato uma doenccedila O anuacutencio entretanto visa a levar os homens ao meacutedico

Por que ir ao meacutedico se natildeo se estaacute doente As frases em letra menor na parteinferior direita da imagem ao mesmo tempo em que contecircm uma ameaccedila (ldquoumavida sexual insatisfatoacuteria pode estar relacionada a diversos fatores como diabetese hipertensatildeordquo) oferecem uma espeacutecie de desculpa para os homens queinsatisfeitos com sua performance tecircm vergonha de procurar um meacutedico Ouseja poderatildeo buscar um urologista devido agrave sua preocupaccedilatildeo com um problemapropriamente meacutedico e natildeo sexualEacute tambeacutem significativo que dentre os vaacuterios perigos letais que rondariam os homensa disfunccedilatildeo ereacutetil tenha sido escolhida para tema de uma campanha cujo tiacutetulo prometeum geneacuterico ldquoesclarecimento da sauacutede do homemrdquo Um dos grandes obstaacuteculos agravepromoccedilatildeo da sauacutede dos homens conforme repetido inuacutemeras vezes ao longo do processode construccedilatildeo da nova poliacutetica eacute justamente a centralidade da ideia de invulnerabilidadeou seja da ideia de potecircncia na construccedilatildeo da masculinidade hegemocircnica Por essa| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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razatildeo os homens seriam como declara o presidente da Associaccedilatildeo Meacutedica de Brasiacuteliano lanccedilamento da campanha ldquorelapsosrdquo com sua sauacutede procurando menosfrequentemente os meacutedicos que as mulheres Mas ao centrar a felicidade dos homensna potecircncia sexual vista como capacidade de obter uma ereccedilatildeo a campanha acabareforccedilando a centralidade dos valores que supostamente pretende combaterParadoxalmente ao prometer devolver-lhes a potecircncia perdida os urologistas natildeo deixamde procurar atrair os homens aos cuidados de sauacutede justamente a partir da configuraccedilatildeode valores que os afastaria de tais cuidados e que como eacute o caso da virilidade compotildeemos fundamentos mesmos da masculinidade hegemocircnica12

Na luta pela implantaccedilatildeo da nova poliacutetica que a SBU manteacutem ao longo do anode 2008 outro momento importante eacute a audiecircncia puacuteblica convocada pela Cacircmarados Deputados no acircmbito do IV Foacuterum Poliacuteticas Puacuteblicas de Sauacutede do Homemrealizado em agosto13 Nela o Ministeacuterio da Sauacutede apresenta seu projeto para a

aacuterea Quase simultaneamente o Ministeacuterio divulgaria o documento ldquoPoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homemrdquo (PNAISH) Iniciava assimuma discussatildeo que envolveria diferentes atores (setores do governo conselhos desauacutede associaccedilotildees meacutedicas pesquisadores profissionais de sauacutede e representantesda sociedade civil) e se estenderia ateacute maio do ano seguinte quando a versatildeo finaldo documento eacute oficialmente divulgada Ao lado da urologia entre as associaccedilotildeesmeacutedicas participam sobretudo aquelas relacionadas aos problemas maiscomumente identificados como ldquomasculinosrdquo (cardiologia sauacutede mentalgastroenterologia e pneumologia)Aleacutem de influir decisivamente no conteuacutedo do novo programa a SBU trabalhatambeacutem no sentido de garantir sua sustentaccedilatildeo poliacutetica Em maio de 2009 porexemplo distribui folhetos no XXV Congresso Nacional de Secretarias Municipaisde Sauacutede visando a ldquosolicitar apoio para poliacuteticas puacuteblicas voltadas para o sexomasculinordquo Segundo noticia-se no website da sociedade ldquoo objetivo eacute sensibilizaros gestores municipais a adotarem poliacuteticas que visem a uma assistecircncia uroloacutegicamais efetiva nos hospitais puacuteblicos Aleacutem disso a SBU quer conscientizaacute-los sobrea Poliacutetica Nacional de Sauacutede do Homem do Ministeacuterio da Sauacutede e agregaacute-los naluta para que tal programa entre em vigor o quanto antesrdquo No folheto distribuiacutedocompara-se a situaccedilatildeo de mulheres apresentadas como sujeitos que reivindicamseus direitos e de homens apresentados em linguagem um tanto confusa comosujeitos passivos cuja sauacutede tem sido negligenciadaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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A mulher brasileira tem conquistado avanccedilos em nossa sociedade ganhandodignidade disputando com isonomia diferentes funccedilotildees que as igualam agraves condiccedilotildeesdos homens Com isso as autoridades governamentais tem [sic] desenvolvidoimportantes accedilotildees de poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede da mulher no acircmbito do SUSOs homens por sua vez continuam deixando de ser contemplados por essas accedilotildeesgovernamentais evoluindo para o distanciamento das soluccedilotildees de seus principaisagravos na aacuterea da sauacutede gerando informaccedilotildees desencontradas e sem base cientiacuteficao que sobremaneira resulta em grande prejuiacutezo social (grifo nosso)14

A nova poliacutetica de sauacutede seria finalmente lanccedilada em agosto de 2009 no bojode uma seacuterie de atividades relativas agrave campanha pela sauacutede do homem Em 10 de

agosto um dia apoacutes o Dia dos Pais o Presidente Lula trata da sauacutede do homemem seu programa de raacutedio ldquoCafeacute com o Presidenterdquo e anuncia que o MS lanccedilaraacuteem breve a Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem O Presidentediz entatildeo que no que concerne agrave sauacutede os homens mereceriam ldquoum puxatildeo deorelhardquo por terem ldquomedo de agulhardquo indo pouco ao meacutedico e soacute iniciandotratamento depois do agravamento do quadro Em sua intervenccedilatildeo tambeacutemcompara homens e mulheres apontando a ldquoculturardquo como raiz do problemaTodos noacutes homens temos essa bobagem na cabeccedila que eacute o medo de fazer o examede proacutestata e isso tem sido a causa da morte de muitos homens por causa docacircncer de proacutestata Soacute para vocecirc ter uma ideia segundo estimativa do SUS paracada oito consultas ginecoloacutegicas feitas em 2007 soacute teve uma uroloacutegica Enquantoquase 17 milhotildees de mulheres foram ao ginecologista em 2007 apenas 26 milhotildeesde homens procuraram um urologista Veja todo homem depois de uma certaidade tem que procurar o urologista A verdade eacute que ainda tem muitos que tecircmmedo de procurar o urologista e fazer exame de toque por conta da proacutestata Essaatitude estaacute muito ligada agrave nossa cultura Mas isso estaacute na hora de mudar issonatildeo combina com a vida moderna Temos que acompanhar as mudanccedilas nomundo e encarar nossas fragilidades Precisamos ter haacutebitos saudaacuteveis fazer examede prevenccedilatildeo e rotina (grifo nosso)15

Por beberem mais fumarem mais e serem mais sedentaacuterios que as mulheres oshomens teriam uma menor expectativa de vida Segundo o Presidente em largamedida dependeria deles a transformaccedilatildeo desse quadro Nesse sentido termina aentrevista com um apelo ldquoEntatildeo o meu apelo para os homens no Dia dos Pais eacuteque a partir de agora vamos nos cuidar porque noacutes precisamos viver mais e vivermelhor Afinal de contas a nossa famiacutelia depende muito de noacutesrdquo16| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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Ainda em agosto realiza-se na Cacircmara dos Deputados o V Foacuterum de PoliacuteticasPuacuteblicas e Sauacutede do Homem cujo objetivo seria segundo o presidente da SBUldquomanter a lembranccedila e pressatildeo junto aos oacutergatildeos governamentais e parlamentaressobre a importacircncia da poliacutetica nacional de sauacutede do homem que resgata umalacuna e inclui o gecircnero masculino ainda secundarizado nas poliacuteticas puacuteblicasrdquo17

Durante o Foacuterum o presidente da SBU recebe a notiacutecia do lanccedilamento oficial dapoliacutetica Ao comemorar revela o papel central desempenhado pelos urologistasFinalizamos um importante ciclo no sentido de sensibilizar as autoridades atraveacutes

de simpoacutesios e Foacuteruns quanto agrave importacircncia da inclusatildeo de projetos especiacuteficosvoltados para o gecircnero masculino Estamos felizes com o lanccedilamento desta poliacuteticapelo Governo Federal Dentre todas as especialidades eacute inegaacutevel que a Urologiaguarda uma estreita poreacutem natildeo exclusiva relaccedilatildeo com o homem Iniciaremos umoutro ciclo que eacute o plano de accedilatildeo desta poliacutetica nos estados e municiacutepios e aimportacircncia que os gestores daratildeo a estas accedilotildees O homem brasileiro agradece(grifo nosso)18

Finalmente em 28 de agosto de 2009 no auditoacuterio da Organizaccedilatildeo Pan-Americana de Sauacutede em Brasiacutelia o Ministeacuterio da Sauacutede lanccedila oficialmente a PoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem Em seu discurso o ministroressaltaria a importacircncia da Sociedade Brasileira de Urologia na construccedilatildeo danova poliacutetica que conforme declara o presidente da SBU ldquovaloriza o homembrasileiro fortalece a atividade uroloacutegica e o urologista no Sistema Uacutenico de Sauacutederdquo19

Salvar os homens de si mesmos o documento ldquoPoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes)rdquoComo dito acima em agosto de 2008 o Departamento de Accedilotildees Programaacuteticas eEstrateacutegicas ao qual se subordina a Aacuterea Teacutecnica de Sauacutede do Homem lanccedilou aprimeira versatildeo do documento ldquoPoliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede doHomem (princiacutepios e diretrizes)rdquo20 O documento eacute apresentado como fruto deuma parceria entre gestores do SUS sociedades cientiacuteficas sociedade civilorganizada pesquisadores acadecircmicos e agecircncias de cooperaccedilatildeo internacional Aindana apresentaccedilatildeo lemos que a sauacutede do homem eacute uma das prioridades do governoe que a poliacutetica a ser implementada traduziria ldquoum longo anseio da sociedade aoA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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reconhecer que os agravos do sexo masculino constituem verdadeiros problemasde sauacutede puacuteblicardquo (PNAISH 2008 p 3)Segundo o documento estudos comparativos tecircm demonstrado que os homenssatildeo mais vulneraacuteveis a doenccedilas do que as mulheres especialmente agraves enfermidadescrocircnicas e graves e que morrem mais cedo Apesar deste fato jaacute bem documentadoos homens natildeo satildeo captados pelos serviccedilos de atenccedilatildeo primaacuteria (como ocorre com

as mulheres) Sua entrada no sistema de sauacutede se daria principalmente pela atenccedilatildeoambulatorial e hospitalar de meacutedia e alta complexidades configurando um perfilque favorece o agravo da morbidade pela busca tardia ao atendimentoPara explicar a ldquoresistecircncia masculina agrave atenccedilatildeo primaacuteriardquo o texto lanccedila matildeo depesquisas qualitativas21 que apontam diversas razotildees para o fenocircmeno agrupadasem dois tipos de determinantes ldquobarreiras institucionaisrdquo e ldquobarreirassocioculturaisrdquo As ldquobarreiras institucionaisrdquo dizem respeito agrave dificuldade de acessoaos serviccedilos assistenciais e satildeo tratadas de forma bastante breve O documentoenfatiza as chamadas ldquovariaacuteveis culturaisrdquoestereoacutetipos de gecircnero enraizados haacute seacuteculos na cultura patriarcal produzempraacuteticas baseadas em crenccedilas e valores do que eacute ser masculino A doenccedila eacuteconsiderada um sinal de fragilidade que os homens natildeo reconhecem como inerentesagrave sua proacutepria condiccedilatildeo bioloacutegica O homem se julga invulneraacutevel o que acaba porcontribuir para que ele cuide menos de si mesmo e se exponha mais agraves situaccedilotildeesde risco (PNAISH 2008 p 6)Mais abaixo lecirc-seAinda que o conceito de masculinidade venha sendo atualmente contestado e tenhaperdido seu rigor original na dinacircmica do processo cultural [] a concepccedilatildeo aindaprevalente e hegemocircnica de masculinidade eacute o eixo estruturante pela natildeo-procuraaos serviccedilos de sauacutede (Idem)Uma vez explicitadas o que satildeo as ldquovariaacuteveis culturaisrdquo o documento afirma queo grande desafio de uma poliacutetica voltada para os homens eacute mobilizar a ldquopopulaccedilatildeomasculina brasileira para a luta pela garantia de seu direito social agrave sauacutederdquo Paratanto a poliacutetica em questatildeo pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para oreconhecimento e a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para queadvenham sujeitos protagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio egozo dos direitos de cidadaniardquo (PNAISH 2008 p 7)| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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No item ldquoMetodologia de construccedilatildeo da poliacuteticardquo o texto afirma que a ideiacentral do documento foi desenvolvida de modo articulado com a Poliacutetica Nacionalde Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher ldquorecuperando experiecircncias e conhecimentosproduzidos naquela aacuterea promovendo accedilotildees futuras em consonacircncia tanto emprinciacutepios como em praacuteticasrdquo (PNAISH 2008 p 9) Esta articulaccedilatildeo com a poliacuteticavoltada para as mulheres seraacute objeto de discussatildeo mais adianteO item do documento intitulado ldquoDiagnoacutesticordquo eacute bastante extenso e como o

nome indica procura oferecer um quadro amplo acerca dos agravos agrave sauacutedemasculina22 percorrendo temas como violecircncia alcoolismo e tabagismo indicadoresde mortalidade e de morbidade Aleacutem dessas temaacuteticas nas quais reconhecemos alinguagem mais tradicional da epidemiologia e da sauacutede puacuteblica encontramosoutros temas que embora possam ser vistos como parte do campo da sauacutede nosentido lato extrapolam seus limites uma vez que tecircm ressonacircncias mais claramentepoliacuteticas eou juriacutedicas ldquoadolescecircncia e velhicerdquo e ldquodireitos sexuais e reprodutivosrdquoLogo na introduccedilatildeo desse item lemos queOs temas mais recorrentes no estudo sobre a sauacutede do homem podem se estruturarem torno de trecircs eixos violecircncia tendecircncia agrave exposiccedilatildeo a riscos com consequecircncianos indicadores de morbi-mortalidade e sauacutede sexual e reprodutiva (PNAISH2008 p 11)Como veremos adiante dentre esses trecircs eixos o terceiro - sauacutede sexual ereprodutiva - seraacute enfatizado em detrimento dos demais embora na apresentaccedilatildeodos diversos subitens de que trata o item ldquoDiagnoacutesticordquo os dois primeiros eixossejam mais extensamente tratados com a apresentaccedilatildeo de um conjunto expressivode dados e argumentos O subitem ldquoDireitos sexuais e reprodutivosrdquo ao contraacuteriodos demais natildeo traz dados sobre agravos ou ameaccedilas agrave sauacutede sexual e reprodutivamas expotildee uma espeacutecie de agenda poliacutetica afirmando a necessidade da implementaccedilatildeodos direitos sexuais e reprodutivos dos homens A linguagem dos direitos se impotildeee a categoria ldquosauacutederdquo natildeo eacute mencionada O documento afirma por exemplo que eacutenecessaacuterio ldquosuperar a restriccedilatildeo da responsabilidade sobre as praacuteticas contraceptivas agravesmulheresrdquo de modo a assegurar aos homens ldquoo direito agrave participaccedilatildeo no planejamentoreprodutivordquo a paternidade devendo ser vista como ldquoum direito do homem a participarde todo o processo desde a decisatildeo de ter ou natildeo filhos como e quando tecirc-los bemcomo do acompanhamento da gravidez do parto do poacutes-parto e da educaccedilatildeo dacrianccedilardquo (PNAISH 2008 p 20) Eacute curiosa essa formulaccedilatildeo uma vez que a demandaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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pela participaccedilatildeo masculina nas decisotildees reprodutivas eacute uma bandeira do movimento

feminista Normalmente tal participaccedilatildeo aparece como exigecircncia das mulherescomo um dever do qual o homem tende a escapar No documento o que antes eraconsiderado um dever se transforma em direitoA insistecircncia na temaacutetica da sauacutede sexual e reprodutiva atravessa o documentoe surge com forccedila no item ldquoObjetivosrdquo Satildeo trecircs os objetivos especiacuteficos listados(1) Organizar implantar qualificar e humanizar em todo territoacuterio brasileiro aatenccedilatildeo integral a sauacutede do homem dentro dos princiacutepios que regem o SistemaUacutenico de Sauacutede(2) Estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeo da assistecircncia em sauacutede sexual ereprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede(3) Ampliar atraveacutes da educaccedilatildeo o acesso dos homens agraves informaccedilotildees sobre asmedidas preventivas contra os agravos e enfermidades que atingem a populaccedilatildeomasculina destacando seus direitos sexuais e reprodutivos (PNAISH 2008 p 39grifos nossos)O segundo dos objetivos especiacuteficos - estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeoda assistecircncia em sauacutede sexual e reprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede -tem uma extensa lista de subitens Dentre estes aleacutem de metas mais tradicionaisrelativas ao planejamento reprodutivo masculino contracepccedilatildeo ciruacutergica voluntaacuteriae prevenccedilatildeo de DSTAids encontramos os seguintes objetivos- estimular implantar implementar e qualificar pessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildeessexuais masculinas- promover a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem nas populaccedilotildees indiacutegenas negrasquilombolas gays bissexuais travestis transexuais trabalhadores rurais homenscom deficiecircncia em situaccedilatildeo de risco em situaccedilatildeo carceraacuteria desenvolvendoestrateacutegias voltadas para a promoccedilatildeo da equidade para distintos grupos sociais- associar as accedilotildees governamentais com as da sociedade civil organizada paraefetivar a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem com protagonismo social na enunciaccedilatildeodas reais condiccedilotildees de sauacutede da populaccedilatildeo heterogecircnea de homens (PNAISH2008 p 39)Destacamos aqui dois pontos que comentaremos mais adiante nas conclusotildeesO primeiro diz respeito agrave associaccedilatildeo entre o discurso da SBU (presente na ideia deldquoatenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) e o dos movimentos da ldquosociedade civilorganizadardquo O segundo refere-se ao fato de que a ecircnfase colocada sobre sauacutedesexual e direitos sexuais e reprodutivos natildeo aparece do mesmo modo quando se| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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trata de outros temas como a violecircncia reconhecidamente uma das mais relevantescausas de morbidade e mortalidade entre homens adultos jovens23

Assim emboradiscuta e exponha extensamente os fatores considerados pela sauacutede puacuteblica como

mais relevantes agrave sauacutede masculina o documento dirige seu foco para as novastemaacuteticas da sauacutede sexual e dos direitos sexuais e reprodutivos Ateacute entatildeo pelomenos no que diz respeito a estes uacuteltimos tais temaacuteticas pareciam mais ligadas aosdiscursos feministas em torno da sauacutede da mulherAlgumas conclusotildees possiacuteveisO documento de algum modo afirma o caraacuteter ldquoinsalubrerdquo de certa masculinidadesendo os homens apresentados como viacutetimas de sua proacutepria masculinidade ouseja das crenccedilas e valores que constituiriam as ldquobarreiras socioculturaisrdquo que seantepotildeem agrave medicalizaccedilatildeo O objetivo principal do programa eacute enfraquecer aresistecircncia masculina agrave medicina de uma forma geral ou seja medicalizar oshomens24 Para tanto uma accedilatildeo educativa bem feita ldquomodernizariardquo os homensbrasileiros dissipando o pensamento maacutegico que os (des)orienta e que os tornapresas de seu proacuteprios preconceitosEntretanto a questatildeo nos parece bastante mais complexa do que imaginam osdefensores da nova poliacutetica pois essa situaccedilatildeo paradoxal dos homens em relaccedilatildeo asua proacutepria sauacutede e ao seu corpo - sua cultura somaacutetica como diria Luc Boltanski(1979) - deriva em larga medida da posiccedilatildeo que (ainda) ocupam na hierarquia degecircnero A questatildeo natildeo eacute de ldquoculturardquo portanto mas do modo como a cultura estaacuteimbricada ou implicada em relaccedilotildees de poder bem concretas que o discursovitimaacuterio e paternalista incorporado agrave nova poliacutetica contribui mais para ocultar doque revelar Para os homens articular reivindicaccedilotildees a partir de uma posiccedilatildeogenerificada e tornar-se visiacuteveis enquanto ldquohomensrdquo significa colocar-se no mesmoplano que as mulheres Perderiam assim a posiccedilatildeo de representantes universais daespeacutecie e arriscariam a perder tambeacutem suas prerrogativas na hierarquia de gecircneroTalvez seja por isso mesmo que eles natildeo o fazem natildeo havendo (ainda) organizaccedilotildeesldquomasculinistasrdquo como existem organizaccedilotildees ldquofeministasrdquoDesse modo a condiccedilatildeo para que ocorra a mudanccedila cultural necessaacuteria para

fazer com que os homens (heterossexuais) tenham uma relaccedilatildeo tatildeo reflexiva comseus proacuteprios corpos quanto seus vaacuterios ldquooutrosrdquo (mulheres homossexuais travestis)eacute que tais ldquooutrosrdquo tenham o mesmo poder e prestiacutegio que eles Tudo se passaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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como se os homens precisassem se tornar socialmente vulneraacuteveis para poderperceber sua vulnerabilidade bioloacutegica e para ver algum sentido na luta porultrapassaacute-la Dito de outro modo mostrar-se invulneraacutevel faz parte do exerciacuteciodo poder pelos homens e o poder tem um ldquopreccedilordquo (uma vida mais curta ou menossaudaacutevel) que parece os homens ainda estatildeo dispostos a pagar Diferentementedas mulheres que organizadas num amplo movimento procuraram atraveacutes depoliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas sair da posiccedilatildeo de subordinaccedilatildeo a que historicamenteestavam relegadas os homens soacute podem aparecer entatildeo como sujeitos passivosfrente agrave interpelaccedilatildeo que lhes dirigem a medicina e o Estado Acabam assimsendo retoricamente representados pelos meacutedicos sobretudo urologistas e pelosformuladores e executores de uma poliacutetica que supostamente se implanta em nomedeles mas sem sua participaccedilatildeoQuanto agrave ecircnfase dada aos direitos sexuais e reprodutivos parece-nos que taistemas tecircm uma dupla entrada no programa - atraveacutes da urologia (ou medicinasexual) e da incorporaccedilatildeo da retoacuterica de movimentos poliacuteticos organizados ASBU aparece como ator fundamental na formulaccedilatildeo da poliacutetica Como vimos oacordo de cooperaccedilatildeo teacutecnica assinado com o Ministeacuterio da Sauacutede teve como umde seus principais desdobramentos a campanha centrada na disfunccedilatildeo ereacutetil(lanccedilada antes mesmo da publicaccedilatildeo do documento) Eacute o tipo de pressatildeo quevem dos especialistas neste caso com um objetivo muito claro transformar adisfunccedilatildeo ereacutetil num problema de sauacutede puacuteblica o que eacute facilitado por doisfatores a declaraccedilatildeo do entatildeo Secretaacuterio Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede Joseacute Gomes

Temporatildeo em 200625 e a nomeaccedilatildeo de Ricardo Cavalcanti para a Coordenaccedilatildeoda Aacuterea Teacutecnica da Sauacutede do Homem Cavalcanti eacute um dos pais fundadores damoderna sexologia brasileira e embora sendo ginecologista de formaccedilatildeocertamente facilitou o diaacutelogo entre o governo e a SBU Neste caso a afirmaccedilatildeodos direitos sexuais passa pela sexologia e pela medicina sexualA leitura do documento nos leva agrave conclusatildeo de que a poliacutetica de aproximaccedilatildeocom o Ministeacuterio da Sauacutede e os formuladores de poliacuteticas puacuteblicas empreendidapela SBU foi bem-sucedida jaacute que a preocupaccedilatildeo com a sauacutede sexual (explicitadapor exemplo no objetivo de ldquoestimular implantar implementar e qualificarpessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) ultrapassa em grau deimportacircncia pelo menos no documento outros problemas possiacuteveis dentre osquais poderiacuteamos citar aleacutem da violecircncia os relacionados agrave sauacutede mental Por| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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outro lado a linguagem dos especialistas convive com uma outra tiacutepica doschamados movimentos sociais (lembremos que o documento afirma como umdos objetivos do programa ldquoincluir o enfoque de gecircnero orientaccedilatildeo sexualidentidade de gecircnero e condiccedilatildeo eacutetnico-racial nas accedilotildees educativasrdquo) produzindoum discurso hiacutebrido em que caminhos diversos parecem levar a um mesmoobjetivo final - a medicalizaccedilatildeo do corpo masculinoDe fato a presenccedila no documento do discurso dos movimentos sociaisnormalmente voltados para poliacuteticas identitaacuterias nos parece bastante forte Voltamosaqui a um trecho na introduccedilatildeo do documento segundo o qual o programa desauacutede do homem pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para o reconhecimentoe a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para que advenham sujeitosprotagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio e gozo dos direitos decidadaniardquo Isto eacute os homens devem paradoxalmente ser transformados em ldquosujeitosprotagonistas de suas demandasrdquo Atraveacutes do movimento organizado atransformaccedilatildeo das mulheres em ldquoprotagonistas de suas demandasrdquo envolveu seu

relativo ldquoempoderamentordquo No caso dos homens o ldquoprotagonismordquo implicajustamente o contraacuterio isto eacute assumir sua fragilidade e vulnerabilidade aprendendoa enunciar suas demandas Utiliza-se assim a mesma linguagem e os mesmosargumentos comumente presentes no discurso dos movimentos organizados paraefeitos aparentemente opostosNo acircmbito do documento uma das formas encontradas para lidar com esseaparente paradoxo que consiste em formular uma poliacutetica puacuteblica como se elafosse reivindicada pelos sujeitos por ela visados eacute desmembrar a categoria ldquohomemrdquoem uma seacuterie de subcategorias - iacutendios negros gays travestis portadores dedeficiecircncias trabalhadores rurais etc - que por outras razotildees satildeo historicamentemarginalizadas Ao que parece as mulheres podem formar mais facilmente umacategoria unificada mas os homens natildeo Homem pura e simplesmente semqualquer adjetivo natildeo parece ser uma identidade que se precise assumir (contra aspressotildees da sociedade) ou que se deva fortalecer ou pela qual se precise lutar Porisso talvez a necessidade de despedaccedilaacute-la num sem-nuacutemero de categorias demodo a tornar visiacutevel sua vulnerabilidade A politizaccedilatildeo e sensibilizaccedilatildeo do homemportanto tem por objetivo tornaacute-lo consciente dessa vulnerabilidade Soacute entatildeo eacutepossiacutevel medicalizaacute-lo Neste caso consciecircncia poliacutetica ldquoprotagonismordquo emedicalizaccedilatildeo aparecem como indissociaacuteveisA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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ReferecircnciasBOLTANSKI L As classes sociais e o corpo Rio de Janeiro Graal 1979BOURDIEU P O campo cientiacutefico In ORTIZ R (Org) Pierre Bourdieu Sociologia Satildeo PauloAacutetica 1983______ La domination masculine Paris Seuil 1998BRASIL Ministeacuterio da Sauacutede Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes) Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIAS Port2008PT-09-CONSpdf Acesso em maio 2009CARRARA S Tributo a Vecircnus a luta contra a siacutefilis no Brasil da passagem do seacuteculo aos anos 1940Rio de Janeiro Fiocruz 1996

______ Une science deacuterisoire Lacuteandrologie au Bregravesil entre les deux guerres Vibrant ndash VirtualBrazilian Anthropology v 1 n frac12 jan-dez 2004COSTA A M Desenvolvimento e Implantaccedilatildeo do PAISM no Brasil In GIFFIN Karen COSTAS H (Org) Questotildees da sauacutede reprodutiva Rio de Janeiro Fiocruz 1999FOUCAULT M Vigiar e punir Petroacutepolis Vozes 1977GOMES R Sexualidade masculina e sauacutede do homem proposta para uma discussatildeo CiecircnciaSauacutede Coletiva Rio de Janeiro n 8 p 825-9 2003GOMES R NASCIMENTO E F ARAUacuteJO F C Por que os homens buscam menos os serviccedilosde sauacutede do que as mulheres As explicaccedilotildees de homens com baixa escolaridade e homens comensino superior Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 23 n 3 mar 2007GOMES R NASCIMENTO E F A produccedilatildeo do conhecimento da sauacutede puacuteblica sobre arelaccedilatildeo homem-sauacutede uma revisatildeo bibliograacutefica Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 22n 5 p 901-911 maio 2006MEDRADO B LYRA J AZEVEDO M GRANJA E e VIEIRA S Princiacutepios diretrizes erecomendaccedilotildees para uma atenccedilatildeo integral aos homens na sauacutede Recife Instituto PAPAI 2009OLIVEIRA P P de A construccedilatildeo social da masculinidade Belo Horizonte UFMG 2004PEREIRA A L Accedilotildees educativas em contracepccedilatildeo teoria e praacutetica dos profissionais de sauacutede Tese(Doutorado em Sauacutede Coletiva) - Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio dejaneiro Rio de Janeiro 2008ROHDEN F Uma ciecircncia da diferenccedila sexo e gecircnero na medicina da mulher Rio de JaneiroFiocruz 2001SCHRAIBER L B GOMES R COUTO M T Homens e sauacutede na pauta da sauacutede coletivaCiecircncia e Sauacutede Coletiva v 10 n 1 p 7-17 2005| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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STOCKLE V Is Sex to Gender as Race is to Ethnicity In DEL VALLE T (Ed) GenderedAnthropology London Routledge 1993

Notas Uma primeira versatildeo deste texto foi apresentada no simpoacutesio The Future of Sexual Health SexualHealth in Public Health Policies no XIX Congresso da World Association for Sexual Health Gotemburgojunho de 2009 tendo utilizado dados colhidos na pesquisa ldquoDiferenccedilas de gecircnero na recentemedicalizaccedilatildeo do envelhecimento e sexualidade a criaccedilatildeo das categorias menopausa andropausa edisfunccedilatildeo sexualrdquo coordenada por Fabiacuteola Rohden e apoiada pelo CNPq1 A partir das reflexotildees de Michel Foucault (1977) em torno do panopticismo pode-se afirmar quedeterminados regimes de visibilidade configuram certos sujeitos que de outro modo inexistiriam ouexistiriam de modo inteiramente diferente Natildeo se trata aqui de entrarmos na polecircmica entreconstrutivismo e essencialismo ou seja de decidir se alguns sujeitos estavam sempre laacute agrave espera deserem descoberto ou se satildeo criados pela proacutepria ldquoluzrdquo que os ilumina2 Com ldquoobjetificaccedilatildeordquo natildeo nos referimos aqui a um processo de negaccedilatildeo aos homens de seu estatuto de

pessoa humana mas ao processo de instituiccedilatildeo de certos temas problemas ou sujeitos como objetoslegiacutetimos de conhecimento em determinado campo cientiacutefico conforme formulado originalmente porPierre Bourdieu (1983)3 A partir dos anos 1990 esse processo vem sendo acompanhado pela progressiva transformaccedilatildeo doshomens e da masculinidade em objeto de conhecimento tambeacutem das ciecircncias sociais configurandonovas aacutereas de conhecimento como os chamados ldquomenrsquos studiesrdquo Para isso ver entre outros Oliveira(2004)4 Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIASPort2008PT-09-CONSpdf (acessoem maio 2009)5 Eacute importante destacar que Joseacute Gomes Temporatildeo em 2006 quando ainda era Secretaacuterio Nacionalde Atenccedilatildeo agrave Sauacutede no Ministeacuterio da Sauacutede tentou criar centros de atenccedilatildeo agrave sauacutede no setor privadopara melhorar a assistecircncia agrave sauacutede do homem Em declaraccedilatildeo publicada no jornal O Estado de SatildeoPaulo em janeiro de 2006 Temporatildeo afirmou que o Ministeacuterio da Sauacutede estava analisando a possibilidadede oferecer tratamento para a disfunccedilatildeo ereacutetil atraveacutes da rede puacuteblica incluindo a distribuiccedilatildeo demedicamentos O governo estaria examinando o impacto financeiro de tal medida6 Ao que parece havia no acircmbito do MS desde 2006 uma Coordenaccedilatildeo de Sauacutede do Homem7 Nove meses depois foi substituiacutedo pelo Dr Baldur Schubert um assessor da sua equipe especialistaem seguridade social e sauacutede do trabalho8 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)9 Respectivamente Conselho Nacional de Secretaacuterios de Sauacutede e Conselho Nacional de SecretaacuteriosMunicipais de SauacutedeA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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10 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)11 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrpdf2008_saudehomempdf (acesso em maio 2009)12 Para a discussatildeo sobre a dominaccedilatildeo masculina ver Bourdieu (1998)13 Tais foacuteruns vecircm sendo organizados anualmente pela Comissatildeo de Seguridade Social e Famiacutelia daCacircmara dos Deputados em parceria com a SBU14 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrimagesfolder_noticiajpg (acesso em maio 2009)15 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)16 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)17 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)18 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)19 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)20 O documento passou por uma consulta puacuteblica e foi aprovado pelo Conselho Nacional de Sauacutede emjulho de 200921 O documento lanccedila matildeo de trabalhos importantes que no campo da sauacutede vecircm discutindo amasculinidade como Gomes (2003) Gomes e Nascimento (2006) Gomes et al (2007) Schraiber etal (2005)22 Lemos no documento que ldquoos indicadores apresentados visam a oferecer uma visatildeo ampliada doprocesso de adoecimento e de vulnerabilidade e agravos agrave sauacutede na populaccedilatildeo de homensrdquo (PNAISH2008 p 11)23 Esse aspecto foi tambeacutem destacado em reaccedilatildeo agraves diretrizes do Programa expressa em ldquodocumentomarcordquoproduzido por iniciativa de importantes organizaccedilotildees natildeo-governamentais brasileiras que haacute

muitos anos trabalham com o tema das masculinidades O texto aborda o Programa com base em umaleitura feminista de gecircnero Aleacutem de criticar a centralidade assumida pelas doenccedilas do aparelhogeniturinaacuterio na nova poliacutetica enfatiza-se tambeacutem a relativa desvalorizaccedilatildeo da promoccedilatildeo agrave sauacutede emfavor da oferta de serviccedilos de assistecircncia (MEDRADO et al 2009)24 Eacute interessante pensar como esse movimento vai de encontro agrave luta feminista contra a medicalizaccedilatildeodo corpo feminino25 Ver nota 2| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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subespecialidade uroloacutegica que ldquocuida do sistema reprodutor da funccedilatildeo sexual eda regulaccedilatildeo de hormocircnios sexuais masculinosrdquo tratando sobretudo de problemascomo o Distuacuterbio Androgecircnico do Envelhecimento Masculino (DAEM) a infertilidademasculina as disfunccedilotildees ereacuteteis a ejaculaccedilatildeo precoce Eacute curioso ainda perceber queembora a urologia natildeo seja uma especialidade voltada apenas para o homem aproacutepria SBU tende a apresentaacute-la como tal tatildeo grande eacute o peso das questotildees desauacutede masculina em sua pautaDesde pelo menos 2004 a SBU vinha se dedicando agrave causa da sauacutede do homeme ao longo de todo o ano de 2008 passa a exercer forte pressatildeo junto a diferentessetores do governo a parlamentares aos conselhos de sauacutede (CONASS eCONASEMS9) e a outras sociedades meacutedicas para o lanccedilamento de uma poliacuteticaespeciacutefica voltada agrave sauacutede do homem Em sua atuaccedilatildeo aleacutem do estabelecimentodas diretrizes dessa poliacutetica estavam em jogo questotildees coorporativas como o valordos honoraacuterios pagos ao urologista pelo SUS ou a obrigatoriedade de os urologistasvinculados ao SUS serem credenciados pela sociedadeUma das primeiras accedilotildees do grupo que assumiu a direccedilatildeo da SBU em janeirode 2008 foi procurar o Ministro da Sauacutede para discutir a implantaccedilatildeo do programade sauacutede do homem e defender a importacircncia da nomeaccedilatildeo de um chefe para aaacuterea teacutecnica Simultaneamente reuacutene-se com os presidentes da Sociedade Brasileirade Cardiologia e da Associaccedilatildeo Brasileira de Psiquiatria para discutir os principaisproblemas a serem incorporados ao programa10

No mecircs de julho daquele mesmo ano um acordo de cooperaccedilatildeo teacutecnica seriaassinado entre o Ministeacuterio da Sauacutede e a SBU com o objetivo de promover aassistecircncia ao homem no sistema puacuteblico de sauacutede e reduzir as taxas de mortalidademasculina A ideia era natildeo apenas treinar os meacutedicos do sistema puacuteblico de sauacutedea diagnosticar doenccedilas uroloacutegicas mas tambeacutem auxiliar na promoccedilatildeo de campanhasdirigidas ao puacuteblico leigo visando agrave prevenccedilatildeo dessas doenccedilas atraveacutes do incentivo| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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agrave busca dos serviccedilos de sauacutede A primeira dessas campanhas foi a CampanhaNacional de Esclarecimento da Sauacutede do Homem que a SBU promoveu comapoio do Ministeacuterio entre julho e setembro de 2008 O tema escolhido para acampanha foi a disfunccedilatildeo ereacutetil (DE) Segundo informaccedilotildees obtidas no site daSBU essa escolha foi feita por trecircs razotildees Em primeiro lugar cerca de 50 doshomens adultos acima de 40 anos teria ldquoalgum tipo de queixa relacionada agrave funccedilatildeoereacutetilrdquo Ao mesmo tempo menos de 10 dos homens que sofrem de ldquoalgumgrau de disfunccedilatildeo ereacutetilrdquo procurariam assistecircncia meacutedica por vergonha ou medodo diagnoacutestico Aleacutem disso a DE estaria frequentemente associada a outrasdoenccedilas (como a diabete ou problemas cardiovasculares) ou poderia ser causadapor outras doenccedilas uroloacutegicas (como o decliacutenio do hormocircnio masculino emidosos ou o tratamento do cacircncer de proacutestata) Para justificar a necessidade deuma campanha de esclarecimento do puacuteblico em geral a SBU citou dados doMinisteacuterio da Sauacutede segundo os quais em 2007 167 milhotildees de mulheresconsultaram-se com um ginecologista ao passo que apenas 27 milhotildees de homensse consultaram com um urologistaNo dia 28 de julho de 2008 a campanha nacional da SBU foi lanccedilada emBrasiacutelia num jantar que reuniu 130 convidados entre os quais vaacuterias autoridadesdo Ministeacuterio da Sauacutede incluindo o coordenador da Aacuterea Teacutecnica da Sauacutede doHomem Na ocasiatildeo foi apresentado um comercial de 30 segundos focalizandoa disfunccedilatildeo ereacutetil a ser transmitido por TV aberta durante os meses de agosto esetembro e um folheto de divulgaccedilatildeo Por apresentar aspectos cruciais dointrincado processo de medicalizaccedilatildeo do corpo masculino esse materialpublicitaacuterio merece aqui uma anaacutelise mais detidaO folheto mostra um casal com idade entre 35 e 45 anos (ela mais jovem queele) ambos brancos bem vestidos magros felizes e exibindo alianccedila na matildeoesquerda prestes a se beijar Ao fundo um pocircr-do-sol sobre um mar dourado

compotildee um cenaacuterio paradisiacuteaco Na parte de baixo em letras grandes lemos ldquoosbons momentos de voltardquo mais acima agrave direita em letras menores ldquocerca de 40dos homens apresentam algum grau de dificuldade de ereccedilatildeo Trazer os bonsmomentos de volta soacute depende de vocecircrdquo Abaixo da imagem um texto em corpoainda menor adverteA dificuldade de ereccedilatildeo atinge milhotildees de homens no Brasil Os tratamentos hojeem dia satildeo muito eficazes Uma vida sexual insatisfatoacuteria pode estar relacionadaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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a diversos fatores como diabetes e hipertensatildeo Fale com seu urologista e tragaos bons momentos de volta11

Eacute importante perceber os deslizamentos entre diferentes expressotildees no decorrerda campanha A campanha da SBU eacute centrada na disfunccedilatildeo ereacutetil Os argumentosapresentados pela sociedade falam que 40 dos homens acima de 40 anosapresentam alguma queixa relacionada agrave funccedilatildeo ereacutetil No folheto o termo usadoeacute dificuldade de ereccedilatildeo que eacute remetida a uma vida sexual insatisfatoacuteria Do mesmomodo a faixa etaacuteria citada no website da SBU (homens acima dos 40) eacute suprimidaPassamos entatildeo de ldquoalgum tipo de queixa relacionada a funccedilatildeo ereacutetilrdquo paradificuldade de ereccedilatildeo ambas expressotildees subsumidas pela categoria disfunccedilatildeo ereacutetilque eacute como indicado pela proacutepria SBU o verdadeiro foco da campanha Essedeslizamento em nenhum momento eacute objeto de explicaccedilatildeo ou discussatildeo sejanos documentos da SBU seja naqueles produzidos pela Aacuterea Teacutecnica da Sauacutededo Homem Outra caracteriacutestica interessante do folheto eacute seu duplo apelo Eacutefaacutecil perceber que as expressotildees dificuldade de ereccedilatildeo ou vida sexual insatisfatoacuterianatildeo necessariamente se enquadram na categoria doenccedila O texto chama atenccedilatildeopara ldquoos bons momentosrdquo (em primeiro plano e em letras grandes) apresentandouma imagem extremamente positiva - o lindo e (quase) jovem casal abraccedilado -que natildeo se associa agrave ideia de doenccedila mas de felicidade e sauacutede Eacute possiacutevelportanto para aquele que vecirc o anuacutencio entender que a dificuldade de ereccedilatildeo natildeoeacute de fato uma doenccedila O anuacutencio entretanto visa a levar os homens ao meacutedico

Por que ir ao meacutedico se natildeo se estaacute doente As frases em letra menor na parteinferior direita da imagem ao mesmo tempo em que contecircm uma ameaccedila (ldquoumavida sexual insatisfatoacuteria pode estar relacionada a diversos fatores como diabetese hipertensatildeordquo) oferecem uma espeacutecie de desculpa para os homens queinsatisfeitos com sua performance tecircm vergonha de procurar um meacutedico Ouseja poderatildeo buscar um urologista devido agrave sua preocupaccedilatildeo com um problemapropriamente meacutedico e natildeo sexualEacute tambeacutem significativo que dentre os vaacuterios perigos letais que rondariam os homensa disfunccedilatildeo ereacutetil tenha sido escolhida para tema de uma campanha cujo tiacutetulo prometeum geneacuterico ldquoesclarecimento da sauacutede do homemrdquo Um dos grandes obstaacuteculos agravepromoccedilatildeo da sauacutede dos homens conforme repetido inuacutemeras vezes ao longo do processode construccedilatildeo da nova poliacutetica eacute justamente a centralidade da ideia de invulnerabilidadeou seja da ideia de potecircncia na construccedilatildeo da masculinidade hegemocircnica Por essa| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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razatildeo os homens seriam como declara o presidente da Associaccedilatildeo Meacutedica de Brasiacuteliano lanccedilamento da campanha ldquorelapsosrdquo com sua sauacutede procurando menosfrequentemente os meacutedicos que as mulheres Mas ao centrar a felicidade dos homensna potecircncia sexual vista como capacidade de obter uma ereccedilatildeo a campanha acabareforccedilando a centralidade dos valores que supostamente pretende combaterParadoxalmente ao prometer devolver-lhes a potecircncia perdida os urologistas natildeo deixamde procurar atrair os homens aos cuidados de sauacutede justamente a partir da configuraccedilatildeode valores que os afastaria de tais cuidados e que como eacute o caso da virilidade compotildeemos fundamentos mesmos da masculinidade hegemocircnica12

Na luta pela implantaccedilatildeo da nova poliacutetica que a SBU manteacutem ao longo do anode 2008 outro momento importante eacute a audiecircncia puacuteblica convocada pela Cacircmarados Deputados no acircmbito do IV Foacuterum Poliacuteticas Puacuteblicas de Sauacutede do Homemrealizado em agosto13 Nela o Ministeacuterio da Sauacutede apresenta seu projeto para a

aacuterea Quase simultaneamente o Ministeacuterio divulgaria o documento ldquoPoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homemrdquo (PNAISH) Iniciava assimuma discussatildeo que envolveria diferentes atores (setores do governo conselhos desauacutede associaccedilotildees meacutedicas pesquisadores profissionais de sauacutede e representantesda sociedade civil) e se estenderia ateacute maio do ano seguinte quando a versatildeo finaldo documento eacute oficialmente divulgada Ao lado da urologia entre as associaccedilotildeesmeacutedicas participam sobretudo aquelas relacionadas aos problemas maiscomumente identificados como ldquomasculinosrdquo (cardiologia sauacutede mentalgastroenterologia e pneumologia)Aleacutem de influir decisivamente no conteuacutedo do novo programa a SBU trabalhatambeacutem no sentido de garantir sua sustentaccedilatildeo poliacutetica Em maio de 2009 porexemplo distribui folhetos no XXV Congresso Nacional de Secretarias Municipaisde Sauacutede visando a ldquosolicitar apoio para poliacuteticas puacuteblicas voltadas para o sexomasculinordquo Segundo noticia-se no website da sociedade ldquoo objetivo eacute sensibilizaros gestores municipais a adotarem poliacuteticas que visem a uma assistecircncia uroloacutegicamais efetiva nos hospitais puacuteblicos Aleacutem disso a SBU quer conscientizaacute-los sobrea Poliacutetica Nacional de Sauacutede do Homem do Ministeacuterio da Sauacutede e agregaacute-los naluta para que tal programa entre em vigor o quanto antesrdquo No folheto distribuiacutedocompara-se a situaccedilatildeo de mulheres apresentadas como sujeitos que reivindicamseus direitos e de homens apresentados em linguagem um tanto confusa comosujeitos passivos cuja sauacutede tem sido negligenciadaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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A mulher brasileira tem conquistado avanccedilos em nossa sociedade ganhandodignidade disputando com isonomia diferentes funccedilotildees que as igualam agraves condiccedilotildeesdos homens Com isso as autoridades governamentais tem [sic] desenvolvidoimportantes accedilotildees de poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede da mulher no acircmbito do SUSOs homens por sua vez continuam deixando de ser contemplados por essas accedilotildeesgovernamentais evoluindo para o distanciamento das soluccedilotildees de seus principaisagravos na aacuterea da sauacutede gerando informaccedilotildees desencontradas e sem base cientiacuteficao que sobremaneira resulta em grande prejuiacutezo social (grifo nosso)14

A nova poliacutetica de sauacutede seria finalmente lanccedilada em agosto de 2009 no bojode uma seacuterie de atividades relativas agrave campanha pela sauacutede do homem Em 10 de

agosto um dia apoacutes o Dia dos Pais o Presidente Lula trata da sauacutede do homemem seu programa de raacutedio ldquoCafeacute com o Presidenterdquo e anuncia que o MS lanccedilaraacuteem breve a Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem O Presidentediz entatildeo que no que concerne agrave sauacutede os homens mereceriam ldquoum puxatildeo deorelhardquo por terem ldquomedo de agulhardquo indo pouco ao meacutedico e soacute iniciandotratamento depois do agravamento do quadro Em sua intervenccedilatildeo tambeacutemcompara homens e mulheres apontando a ldquoculturardquo como raiz do problemaTodos noacutes homens temos essa bobagem na cabeccedila que eacute o medo de fazer o examede proacutestata e isso tem sido a causa da morte de muitos homens por causa docacircncer de proacutestata Soacute para vocecirc ter uma ideia segundo estimativa do SUS paracada oito consultas ginecoloacutegicas feitas em 2007 soacute teve uma uroloacutegica Enquantoquase 17 milhotildees de mulheres foram ao ginecologista em 2007 apenas 26 milhotildeesde homens procuraram um urologista Veja todo homem depois de uma certaidade tem que procurar o urologista A verdade eacute que ainda tem muitos que tecircmmedo de procurar o urologista e fazer exame de toque por conta da proacutestata Essaatitude estaacute muito ligada agrave nossa cultura Mas isso estaacute na hora de mudar issonatildeo combina com a vida moderna Temos que acompanhar as mudanccedilas nomundo e encarar nossas fragilidades Precisamos ter haacutebitos saudaacuteveis fazer examede prevenccedilatildeo e rotina (grifo nosso)15

Por beberem mais fumarem mais e serem mais sedentaacuterios que as mulheres oshomens teriam uma menor expectativa de vida Segundo o Presidente em largamedida dependeria deles a transformaccedilatildeo desse quadro Nesse sentido termina aentrevista com um apelo ldquoEntatildeo o meu apelo para os homens no Dia dos Pais eacuteque a partir de agora vamos nos cuidar porque noacutes precisamos viver mais e vivermelhor Afinal de contas a nossa famiacutelia depende muito de noacutesrdquo16| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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Ainda em agosto realiza-se na Cacircmara dos Deputados o V Foacuterum de PoliacuteticasPuacuteblicas e Sauacutede do Homem cujo objetivo seria segundo o presidente da SBUldquomanter a lembranccedila e pressatildeo junto aos oacutergatildeos governamentais e parlamentaressobre a importacircncia da poliacutetica nacional de sauacutede do homem que resgata umalacuna e inclui o gecircnero masculino ainda secundarizado nas poliacuteticas puacuteblicasrdquo17

Durante o Foacuterum o presidente da SBU recebe a notiacutecia do lanccedilamento oficial dapoliacutetica Ao comemorar revela o papel central desempenhado pelos urologistasFinalizamos um importante ciclo no sentido de sensibilizar as autoridades atraveacutes

de simpoacutesios e Foacuteruns quanto agrave importacircncia da inclusatildeo de projetos especiacuteficosvoltados para o gecircnero masculino Estamos felizes com o lanccedilamento desta poliacuteticapelo Governo Federal Dentre todas as especialidades eacute inegaacutevel que a Urologiaguarda uma estreita poreacutem natildeo exclusiva relaccedilatildeo com o homem Iniciaremos umoutro ciclo que eacute o plano de accedilatildeo desta poliacutetica nos estados e municiacutepios e aimportacircncia que os gestores daratildeo a estas accedilotildees O homem brasileiro agradece(grifo nosso)18

Finalmente em 28 de agosto de 2009 no auditoacuterio da Organizaccedilatildeo Pan-Americana de Sauacutede em Brasiacutelia o Ministeacuterio da Sauacutede lanccedila oficialmente a PoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem Em seu discurso o ministroressaltaria a importacircncia da Sociedade Brasileira de Urologia na construccedilatildeo danova poliacutetica que conforme declara o presidente da SBU ldquovaloriza o homembrasileiro fortalece a atividade uroloacutegica e o urologista no Sistema Uacutenico de Sauacutederdquo19

Salvar os homens de si mesmos o documento ldquoPoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes)rdquoComo dito acima em agosto de 2008 o Departamento de Accedilotildees Programaacuteticas eEstrateacutegicas ao qual se subordina a Aacuterea Teacutecnica de Sauacutede do Homem lanccedilou aprimeira versatildeo do documento ldquoPoliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede doHomem (princiacutepios e diretrizes)rdquo20 O documento eacute apresentado como fruto deuma parceria entre gestores do SUS sociedades cientiacuteficas sociedade civilorganizada pesquisadores acadecircmicos e agecircncias de cooperaccedilatildeo internacional Aindana apresentaccedilatildeo lemos que a sauacutede do homem eacute uma das prioridades do governoe que a poliacutetica a ser implementada traduziria ldquoum longo anseio da sociedade aoA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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reconhecer que os agravos do sexo masculino constituem verdadeiros problemasde sauacutede puacuteblicardquo (PNAISH 2008 p 3)Segundo o documento estudos comparativos tecircm demonstrado que os homenssatildeo mais vulneraacuteveis a doenccedilas do que as mulheres especialmente agraves enfermidadescrocircnicas e graves e que morrem mais cedo Apesar deste fato jaacute bem documentadoos homens natildeo satildeo captados pelos serviccedilos de atenccedilatildeo primaacuteria (como ocorre com

as mulheres) Sua entrada no sistema de sauacutede se daria principalmente pela atenccedilatildeoambulatorial e hospitalar de meacutedia e alta complexidades configurando um perfilque favorece o agravo da morbidade pela busca tardia ao atendimentoPara explicar a ldquoresistecircncia masculina agrave atenccedilatildeo primaacuteriardquo o texto lanccedila matildeo depesquisas qualitativas21 que apontam diversas razotildees para o fenocircmeno agrupadasem dois tipos de determinantes ldquobarreiras institucionaisrdquo e ldquobarreirassocioculturaisrdquo As ldquobarreiras institucionaisrdquo dizem respeito agrave dificuldade de acessoaos serviccedilos assistenciais e satildeo tratadas de forma bastante breve O documentoenfatiza as chamadas ldquovariaacuteveis culturaisrdquoestereoacutetipos de gecircnero enraizados haacute seacuteculos na cultura patriarcal produzempraacuteticas baseadas em crenccedilas e valores do que eacute ser masculino A doenccedila eacuteconsiderada um sinal de fragilidade que os homens natildeo reconhecem como inerentesagrave sua proacutepria condiccedilatildeo bioloacutegica O homem se julga invulneraacutevel o que acaba porcontribuir para que ele cuide menos de si mesmo e se exponha mais agraves situaccedilotildeesde risco (PNAISH 2008 p 6)Mais abaixo lecirc-seAinda que o conceito de masculinidade venha sendo atualmente contestado e tenhaperdido seu rigor original na dinacircmica do processo cultural [] a concepccedilatildeo aindaprevalente e hegemocircnica de masculinidade eacute o eixo estruturante pela natildeo-procuraaos serviccedilos de sauacutede (Idem)Uma vez explicitadas o que satildeo as ldquovariaacuteveis culturaisrdquo o documento afirma queo grande desafio de uma poliacutetica voltada para os homens eacute mobilizar a ldquopopulaccedilatildeomasculina brasileira para a luta pela garantia de seu direito social agrave sauacutederdquo Paratanto a poliacutetica em questatildeo pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para oreconhecimento e a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para queadvenham sujeitos protagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio egozo dos direitos de cidadaniardquo (PNAISH 2008 p 7)| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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No item ldquoMetodologia de construccedilatildeo da poliacuteticardquo o texto afirma que a ideiacentral do documento foi desenvolvida de modo articulado com a Poliacutetica Nacionalde Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher ldquorecuperando experiecircncias e conhecimentosproduzidos naquela aacuterea promovendo accedilotildees futuras em consonacircncia tanto emprinciacutepios como em praacuteticasrdquo (PNAISH 2008 p 9) Esta articulaccedilatildeo com a poliacuteticavoltada para as mulheres seraacute objeto de discussatildeo mais adianteO item do documento intitulado ldquoDiagnoacutesticordquo eacute bastante extenso e como o

nome indica procura oferecer um quadro amplo acerca dos agravos agrave sauacutedemasculina22 percorrendo temas como violecircncia alcoolismo e tabagismo indicadoresde mortalidade e de morbidade Aleacutem dessas temaacuteticas nas quais reconhecemos alinguagem mais tradicional da epidemiologia e da sauacutede puacuteblica encontramosoutros temas que embora possam ser vistos como parte do campo da sauacutede nosentido lato extrapolam seus limites uma vez que tecircm ressonacircncias mais claramentepoliacuteticas eou juriacutedicas ldquoadolescecircncia e velhicerdquo e ldquodireitos sexuais e reprodutivosrdquoLogo na introduccedilatildeo desse item lemos queOs temas mais recorrentes no estudo sobre a sauacutede do homem podem se estruturarem torno de trecircs eixos violecircncia tendecircncia agrave exposiccedilatildeo a riscos com consequecircncianos indicadores de morbi-mortalidade e sauacutede sexual e reprodutiva (PNAISH2008 p 11)Como veremos adiante dentre esses trecircs eixos o terceiro - sauacutede sexual ereprodutiva - seraacute enfatizado em detrimento dos demais embora na apresentaccedilatildeodos diversos subitens de que trata o item ldquoDiagnoacutesticordquo os dois primeiros eixossejam mais extensamente tratados com a apresentaccedilatildeo de um conjunto expressivode dados e argumentos O subitem ldquoDireitos sexuais e reprodutivosrdquo ao contraacuteriodos demais natildeo traz dados sobre agravos ou ameaccedilas agrave sauacutede sexual e reprodutivamas expotildee uma espeacutecie de agenda poliacutetica afirmando a necessidade da implementaccedilatildeodos direitos sexuais e reprodutivos dos homens A linguagem dos direitos se impotildeee a categoria ldquosauacutederdquo natildeo eacute mencionada O documento afirma por exemplo que eacutenecessaacuterio ldquosuperar a restriccedilatildeo da responsabilidade sobre as praacuteticas contraceptivas agravesmulheresrdquo de modo a assegurar aos homens ldquoo direito agrave participaccedilatildeo no planejamentoreprodutivordquo a paternidade devendo ser vista como ldquoum direito do homem a participarde todo o processo desde a decisatildeo de ter ou natildeo filhos como e quando tecirc-los bemcomo do acompanhamento da gravidez do parto do poacutes-parto e da educaccedilatildeo dacrianccedilardquo (PNAISH 2008 p 20) Eacute curiosa essa formulaccedilatildeo uma vez que a demandaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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pela participaccedilatildeo masculina nas decisotildees reprodutivas eacute uma bandeira do movimento

feminista Normalmente tal participaccedilatildeo aparece como exigecircncia das mulherescomo um dever do qual o homem tende a escapar No documento o que antes eraconsiderado um dever se transforma em direitoA insistecircncia na temaacutetica da sauacutede sexual e reprodutiva atravessa o documentoe surge com forccedila no item ldquoObjetivosrdquo Satildeo trecircs os objetivos especiacuteficos listados(1) Organizar implantar qualificar e humanizar em todo territoacuterio brasileiro aatenccedilatildeo integral a sauacutede do homem dentro dos princiacutepios que regem o SistemaUacutenico de Sauacutede(2) Estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeo da assistecircncia em sauacutede sexual ereprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede(3) Ampliar atraveacutes da educaccedilatildeo o acesso dos homens agraves informaccedilotildees sobre asmedidas preventivas contra os agravos e enfermidades que atingem a populaccedilatildeomasculina destacando seus direitos sexuais e reprodutivos (PNAISH 2008 p 39grifos nossos)O segundo dos objetivos especiacuteficos - estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeoda assistecircncia em sauacutede sexual e reprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede -tem uma extensa lista de subitens Dentre estes aleacutem de metas mais tradicionaisrelativas ao planejamento reprodutivo masculino contracepccedilatildeo ciruacutergica voluntaacuteriae prevenccedilatildeo de DSTAids encontramos os seguintes objetivos- estimular implantar implementar e qualificar pessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildeessexuais masculinas- promover a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem nas populaccedilotildees indiacutegenas negrasquilombolas gays bissexuais travestis transexuais trabalhadores rurais homenscom deficiecircncia em situaccedilatildeo de risco em situaccedilatildeo carceraacuteria desenvolvendoestrateacutegias voltadas para a promoccedilatildeo da equidade para distintos grupos sociais- associar as accedilotildees governamentais com as da sociedade civil organizada paraefetivar a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem com protagonismo social na enunciaccedilatildeodas reais condiccedilotildees de sauacutede da populaccedilatildeo heterogecircnea de homens (PNAISH2008 p 39)Destacamos aqui dois pontos que comentaremos mais adiante nas conclusotildeesO primeiro diz respeito agrave associaccedilatildeo entre o discurso da SBU (presente na ideia deldquoatenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) e o dos movimentos da ldquosociedade civilorganizadardquo O segundo refere-se ao fato de que a ecircnfase colocada sobre sauacutedesexual e direitos sexuais e reprodutivos natildeo aparece do mesmo modo quando se| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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trata de outros temas como a violecircncia reconhecidamente uma das mais relevantescausas de morbidade e mortalidade entre homens adultos jovens23

Assim emboradiscuta e exponha extensamente os fatores considerados pela sauacutede puacuteblica como

mais relevantes agrave sauacutede masculina o documento dirige seu foco para as novastemaacuteticas da sauacutede sexual e dos direitos sexuais e reprodutivos Ateacute entatildeo pelomenos no que diz respeito a estes uacuteltimos tais temaacuteticas pareciam mais ligadas aosdiscursos feministas em torno da sauacutede da mulherAlgumas conclusotildees possiacuteveisO documento de algum modo afirma o caraacuteter ldquoinsalubrerdquo de certa masculinidadesendo os homens apresentados como viacutetimas de sua proacutepria masculinidade ouseja das crenccedilas e valores que constituiriam as ldquobarreiras socioculturaisrdquo que seantepotildeem agrave medicalizaccedilatildeo O objetivo principal do programa eacute enfraquecer aresistecircncia masculina agrave medicina de uma forma geral ou seja medicalizar oshomens24 Para tanto uma accedilatildeo educativa bem feita ldquomodernizariardquo os homensbrasileiros dissipando o pensamento maacutegico que os (des)orienta e que os tornapresas de seu proacuteprios preconceitosEntretanto a questatildeo nos parece bastante mais complexa do que imaginam osdefensores da nova poliacutetica pois essa situaccedilatildeo paradoxal dos homens em relaccedilatildeo asua proacutepria sauacutede e ao seu corpo - sua cultura somaacutetica como diria Luc Boltanski(1979) - deriva em larga medida da posiccedilatildeo que (ainda) ocupam na hierarquia degecircnero A questatildeo natildeo eacute de ldquoculturardquo portanto mas do modo como a cultura estaacuteimbricada ou implicada em relaccedilotildees de poder bem concretas que o discursovitimaacuterio e paternalista incorporado agrave nova poliacutetica contribui mais para ocultar doque revelar Para os homens articular reivindicaccedilotildees a partir de uma posiccedilatildeogenerificada e tornar-se visiacuteveis enquanto ldquohomensrdquo significa colocar-se no mesmoplano que as mulheres Perderiam assim a posiccedilatildeo de representantes universais daespeacutecie e arriscariam a perder tambeacutem suas prerrogativas na hierarquia de gecircneroTalvez seja por isso mesmo que eles natildeo o fazem natildeo havendo (ainda) organizaccedilotildeesldquomasculinistasrdquo como existem organizaccedilotildees ldquofeministasrdquoDesse modo a condiccedilatildeo para que ocorra a mudanccedila cultural necessaacuteria para

fazer com que os homens (heterossexuais) tenham uma relaccedilatildeo tatildeo reflexiva comseus proacuteprios corpos quanto seus vaacuterios ldquooutrosrdquo (mulheres homossexuais travestis)eacute que tais ldquooutrosrdquo tenham o mesmo poder e prestiacutegio que eles Tudo se passaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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como se os homens precisassem se tornar socialmente vulneraacuteveis para poderperceber sua vulnerabilidade bioloacutegica e para ver algum sentido na luta porultrapassaacute-la Dito de outro modo mostrar-se invulneraacutevel faz parte do exerciacuteciodo poder pelos homens e o poder tem um ldquopreccedilordquo (uma vida mais curta ou menossaudaacutevel) que parece os homens ainda estatildeo dispostos a pagar Diferentementedas mulheres que organizadas num amplo movimento procuraram atraveacutes depoliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas sair da posiccedilatildeo de subordinaccedilatildeo a que historicamenteestavam relegadas os homens soacute podem aparecer entatildeo como sujeitos passivosfrente agrave interpelaccedilatildeo que lhes dirigem a medicina e o Estado Acabam assimsendo retoricamente representados pelos meacutedicos sobretudo urologistas e pelosformuladores e executores de uma poliacutetica que supostamente se implanta em nomedeles mas sem sua participaccedilatildeoQuanto agrave ecircnfase dada aos direitos sexuais e reprodutivos parece-nos que taistemas tecircm uma dupla entrada no programa - atraveacutes da urologia (ou medicinasexual) e da incorporaccedilatildeo da retoacuterica de movimentos poliacuteticos organizados ASBU aparece como ator fundamental na formulaccedilatildeo da poliacutetica Como vimos oacordo de cooperaccedilatildeo teacutecnica assinado com o Ministeacuterio da Sauacutede teve como umde seus principais desdobramentos a campanha centrada na disfunccedilatildeo ereacutetil(lanccedilada antes mesmo da publicaccedilatildeo do documento) Eacute o tipo de pressatildeo quevem dos especialistas neste caso com um objetivo muito claro transformar adisfunccedilatildeo ereacutetil num problema de sauacutede puacuteblica o que eacute facilitado por doisfatores a declaraccedilatildeo do entatildeo Secretaacuterio Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede Joseacute Gomes

Temporatildeo em 200625 e a nomeaccedilatildeo de Ricardo Cavalcanti para a Coordenaccedilatildeoda Aacuterea Teacutecnica da Sauacutede do Homem Cavalcanti eacute um dos pais fundadores damoderna sexologia brasileira e embora sendo ginecologista de formaccedilatildeocertamente facilitou o diaacutelogo entre o governo e a SBU Neste caso a afirmaccedilatildeodos direitos sexuais passa pela sexologia e pela medicina sexualA leitura do documento nos leva agrave conclusatildeo de que a poliacutetica de aproximaccedilatildeocom o Ministeacuterio da Sauacutede e os formuladores de poliacuteticas puacuteblicas empreendidapela SBU foi bem-sucedida jaacute que a preocupaccedilatildeo com a sauacutede sexual (explicitadapor exemplo no objetivo de ldquoestimular implantar implementar e qualificarpessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) ultrapassa em grau deimportacircncia pelo menos no documento outros problemas possiacuteveis dentre osquais poderiacuteamos citar aleacutem da violecircncia os relacionados agrave sauacutede mental Por| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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outro lado a linguagem dos especialistas convive com uma outra tiacutepica doschamados movimentos sociais (lembremos que o documento afirma como umdos objetivos do programa ldquoincluir o enfoque de gecircnero orientaccedilatildeo sexualidentidade de gecircnero e condiccedilatildeo eacutetnico-racial nas accedilotildees educativasrdquo) produzindoum discurso hiacutebrido em que caminhos diversos parecem levar a um mesmoobjetivo final - a medicalizaccedilatildeo do corpo masculinoDe fato a presenccedila no documento do discurso dos movimentos sociaisnormalmente voltados para poliacuteticas identitaacuterias nos parece bastante forte Voltamosaqui a um trecho na introduccedilatildeo do documento segundo o qual o programa desauacutede do homem pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para o reconhecimentoe a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para que advenham sujeitosprotagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio e gozo dos direitos decidadaniardquo Isto eacute os homens devem paradoxalmente ser transformados em ldquosujeitosprotagonistas de suas demandasrdquo Atraveacutes do movimento organizado atransformaccedilatildeo das mulheres em ldquoprotagonistas de suas demandasrdquo envolveu seu

relativo ldquoempoderamentordquo No caso dos homens o ldquoprotagonismordquo implicajustamente o contraacuterio isto eacute assumir sua fragilidade e vulnerabilidade aprendendoa enunciar suas demandas Utiliza-se assim a mesma linguagem e os mesmosargumentos comumente presentes no discurso dos movimentos organizados paraefeitos aparentemente opostosNo acircmbito do documento uma das formas encontradas para lidar com esseaparente paradoxo que consiste em formular uma poliacutetica puacuteblica como se elafosse reivindicada pelos sujeitos por ela visados eacute desmembrar a categoria ldquohomemrdquoem uma seacuterie de subcategorias - iacutendios negros gays travestis portadores dedeficiecircncias trabalhadores rurais etc - que por outras razotildees satildeo historicamentemarginalizadas Ao que parece as mulheres podem formar mais facilmente umacategoria unificada mas os homens natildeo Homem pura e simplesmente semqualquer adjetivo natildeo parece ser uma identidade que se precise assumir (contra aspressotildees da sociedade) ou que se deva fortalecer ou pela qual se precise lutar Porisso talvez a necessidade de despedaccedilaacute-la num sem-nuacutemero de categorias demodo a tornar visiacutevel sua vulnerabilidade A politizaccedilatildeo e sensibilizaccedilatildeo do homemportanto tem por objetivo tornaacute-lo consciente dessa vulnerabilidade Soacute entatildeo eacutepossiacutevel medicalizaacute-lo Neste caso consciecircncia poliacutetica ldquoprotagonismordquo emedicalizaccedilatildeo aparecem como indissociaacuteveisA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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ReferecircnciasBOLTANSKI L As classes sociais e o corpo Rio de Janeiro Graal 1979BOURDIEU P O campo cientiacutefico In ORTIZ R (Org) Pierre Bourdieu Sociologia Satildeo PauloAacutetica 1983______ La domination masculine Paris Seuil 1998BRASIL Ministeacuterio da Sauacutede Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes) Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIAS Port2008PT-09-CONSpdf Acesso em maio 2009CARRARA S Tributo a Vecircnus a luta contra a siacutefilis no Brasil da passagem do seacuteculo aos anos 1940Rio de Janeiro Fiocruz 1996

______ Une science deacuterisoire Lacuteandrologie au Bregravesil entre les deux guerres Vibrant ndash VirtualBrazilian Anthropology v 1 n frac12 jan-dez 2004COSTA A M Desenvolvimento e Implantaccedilatildeo do PAISM no Brasil In GIFFIN Karen COSTAS H (Org) Questotildees da sauacutede reprodutiva Rio de Janeiro Fiocruz 1999FOUCAULT M Vigiar e punir Petroacutepolis Vozes 1977GOMES R Sexualidade masculina e sauacutede do homem proposta para uma discussatildeo CiecircnciaSauacutede Coletiva Rio de Janeiro n 8 p 825-9 2003GOMES R NASCIMENTO E F ARAUacuteJO F C Por que os homens buscam menos os serviccedilosde sauacutede do que as mulheres As explicaccedilotildees de homens com baixa escolaridade e homens comensino superior Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 23 n 3 mar 2007GOMES R NASCIMENTO E F A produccedilatildeo do conhecimento da sauacutede puacuteblica sobre arelaccedilatildeo homem-sauacutede uma revisatildeo bibliograacutefica Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 22n 5 p 901-911 maio 2006MEDRADO B LYRA J AZEVEDO M GRANJA E e VIEIRA S Princiacutepios diretrizes erecomendaccedilotildees para uma atenccedilatildeo integral aos homens na sauacutede Recife Instituto PAPAI 2009OLIVEIRA P P de A construccedilatildeo social da masculinidade Belo Horizonte UFMG 2004PEREIRA A L Accedilotildees educativas em contracepccedilatildeo teoria e praacutetica dos profissionais de sauacutede Tese(Doutorado em Sauacutede Coletiva) - Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio dejaneiro Rio de Janeiro 2008ROHDEN F Uma ciecircncia da diferenccedila sexo e gecircnero na medicina da mulher Rio de JaneiroFiocruz 2001SCHRAIBER L B GOMES R COUTO M T Homens e sauacutede na pauta da sauacutede coletivaCiecircncia e Sauacutede Coletiva v 10 n 1 p 7-17 2005| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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STOCKLE V Is Sex to Gender as Race is to Ethnicity In DEL VALLE T (Ed) GenderedAnthropology London Routledge 1993

Notas Uma primeira versatildeo deste texto foi apresentada no simpoacutesio The Future of Sexual Health SexualHealth in Public Health Policies no XIX Congresso da World Association for Sexual Health Gotemburgojunho de 2009 tendo utilizado dados colhidos na pesquisa ldquoDiferenccedilas de gecircnero na recentemedicalizaccedilatildeo do envelhecimento e sexualidade a criaccedilatildeo das categorias menopausa andropausa edisfunccedilatildeo sexualrdquo coordenada por Fabiacuteola Rohden e apoiada pelo CNPq1 A partir das reflexotildees de Michel Foucault (1977) em torno do panopticismo pode-se afirmar quedeterminados regimes de visibilidade configuram certos sujeitos que de outro modo inexistiriam ouexistiriam de modo inteiramente diferente Natildeo se trata aqui de entrarmos na polecircmica entreconstrutivismo e essencialismo ou seja de decidir se alguns sujeitos estavam sempre laacute agrave espera deserem descoberto ou se satildeo criados pela proacutepria ldquoluzrdquo que os ilumina2 Com ldquoobjetificaccedilatildeordquo natildeo nos referimos aqui a um processo de negaccedilatildeo aos homens de seu estatuto de

pessoa humana mas ao processo de instituiccedilatildeo de certos temas problemas ou sujeitos como objetoslegiacutetimos de conhecimento em determinado campo cientiacutefico conforme formulado originalmente porPierre Bourdieu (1983)3 A partir dos anos 1990 esse processo vem sendo acompanhado pela progressiva transformaccedilatildeo doshomens e da masculinidade em objeto de conhecimento tambeacutem das ciecircncias sociais configurandonovas aacutereas de conhecimento como os chamados ldquomenrsquos studiesrdquo Para isso ver entre outros Oliveira(2004)4 Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIASPort2008PT-09-CONSpdf (acessoem maio 2009)5 Eacute importante destacar que Joseacute Gomes Temporatildeo em 2006 quando ainda era Secretaacuterio Nacionalde Atenccedilatildeo agrave Sauacutede no Ministeacuterio da Sauacutede tentou criar centros de atenccedilatildeo agrave sauacutede no setor privadopara melhorar a assistecircncia agrave sauacutede do homem Em declaraccedilatildeo publicada no jornal O Estado de SatildeoPaulo em janeiro de 2006 Temporatildeo afirmou que o Ministeacuterio da Sauacutede estava analisando a possibilidadede oferecer tratamento para a disfunccedilatildeo ereacutetil atraveacutes da rede puacuteblica incluindo a distribuiccedilatildeo demedicamentos O governo estaria examinando o impacto financeiro de tal medida6 Ao que parece havia no acircmbito do MS desde 2006 uma Coordenaccedilatildeo de Sauacutede do Homem7 Nove meses depois foi substituiacutedo pelo Dr Baldur Schubert um assessor da sua equipe especialistaem seguridade social e sauacutede do trabalho8 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)9 Respectivamente Conselho Nacional de Secretaacuterios de Sauacutede e Conselho Nacional de SecretaacuteriosMunicipais de SauacutedeA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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10 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)11 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrpdf2008_saudehomempdf (acesso em maio 2009)12 Para a discussatildeo sobre a dominaccedilatildeo masculina ver Bourdieu (1998)13 Tais foacuteruns vecircm sendo organizados anualmente pela Comissatildeo de Seguridade Social e Famiacutelia daCacircmara dos Deputados em parceria com a SBU14 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrimagesfolder_noticiajpg (acesso em maio 2009)15 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)16 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)17 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)18 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)19 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)20 O documento passou por uma consulta puacuteblica e foi aprovado pelo Conselho Nacional de Sauacutede emjulho de 200921 O documento lanccedila matildeo de trabalhos importantes que no campo da sauacutede vecircm discutindo amasculinidade como Gomes (2003) Gomes e Nascimento (2006) Gomes et al (2007) Schraiber etal (2005)22 Lemos no documento que ldquoos indicadores apresentados visam a oferecer uma visatildeo ampliada doprocesso de adoecimento e de vulnerabilidade e agravos agrave sauacutede na populaccedilatildeo de homensrdquo (PNAISH2008 p 11)23 Esse aspecto foi tambeacutem destacado em reaccedilatildeo agraves diretrizes do Programa expressa em ldquodocumentomarcordquoproduzido por iniciativa de importantes organizaccedilotildees natildeo-governamentais brasileiras que haacute

muitos anos trabalham com o tema das masculinidades O texto aborda o Programa com base em umaleitura feminista de gecircnero Aleacutem de criticar a centralidade assumida pelas doenccedilas do aparelhogeniturinaacuterio na nova poliacutetica enfatiza-se tambeacutem a relativa desvalorizaccedilatildeo da promoccedilatildeo agrave sauacutede emfavor da oferta de serviccedilos de assistecircncia (MEDRADO et al 2009)24 Eacute interessante pensar como esse movimento vai de encontro agrave luta feminista contra a medicalizaccedilatildeodo corpo feminino25 Ver nota 2| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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agrave busca dos serviccedilos de sauacutede A primeira dessas campanhas foi a CampanhaNacional de Esclarecimento da Sauacutede do Homem que a SBU promoveu comapoio do Ministeacuterio entre julho e setembro de 2008 O tema escolhido para acampanha foi a disfunccedilatildeo ereacutetil (DE) Segundo informaccedilotildees obtidas no site daSBU essa escolha foi feita por trecircs razotildees Em primeiro lugar cerca de 50 doshomens adultos acima de 40 anos teria ldquoalgum tipo de queixa relacionada agrave funccedilatildeoereacutetilrdquo Ao mesmo tempo menos de 10 dos homens que sofrem de ldquoalgumgrau de disfunccedilatildeo ereacutetilrdquo procurariam assistecircncia meacutedica por vergonha ou medodo diagnoacutestico Aleacutem disso a DE estaria frequentemente associada a outrasdoenccedilas (como a diabete ou problemas cardiovasculares) ou poderia ser causadapor outras doenccedilas uroloacutegicas (como o decliacutenio do hormocircnio masculino emidosos ou o tratamento do cacircncer de proacutestata) Para justificar a necessidade deuma campanha de esclarecimento do puacuteblico em geral a SBU citou dados doMinisteacuterio da Sauacutede segundo os quais em 2007 167 milhotildees de mulheresconsultaram-se com um ginecologista ao passo que apenas 27 milhotildees de homensse consultaram com um urologistaNo dia 28 de julho de 2008 a campanha nacional da SBU foi lanccedilada emBrasiacutelia num jantar que reuniu 130 convidados entre os quais vaacuterias autoridadesdo Ministeacuterio da Sauacutede incluindo o coordenador da Aacuterea Teacutecnica da Sauacutede doHomem Na ocasiatildeo foi apresentado um comercial de 30 segundos focalizandoa disfunccedilatildeo ereacutetil a ser transmitido por TV aberta durante os meses de agosto esetembro e um folheto de divulgaccedilatildeo Por apresentar aspectos cruciais dointrincado processo de medicalizaccedilatildeo do corpo masculino esse materialpublicitaacuterio merece aqui uma anaacutelise mais detidaO folheto mostra um casal com idade entre 35 e 45 anos (ela mais jovem queele) ambos brancos bem vestidos magros felizes e exibindo alianccedila na matildeoesquerda prestes a se beijar Ao fundo um pocircr-do-sol sobre um mar dourado

compotildee um cenaacuterio paradisiacuteaco Na parte de baixo em letras grandes lemos ldquoosbons momentos de voltardquo mais acima agrave direita em letras menores ldquocerca de 40dos homens apresentam algum grau de dificuldade de ereccedilatildeo Trazer os bonsmomentos de volta soacute depende de vocecircrdquo Abaixo da imagem um texto em corpoainda menor adverteA dificuldade de ereccedilatildeo atinge milhotildees de homens no Brasil Os tratamentos hojeem dia satildeo muito eficazes Uma vida sexual insatisfatoacuteria pode estar relacionadaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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a diversos fatores como diabetes e hipertensatildeo Fale com seu urologista e tragaos bons momentos de volta11

Eacute importante perceber os deslizamentos entre diferentes expressotildees no decorrerda campanha A campanha da SBU eacute centrada na disfunccedilatildeo ereacutetil Os argumentosapresentados pela sociedade falam que 40 dos homens acima de 40 anosapresentam alguma queixa relacionada agrave funccedilatildeo ereacutetil No folheto o termo usadoeacute dificuldade de ereccedilatildeo que eacute remetida a uma vida sexual insatisfatoacuteria Do mesmomodo a faixa etaacuteria citada no website da SBU (homens acima dos 40) eacute suprimidaPassamos entatildeo de ldquoalgum tipo de queixa relacionada a funccedilatildeo ereacutetilrdquo paradificuldade de ereccedilatildeo ambas expressotildees subsumidas pela categoria disfunccedilatildeo ereacutetilque eacute como indicado pela proacutepria SBU o verdadeiro foco da campanha Essedeslizamento em nenhum momento eacute objeto de explicaccedilatildeo ou discussatildeo sejanos documentos da SBU seja naqueles produzidos pela Aacuterea Teacutecnica da Sauacutededo Homem Outra caracteriacutestica interessante do folheto eacute seu duplo apelo Eacutefaacutecil perceber que as expressotildees dificuldade de ereccedilatildeo ou vida sexual insatisfatoacuterianatildeo necessariamente se enquadram na categoria doenccedila O texto chama atenccedilatildeopara ldquoos bons momentosrdquo (em primeiro plano e em letras grandes) apresentandouma imagem extremamente positiva - o lindo e (quase) jovem casal abraccedilado -que natildeo se associa agrave ideia de doenccedila mas de felicidade e sauacutede Eacute possiacutevelportanto para aquele que vecirc o anuacutencio entender que a dificuldade de ereccedilatildeo natildeoeacute de fato uma doenccedila O anuacutencio entretanto visa a levar os homens ao meacutedico

Por que ir ao meacutedico se natildeo se estaacute doente As frases em letra menor na parteinferior direita da imagem ao mesmo tempo em que contecircm uma ameaccedila (ldquoumavida sexual insatisfatoacuteria pode estar relacionada a diversos fatores como diabetese hipertensatildeordquo) oferecem uma espeacutecie de desculpa para os homens queinsatisfeitos com sua performance tecircm vergonha de procurar um meacutedico Ouseja poderatildeo buscar um urologista devido agrave sua preocupaccedilatildeo com um problemapropriamente meacutedico e natildeo sexualEacute tambeacutem significativo que dentre os vaacuterios perigos letais que rondariam os homensa disfunccedilatildeo ereacutetil tenha sido escolhida para tema de uma campanha cujo tiacutetulo prometeum geneacuterico ldquoesclarecimento da sauacutede do homemrdquo Um dos grandes obstaacuteculos agravepromoccedilatildeo da sauacutede dos homens conforme repetido inuacutemeras vezes ao longo do processode construccedilatildeo da nova poliacutetica eacute justamente a centralidade da ideia de invulnerabilidadeou seja da ideia de potecircncia na construccedilatildeo da masculinidade hegemocircnica Por essa| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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razatildeo os homens seriam como declara o presidente da Associaccedilatildeo Meacutedica de Brasiacuteliano lanccedilamento da campanha ldquorelapsosrdquo com sua sauacutede procurando menosfrequentemente os meacutedicos que as mulheres Mas ao centrar a felicidade dos homensna potecircncia sexual vista como capacidade de obter uma ereccedilatildeo a campanha acabareforccedilando a centralidade dos valores que supostamente pretende combaterParadoxalmente ao prometer devolver-lhes a potecircncia perdida os urologistas natildeo deixamde procurar atrair os homens aos cuidados de sauacutede justamente a partir da configuraccedilatildeode valores que os afastaria de tais cuidados e que como eacute o caso da virilidade compotildeemos fundamentos mesmos da masculinidade hegemocircnica12

Na luta pela implantaccedilatildeo da nova poliacutetica que a SBU manteacutem ao longo do anode 2008 outro momento importante eacute a audiecircncia puacuteblica convocada pela Cacircmarados Deputados no acircmbito do IV Foacuterum Poliacuteticas Puacuteblicas de Sauacutede do Homemrealizado em agosto13 Nela o Ministeacuterio da Sauacutede apresenta seu projeto para a

aacuterea Quase simultaneamente o Ministeacuterio divulgaria o documento ldquoPoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homemrdquo (PNAISH) Iniciava assimuma discussatildeo que envolveria diferentes atores (setores do governo conselhos desauacutede associaccedilotildees meacutedicas pesquisadores profissionais de sauacutede e representantesda sociedade civil) e se estenderia ateacute maio do ano seguinte quando a versatildeo finaldo documento eacute oficialmente divulgada Ao lado da urologia entre as associaccedilotildeesmeacutedicas participam sobretudo aquelas relacionadas aos problemas maiscomumente identificados como ldquomasculinosrdquo (cardiologia sauacutede mentalgastroenterologia e pneumologia)Aleacutem de influir decisivamente no conteuacutedo do novo programa a SBU trabalhatambeacutem no sentido de garantir sua sustentaccedilatildeo poliacutetica Em maio de 2009 porexemplo distribui folhetos no XXV Congresso Nacional de Secretarias Municipaisde Sauacutede visando a ldquosolicitar apoio para poliacuteticas puacuteblicas voltadas para o sexomasculinordquo Segundo noticia-se no website da sociedade ldquoo objetivo eacute sensibilizaros gestores municipais a adotarem poliacuteticas que visem a uma assistecircncia uroloacutegicamais efetiva nos hospitais puacuteblicos Aleacutem disso a SBU quer conscientizaacute-los sobrea Poliacutetica Nacional de Sauacutede do Homem do Ministeacuterio da Sauacutede e agregaacute-los naluta para que tal programa entre em vigor o quanto antesrdquo No folheto distribuiacutedocompara-se a situaccedilatildeo de mulheres apresentadas como sujeitos que reivindicamseus direitos e de homens apresentados em linguagem um tanto confusa comosujeitos passivos cuja sauacutede tem sido negligenciadaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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A mulher brasileira tem conquistado avanccedilos em nossa sociedade ganhandodignidade disputando com isonomia diferentes funccedilotildees que as igualam agraves condiccedilotildeesdos homens Com isso as autoridades governamentais tem [sic] desenvolvidoimportantes accedilotildees de poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede da mulher no acircmbito do SUSOs homens por sua vez continuam deixando de ser contemplados por essas accedilotildeesgovernamentais evoluindo para o distanciamento das soluccedilotildees de seus principaisagravos na aacuterea da sauacutede gerando informaccedilotildees desencontradas e sem base cientiacuteficao que sobremaneira resulta em grande prejuiacutezo social (grifo nosso)14

A nova poliacutetica de sauacutede seria finalmente lanccedilada em agosto de 2009 no bojode uma seacuterie de atividades relativas agrave campanha pela sauacutede do homem Em 10 de

agosto um dia apoacutes o Dia dos Pais o Presidente Lula trata da sauacutede do homemem seu programa de raacutedio ldquoCafeacute com o Presidenterdquo e anuncia que o MS lanccedilaraacuteem breve a Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem O Presidentediz entatildeo que no que concerne agrave sauacutede os homens mereceriam ldquoum puxatildeo deorelhardquo por terem ldquomedo de agulhardquo indo pouco ao meacutedico e soacute iniciandotratamento depois do agravamento do quadro Em sua intervenccedilatildeo tambeacutemcompara homens e mulheres apontando a ldquoculturardquo como raiz do problemaTodos noacutes homens temos essa bobagem na cabeccedila que eacute o medo de fazer o examede proacutestata e isso tem sido a causa da morte de muitos homens por causa docacircncer de proacutestata Soacute para vocecirc ter uma ideia segundo estimativa do SUS paracada oito consultas ginecoloacutegicas feitas em 2007 soacute teve uma uroloacutegica Enquantoquase 17 milhotildees de mulheres foram ao ginecologista em 2007 apenas 26 milhotildeesde homens procuraram um urologista Veja todo homem depois de uma certaidade tem que procurar o urologista A verdade eacute que ainda tem muitos que tecircmmedo de procurar o urologista e fazer exame de toque por conta da proacutestata Essaatitude estaacute muito ligada agrave nossa cultura Mas isso estaacute na hora de mudar issonatildeo combina com a vida moderna Temos que acompanhar as mudanccedilas nomundo e encarar nossas fragilidades Precisamos ter haacutebitos saudaacuteveis fazer examede prevenccedilatildeo e rotina (grifo nosso)15

Por beberem mais fumarem mais e serem mais sedentaacuterios que as mulheres oshomens teriam uma menor expectativa de vida Segundo o Presidente em largamedida dependeria deles a transformaccedilatildeo desse quadro Nesse sentido termina aentrevista com um apelo ldquoEntatildeo o meu apelo para os homens no Dia dos Pais eacuteque a partir de agora vamos nos cuidar porque noacutes precisamos viver mais e vivermelhor Afinal de contas a nossa famiacutelia depende muito de noacutesrdquo16| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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Ainda em agosto realiza-se na Cacircmara dos Deputados o V Foacuterum de PoliacuteticasPuacuteblicas e Sauacutede do Homem cujo objetivo seria segundo o presidente da SBUldquomanter a lembranccedila e pressatildeo junto aos oacutergatildeos governamentais e parlamentaressobre a importacircncia da poliacutetica nacional de sauacutede do homem que resgata umalacuna e inclui o gecircnero masculino ainda secundarizado nas poliacuteticas puacuteblicasrdquo17

Durante o Foacuterum o presidente da SBU recebe a notiacutecia do lanccedilamento oficial dapoliacutetica Ao comemorar revela o papel central desempenhado pelos urologistasFinalizamos um importante ciclo no sentido de sensibilizar as autoridades atraveacutes

de simpoacutesios e Foacuteruns quanto agrave importacircncia da inclusatildeo de projetos especiacuteficosvoltados para o gecircnero masculino Estamos felizes com o lanccedilamento desta poliacuteticapelo Governo Federal Dentre todas as especialidades eacute inegaacutevel que a Urologiaguarda uma estreita poreacutem natildeo exclusiva relaccedilatildeo com o homem Iniciaremos umoutro ciclo que eacute o plano de accedilatildeo desta poliacutetica nos estados e municiacutepios e aimportacircncia que os gestores daratildeo a estas accedilotildees O homem brasileiro agradece(grifo nosso)18

Finalmente em 28 de agosto de 2009 no auditoacuterio da Organizaccedilatildeo Pan-Americana de Sauacutede em Brasiacutelia o Ministeacuterio da Sauacutede lanccedila oficialmente a PoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem Em seu discurso o ministroressaltaria a importacircncia da Sociedade Brasileira de Urologia na construccedilatildeo danova poliacutetica que conforme declara o presidente da SBU ldquovaloriza o homembrasileiro fortalece a atividade uroloacutegica e o urologista no Sistema Uacutenico de Sauacutederdquo19

Salvar os homens de si mesmos o documento ldquoPoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes)rdquoComo dito acima em agosto de 2008 o Departamento de Accedilotildees Programaacuteticas eEstrateacutegicas ao qual se subordina a Aacuterea Teacutecnica de Sauacutede do Homem lanccedilou aprimeira versatildeo do documento ldquoPoliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede doHomem (princiacutepios e diretrizes)rdquo20 O documento eacute apresentado como fruto deuma parceria entre gestores do SUS sociedades cientiacuteficas sociedade civilorganizada pesquisadores acadecircmicos e agecircncias de cooperaccedilatildeo internacional Aindana apresentaccedilatildeo lemos que a sauacutede do homem eacute uma das prioridades do governoe que a poliacutetica a ser implementada traduziria ldquoum longo anseio da sociedade aoA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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reconhecer que os agravos do sexo masculino constituem verdadeiros problemasde sauacutede puacuteblicardquo (PNAISH 2008 p 3)Segundo o documento estudos comparativos tecircm demonstrado que os homenssatildeo mais vulneraacuteveis a doenccedilas do que as mulheres especialmente agraves enfermidadescrocircnicas e graves e que morrem mais cedo Apesar deste fato jaacute bem documentadoos homens natildeo satildeo captados pelos serviccedilos de atenccedilatildeo primaacuteria (como ocorre com

as mulheres) Sua entrada no sistema de sauacutede se daria principalmente pela atenccedilatildeoambulatorial e hospitalar de meacutedia e alta complexidades configurando um perfilque favorece o agravo da morbidade pela busca tardia ao atendimentoPara explicar a ldquoresistecircncia masculina agrave atenccedilatildeo primaacuteriardquo o texto lanccedila matildeo depesquisas qualitativas21 que apontam diversas razotildees para o fenocircmeno agrupadasem dois tipos de determinantes ldquobarreiras institucionaisrdquo e ldquobarreirassocioculturaisrdquo As ldquobarreiras institucionaisrdquo dizem respeito agrave dificuldade de acessoaos serviccedilos assistenciais e satildeo tratadas de forma bastante breve O documentoenfatiza as chamadas ldquovariaacuteveis culturaisrdquoestereoacutetipos de gecircnero enraizados haacute seacuteculos na cultura patriarcal produzempraacuteticas baseadas em crenccedilas e valores do que eacute ser masculino A doenccedila eacuteconsiderada um sinal de fragilidade que os homens natildeo reconhecem como inerentesagrave sua proacutepria condiccedilatildeo bioloacutegica O homem se julga invulneraacutevel o que acaba porcontribuir para que ele cuide menos de si mesmo e se exponha mais agraves situaccedilotildeesde risco (PNAISH 2008 p 6)Mais abaixo lecirc-seAinda que o conceito de masculinidade venha sendo atualmente contestado e tenhaperdido seu rigor original na dinacircmica do processo cultural [] a concepccedilatildeo aindaprevalente e hegemocircnica de masculinidade eacute o eixo estruturante pela natildeo-procuraaos serviccedilos de sauacutede (Idem)Uma vez explicitadas o que satildeo as ldquovariaacuteveis culturaisrdquo o documento afirma queo grande desafio de uma poliacutetica voltada para os homens eacute mobilizar a ldquopopulaccedilatildeomasculina brasileira para a luta pela garantia de seu direito social agrave sauacutederdquo Paratanto a poliacutetica em questatildeo pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para oreconhecimento e a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para queadvenham sujeitos protagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio egozo dos direitos de cidadaniardquo (PNAISH 2008 p 7)| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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No item ldquoMetodologia de construccedilatildeo da poliacuteticardquo o texto afirma que a ideiacentral do documento foi desenvolvida de modo articulado com a Poliacutetica Nacionalde Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher ldquorecuperando experiecircncias e conhecimentosproduzidos naquela aacuterea promovendo accedilotildees futuras em consonacircncia tanto emprinciacutepios como em praacuteticasrdquo (PNAISH 2008 p 9) Esta articulaccedilatildeo com a poliacuteticavoltada para as mulheres seraacute objeto de discussatildeo mais adianteO item do documento intitulado ldquoDiagnoacutesticordquo eacute bastante extenso e como o

nome indica procura oferecer um quadro amplo acerca dos agravos agrave sauacutedemasculina22 percorrendo temas como violecircncia alcoolismo e tabagismo indicadoresde mortalidade e de morbidade Aleacutem dessas temaacuteticas nas quais reconhecemos alinguagem mais tradicional da epidemiologia e da sauacutede puacuteblica encontramosoutros temas que embora possam ser vistos como parte do campo da sauacutede nosentido lato extrapolam seus limites uma vez que tecircm ressonacircncias mais claramentepoliacuteticas eou juriacutedicas ldquoadolescecircncia e velhicerdquo e ldquodireitos sexuais e reprodutivosrdquoLogo na introduccedilatildeo desse item lemos queOs temas mais recorrentes no estudo sobre a sauacutede do homem podem se estruturarem torno de trecircs eixos violecircncia tendecircncia agrave exposiccedilatildeo a riscos com consequecircncianos indicadores de morbi-mortalidade e sauacutede sexual e reprodutiva (PNAISH2008 p 11)Como veremos adiante dentre esses trecircs eixos o terceiro - sauacutede sexual ereprodutiva - seraacute enfatizado em detrimento dos demais embora na apresentaccedilatildeodos diversos subitens de que trata o item ldquoDiagnoacutesticordquo os dois primeiros eixossejam mais extensamente tratados com a apresentaccedilatildeo de um conjunto expressivode dados e argumentos O subitem ldquoDireitos sexuais e reprodutivosrdquo ao contraacuteriodos demais natildeo traz dados sobre agravos ou ameaccedilas agrave sauacutede sexual e reprodutivamas expotildee uma espeacutecie de agenda poliacutetica afirmando a necessidade da implementaccedilatildeodos direitos sexuais e reprodutivos dos homens A linguagem dos direitos se impotildeee a categoria ldquosauacutederdquo natildeo eacute mencionada O documento afirma por exemplo que eacutenecessaacuterio ldquosuperar a restriccedilatildeo da responsabilidade sobre as praacuteticas contraceptivas agravesmulheresrdquo de modo a assegurar aos homens ldquoo direito agrave participaccedilatildeo no planejamentoreprodutivordquo a paternidade devendo ser vista como ldquoum direito do homem a participarde todo o processo desde a decisatildeo de ter ou natildeo filhos como e quando tecirc-los bemcomo do acompanhamento da gravidez do parto do poacutes-parto e da educaccedilatildeo dacrianccedilardquo (PNAISH 2008 p 20) Eacute curiosa essa formulaccedilatildeo uma vez que a demandaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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pela participaccedilatildeo masculina nas decisotildees reprodutivas eacute uma bandeira do movimento

feminista Normalmente tal participaccedilatildeo aparece como exigecircncia das mulherescomo um dever do qual o homem tende a escapar No documento o que antes eraconsiderado um dever se transforma em direitoA insistecircncia na temaacutetica da sauacutede sexual e reprodutiva atravessa o documentoe surge com forccedila no item ldquoObjetivosrdquo Satildeo trecircs os objetivos especiacuteficos listados(1) Organizar implantar qualificar e humanizar em todo territoacuterio brasileiro aatenccedilatildeo integral a sauacutede do homem dentro dos princiacutepios que regem o SistemaUacutenico de Sauacutede(2) Estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeo da assistecircncia em sauacutede sexual ereprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede(3) Ampliar atraveacutes da educaccedilatildeo o acesso dos homens agraves informaccedilotildees sobre asmedidas preventivas contra os agravos e enfermidades que atingem a populaccedilatildeomasculina destacando seus direitos sexuais e reprodutivos (PNAISH 2008 p 39grifos nossos)O segundo dos objetivos especiacuteficos - estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeoda assistecircncia em sauacutede sexual e reprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede -tem uma extensa lista de subitens Dentre estes aleacutem de metas mais tradicionaisrelativas ao planejamento reprodutivo masculino contracepccedilatildeo ciruacutergica voluntaacuteriae prevenccedilatildeo de DSTAids encontramos os seguintes objetivos- estimular implantar implementar e qualificar pessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildeessexuais masculinas- promover a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem nas populaccedilotildees indiacutegenas negrasquilombolas gays bissexuais travestis transexuais trabalhadores rurais homenscom deficiecircncia em situaccedilatildeo de risco em situaccedilatildeo carceraacuteria desenvolvendoestrateacutegias voltadas para a promoccedilatildeo da equidade para distintos grupos sociais- associar as accedilotildees governamentais com as da sociedade civil organizada paraefetivar a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem com protagonismo social na enunciaccedilatildeodas reais condiccedilotildees de sauacutede da populaccedilatildeo heterogecircnea de homens (PNAISH2008 p 39)Destacamos aqui dois pontos que comentaremos mais adiante nas conclusotildeesO primeiro diz respeito agrave associaccedilatildeo entre o discurso da SBU (presente na ideia deldquoatenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) e o dos movimentos da ldquosociedade civilorganizadardquo O segundo refere-se ao fato de que a ecircnfase colocada sobre sauacutedesexual e direitos sexuais e reprodutivos natildeo aparece do mesmo modo quando se| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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trata de outros temas como a violecircncia reconhecidamente uma das mais relevantescausas de morbidade e mortalidade entre homens adultos jovens23

Assim emboradiscuta e exponha extensamente os fatores considerados pela sauacutede puacuteblica como

mais relevantes agrave sauacutede masculina o documento dirige seu foco para as novastemaacuteticas da sauacutede sexual e dos direitos sexuais e reprodutivos Ateacute entatildeo pelomenos no que diz respeito a estes uacuteltimos tais temaacuteticas pareciam mais ligadas aosdiscursos feministas em torno da sauacutede da mulherAlgumas conclusotildees possiacuteveisO documento de algum modo afirma o caraacuteter ldquoinsalubrerdquo de certa masculinidadesendo os homens apresentados como viacutetimas de sua proacutepria masculinidade ouseja das crenccedilas e valores que constituiriam as ldquobarreiras socioculturaisrdquo que seantepotildeem agrave medicalizaccedilatildeo O objetivo principal do programa eacute enfraquecer aresistecircncia masculina agrave medicina de uma forma geral ou seja medicalizar oshomens24 Para tanto uma accedilatildeo educativa bem feita ldquomodernizariardquo os homensbrasileiros dissipando o pensamento maacutegico que os (des)orienta e que os tornapresas de seu proacuteprios preconceitosEntretanto a questatildeo nos parece bastante mais complexa do que imaginam osdefensores da nova poliacutetica pois essa situaccedilatildeo paradoxal dos homens em relaccedilatildeo asua proacutepria sauacutede e ao seu corpo - sua cultura somaacutetica como diria Luc Boltanski(1979) - deriva em larga medida da posiccedilatildeo que (ainda) ocupam na hierarquia degecircnero A questatildeo natildeo eacute de ldquoculturardquo portanto mas do modo como a cultura estaacuteimbricada ou implicada em relaccedilotildees de poder bem concretas que o discursovitimaacuterio e paternalista incorporado agrave nova poliacutetica contribui mais para ocultar doque revelar Para os homens articular reivindicaccedilotildees a partir de uma posiccedilatildeogenerificada e tornar-se visiacuteveis enquanto ldquohomensrdquo significa colocar-se no mesmoplano que as mulheres Perderiam assim a posiccedilatildeo de representantes universais daespeacutecie e arriscariam a perder tambeacutem suas prerrogativas na hierarquia de gecircneroTalvez seja por isso mesmo que eles natildeo o fazem natildeo havendo (ainda) organizaccedilotildeesldquomasculinistasrdquo como existem organizaccedilotildees ldquofeministasrdquoDesse modo a condiccedilatildeo para que ocorra a mudanccedila cultural necessaacuteria para

fazer com que os homens (heterossexuais) tenham uma relaccedilatildeo tatildeo reflexiva comseus proacuteprios corpos quanto seus vaacuterios ldquooutrosrdquo (mulheres homossexuais travestis)eacute que tais ldquooutrosrdquo tenham o mesmo poder e prestiacutegio que eles Tudo se passaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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como se os homens precisassem se tornar socialmente vulneraacuteveis para poderperceber sua vulnerabilidade bioloacutegica e para ver algum sentido na luta porultrapassaacute-la Dito de outro modo mostrar-se invulneraacutevel faz parte do exerciacuteciodo poder pelos homens e o poder tem um ldquopreccedilordquo (uma vida mais curta ou menossaudaacutevel) que parece os homens ainda estatildeo dispostos a pagar Diferentementedas mulheres que organizadas num amplo movimento procuraram atraveacutes depoliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas sair da posiccedilatildeo de subordinaccedilatildeo a que historicamenteestavam relegadas os homens soacute podem aparecer entatildeo como sujeitos passivosfrente agrave interpelaccedilatildeo que lhes dirigem a medicina e o Estado Acabam assimsendo retoricamente representados pelos meacutedicos sobretudo urologistas e pelosformuladores e executores de uma poliacutetica que supostamente se implanta em nomedeles mas sem sua participaccedilatildeoQuanto agrave ecircnfase dada aos direitos sexuais e reprodutivos parece-nos que taistemas tecircm uma dupla entrada no programa - atraveacutes da urologia (ou medicinasexual) e da incorporaccedilatildeo da retoacuterica de movimentos poliacuteticos organizados ASBU aparece como ator fundamental na formulaccedilatildeo da poliacutetica Como vimos oacordo de cooperaccedilatildeo teacutecnica assinado com o Ministeacuterio da Sauacutede teve como umde seus principais desdobramentos a campanha centrada na disfunccedilatildeo ereacutetil(lanccedilada antes mesmo da publicaccedilatildeo do documento) Eacute o tipo de pressatildeo quevem dos especialistas neste caso com um objetivo muito claro transformar adisfunccedilatildeo ereacutetil num problema de sauacutede puacuteblica o que eacute facilitado por doisfatores a declaraccedilatildeo do entatildeo Secretaacuterio Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede Joseacute Gomes

Temporatildeo em 200625 e a nomeaccedilatildeo de Ricardo Cavalcanti para a Coordenaccedilatildeoda Aacuterea Teacutecnica da Sauacutede do Homem Cavalcanti eacute um dos pais fundadores damoderna sexologia brasileira e embora sendo ginecologista de formaccedilatildeocertamente facilitou o diaacutelogo entre o governo e a SBU Neste caso a afirmaccedilatildeodos direitos sexuais passa pela sexologia e pela medicina sexualA leitura do documento nos leva agrave conclusatildeo de que a poliacutetica de aproximaccedilatildeocom o Ministeacuterio da Sauacutede e os formuladores de poliacuteticas puacuteblicas empreendidapela SBU foi bem-sucedida jaacute que a preocupaccedilatildeo com a sauacutede sexual (explicitadapor exemplo no objetivo de ldquoestimular implantar implementar e qualificarpessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) ultrapassa em grau deimportacircncia pelo menos no documento outros problemas possiacuteveis dentre osquais poderiacuteamos citar aleacutem da violecircncia os relacionados agrave sauacutede mental Por| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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outro lado a linguagem dos especialistas convive com uma outra tiacutepica doschamados movimentos sociais (lembremos que o documento afirma como umdos objetivos do programa ldquoincluir o enfoque de gecircnero orientaccedilatildeo sexualidentidade de gecircnero e condiccedilatildeo eacutetnico-racial nas accedilotildees educativasrdquo) produzindoum discurso hiacutebrido em que caminhos diversos parecem levar a um mesmoobjetivo final - a medicalizaccedilatildeo do corpo masculinoDe fato a presenccedila no documento do discurso dos movimentos sociaisnormalmente voltados para poliacuteticas identitaacuterias nos parece bastante forte Voltamosaqui a um trecho na introduccedilatildeo do documento segundo o qual o programa desauacutede do homem pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para o reconhecimentoe a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para que advenham sujeitosprotagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio e gozo dos direitos decidadaniardquo Isto eacute os homens devem paradoxalmente ser transformados em ldquosujeitosprotagonistas de suas demandasrdquo Atraveacutes do movimento organizado atransformaccedilatildeo das mulheres em ldquoprotagonistas de suas demandasrdquo envolveu seu

relativo ldquoempoderamentordquo No caso dos homens o ldquoprotagonismordquo implicajustamente o contraacuterio isto eacute assumir sua fragilidade e vulnerabilidade aprendendoa enunciar suas demandas Utiliza-se assim a mesma linguagem e os mesmosargumentos comumente presentes no discurso dos movimentos organizados paraefeitos aparentemente opostosNo acircmbito do documento uma das formas encontradas para lidar com esseaparente paradoxo que consiste em formular uma poliacutetica puacuteblica como se elafosse reivindicada pelos sujeitos por ela visados eacute desmembrar a categoria ldquohomemrdquoem uma seacuterie de subcategorias - iacutendios negros gays travestis portadores dedeficiecircncias trabalhadores rurais etc - que por outras razotildees satildeo historicamentemarginalizadas Ao que parece as mulheres podem formar mais facilmente umacategoria unificada mas os homens natildeo Homem pura e simplesmente semqualquer adjetivo natildeo parece ser uma identidade que se precise assumir (contra aspressotildees da sociedade) ou que se deva fortalecer ou pela qual se precise lutar Porisso talvez a necessidade de despedaccedilaacute-la num sem-nuacutemero de categorias demodo a tornar visiacutevel sua vulnerabilidade A politizaccedilatildeo e sensibilizaccedilatildeo do homemportanto tem por objetivo tornaacute-lo consciente dessa vulnerabilidade Soacute entatildeo eacutepossiacutevel medicalizaacute-lo Neste caso consciecircncia poliacutetica ldquoprotagonismordquo emedicalizaccedilatildeo aparecem como indissociaacuteveisA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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______ Une science deacuterisoire Lacuteandrologie au Bregravesil entre les deux guerres Vibrant ndash VirtualBrazilian Anthropology v 1 n frac12 jan-dez 2004COSTA A M Desenvolvimento e Implantaccedilatildeo do PAISM no Brasil In GIFFIN Karen COSTAS H (Org) Questotildees da sauacutede reprodutiva Rio de Janeiro Fiocruz 1999FOUCAULT M Vigiar e punir Petroacutepolis Vozes 1977GOMES R Sexualidade masculina e sauacutede do homem proposta para uma discussatildeo CiecircnciaSauacutede Coletiva Rio de Janeiro n 8 p 825-9 2003GOMES R NASCIMENTO E F ARAUacuteJO F C Por que os homens buscam menos os serviccedilosde sauacutede do que as mulheres As explicaccedilotildees de homens com baixa escolaridade e homens comensino superior Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 23 n 3 mar 2007GOMES R NASCIMENTO E F A produccedilatildeo do conhecimento da sauacutede puacuteblica sobre arelaccedilatildeo homem-sauacutede uma revisatildeo bibliograacutefica Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 22n 5 p 901-911 maio 2006MEDRADO B LYRA J AZEVEDO M GRANJA E e VIEIRA S Princiacutepios diretrizes erecomendaccedilotildees para uma atenccedilatildeo integral aos homens na sauacutede Recife Instituto PAPAI 2009OLIVEIRA P P de A construccedilatildeo social da masculinidade Belo Horizonte UFMG 2004PEREIRA A L Accedilotildees educativas em contracepccedilatildeo teoria e praacutetica dos profissionais de sauacutede Tese(Doutorado em Sauacutede Coletiva) - Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio dejaneiro Rio de Janeiro 2008ROHDEN F Uma ciecircncia da diferenccedila sexo e gecircnero na medicina da mulher Rio de JaneiroFiocruz 2001SCHRAIBER L B GOMES R COUTO M T Homens e sauacutede na pauta da sauacutede coletivaCiecircncia e Sauacutede Coletiva v 10 n 1 p 7-17 2005| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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STOCKLE V Is Sex to Gender as Race is to Ethnicity In DEL VALLE T (Ed) GenderedAnthropology London Routledge 1993

Notas Uma primeira versatildeo deste texto foi apresentada no simpoacutesio The Future of Sexual Health SexualHealth in Public Health Policies no XIX Congresso da World Association for Sexual Health Gotemburgojunho de 2009 tendo utilizado dados colhidos na pesquisa ldquoDiferenccedilas de gecircnero na recentemedicalizaccedilatildeo do envelhecimento e sexualidade a criaccedilatildeo das categorias menopausa andropausa edisfunccedilatildeo sexualrdquo coordenada por Fabiacuteola Rohden e apoiada pelo CNPq1 A partir das reflexotildees de Michel Foucault (1977) em torno do panopticismo pode-se afirmar quedeterminados regimes de visibilidade configuram certos sujeitos que de outro modo inexistiriam ouexistiriam de modo inteiramente diferente Natildeo se trata aqui de entrarmos na polecircmica entreconstrutivismo e essencialismo ou seja de decidir se alguns sujeitos estavam sempre laacute agrave espera deserem descoberto ou se satildeo criados pela proacutepria ldquoluzrdquo que os ilumina2 Com ldquoobjetificaccedilatildeordquo natildeo nos referimos aqui a um processo de negaccedilatildeo aos homens de seu estatuto de

pessoa humana mas ao processo de instituiccedilatildeo de certos temas problemas ou sujeitos como objetoslegiacutetimos de conhecimento em determinado campo cientiacutefico conforme formulado originalmente porPierre Bourdieu (1983)3 A partir dos anos 1990 esse processo vem sendo acompanhado pela progressiva transformaccedilatildeo doshomens e da masculinidade em objeto de conhecimento tambeacutem das ciecircncias sociais configurandonovas aacutereas de conhecimento como os chamados ldquomenrsquos studiesrdquo Para isso ver entre outros Oliveira(2004)4 Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIASPort2008PT-09-CONSpdf (acessoem maio 2009)5 Eacute importante destacar que Joseacute Gomes Temporatildeo em 2006 quando ainda era Secretaacuterio Nacionalde Atenccedilatildeo agrave Sauacutede no Ministeacuterio da Sauacutede tentou criar centros de atenccedilatildeo agrave sauacutede no setor privadopara melhorar a assistecircncia agrave sauacutede do homem Em declaraccedilatildeo publicada no jornal O Estado de SatildeoPaulo em janeiro de 2006 Temporatildeo afirmou que o Ministeacuterio da Sauacutede estava analisando a possibilidadede oferecer tratamento para a disfunccedilatildeo ereacutetil atraveacutes da rede puacuteblica incluindo a distribuiccedilatildeo demedicamentos O governo estaria examinando o impacto financeiro de tal medida6 Ao que parece havia no acircmbito do MS desde 2006 uma Coordenaccedilatildeo de Sauacutede do Homem7 Nove meses depois foi substituiacutedo pelo Dr Baldur Schubert um assessor da sua equipe especialistaem seguridade social e sauacutede do trabalho8 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)9 Respectivamente Conselho Nacional de Secretaacuterios de Sauacutede e Conselho Nacional de SecretaacuteriosMunicipais de SauacutedeA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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10 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)11 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrpdf2008_saudehomempdf (acesso em maio 2009)12 Para a discussatildeo sobre a dominaccedilatildeo masculina ver Bourdieu (1998)13 Tais foacuteruns vecircm sendo organizados anualmente pela Comissatildeo de Seguridade Social e Famiacutelia daCacircmara dos Deputados em parceria com a SBU14 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrimagesfolder_noticiajpg (acesso em maio 2009)15 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)16 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)17 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)18 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)19 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)20 O documento passou por uma consulta puacuteblica e foi aprovado pelo Conselho Nacional de Sauacutede emjulho de 200921 O documento lanccedila matildeo de trabalhos importantes que no campo da sauacutede vecircm discutindo amasculinidade como Gomes (2003) Gomes e Nascimento (2006) Gomes et al (2007) Schraiber etal (2005)22 Lemos no documento que ldquoos indicadores apresentados visam a oferecer uma visatildeo ampliada doprocesso de adoecimento e de vulnerabilidade e agravos agrave sauacutede na populaccedilatildeo de homensrdquo (PNAISH2008 p 11)23 Esse aspecto foi tambeacutem destacado em reaccedilatildeo agraves diretrizes do Programa expressa em ldquodocumentomarcordquoproduzido por iniciativa de importantes organizaccedilotildees natildeo-governamentais brasileiras que haacute

muitos anos trabalham com o tema das masculinidades O texto aborda o Programa com base em umaleitura feminista de gecircnero Aleacutem de criticar a centralidade assumida pelas doenccedilas do aparelhogeniturinaacuterio na nova poliacutetica enfatiza-se tambeacutem a relativa desvalorizaccedilatildeo da promoccedilatildeo agrave sauacutede emfavor da oferta de serviccedilos de assistecircncia (MEDRADO et al 2009)24 Eacute interessante pensar como esse movimento vai de encontro agrave luta feminista contra a medicalizaccedilatildeodo corpo feminino25 Ver nota 2| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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Page 8: Saúde do Homem

compotildee um cenaacuterio paradisiacuteaco Na parte de baixo em letras grandes lemos ldquoosbons momentos de voltardquo mais acima agrave direita em letras menores ldquocerca de 40dos homens apresentam algum grau de dificuldade de ereccedilatildeo Trazer os bonsmomentos de volta soacute depende de vocecircrdquo Abaixo da imagem um texto em corpoainda menor adverteA dificuldade de ereccedilatildeo atinge milhotildees de homens no Brasil Os tratamentos hojeem dia satildeo muito eficazes Uma vida sexual insatisfatoacuteria pode estar relacionadaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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a diversos fatores como diabetes e hipertensatildeo Fale com seu urologista e tragaos bons momentos de volta11

Eacute importante perceber os deslizamentos entre diferentes expressotildees no decorrerda campanha A campanha da SBU eacute centrada na disfunccedilatildeo ereacutetil Os argumentosapresentados pela sociedade falam que 40 dos homens acima de 40 anosapresentam alguma queixa relacionada agrave funccedilatildeo ereacutetil No folheto o termo usadoeacute dificuldade de ereccedilatildeo que eacute remetida a uma vida sexual insatisfatoacuteria Do mesmomodo a faixa etaacuteria citada no website da SBU (homens acima dos 40) eacute suprimidaPassamos entatildeo de ldquoalgum tipo de queixa relacionada a funccedilatildeo ereacutetilrdquo paradificuldade de ereccedilatildeo ambas expressotildees subsumidas pela categoria disfunccedilatildeo ereacutetilque eacute como indicado pela proacutepria SBU o verdadeiro foco da campanha Essedeslizamento em nenhum momento eacute objeto de explicaccedilatildeo ou discussatildeo sejanos documentos da SBU seja naqueles produzidos pela Aacuterea Teacutecnica da Sauacutededo Homem Outra caracteriacutestica interessante do folheto eacute seu duplo apelo Eacutefaacutecil perceber que as expressotildees dificuldade de ereccedilatildeo ou vida sexual insatisfatoacuterianatildeo necessariamente se enquadram na categoria doenccedila O texto chama atenccedilatildeopara ldquoos bons momentosrdquo (em primeiro plano e em letras grandes) apresentandouma imagem extremamente positiva - o lindo e (quase) jovem casal abraccedilado -que natildeo se associa agrave ideia de doenccedila mas de felicidade e sauacutede Eacute possiacutevelportanto para aquele que vecirc o anuacutencio entender que a dificuldade de ereccedilatildeo natildeoeacute de fato uma doenccedila O anuacutencio entretanto visa a levar os homens ao meacutedico

Por que ir ao meacutedico se natildeo se estaacute doente As frases em letra menor na parteinferior direita da imagem ao mesmo tempo em que contecircm uma ameaccedila (ldquoumavida sexual insatisfatoacuteria pode estar relacionada a diversos fatores como diabetese hipertensatildeordquo) oferecem uma espeacutecie de desculpa para os homens queinsatisfeitos com sua performance tecircm vergonha de procurar um meacutedico Ouseja poderatildeo buscar um urologista devido agrave sua preocupaccedilatildeo com um problemapropriamente meacutedico e natildeo sexualEacute tambeacutem significativo que dentre os vaacuterios perigos letais que rondariam os homensa disfunccedilatildeo ereacutetil tenha sido escolhida para tema de uma campanha cujo tiacutetulo prometeum geneacuterico ldquoesclarecimento da sauacutede do homemrdquo Um dos grandes obstaacuteculos agravepromoccedilatildeo da sauacutede dos homens conforme repetido inuacutemeras vezes ao longo do processode construccedilatildeo da nova poliacutetica eacute justamente a centralidade da ideia de invulnerabilidadeou seja da ideia de potecircncia na construccedilatildeo da masculinidade hegemocircnica Por essa| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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razatildeo os homens seriam como declara o presidente da Associaccedilatildeo Meacutedica de Brasiacuteliano lanccedilamento da campanha ldquorelapsosrdquo com sua sauacutede procurando menosfrequentemente os meacutedicos que as mulheres Mas ao centrar a felicidade dos homensna potecircncia sexual vista como capacidade de obter uma ereccedilatildeo a campanha acabareforccedilando a centralidade dos valores que supostamente pretende combaterParadoxalmente ao prometer devolver-lhes a potecircncia perdida os urologistas natildeo deixamde procurar atrair os homens aos cuidados de sauacutede justamente a partir da configuraccedilatildeode valores que os afastaria de tais cuidados e que como eacute o caso da virilidade compotildeemos fundamentos mesmos da masculinidade hegemocircnica12

Na luta pela implantaccedilatildeo da nova poliacutetica que a SBU manteacutem ao longo do anode 2008 outro momento importante eacute a audiecircncia puacuteblica convocada pela Cacircmarados Deputados no acircmbito do IV Foacuterum Poliacuteticas Puacuteblicas de Sauacutede do Homemrealizado em agosto13 Nela o Ministeacuterio da Sauacutede apresenta seu projeto para a

aacuterea Quase simultaneamente o Ministeacuterio divulgaria o documento ldquoPoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homemrdquo (PNAISH) Iniciava assimuma discussatildeo que envolveria diferentes atores (setores do governo conselhos desauacutede associaccedilotildees meacutedicas pesquisadores profissionais de sauacutede e representantesda sociedade civil) e se estenderia ateacute maio do ano seguinte quando a versatildeo finaldo documento eacute oficialmente divulgada Ao lado da urologia entre as associaccedilotildeesmeacutedicas participam sobretudo aquelas relacionadas aos problemas maiscomumente identificados como ldquomasculinosrdquo (cardiologia sauacutede mentalgastroenterologia e pneumologia)Aleacutem de influir decisivamente no conteuacutedo do novo programa a SBU trabalhatambeacutem no sentido de garantir sua sustentaccedilatildeo poliacutetica Em maio de 2009 porexemplo distribui folhetos no XXV Congresso Nacional de Secretarias Municipaisde Sauacutede visando a ldquosolicitar apoio para poliacuteticas puacuteblicas voltadas para o sexomasculinordquo Segundo noticia-se no website da sociedade ldquoo objetivo eacute sensibilizaros gestores municipais a adotarem poliacuteticas que visem a uma assistecircncia uroloacutegicamais efetiva nos hospitais puacuteblicos Aleacutem disso a SBU quer conscientizaacute-los sobrea Poliacutetica Nacional de Sauacutede do Homem do Ministeacuterio da Sauacutede e agregaacute-los naluta para que tal programa entre em vigor o quanto antesrdquo No folheto distribuiacutedocompara-se a situaccedilatildeo de mulheres apresentadas como sujeitos que reivindicamseus direitos e de homens apresentados em linguagem um tanto confusa comosujeitos passivos cuja sauacutede tem sido negligenciadaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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A mulher brasileira tem conquistado avanccedilos em nossa sociedade ganhandodignidade disputando com isonomia diferentes funccedilotildees que as igualam agraves condiccedilotildeesdos homens Com isso as autoridades governamentais tem [sic] desenvolvidoimportantes accedilotildees de poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede da mulher no acircmbito do SUSOs homens por sua vez continuam deixando de ser contemplados por essas accedilotildeesgovernamentais evoluindo para o distanciamento das soluccedilotildees de seus principaisagravos na aacuterea da sauacutede gerando informaccedilotildees desencontradas e sem base cientiacuteficao que sobremaneira resulta em grande prejuiacutezo social (grifo nosso)14

A nova poliacutetica de sauacutede seria finalmente lanccedilada em agosto de 2009 no bojode uma seacuterie de atividades relativas agrave campanha pela sauacutede do homem Em 10 de

agosto um dia apoacutes o Dia dos Pais o Presidente Lula trata da sauacutede do homemem seu programa de raacutedio ldquoCafeacute com o Presidenterdquo e anuncia que o MS lanccedilaraacuteem breve a Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem O Presidentediz entatildeo que no que concerne agrave sauacutede os homens mereceriam ldquoum puxatildeo deorelhardquo por terem ldquomedo de agulhardquo indo pouco ao meacutedico e soacute iniciandotratamento depois do agravamento do quadro Em sua intervenccedilatildeo tambeacutemcompara homens e mulheres apontando a ldquoculturardquo como raiz do problemaTodos noacutes homens temos essa bobagem na cabeccedila que eacute o medo de fazer o examede proacutestata e isso tem sido a causa da morte de muitos homens por causa docacircncer de proacutestata Soacute para vocecirc ter uma ideia segundo estimativa do SUS paracada oito consultas ginecoloacutegicas feitas em 2007 soacute teve uma uroloacutegica Enquantoquase 17 milhotildees de mulheres foram ao ginecologista em 2007 apenas 26 milhotildeesde homens procuraram um urologista Veja todo homem depois de uma certaidade tem que procurar o urologista A verdade eacute que ainda tem muitos que tecircmmedo de procurar o urologista e fazer exame de toque por conta da proacutestata Essaatitude estaacute muito ligada agrave nossa cultura Mas isso estaacute na hora de mudar issonatildeo combina com a vida moderna Temos que acompanhar as mudanccedilas nomundo e encarar nossas fragilidades Precisamos ter haacutebitos saudaacuteveis fazer examede prevenccedilatildeo e rotina (grifo nosso)15

Por beberem mais fumarem mais e serem mais sedentaacuterios que as mulheres oshomens teriam uma menor expectativa de vida Segundo o Presidente em largamedida dependeria deles a transformaccedilatildeo desse quadro Nesse sentido termina aentrevista com um apelo ldquoEntatildeo o meu apelo para os homens no Dia dos Pais eacuteque a partir de agora vamos nos cuidar porque noacutes precisamos viver mais e vivermelhor Afinal de contas a nossa famiacutelia depende muito de noacutesrdquo16| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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Ainda em agosto realiza-se na Cacircmara dos Deputados o V Foacuterum de PoliacuteticasPuacuteblicas e Sauacutede do Homem cujo objetivo seria segundo o presidente da SBUldquomanter a lembranccedila e pressatildeo junto aos oacutergatildeos governamentais e parlamentaressobre a importacircncia da poliacutetica nacional de sauacutede do homem que resgata umalacuna e inclui o gecircnero masculino ainda secundarizado nas poliacuteticas puacuteblicasrdquo17

Durante o Foacuterum o presidente da SBU recebe a notiacutecia do lanccedilamento oficial dapoliacutetica Ao comemorar revela o papel central desempenhado pelos urologistasFinalizamos um importante ciclo no sentido de sensibilizar as autoridades atraveacutes

de simpoacutesios e Foacuteruns quanto agrave importacircncia da inclusatildeo de projetos especiacuteficosvoltados para o gecircnero masculino Estamos felizes com o lanccedilamento desta poliacuteticapelo Governo Federal Dentre todas as especialidades eacute inegaacutevel que a Urologiaguarda uma estreita poreacutem natildeo exclusiva relaccedilatildeo com o homem Iniciaremos umoutro ciclo que eacute o plano de accedilatildeo desta poliacutetica nos estados e municiacutepios e aimportacircncia que os gestores daratildeo a estas accedilotildees O homem brasileiro agradece(grifo nosso)18

Finalmente em 28 de agosto de 2009 no auditoacuterio da Organizaccedilatildeo Pan-Americana de Sauacutede em Brasiacutelia o Ministeacuterio da Sauacutede lanccedila oficialmente a PoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem Em seu discurso o ministroressaltaria a importacircncia da Sociedade Brasileira de Urologia na construccedilatildeo danova poliacutetica que conforme declara o presidente da SBU ldquovaloriza o homembrasileiro fortalece a atividade uroloacutegica e o urologista no Sistema Uacutenico de Sauacutederdquo19

Salvar os homens de si mesmos o documento ldquoPoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes)rdquoComo dito acima em agosto de 2008 o Departamento de Accedilotildees Programaacuteticas eEstrateacutegicas ao qual se subordina a Aacuterea Teacutecnica de Sauacutede do Homem lanccedilou aprimeira versatildeo do documento ldquoPoliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede doHomem (princiacutepios e diretrizes)rdquo20 O documento eacute apresentado como fruto deuma parceria entre gestores do SUS sociedades cientiacuteficas sociedade civilorganizada pesquisadores acadecircmicos e agecircncias de cooperaccedilatildeo internacional Aindana apresentaccedilatildeo lemos que a sauacutede do homem eacute uma das prioridades do governoe que a poliacutetica a ser implementada traduziria ldquoum longo anseio da sociedade aoA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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reconhecer que os agravos do sexo masculino constituem verdadeiros problemasde sauacutede puacuteblicardquo (PNAISH 2008 p 3)Segundo o documento estudos comparativos tecircm demonstrado que os homenssatildeo mais vulneraacuteveis a doenccedilas do que as mulheres especialmente agraves enfermidadescrocircnicas e graves e que morrem mais cedo Apesar deste fato jaacute bem documentadoos homens natildeo satildeo captados pelos serviccedilos de atenccedilatildeo primaacuteria (como ocorre com

as mulheres) Sua entrada no sistema de sauacutede se daria principalmente pela atenccedilatildeoambulatorial e hospitalar de meacutedia e alta complexidades configurando um perfilque favorece o agravo da morbidade pela busca tardia ao atendimentoPara explicar a ldquoresistecircncia masculina agrave atenccedilatildeo primaacuteriardquo o texto lanccedila matildeo depesquisas qualitativas21 que apontam diversas razotildees para o fenocircmeno agrupadasem dois tipos de determinantes ldquobarreiras institucionaisrdquo e ldquobarreirassocioculturaisrdquo As ldquobarreiras institucionaisrdquo dizem respeito agrave dificuldade de acessoaos serviccedilos assistenciais e satildeo tratadas de forma bastante breve O documentoenfatiza as chamadas ldquovariaacuteveis culturaisrdquoestereoacutetipos de gecircnero enraizados haacute seacuteculos na cultura patriarcal produzempraacuteticas baseadas em crenccedilas e valores do que eacute ser masculino A doenccedila eacuteconsiderada um sinal de fragilidade que os homens natildeo reconhecem como inerentesagrave sua proacutepria condiccedilatildeo bioloacutegica O homem se julga invulneraacutevel o que acaba porcontribuir para que ele cuide menos de si mesmo e se exponha mais agraves situaccedilotildeesde risco (PNAISH 2008 p 6)Mais abaixo lecirc-seAinda que o conceito de masculinidade venha sendo atualmente contestado e tenhaperdido seu rigor original na dinacircmica do processo cultural [] a concepccedilatildeo aindaprevalente e hegemocircnica de masculinidade eacute o eixo estruturante pela natildeo-procuraaos serviccedilos de sauacutede (Idem)Uma vez explicitadas o que satildeo as ldquovariaacuteveis culturaisrdquo o documento afirma queo grande desafio de uma poliacutetica voltada para os homens eacute mobilizar a ldquopopulaccedilatildeomasculina brasileira para a luta pela garantia de seu direito social agrave sauacutederdquo Paratanto a poliacutetica em questatildeo pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para oreconhecimento e a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para queadvenham sujeitos protagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio egozo dos direitos de cidadaniardquo (PNAISH 2008 p 7)| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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No item ldquoMetodologia de construccedilatildeo da poliacuteticardquo o texto afirma que a ideiacentral do documento foi desenvolvida de modo articulado com a Poliacutetica Nacionalde Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher ldquorecuperando experiecircncias e conhecimentosproduzidos naquela aacuterea promovendo accedilotildees futuras em consonacircncia tanto emprinciacutepios como em praacuteticasrdquo (PNAISH 2008 p 9) Esta articulaccedilatildeo com a poliacuteticavoltada para as mulheres seraacute objeto de discussatildeo mais adianteO item do documento intitulado ldquoDiagnoacutesticordquo eacute bastante extenso e como o

nome indica procura oferecer um quadro amplo acerca dos agravos agrave sauacutedemasculina22 percorrendo temas como violecircncia alcoolismo e tabagismo indicadoresde mortalidade e de morbidade Aleacutem dessas temaacuteticas nas quais reconhecemos alinguagem mais tradicional da epidemiologia e da sauacutede puacuteblica encontramosoutros temas que embora possam ser vistos como parte do campo da sauacutede nosentido lato extrapolam seus limites uma vez que tecircm ressonacircncias mais claramentepoliacuteticas eou juriacutedicas ldquoadolescecircncia e velhicerdquo e ldquodireitos sexuais e reprodutivosrdquoLogo na introduccedilatildeo desse item lemos queOs temas mais recorrentes no estudo sobre a sauacutede do homem podem se estruturarem torno de trecircs eixos violecircncia tendecircncia agrave exposiccedilatildeo a riscos com consequecircncianos indicadores de morbi-mortalidade e sauacutede sexual e reprodutiva (PNAISH2008 p 11)Como veremos adiante dentre esses trecircs eixos o terceiro - sauacutede sexual ereprodutiva - seraacute enfatizado em detrimento dos demais embora na apresentaccedilatildeodos diversos subitens de que trata o item ldquoDiagnoacutesticordquo os dois primeiros eixossejam mais extensamente tratados com a apresentaccedilatildeo de um conjunto expressivode dados e argumentos O subitem ldquoDireitos sexuais e reprodutivosrdquo ao contraacuteriodos demais natildeo traz dados sobre agravos ou ameaccedilas agrave sauacutede sexual e reprodutivamas expotildee uma espeacutecie de agenda poliacutetica afirmando a necessidade da implementaccedilatildeodos direitos sexuais e reprodutivos dos homens A linguagem dos direitos se impotildeee a categoria ldquosauacutederdquo natildeo eacute mencionada O documento afirma por exemplo que eacutenecessaacuterio ldquosuperar a restriccedilatildeo da responsabilidade sobre as praacuteticas contraceptivas agravesmulheresrdquo de modo a assegurar aos homens ldquoo direito agrave participaccedilatildeo no planejamentoreprodutivordquo a paternidade devendo ser vista como ldquoum direito do homem a participarde todo o processo desde a decisatildeo de ter ou natildeo filhos como e quando tecirc-los bemcomo do acompanhamento da gravidez do parto do poacutes-parto e da educaccedilatildeo dacrianccedilardquo (PNAISH 2008 p 20) Eacute curiosa essa formulaccedilatildeo uma vez que a demandaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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pela participaccedilatildeo masculina nas decisotildees reprodutivas eacute uma bandeira do movimento

feminista Normalmente tal participaccedilatildeo aparece como exigecircncia das mulherescomo um dever do qual o homem tende a escapar No documento o que antes eraconsiderado um dever se transforma em direitoA insistecircncia na temaacutetica da sauacutede sexual e reprodutiva atravessa o documentoe surge com forccedila no item ldquoObjetivosrdquo Satildeo trecircs os objetivos especiacuteficos listados(1) Organizar implantar qualificar e humanizar em todo territoacuterio brasileiro aatenccedilatildeo integral a sauacutede do homem dentro dos princiacutepios que regem o SistemaUacutenico de Sauacutede(2) Estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeo da assistecircncia em sauacutede sexual ereprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede(3) Ampliar atraveacutes da educaccedilatildeo o acesso dos homens agraves informaccedilotildees sobre asmedidas preventivas contra os agravos e enfermidades que atingem a populaccedilatildeomasculina destacando seus direitos sexuais e reprodutivos (PNAISH 2008 p 39grifos nossos)O segundo dos objetivos especiacuteficos - estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeoda assistecircncia em sauacutede sexual e reprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede -tem uma extensa lista de subitens Dentre estes aleacutem de metas mais tradicionaisrelativas ao planejamento reprodutivo masculino contracepccedilatildeo ciruacutergica voluntaacuteriae prevenccedilatildeo de DSTAids encontramos os seguintes objetivos- estimular implantar implementar e qualificar pessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildeessexuais masculinas- promover a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem nas populaccedilotildees indiacutegenas negrasquilombolas gays bissexuais travestis transexuais trabalhadores rurais homenscom deficiecircncia em situaccedilatildeo de risco em situaccedilatildeo carceraacuteria desenvolvendoestrateacutegias voltadas para a promoccedilatildeo da equidade para distintos grupos sociais- associar as accedilotildees governamentais com as da sociedade civil organizada paraefetivar a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem com protagonismo social na enunciaccedilatildeodas reais condiccedilotildees de sauacutede da populaccedilatildeo heterogecircnea de homens (PNAISH2008 p 39)Destacamos aqui dois pontos que comentaremos mais adiante nas conclusotildeesO primeiro diz respeito agrave associaccedilatildeo entre o discurso da SBU (presente na ideia deldquoatenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) e o dos movimentos da ldquosociedade civilorganizadardquo O segundo refere-se ao fato de que a ecircnfase colocada sobre sauacutedesexual e direitos sexuais e reprodutivos natildeo aparece do mesmo modo quando se| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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trata de outros temas como a violecircncia reconhecidamente uma das mais relevantescausas de morbidade e mortalidade entre homens adultos jovens23

Assim emboradiscuta e exponha extensamente os fatores considerados pela sauacutede puacuteblica como

mais relevantes agrave sauacutede masculina o documento dirige seu foco para as novastemaacuteticas da sauacutede sexual e dos direitos sexuais e reprodutivos Ateacute entatildeo pelomenos no que diz respeito a estes uacuteltimos tais temaacuteticas pareciam mais ligadas aosdiscursos feministas em torno da sauacutede da mulherAlgumas conclusotildees possiacuteveisO documento de algum modo afirma o caraacuteter ldquoinsalubrerdquo de certa masculinidadesendo os homens apresentados como viacutetimas de sua proacutepria masculinidade ouseja das crenccedilas e valores que constituiriam as ldquobarreiras socioculturaisrdquo que seantepotildeem agrave medicalizaccedilatildeo O objetivo principal do programa eacute enfraquecer aresistecircncia masculina agrave medicina de uma forma geral ou seja medicalizar oshomens24 Para tanto uma accedilatildeo educativa bem feita ldquomodernizariardquo os homensbrasileiros dissipando o pensamento maacutegico que os (des)orienta e que os tornapresas de seu proacuteprios preconceitosEntretanto a questatildeo nos parece bastante mais complexa do que imaginam osdefensores da nova poliacutetica pois essa situaccedilatildeo paradoxal dos homens em relaccedilatildeo asua proacutepria sauacutede e ao seu corpo - sua cultura somaacutetica como diria Luc Boltanski(1979) - deriva em larga medida da posiccedilatildeo que (ainda) ocupam na hierarquia degecircnero A questatildeo natildeo eacute de ldquoculturardquo portanto mas do modo como a cultura estaacuteimbricada ou implicada em relaccedilotildees de poder bem concretas que o discursovitimaacuterio e paternalista incorporado agrave nova poliacutetica contribui mais para ocultar doque revelar Para os homens articular reivindicaccedilotildees a partir de uma posiccedilatildeogenerificada e tornar-se visiacuteveis enquanto ldquohomensrdquo significa colocar-se no mesmoplano que as mulheres Perderiam assim a posiccedilatildeo de representantes universais daespeacutecie e arriscariam a perder tambeacutem suas prerrogativas na hierarquia de gecircneroTalvez seja por isso mesmo que eles natildeo o fazem natildeo havendo (ainda) organizaccedilotildeesldquomasculinistasrdquo como existem organizaccedilotildees ldquofeministasrdquoDesse modo a condiccedilatildeo para que ocorra a mudanccedila cultural necessaacuteria para

fazer com que os homens (heterossexuais) tenham uma relaccedilatildeo tatildeo reflexiva comseus proacuteprios corpos quanto seus vaacuterios ldquooutrosrdquo (mulheres homossexuais travestis)eacute que tais ldquooutrosrdquo tenham o mesmo poder e prestiacutegio que eles Tudo se passaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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como se os homens precisassem se tornar socialmente vulneraacuteveis para poderperceber sua vulnerabilidade bioloacutegica e para ver algum sentido na luta porultrapassaacute-la Dito de outro modo mostrar-se invulneraacutevel faz parte do exerciacuteciodo poder pelos homens e o poder tem um ldquopreccedilordquo (uma vida mais curta ou menossaudaacutevel) que parece os homens ainda estatildeo dispostos a pagar Diferentementedas mulheres que organizadas num amplo movimento procuraram atraveacutes depoliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas sair da posiccedilatildeo de subordinaccedilatildeo a que historicamenteestavam relegadas os homens soacute podem aparecer entatildeo como sujeitos passivosfrente agrave interpelaccedilatildeo que lhes dirigem a medicina e o Estado Acabam assimsendo retoricamente representados pelos meacutedicos sobretudo urologistas e pelosformuladores e executores de uma poliacutetica que supostamente se implanta em nomedeles mas sem sua participaccedilatildeoQuanto agrave ecircnfase dada aos direitos sexuais e reprodutivos parece-nos que taistemas tecircm uma dupla entrada no programa - atraveacutes da urologia (ou medicinasexual) e da incorporaccedilatildeo da retoacuterica de movimentos poliacuteticos organizados ASBU aparece como ator fundamental na formulaccedilatildeo da poliacutetica Como vimos oacordo de cooperaccedilatildeo teacutecnica assinado com o Ministeacuterio da Sauacutede teve como umde seus principais desdobramentos a campanha centrada na disfunccedilatildeo ereacutetil(lanccedilada antes mesmo da publicaccedilatildeo do documento) Eacute o tipo de pressatildeo quevem dos especialistas neste caso com um objetivo muito claro transformar adisfunccedilatildeo ereacutetil num problema de sauacutede puacuteblica o que eacute facilitado por doisfatores a declaraccedilatildeo do entatildeo Secretaacuterio Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede Joseacute Gomes

Temporatildeo em 200625 e a nomeaccedilatildeo de Ricardo Cavalcanti para a Coordenaccedilatildeoda Aacuterea Teacutecnica da Sauacutede do Homem Cavalcanti eacute um dos pais fundadores damoderna sexologia brasileira e embora sendo ginecologista de formaccedilatildeocertamente facilitou o diaacutelogo entre o governo e a SBU Neste caso a afirmaccedilatildeodos direitos sexuais passa pela sexologia e pela medicina sexualA leitura do documento nos leva agrave conclusatildeo de que a poliacutetica de aproximaccedilatildeocom o Ministeacuterio da Sauacutede e os formuladores de poliacuteticas puacuteblicas empreendidapela SBU foi bem-sucedida jaacute que a preocupaccedilatildeo com a sauacutede sexual (explicitadapor exemplo no objetivo de ldquoestimular implantar implementar e qualificarpessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) ultrapassa em grau deimportacircncia pelo menos no documento outros problemas possiacuteveis dentre osquais poderiacuteamos citar aleacutem da violecircncia os relacionados agrave sauacutede mental Por| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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outro lado a linguagem dos especialistas convive com uma outra tiacutepica doschamados movimentos sociais (lembremos que o documento afirma como umdos objetivos do programa ldquoincluir o enfoque de gecircnero orientaccedilatildeo sexualidentidade de gecircnero e condiccedilatildeo eacutetnico-racial nas accedilotildees educativasrdquo) produzindoum discurso hiacutebrido em que caminhos diversos parecem levar a um mesmoobjetivo final - a medicalizaccedilatildeo do corpo masculinoDe fato a presenccedila no documento do discurso dos movimentos sociaisnormalmente voltados para poliacuteticas identitaacuterias nos parece bastante forte Voltamosaqui a um trecho na introduccedilatildeo do documento segundo o qual o programa desauacutede do homem pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para o reconhecimentoe a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para que advenham sujeitosprotagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio e gozo dos direitos decidadaniardquo Isto eacute os homens devem paradoxalmente ser transformados em ldquosujeitosprotagonistas de suas demandasrdquo Atraveacutes do movimento organizado atransformaccedilatildeo das mulheres em ldquoprotagonistas de suas demandasrdquo envolveu seu

relativo ldquoempoderamentordquo No caso dos homens o ldquoprotagonismordquo implicajustamente o contraacuterio isto eacute assumir sua fragilidade e vulnerabilidade aprendendoa enunciar suas demandas Utiliza-se assim a mesma linguagem e os mesmosargumentos comumente presentes no discurso dos movimentos organizados paraefeitos aparentemente opostosNo acircmbito do documento uma das formas encontradas para lidar com esseaparente paradoxo que consiste em formular uma poliacutetica puacuteblica como se elafosse reivindicada pelos sujeitos por ela visados eacute desmembrar a categoria ldquohomemrdquoem uma seacuterie de subcategorias - iacutendios negros gays travestis portadores dedeficiecircncias trabalhadores rurais etc - que por outras razotildees satildeo historicamentemarginalizadas Ao que parece as mulheres podem formar mais facilmente umacategoria unificada mas os homens natildeo Homem pura e simplesmente semqualquer adjetivo natildeo parece ser uma identidade que se precise assumir (contra aspressotildees da sociedade) ou que se deva fortalecer ou pela qual se precise lutar Porisso talvez a necessidade de despedaccedilaacute-la num sem-nuacutemero de categorias demodo a tornar visiacutevel sua vulnerabilidade A politizaccedilatildeo e sensibilizaccedilatildeo do homemportanto tem por objetivo tornaacute-lo consciente dessa vulnerabilidade Soacute entatildeo eacutepossiacutevel medicalizaacute-lo Neste caso consciecircncia poliacutetica ldquoprotagonismordquo emedicalizaccedilatildeo aparecem como indissociaacuteveisA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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ReferecircnciasBOLTANSKI L As classes sociais e o corpo Rio de Janeiro Graal 1979BOURDIEU P O campo cientiacutefico In ORTIZ R (Org) Pierre Bourdieu Sociologia Satildeo PauloAacutetica 1983______ La domination masculine Paris Seuil 1998BRASIL Ministeacuterio da Sauacutede Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes) Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIAS Port2008PT-09-CONSpdf Acesso em maio 2009CARRARA S Tributo a Vecircnus a luta contra a siacutefilis no Brasil da passagem do seacuteculo aos anos 1940Rio de Janeiro Fiocruz 1996

______ Une science deacuterisoire Lacuteandrologie au Bregravesil entre les deux guerres Vibrant ndash VirtualBrazilian Anthropology v 1 n frac12 jan-dez 2004COSTA A M Desenvolvimento e Implantaccedilatildeo do PAISM no Brasil In GIFFIN Karen COSTAS H (Org) Questotildees da sauacutede reprodutiva Rio de Janeiro Fiocruz 1999FOUCAULT M Vigiar e punir Petroacutepolis Vozes 1977GOMES R Sexualidade masculina e sauacutede do homem proposta para uma discussatildeo CiecircnciaSauacutede Coletiva Rio de Janeiro n 8 p 825-9 2003GOMES R NASCIMENTO E F ARAUacuteJO F C Por que os homens buscam menos os serviccedilosde sauacutede do que as mulheres As explicaccedilotildees de homens com baixa escolaridade e homens comensino superior Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 23 n 3 mar 2007GOMES R NASCIMENTO E F A produccedilatildeo do conhecimento da sauacutede puacuteblica sobre arelaccedilatildeo homem-sauacutede uma revisatildeo bibliograacutefica Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 22n 5 p 901-911 maio 2006MEDRADO B LYRA J AZEVEDO M GRANJA E e VIEIRA S Princiacutepios diretrizes erecomendaccedilotildees para uma atenccedilatildeo integral aos homens na sauacutede Recife Instituto PAPAI 2009OLIVEIRA P P de A construccedilatildeo social da masculinidade Belo Horizonte UFMG 2004PEREIRA A L Accedilotildees educativas em contracepccedilatildeo teoria e praacutetica dos profissionais de sauacutede Tese(Doutorado em Sauacutede Coletiva) - Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio dejaneiro Rio de Janeiro 2008ROHDEN F Uma ciecircncia da diferenccedila sexo e gecircnero na medicina da mulher Rio de JaneiroFiocruz 2001SCHRAIBER L B GOMES R COUTO M T Homens e sauacutede na pauta da sauacutede coletivaCiecircncia e Sauacutede Coletiva v 10 n 1 p 7-17 2005| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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STOCKLE V Is Sex to Gender as Race is to Ethnicity In DEL VALLE T (Ed) GenderedAnthropology London Routledge 1993

Notas Uma primeira versatildeo deste texto foi apresentada no simpoacutesio The Future of Sexual Health SexualHealth in Public Health Policies no XIX Congresso da World Association for Sexual Health Gotemburgojunho de 2009 tendo utilizado dados colhidos na pesquisa ldquoDiferenccedilas de gecircnero na recentemedicalizaccedilatildeo do envelhecimento e sexualidade a criaccedilatildeo das categorias menopausa andropausa edisfunccedilatildeo sexualrdquo coordenada por Fabiacuteola Rohden e apoiada pelo CNPq1 A partir das reflexotildees de Michel Foucault (1977) em torno do panopticismo pode-se afirmar quedeterminados regimes de visibilidade configuram certos sujeitos que de outro modo inexistiriam ouexistiriam de modo inteiramente diferente Natildeo se trata aqui de entrarmos na polecircmica entreconstrutivismo e essencialismo ou seja de decidir se alguns sujeitos estavam sempre laacute agrave espera deserem descoberto ou se satildeo criados pela proacutepria ldquoluzrdquo que os ilumina2 Com ldquoobjetificaccedilatildeordquo natildeo nos referimos aqui a um processo de negaccedilatildeo aos homens de seu estatuto de

pessoa humana mas ao processo de instituiccedilatildeo de certos temas problemas ou sujeitos como objetoslegiacutetimos de conhecimento em determinado campo cientiacutefico conforme formulado originalmente porPierre Bourdieu (1983)3 A partir dos anos 1990 esse processo vem sendo acompanhado pela progressiva transformaccedilatildeo doshomens e da masculinidade em objeto de conhecimento tambeacutem das ciecircncias sociais configurandonovas aacutereas de conhecimento como os chamados ldquomenrsquos studiesrdquo Para isso ver entre outros Oliveira(2004)4 Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIASPort2008PT-09-CONSpdf (acessoem maio 2009)5 Eacute importante destacar que Joseacute Gomes Temporatildeo em 2006 quando ainda era Secretaacuterio Nacionalde Atenccedilatildeo agrave Sauacutede no Ministeacuterio da Sauacutede tentou criar centros de atenccedilatildeo agrave sauacutede no setor privadopara melhorar a assistecircncia agrave sauacutede do homem Em declaraccedilatildeo publicada no jornal O Estado de SatildeoPaulo em janeiro de 2006 Temporatildeo afirmou que o Ministeacuterio da Sauacutede estava analisando a possibilidadede oferecer tratamento para a disfunccedilatildeo ereacutetil atraveacutes da rede puacuteblica incluindo a distribuiccedilatildeo demedicamentos O governo estaria examinando o impacto financeiro de tal medida6 Ao que parece havia no acircmbito do MS desde 2006 uma Coordenaccedilatildeo de Sauacutede do Homem7 Nove meses depois foi substituiacutedo pelo Dr Baldur Schubert um assessor da sua equipe especialistaem seguridade social e sauacutede do trabalho8 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)9 Respectivamente Conselho Nacional de Secretaacuterios de Sauacutede e Conselho Nacional de SecretaacuteriosMunicipais de SauacutedeA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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10 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)11 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrpdf2008_saudehomempdf (acesso em maio 2009)12 Para a discussatildeo sobre a dominaccedilatildeo masculina ver Bourdieu (1998)13 Tais foacuteruns vecircm sendo organizados anualmente pela Comissatildeo de Seguridade Social e Famiacutelia daCacircmara dos Deputados em parceria com a SBU14 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrimagesfolder_noticiajpg (acesso em maio 2009)15 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)16 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)17 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)18 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)19 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)20 O documento passou por uma consulta puacuteblica e foi aprovado pelo Conselho Nacional de Sauacutede emjulho de 200921 O documento lanccedila matildeo de trabalhos importantes que no campo da sauacutede vecircm discutindo amasculinidade como Gomes (2003) Gomes e Nascimento (2006) Gomes et al (2007) Schraiber etal (2005)22 Lemos no documento que ldquoos indicadores apresentados visam a oferecer uma visatildeo ampliada doprocesso de adoecimento e de vulnerabilidade e agravos agrave sauacutede na populaccedilatildeo de homensrdquo (PNAISH2008 p 11)23 Esse aspecto foi tambeacutem destacado em reaccedilatildeo agraves diretrizes do Programa expressa em ldquodocumentomarcordquoproduzido por iniciativa de importantes organizaccedilotildees natildeo-governamentais brasileiras que haacute

muitos anos trabalham com o tema das masculinidades O texto aborda o Programa com base em umaleitura feminista de gecircnero Aleacutem de criticar a centralidade assumida pelas doenccedilas do aparelhogeniturinaacuterio na nova poliacutetica enfatiza-se tambeacutem a relativa desvalorizaccedilatildeo da promoccedilatildeo agrave sauacutede emfavor da oferta de serviccedilos de assistecircncia (MEDRADO et al 2009)24 Eacute interessante pensar como esse movimento vai de encontro agrave luta feminista contra a medicalizaccedilatildeodo corpo feminino25 Ver nota 2| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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Por que ir ao meacutedico se natildeo se estaacute doente As frases em letra menor na parteinferior direita da imagem ao mesmo tempo em que contecircm uma ameaccedila (ldquoumavida sexual insatisfatoacuteria pode estar relacionada a diversos fatores como diabetese hipertensatildeordquo) oferecem uma espeacutecie de desculpa para os homens queinsatisfeitos com sua performance tecircm vergonha de procurar um meacutedico Ouseja poderatildeo buscar um urologista devido agrave sua preocupaccedilatildeo com um problemapropriamente meacutedico e natildeo sexualEacute tambeacutem significativo que dentre os vaacuterios perigos letais que rondariam os homensa disfunccedilatildeo ereacutetil tenha sido escolhida para tema de uma campanha cujo tiacutetulo prometeum geneacuterico ldquoesclarecimento da sauacutede do homemrdquo Um dos grandes obstaacuteculos agravepromoccedilatildeo da sauacutede dos homens conforme repetido inuacutemeras vezes ao longo do processode construccedilatildeo da nova poliacutetica eacute justamente a centralidade da ideia de invulnerabilidadeou seja da ideia de potecircncia na construccedilatildeo da masculinidade hegemocircnica Por essa| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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razatildeo os homens seriam como declara o presidente da Associaccedilatildeo Meacutedica de Brasiacuteliano lanccedilamento da campanha ldquorelapsosrdquo com sua sauacutede procurando menosfrequentemente os meacutedicos que as mulheres Mas ao centrar a felicidade dos homensna potecircncia sexual vista como capacidade de obter uma ereccedilatildeo a campanha acabareforccedilando a centralidade dos valores que supostamente pretende combaterParadoxalmente ao prometer devolver-lhes a potecircncia perdida os urologistas natildeo deixamde procurar atrair os homens aos cuidados de sauacutede justamente a partir da configuraccedilatildeode valores que os afastaria de tais cuidados e que como eacute o caso da virilidade compotildeemos fundamentos mesmos da masculinidade hegemocircnica12

Na luta pela implantaccedilatildeo da nova poliacutetica que a SBU manteacutem ao longo do anode 2008 outro momento importante eacute a audiecircncia puacuteblica convocada pela Cacircmarados Deputados no acircmbito do IV Foacuterum Poliacuteticas Puacuteblicas de Sauacutede do Homemrealizado em agosto13 Nela o Ministeacuterio da Sauacutede apresenta seu projeto para a

aacuterea Quase simultaneamente o Ministeacuterio divulgaria o documento ldquoPoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homemrdquo (PNAISH) Iniciava assimuma discussatildeo que envolveria diferentes atores (setores do governo conselhos desauacutede associaccedilotildees meacutedicas pesquisadores profissionais de sauacutede e representantesda sociedade civil) e se estenderia ateacute maio do ano seguinte quando a versatildeo finaldo documento eacute oficialmente divulgada Ao lado da urologia entre as associaccedilotildeesmeacutedicas participam sobretudo aquelas relacionadas aos problemas maiscomumente identificados como ldquomasculinosrdquo (cardiologia sauacutede mentalgastroenterologia e pneumologia)Aleacutem de influir decisivamente no conteuacutedo do novo programa a SBU trabalhatambeacutem no sentido de garantir sua sustentaccedilatildeo poliacutetica Em maio de 2009 porexemplo distribui folhetos no XXV Congresso Nacional de Secretarias Municipaisde Sauacutede visando a ldquosolicitar apoio para poliacuteticas puacuteblicas voltadas para o sexomasculinordquo Segundo noticia-se no website da sociedade ldquoo objetivo eacute sensibilizaros gestores municipais a adotarem poliacuteticas que visem a uma assistecircncia uroloacutegicamais efetiva nos hospitais puacuteblicos Aleacutem disso a SBU quer conscientizaacute-los sobrea Poliacutetica Nacional de Sauacutede do Homem do Ministeacuterio da Sauacutede e agregaacute-los naluta para que tal programa entre em vigor o quanto antesrdquo No folheto distribuiacutedocompara-se a situaccedilatildeo de mulheres apresentadas como sujeitos que reivindicamseus direitos e de homens apresentados em linguagem um tanto confusa comosujeitos passivos cuja sauacutede tem sido negligenciadaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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A mulher brasileira tem conquistado avanccedilos em nossa sociedade ganhandodignidade disputando com isonomia diferentes funccedilotildees que as igualam agraves condiccedilotildeesdos homens Com isso as autoridades governamentais tem [sic] desenvolvidoimportantes accedilotildees de poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede da mulher no acircmbito do SUSOs homens por sua vez continuam deixando de ser contemplados por essas accedilotildeesgovernamentais evoluindo para o distanciamento das soluccedilotildees de seus principaisagravos na aacuterea da sauacutede gerando informaccedilotildees desencontradas e sem base cientiacuteficao que sobremaneira resulta em grande prejuiacutezo social (grifo nosso)14

A nova poliacutetica de sauacutede seria finalmente lanccedilada em agosto de 2009 no bojode uma seacuterie de atividades relativas agrave campanha pela sauacutede do homem Em 10 de

agosto um dia apoacutes o Dia dos Pais o Presidente Lula trata da sauacutede do homemem seu programa de raacutedio ldquoCafeacute com o Presidenterdquo e anuncia que o MS lanccedilaraacuteem breve a Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem O Presidentediz entatildeo que no que concerne agrave sauacutede os homens mereceriam ldquoum puxatildeo deorelhardquo por terem ldquomedo de agulhardquo indo pouco ao meacutedico e soacute iniciandotratamento depois do agravamento do quadro Em sua intervenccedilatildeo tambeacutemcompara homens e mulheres apontando a ldquoculturardquo como raiz do problemaTodos noacutes homens temos essa bobagem na cabeccedila que eacute o medo de fazer o examede proacutestata e isso tem sido a causa da morte de muitos homens por causa docacircncer de proacutestata Soacute para vocecirc ter uma ideia segundo estimativa do SUS paracada oito consultas ginecoloacutegicas feitas em 2007 soacute teve uma uroloacutegica Enquantoquase 17 milhotildees de mulheres foram ao ginecologista em 2007 apenas 26 milhotildeesde homens procuraram um urologista Veja todo homem depois de uma certaidade tem que procurar o urologista A verdade eacute que ainda tem muitos que tecircmmedo de procurar o urologista e fazer exame de toque por conta da proacutestata Essaatitude estaacute muito ligada agrave nossa cultura Mas isso estaacute na hora de mudar issonatildeo combina com a vida moderna Temos que acompanhar as mudanccedilas nomundo e encarar nossas fragilidades Precisamos ter haacutebitos saudaacuteveis fazer examede prevenccedilatildeo e rotina (grifo nosso)15

Por beberem mais fumarem mais e serem mais sedentaacuterios que as mulheres oshomens teriam uma menor expectativa de vida Segundo o Presidente em largamedida dependeria deles a transformaccedilatildeo desse quadro Nesse sentido termina aentrevista com um apelo ldquoEntatildeo o meu apelo para os homens no Dia dos Pais eacuteque a partir de agora vamos nos cuidar porque noacutes precisamos viver mais e vivermelhor Afinal de contas a nossa famiacutelia depende muito de noacutesrdquo16| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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Ainda em agosto realiza-se na Cacircmara dos Deputados o V Foacuterum de PoliacuteticasPuacuteblicas e Sauacutede do Homem cujo objetivo seria segundo o presidente da SBUldquomanter a lembranccedila e pressatildeo junto aos oacutergatildeos governamentais e parlamentaressobre a importacircncia da poliacutetica nacional de sauacutede do homem que resgata umalacuna e inclui o gecircnero masculino ainda secundarizado nas poliacuteticas puacuteblicasrdquo17

Durante o Foacuterum o presidente da SBU recebe a notiacutecia do lanccedilamento oficial dapoliacutetica Ao comemorar revela o papel central desempenhado pelos urologistasFinalizamos um importante ciclo no sentido de sensibilizar as autoridades atraveacutes

de simpoacutesios e Foacuteruns quanto agrave importacircncia da inclusatildeo de projetos especiacuteficosvoltados para o gecircnero masculino Estamos felizes com o lanccedilamento desta poliacuteticapelo Governo Federal Dentre todas as especialidades eacute inegaacutevel que a Urologiaguarda uma estreita poreacutem natildeo exclusiva relaccedilatildeo com o homem Iniciaremos umoutro ciclo que eacute o plano de accedilatildeo desta poliacutetica nos estados e municiacutepios e aimportacircncia que os gestores daratildeo a estas accedilotildees O homem brasileiro agradece(grifo nosso)18

Finalmente em 28 de agosto de 2009 no auditoacuterio da Organizaccedilatildeo Pan-Americana de Sauacutede em Brasiacutelia o Ministeacuterio da Sauacutede lanccedila oficialmente a PoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem Em seu discurso o ministroressaltaria a importacircncia da Sociedade Brasileira de Urologia na construccedilatildeo danova poliacutetica que conforme declara o presidente da SBU ldquovaloriza o homembrasileiro fortalece a atividade uroloacutegica e o urologista no Sistema Uacutenico de Sauacutederdquo19

Salvar os homens de si mesmos o documento ldquoPoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes)rdquoComo dito acima em agosto de 2008 o Departamento de Accedilotildees Programaacuteticas eEstrateacutegicas ao qual se subordina a Aacuterea Teacutecnica de Sauacutede do Homem lanccedilou aprimeira versatildeo do documento ldquoPoliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede doHomem (princiacutepios e diretrizes)rdquo20 O documento eacute apresentado como fruto deuma parceria entre gestores do SUS sociedades cientiacuteficas sociedade civilorganizada pesquisadores acadecircmicos e agecircncias de cooperaccedilatildeo internacional Aindana apresentaccedilatildeo lemos que a sauacutede do homem eacute uma das prioridades do governoe que a poliacutetica a ser implementada traduziria ldquoum longo anseio da sociedade aoA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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reconhecer que os agravos do sexo masculino constituem verdadeiros problemasde sauacutede puacuteblicardquo (PNAISH 2008 p 3)Segundo o documento estudos comparativos tecircm demonstrado que os homenssatildeo mais vulneraacuteveis a doenccedilas do que as mulheres especialmente agraves enfermidadescrocircnicas e graves e que morrem mais cedo Apesar deste fato jaacute bem documentadoos homens natildeo satildeo captados pelos serviccedilos de atenccedilatildeo primaacuteria (como ocorre com

as mulheres) Sua entrada no sistema de sauacutede se daria principalmente pela atenccedilatildeoambulatorial e hospitalar de meacutedia e alta complexidades configurando um perfilque favorece o agravo da morbidade pela busca tardia ao atendimentoPara explicar a ldquoresistecircncia masculina agrave atenccedilatildeo primaacuteriardquo o texto lanccedila matildeo depesquisas qualitativas21 que apontam diversas razotildees para o fenocircmeno agrupadasem dois tipos de determinantes ldquobarreiras institucionaisrdquo e ldquobarreirassocioculturaisrdquo As ldquobarreiras institucionaisrdquo dizem respeito agrave dificuldade de acessoaos serviccedilos assistenciais e satildeo tratadas de forma bastante breve O documentoenfatiza as chamadas ldquovariaacuteveis culturaisrdquoestereoacutetipos de gecircnero enraizados haacute seacuteculos na cultura patriarcal produzempraacuteticas baseadas em crenccedilas e valores do que eacute ser masculino A doenccedila eacuteconsiderada um sinal de fragilidade que os homens natildeo reconhecem como inerentesagrave sua proacutepria condiccedilatildeo bioloacutegica O homem se julga invulneraacutevel o que acaba porcontribuir para que ele cuide menos de si mesmo e se exponha mais agraves situaccedilotildeesde risco (PNAISH 2008 p 6)Mais abaixo lecirc-seAinda que o conceito de masculinidade venha sendo atualmente contestado e tenhaperdido seu rigor original na dinacircmica do processo cultural [] a concepccedilatildeo aindaprevalente e hegemocircnica de masculinidade eacute o eixo estruturante pela natildeo-procuraaos serviccedilos de sauacutede (Idem)Uma vez explicitadas o que satildeo as ldquovariaacuteveis culturaisrdquo o documento afirma queo grande desafio de uma poliacutetica voltada para os homens eacute mobilizar a ldquopopulaccedilatildeomasculina brasileira para a luta pela garantia de seu direito social agrave sauacutederdquo Paratanto a poliacutetica em questatildeo pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para oreconhecimento e a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para queadvenham sujeitos protagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio egozo dos direitos de cidadaniardquo (PNAISH 2008 p 7)| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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No item ldquoMetodologia de construccedilatildeo da poliacuteticardquo o texto afirma que a ideiacentral do documento foi desenvolvida de modo articulado com a Poliacutetica Nacionalde Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher ldquorecuperando experiecircncias e conhecimentosproduzidos naquela aacuterea promovendo accedilotildees futuras em consonacircncia tanto emprinciacutepios como em praacuteticasrdquo (PNAISH 2008 p 9) Esta articulaccedilatildeo com a poliacuteticavoltada para as mulheres seraacute objeto de discussatildeo mais adianteO item do documento intitulado ldquoDiagnoacutesticordquo eacute bastante extenso e como o

nome indica procura oferecer um quadro amplo acerca dos agravos agrave sauacutedemasculina22 percorrendo temas como violecircncia alcoolismo e tabagismo indicadoresde mortalidade e de morbidade Aleacutem dessas temaacuteticas nas quais reconhecemos alinguagem mais tradicional da epidemiologia e da sauacutede puacuteblica encontramosoutros temas que embora possam ser vistos como parte do campo da sauacutede nosentido lato extrapolam seus limites uma vez que tecircm ressonacircncias mais claramentepoliacuteticas eou juriacutedicas ldquoadolescecircncia e velhicerdquo e ldquodireitos sexuais e reprodutivosrdquoLogo na introduccedilatildeo desse item lemos queOs temas mais recorrentes no estudo sobre a sauacutede do homem podem se estruturarem torno de trecircs eixos violecircncia tendecircncia agrave exposiccedilatildeo a riscos com consequecircncianos indicadores de morbi-mortalidade e sauacutede sexual e reprodutiva (PNAISH2008 p 11)Como veremos adiante dentre esses trecircs eixos o terceiro - sauacutede sexual ereprodutiva - seraacute enfatizado em detrimento dos demais embora na apresentaccedilatildeodos diversos subitens de que trata o item ldquoDiagnoacutesticordquo os dois primeiros eixossejam mais extensamente tratados com a apresentaccedilatildeo de um conjunto expressivode dados e argumentos O subitem ldquoDireitos sexuais e reprodutivosrdquo ao contraacuteriodos demais natildeo traz dados sobre agravos ou ameaccedilas agrave sauacutede sexual e reprodutivamas expotildee uma espeacutecie de agenda poliacutetica afirmando a necessidade da implementaccedilatildeodos direitos sexuais e reprodutivos dos homens A linguagem dos direitos se impotildeee a categoria ldquosauacutederdquo natildeo eacute mencionada O documento afirma por exemplo que eacutenecessaacuterio ldquosuperar a restriccedilatildeo da responsabilidade sobre as praacuteticas contraceptivas agravesmulheresrdquo de modo a assegurar aos homens ldquoo direito agrave participaccedilatildeo no planejamentoreprodutivordquo a paternidade devendo ser vista como ldquoum direito do homem a participarde todo o processo desde a decisatildeo de ter ou natildeo filhos como e quando tecirc-los bemcomo do acompanhamento da gravidez do parto do poacutes-parto e da educaccedilatildeo dacrianccedilardquo (PNAISH 2008 p 20) Eacute curiosa essa formulaccedilatildeo uma vez que a demandaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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pela participaccedilatildeo masculina nas decisotildees reprodutivas eacute uma bandeira do movimento

feminista Normalmente tal participaccedilatildeo aparece como exigecircncia das mulherescomo um dever do qual o homem tende a escapar No documento o que antes eraconsiderado um dever se transforma em direitoA insistecircncia na temaacutetica da sauacutede sexual e reprodutiva atravessa o documentoe surge com forccedila no item ldquoObjetivosrdquo Satildeo trecircs os objetivos especiacuteficos listados(1) Organizar implantar qualificar e humanizar em todo territoacuterio brasileiro aatenccedilatildeo integral a sauacutede do homem dentro dos princiacutepios que regem o SistemaUacutenico de Sauacutede(2) Estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeo da assistecircncia em sauacutede sexual ereprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede(3) Ampliar atraveacutes da educaccedilatildeo o acesso dos homens agraves informaccedilotildees sobre asmedidas preventivas contra os agravos e enfermidades que atingem a populaccedilatildeomasculina destacando seus direitos sexuais e reprodutivos (PNAISH 2008 p 39grifos nossos)O segundo dos objetivos especiacuteficos - estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeoda assistecircncia em sauacutede sexual e reprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede -tem uma extensa lista de subitens Dentre estes aleacutem de metas mais tradicionaisrelativas ao planejamento reprodutivo masculino contracepccedilatildeo ciruacutergica voluntaacuteriae prevenccedilatildeo de DSTAids encontramos os seguintes objetivos- estimular implantar implementar e qualificar pessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildeessexuais masculinas- promover a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem nas populaccedilotildees indiacutegenas negrasquilombolas gays bissexuais travestis transexuais trabalhadores rurais homenscom deficiecircncia em situaccedilatildeo de risco em situaccedilatildeo carceraacuteria desenvolvendoestrateacutegias voltadas para a promoccedilatildeo da equidade para distintos grupos sociais- associar as accedilotildees governamentais com as da sociedade civil organizada paraefetivar a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem com protagonismo social na enunciaccedilatildeodas reais condiccedilotildees de sauacutede da populaccedilatildeo heterogecircnea de homens (PNAISH2008 p 39)Destacamos aqui dois pontos que comentaremos mais adiante nas conclusotildeesO primeiro diz respeito agrave associaccedilatildeo entre o discurso da SBU (presente na ideia deldquoatenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) e o dos movimentos da ldquosociedade civilorganizadardquo O segundo refere-se ao fato de que a ecircnfase colocada sobre sauacutedesexual e direitos sexuais e reprodutivos natildeo aparece do mesmo modo quando se| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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trata de outros temas como a violecircncia reconhecidamente uma das mais relevantescausas de morbidade e mortalidade entre homens adultos jovens23

Assim emboradiscuta e exponha extensamente os fatores considerados pela sauacutede puacuteblica como

mais relevantes agrave sauacutede masculina o documento dirige seu foco para as novastemaacuteticas da sauacutede sexual e dos direitos sexuais e reprodutivos Ateacute entatildeo pelomenos no que diz respeito a estes uacuteltimos tais temaacuteticas pareciam mais ligadas aosdiscursos feministas em torno da sauacutede da mulherAlgumas conclusotildees possiacuteveisO documento de algum modo afirma o caraacuteter ldquoinsalubrerdquo de certa masculinidadesendo os homens apresentados como viacutetimas de sua proacutepria masculinidade ouseja das crenccedilas e valores que constituiriam as ldquobarreiras socioculturaisrdquo que seantepotildeem agrave medicalizaccedilatildeo O objetivo principal do programa eacute enfraquecer aresistecircncia masculina agrave medicina de uma forma geral ou seja medicalizar oshomens24 Para tanto uma accedilatildeo educativa bem feita ldquomodernizariardquo os homensbrasileiros dissipando o pensamento maacutegico que os (des)orienta e que os tornapresas de seu proacuteprios preconceitosEntretanto a questatildeo nos parece bastante mais complexa do que imaginam osdefensores da nova poliacutetica pois essa situaccedilatildeo paradoxal dos homens em relaccedilatildeo asua proacutepria sauacutede e ao seu corpo - sua cultura somaacutetica como diria Luc Boltanski(1979) - deriva em larga medida da posiccedilatildeo que (ainda) ocupam na hierarquia degecircnero A questatildeo natildeo eacute de ldquoculturardquo portanto mas do modo como a cultura estaacuteimbricada ou implicada em relaccedilotildees de poder bem concretas que o discursovitimaacuterio e paternalista incorporado agrave nova poliacutetica contribui mais para ocultar doque revelar Para os homens articular reivindicaccedilotildees a partir de uma posiccedilatildeogenerificada e tornar-se visiacuteveis enquanto ldquohomensrdquo significa colocar-se no mesmoplano que as mulheres Perderiam assim a posiccedilatildeo de representantes universais daespeacutecie e arriscariam a perder tambeacutem suas prerrogativas na hierarquia de gecircneroTalvez seja por isso mesmo que eles natildeo o fazem natildeo havendo (ainda) organizaccedilotildeesldquomasculinistasrdquo como existem organizaccedilotildees ldquofeministasrdquoDesse modo a condiccedilatildeo para que ocorra a mudanccedila cultural necessaacuteria para

fazer com que os homens (heterossexuais) tenham uma relaccedilatildeo tatildeo reflexiva comseus proacuteprios corpos quanto seus vaacuterios ldquooutrosrdquo (mulheres homossexuais travestis)eacute que tais ldquooutrosrdquo tenham o mesmo poder e prestiacutegio que eles Tudo se passaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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como se os homens precisassem se tornar socialmente vulneraacuteveis para poderperceber sua vulnerabilidade bioloacutegica e para ver algum sentido na luta porultrapassaacute-la Dito de outro modo mostrar-se invulneraacutevel faz parte do exerciacuteciodo poder pelos homens e o poder tem um ldquopreccedilordquo (uma vida mais curta ou menossaudaacutevel) que parece os homens ainda estatildeo dispostos a pagar Diferentementedas mulheres que organizadas num amplo movimento procuraram atraveacutes depoliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas sair da posiccedilatildeo de subordinaccedilatildeo a que historicamenteestavam relegadas os homens soacute podem aparecer entatildeo como sujeitos passivosfrente agrave interpelaccedilatildeo que lhes dirigem a medicina e o Estado Acabam assimsendo retoricamente representados pelos meacutedicos sobretudo urologistas e pelosformuladores e executores de uma poliacutetica que supostamente se implanta em nomedeles mas sem sua participaccedilatildeoQuanto agrave ecircnfase dada aos direitos sexuais e reprodutivos parece-nos que taistemas tecircm uma dupla entrada no programa - atraveacutes da urologia (ou medicinasexual) e da incorporaccedilatildeo da retoacuterica de movimentos poliacuteticos organizados ASBU aparece como ator fundamental na formulaccedilatildeo da poliacutetica Como vimos oacordo de cooperaccedilatildeo teacutecnica assinado com o Ministeacuterio da Sauacutede teve como umde seus principais desdobramentos a campanha centrada na disfunccedilatildeo ereacutetil(lanccedilada antes mesmo da publicaccedilatildeo do documento) Eacute o tipo de pressatildeo quevem dos especialistas neste caso com um objetivo muito claro transformar adisfunccedilatildeo ereacutetil num problema de sauacutede puacuteblica o que eacute facilitado por doisfatores a declaraccedilatildeo do entatildeo Secretaacuterio Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede Joseacute Gomes

Temporatildeo em 200625 e a nomeaccedilatildeo de Ricardo Cavalcanti para a Coordenaccedilatildeoda Aacuterea Teacutecnica da Sauacutede do Homem Cavalcanti eacute um dos pais fundadores damoderna sexologia brasileira e embora sendo ginecologista de formaccedilatildeocertamente facilitou o diaacutelogo entre o governo e a SBU Neste caso a afirmaccedilatildeodos direitos sexuais passa pela sexologia e pela medicina sexualA leitura do documento nos leva agrave conclusatildeo de que a poliacutetica de aproximaccedilatildeocom o Ministeacuterio da Sauacutede e os formuladores de poliacuteticas puacuteblicas empreendidapela SBU foi bem-sucedida jaacute que a preocupaccedilatildeo com a sauacutede sexual (explicitadapor exemplo no objetivo de ldquoestimular implantar implementar e qualificarpessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) ultrapassa em grau deimportacircncia pelo menos no documento outros problemas possiacuteveis dentre osquais poderiacuteamos citar aleacutem da violecircncia os relacionados agrave sauacutede mental Por| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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outro lado a linguagem dos especialistas convive com uma outra tiacutepica doschamados movimentos sociais (lembremos que o documento afirma como umdos objetivos do programa ldquoincluir o enfoque de gecircnero orientaccedilatildeo sexualidentidade de gecircnero e condiccedilatildeo eacutetnico-racial nas accedilotildees educativasrdquo) produzindoum discurso hiacutebrido em que caminhos diversos parecem levar a um mesmoobjetivo final - a medicalizaccedilatildeo do corpo masculinoDe fato a presenccedila no documento do discurso dos movimentos sociaisnormalmente voltados para poliacuteticas identitaacuterias nos parece bastante forte Voltamosaqui a um trecho na introduccedilatildeo do documento segundo o qual o programa desauacutede do homem pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para o reconhecimentoe a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para que advenham sujeitosprotagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio e gozo dos direitos decidadaniardquo Isto eacute os homens devem paradoxalmente ser transformados em ldquosujeitosprotagonistas de suas demandasrdquo Atraveacutes do movimento organizado atransformaccedilatildeo das mulheres em ldquoprotagonistas de suas demandasrdquo envolveu seu

relativo ldquoempoderamentordquo No caso dos homens o ldquoprotagonismordquo implicajustamente o contraacuterio isto eacute assumir sua fragilidade e vulnerabilidade aprendendoa enunciar suas demandas Utiliza-se assim a mesma linguagem e os mesmosargumentos comumente presentes no discurso dos movimentos organizados paraefeitos aparentemente opostosNo acircmbito do documento uma das formas encontradas para lidar com esseaparente paradoxo que consiste em formular uma poliacutetica puacuteblica como se elafosse reivindicada pelos sujeitos por ela visados eacute desmembrar a categoria ldquohomemrdquoem uma seacuterie de subcategorias - iacutendios negros gays travestis portadores dedeficiecircncias trabalhadores rurais etc - que por outras razotildees satildeo historicamentemarginalizadas Ao que parece as mulheres podem formar mais facilmente umacategoria unificada mas os homens natildeo Homem pura e simplesmente semqualquer adjetivo natildeo parece ser uma identidade que se precise assumir (contra aspressotildees da sociedade) ou que se deva fortalecer ou pela qual se precise lutar Porisso talvez a necessidade de despedaccedilaacute-la num sem-nuacutemero de categorias demodo a tornar visiacutevel sua vulnerabilidade A politizaccedilatildeo e sensibilizaccedilatildeo do homemportanto tem por objetivo tornaacute-lo consciente dessa vulnerabilidade Soacute entatildeo eacutepossiacutevel medicalizaacute-lo Neste caso consciecircncia poliacutetica ldquoprotagonismordquo emedicalizaccedilatildeo aparecem como indissociaacuteveisA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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ReferecircnciasBOLTANSKI L As classes sociais e o corpo Rio de Janeiro Graal 1979BOURDIEU P O campo cientiacutefico In ORTIZ R (Org) Pierre Bourdieu Sociologia Satildeo PauloAacutetica 1983______ La domination masculine Paris Seuil 1998BRASIL Ministeacuterio da Sauacutede Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes) Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIAS Port2008PT-09-CONSpdf Acesso em maio 2009CARRARA S Tributo a Vecircnus a luta contra a siacutefilis no Brasil da passagem do seacuteculo aos anos 1940Rio de Janeiro Fiocruz 1996

______ Une science deacuterisoire Lacuteandrologie au Bregravesil entre les deux guerres Vibrant ndash VirtualBrazilian Anthropology v 1 n frac12 jan-dez 2004COSTA A M Desenvolvimento e Implantaccedilatildeo do PAISM no Brasil In GIFFIN Karen COSTAS H (Org) Questotildees da sauacutede reprodutiva Rio de Janeiro Fiocruz 1999FOUCAULT M Vigiar e punir Petroacutepolis Vozes 1977GOMES R Sexualidade masculina e sauacutede do homem proposta para uma discussatildeo CiecircnciaSauacutede Coletiva Rio de Janeiro n 8 p 825-9 2003GOMES R NASCIMENTO E F ARAUacuteJO F C Por que os homens buscam menos os serviccedilosde sauacutede do que as mulheres As explicaccedilotildees de homens com baixa escolaridade e homens comensino superior Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 23 n 3 mar 2007GOMES R NASCIMENTO E F A produccedilatildeo do conhecimento da sauacutede puacuteblica sobre arelaccedilatildeo homem-sauacutede uma revisatildeo bibliograacutefica Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 22n 5 p 901-911 maio 2006MEDRADO B LYRA J AZEVEDO M GRANJA E e VIEIRA S Princiacutepios diretrizes erecomendaccedilotildees para uma atenccedilatildeo integral aos homens na sauacutede Recife Instituto PAPAI 2009OLIVEIRA P P de A construccedilatildeo social da masculinidade Belo Horizonte UFMG 2004PEREIRA A L Accedilotildees educativas em contracepccedilatildeo teoria e praacutetica dos profissionais de sauacutede Tese(Doutorado em Sauacutede Coletiva) - Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio dejaneiro Rio de Janeiro 2008ROHDEN F Uma ciecircncia da diferenccedila sexo e gecircnero na medicina da mulher Rio de JaneiroFiocruz 2001SCHRAIBER L B GOMES R COUTO M T Homens e sauacutede na pauta da sauacutede coletivaCiecircncia e Sauacutede Coletiva v 10 n 1 p 7-17 2005| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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STOCKLE V Is Sex to Gender as Race is to Ethnicity In DEL VALLE T (Ed) GenderedAnthropology London Routledge 1993

Notas Uma primeira versatildeo deste texto foi apresentada no simpoacutesio The Future of Sexual Health SexualHealth in Public Health Policies no XIX Congresso da World Association for Sexual Health Gotemburgojunho de 2009 tendo utilizado dados colhidos na pesquisa ldquoDiferenccedilas de gecircnero na recentemedicalizaccedilatildeo do envelhecimento e sexualidade a criaccedilatildeo das categorias menopausa andropausa edisfunccedilatildeo sexualrdquo coordenada por Fabiacuteola Rohden e apoiada pelo CNPq1 A partir das reflexotildees de Michel Foucault (1977) em torno do panopticismo pode-se afirmar quedeterminados regimes de visibilidade configuram certos sujeitos que de outro modo inexistiriam ouexistiriam de modo inteiramente diferente Natildeo se trata aqui de entrarmos na polecircmica entreconstrutivismo e essencialismo ou seja de decidir se alguns sujeitos estavam sempre laacute agrave espera deserem descoberto ou se satildeo criados pela proacutepria ldquoluzrdquo que os ilumina2 Com ldquoobjetificaccedilatildeordquo natildeo nos referimos aqui a um processo de negaccedilatildeo aos homens de seu estatuto de

pessoa humana mas ao processo de instituiccedilatildeo de certos temas problemas ou sujeitos como objetoslegiacutetimos de conhecimento em determinado campo cientiacutefico conforme formulado originalmente porPierre Bourdieu (1983)3 A partir dos anos 1990 esse processo vem sendo acompanhado pela progressiva transformaccedilatildeo doshomens e da masculinidade em objeto de conhecimento tambeacutem das ciecircncias sociais configurandonovas aacutereas de conhecimento como os chamados ldquomenrsquos studiesrdquo Para isso ver entre outros Oliveira(2004)4 Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIASPort2008PT-09-CONSpdf (acessoem maio 2009)5 Eacute importante destacar que Joseacute Gomes Temporatildeo em 2006 quando ainda era Secretaacuterio Nacionalde Atenccedilatildeo agrave Sauacutede no Ministeacuterio da Sauacutede tentou criar centros de atenccedilatildeo agrave sauacutede no setor privadopara melhorar a assistecircncia agrave sauacutede do homem Em declaraccedilatildeo publicada no jornal O Estado de SatildeoPaulo em janeiro de 2006 Temporatildeo afirmou que o Ministeacuterio da Sauacutede estava analisando a possibilidadede oferecer tratamento para a disfunccedilatildeo ereacutetil atraveacutes da rede puacuteblica incluindo a distribuiccedilatildeo demedicamentos O governo estaria examinando o impacto financeiro de tal medida6 Ao que parece havia no acircmbito do MS desde 2006 uma Coordenaccedilatildeo de Sauacutede do Homem7 Nove meses depois foi substituiacutedo pelo Dr Baldur Schubert um assessor da sua equipe especialistaem seguridade social e sauacutede do trabalho8 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)9 Respectivamente Conselho Nacional de Secretaacuterios de Sauacutede e Conselho Nacional de SecretaacuteriosMunicipais de SauacutedeA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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10 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)11 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrpdf2008_saudehomempdf (acesso em maio 2009)12 Para a discussatildeo sobre a dominaccedilatildeo masculina ver Bourdieu (1998)13 Tais foacuteruns vecircm sendo organizados anualmente pela Comissatildeo de Seguridade Social e Famiacutelia daCacircmara dos Deputados em parceria com a SBU14 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrimagesfolder_noticiajpg (acesso em maio 2009)15 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)16 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)17 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)18 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)19 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)20 O documento passou por uma consulta puacuteblica e foi aprovado pelo Conselho Nacional de Sauacutede emjulho de 200921 O documento lanccedila matildeo de trabalhos importantes que no campo da sauacutede vecircm discutindo amasculinidade como Gomes (2003) Gomes e Nascimento (2006) Gomes et al (2007) Schraiber etal (2005)22 Lemos no documento que ldquoos indicadores apresentados visam a oferecer uma visatildeo ampliada doprocesso de adoecimento e de vulnerabilidade e agravos agrave sauacutede na populaccedilatildeo de homensrdquo (PNAISH2008 p 11)23 Esse aspecto foi tambeacutem destacado em reaccedilatildeo agraves diretrizes do Programa expressa em ldquodocumentomarcordquoproduzido por iniciativa de importantes organizaccedilotildees natildeo-governamentais brasileiras que haacute

muitos anos trabalham com o tema das masculinidades O texto aborda o Programa com base em umaleitura feminista de gecircnero Aleacutem de criticar a centralidade assumida pelas doenccedilas do aparelhogeniturinaacuterio na nova poliacutetica enfatiza-se tambeacutem a relativa desvalorizaccedilatildeo da promoccedilatildeo agrave sauacutede emfavor da oferta de serviccedilos de assistecircncia (MEDRADO et al 2009)24 Eacute interessante pensar como esse movimento vai de encontro agrave luta feminista contra a medicalizaccedilatildeodo corpo feminino25 Ver nota 2| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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aacuterea Quase simultaneamente o Ministeacuterio divulgaria o documento ldquoPoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homemrdquo (PNAISH) Iniciava assimuma discussatildeo que envolveria diferentes atores (setores do governo conselhos desauacutede associaccedilotildees meacutedicas pesquisadores profissionais de sauacutede e representantesda sociedade civil) e se estenderia ateacute maio do ano seguinte quando a versatildeo finaldo documento eacute oficialmente divulgada Ao lado da urologia entre as associaccedilotildeesmeacutedicas participam sobretudo aquelas relacionadas aos problemas maiscomumente identificados como ldquomasculinosrdquo (cardiologia sauacutede mentalgastroenterologia e pneumologia)Aleacutem de influir decisivamente no conteuacutedo do novo programa a SBU trabalhatambeacutem no sentido de garantir sua sustentaccedilatildeo poliacutetica Em maio de 2009 porexemplo distribui folhetos no XXV Congresso Nacional de Secretarias Municipaisde Sauacutede visando a ldquosolicitar apoio para poliacuteticas puacuteblicas voltadas para o sexomasculinordquo Segundo noticia-se no website da sociedade ldquoo objetivo eacute sensibilizaros gestores municipais a adotarem poliacuteticas que visem a uma assistecircncia uroloacutegicamais efetiva nos hospitais puacuteblicos Aleacutem disso a SBU quer conscientizaacute-los sobrea Poliacutetica Nacional de Sauacutede do Homem do Ministeacuterio da Sauacutede e agregaacute-los naluta para que tal programa entre em vigor o quanto antesrdquo No folheto distribuiacutedocompara-se a situaccedilatildeo de mulheres apresentadas como sujeitos que reivindicamseus direitos e de homens apresentados em linguagem um tanto confusa comosujeitos passivos cuja sauacutede tem sido negligenciadaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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A mulher brasileira tem conquistado avanccedilos em nossa sociedade ganhandodignidade disputando com isonomia diferentes funccedilotildees que as igualam agraves condiccedilotildeesdos homens Com isso as autoridades governamentais tem [sic] desenvolvidoimportantes accedilotildees de poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede da mulher no acircmbito do SUSOs homens por sua vez continuam deixando de ser contemplados por essas accedilotildeesgovernamentais evoluindo para o distanciamento das soluccedilotildees de seus principaisagravos na aacuterea da sauacutede gerando informaccedilotildees desencontradas e sem base cientiacuteficao que sobremaneira resulta em grande prejuiacutezo social (grifo nosso)14

A nova poliacutetica de sauacutede seria finalmente lanccedilada em agosto de 2009 no bojode uma seacuterie de atividades relativas agrave campanha pela sauacutede do homem Em 10 de

agosto um dia apoacutes o Dia dos Pais o Presidente Lula trata da sauacutede do homemem seu programa de raacutedio ldquoCafeacute com o Presidenterdquo e anuncia que o MS lanccedilaraacuteem breve a Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem O Presidentediz entatildeo que no que concerne agrave sauacutede os homens mereceriam ldquoum puxatildeo deorelhardquo por terem ldquomedo de agulhardquo indo pouco ao meacutedico e soacute iniciandotratamento depois do agravamento do quadro Em sua intervenccedilatildeo tambeacutemcompara homens e mulheres apontando a ldquoculturardquo como raiz do problemaTodos noacutes homens temos essa bobagem na cabeccedila que eacute o medo de fazer o examede proacutestata e isso tem sido a causa da morte de muitos homens por causa docacircncer de proacutestata Soacute para vocecirc ter uma ideia segundo estimativa do SUS paracada oito consultas ginecoloacutegicas feitas em 2007 soacute teve uma uroloacutegica Enquantoquase 17 milhotildees de mulheres foram ao ginecologista em 2007 apenas 26 milhotildeesde homens procuraram um urologista Veja todo homem depois de uma certaidade tem que procurar o urologista A verdade eacute que ainda tem muitos que tecircmmedo de procurar o urologista e fazer exame de toque por conta da proacutestata Essaatitude estaacute muito ligada agrave nossa cultura Mas isso estaacute na hora de mudar issonatildeo combina com a vida moderna Temos que acompanhar as mudanccedilas nomundo e encarar nossas fragilidades Precisamos ter haacutebitos saudaacuteveis fazer examede prevenccedilatildeo e rotina (grifo nosso)15

Por beberem mais fumarem mais e serem mais sedentaacuterios que as mulheres oshomens teriam uma menor expectativa de vida Segundo o Presidente em largamedida dependeria deles a transformaccedilatildeo desse quadro Nesse sentido termina aentrevista com um apelo ldquoEntatildeo o meu apelo para os homens no Dia dos Pais eacuteque a partir de agora vamos nos cuidar porque noacutes precisamos viver mais e vivermelhor Afinal de contas a nossa famiacutelia depende muito de noacutesrdquo16| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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Ainda em agosto realiza-se na Cacircmara dos Deputados o V Foacuterum de PoliacuteticasPuacuteblicas e Sauacutede do Homem cujo objetivo seria segundo o presidente da SBUldquomanter a lembranccedila e pressatildeo junto aos oacutergatildeos governamentais e parlamentaressobre a importacircncia da poliacutetica nacional de sauacutede do homem que resgata umalacuna e inclui o gecircnero masculino ainda secundarizado nas poliacuteticas puacuteblicasrdquo17

Durante o Foacuterum o presidente da SBU recebe a notiacutecia do lanccedilamento oficial dapoliacutetica Ao comemorar revela o papel central desempenhado pelos urologistasFinalizamos um importante ciclo no sentido de sensibilizar as autoridades atraveacutes

de simpoacutesios e Foacuteruns quanto agrave importacircncia da inclusatildeo de projetos especiacuteficosvoltados para o gecircnero masculino Estamos felizes com o lanccedilamento desta poliacuteticapelo Governo Federal Dentre todas as especialidades eacute inegaacutevel que a Urologiaguarda uma estreita poreacutem natildeo exclusiva relaccedilatildeo com o homem Iniciaremos umoutro ciclo que eacute o plano de accedilatildeo desta poliacutetica nos estados e municiacutepios e aimportacircncia que os gestores daratildeo a estas accedilotildees O homem brasileiro agradece(grifo nosso)18

Finalmente em 28 de agosto de 2009 no auditoacuterio da Organizaccedilatildeo Pan-Americana de Sauacutede em Brasiacutelia o Ministeacuterio da Sauacutede lanccedila oficialmente a PoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem Em seu discurso o ministroressaltaria a importacircncia da Sociedade Brasileira de Urologia na construccedilatildeo danova poliacutetica que conforme declara o presidente da SBU ldquovaloriza o homembrasileiro fortalece a atividade uroloacutegica e o urologista no Sistema Uacutenico de Sauacutederdquo19

Salvar os homens de si mesmos o documento ldquoPoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes)rdquoComo dito acima em agosto de 2008 o Departamento de Accedilotildees Programaacuteticas eEstrateacutegicas ao qual se subordina a Aacuterea Teacutecnica de Sauacutede do Homem lanccedilou aprimeira versatildeo do documento ldquoPoliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede doHomem (princiacutepios e diretrizes)rdquo20 O documento eacute apresentado como fruto deuma parceria entre gestores do SUS sociedades cientiacuteficas sociedade civilorganizada pesquisadores acadecircmicos e agecircncias de cooperaccedilatildeo internacional Aindana apresentaccedilatildeo lemos que a sauacutede do homem eacute uma das prioridades do governoe que a poliacutetica a ser implementada traduziria ldquoum longo anseio da sociedade aoA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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reconhecer que os agravos do sexo masculino constituem verdadeiros problemasde sauacutede puacuteblicardquo (PNAISH 2008 p 3)Segundo o documento estudos comparativos tecircm demonstrado que os homenssatildeo mais vulneraacuteveis a doenccedilas do que as mulheres especialmente agraves enfermidadescrocircnicas e graves e que morrem mais cedo Apesar deste fato jaacute bem documentadoos homens natildeo satildeo captados pelos serviccedilos de atenccedilatildeo primaacuteria (como ocorre com

as mulheres) Sua entrada no sistema de sauacutede se daria principalmente pela atenccedilatildeoambulatorial e hospitalar de meacutedia e alta complexidades configurando um perfilque favorece o agravo da morbidade pela busca tardia ao atendimentoPara explicar a ldquoresistecircncia masculina agrave atenccedilatildeo primaacuteriardquo o texto lanccedila matildeo depesquisas qualitativas21 que apontam diversas razotildees para o fenocircmeno agrupadasem dois tipos de determinantes ldquobarreiras institucionaisrdquo e ldquobarreirassocioculturaisrdquo As ldquobarreiras institucionaisrdquo dizem respeito agrave dificuldade de acessoaos serviccedilos assistenciais e satildeo tratadas de forma bastante breve O documentoenfatiza as chamadas ldquovariaacuteveis culturaisrdquoestereoacutetipos de gecircnero enraizados haacute seacuteculos na cultura patriarcal produzempraacuteticas baseadas em crenccedilas e valores do que eacute ser masculino A doenccedila eacuteconsiderada um sinal de fragilidade que os homens natildeo reconhecem como inerentesagrave sua proacutepria condiccedilatildeo bioloacutegica O homem se julga invulneraacutevel o que acaba porcontribuir para que ele cuide menos de si mesmo e se exponha mais agraves situaccedilotildeesde risco (PNAISH 2008 p 6)Mais abaixo lecirc-seAinda que o conceito de masculinidade venha sendo atualmente contestado e tenhaperdido seu rigor original na dinacircmica do processo cultural [] a concepccedilatildeo aindaprevalente e hegemocircnica de masculinidade eacute o eixo estruturante pela natildeo-procuraaos serviccedilos de sauacutede (Idem)Uma vez explicitadas o que satildeo as ldquovariaacuteveis culturaisrdquo o documento afirma queo grande desafio de uma poliacutetica voltada para os homens eacute mobilizar a ldquopopulaccedilatildeomasculina brasileira para a luta pela garantia de seu direito social agrave sauacutederdquo Paratanto a poliacutetica em questatildeo pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para oreconhecimento e a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para queadvenham sujeitos protagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio egozo dos direitos de cidadaniardquo (PNAISH 2008 p 7)| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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No item ldquoMetodologia de construccedilatildeo da poliacuteticardquo o texto afirma que a ideiacentral do documento foi desenvolvida de modo articulado com a Poliacutetica Nacionalde Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher ldquorecuperando experiecircncias e conhecimentosproduzidos naquela aacuterea promovendo accedilotildees futuras em consonacircncia tanto emprinciacutepios como em praacuteticasrdquo (PNAISH 2008 p 9) Esta articulaccedilatildeo com a poliacuteticavoltada para as mulheres seraacute objeto de discussatildeo mais adianteO item do documento intitulado ldquoDiagnoacutesticordquo eacute bastante extenso e como o

nome indica procura oferecer um quadro amplo acerca dos agravos agrave sauacutedemasculina22 percorrendo temas como violecircncia alcoolismo e tabagismo indicadoresde mortalidade e de morbidade Aleacutem dessas temaacuteticas nas quais reconhecemos alinguagem mais tradicional da epidemiologia e da sauacutede puacuteblica encontramosoutros temas que embora possam ser vistos como parte do campo da sauacutede nosentido lato extrapolam seus limites uma vez que tecircm ressonacircncias mais claramentepoliacuteticas eou juriacutedicas ldquoadolescecircncia e velhicerdquo e ldquodireitos sexuais e reprodutivosrdquoLogo na introduccedilatildeo desse item lemos queOs temas mais recorrentes no estudo sobre a sauacutede do homem podem se estruturarem torno de trecircs eixos violecircncia tendecircncia agrave exposiccedilatildeo a riscos com consequecircncianos indicadores de morbi-mortalidade e sauacutede sexual e reprodutiva (PNAISH2008 p 11)Como veremos adiante dentre esses trecircs eixos o terceiro - sauacutede sexual ereprodutiva - seraacute enfatizado em detrimento dos demais embora na apresentaccedilatildeodos diversos subitens de que trata o item ldquoDiagnoacutesticordquo os dois primeiros eixossejam mais extensamente tratados com a apresentaccedilatildeo de um conjunto expressivode dados e argumentos O subitem ldquoDireitos sexuais e reprodutivosrdquo ao contraacuteriodos demais natildeo traz dados sobre agravos ou ameaccedilas agrave sauacutede sexual e reprodutivamas expotildee uma espeacutecie de agenda poliacutetica afirmando a necessidade da implementaccedilatildeodos direitos sexuais e reprodutivos dos homens A linguagem dos direitos se impotildeee a categoria ldquosauacutederdquo natildeo eacute mencionada O documento afirma por exemplo que eacutenecessaacuterio ldquosuperar a restriccedilatildeo da responsabilidade sobre as praacuteticas contraceptivas agravesmulheresrdquo de modo a assegurar aos homens ldquoo direito agrave participaccedilatildeo no planejamentoreprodutivordquo a paternidade devendo ser vista como ldquoum direito do homem a participarde todo o processo desde a decisatildeo de ter ou natildeo filhos como e quando tecirc-los bemcomo do acompanhamento da gravidez do parto do poacutes-parto e da educaccedilatildeo dacrianccedilardquo (PNAISH 2008 p 20) Eacute curiosa essa formulaccedilatildeo uma vez que a demandaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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pela participaccedilatildeo masculina nas decisotildees reprodutivas eacute uma bandeira do movimento

feminista Normalmente tal participaccedilatildeo aparece como exigecircncia das mulherescomo um dever do qual o homem tende a escapar No documento o que antes eraconsiderado um dever se transforma em direitoA insistecircncia na temaacutetica da sauacutede sexual e reprodutiva atravessa o documentoe surge com forccedila no item ldquoObjetivosrdquo Satildeo trecircs os objetivos especiacuteficos listados(1) Organizar implantar qualificar e humanizar em todo territoacuterio brasileiro aatenccedilatildeo integral a sauacutede do homem dentro dos princiacutepios que regem o SistemaUacutenico de Sauacutede(2) Estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeo da assistecircncia em sauacutede sexual ereprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede(3) Ampliar atraveacutes da educaccedilatildeo o acesso dos homens agraves informaccedilotildees sobre asmedidas preventivas contra os agravos e enfermidades que atingem a populaccedilatildeomasculina destacando seus direitos sexuais e reprodutivos (PNAISH 2008 p 39grifos nossos)O segundo dos objetivos especiacuteficos - estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeoda assistecircncia em sauacutede sexual e reprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede -tem uma extensa lista de subitens Dentre estes aleacutem de metas mais tradicionaisrelativas ao planejamento reprodutivo masculino contracepccedilatildeo ciruacutergica voluntaacuteriae prevenccedilatildeo de DSTAids encontramos os seguintes objetivos- estimular implantar implementar e qualificar pessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildeessexuais masculinas- promover a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem nas populaccedilotildees indiacutegenas negrasquilombolas gays bissexuais travestis transexuais trabalhadores rurais homenscom deficiecircncia em situaccedilatildeo de risco em situaccedilatildeo carceraacuteria desenvolvendoestrateacutegias voltadas para a promoccedilatildeo da equidade para distintos grupos sociais- associar as accedilotildees governamentais com as da sociedade civil organizada paraefetivar a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem com protagonismo social na enunciaccedilatildeodas reais condiccedilotildees de sauacutede da populaccedilatildeo heterogecircnea de homens (PNAISH2008 p 39)Destacamos aqui dois pontos que comentaremos mais adiante nas conclusotildeesO primeiro diz respeito agrave associaccedilatildeo entre o discurso da SBU (presente na ideia deldquoatenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) e o dos movimentos da ldquosociedade civilorganizadardquo O segundo refere-se ao fato de que a ecircnfase colocada sobre sauacutedesexual e direitos sexuais e reprodutivos natildeo aparece do mesmo modo quando se| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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trata de outros temas como a violecircncia reconhecidamente uma das mais relevantescausas de morbidade e mortalidade entre homens adultos jovens23

Assim emboradiscuta e exponha extensamente os fatores considerados pela sauacutede puacuteblica como

mais relevantes agrave sauacutede masculina o documento dirige seu foco para as novastemaacuteticas da sauacutede sexual e dos direitos sexuais e reprodutivos Ateacute entatildeo pelomenos no que diz respeito a estes uacuteltimos tais temaacuteticas pareciam mais ligadas aosdiscursos feministas em torno da sauacutede da mulherAlgumas conclusotildees possiacuteveisO documento de algum modo afirma o caraacuteter ldquoinsalubrerdquo de certa masculinidadesendo os homens apresentados como viacutetimas de sua proacutepria masculinidade ouseja das crenccedilas e valores que constituiriam as ldquobarreiras socioculturaisrdquo que seantepotildeem agrave medicalizaccedilatildeo O objetivo principal do programa eacute enfraquecer aresistecircncia masculina agrave medicina de uma forma geral ou seja medicalizar oshomens24 Para tanto uma accedilatildeo educativa bem feita ldquomodernizariardquo os homensbrasileiros dissipando o pensamento maacutegico que os (des)orienta e que os tornapresas de seu proacuteprios preconceitosEntretanto a questatildeo nos parece bastante mais complexa do que imaginam osdefensores da nova poliacutetica pois essa situaccedilatildeo paradoxal dos homens em relaccedilatildeo asua proacutepria sauacutede e ao seu corpo - sua cultura somaacutetica como diria Luc Boltanski(1979) - deriva em larga medida da posiccedilatildeo que (ainda) ocupam na hierarquia degecircnero A questatildeo natildeo eacute de ldquoculturardquo portanto mas do modo como a cultura estaacuteimbricada ou implicada em relaccedilotildees de poder bem concretas que o discursovitimaacuterio e paternalista incorporado agrave nova poliacutetica contribui mais para ocultar doque revelar Para os homens articular reivindicaccedilotildees a partir de uma posiccedilatildeogenerificada e tornar-se visiacuteveis enquanto ldquohomensrdquo significa colocar-se no mesmoplano que as mulheres Perderiam assim a posiccedilatildeo de representantes universais daespeacutecie e arriscariam a perder tambeacutem suas prerrogativas na hierarquia de gecircneroTalvez seja por isso mesmo que eles natildeo o fazem natildeo havendo (ainda) organizaccedilotildeesldquomasculinistasrdquo como existem organizaccedilotildees ldquofeministasrdquoDesse modo a condiccedilatildeo para que ocorra a mudanccedila cultural necessaacuteria para

fazer com que os homens (heterossexuais) tenham uma relaccedilatildeo tatildeo reflexiva comseus proacuteprios corpos quanto seus vaacuterios ldquooutrosrdquo (mulheres homossexuais travestis)eacute que tais ldquooutrosrdquo tenham o mesmo poder e prestiacutegio que eles Tudo se passaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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como se os homens precisassem se tornar socialmente vulneraacuteveis para poderperceber sua vulnerabilidade bioloacutegica e para ver algum sentido na luta porultrapassaacute-la Dito de outro modo mostrar-se invulneraacutevel faz parte do exerciacuteciodo poder pelos homens e o poder tem um ldquopreccedilordquo (uma vida mais curta ou menossaudaacutevel) que parece os homens ainda estatildeo dispostos a pagar Diferentementedas mulheres que organizadas num amplo movimento procuraram atraveacutes depoliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas sair da posiccedilatildeo de subordinaccedilatildeo a que historicamenteestavam relegadas os homens soacute podem aparecer entatildeo como sujeitos passivosfrente agrave interpelaccedilatildeo que lhes dirigem a medicina e o Estado Acabam assimsendo retoricamente representados pelos meacutedicos sobretudo urologistas e pelosformuladores e executores de uma poliacutetica que supostamente se implanta em nomedeles mas sem sua participaccedilatildeoQuanto agrave ecircnfase dada aos direitos sexuais e reprodutivos parece-nos que taistemas tecircm uma dupla entrada no programa - atraveacutes da urologia (ou medicinasexual) e da incorporaccedilatildeo da retoacuterica de movimentos poliacuteticos organizados ASBU aparece como ator fundamental na formulaccedilatildeo da poliacutetica Como vimos oacordo de cooperaccedilatildeo teacutecnica assinado com o Ministeacuterio da Sauacutede teve como umde seus principais desdobramentos a campanha centrada na disfunccedilatildeo ereacutetil(lanccedilada antes mesmo da publicaccedilatildeo do documento) Eacute o tipo de pressatildeo quevem dos especialistas neste caso com um objetivo muito claro transformar adisfunccedilatildeo ereacutetil num problema de sauacutede puacuteblica o que eacute facilitado por doisfatores a declaraccedilatildeo do entatildeo Secretaacuterio Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede Joseacute Gomes

Temporatildeo em 200625 e a nomeaccedilatildeo de Ricardo Cavalcanti para a Coordenaccedilatildeoda Aacuterea Teacutecnica da Sauacutede do Homem Cavalcanti eacute um dos pais fundadores damoderna sexologia brasileira e embora sendo ginecologista de formaccedilatildeocertamente facilitou o diaacutelogo entre o governo e a SBU Neste caso a afirmaccedilatildeodos direitos sexuais passa pela sexologia e pela medicina sexualA leitura do documento nos leva agrave conclusatildeo de que a poliacutetica de aproximaccedilatildeocom o Ministeacuterio da Sauacutede e os formuladores de poliacuteticas puacuteblicas empreendidapela SBU foi bem-sucedida jaacute que a preocupaccedilatildeo com a sauacutede sexual (explicitadapor exemplo no objetivo de ldquoestimular implantar implementar e qualificarpessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) ultrapassa em grau deimportacircncia pelo menos no documento outros problemas possiacuteveis dentre osquais poderiacuteamos citar aleacutem da violecircncia os relacionados agrave sauacutede mental Por| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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outro lado a linguagem dos especialistas convive com uma outra tiacutepica doschamados movimentos sociais (lembremos que o documento afirma como umdos objetivos do programa ldquoincluir o enfoque de gecircnero orientaccedilatildeo sexualidentidade de gecircnero e condiccedilatildeo eacutetnico-racial nas accedilotildees educativasrdquo) produzindoum discurso hiacutebrido em que caminhos diversos parecem levar a um mesmoobjetivo final - a medicalizaccedilatildeo do corpo masculinoDe fato a presenccedila no documento do discurso dos movimentos sociaisnormalmente voltados para poliacuteticas identitaacuterias nos parece bastante forte Voltamosaqui a um trecho na introduccedilatildeo do documento segundo o qual o programa desauacutede do homem pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para o reconhecimentoe a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para que advenham sujeitosprotagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio e gozo dos direitos decidadaniardquo Isto eacute os homens devem paradoxalmente ser transformados em ldquosujeitosprotagonistas de suas demandasrdquo Atraveacutes do movimento organizado atransformaccedilatildeo das mulheres em ldquoprotagonistas de suas demandasrdquo envolveu seu

relativo ldquoempoderamentordquo No caso dos homens o ldquoprotagonismordquo implicajustamente o contraacuterio isto eacute assumir sua fragilidade e vulnerabilidade aprendendoa enunciar suas demandas Utiliza-se assim a mesma linguagem e os mesmosargumentos comumente presentes no discurso dos movimentos organizados paraefeitos aparentemente opostosNo acircmbito do documento uma das formas encontradas para lidar com esseaparente paradoxo que consiste em formular uma poliacutetica puacuteblica como se elafosse reivindicada pelos sujeitos por ela visados eacute desmembrar a categoria ldquohomemrdquoem uma seacuterie de subcategorias - iacutendios negros gays travestis portadores dedeficiecircncias trabalhadores rurais etc - que por outras razotildees satildeo historicamentemarginalizadas Ao que parece as mulheres podem formar mais facilmente umacategoria unificada mas os homens natildeo Homem pura e simplesmente semqualquer adjetivo natildeo parece ser uma identidade que se precise assumir (contra aspressotildees da sociedade) ou que se deva fortalecer ou pela qual se precise lutar Porisso talvez a necessidade de despedaccedilaacute-la num sem-nuacutemero de categorias demodo a tornar visiacutevel sua vulnerabilidade A politizaccedilatildeo e sensibilizaccedilatildeo do homemportanto tem por objetivo tornaacute-lo consciente dessa vulnerabilidade Soacute entatildeo eacutepossiacutevel medicalizaacute-lo Neste caso consciecircncia poliacutetica ldquoprotagonismordquo emedicalizaccedilatildeo aparecem como indissociaacuteveisA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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ReferecircnciasBOLTANSKI L As classes sociais e o corpo Rio de Janeiro Graal 1979BOURDIEU P O campo cientiacutefico In ORTIZ R (Org) Pierre Bourdieu Sociologia Satildeo PauloAacutetica 1983______ La domination masculine Paris Seuil 1998BRASIL Ministeacuterio da Sauacutede Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes) Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIAS Port2008PT-09-CONSpdf Acesso em maio 2009CARRARA S Tributo a Vecircnus a luta contra a siacutefilis no Brasil da passagem do seacuteculo aos anos 1940Rio de Janeiro Fiocruz 1996

______ Une science deacuterisoire Lacuteandrologie au Bregravesil entre les deux guerres Vibrant ndash VirtualBrazilian Anthropology v 1 n frac12 jan-dez 2004COSTA A M Desenvolvimento e Implantaccedilatildeo do PAISM no Brasil In GIFFIN Karen COSTAS H (Org) Questotildees da sauacutede reprodutiva Rio de Janeiro Fiocruz 1999FOUCAULT M Vigiar e punir Petroacutepolis Vozes 1977GOMES R Sexualidade masculina e sauacutede do homem proposta para uma discussatildeo CiecircnciaSauacutede Coletiva Rio de Janeiro n 8 p 825-9 2003GOMES R NASCIMENTO E F ARAUacuteJO F C Por que os homens buscam menos os serviccedilosde sauacutede do que as mulheres As explicaccedilotildees de homens com baixa escolaridade e homens comensino superior Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 23 n 3 mar 2007GOMES R NASCIMENTO E F A produccedilatildeo do conhecimento da sauacutede puacuteblica sobre arelaccedilatildeo homem-sauacutede uma revisatildeo bibliograacutefica Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 22n 5 p 901-911 maio 2006MEDRADO B LYRA J AZEVEDO M GRANJA E e VIEIRA S Princiacutepios diretrizes erecomendaccedilotildees para uma atenccedilatildeo integral aos homens na sauacutede Recife Instituto PAPAI 2009OLIVEIRA P P de A construccedilatildeo social da masculinidade Belo Horizonte UFMG 2004PEREIRA A L Accedilotildees educativas em contracepccedilatildeo teoria e praacutetica dos profissionais de sauacutede Tese(Doutorado em Sauacutede Coletiva) - Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio dejaneiro Rio de Janeiro 2008ROHDEN F Uma ciecircncia da diferenccedila sexo e gecircnero na medicina da mulher Rio de JaneiroFiocruz 2001SCHRAIBER L B GOMES R COUTO M T Homens e sauacutede na pauta da sauacutede coletivaCiecircncia e Sauacutede Coletiva v 10 n 1 p 7-17 2005| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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STOCKLE V Is Sex to Gender as Race is to Ethnicity In DEL VALLE T (Ed) GenderedAnthropology London Routledge 1993

Notas Uma primeira versatildeo deste texto foi apresentada no simpoacutesio The Future of Sexual Health SexualHealth in Public Health Policies no XIX Congresso da World Association for Sexual Health Gotemburgojunho de 2009 tendo utilizado dados colhidos na pesquisa ldquoDiferenccedilas de gecircnero na recentemedicalizaccedilatildeo do envelhecimento e sexualidade a criaccedilatildeo das categorias menopausa andropausa edisfunccedilatildeo sexualrdquo coordenada por Fabiacuteola Rohden e apoiada pelo CNPq1 A partir das reflexotildees de Michel Foucault (1977) em torno do panopticismo pode-se afirmar quedeterminados regimes de visibilidade configuram certos sujeitos que de outro modo inexistiriam ouexistiriam de modo inteiramente diferente Natildeo se trata aqui de entrarmos na polecircmica entreconstrutivismo e essencialismo ou seja de decidir se alguns sujeitos estavam sempre laacute agrave espera deserem descoberto ou se satildeo criados pela proacutepria ldquoluzrdquo que os ilumina2 Com ldquoobjetificaccedilatildeordquo natildeo nos referimos aqui a um processo de negaccedilatildeo aos homens de seu estatuto de

pessoa humana mas ao processo de instituiccedilatildeo de certos temas problemas ou sujeitos como objetoslegiacutetimos de conhecimento em determinado campo cientiacutefico conforme formulado originalmente porPierre Bourdieu (1983)3 A partir dos anos 1990 esse processo vem sendo acompanhado pela progressiva transformaccedilatildeo doshomens e da masculinidade em objeto de conhecimento tambeacutem das ciecircncias sociais configurandonovas aacutereas de conhecimento como os chamados ldquomenrsquos studiesrdquo Para isso ver entre outros Oliveira(2004)4 Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIASPort2008PT-09-CONSpdf (acessoem maio 2009)5 Eacute importante destacar que Joseacute Gomes Temporatildeo em 2006 quando ainda era Secretaacuterio Nacionalde Atenccedilatildeo agrave Sauacutede no Ministeacuterio da Sauacutede tentou criar centros de atenccedilatildeo agrave sauacutede no setor privadopara melhorar a assistecircncia agrave sauacutede do homem Em declaraccedilatildeo publicada no jornal O Estado de SatildeoPaulo em janeiro de 2006 Temporatildeo afirmou que o Ministeacuterio da Sauacutede estava analisando a possibilidadede oferecer tratamento para a disfunccedilatildeo ereacutetil atraveacutes da rede puacuteblica incluindo a distribuiccedilatildeo demedicamentos O governo estaria examinando o impacto financeiro de tal medida6 Ao que parece havia no acircmbito do MS desde 2006 uma Coordenaccedilatildeo de Sauacutede do Homem7 Nove meses depois foi substituiacutedo pelo Dr Baldur Schubert um assessor da sua equipe especialistaem seguridade social e sauacutede do trabalho8 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)9 Respectivamente Conselho Nacional de Secretaacuterios de Sauacutede e Conselho Nacional de SecretaacuteriosMunicipais de SauacutedeA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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10 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)11 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrpdf2008_saudehomempdf (acesso em maio 2009)12 Para a discussatildeo sobre a dominaccedilatildeo masculina ver Bourdieu (1998)13 Tais foacuteruns vecircm sendo organizados anualmente pela Comissatildeo de Seguridade Social e Famiacutelia daCacircmara dos Deputados em parceria com a SBU14 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrimagesfolder_noticiajpg (acesso em maio 2009)15 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)16 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)17 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)18 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)19 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)20 O documento passou por uma consulta puacuteblica e foi aprovado pelo Conselho Nacional de Sauacutede emjulho de 200921 O documento lanccedila matildeo de trabalhos importantes que no campo da sauacutede vecircm discutindo amasculinidade como Gomes (2003) Gomes e Nascimento (2006) Gomes et al (2007) Schraiber etal (2005)22 Lemos no documento que ldquoos indicadores apresentados visam a oferecer uma visatildeo ampliada doprocesso de adoecimento e de vulnerabilidade e agravos agrave sauacutede na populaccedilatildeo de homensrdquo (PNAISH2008 p 11)23 Esse aspecto foi tambeacutem destacado em reaccedilatildeo agraves diretrizes do Programa expressa em ldquodocumentomarcordquoproduzido por iniciativa de importantes organizaccedilotildees natildeo-governamentais brasileiras que haacute

muitos anos trabalham com o tema das masculinidades O texto aborda o Programa com base em umaleitura feminista de gecircnero Aleacutem de criticar a centralidade assumida pelas doenccedilas do aparelhogeniturinaacuterio na nova poliacutetica enfatiza-se tambeacutem a relativa desvalorizaccedilatildeo da promoccedilatildeo agrave sauacutede emfavor da oferta de serviccedilos de assistecircncia (MEDRADO et al 2009)24 Eacute interessante pensar como esse movimento vai de encontro agrave luta feminista contra a medicalizaccedilatildeodo corpo feminino25 Ver nota 2| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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Page 11: Saúde do Homem

agosto um dia apoacutes o Dia dos Pais o Presidente Lula trata da sauacutede do homemem seu programa de raacutedio ldquoCafeacute com o Presidenterdquo e anuncia que o MS lanccedilaraacuteem breve a Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem O Presidentediz entatildeo que no que concerne agrave sauacutede os homens mereceriam ldquoum puxatildeo deorelhardquo por terem ldquomedo de agulhardquo indo pouco ao meacutedico e soacute iniciandotratamento depois do agravamento do quadro Em sua intervenccedilatildeo tambeacutemcompara homens e mulheres apontando a ldquoculturardquo como raiz do problemaTodos noacutes homens temos essa bobagem na cabeccedila que eacute o medo de fazer o examede proacutestata e isso tem sido a causa da morte de muitos homens por causa docacircncer de proacutestata Soacute para vocecirc ter uma ideia segundo estimativa do SUS paracada oito consultas ginecoloacutegicas feitas em 2007 soacute teve uma uroloacutegica Enquantoquase 17 milhotildees de mulheres foram ao ginecologista em 2007 apenas 26 milhotildeesde homens procuraram um urologista Veja todo homem depois de uma certaidade tem que procurar o urologista A verdade eacute que ainda tem muitos que tecircmmedo de procurar o urologista e fazer exame de toque por conta da proacutestata Essaatitude estaacute muito ligada agrave nossa cultura Mas isso estaacute na hora de mudar issonatildeo combina com a vida moderna Temos que acompanhar as mudanccedilas nomundo e encarar nossas fragilidades Precisamos ter haacutebitos saudaacuteveis fazer examede prevenccedilatildeo e rotina (grifo nosso)15

Por beberem mais fumarem mais e serem mais sedentaacuterios que as mulheres oshomens teriam uma menor expectativa de vida Segundo o Presidente em largamedida dependeria deles a transformaccedilatildeo desse quadro Nesse sentido termina aentrevista com um apelo ldquoEntatildeo o meu apelo para os homens no Dia dos Pais eacuteque a partir de agora vamos nos cuidar porque noacutes precisamos viver mais e vivermelhor Afinal de contas a nossa famiacutelia depende muito de noacutesrdquo16| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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Ainda em agosto realiza-se na Cacircmara dos Deputados o V Foacuterum de PoliacuteticasPuacuteblicas e Sauacutede do Homem cujo objetivo seria segundo o presidente da SBUldquomanter a lembranccedila e pressatildeo junto aos oacutergatildeos governamentais e parlamentaressobre a importacircncia da poliacutetica nacional de sauacutede do homem que resgata umalacuna e inclui o gecircnero masculino ainda secundarizado nas poliacuteticas puacuteblicasrdquo17

Durante o Foacuterum o presidente da SBU recebe a notiacutecia do lanccedilamento oficial dapoliacutetica Ao comemorar revela o papel central desempenhado pelos urologistasFinalizamos um importante ciclo no sentido de sensibilizar as autoridades atraveacutes

de simpoacutesios e Foacuteruns quanto agrave importacircncia da inclusatildeo de projetos especiacuteficosvoltados para o gecircnero masculino Estamos felizes com o lanccedilamento desta poliacuteticapelo Governo Federal Dentre todas as especialidades eacute inegaacutevel que a Urologiaguarda uma estreita poreacutem natildeo exclusiva relaccedilatildeo com o homem Iniciaremos umoutro ciclo que eacute o plano de accedilatildeo desta poliacutetica nos estados e municiacutepios e aimportacircncia que os gestores daratildeo a estas accedilotildees O homem brasileiro agradece(grifo nosso)18

Finalmente em 28 de agosto de 2009 no auditoacuterio da Organizaccedilatildeo Pan-Americana de Sauacutede em Brasiacutelia o Ministeacuterio da Sauacutede lanccedila oficialmente a PoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem Em seu discurso o ministroressaltaria a importacircncia da Sociedade Brasileira de Urologia na construccedilatildeo danova poliacutetica que conforme declara o presidente da SBU ldquovaloriza o homembrasileiro fortalece a atividade uroloacutegica e o urologista no Sistema Uacutenico de Sauacutederdquo19

Salvar os homens de si mesmos o documento ldquoPoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes)rdquoComo dito acima em agosto de 2008 o Departamento de Accedilotildees Programaacuteticas eEstrateacutegicas ao qual se subordina a Aacuterea Teacutecnica de Sauacutede do Homem lanccedilou aprimeira versatildeo do documento ldquoPoliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede doHomem (princiacutepios e diretrizes)rdquo20 O documento eacute apresentado como fruto deuma parceria entre gestores do SUS sociedades cientiacuteficas sociedade civilorganizada pesquisadores acadecircmicos e agecircncias de cooperaccedilatildeo internacional Aindana apresentaccedilatildeo lemos que a sauacutede do homem eacute uma das prioridades do governoe que a poliacutetica a ser implementada traduziria ldquoum longo anseio da sociedade aoA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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reconhecer que os agravos do sexo masculino constituem verdadeiros problemasde sauacutede puacuteblicardquo (PNAISH 2008 p 3)Segundo o documento estudos comparativos tecircm demonstrado que os homenssatildeo mais vulneraacuteveis a doenccedilas do que as mulheres especialmente agraves enfermidadescrocircnicas e graves e que morrem mais cedo Apesar deste fato jaacute bem documentadoos homens natildeo satildeo captados pelos serviccedilos de atenccedilatildeo primaacuteria (como ocorre com

as mulheres) Sua entrada no sistema de sauacutede se daria principalmente pela atenccedilatildeoambulatorial e hospitalar de meacutedia e alta complexidades configurando um perfilque favorece o agravo da morbidade pela busca tardia ao atendimentoPara explicar a ldquoresistecircncia masculina agrave atenccedilatildeo primaacuteriardquo o texto lanccedila matildeo depesquisas qualitativas21 que apontam diversas razotildees para o fenocircmeno agrupadasem dois tipos de determinantes ldquobarreiras institucionaisrdquo e ldquobarreirassocioculturaisrdquo As ldquobarreiras institucionaisrdquo dizem respeito agrave dificuldade de acessoaos serviccedilos assistenciais e satildeo tratadas de forma bastante breve O documentoenfatiza as chamadas ldquovariaacuteveis culturaisrdquoestereoacutetipos de gecircnero enraizados haacute seacuteculos na cultura patriarcal produzempraacuteticas baseadas em crenccedilas e valores do que eacute ser masculino A doenccedila eacuteconsiderada um sinal de fragilidade que os homens natildeo reconhecem como inerentesagrave sua proacutepria condiccedilatildeo bioloacutegica O homem se julga invulneraacutevel o que acaba porcontribuir para que ele cuide menos de si mesmo e se exponha mais agraves situaccedilotildeesde risco (PNAISH 2008 p 6)Mais abaixo lecirc-seAinda que o conceito de masculinidade venha sendo atualmente contestado e tenhaperdido seu rigor original na dinacircmica do processo cultural [] a concepccedilatildeo aindaprevalente e hegemocircnica de masculinidade eacute o eixo estruturante pela natildeo-procuraaos serviccedilos de sauacutede (Idem)Uma vez explicitadas o que satildeo as ldquovariaacuteveis culturaisrdquo o documento afirma queo grande desafio de uma poliacutetica voltada para os homens eacute mobilizar a ldquopopulaccedilatildeomasculina brasileira para a luta pela garantia de seu direito social agrave sauacutederdquo Paratanto a poliacutetica em questatildeo pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para oreconhecimento e a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para queadvenham sujeitos protagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio egozo dos direitos de cidadaniardquo (PNAISH 2008 p 7)| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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No item ldquoMetodologia de construccedilatildeo da poliacuteticardquo o texto afirma que a ideiacentral do documento foi desenvolvida de modo articulado com a Poliacutetica Nacionalde Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher ldquorecuperando experiecircncias e conhecimentosproduzidos naquela aacuterea promovendo accedilotildees futuras em consonacircncia tanto emprinciacutepios como em praacuteticasrdquo (PNAISH 2008 p 9) Esta articulaccedilatildeo com a poliacuteticavoltada para as mulheres seraacute objeto de discussatildeo mais adianteO item do documento intitulado ldquoDiagnoacutesticordquo eacute bastante extenso e como o

nome indica procura oferecer um quadro amplo acerca dos agravos agrave sauacutedemasculina22 percorrendo temas como violecircncia alcoolismo e tabagismo indicadoresde mortalidade e de morbidade Aleacutem dessas temaacuteticas nas quais reconhecemos alinguagem mais tradicional da epidemiologia e da sauacutede puacuteblica encontramosoutros temas que embora possam ser vistos como parte do campo da sauacutede nosentido lato extrapolam seus limites uma vez que tecircm ressonacircncias mais claramentepoliacuteticas eou juriacutedicas ldquoadolescecircncia e velhicerdquo e ldquodireitos sexuais e reprodutivosrdquoLogo na introduccedilatildeo desse item lemos queOs temas mais recorrentes no estudo sobre a sauacutede do homem podem se estruturarem torno de trecircs eixos violecircncia tendecircncia agrave exposiccedilatildeo a riscos com consequecircncianos indicadores de morbi-mortalidade e sauacutede sexual e reprodutiva (PNAISH2008 p 11)Como veremos adiante dentre esses trecircs eixos o terceiro - sauacutede sexual ereprodutiva - seraacute enfatizado em detrimento dos demais embora na apresentaccedilatildeodos diversos subitens de que trata o item ldquoDiagnoacutesticordquo os dois primeiros eixossejam mais extensamente tratados com a apresentaccedilatildeo de um conjunto expressivode dados e argumentos O subitem ldquoDireitos sexuais e reprodutivosrdquo ao contraacuteriodos demais natildeo traz dados sobre agravos ou ameaccedilas agrave sauacutede sexual e reprodutivamas expotildee uma espeacutecie de agenda poliacutetica afirmando a necessidade da implementaccedilatildeodos direitos sexuais e reprodutivos dos homens A linguagem dos direitos se impotildeee a categoria ldquosauacutederdquo natildeo eacute mencionada O documento afirma por exemplo que eacutenecessaacuterio ldquosuperar a restriccedilatildeo da responsabilidade sobre as praacuteticas contraceptivas agravesmulheresrdquo de modo a assegurar aos homens ldquoo direito agrave participaccedilatildeo no planejamentoreprodutivordquo a paternidade devendo ser vista como ldquoum direito do homem a participarde todo o processo desde a decisatildeo de ter ou natildeo filhos como e quando tecirc-los bemcomo do acompanhamento da gravidez do parto do poacutes-parto e da educaccedilatildeo dacrianccedilardquo (PNAISH 2008 p 20) Eacute curiosa essa formulaccedilatildeo uma vez que a demandaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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pela participaccedilatildeo masculina nas decisotildees reprodutivas eacute uma bandeira do movimento

feminista Normalmente tal participaccedilatildeo aparece como exigecircncia das mulherescomo um dever do qual o homem tende a escapar No documento o que antes eraconsiderado um dever se transforma em direitoA insistecircncia na temaacutetica da sauacutede sexual e reprodutiva atravessa o documentoe surge com forccedila no item ldquoObjetivosrdquo Satildeo trecircs os objetivos especiacuteficos listados(1) Organizar implantar qualificar e humanizar em todo territoacuterio brasileiro aatenccedilatildeo integral a sauacutede do homem dentro dos princiacutepios que regem o SistemaUacutenico de Sauacutede(2) Estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeo da assistecircncia em sauacutede sexual ereprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede(3) Ampliar atraveacutes da educaccedilatildeo o acesso dos homens agraves informaccedilotildees sobre asmedidas preventivas contra os agravos e enfermidades que atingem a populaccedilatildeomasculina destacando seus direitos sexuais e reprodutivos (PNAISH 2008 p 39grifos nossos)O segundo dos objetivos especiacuteficos - estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeoda assistecircncia em sauacutede sexual e reprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede -tem uma extensa lista de subitens Dentre estes aleacutem de metas mais tradicionaisrelativas ao planejamento reprodutivo masculino contracepccedilatildeo ciruacutergica voluntaacuteriae prevenccedilatildeo de DSTAids encontramos os seguintes objetivos- estimular implantar implementar e qualificar pessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildeessexuais masculinas- promover a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem nas populaccedilotildees indiacutegenas negrasquilombolas gays bissexuais travestis transexuais trabalhadores rurais homenscom deficiecircncia em situaccedilatildeo de risco em situaccedilatildeo carceraacuteria desenvolvendoestrateacutegias voltadas para a promoccedilatildeo da equidade para distintos grupos sociais- associar as accedilotildees governamentais com as da sociedade civil organizada paraefetivar a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem com protagonismo social na enunciaccedilatildeodas reais condiccedilotildees de sauacutede da populaccedilatildeo heterogecircnea de homens (PNAISH2008 p 39)Destacamos aqui dois pontos que comentaremos mais adiante nas conclusotildeesO primeiro diz respeito agrave associaccedilatildeo entre o discurso da SBU (presente na ideia deldquoatenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) e o dos movimentos da ldquosociedade civilorganizadardquo O segundo refere-se ao fato de que a ecircnfase colocada sobre sauacutedesexual e direitos sexuais e reprodutivos natildeo aparece do mesmo modo quando se| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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trata de outros temas como a violecircncia reconhecidamente uma das mais relevantescausas de morbidade e mortalidade entre homens adultos jovens23

Assim emboradiscuta e exponha extensamente os fatores considerados pela sauacutede puacuteblica como

mais relevantes agrave sauacutede masculina o documento dirige seu foco para as novastemaacuteticas da sauacutede sexual e dos direitos sexuais e reprodutivos Ateacute entatildeo pelomenos no que diz respeito a estes uacuteltimos tais temaacuteticas pareciam mais ligadas aosdiscursos feministas em torno da sauacutede da mulherAlgumas conclusotildees possiacuteveisO documento de algum modo afirma o caraacuteter ldquoinsalubrerdquo de certa masculinidadesendo os homens apresentados como viacutetimas de sua proacutepria masculinidade ouseja das crenccedilas e valores que constituiriam as ldquobarreiras socioculturaisrdquo que seantepotildeem agrave medicalizaccedilatildeo O objetivo principal do programa eacute enfraquecer aresistecircncia masculina agrave medicina de uma forma geral ou seja medicalizar oshomens24 Para tanto uma accedilatildeo educativa bem feita ldquomodernizariardquo os homensbrasileiros dissipando o pensamento maacutegico que os (des)orienta e que os tornapresas de seu proacuteprios preconceitosEntretanto a questatildeo nos parece bastante mais complexa do que imaginam osdefensores da nova poliacutetica pois essa situaccedilatildeo paradoxal dos homens em relaccedilatildeo asua proacutepria sauacutede e ao seu corpo - sua cultura somaacutetica como diria Luc Boltanski(1979) - deriva em larga medida da posiccedilatildeo que (ainda) ocupam na hierarquia degecircnero A questatildeo natildeo eacute de ldquoculturardquo portanto mas do modo como a cultura estaacuteimbricada ou implicada em relaccedilotildees de poder bem concretas que o discursovitimaacuterio e paternalista incorporado agrave nova poliacutetica contribui mais para ocultar doque revelar Para os homens articular reivindicaccedilotildees a partir de uma posiccedilatildeogenerificada e tornar-se visiacuteveis enquanto ldquohomensrdquo significa colocar-se no mesmoplano que as mulheres Perderiam assim a posiccedilatildeo de representantes universais daespeacutecie e arriscariam a perder tambeacutem suas prerrogativas na hierarquia de gecircneroTalvez seja por isso mesmo que eles natildeo o fazem natildeo havendo (ainda) organizaccedilotildeesldquomasculinistasrdquo como existem organizaccedilotildees ldquofeministasrdquoDesse modo a condiccedilatildeo para que ocorra a mudanccedila cultural necessaacuteria para

fazer com que os homens (heterossexuais) tenham uma relaccedilatildeo tatildeo reflexiva comseus proacuteprios corpos quanto seus vaacuterios ldquooutrosrdquo (mulheres homossexuais travestis)eacute que tais ldquooutrosrdquo tenham o mesmo poder e prestiacutegio que eles Tudo se passaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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como se os homens precisassem se tornar socialmente vulneraacuteveis para poderperceber sua vulnerabilidade bioloacutegica e para ver algum sentido na luta porultrapassaacute-la Dito de outro modo mostrar-se invulneraacutevel faz parte do exerciacuteciodo poder pelos homens e o poder tem um ldquopreccedilordquo (uma vida mais curta ou menossaudaacutevel) que parece os homens ainda estatildeo dispostos a pagar Diferentementedas mulheres que organizadas num amplo movimento procuraram atraveacutes depoliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas sair da posiccedilatildeo de subordinaccedilatildeo a que historicamenteestavam relegadas os homens soacute podem aparecer entatildeo como sujeitos passivosfrente agrave interpelaccedilatildeo que lhes dirigem a medicina e o Estado Acabam assimsendo retoricamente representados pelos meacutedicos sobretudo urologistas e pelosformuladores e executores de uma poliacutetica que supostamente se implanta em nomedeles mas sem sua participaccedilatildeoQuanto agrave ecircnfase dada aos direitos sexuais e reprodutivos parece-nos que taistemas tecircm uma dupla entrada no programa - atraveacutes da urologia (ou medicinasexual) e da incorporaccedilatildeo da retoacuterica de movimentos poliacuteticos organizados ASBU aparece como ator fundamental na formulaccedilatildeo da poliacutetica Como vimos oacordo de cooperaccedilatildeo teacutecnica assinado com o Ministeacuterio da Sauacutede teve como umde seus principais desdobramentos a campanha centrada na disfunccedilatildeo ereacutetil(lanccedilada antes mesmo da publicaccedilatildeo do documento) Eacute o tipo de pressatildeo quevem dos especialistas neste caso com um objetivo muito claro transformar adisfunccedilatildeo ereacutetil num problema de sauacutede puacuteblica o que eacute facilitado por doisfatores a declaraccedilatildeo do entatildeo Secretaacuterio Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede Joseacute Gomes

Temporatildeo em 200625 e a nomeaccedilatildeo de Ricardo Cavalcanti para a Coordenaccedilatildeoda Aacuterea Teacutecnica da Sauacutede do Homem Cavalcanti eacute um dos pais fundadores damoderna sexologia brasileira e embora sendo ginecologista de formaccedilatildeocertamente facilitou o diaacutelogo entre o governo e a SBU Neste caso a afirmaccedilatildeodos direitos sexuais passa pela sexologia e pela medicina sexualA leitura do documento nos leva agrave conclusatildeo de que a poliacutetica de aproximaccedilatildeocom o Ministeacuterio da Sauacutede e os formuladores de poliacuteticas puacuteblicas empreendidapela SBU foi bem-sucedida jaacute que a preocupaccedilatildeo com a sauacutede sexual (explicitadapor exemplo no objetivo de ldquoestimular implantar implementar e qualificarpessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) ultrapassa em grau deimportacircncia pelo menos no documento outros problemas possiacuteveis dentre osquais poderiacuteamos citar aleacutem da violecircncia os relacionados agrave sauacutede mental Por| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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outro lado a linguagem dos especialistas convive com uma outra tiacutepica doschamados movimentos sociais (lembremos que o documento afirma como umdos objetivos do programa ldquoincluir o enfoque de gecircnero orientaccedilatildeo sexualidentidade de gecircnero e condiccedilatildeo eacutetnico-racial nas accedilotildees educativasrdquo) produzindoum discurso hiacutebrido em que caminhos diversos parecem levar a um mesmoobjetivo final - a medicalizaccedilatildeo do corpo masculinoDe fato a presenccedila no documento do discurso dos movimentos sociaisnormalmente voltados para poliacuteticas identitaacuterias nos parece bastante forte Voltamosaqui a um trecho na introduccedilatildeo do documento segundo o qual o programa desauacutede do homem pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para o reconhecimentoe a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para que advenham sujeitosprotagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio e gozo dos direitos decidadaniardquo Isto eacute os homens devem paradoxalmente ser transformados em ldquosujeitosprotagonistas de suas demandasrdquo Atraveacutes do movimento organizado atransformaccedilatildeo das mulheres em ldquoprotagonistas de suas demandasrdquo envolveu seu

relativo ldquoempoderamentordquo No caso dos homens o ldquoprotagonismordquo implicajustamente o contraacuterio isto eacute assumir sua fragilidade e vulnerabilidade aprendendoa enunciar suas demandas Utiliza-se assim a mesma linguagem e os mesmosargumentos comumente presentes no discurso dos movimentos organizados paraefeitos aparentemente opostosNo acircmbito do documento uma das formas encontradas para lidar com esseaparente paradoxo que consiste em formular uma poliacutetica puacuteblica como se elafosse reivindicada pelos sujeitos por ela visados eacute desmembrar a categoria ldquohomemrdquoem uma seacuterie de subcategorias - iacutendios negros gays travestis portadores dedeficiecircncias trabalhadores rurais etc - que por outras razotildees satildeo historicamentemarginalizadas Ao que parece as mulheres podem formar mais facilmente umacategoria unificada mas os homens natildeo Homem pura e simplesmente semqualquer adjetivo natildeo parece ser uma identidade que se precise assumir (contra aspressotildees da sociedade) ou que se deva fortalecer ou pela qual se precise lutar Porisso talvez a necessidade de despedaccedilaacute-la num sem-nuacutemero de categorias demodo a tornar visiacutevel sua vulnerabilidade A politizaccedilatildeo e sensibilizaccedilatildeo do homemportanto tem por objetivo tornaacute-lo consciente dessa vulnerabilidade Soacute entatildeo eacutepossiacutevel medicalizaacute-lo Neste caso consciecircncia poliacutetica ldquoprotagonismordquo emedicalizaccedilatildeo aparecem como indissociaacuteveisA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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ReferecircnciasBOLTANSKI L As classes sociais e o corpo Rio de Janeiro Graal 1979BOURDIEU P O campo cientiacutefico In ORTIZ R (Org) Pierre Bourdieu Sociologia Satildeo PauloAacutetica 1983______ La domination masculine Paris Seuil 1998BRASIL Ministeacuterio da Sauacutede Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes) Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIAS Port2008PT-09-CONSpdf Acesso em maio 2009CARRARA S Tributo a Vecircnus a luta contra a siacutefilis no Brasil da passagem do seacuteculo aos anos 1940Rio de Janeiro Fiocruz 1996

______ Une science deacuterisoire Lacuteandrologie au Bregravesil entre les deux guerres Vibrant ndash VirtualBrazilian Anthropology v 1 n frac12 jan-dez 2004COSTA A M Desenvolvimento e Implantaccedilatildeo do PAISM no Brasil In GIFFIN Karen COSTAS H (Org) Questotildees da sauacutede reprodutiva Rio de Janeiro Fiocruz 1999FOUCAULT M Vigiar e punir Petroacutepolis Vozes 1977GOMES R Sexualidade masculina e sauacutede do homem proposta para uma discussatildeo CiecircnciaSauacutede Coletiva Rio de Janeiro n 8 p 825-9 2003GOMES R NASCIMENTO E F ARAUacuteJO F C Por que os homens buscam menos os serviccedilosde sauacutede do que as mulheres As explicaccedilotildees de homens com baixa escolaridade e homens comensino superior Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 23 n 3 mar 2007GOMES R NASCIMENTO E F A produccedilatildeo do conhecimento da sauacutede puacuteblica sobre arelaccedilatildeo homem-sauacutede uma revisatildeo bibliograacutefica Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 22n 5 p 901-911 maio 2006MEDRADO B LYRA J AZEVEDO M GRANJA E e VIEIRA S Princiacutepios diretrizes erecomendaccedilotildees para uma atenccedilatildeo integral aos homens na sauacutede Recife Instituto PAPAI 2009OLIVEIRA P P de A construccedilatildeo social da masculinidade Belo Horizonte UFMG 2004PEREIRA A L Accedilotildees educativas em contracepccedilatildeo teoria e praacutetica dos profissionais de sauacutede Tese(Doutorado em Sauacutede Coletiva) - Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio dejaneiro Rio de Janeiro 2008ROHDEN F Uma ciecircncia da diferenccedila sexo e gecircnero na medicina da mulher Rio de JaneiroFiocruz 2001SCHRAIBER L B GOMES R COUTO M T Homens e sauacutede na pauta da sauacutede coletivaCiecircncia e Sauacutede Coletiva v 10 n 1 p 7-17 2005| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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STOCKLE V Is Sex to Gender as Race is to Ethnicity In DEL VALLE T (Ed) GenderedAnthropology London Routledge 1993

Notas Uma primeira versatildeo deste texto foi apresentada no simpoacutesio The Future of Sexual Health SexualHealth in Public Health Policies no XIX Congresso da World Association for Sexual Health Gotemburgojunho de 2009 tendo utilizado dados colhidos na pesquisa ldquoDiferenccedilas de gecircnero na recentemedicalizaccedilatildeo do envelhecimento e sexualidade a criaccedilatildeo das categorias menopausa andropausa edisfunccedilatildeo sexualrdquo coordenada por Fabiacuteola Rohden e apoiada pelo CNPq1 A partir das reflexotildees de Michel Foucault (1977) em torno do panopticismo pode-se afirmar quedeterminados regimes de visibilidade configuram certos sujeitos que de outro modo inexistiriam ouexistiriam de modo inteiramente diferente Natildeo se trata aqui de entrarmos na polecircmica entreconstrutivismo e essencialismo ou seja de decidir se alguns sujeitos estavam sempre laacute agrave espera deserem descoberto ou se satildeo criados pela proacutepria ldquoluzrdquo que os ilumina2 Com ldquoobjetificaccedilatildeordquo natildeo nos referimos aqui a um processo de negaccedilatildeo aos homens de seu estatuto de

pessoa humana mas ao processo de instituiccedilatildeo de certos temas problemas ou sujeitos como objetoslegiacutetimos de conhecimento em determinado campo cientiacutefico conforme formulado originalmente porPierre Bourdieu (1983)3 A partir dos anos 1990 esse processo vem sendo acompanhado pela progressiva transformaccedilatildeo doshomens e da masculinidade em objeto de conhecimento tambeacutem das ciecircncias sociais configurandonovas aacutereas de conhecimento como os chamados ldquomenrsquos studiesrdquo Para isso ver entre outros Oliveira(2004)4 Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIASPort2008PT-09-CONSpdf (acessoem maio 2009)5 Eacute importante destacar que Joseacute Gomes Temporatildeo em 2006 quando ainda era Secretaacuterio Nacionalde Atenccedilatildeo agrave Sauacutede no Ministeacuterio da Sauacutede tentou criar centros de atenccedilatildeo agrave sauacutede no setor privadopara melhorar a assistecircncia agrave sauacutede do homem Em declaraccedilatildeo publicada no jornal O Estado de SatildeoPaulo em janeiro de 2006 Temporatildeo afirmou que o Ministeacuterio da Sauacutede estava analisando a possibilidadede oferecer tratamento para a disfunccedilatildeo ereacutetil atraveacutes da rede puacuteblica incluindo a distribuiccedilatildeo demedicamentos O governo estaria examinando o impacto financeiro de tal medida6 Ao que parece havia no acircmbito do MS desde 2006 uma Coordenaccedilatildeo de Sauacutede do Homem7 Nove meses depois foi substituiacutedo pelo Dr Baldur Schubert um assessor da sua equipe especialistaem seguridade social e sauacutede do trabalho8 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)9 Respectivamente Conselho Nacional de Secretaacuterios de Sauacutede e Conselho Nacional de SecretaacuteriosMunicipais de SauacutedeA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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10 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)11 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrpdf2008_saudehomempdf (acesso em maio 2009)12 Para a discussatildeo sobre a dominaccedilatildeo masculina ver Bourdieu (1998)13 Tais foacuteruns vecircm sendo organizados anualmente pela Comissatildeo de Seguridade Social e Famiacutelia daCacircmara dos Deputados em parceria com a SBU14 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrimagesfolder_noticiajpg (acesso em maio 2009)15 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)16 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)17 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)18 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)19 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)20 O documento passou por uma consulta puacuteblica e foi aprovado pelo Conselho Nacional de Sauacutede emjulho de 200921 O documento lanccedila matildeo de trabalhos importantes que no campo da sauacutede vecircm discutindo amasculinidade como Gomes (2003) Gomes e Nascimento (2006) Gomes et al (2007) Schraiber etal (2005)22 Lemos no documento que ldquoos indicadores apresentados visam a oferecer uma visatildeo ampliada doprocesso de adoecimento e de vulnerabilidade e agravos agrave sauacutede na populaccedilatildeo de homensrdquo (PNAISH2008 p 11)23 Esse aspecto foi tambeacutem destacado em reaccedilatildeo agraves diretrizes do Programa expressa em ldquodocumentomarcordquoproduzido por iniciativa de importantes organizaccedilotildees natildeo-governamentais brasileiras que haacute

muitos anos trabalham com o tema das masculinidades O texto aborda o Programa com base em umaleitura feminista de gecircnero Aleacutem de criticar a centralidade assumida pelas doenccedilas do aparelhogeniturinaacuterio na nova poliacutetica enfatiza-se tambeacutem a relativa desvalorizaccedilatildeo da promoccedilatildeo agrave sauacutede emfavor da oferta de serviccedilos de assistecircncia (MEDRADO et al 2009)24 Eacute interessante pensar como esse movimento vai de encontro agrave luta feminista contra a medicalizaccedilatildeodo corpo feminino25 Ver nota 2| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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Page 12: Saúde do Homem

de simpoacutesios e Foacuteruns quanto agrave importacircncia da inclusatildeo de projetos especiacuteficosvoltados para o gecircnero masculino Estamos felizes com o lanccedilamento desta poliacuteticapelo Governo Federal Dentre todas as especialidades eacute inegaacutevel que a Urologiaguarda uma estreita poreacutem natildeo exclusiva relaccedilatildeo com o homem Iniciaremos umoutro ciclo que eacute o plano de accedilatildeo desta poliacutetica nos estados e municiacutepios e aimportacircncia que os gestores daratildeo a estas accedilotildees O homem brasileiro agradece(grifo nosso)18

Finalmente em 28 de agosto de 2009 no auditoacuterio da Organizaccedilatildeo Pan-Americana de Sauacutede em Brasiacutelia o Ministeacuterio da Sauacutede lanccedila oficialmente a PoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem Em seu discurso o ministroressaltaria a importacircncia da Sociedade Brasileira de Urologia na construccedilatildeo danova poliacutetica que conforme declara o presidente da SBU ldquovaloriza o homembrasileiro fortalece a atividade uroloacutegica e o urologista no Sistema Uacutenico de Sauacutederdquo19

Salvar os homens de si mesmos o documento ldquoPoliacuteticaNacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes)rdquoComo dito acima em agosto de 2008 o Departamento de Accedilotildees Programaacuteticas eEstrateacutegicas ao qual se subordina a Aacuterea Teacutecnica de Sauacutede do Homem lanccedilou aprimeira versatildeo do documento ldquoPoliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede doHomem (princiacutepios e diretrizes)rdquo20 O documento eacute apresentado como fruto deuma parceria entre gestores do SUS sociedades cientiacuteficas sociedade civilorganizada pesquisadores acadecircmicos e agecircncias de cooperaccedilatildeo internacional Aindana apresentaccedilatildeo lemos que a sauacutede do homem eacute uma das prioridades do governoe que a poliacutetica a ser implementada traduziria ldquoum longo anseio da sociedade aoA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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reconhecer que os agravos do sexo masculino constituem verdadeiros problemasde sauacutede puacuteblicardquo (PNAISH 2008 p 3)Segundo o documento estudos comparativos tecircm demonstrado que os homenssatildeo mais vulneraacuteveis a doenccedilas do que as mulheres especialmente agraves enfermidadescrocircnicas e graves e que morrem mais cedo Apesar deste fato jaacute bem documentadoos homens natildeo satildeo captados pelos serviccedilos de atenccedilatildeo primaacuteria (como ocorre com

as mulheres) Sua entrada no sistema de sauacutede se daria principalmente pela atenccedilatildeoambulatorial e hospitalar de meacutedia e alta complexidades configurando um perfilque favorece o agravo da morbidade pela busca tardia ao atendimentoPara explicar a ldquoresistecircncia masculina agrave atenccedilatildeo primaacuteriardquo o texto lanccedila matildeo depesquisas qualitativas21 que apontam diversas razotildees para o fenocircmeno agrupadasem dois tipos de determinantes ldquobarreiras institucionaisrdquo e ldquobarreirassocioculturaisrdquo As ldquobarreiras institucionaisrdquo dizem respeito agrave dificuldade de acessoaos serviccedilos assistenciais e satildeo tratadas de forma bastante breve O documentoenfatiza as chamadas ldquovariaacuteveis culturaisrdquoestereoacutetipos de gecircnero enraizados haacute seacuteculos na cultura patriarcal produzempraacuteticas baseadas em crenccedilas e valores do que eacute ser masculino A doenccedila eacuteconsiderada um sinal de fragilidade que os homens natildeo reconhecem como inerentesagrave sua proacutepria condiccedilatildeo bioloacutegica O homem se julga invulneraacutevel o que acaba porcontribuir para que ele cuide menos de si mesmo e se exponha mais agraves situaccedilotildeesde risco (PNAISH 2008 p 6)Mais abaixo lecirc-seAinda que o conceito de masculinidade venha sendo atualmente contestado e tenhaperdido seu rigor original na dinacircmica do processo cultural [] a concepccedilatildeo aindaprevalente e hegemocircnica de masculinidade eacute o eixo estruturante pela natildeo-procuraaos serviccedilos de sauacutede (Idem)Uma vez explicitadas o que satildeo as ldquovariaacuteveis culturaisrdquo o documento afirma queo grande desafio de uma poliacutetica voltada para os homens eacute mobilizar a ldquopopulaccedilatildeomasculina brasileira para a luta pela garantia de seu direito social agrave sauacutederdquo Paratanto a poliacutetica em questatildeo pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para oreconhecimento e a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para queadvenham sujeitos protagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio egozo dos direitos de cidadaniardquo (PNAISH 2008 p 7)| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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No item ldquoMetodologia de construccedilatildeo da poliacuteticardquo o texto afirma que a ideiacentral do documento foi desenvolvida de modo articulado com a Poliacutetica Nacionalde Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher ldquorecuperando experiecircncias e conhecimentosproduzidos naquela aacuterea promovendo accedilotildees futuras em consonacircncia tanto emprinciacutepios como em praacuteticasrdquo (PNAISH 2008 p 9) Esta articulaccedilatildeo com a poliacuteticavoltada para as mulheres seraacute objeto de discussatildeo mais adianteO item do documento intitulado ldquoDiagnoacutesticordquo eacute bastante extenso e como o

nome indica procura oferecer um quadro amplo acerca dos agravos agrave sauacutedemasculina22 percorrendo temas como violecircncia alcoolismo e tabagismo indicadoresde mortalidade e de morbidade Aleacutem dessas temaacuteticas nas quais reconhecemos alinguagem mais tradicional da epidemiologia e da sauacutede puacuteblica encontramosoutros temas que embora possam ser vistos como parte do campo da sauacutede nosentido lato extrapolam seus limites uma vez que tecircm ressonacircncias mais claramentepoliacuteticas eou juriacutedicas ldquoadolescecircncia e velhicerdquo e ldquodireitos sexuais e reprodutivosrdquoLogo na introduccedilatildeo desse item lemos queOs temas mais recorrentes no estudo sobre a sauacutede do homem podem se estruturarem torno de trecircs eixos violecircncia tendecircncia agrave exposiccedilatildeo a riscos com consequecircncianos indicadores de morbi-mortalidade e sauacutede sexual e reprodutiva (PNAISH2008 p 11)Como veremos adiante dentre esses trecircs eixos o terceiro - sauacutede sexual ereprodutiva - seraacute enfatizado em detrimento dos demais embora na apresentaccedilatildeodos diversos subitens de que trata o item ldquoDiagnoacutesticordquo os dois primeiros eixossejam mais extensamente tratados com a apresentaccedilatildeo de um conjunto expressivode dados e argumentos O subitem ldquoDireitos sexuais e reprodutivosrdquo ao contraacuteriodos demais natildeo traz dados sobre agravos ou ameaccedilas agrave sauacutede sexual e reprodutivamas expotildee uma espeacutecie de agenda poliacutetica afirmando a necessidade da implementaccedilatildeodos direitos sexuais e reprodutivos dos homens A linguagem dos direitos se impotildeee a categoria ldquosauacutederdquo natildeo eacute mencionada O documento afirma por exemplo que eacutenecessaacuterio ldquosuperar a restriccedilatildeo da responsabilidade sobre as praacuteticas contraceptivas agravesmulheresrdquo de modo a assegurar aos homens ldquoo direito agrave participaccedilatildeo no planejamentoreprodutivordquo a paternidade devendo ser vista como ldquoum direito do homem a participarde todo o processo desde a decisatildeo de ter ou natildeo filhos como e quando tecirc-los bemcomo do acompanhamento da gravidez do parto do poacutes-parto e da educaccedilatildeo dacrianccedilardquo (PNAISH 2008 p 20) Eacute curiosa essa formulaccedilatildeo uma vez que a demandaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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pela participaccedilatildeo masculina nas decisotildees reprodutivas eacute uma bandeira do movimento

feminista Normalmente tal participaccedilatildeo aparece como exigecircncia das mulherescomo um dever do qual o homem tende a escapar No documento o que antes eraconsiderado um dever se transforma em direitoA insistecircncia na temaacutetica da sauacutede sexual e reprodutiva atravessa o documentoe surge com forccedila no item ldquoObjetivosrdquo Satildeo trecircs os objetivos especiacuteficos listados(1) Organizar implantar qualificar e humanizar em todo territoacuterio brasileiro aatenccedilatildeo integral a sauacutede do homem dentro dos princiacutepios que regem o SistemaUacutenico de Sauacutede(2) Estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeo da assistecircncia em sauacutede sexual ereprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede(3) Ampliar atraveacutes da educaccedilatildeo o acesso dos homens agraves informaccedilotildees sobre asmedidas preventivas contra os agravos e enfermidades que atingem a populaccedilatildeomasculina destacando seus direitos sexuais e reprodutivos (PNAISH 2008 p 39grifos nossos)O segundo dos objetivos especiacuteficos - estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeoda assistecircncia em sauacutede sexual e reprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede -tem uma extensa lista de subitens Dentre estes aleacutem de metas mais tradicionaisrelativas ao planejamento reprodutivo masculino contracepccedilatildeo ciruacutergica voluntaacuteriae prevenccedilatildeo de DSTAids encontramos os seguintes objetivos- estimular implantar implementar e qualificar pessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildeessexuais masculinas- promover a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem nas populaccedilotildees indiacutegenas negrasquilombolas gays bissexuais travestis transexuais trabalhadores rurais homenscom deficiecircncia em situaccedilatildeo de risco em situaccedilatildeo carceraacuteria desenvolvendoestrateacutegias voltadas para a promoccedilatildeo da equidade para distintos grupos sociais- associar as accedilotildees governamentais com as da sociedade civil organizada paraefetivar a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem com protagonismo social na enunciaccedilatildeodas reais condiccedilotildees de sauacutede da populaccedilatildeo heterogecircnea de homens (PNAISH2008 p 39)Destacamos aqui dois pontos que comentaremos mais adiante nas conclusotildeesO primeiro diz respeito agrave associaccedilatildeo entre o discurso da SBU (presente na ideia deldquoatenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) e o dos movimentos da ldquosociedade civilorganizadardquo O segundo refere-se ao fato de que a ecircnfase colocada sobre sauacutedesexual e direitos sexuais e reprodutivos natildeo aparece do mesmo modo quando se| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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trata de outros temas como a violecircncia reconhecidamente uma das mais relevantescausas de morbidade e mortalidade entre homens adultos jovens23

Assim emboradiscuta e exponha extensamente os fatores considerados pela sauacutede puacuteblica como

mais relevantes agrave sauacutede masculina o documento dirige seu foco para as novastemaacuteticas da sauacutede sexual e dos direitos sexuais e reprodutivos Ateacute entatildeo pelomenos no que diz respeito a estes uacuteltimos tais temaacuteticas pareciam mais ligadas aosdiscursos feministas em torno da sauacutede da mulherAlgumas conclusotildees possiacuteveisO documento de algum modo afirma o caraacuteter ldquoinsalubrerdquo de certa masculinidadesendo os homens apresentados como viacutetimas de sua proacutepria masculinidade ouseja das crenccedilas e valores que constituiriam as ldquobarreiras socioculturaisrdquo que seantepotildeem agrave medicalizaccedilatildeo O objetivo principal do programa eacute enfraquecer aresistecircncia masculina agrave medicina de uma forma geral ou seja medicalizar oshomens24 Para tanto uma accedilatildeo educativa bem feita ldquomodernizariardquo os homensbrasileiros dissipando o pensamento maacutegico que os (des)orienta e que os tornapresas de seu proacuteprios preconceitosEntretanto a questatildeo nos parece bastante mais complexa do que imaginam osdefensores da nova poliacutetica pois essa situaccedilatildeo paradoxal dos homens em relaccedilatildeo asua proacutepria sauacutede e ao seu corpo - sua cultura somaacutetica como diria Luc Boltanski(1979) - deriva em larga medida da posiccedilatildeo que (ainda) ocupam na hierarquia degecircnero A questatildeo natildeo eacute de ldquoculturardquo portanto mas do modo como a cultura estaacuteimbricada ou implicada em relaccedilotildees de poder bem concretas que o discursovitimaacuterio e paternalista incorporado agrave nova poliacutetica contribui mais para ocultar doque revelar Para os homens articular reivindicaccedilotildees a partir de uma posiccedilatildeogenerificada e tornar-se visiacuteveis enquanto ldquohomensrdquo significa colocar-se no mesmoplano que as mulheres Perderiam assim a posiccedilatildeo de representantes universais daespeacutecie e arriscariam a perder tambeacutem suas prerrogativas na hierarquia de gecircneroTalvez seja por isso mesmo que eles natildeo o fazem natildeo havendo (ainda) organizaccedilotildeesldquomasculinistasrdquo como existem organizaccedilotildees ldquofeministasrdquoDesse modo a condiccedilatildeo para que ocorra a mudanccedila cultural necessaacuteria para

fazer com que os homens (heterossexuais) tenham uma relaccedilatildeo tatildeo reflexiva comseus proacuteprios corpos quanto seus vaacuterios ldquooutrosrdquo (mulheres homossexuais travestis)eacute que tais ldquooutrosrdquo tenham o mesmo poder e prestiacutegio que eles Tudo se passaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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como se os homens precisassem se tornar socialmente vulneraacuteveis para poderperceber sua vulnerabilidade bioloacutegica e para ver algum sentido na luta porultrapassaacute-la Dito de outro modo mostrar-se invulneraacutevel faz parte do exerciacuteciodo poder pelos homens e o poder tem um ldquopreccedilordquo (uma vida mais curta ou menossaudaacutevel) que parece os homens ainda estatildeo dispostos a pagar Diferentementedas mulheres que organizadas num amplo movimento procuraram atraveacutes depoliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas sair da posiccedilatildeo de subordinaccedilatildeo a que historicamenteestavam relegadas os homens soacute podem aparecer entatildeo como sujeitos passivosfrente agrave interpelaccedilatildeo que lhes dirigem a medicina e o Estado Acabam assimsendo retoricamente representados pelos meacutedicos sobretudo urologistas e pelosformuladores e executores de uma poliacutetica que supostamente se implanta em nomedeles mas sem sua participaccedilatildeoQuanto agrave ecircnfase dada aos direitos sexuais e reprodutivos parece-nos que taistemas tecircm uma dupla entrada no programa - atraveacutes da urologia (ou medicinasexual) e da incorporaccedilatildeo da retoacuterica de movimentos poliacuteticos organizados ASBU aparece como ator fundamental na formulaccedilatildeo da poliacutetica Como vimos oacordo de cooperaccedilatildeo teacutecnica assinado com o Ministeacuterio da Sauacutede teve como umde seus principais desdobramentos a campanha centrada na disfunccedilatildeo ereacutetil(lanccedilada antes mesmo da publicaccedilatildeo do documento) Eacute o tipo de pressatildeo quevem dos especialistas neste caso com um objetivo muito claro transformar adisfunccedilatildeo ereacutetil num problema de sauacutede puacuteblica o que eacute facilitado por doisfatores a declaraccedilatildeo do entatildeo Secretaacuterio Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede Joseacute Gomes

Temporatildeo em 200625 e a nomeaccedilatildeo de Ricardo Cavalcanti para a Coordenaccedilatildeoda Aacuterea Teacutecnica da Sauacutede do Homem Cavalcanti eacute um dos pais fundadores damoderna sexologia brasileira e embora sendo ginecologista de formaccedilatildeocertamente facilitou o diaacutelogo entre o governo e a SBU Neste caso a afirmaccedilatildeodos direitos sexuais passa pela sexologia e pela medicina sexualA leitura do documento nos leva agrave conclusatildeo de que a poliacutetica de aproximaccedilatildeocom o Ministeacuterio da Sauacutede e os formuladores de poliacuteticas puacuteblicas empreendidapela SBU foi bem-sucedida jaacute que a preocupaccedilatildeo com a sauacutede sexual (explicitadapor exemplo no objetivo de ldquoestimular implantar implementar e qualificarpessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) ultrapassa em grau deimportacircncia pelo menos no documento outros problemas possiacuteveis dentre osquais poderiacuteamos citar aleacutem da violecircncia os relacionados agrave sauacutede mental Por| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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outro lado a linguagem dos especialistas convive com uma outra tiacutepica doschamados movimentos sociais (lembremos que o documento afirma como umdos objetivos do programa ldquoincluir o enfoque de gecircnero orientaccedilatildeo sexualidentidade de gecircnero e condiccedilatildeo eacutetnico-racial nas accedilotildees educativasrdquo) produzindoum discurso hiacutebrido em que caminhos diversos parecem levar a um mesmoobjetivo final - a medicalizaccedilatildeo do corpo masculinoDe fato a presenccedila no documento do discurso dos movimentos sociaisnormalmente voltados para poliacuteticas identitaacuterias nos parece bastante forte Voltamosaqui a um trecho na introduccedilatildeo do documento segundo o qual o programa desauacutede do homem pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para o reconhecimentoe a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para que advenham sujeitosprotagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio e gozo dos direitos decidadaniardquo Isto eacute os homens devem paradoxalmente ser transformados em ldquosujeitosprotagonistas de suas demandasrdquo Atraveacutes do movimento organizado atransformaccedilatildeo das mulheres em ldquoprotagonistas de suas demandasrdquo envolveu seu

relativo ldquoempoderamentordquo No caso dos homens o ldquoprotagonismordquo implicajustamente o contraacuterio isto eacute assumir sua fragilidade e vulnerabilidade aprendendoa enunciar suas demandas Utiliza-se assim a mesma linguagem e os mesmosargumentos comumente presentes no discurso dos movimentos organizados paraefeitos aparentemente opostosNo acircmbito do documento uma das formas encontradas para lidar com esseaparente paradoxo que consiste em formular uma poliacutetica puacuteblica como se elafosse reivindicada pelos sujeitos por ela visados eacute desmembrar a categoria ldquohomemrdquoem uma seacuterie de subcategorias - iacutendios negros gays travestis portadores dedeficiecircncias trabalhadores rurais etc - que por outras razotildees satildeo historicamentemarginalizadas Ao que parece as mulheres podem formar mais facilmente umacategoria unificada mas os homens natildeo Homem pura e simplesmente semqualquer adjetivo natildeo parece ser uma identidade que se precise assumir (contra aspressotildees da sociedade) ou que se deva fortalecer ou pela qual se precise lutar Porisso talvez a necessidade de despedaccedilaacute-la num sem-nuacutemero de categorias demodo a tornar visiacutevel sua vulnerabilidade A politizaccedilatildeo e sensibilizaccedilatildeo do homemportanto tem por objetivo tornaacute-lo consciente dessa vulnerabilidade Soacute entatildeo eacutepossiacutevel medicalizaacute-lo Neste caso consciecircncia poliacutetica ldquoprotagonismordquo emedicalizaccedilatildeo aparecem como indissociaacuteveisA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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ReferecircnciasBOLTANSKI L As classes sociais e o corpo Rio de Janeiro Graal 1979BOURDIEU P O campo cientiacutefico In ORTIZ R (Org) Pierre Bourdieu Sociologia Satildeo PauloAacutetica 1983______ La domination masculine Paris Seuil 1998BRASIL Ministeacuterio da Sauacutede Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes) Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIAS Port2008PT-09-CONSpdf Acesso em maio 2009CARRARA S Tributo a Vecircnus a luta contra a siacutefilis no Brasil da passagem do seacuteculo aos anos 1940Rio de Janeiro Fiocruz 1996

______ Une science deacuterisoire Lacuteandrologie au Bregravesil entre les deux guerres Vibrant ndash VirtualBrazilian Anthropology v 1 n frac12 jan-dez 2004COSTA A M Desenvolvimento e Implantaccedilatildeo do PAISM no Brasil In GIFFIN Karen COSTAS H (Org) Questotildees da sauacutede reprodutiva Rio de Janeiro Fiocruz 1999FOUCAULT M Vigiar e punir Petroacutepolis Vozes 1977GOMES R Sexualidade masculina e sauacutede do homem proposta para uma discussatildeo CiecircnciaSauacutede Coletiva Rio de Janeiro n 8 p 825-9 2003GOMES R NASCIMENTO E F ARAUacuteJO F C Por que os homens buscam menos os serviccedilosde sauacutede do que as mulheres As explicaccedilotildees de homens com baixa escolaridade e homens comensino superior Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 23 n 3 mar 2007GOMES R NASCIMENTO E F A produccedilatildeo do conhecimento da sauacutede puacuteblica sobre arelaccedilatildeo homem-sauacutede uma revisatildeo bibliograacutefica Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 22n 5 p 901-911 maio 2006MEDRADO B LYRA J AZEVEDO M GRANJA E e VIEIRA S Princiacutepios diretrizes erecomendaccedilotildees para uma atenccedilatildeo integral aos homens na sauacutede Recife Instituto PAPAI 2009OLIVEIRA P P de A construccedilatildeo social da masculinidade Belo Horizonte UFMG 2004PEREIRA A L Accedilotildees educativas em contracepccedilatildeo teoria e praacutetica dos profissionais de sauacutede Tese(Doutorado em Sauacutede Coletiva) - Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio dejaneiro Rio de Janeiro 2008ROHDEN F Uma ciecircncia da diferenccedila sexo e gecircnero na medicina da mulher Rio de JaneiroFiocruz 2001SCHRAIBER L B GOMES R COUTO M T Homens e sauacutede na pauta da sauacutede coletivaCiecircncia e Sauacutede Coletiva v 10 n 1 p 7-17 2005| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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STOCKLE V Is Sex to Gender as Race is to Ethnicity In DEL VALLE T (Ed) GenderedAnthropology London Routledge 1993

Notas Uma primeira versatildeo deste texto foi apresentada no simpoacutesio The Future of Sexual Health SexualHealth in Public Health Policies no XIX Congresso da World Association for Sexual Health Gotemburgojunho de 2009 tendo utilizado dados colhidos na pesquisa ldquoDiferenccedilas de gecircnero na recentemedicalizaccedilatildeo do envelhecimento e sexualidade a criaccedilatildeo das categorias menopausa andropausa edisfunccedilatildeo sexualrdquo coordenada por Fabiacuteola Rohden e apoiada pelo CNPq1 A partir das reflexotildees de Michel Foucault (1977) em torno do panopticismo pode-se afirmar quedeterminados regimes de visibilidade configuram certos sujeitos que de outro modo inexistiriam ouexistiriam de modo inteiramente diferente Natildeo se trata aqui de entrarmos na polecircmica entreconstrutivismo e essencialismo ou seja de decidir se alguns sujeitos estavam sempre laacute agrave espera deserem descoberto ou se satildeo criados pela proacutepria ldquoluzrdquo que os ilumina2 Com ldquoobjetificaccedilatildeordquo natildeo nos referimos aqui a um processo de negaccedilatildeo aos homens de seu estatuto de

pessoa humana mas ao processo de instituiccedilatildeo de certos temas problemas ou sujeitos como objetoslegiacutetimos de conhecimento em determinado campo cientiacutefico conforme formulado originalmente porPierre Bourdieu (1983)3 A partir dos anos 1990 esse processo vem sendo acompanhado pela progressiva transformaccedilatildeo doshomens e da masculinidade em objeto de conhecimento tambeacutem das ciecircncias sociais configurandonovas aacutereas de conhecimento como os chamados ldquomenrsquos studiesrdquo Para isso ver entre outros Oliveira(2004)4 Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIASPort2008PT-09-CONSpdf (acessoem maio 2009)5 Eacute importante destacar que Joseacute Gomes Temporatildeo em 2006 quando ainda era Secretaacuterio Nacionalde Atenccedilatildeo agrave Sauacutede no Ministeacuterio da Sauacutede tentou criar centros de atenccedilatildeo agrave sauacutede no setor privadopara melhorar a assistecircncia agrave sauacutede do homem Em declaraccedilatildeo publicada no jornal O Estado de SatildeoPaulo em janeiro de 2006 Temporatildeo afirmou que o Ministeacuterio da Sauacutede estava analisando a possibilidadede oferecer tratamento para a disfunccedilatildeo ereacutetil atraveacutes da rede puacuteblica incluindo a distribuiccedilatildeo demedicamentos O governo estaria examinando o impacto financeiro de tal medida6 Ao que parece havia no acircmbito do MS desde 2006 uma Coordenaccedilatildeo de Sauacutede do Homem7 Nove meses depois foi substituiacutedo pelo Dr Baldur Schubert um assessor da sua equipe especialistaem seguridade social e sauacutede do trabalho8 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)9 Respectivamente Conselho Nacional de Secretaacuterios de Sauacutede e Conselho Nacional de SecretaacuteriosMunicipais de SauacutedeA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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10 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)11 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrpdf2008_saudehomempdf (acesso em maio 2009)12 Para a discussatildeo sobre a dominaccedilatildeo masculina ver Bourdieu (1998)13 Tais foacuteruns vecircm sendo organizados anualmente pela Comissatildeo de Seguridade Social e Famiacutelia daCacircmara dos Deputados em parceria com a SBU14 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrimagesfolder_noticiajpg (acesso em maio 2009)15 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)16 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)17 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)18 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)19 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)20 O documento passou por uma consulta puacuteblica e foi aprovado pelo Conselho Nacional de Sauacutede emjulho de 200921 O documento lanccedila matildeo de trabalhos importantes que no campo da sauacutede vecircm discutindo amasculinidade como Gomes (2003) Gomes e Nascimento (2006) Gomes et al (2007) Schraiber etal (2005)22 Lemos no documento que ldquoos indicadores apresentados visam a oferecer uma visatildeo ampliada doprocesso de adoecimento e de vulnerabilidade e agravos agrave sauacutede na populaccedilatildeo de homensrdquo (PNAISH2008 p 11)23 Esse aspecto foi tambeacutem destacado em reaccedilatildeo agraves diretrizes do Programa expressa em ldquodocumentomarcordquoproduzido por iniciativa de importantes organizaccedilotildees natildeo-governamentais brasileiras que haacute

muitos anos trabalham com o tema das masculinidades O texto aborda o Programa com base em umaleitura feminista de gecircnero Aleacutem de criticar a centralidade assumida pelas doenccedilas do aparelhogeniturinaacuterio na nova poliacutetica enfatiza-se tambeacutem a relativa desvalorizaccedilatildeo da promoccedilatildeo agrave sauacutede emfavor da oferta de serviccedilos de assistecircncia (MEDRADO et al 2009)24 Eacute interessante pensar como esse movimento vai de encontro agrave luta feminista contra a medicalizaccedilatildeodo corpo feminino25 Ver nota 2| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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Page 13: Saúde do Homem

as mulheres) Sua entrada no sistema de sauacutede se daria principalmente pela atenccedilatildeoambulatorial e hospitalar de meacutedia e alta complexidades configurando um perfilque favorece o agravo da morbidade pela busca tardia ao atendimentoPara explicar a ldquoresistecircncia masculina agrave atenccedilatildeo primaacuteriardquo o texto lanccedila matildeo depesquisas qualitativas21 que apontam diversas razotildees para o fenocircmeno agrupadasem dois tipos de determinantes ldquobarreiras institucionaisrdquo e ldquobarreirassocioculturaisrdquo As ldquobarreiras institucionaisrdquo dizem respeito agrave dificuldade de acessoaos serviccedilos assistenciais e satildeo tratadas de forma bastante breve O documentoenfatiza as chamadas ldquovariaacuteveis culturaisrdquoestereoacutetipos de gecircnero enraizados haacute seacuteculos na cultura patriarcal produzempraacuteticas baseadas em crenccedilas e valores do que eacute ser masculino A doenccedila eacuteconsiderada um sinal de fragilidade que os homens natildeo reconhecem como inerentesagrave sua proacutepria condiccedilatildeo bioloacutegica O homem se julga invulneraacutevel o que acaba porcontribuir para que ele cuide menos de si mesmo e se exponha mais agraves situaccedilotildeesde risco (PNAISH 2008 p 6)Mais abaixo lecirc-seAinda que o conceito de masculinidade venha sendo atualmente contestado e tenhaperdido seu rigor original na dinacircmica do processo cultural [] a concepccedilatildeo aindaprevalente e hegemocircnica de masculinidade eacute o eixo estruturante pela natildeo-procuraaos serviccedilos de sauacutede (Idem)Uma vez explicitadas o que satildeo as ldquovariaacuteveis culturaisrdquo o documento afirma queo grande desafio de uma poliacutetica voltada para os homens eacute mobilizar a ldquopopulaccedilatildeomasculina brasileira para a luta pela garantia de seu direito social agrave sauacutederdquo Paratanto a poliacutetica em questatildeo pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para oreconhecimento e a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para queadvenham sujeitos protagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio egozo dos direitos de cidadaniardquo (PNAISH 2008 p 7)| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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No item ldquoMetodologia de construccedilatildeo da poliacuteticardquo o texto afirma que a ideiacentral do documento foi desenvolvida de modo articulado com a Poliacutetica Nacionalde Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Mulher ldquorecuperando experiecircncias e conhecimentosproduzidos naquela aacuterea promovendo accedilotildees futuras em consonacircncia tanto emprinciacutepios como em praacuteticasrdquo (PNAISH 2008 p 9) Esta articulaccedilatildeo com a poliacuteticavoltada para as mulheres seraacute objeto de discussatildeo mais adianteO item do documento intitulado ldquoDiagnoacutesticordquo eacute bastante extenso e como o

nome indica procura oferecer um quadro amplo acerca dos agravos agrave sauacutedemasculina22 percorrendo temas como violecircncia alcoolismo e tabagismo indicadoresde mortalidade e de morbidade Aleacutem dessas temaacuteticas nas quais reconhecemos alinguagem mais tradicional da epidemiologia e da sauacutede puacuteblica encontramosoutros temas que embora possam ser vistos como parte do campo da sauacutede nosentido lato extrapolam seus limites uma vez que tecircm ressonacircncias mais claramentepoliacuteticas eou juriacutedicas ldquoadolescecircncia e velhicerdquo e ldquodireitos sexuais e reprodutivosrdquoLogo na introduccedilatildeo desse item lemos queOs temas mais recorrentes no estudo sobre a sauacutede do homem podem se estruturarem torno de trecircs eixos violecircncia tendecircncia agrave exposiccedilatildeo a riscos com consequecircncianos indicadores de morbi-mortalidade e sauacutede sexual e reprodutiva (PNAISH2008 p 11)Como veremos adiante dentre esses trecircs eixos o terceiro - sauacutede sexual ereprodutiva - seraacute enfatizado em detrimento dos demais embora na apresentaccedilatildeodos diversos subitens de que trata o item ldquoDiagnoacutesticordquo os dois primeiros eixossejam mais extensamente tratados com a apresentaccedilatildeo de um conjunto expressivode dados e argumentos O subitem ldquoDireitos sexuais e reprodutivosrdquo ao contraacuteriodos demais natildeo traz dados sobre agravos ou ameaccedilas agrave sauacutede sexual e reprodutivamas expotildee uma espeacutecie de agenda poliacutetica afirmando a necessidade da implementaccedilatildeodos direitos sexuais e reprodutivos dos homens A linguagem dos direitos se impotildeee a categoria ldquosauacutederdquo natildeo eacute mencionada O documento afirma por exemplo que eacutenecessaacuterio ldquosuperar a restriccedilatildeo da responsabilidade sobre as praacuteticas contraceptivas agravesmulheresrdquo de modo a assegurar aos homens ldquoo direito agrave participaccedilatildeo no planejamentoreprodutivordquo a paternidade devendo ser vista como ldquoum direito do homem a participarde todo o processo desde a decisatildeo de ter ou natildeo filhos como e quando tecirc-los bemcomo do acompanhamento da gravidez do parto do poacutes-parto e da educaccedilatildeo dacrianccedilardquo (PNAISH 2008 p 20) Eacute curiosa essa formulaccedilatildeo uma vez que a demandaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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pela participaccedilatildeo masculina nas decisotildees reprodutivas eacute uma bandeira do movimento

feminista Normalmente tal participaccedilatildeo aparece como exigecircncia das mulherescomo um dever do qual o homem tende a escapar No documento o que antes eraconsiderado um dever se transforma em direitoA insistecircncia na temaacutetica da sauacutede sexual e reprodutiva atravessa o documentoe surge com forccedila no item ldquoObjetivosrdquo Satildeo trecircs os objetivos especiacuteficos listados(1) Organizar implantar qualificar e humanizar em todo territoacuterio brasileiro aatenccedilatildeo integral a sauacutede do homem dentro dos princiacutepios que regem o SistemaUacutenico de Sauacutede(2) Estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeo da assistecircncia em sauacutede sexual ereprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede(3) Ampliar atraveacutes da educaccedilatildeo o acesso dos homens agraves informaccedilotildees sobre asmedidas preventivas contra os agravos e enfermidades que atingem a populaccedilatildeomasculina destacando seus direitos sexuais e reprodutivos (PNAISH 2008 p 39grifos nossos)O segundo dos objetivos especiacuteficos - estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeoda assistecircncia em sauacutede sexual e reprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede -tem uma extensa lista de subitens Dentre estes aleacutem de metas mais tradicionaisrelativas ao planejamento reprodutivo masculino contracepccedilatildeo ciruacutergica voluntaacuteriae prevenccedilatildeo de DSTAids encontramos os seguintes objetivos- estimular implantar implementar e qualificar pessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildeessexuais masculinas- promover a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem nas populaccedilotildees indiacutegenas negrasquilombolas gays bissexuais travestis transexuais trabalhadores rurais homenscom deficiecircncia em situaccedilatildeo de risco em situaccedilatildeo carceraacuteria desenvolvendoestrateacutegias voltadas para a promoccedilatildeo da equidade para distintos grupos sociais- associar as accedilotildees governamentais com as da sociedade civil organizada paraefetivar a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem com protagonismo social na enunciaccedilatildeodas reais condiccedilotildees de sauacutede da populaccedilatildeo heterogecircnea de homens (PNAISH2008 p 39)Destacamos aqui dois pontos que comentaremos mais adiante nas conclusotildeesO primeiro diz respeito agrave associaccedilatildeo entre o discurso da SBU (presente na ideia deldquoatenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) e o dos movimentos da ldquosociedade civilorganizadardquo O segundo refere-se ao fato de que a ecircnfase colocada sobre sauacutedesexual e direitos sexuais e reprodutivos natildeo aparece do mesmo modo quando se| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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trata de outros temas como a violecircncia reconhecidamente uma das mais relevantescausas de morbidade e mortalidade entre homens adultos jovens23

Assim emboradiscuta e exponha extensamente os fatores considerados pela sauacutede puacuteblica como

mais relevantes agrave sauacutede masculina o documento dirige seu foco para as novastemaacuteticas da sauacutede sexual e dos direitos sexuais e reprodutivos Ateacute entatildeo pelomenos no que diz respeito a estes uacuteltimos tais temaacuteticas pareciam mais ligadas aosdiscursos feministas em torno da sauacutede da mulherAlgumas conclusotildees possiacuteveisO documento de algum modo afirma o caraacuteter ldquoinsalubrerdquo de certa masculinidadesendo os homens apresentados como viacutetimas de sua proacutepria masculinidade ouseja das crenccedilas e valores que constituiriam as ldquobarreiras socioculturaisrdquo que seantepotildeem agrave medicalizaccedilatildeo O objetivo principal do programa eacute enfraquecer aresistecircncia masculina agrave medicina de uma forma geral ou seja medicalizar oshomens24 Para tanto uma accedilatildeo educativa bem feita ldquomodernizariardquo os homensbrasileiros dissipando o pensamento maacutegico que os (des)orienta e que os tornapresas de seu proacuteprios preconceitosEntretanto a questatildeo nos parece bastante mais complexa do que imaginam osdefensores da nova poliacutetica pois essa situaccedilatildeo paradoxal dos homens em relaccedilatildeo asua proacutepria sauacutede e ao seu corpo - sua cultura somaacutetica como diria Luc Boltanski(1979) - deriva em larga medida da posiccedilatildeo que (ainda) ocupam na hierarquia degecircnero A questatildeo natildeo eacute de ldquoculturardquo portanto mas do modo como a cultura estaacuteimbricada ou implicada em relaccedilotildees de poder bem concretas que o discursovitimaacuterio e paternalista incorporado agrave nova poliacutetica contribui mais para ocultar doque revelar Para os homens articular reivindicaccedilotildees a partir de uma posiccedilatildeogenerificada e tornar-se visiacuteveis enquanto ldquohomensrdquo significa colocar-se no mesmoplano que as mulheres Perderiam assim a posiccedilatildeo de representantes universais daespeacutecie e arriscariam a perder tambeacutem suas prerrogativas na hierarquia de gecircneroTalvez seja por isso mesmo que eles natildeo o fazem natildeo havendo (ainda) organizaccedilotildeesldquomasculinistasrdquo como existem organizaccedilotildees ldquofeministasrdquoDesse modo a condiccedilatildeo para que ocorra a mudanccedila cultural necessaacuteria para

fazer com que os homens (heterossexuais) tenham uma relaccedilatildeo tatildeo reflexiva comseus proacuteprios corpos quanto seus vaacuterios ldquooutrosrdquo (mulheres homossexuais travestis)eacute que tais ldquooutrosrdquo tenham o mesmo poder e prestiacutegio que eles Tudo se passaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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como se os homens precisassem se tornar socialmente vulneraacuteveis para poderperceber sua vulnerabilidade bioloacutegica e para ver algum sentido na luta porultrapassaacute-la Dito de outro modo mostrar-se invulneraacutevel faz parte do exerciacuteciodo poder pelos homens e o poder tem um ldquopreccedilordquo (uma vida mais curta ou menossaudaacutevel) que parece os homens ainda estatildeo dispostos a pagar Diferentementedas mulheres que organizadas num amplo movimento procuraram atraveacutes depoliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas sair da posiccedilatildeo de subordinaccedilatildeo a que historicamenteestavam relegadas os homens soacute podem aparecer entatildeo como sujeitos passivosfrente agrave interpelaccedilatildeo que lhes dirigem a medicina e o Estado Acabam assimsendo retoricamente representados pelos meacutedicos sobretudo urologistas e pelosformuladores e executores de uma poliacutetica que supostamente se implanta em nomedeles mas sem sua participaccedilatildeoQuanto agrave ecircnfase dada aos direitos sexuais e reprodutivos parece-nos que taistemas tecircm uma dupla entrada no programa - atraveacutes da urologia (ou medicinasexual) e da incorporaccedilatildeo da retoacuterica de movimentos poliacuteticos organizados ASBU aparece como ator fundamental na formulaccedilatildeo da poliacutetica Como vimos oacordo de cooperaccedilatildeo teacutecnica assinado com o Ministeacuterio da Sauacutede teve como umde seus principais desdobramentos a campanha centrada na disfunccedilatildeo ereacutetil(lanccedilada antes mesmo da publicaccedilatildeo do documento) Eacute o tipo de pressatildeo quevem dos especialistas neste caso com um objetivo muito claro transformar adisfunccedilatildeo ereacutetil num problema de sauacutede puacuteblica o que eacute facilitado por doisfatores a declaraccedilatildeo do entatildeo Secretaacuterio Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede Joseacute Gomes

Temporatildeo em 200625 e a nomeaccedilatildeo de Ricardo Cavalcanti para a Coordenaccedilatildeoda Aacuterea Teacutecnica da Sauacutede do Homem Cavalcanti eacute um dos pais fundadores damoderna sexologia brasileira e embora sendo ginecologista de formaccedilatildeocertamente facilitou o diaacutelogo entre o governo e a SBU Neste caso a afirmaccedilatildeodos direitos sexuais passa pela sexologia e pela medicina sexualA leitura do documento nos leva agrave conclusatildeo de que a poliacutetica de aproximaccedilatildeocom o Ministeacuterio da Sauacutede e os formuladores de poliacuteticas puacuteblicas empreendidapela SBU foi bem-sucedida jaacute que a preocupaccedilatildeo com a sauacutede sexual (explicitadapor exemplo no objetivo de ldquoestimular implantar implementar e qualificarpessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) ultrapassa em grau deimportacircncia pelo menos no documento outros problemas possiacuteveis dentre osquais poderiacuteamos citar aleacutem da violecircncia os relacionados agrave sauacutede mental Por| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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outro lado a linguagem dos especialistas convive com uma outra tiacutepica doschamados movimentos sociais (lembremos que o documento afirma como umdos objetivos do programa ldquoincluir o enfoque de gecircnero orientaccedilatildeo sexualidentidade de gecircnero e condiccedilatildeo eacutetnico-racial nas accedilotildees educativasrdquo) produzindoum discurso hiacutebrido em que caminhos diversos parecem levar a um mesmoobjetivo final - a medicalizaccedilatildeo do corpo masculinoDe fato a presenccedila no documento do discurso dos movimentos sociaisnormalmente voltados para poliacuteticas identitaacuterias nos parece bastante forte Voltamosaqui a um trecho na introduccedilatildeo do documento segundo o qual o programa desauacutede do homem pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para o reconhecimentoe a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para que advenham sujeitosprotagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio e gozo dos direitos decidadaniardquo Isto eacute os homens devem paradoxalmente ser transformados em ldquosujeitosprotagonistas de suas demandasrdquo Atraveacutes do movimento organizado atransformaccedilatildeo das mulheres em ldquoprotagonistas de suas demandasrdquo envolveu seu

relativo ldquoempoderamentordquo No caso dos homens o ldquoprotagonismordquo implicajustamente o contraacuterio isto eacute assumir sua fragilidade e vulnerabilidade aprendendoa enunciar suas demandas Utiliza-se assim a mesma linguagem e os mesmosargumentos comumente presentes no discurso dos movimentos organizados paraefeitos aparentemente opostosNo acircmbito do documento uma das formas encontradas para lidar com esseaparente paradoxo que consiste em formular uma poliacutetica puacuteblica como se elafosse reivindicada pelos sujeitos por ela visados eacute desmembrar a categoria ldquohomemrdquoem uma seacuterie de subcategorias - iacutendios negros gays travestis portadores dedeficiecircncias trabalhadores rurais etc - que por outras razotildees satildeo historicamentemarginalizadas Ao que parece as mulheres podem formar mais facilmente umacategoria unificada mas os homens natildeo Homem pura e simplesmente semqualquer adjetivo natildeo parece ser uma identidade que se precise assumir (contra aspressotildees da sociedade) ou que se deva fortalecer ou pela qual se precise lutar Porisso talvez a necessidade de despedaccedilaacute-la num sem-nuacutemero de categorias demodo a tornar visiacutevel sua vulnerabilidade A politizaccedilatildeo e sensibilizaccedilatildeo do homemportanto tem por objetivo tornaacute-lo consciente dessa vulnerabilidade Soacute entatildeo eacutepossiacutevel medicalizaacute-lo Neste caso consciecircncia poliacutetica ldquoprotagonismordquo emedicalizaccedilatildeo aparecem como indissociaacuteveisA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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ReferecircnciasBOLTANSKI L As classes sociais e o corpo Rio de Janeiro Graal 1979BOURDIEU P O campo cientiacutefico In ORTIZ R (Org) Pierre Bourdieu Sociologia Satildeo PauloAacutetica 1983______ La domination masculine Paris Seuil 1998BRASIL Ministeacuterio da Sauacutede Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes) Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIAS Port2008PT-09-CONSpdf Acesso em maio 2009CARRARA S Tributo a Vecircnus a luta contra a siacutefilis no Brasil da passagem do seacuteculo aos anos 1940Rio de Janeiro Fiocruz 1996

______ Une science deacuterisoire Lacuteandrologie au Bregravesil entre les deux guerres Vibrant ndash VirtualBrazilian Anthropology v 1 n frac12 jan-dez 2004COSTA A M Desenvolvimento e Implantaccedilatildeo do PAISM no Brasil In GIFFIN Karen COSTAS H (Org) Questotildees da sauacutede reprodutiva Rio de Janeiro Fiocruz 1999FOUCAULT M Vigiar e punir Petroacutepolis Vozes 1977GOMES R Sexualidade masculina e sauacutede do homem proposta para uma discussatildeo CiecircnciaSauacutede Coletiva Rio de Janeiro n 8 p 825-9 2003GOMES R NASCIMENTO E F ARAUacuteJO F C Por que os homens buscam menos os serviccedilosde sauacutede do que as mulheres As explicaccedilotildees de homens com baixa escolaridade e homens comensino superior Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 23 n 3 mar 2007GOMES R NASCIMENTO E F A produccedilatildeo do conhecimento da sauacutede puacuteblica sobre arelaccedilatildeo homem-sauacutede uma revisatildeo bibliograacutefica Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 22n 5 p 901-911 maio 2006MEDRADO B LYRA J AZEVEDO M GRANJA E e VIEIRA S Princiacutepios diretrizes erecomendaccedilotildees para uma atenccedilatildeo integral aos homens na sauacutede Recife Instituto PAPAI 2009OLIVEIRA P P de A construccedilatildeo social da masculinidade Belo Horizonte UFMG 2004PEREIRA A L Accedilotildees educativas em contracepccedilatildeo teoria e praacutetica dos profissionais de sauacutede Tese(Doutorado em Sauacutede Coletiva) - Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio dejaneiro Rio de Janeiro 2008ROHDEN F Uma ciecircncia da diferenccedila sexo e gecircnero na medicina da mulher Rio de JaneiroFiocruz 2001SCHRAIBER L B GOMES R COUTO M T Homens e sauacutede na pauta da sauacutede coletivaCiecircncia e Sauacutede Coletiva v 10 n 1 p 7-17 2005| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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STOCKLE V Is Sex to Gender as Race is to Ethnicity In DEL VALLE T (Ed) GenderedAnthropology London Routledge 1993

Notas Uma primeira versatildeo deste texto foi apresentada no simpoacutesio The Future of Sexual Health SexualHealth in Public Health Policies no XIX Congresso da World Association for Sexual Health Gotemburgojunho de 2009 tendo utilizado dados colhidos na pesquisa ldquoDiferenccedilas de gecircnero na recentemedicalizaccedilatildeo do envelhecimento e sexualidade a criaccedilatildeo das categorias menopausa andropausa edisfunccedilatildeo sexualrdquo coordenada por Fabiacuteola Rohden e apoiada pelo CNPq1 A partir das reflexotildees de Michel Foucault (1977) em torno do panopticismo pode-se afirmar quedeterminados regimes de visibilidade configuram certos sujeitos que de outro modo inexistiriam ouexistiriam de modo inteiramente diferente Natildeo se trata aqui de entrarmos na polecircmica entreconstrutivismo e essencialismo ou seja de decidir se alguns sujeitos estavam sempre laacute agrave espera deserem descoberto ou se satildeo criados pela proacutepria ldquoluzrdquo que os ilumina2 Com ldquoobjetificaccedilatildeordquo natildeo nos referimos aqui a um processo de negaccedilatildeo aos homens de seu estatuto de

pessoa humana mas ao processo de instituiccedilatildeo de certos temas problemas ou sujeitos como objetoslegiacutetimos de conhecimento em determinado campo cientiacutefico conforme formulado originalmente porPierre Bourdieu (1983)3 A partir dos anos 1990 esse processo vem sendo acompanhado pela progressiva transformaccedilatildeo doshomens e da masculinidade em objeto de conhecimento tambeacutem das ciecircncias sociais configurandonovas aacutereas de conhecimento como os chamados ldquomenrsquos studiesrdquo Para isso ver entre outros Oliveira(2004)4 Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIASPort2008PT-09-CONSpdf (acessoem maio 2009)5 Eacute importante destacar que Joseacute Gomes Temporatildeo em 2006 quando ainda era Secretaacuterio Nacionalde Atenccedilatildeo agrave Sauacutede no Ministeacuterio da Sauacutede tentou criar centros de atenccedilatildeo agrave sauacutede no setor privadopara melhorar a assistecircncia agrave sauacutede do homem Em declaraccedilatildeo publicada no jornal O Estado de SatildeoPaulo em janeiro de 2006 Temporatildeo afirmou que o Ministeacuterio da Sauacutede estava analisando a possibilidadede oferecer tratamento para a disfunccedilatildeo ereacutetil atraveacutes da rede puacuteblica incluindo a distribuiccedilatildeo demedicamentos O governo estaria examinando o impacto financeiro de tal medida6 Ao que parece havia no acircmbito do MS desde 2006 uma Coordenaccedilatildeo de Sauacutede do Homem7 Nove meses depois foi substituiacutedo pelo Dr Baldur Schubert um assessor da sua equipe especialistaem seguridade social e sauacutede do trabalho8 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)9 Respectivamente Conselho Nacional de Secretaacuterios de Sauacutede e Conselho Nacional de SecretaacuteriosMunicipais de SauacutedeA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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10 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)11 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrpdf2008_saudehomempdf (acesso em maio 2009)12 Para a discussatildeo sobre a dominaccedilatildeo masculina ver Bourdieu (1998)13 Tais foacuteruns vecircm sendo organizados anualmente pela Comissatildeo de Seguridade Social e Famiacutelia daCacircmara dos Deputados em parceria com a SBU14 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrimagesfolder_noticiajpg (acesso em maio 2009)15 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)16 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)17 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)18 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)19 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)20 O documento passou por uma consulta puacuteblica e foi aprovado pelo Conselho Nacional de Sauacutede emjulho de 200921 O documento lanccedila matildeo de trabalhos importantes que no campo da sauacutede vecircm discutindo amasculinidade como Gomes (2003) Gomes e Nascimento (2006) Gomes et al (2007) Schraiber etal (2005)22 Lemos no documento que ldquoos indicadores apresentados visam a oferecer uma visatildeo ampliada doprocesso de adoecimento e de vulnerabilidade e agravos agrave sauacutede na populaccedilatildeo de homensrdquo (PNAISH2008 p 11)23 Esse aspecto foi tambeacutem destacado em reaccedilatildeo agraves diretrizes do Programa expressa em ldquodocumentomarcordquoproduzido por iniciativa de importantes organizaccedilotildees natildeo-governamentais brasileiras que haacute

muitos anos trabalham com o tema das masculinidades O texto aborda o Programa com base em umaleitura feminista de gecircnero Aleacutem de criticar a centralidade assumida pelas doenccedilas do aparelhogeniturinaacuterio na nova poliacutetica enfatiza-se tambeacutem a relativa desvalorizaccedilatildeo da promoccedilatildeo agrave sauacutede emfavor da oferta de serviccedilos de assistecircncia (MEDRADO et al 2009)24 Eacute interessante pensar como esse movimento vai de encontro agrave luta feminista contra a medicalizaccedilatildeodo corpo feminino25 Ver nota 2| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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Page 14: Saúde do Homem

nome indica procura oferecer um quadro amplo acerca dos agravos agrave sauacutedemasculina22 percorrendo temas como violecircncia alcoolismo e tabagismo indicadoresde mortalidade e de morbidade Aleacutem dessas temaacuteticas nas quais reconhecemos alinguagem mais tradicional da epidemiologia e da sauacutede puacuteblica encontramosoutros temas que embora possam ser vistos como parte do campo da sauacutede nosentido lato extrapolam seus limites uma vez que tecircm ressonacircncias mais claramentepoliacuteticas eou juriacutedicas ldquoadolescecircncia e velhicerdquo e ldquodireitos sexuais e reprodutivosrdquoLogo na introduccedilatildeo desse item lemos queOs temas mais recorrentes no estudo sobre a sauacutede do homem podem se estruturarem torno de trecircs eixos violecircncia tendecircncia agrave exposiccedilatildeo a riscos com consequecircncianos indicadores de morbi-mortalidade e sauacutede sexual e reprodutiva (PNAISH2008 p 11)Como veremos adiante dentre esses trecircs eixos o terceiro - sauacutede sexual ereprodutiva - seraacute enfatizado em detrimento dos demais embora na apresentaccedilatildeodos diversos subitens de que trata o item ldquoDiagnoacutesticordquo os dois primeiros eixossejam mais extensamente tratados com a apresentaccedilatildeo de um conjunto expressivode dados e argumentos O subitem ldquoDireitos sexuais e reprodutivosrdquo ao contraacuteriodos demais natildeo traz dados sobre agravos ou ameaccedilas agrave sauacutede sexual e reprodutivamas expotildee uma espeacutecie de agenda poliacutetica afirmando a necessidade da implementaccedilatildeodos direitos sexuais e reprodutivos dos homens A linguagem dos direitos se impotildeee a categoria ldquosauacutederdquo natildeo eacute mencionada O documento afirma por exemplo que eacutenecessaacuterio ldquosuperar a restriccedilatildeo da responsabilidade sobre as praacuteticas contraceptivas agravesmulheresrdquo de modo a assegurar aos homens ldquoo direito agrave participaccedilatildeo no planejamentoreprodutivordquo a paternidade devendo ser vista como ldquoum direito do homem a participarde todo o processo desde a decisatildeo de ter ou natildeo filhos como e quando tecirc-los bemcomo do acompanhamento da gravidez do parto do poacutes-parto e da educaccedilatildeo dacrianccedilardquo (PNAISH 2008 p 20) Eacute curiosa essa formulaccedilatildeo uma vez que a demandaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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pela participaccedilatildeo masculina nas decisotildees reprodutivas eacute uma bandeira do movimento

feminista Normalmente tal participaccedilatildeo aparece como exigecircncia das mulherescomo um dever do qual o homem tende a escapar No documento o que antes eraconsiderado um dever se transforma em direitoA insistecircncia na temaacutetica da sauacutede sexual e reprodutiva atravessa o documentoe surge com forccedila no item ldquoObjetivosrdquo Satildeo trecircs os objetivos especiacuteficos listados(1) Organizar implantar qualificar e humanizar em todo territoacuterio brasileiro aatenccedilatildeo integral a sauacutede do homem dentro dos princiacutepios que regem o SistemaUacutenico de Sauacutede(2) Estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeo da assistecircncia em sauacutede sexual ereprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede(3) Ampliar atraveacutes da educaccedilatildeo o acesso dos homens agraves informaccedilotildees sobre asmedidas preventivas contra os agravos e enfermidades que atingem a populaccedilatildeomasculina destacando seus direitos sexuais e reprodutivos (PNAISH 2008 p 39grifos nossos)O segundo dos objetivos especiacuteficos - estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeoda assistecircncia em sauacutede sexual e reprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede -tem uma extensa lista de subitens Dentre estes aleacutem de metas mais tradicionaisrelativas ao planejamento reprodutivo masculino contracepccedilatildeo ciruacutergica voluntaacuteriae prevenccedilatildeo de DSTAids encontramos os seguintes objetivos- estimular implantar implementar e qualificar pessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildeessexuais masculinas- promover a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem nas populaccedilotildees indiacutegenas negrasquilombolas gays bissexuais travestis transexuais trabalhadores rurais homenscom deficiecircncia em situaccedilatildeo de risco em situaccedilatildeo carceraacuteria desenvolvendoestrateacutegias voltadas para a promoccedilatildeo da equidade para distintos grupos sociais- associar as accedilotildees governamentais com as da sociedade civil organizada paraefetivar a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem com protagonismo social na enunciaccedilatildeodas reais condiccedilotildees de sauacutede da populaccedilatildeo heterogecircnea de homens (PNAISH2008 p 39)Destacamos aqui dois pontos que comentaremos mais adiante nas conclusotildeesO primeiro diz respeito agrave associaccedilatildeo entre o discurso da SBU (presente na ideia deldquoatenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) e o dos movimentos da ldquosociedade civilorganizadardquo O segundo refere-se ao fato de que a ecircnfase colocada sobre sauacutedesexual e direitos sexuais e reprodutivos natildeo aparece do mesmo modo quando se| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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trata de outros temas como a violecircncia reconhecidamente uma das mais relevantescausas de morbidade e mortalidade entre homens adultos jovens23

Assim emboradiscuta e exponha extensamente os fatores considerados pela sauacutede puacuteblica como

mais relevantes agrave sauacutede masculina o documento dirige seu foco para as novastemaacuteticas da sauacutede sexual e dos direitos sexuais e reprodutivos Ateacute entatildeo pelomenos no que diz respeito a estes uacuteltimos tais temaacuteticas pareciam mais ligadas aosdiscursos feministas em torno da sauacutede da mulherAlgumas conclusotildees possiacuteveisO documento de algum modo afirma o caraacuteter ldquoinsalubrerdquo de certa masculinidadesendo os homens apresentados como viacutetimas de sua proacutepria masculinidade ouseja das crenccedilas e valores que constituiriam as ldquobarreiras socioculturaisrdquo que seantepotildeem agrave medicalizaccedilatildeo O objetivo principal do programa eacute enfraquecer aresistecircncia masculina agrave medicina de uma forma geral ou seja medicalizar oshomens24 Para tanto uma accedilatildeo educativa bem feita ldquomodernizariardquo os homensbrasileiros dissipando o pensamento maacutegico que os (des)orienta e que os tornapresas de seu proacuteprios preconceitosEntretanto a questatildeo nos parece bastante mais complexa do que imaginam osdefensores da nova poliacutetica pois essa situaccedilatildeo paradoxal dos homens em relaccedilatildeo asua proacutepria sauacutede e ao seu corpo - sua cultura somaacutetica como diria Luc Boltanski(1979) - deriva em larga medida da posiccedilatildeo que (ainda) ocupam na hierarquia degecircnero A questatildeo natildeo eacute de ldquoculturardquo portanto mas do modo como a cultura estaacuteimbricada ou implicada em relaccedilotildees de poder bem concretas que o discursovitimaacuterio e paternalista incorporado agrave nova poliacutetica contribui mais para ocultar doque revelar Para os homens articular reivindicaccedilotildees a partir de uma posiccedilatildeogenerificada e tornar-se visiacuteveis enquanto ldquohomensrdquo significa colocar-se no mesmoplano que as mulheres Perderiam assim a posiccedilatildeo de representantes universais daespeacutecie e arriscariam a perder tambeacutem suas prerrogativas na hierarquia de gecircneroTalvez seja por isso mesmo que eles natildeo o fazem natildeo havendo (ainda) organizaccedilotildeesldquomasculinistasrdquo como existem organizaccedilotildees ldquofeministasrdquoDesse modo a condiccedilatildeo para que ocorra a mudanccedila cultural necessaacuteria para

fazer com que os homens (heterossexuais) tenham uma relaccedilatildeo tatildeo reflexiva comseus proacuteprios corpos quanto seus vaacuterios ldquooutrosrdquo (mulheres homossexuais travestis)eacute que tais ldquooutrosrdquo tenham o mesmo poder e prestiacutegio que eles Tudo se passaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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como se os homens precisassem se tornar socialmente vulneraacuteveis para poderperceber sua vulnerabilidade bioloacutegica e para ver algum sentido na luta porultrapassaacute-la Dito de outro modo mostrar-se invulneraacutevel faz parte do exerciacuteciodo poder pelos homens e o poder tem um ldquopreccedilordquo (uma vida mais curta ou menossaudaacutevel) que parece os homens ainda estatildeo dispostos a pagar Diferentementedas mulheres que organizadas num amplo movimento procuraram atraveacutes depoliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas sair da posiccedilatildeo de subordinaccedilatildeo a que historicamenteestavam relegadas os homens soacute podem aparecer entatildeo como sujeitos passivosfrente agrave interpelaccedilatildeo que lhes dirigem a medicina e o Estado Acabam assimsendo retoricamente representados pelos meacutedicos sobretudo urologistas e pelosformuladores e executores de uma poliacutetica que supostamente se implanta em nomedeles mas sem sua participaccedilatildeoQuanto agrave ecircnfase dada aos direitos sexuais e reprodutivos parece-nos que taistemas tecircm uma dupla entrada no programa - atraveacutes da urologia (ou medicinasexual) e da incorporaccedilatildeo da retoacuterica de movimentos poliacuteticos organizados ASBU aparece como ator fundamental na formulaccedilatildeo da poliacutetica Como vimos oacordo de cooperaccedilatildeo teacutecnica assinado com o Ministeacuterio da Sauacutede teve como umde seus principais desdobramentos a campanha centrada na disfunccedilatildeo ereacutetil(lanccedilada antes mesmo da publicaccedilatildeo do documento) Eacute o tipo de pressatildeo quevem dos especialistas neste caso com um objetivo muito claro transformar adisfunccedilatildeo ereacutetil num problema de sauacutede puacuteblica o que eacute facilitado por doisfatores a declaraccedilatildeo do entatildeo Secretaacuterio Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede Joseacute Gomes

Temporatildeo em 200625 e a nomeaccedilatildeo de Ricardo Cavalcanti para a Coordenaccedilatildeoda Aacuterea Teacutecnica da Sauacutede do Homem Cavalcanti eacute um dos pais fundadores damoderna sexologia brasileira e embora sendo ginecologista de formaccedilatildeocertamente facilitou o diaacutelogo entre o governo e a SBU Neste caso a afirmaccedilatildeodos direitos sexuais passa pela sexologia e pela medicina sexualA leitura do documento nos leva agrave conclusatildeo de que a poliacutetica de aproximaccedilatildeocom o Ministeacuterio da Sauacutede e os formuladores de poliacuteticas puacuteblicas empreendidapela SBU foi bem-sucedida jaacute que a preocupaccedilatildeo com a sauacutede sexual (explicitadapor exemplo no objetivo de ldquoestimular implantar implementar e qualificarpessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) ultrapassa em grau deimportacircncia pelo menos no documento outros problemas possiacuteveis dentre osquais poderiacuteamos citar aleacutem da violecircncia os relacionados agrave sauacutede mental Por| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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outro lado a linguagem dos especialistas convive com uma outra tiacutepica doschamados movimentos sociais (lembremos que o documento afirma como umdos objetivos do programa ldquoincluir o enfoque de gecircnero orientaccedilatildeo sexualidentidade de gecircnero e condiccedilatildeo eacutetnico-racial nas accedilotildees educativasrdquo) produzindoum discurso hiacutebrido em que caminhos diversos parecem levar a um mesmoobjetivo final - a medicalizaccedilatildeo do corpo masculinoDe fato a presenccedila no documento do discurso dos movimentos sociaisnormalmente voltados para poliacuteticas identitaacuterias nos parece bastante forte Voltamosaqui a um trecho na introduccedilatildeo do documento segundo o qual o programa desauacutede do homem pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para o reconhecimentoe a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para que advenham sujeitosprotagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio e gozo dos direitos decidadaniardquo Isto eacute os homens devem paradoxalmente ser transformados em ldquosujeitosprotagonistas de suas demandasrdquo Atraveacutes do movimento organizado atransformaccedilatildeo das mulheres em ldquoprotagonistas de suas demandasrdquo envolveu seu

relativo ldquoempoderamentordquo No caso dos homens o ldquoprotagonismordquo implicajustamente o contraacuterio isto eacute assumir sua fragilidade e vulnerabilidade aprendendoa enunciar suas demandas Utiliza-se assim a mesma linguagem e os mesmosargumentos comumente presentes no discurso dos movimentos organizados paraefeitos aparentemente opostosNo acircmbito do documento uma das formas encontradas para lidar com esseaparente paradoxo que consiste em formular uma poliacutetica puacuteblica como se elafosse reivindicada pelos sujeitos por ela visados eacute desmembrar a categoria ldquohomemrdquoem uma seacuterie de subcategorias - iacutendios negros gays travestis portadores dedeficiecircncias trabalhadores rurais etc - que por outras razotildees satildeo historicamentemarginalizadas Ao que parece as mulheres podem formar mais facilmente umacategoria unificada mas os homens natildeo Homem pura e simplesmente semqualquer adjetivo natildeo parece ser uma identidade que se precise assumir (contra aspressotildees da sociedade) ou que se deva fortalecer ou pela qual se precise lutar Porisso talvez a necessidade de despedaccedilaacute-la num sem-nuacutemero de categorias demodo a tornar visiacutevel sua vulnerabilidade A politizaccedilatildeo e sensibilizaccedilatildeo do homemportanto tem por objetivo tornaacute-lo consciente dessa vulnerabilidade Soacute entatildeo eacutepossiacutevel medicalizaacute-lo Neste caso consciecircncia poliacutetica ldquoprotagonismordquo emedicalizaccedilatildeo aparecem como indissociaacuteveisA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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ReferecircnciasBOLTANSKI L As classes sociais e o corpo Rio de Janeiro Graal 1979BOURDIEU P O campo cientiacutefico In ORTIZ R (Org) Pierre Bourdieu Sociologia Satildeo PauloAacutetica 1983______ La domination masculine Paris Seuil 1998BRASIL Ministeacuterio da Sauacutede Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes) Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIAS Port2008PT-09-CONSpdf Acesso em maio 2009CARRARA S Tributo a Vecircnus a luta contra a siacutefilis no Brasil da passagem do seacuteculo aos anos 1940Rio de Janeiro Fiocruz 1996

______ Une science deacuterisoire Lacuteandrologie au Bregravesil entre les deux guerres Vibrant ndash VirtualBrazilian Anthropology v 1 n frac12 jan-dez 2004COSTA A M Desenvolvimento e Implantaccedilatildeo do PAISM no Brasil In GIFFIN Karen COSTAS H (Org) Questotildees da sauacutede reprodutiva Rio de Janeiro Fiocruz 1999FOUCAULT M Vigiar e punir Petroacutepolis Vozes 1977GOMES R Sexualidade masculina e sauacutede do homem proposta para uma discussatildeo CiecircnciaSauacutede Coletiva Rio de Janeiro n 8 p 825-9 2003GOMES R NASCIMENTO E F ARAUacuteJO F C Por que os homens buscam menos os serviccedilosde sauacutede do que as mulheres As explicaccedilotildees de homens com baixa escolaridade e homens comensino superior Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 23 n 3 mar 2007GOMES R NASCIMENTO E F A produccedilatildeo do conhecimento da sauacutede puacuteblica sobre arelaccedilatildeo homem-sauacutede uma revisatildeo bibliograacutefica Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 22n 5 p 901-911 maio 2006MEDRADO B LYRA J AZEVEDO M GRANJA E e VIEIRA S Princiacutepios diretrizes erecomendaccedilotildees para uma atenccedilatildeo integral aos homens na sauacutede Recife Instituto PAPAI 2009OLIVEIRA P P de A construccedilatildeo social da masculinidade Belo Horizonte UFMG 2004PEREIRA A L Accedilotildees educativas em contracepccedilatildeo teoria e praacutetica dos profissionais de sauacutede Tese(Doutorado em Sauacutede Coletiva) - Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio dejaneiro Rio de Janeiro 2008ROHDEN F Uma ciecircncia da diferenccedila sexo e gecircnero na medicina da mulher Rio de JaneiroFiocruz 2001SCHRAIBER L B GOMES R COUTO M T Homens e sauacutede na pauta da sauacutede coletivaCiecircncia e Sauacutede Coletiva v 10 n 1 p 7-17 2005| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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STOCKLE V Is Sex to Gender as Race is to Ethnicity In DEL VALLE T (Ed) GenderedAnthropology London Routledge 1993

Notas Uma primeira versatildeo deste texto foi apresentada no simpoacutesio The Future of Sexual Health SexualHealth in Public Health Policies no XIX Congresso da World Association for Sexual Health Gotemburgojunho de 2009 tendo utilizado dados colhidos na pesquisa ldquoDiferenccedilas de gecircnero na recentemedicalizaccedilatildeo do envelhecimento e sexualidade a criaccedilatildeo das categorias menopausa andropausa edisfunccedilatildeo sexualrdquo coordenada por Fabiacuteola Rohden e apoiada pelo CNPq1 A partir das reflexotildees de Michel Foucault (1977) em torno do panopticismo pode-se afirmar quedeterminados regimes de visibilidade configuram certos sujeitos que de outro modo inexistiriam ouexistiriam de modo inteiramente diferente Natildeo se trata aqui de entrarmos na polecircmica entreconstrutivismo e essencialismo ou seja de decidir se alguns sujeitos estavam sempre laacute agrave espera deserem descoberto ou se satildeo criados pela proacutepria ldquoluzrdquo que os ilumina2 Com ldquoobjetificaccedilatildeordquo natildeo nos referimos aqui a um processo de negaccedilatildeo aos homens de seu estatuto de

pessoa humana mas ao processo de instituiccedilatildeo de certos temas problemas ou sujeitos como objetoslegiacutetimos de conhecimento em determinado campo cientiacutefico conforme formulado originalmente porPierre Bourdieu (1983)3 A partir dos anos 1990 esse processo vem sendo acompanhado pela progressiva transformaccedilatildeo doshomens e da masculinidade em objeto de conhecimento tambeacutem das ciecircncias sociais configurandonovas aacutereas de conhecimento como os chamados ldquomenrsquos studiesrdquo Para isso ver entre outros Oliveira(2004)4 Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIASPort2008PT-09-CONSpdf (acessoem maio 2009)5 Eacute importante destacar que Joseacute Gomes Temporatildeo em 2006 quando ainda era Secretaacuterio Nacionalde Atenccedilatildeo agrave Sauacutede no Ministeacuterio da Sauacutede tentou criar centros de atenccedilatildeo agrave sauacutede no setor privadopara melhorar a assistecircncia agrave sauacutede do homem Em declaraccedilatildeo publicada no jornal O Estado de SatildeoPaulo em janeiro de 2006 Temporatildeo afirmou que o Ministeacuterio da Sauacutede estava analisando a possibilidadede oferecer tratamento para a disfunccedilatildeo ereacutetil atraveacutes da rede puacuteblica incluindo a distribuiccedilatildeo demedicamentos O governo estaria examinando o impacto financeiro de tal medida6 Ao que parece havia no acircmbito do MS desde 2006 uma Coordenaccedilatildeo de Sauacutede do Homem7 Nove meses depois foi substituiacutedo pelo Dr Baldur Schubert um assessor da sua equipe especialistaem seguridade social e sauacutede do trabalho8 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)9 Respectivamente Conselho Nacional de Secretaacuterios de Sauacutede e Conselho Nacional de SecretaacuteriosMunicipais de SauacutedeA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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10 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)11 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrpdf2008_saudehomempdf (acesso em maio 2009)12 Para a discussatildeo sobre a dominaccedilatildeo masculina ver Bourdieu (1998)13 Tais foacuteruns vecircm sendo organizados anualmente pela Comissatildeo de Seguridade Social e Famiacutelia daCacircmara dos Deputados em parceria com a SBU14 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrimagesfolder_noticiajpg (acesso em maio 2009)15 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)16 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)17 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)18 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)19 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)20 O documento passou por uma consulta puacuteblica e foi aprovado pelo Conselho Nacional de Sauacutede emjulho de 200921 O documento lanccedila matildeo de trabalhos importantes que no campo da sauacutede vecircm discutindo amasculinidade como Gomes (2003) Gomes e Nascimento (2006) Gomes et al (2007) Schraiber etal (2005)22 Lemos no documento que ldquoos indicadores apresentados visam a oferecer uma visatildeo ampliada doprocesso de adoecimento e de vulnerabilidade e agravos agrave sauacutede na populaccedilatildeo de homensrdquo (PNAISH2008 p 11)23 Esse aspecto foi tambeacutem destacado em reaccedilatildeo agraves diretrizes do Programa expressa em ldquodocumentomarcordquoproduzido por iniciativa de importantes organizaccedilotildees natildeo-governamentais brasileiras que haacute

muitos anos trabalham com o tema das masculinidades O texto aborda o Programa com base em umaleitura feminista de gecircnero Aleacutem de criticar a centralidade assumida pelas doenccedilas do aparelhogeniturinaacuterio na nova poliacutetica enfatiza-se tambeacutem a relativa desvalorizaccedilatildeo da promoccedilatildeo agrave sauacutede emfavor da oferta de serviccedilos de assistecircncia (MEDRADO et al 2009)24 Eacute interessante pensar como esse movimento vai de encontro agrave luta feminista contra a medicalizaccedilatildeodo corpo feminino25 Ver nota 2| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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Page 15: Saúde do Homem

feminista Normalmente tal participaccedilatildeo aparece como exigecircncia das mulherescomo um dever do qual o homem tende a escapar No documento o que antes eraconsiderado um dever se transforma em direitoA insistecircncia na temaacutetica da sauacutede sexual e reprodutiva atravessa o documentoe surge com forccedila no item ldquoObjetivosrdquo Satildeo trecircs os objetivos especiacuteficos listados(1) Organizar implantar qualificar e humanizar em todo territoacuterio brasileiro aatenccedilatildeo integral a sauacutede do homem dentro dos princiacutepios que regem o SistemaUacutenico de Sauacutede(2) Estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeo da assistecircncia em sauacutede sexual ereprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede(3) Ampliar atraveacutes da educaccedilatildeo o acesso dos homens agraves informaccedilotildees sobre asmedidas preventivas contra os agravos e enfermidades que atingem a populaccedilatildeomasculina destacando seus direitos sexuais e reprodutivos (PNAISH 2008 p 39grifos nossos)O segundo dos objetivos especiacuteficos - estimular a implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeoda assistecircncia em sauacutede sexual e reprodutiva no acircmbito da atenccedilatildeo integral agrave sauacutede -tem uma extensa lista de subitens Dentre estes aleacutem de metas mais tradicionaisrelativas ao planejamento reprodutivo masculino contracepccedilatildeo ciruacutergica voluntaacuteriae prevenccedilatildeo de DSTAids encontramos os seguintes objetivos- estimular implantar implementar e qualificar pessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildeessexuais masculinas- promover a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem nas populaccedilotildees indiacutegenas negrasquilombolas gays bissexuais travestis transexuais trabalhadores rurais homenscom deficiecircncia em situaccedilatildeo de risco em situaccedilatildeo carceraacuteria desenvolvendoestrateacutegias voltadas para a promoccedilatildeo da equidade para distintos grupos sociais- associar as accedilotildees governamentais com as da sociedade civil organizada paraefetivar a atenccedilatildeo integral agrave sauacutede do homem com protagonismo social na enunciaccedilatildeodas reais condiccedilotildees de sauacutede da populaccedilatildeo heterogecircnea de homens (PNAISH2008 p 39)Destacamos aqui dois pontos que comentaremos mais adiante nas conclusotildeesO primeiro diz respeito agrave associaccedilatildeo entre o discurso da SBU (presente na ideia deldquoatenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) e o dos movimentos da ldquosociedade civilorganizadardquo O segundo refere-se ao fato de que a ecircnfase colocada sobre sauacutedesexual e direitos sexuais e reprodutivos natildeo aparece do mesmo modo quando se| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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trata de outros temas como a violecircncia reconhecidamente uma das mais relevantescausas de morbidade e mortalidade entre homens adultos jovens23

Assim emboradiscuta e exponha extensamente os fatores considerados pela sauacutede puacuteblica como

mais relevantes agrave sauacutede masculina o documento dirige seu foco para as novastemaacuteticas da sauacutede sexual e dos direitos sexuais e reprodutivos Ateacute entatildeo pelomenos no que diz respeito a estes uacuteltimos tais temaacuteticas pareciam mais ligadas aosdiscursos feministas em torno da sauacutede da mulherAlgumas conclusotildees possiacuteveisO documento de algum modo afirma o caraacuteter ldquoinsalubrerdquo de certa masculinidadesendo os homens apresentados como viacutetimas de sua proacutepria masculinidade ouseja das crenccedilas e valores que constituiriam as ldquobarreiras socioculturaisrdquo que seantepotildeem agrave medicalizaccedilatildeo O objetivo principal do programa eacute enfraquecer aresistecircncia masculina agrave medicina de uma forma geral ou seja medicalizar oshomens24 Para tanto uma accedilatildeo educativa bem feita ldquomodernizariardquo os homensbrasileiros dissipando o pensamento maacutegico que os (des)orienta e que os tornapresas de seu proacuteprios preconceitosEntretanto a questatildeo nos parece bastante mais complexa do que imaginam osdefensores da nova poliacutetica pois essa situaccedilatildeo paradoxal dos homens em relaccedilatildeo asua proacutepria sauacutede e ao seu corpo - sua cultura somaacutetica como diria Luc Boltanski(1979) - deriva em larga medida da posiccedilatildeo que (ainda) ocupam na hierarquia degecircnero A questatildeo natildeo eacute de ldquoculturardquo portanto mas do modo como a cultura estaacuteimbricada ou implicada em relaccedilotildees de poder bem concretas que o discursovitimaacuterio e paternalista incorporado agrave nova poliacutetica contribui mais para ocultar doque revelar Para os homens articular reivindicaccedilotildees a partir de uma posiccedilatildeogenerificada e tornar-se visiacuteveis enquanto ldquohomensrdquo significa colocar-se no mesmoplano que as mulheres Perderiam assim a posiccedilatildeo de representantes universais daespeacutecie e arriscariam a perder tambeacutem suas prerrogativas na hierarquia de gecircneroTalvez seja por isso mesmo que eles natildeo o fazem natildeo havendo (ainda) organizaccedilotildeesldquomasculinistasrdquo como existem organizaccedilotildees ldquofeministasrdquoDesse modo a condiccedilatildeo para que ocorra a mudanccedila cultural necessaacuteria para

fazer com que os homens (heterossexuais) tenham uma relaccedilatildeo tatildeo reflexiva comseus proacuteprios corpos quanto seus vaacuterios ldquooutrosrdquo (mulheres homossexuais travestis)eacute que tais ldquooutrosrdquo tenham o mesmo poder e prestiacutegio que eles Tudo se passaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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como se os homens precisassem se tornar socialmente vulneraacuteveis para poderperceber sua vulnerabilidade bioloacutegica e para ver algum sentido na luta porultrapassaacute-la Dito de outro modo mostrar-se invulneraacutevel faz parte do exerciacuteciodo poder pelos homens e o poder tem um ldquopreccedilordquo (uma vida mais curta ou menossaudaacutevel) que parece os homens ainda estatildeo dispostos a pagar Diferentementedas mulheres que organizadas num amplo movimento procuraram atraveacutes depoliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas sair da posiccedilatildeo de subordinaccedilatildeo a que historicamenteestavam relegadas os homens soacute podem aparecer entatildeo como sujeitos passivosfrente agrave interpelaccedilatildeo que lhes dirigem a medicina e o Estado Acabam assimsendo retoricamente representados pelos meacutedicos sobretudo urologistas e pelosformuladores e executores de uma poliacutetica que supostamente se implanta em nomedeles mas sem sua participaccedilatildeoQuanto agrave ecircnfase dada aos direitos sexuais e reprodutivos parece-nos que taistemas tecircm uma dupla entrada no programa - atraveacutes da urologia (ou medicinasexual) e da incorporaccedilatildeo da retoacuterica de movimentos poliacuteticos organizados ASBU aparece como ator fundamental na formulaccedilatildeo da poliacutetica Como vimos oacordo de cooperaccedilatildeo teacutecnica assinado com o Ministeacuterio da Sauacutede teve como umde seus principais desdobramentos a campanha centrada na disfunccedilatildeo ereacutetil(lanccedilada antes mesmo da publicaccedilatildeo do documento) Eacute o tipo de pressatildeo quevem dos especialistas neste caso com um objetivo muito claro transformar adisfunccedilatildeo ereacutetil num problema de sauacutede puacuteblica o que eacute facilitado por doisfatores a declaraccedilatildeo do entatildeo Secretaacuterio Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede Joseacute Gomes

Temporatildeo em 200625 e a nomeaccedilatildeo de Ricardo Cavalcanti para a Coordenaccedilatildeoda Aacuterea Teacutecnica da Sauacutede do Homem Cavalcanti eacute um dos pais fundadores damoderna sexologia brasileira e embora sendo ginecologista de formaccedilatildeocertamente facilitou o diaacutelogo entre o governo e a SBU Neste caso a afirmaccedilatildeodos direitos sexuais passa pela sexologia e pela medicina sexualA leitura do documento nos leva agrave conclusatildeo de que a poliacutetica de aproximaccedilatildeocom o Ministeacuterio da Sauacutede e os formuladores de poliacuteticas puacuteblicas empreendidapela SBU foi bem-sucedida jaacute que a preocupaccedilatildeo com a sauacutede sexual (explicitadapor exemplo no objetivo de ldquoestimular implantar implementar e qualificarpessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) ultrapassa em grau deimportacircncia pelo menos no documento outros problemas possiacuteveis dentre osquais poderiacuteamos citar aleacutem da violecircncia os relacionados agrave sauacutede mental Por| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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outro lado a linguagem dos especialistas convive com uma outra tiacutepica doschamados movimentos sociais (lembremos que o documento afirma como umdos objetivos do programa ldquoincluir o enfoque de gecircnero orientaccedilatildeo sexualidentidade de gecircnero e condiccedilatildeo eacutetnico-racial nas accedilotildees educativasrdquo) produzindoum discurso hiacutebrido em que caminhos diversos parecem levar a um mesmoobjetivo final - a medicalizaccedilatildeo do corpo masculinoDe fato a presenccedila no documento do discurso dos movimentos sociaisnormalmente voltados para poliacuteticas identitaacuterias nos parece bastante forte Voltamosaqui a um trecho na introduccedilatildeo do documento segundo o qual o programa desauacutede do homem pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para o reconhecimentoe a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para que advenham sujeitosprotagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio e gozo dos direitos decidadaniardquo Isto eacute os homens devem paradoxalmente ser transformados em ldquosujeitosprotagonistas de suas demandasrdquo Atraveacutes do movimento organizado atransformaccedilatildeo das mulheres em ldquoprotagonistas de suas demandasrdquo envolveu seu

relativo ldquoempoderamentordquo No caso dos homens o ldquoprotagonismordquo implicajustamente o contraacuterio isto eacute assumir sua fragilidade e vulnerabilidade aprendendoa enunciar suas demandas Utiliza-se assim a mesma linguagem e os mesmosargumentos comumente presentes no discurso dos movimentos organizados paraefeitos aparentemente opostosNo acircmbito do documento uma das formas encontradas para lidar com esseaparente paradoxo que consiste em formular uma poliacutetica puacuteblica como se elafosse reivindicada pelos sujeitos por ela visados eacute desmembrar a categoria ldquohomemrdquoem uma seacuterie de subcategorias - iacutendios negros gays travestis portadores dedeficiecircncias trabalhadores rurais etc - que por outras razotildees satildeo historicamentemarginalizadas Ao que parece as mulheres podem formar mais facilmente umacategoria unificada mas os homens natildeo Homem pura e simplesmente semqualquer adjetivo natildeo parece ser uma identidade que se precise assumir (contra aspressotildees da sociedade) ou que se deva fortalecer ou pela qual se precise lutar Porisso talvez a necessidade de despedaccedilaacute-la num sem-nuacutemero de categorias demodo a tornar visiacutevel sua vulnerabilidade A politizaccedilatildeo e sensibilizaccedilatildeo do homemportanto tem por objetivo tornaacute-lo consciente dessa vulnerabilidade Soacute entatildeo eacutepossiacutevel medicalizaacute-lo Neste caso consciecircncia poliacutetica ldquoprotagonismordquo emedicalizaccedilatildeo aparecem como indissociaacuteveisA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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ReferecircnciasBOLTANSKI L As classes sociais e o corpo Rio de Janeiro Graal 1979BOURDIEU P O campo cientiacutefico In ORTIZ R (Org) Pierre Bourdieu Sociologia Satildeo PauloAacutetica 1983______ La domination masculine Paris Seuil 1998BRASIL Ministeacuterio da Sauacutede Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes) Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIAS Port2008PT-09-CONSpdf Acesso em maio 2009CARRARA S Tributo a Vecircnus a luta contra a siacutefilis no Brasil da passagem do seacuteculo aos anos 1940Rio de Janeiro Fiocruz 1996

______ Une science deacuterisoire Lacuteandrologie au Bregravesil entre les deux guerres Vibrant ndash VirtualBrazilian Anthropology v 1 n frac12 jan-dez 2004COSTA A M Desenvolvimento e Implantaccedilatildeo do PAISM no Brasil In GIFFIN Karen COSTAS H (Org) Questotildees da sauacutede reprodutiva Rio de Janeiro Fiocruz 1999FOUCAULT M Vigiar e punir Petroacutepolis Vozes 1977GOMES R Sexualidade masculina e sauacutede do homem proposta para uma discussatildeo CiecircnciaSauacutede Coletiva Rio de Janeiro n 8 p 825-9 2003GOMES R NASCIMENTO E F ARAUacuteJO F C Por que os homens buscam menos os serviccedilosde sauacutede do que as mulheres As explicaccedilotildees de homens com baixa escolaridade e homens comensino superior Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 23 n 3 mar 2007GOMES R NASCIMENTO E F A produccedilatildeo do conhecimento da sauacutede puacuteblica sobre arelaccedilatildeo homem-sauacutede uma revisatildeo bibliograacutefica Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 22n 5 p 901-911 maio 2006MEDRADO B LYRA J AZEVEDO M GRANJA E e VIEIRA S Princiacutepios diretrizes erecomendaccedilotildees para uma atenccedilatildeo integral aos homens na sauacutede Recife Instituto PAPAI 2009OLIVEIRA P P de A construccedilatildeo social da masculinidade Belo Horizonte UFMG 2004PEREIRA A L Accedilotildees educativas em contracepccedilatildeo teoria e praacutetica dos profissionais de sauacutede Tese(Doutorado em Sauacutede Coletiva) - Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio dejaneiro Rio de Janeiro 2008ROHDEN F Uma ciecircncia da diferenccedila sexo e gecircnero na medicina da mulher Rio de JaneiroFiocruz 2001SCHRAIBER L B GOMES R COUTO M T Homens e sauacutede na pauta da sauacutede coletivaCiecircncia e Sauacutede Coletiva v 10 n 1 p 7-17 2005| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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STOCKLE V Is Sex to Gender as Race is to Ethnicity In DEL VALLE T (Ed) GenderedAnthropology London Routledge 1993

Notas Uma primeira versatildeo deste texto foi apresentada no simpoacutesio The Future of Sexual Health SexualHealth in Public Health Policies no XIX Congresso da World Association for Sexual Health Gotemburgojunho de 2009 tendo utilizado dados colhidos na pesquisa ldquoDiferenccedilas de gecircnero na recentemedicalizaccedilatildeo do envelhecimento e sexualidade a criaccedilatildeo das categorias menopausa andropausa edisfunccedilatildeo sexualrdquo coordenada por Fabiacuteola Rohden e apoiada pelo CNPq1 A partir das reflexotildees de Michel Foucault (1977) em torno do panopticismo pode-se afirmar quedeterminados regimes de visibilidade configuram certos sujeitos que de outro modo inexistiriam ouexistiriam de modo inteiramente diferente Natildeo se trata aqui de entrarmos na polecircmica entreconstrutivismo e essencialismo ou seja de decidir se alguns sujeitos estavam sempre laacute agrave espera deserem descoberto ou se satildeo criados pela proacutepria ldquoluzrdquo que os ilumina2 Com ldquoobjetificaccedilatildeordquo natildeo nos referimos aqui a um processo de negaccedilatildeo aos homens de seu estatuto de

pessoa humana mas ao processo de instituiccedilatildeo de certos temas problemas ou sujeitos como objetoslegiacutetimos de conhecimento em determinado campo cientiacutefico conforme formulado originalmente porPierre Bourdieu (1983)3 A partir dos anos 1990 esse processo vem sendo acompanhado pela progressiva transformaccedilatildeo doshomens e da masculinidade em objeto de conhecimento tambeacutem das ciecircncias sociais configurandonovas aacutereas de conhecimento como os chamados ldquomenrsquos studiesrdquo Para isso ver entre outros Oliveira(2004)4 Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIASPort2008PT-09-CONSpdf (acessoem maio 2009)5 Eacute importante destacar que Joseacute Gomes Temporatildeo em 2006 quando ainda era Secretaacuterio Nacionalde Atenccedilatildeo agrave Sauacutede no Ministeacuterio da Sauacutede tentou criar centros de atenccedilatildeo agrave sauacutede no setor privadopara melhorar a assistecircncia agrave sauacutede do homem Em declaraccedilatildeo publicada no jornal O Estado de SatildeoPaulo em janeiro de 2006 Temporatildeo afirmou que o Ministeacuterio da Sauacutede estava analisando a possibilidadede oferecer tratamento para a disfunccedilatildeo ereacutetil atraveacutes da rede puacuteblica incluindo a distribuiccedilatildeo demedicamentos O governo estaria examinando o impacto financeiro de tal medida6 Ao que parece havia no acircmbito do MS desde 2006 uma Coordenaccedilatildeo de Sauacutede do Homem7 Nove meses depois foi substituiacutedo pelo Dr Baldur Schubert um assessor da sua equipe especialistaem seguridade social e sauacutede do trabalho8 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)9 Respectivamente Conselho Nacional de Secretaacuterios de Sauacutede e Conselho Nacional de SecretaacuteriosMunicipais de SauacutedeA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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10 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)11 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrpdf2008_saudehomempdf (acesso em maio 2009)12 Para a discussatildeo sobre a dominaccedilatildeo masculina ver Bourdieu (1998)13 Tais foacuteruns vecircm sendo organizados anualmente pela Comissatildeo de Seguridade Social e Famiacutelia daCacircmara dos Deputados em parceria com a SBU14 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrimagesfolder_noticiajpg (acesso em maio 2009)15 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)16 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)17 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)18 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)19 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)20 O documento passou por uma consulta puacuteblica e foi aprovado pelo Conselho Nacional de Sauacutede emjulho de 200921 O documento lanccedila matildeo de trabalhos importantes que no campo da sauacutede vecircm discutindo amasculinidade como Gomes (2003) Gomes e Nascimento (2006) Gomes et al (2007) Schraiber etal (2005)22 Lemos no documento que ldquoos indicadores apresentados visam a oferecer uma visatildeo ampliada doprocesso de adoecimento e de vulnerabilidade e agravos agrave sauacutede na populaccedilatildeo de homensrdquo (PNAISH2008 p 11)23 Esse aspecto foi tambeacutem destacado em reaccedilatildeo agraves diretrizes do Programa expressa em ldquodocumentomarcordquoproduzido por iniciativa de importantes organizaccedilotildees natildeo-governamentais brasileiras que haacute

muitos anos trabalham com o tema das masculinidades O texto aborda o Programa com base em umaleitura feminista de gecircnero Aleacutem de criticar a centralidade assumida pelas doenccedilas do aparelhogeniturinaacuterio na nova poliacutetica enfatiza-se tambeacutem a relativa desvalorizaccedilatildeo da promoccedilatildeo agrave sauacutede emfavor da oferta de serviccedilos de assistecircncia (MEDRADO et al 2009)24 Eacute interessante pensar como esse movimento vai de encontro agrave luta feminista contra a medicalizaccedilatildeodo corpo feminino25 Ver nota 2| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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mais relevantes agrave sauacutede masculina o documento dirige seu foco para as novastemaacuteticas da sauacutede sexual e dos direitos sexuais e reprodutivos Ateacute entatildeo pelomenos no que diz respeito a estes uacuteltimos tais temaacuteticas pareciam mais ligadas aosdiscursos feministas em torno da sauacutede da mulherAlgumas conclusotildees possiacuteveisO documento de algum modo afirma o caraacuteter ldquoinsalubrerdquo de certa masculinidadesendo os homens apresentados como viacutetimas de sua proacutepria masculinidade ouseja das crenccedilas e valores que constituiriam as ldquobarreiras socioculturaisrdquo que seantepotildeem agrave medicalizaccedilatildeo O objetivo principal do programa eacute enfraquecer aresistecircncia masculina agrave medicina de uma forma geral ou seja medicalizar oshomens24 Para tanto uma accedilatildeo educativa bem feita ldquomodernizariardquo os homensbrasileiros dissipando o pensamento maacutegico que os (des)orienta e que os tornapresas de seu proacuteprios preconceitosEntretanto a questatildeo nos parece bastante mais complexa do que imaginam osdefensores da nova poliacutetica pois essa situaccedilatildeo paradoxal dos homens em relaccedilatildeo asua proacutepria sauacutede e ao seu corpo - sua cultura somaacutetica como diria Luc Boltanski(1979) - deriva em larga medida da posiccedilatildeo que (ainda) ocupam na hierarquia degecircnero A questatildeo natildeo eacute de ldquoculturardquo portanto mas do modo como a cultura estaacuteimbricada ou implicada em relaccedilotildees de poder bem concretas que o discursovitimaacuterio e paternalista incorporado agrave nova poliacutetica contribui mais para ocultar doque revelar Para os homens articular reivindicaccedilotildees a partir de uma posiccedilatildeogenerificada e tornar-se visiacuteveis enquanto ldquohomensrdquo significa colocar-se no mesmoplano que as mulheres Perderiam assim a posiccedilatildeo de representantes universais daespeacutecie e arriscariam a perder tambeacutem suas prerrogativas na hierarquia de gecircneroTalvez seja por isso mesmo que eles natildeo o fazem natildeo havendo (ainda) organizaccedilotildeesldquomasculinistasrdquo como existem organizaccedilotildees ldquofeministasrdquoDesse modo a condiccedilatildeo para que ocorra a mudanccedila cultural necessaacuteria para

fazer com que os homens (heterossexuais) tenham uma relaccedilatildeo tatildeo reflexiva comseus proacuteprios corpos quanto seus vaacuterios ldquooutrosrdquo (mulheres homossexuais travestis)eacute que tais ldquooutrosrdquo tenham o mesmo poder e prestiacutegio que eles Tudo se passaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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como se os homens precisassem se tornar socialmente vulneraacuteveis para poderperceber sua vulnerabilidade bioloacutegica e para ver algum sentido na luta porultrapassaacute-la Dito de outro modo mostrar-se invulneraacutevel faz parte do exerciacuteciodo poder pelos homens e o poder tem um ldquopreccedilordquo (uma vida mais curta ou menossaudaacutevel) que parece os homens ainda estatildeo dispostos a pagar Diferentementedas mulheres que organizadas num amplo movimento procuraram atraveacutes depoliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas sair da posiccedilatildeo de subordinaccedilatildeo a que historicamenteestavam relegadas os homens soacute podem aparecer entatildeo como sujeitos passivosfrente agrave interpelaccedilatildeo que lhes dirigem a medicina e o Estado Acabam assimsendo retoricamente representados pelos meacutedicos sobretudo urologistas e pelosformuladores e executores de uma poliacutetica que supostamente se implanta em nomedeles mas sem sua participaccedilatildeoQuanto agrave ecircnfase dada aos direitos sexuais e reprodutivos parece-nos que taistemas tecircm uma dupla entrada no programa - atraveacutes da urologia (ou medicinasexual) e da incorporaccedilatildeo da retoacuterica de movimentos poliacuteticos organizados ASBU aparece como ator fundamental na formulaccedilatildeo da poliacutetica Como vimos oacordo de cooperaccedilatildeo teacutecnica assinado com o Ministeacuterio da Sauacutede teve como umde seus principais desdobramentos a campanha centrada na disfunccedilatildeo ereacutetil(lanccedilada antes mesmo da publicaccedilatildeo do documento) Eacute o tipo de pressatildeo quevem dos especialistas neste caso com um objetivo muito claro transformar adisfunccedilatildeo ereacutetil num problema de sauacutede puacuteblica o que eacute facilitado por doisfatores a declaraccedilatildeo do entatildeo Secretaacuterio Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede Joseacute Gomes

Temporatildeo em 200625 e a nomeaccedilatildeo de Ricardo Cavalcanti para a Coordenaccedilatildeoda Aacuterea Teacutecnica da Sauacutede do Homem Cavalcanti eacute um dos pais fundadores damoderna sexologia brasileira e embora sendo ginecologista de formaccedilatildeocertamente facilitou o diaacutelogo entre o governo e a SBU Neste caso a afirmaccedilatildeodos direitos sexuais passa pela sexologia e pela medicina sexualA leitura do documento nos leva agrave conclusatildeo de que a poliacutetica de aproximaccedilatildeocom o Ministeacuterio da Sauacutede e os formuladores de poliacuteticas puacuteblicas empreendidapela SBU foi bem-sucedida jaacute que a preocupaccedilatildeo com a sauacutede sexual (explicitadapor exemplo no objetivo de ldquoestimular implantar implementar e qualificarpessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) ultrapassa em grau deimportacircncia pelo menos no documento outros problemas possiacuteveis dentre osquais poderiacuteamos citar aleacutem da violecircncia os relacionados agrave sauacutede mental Por| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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outro lado a linguagem dos especialistas convive com uma outra tiacutepica doschamados movimentos sociais (lembremos que o documento afirma como umdos objetivos do programa ldquoincluir o enfoque de gecircnero orientaccedilatildeo sexualidentidade de gecircnero e condiccedilatildeo eacutetnico-racial nas accedilotildees educativasrdquo) produzindoum discurso hiacutebrido em que caminhos diversos parecem levar a um mesmoobjetivo final - a medicalizaccedilatildeo do corpo masculinoDe fato a presenccedila no documento do discurso dos movimentos sociaisnormalmente voltados para poliacuteticas identitaacuterias nos parece bastante forte Voltamosaqui a um trecho na introduccedilatildeo do documento segundo o qual o programa desauacutede do homem pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para o reconhecimentoe a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para que advenham sujeitosprotagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio e gozo dos direitos decidadaniardquo Isto eacute os homens devem paradoxalmente ser transformados em ldquosujeitosprotagonistas de suas demandasrdquo Atraveacutes do movimento organizado atransformaccedilatildeo das mulheres em ldquoprotagonistas de suas demandasrdquo envolveu seu

relativo ldquoempoderamentordquo No caso dos homens o ldquoprotagonismordquo implicajustamente o contraacuterio isto eacute assumir sua fragilidade e vulnerabilidade aprendendoa enunciar suas demandas Utiliza-se assim a mesma linguagem e os mesmosargumentos comumente presentes no discurso dos movimentos organizados paraefeitos aparentemente opostosNo acircmbito do documento uma das formas encontradas para lidar com esseaparente paradoxo que consiste em formular uma poliacutetica puacuteblica como se elafosse reivindicada pelos sujeitos por ela visados eacute desmembrar a categoria ldquohomemrdquoem uma seacuterie de subcategorias - iacutendios negros gays travestis portadores dedeficiecircncias trabalhadores rurais etc - que por outras razotildees satildeo historicamentemarginalizadas Ao que parece as mulheres podem formar mais facilmente umacategoria unificada mas os homens natildeo Homem pura e simplesmente semqualquer adjetivo natildeo parece ser uma identidade que se precise assumir (contra aspressotildees da sociedade) ou que se deva fortalecer ou pela qual se precise lutar Porisso talvez a necessidade de despedaccedilaacute-la num sem-nuacutemero de categorias demodo a tornar visiacutevel sua vulnerabilidade A politizaccedilatildeo e sensibilizaccedilatildeo do homemportanto tem por objetivo tornaacute-lo consciente dessa vulnerabilidade Soacute entatildeo eacutepossiacutevel medicalizaacute-lo Neste caso consciecircncia poliacutetica ldquoprotagonismordquo emedicalizaccedilatildeo aparecem como indissociaacuteveisA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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ReferecircnciasBOLTANSKI L As classes sociais e o corpo Rio de Janeiro Graal 1979BOURDIEU P O campo cientiacutefico In ORTIZ R (Org) Pierre Bourdieu Sociologia Satildeo PauloAacutetica 1983______ La domination masculine Paris Seuil 1998BRASIL Ministeacuterio da Sauacutede Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes) Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIAS Port2008PT-09-CONSpdf Acesso em maio 2009CARRARA S Tributo a Vecircnus a luta contra a siacutefilis no Brasil da passagem do seacuteculo aos anos 1940Rio de Janeiro Fiocruz 1996

______ Une science deacuterisoire Lacuteandrologie au Bregravesil entre les deux guerres Vibrant ndash VirtualBrazilian Anthropology v 1 n frac12 jan-dez 2004COSTA A M Desenvolvimento e Implantaccedilatildeo do PAISM no Brasil In GIFFIN Karen COSTAS H (Org) Questotildees da sauacutede reprodutiva Rio de Janeiro Fiocruz 1999FOUCAULT M Vigiar e punir Petroacutepolis Vozes 1977GOMES R Sexualidade masculina e sauacutede do homem proposta para uma discussatildeo CiecircnciaSauacutede Coletiva Rio de Janeiro n 8 p 825-9 2003GOMES R NASCIMENTO E F ARAUacuteJO F C Por que os homens buscam menos os serviccedilosde sauacutede do que as mulheres As explicaccedilotildees de homens com baixa escolaridade e homens comensino superior Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 23 n 3 mar 2007GOMES R NASCIMENTO E F A produccedilatildeo do conhecimento da sauacutede puacuteblica sobre arelaccedilatildeo homem-sauacutede uma revisatildeo bibliograacutefica Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 22n 5 p 901-911 maio 2006MEDRADO B LYRA J AZEVEDO M GRANJA E e VIEIRA S Princiacutepios diretrizes erecomendaccedilotildees para uma atenccedilatildeo integral aos homens na sauacutede Recife Instituto PAPAI 2009OLIVEIRA P P de A construccedilatildeo social da masculinidade Belo Horizonte UFMG 2004PEREIRA A L Accedilotildees educativas em contracepccedilatildeo teoria e praacutetica dos profissionais de sauacutede Tese(Doutorado em Sauacutede Coletiva) - Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio dejaneiro Rio de Janeiro 2008ROHDEN F Uma ciecircncia da diferenccedila sexo e gecircnero na medicina da mulher Rio de JaneiroFiocruz 2001SCHRAIBER L B GOMES R COUTO M T Homens e sauacutede na pauta da sauacutede coletivaCiecircncia e Sauacutede Coletiva v 10 n 1 p 7-17 2005| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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STOCKLE V Is Sex to Gender as Race is to Ethnicity In DEL VALLE T (Ed) GenderedAnthropology London Routledge 1993

Notas Uma primeira versatildeo deste texto foi apresentada no simpoacutesio The Future of Sexual Health SexualHealth in Public Health Policies no XIX Congresso da World Association for Sexual Health Gotemburgojunho de 2009 tendo utilizado dados colhidos na pesquisa ldquoDiferenccedilas de gecircnero na recentemedicalizaccedilatildeo do envelhecimento e sexualidade a criaccedilatildeo das categorias menopausa andropausa edisfunccedilatildeo sexualrdquo coordenada por Fabiacuteola Rohden e apoiada pelo CNPq1 A partir das reflexotildees de Michel Foucault (1977) em torno do panopticismo pode-se afirmar quedeterminados regimes de visibilidade configuram certos sujeitos que de outro modo inexistiriam ouexistiriam de modo inteiramente diferente Natildeo se trata aqui de entrarmos na polecircmica entreconstrutivismo e essencialismo ou seja de decidir se alguns sujeitos estavam sempre laacute agrave espera deserem descoberto ou se satildeo criados pela proacutepria ldquoluzrdquo que os ilumina2 Com ldquoobjetificaccedilatildeordquo natildeo nos referimos aqui a um processo de negaccedilatildeo aos homens de seu estatuto de

pessoa humana mas ao processo de instituiccedilatildeo de certos temas problemas ou sujeitos como objetoslegiacutetimos de conhecimento em determinado campo cientiacutefico conforme formulado originalmente porPierre Bourdieu (1983)3 A partir dos anos 1990 esse processo vem sendo acompanhado pela progressiva transformaccedilatildeo doshomens e da masculinidade em objeto de conhecimento tambeacutem das ciecircncias sociais configurandonovas aacutereas de conhecimento como os chamados ldquomenrsquos studiesrdquo Para isso ver entre outros Oliveira(2004)4 Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIASPort2008PT-09-CONSpdf (acessoem maio 2009)5 Eacute importante destacar que Joseacute Gomes Temporatildeo em 2006 quando ainda era Secretaacuterio Nacionalde Atenccedilatildeo agrave Sauacutede no Ministeacuterio da Sauacutede tentou criar centros de atenccedilatildeo agrave sauacutede no setor privadopara melhorar a assistecircncia agrave sauacutede do homem Em declaraccedilatildeo publicada no jornal O Estado de SatildeoPaulo em janeiro de 2006 Temporatildeo afirmou que o Ministeacuterio da Sauacutede estava analisando a possibilidadede oferecer tratamento para a disfunccedilatildeo ereacutetil atraveacutes da rede puacuteblica incluindo a distribuiccedilatildeo demedicamentos O governo estaria examinando o impacto financeiro de tal medida6 Ao que parece havia no acircmbito do MS desde 2006 uma Coordenaccedilatildeo de Sauacutede do Homem7 Nove meses depois foi substituiacutedo pelo Dr Baldur Schubert um assessor da sua equipe especialistaem seguridade social e sauacutede do trabalho8 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)9 Respectivamente Conselho Nacional de Secretaacuterios de Sauacutede e Conselho Nacional de SecretaacuteriosMunicipais de SauacutedeA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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10 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)11 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrpdf2008_saudehomempdf (acesso em maio 2009)12 Para a discussatildeo sobre a dominaccedilatildeo masculina ver Bourdieu (1998)13 Tais foacuteruns vecircm sendo organizados anualmente pela Comissatildeo de Seguridade Social e Famiacutelia daCacircmara dos Deputados em parceria com a SBU14 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrimagesfolder_noticiajpg (acesso em maio 2009)15 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)16 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)17 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)18 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)19 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)20 O documento passou por uma consulta puacuteblica e foi aprovado pelo Conselho Nacional de Sauacutede emjulho de 200921 O documento lanccedila matildeo de trabalhos importantes que no campo da sauacutede vecircm discutindo amasculinidade como Gomes (2003) Gomes e Nascimento (2006) Gomes et al (2007) Schraiber etal (2005)22 Lemos no documento que ldquoos indicadores apresentados visam a oferecer uma visatildeo ampliada doprocesso de adoecimento e de vulnerabilidade e agravos agrave sauacutede na populaccedilatildeo de homensrdquo (PNAISH2008 p 11)23 Esse aspecto foi tambeacutem destacado em reaccedilatildeo agraves diretrizes do Programa expressa em ldquodocumentomarcordquoproduzido por iniciativa de importantes organizaccedilotildees natildeo-governamentais brasileiras que haacute

muitos anos trabalham com o tema das masculinidades O texto aborda o Programa com base em umaleitura feminista de gecircnero Aleacutem de criticar a centralidade assumida pelas doenccedilas do aparelhogeniturinaacuterio na nova poliacutetica enfatiza-se tambeacutem a relativa desvalorizaccedilatildeo da promoccedilatildeo agrave sauacutede emfavor da oferta de serviccedilos de assistecircncia (MEDRADO et al 2009)24 Eacute interessante pensar como esse movimento vai de encontro agrave luta feminista contra a medicalizaccedilatildeodo corpo feminino25 Ver nota 2| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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fazer com que os homens (heterossexuais) tenham uma relaccedilatildeo tatildeo reflexiva comseus proacuteprios corpos quanto seus vaacuterios ldquooutrosrdquo (mulheres homossexuais travestis)eacute que tais ldquooutrosrdquo tenham o mesmo poder e prestiacutegio que eles Tudo se passaA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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como se os homens precisassem se tornar socialmente vulneraacuteveis para poderperceber sua vulnerabilidade bioloacutegica e para ver algum sentido na luta porultrapassaacute-la Dito de outro modo mostrar-se invulneraacutevel faz parte do exerciacuteciodo poder pelos homens e o poder tem um ldquopreccedilordquo (uma vida mais curta ou menossaudaacutevel) que parece os homens ainda estatildeo dispostos a pagar Diferentementedas mulheres que organizadas num amplo movimento procuraram atraveacutes depoliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas sair da posiccedilatildeo de subordinaccedilatildeo a que historicamenteestavam relegadas os homens soacute podem aparecer entatildeo como sujeitos passivosfrente agrave interpelaccedilatildeo que lhes dirigem a medicina e o Estado Acabam assimsendo retoricamente representados pelos meacutedicos sobretudo urologistas e pelosformuladores e executores de uma poliacutetica que supostamente se implanta em nomedeles mas sem sua participaccedilatildeoQuanto agrave ecircnfase dada aos direitos sexuais e reprodutivos parece-nos que taistemas tecircm uma dupla entrada no programa - atraveacutes da urologia (ou medicinasexual) e da incorporaccedilatildeo da retoacuterica de movimentos poliacuteticos organizados ASBU aparece como ator fundamental na formulaccedilatildeo da poliacutetica Como vimos oacordo de cooperaccedilatildeo teacutecnica assinado com o Ministeacuterio da Sauacutede teve como umde seus principais desdobramentos a campanha centrada na disfunccedilatildeo ereacutetil(lanccedilada antes mesmo da publicaccedilatildeo do documento) Eacute o tipo de pressatildeo quevem dos especialistas neste caso com um objetivo muito claro transformar adisfunccedilatildeo ereacutetil num problema de sauacutede puacuteblica o que eacute facilitado por doisfatores a declaraccedilatildeo do entatildeo Secretaacuterio Nacional de Atenccedilatildeo agrave Sauacutede Joseacute Gomes

Temporatildeo em 200625 e a nomeaccedilatildeo de Ricardo Cavalcanti para a Coordenaccedilatildeoda Aacuterea Teacutecnica da Sauacutede do Homem Cavalcanti eacute um dos pais fundadores damoderna sexologia brasileira e embora sendo ginecologista de formaccedilatildeocertamente facilitou o diaacutelogo entre o governo e a SBU Neste caso a afirmaccedilatildeodos direitos sexuais passa pela sexologia e pela medicina sexualA leitura do documento nos leva agrave conclusatildeo de que a poliacutetica de aproximaccedilatildeocom o Ministeacuterio da Sauacutede e os formuladores de poliacuteticas puacuteblicas empreendidapela SBU foi bem-sucedida jaacute que a preocupaccedilatildeo com a sauacutede sexual (explicitadapor exemplo no objetivo de ldquoestimular implantar implementar e qualificarpessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) ultrapassa em grau deimportacircncia pelo menos no documento outros problemas possiacuteveis dentre osquais poderiacuteamos citar aleacutem da violecircncia os relacionados agrave sauacutede mental Por| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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outro lado a linguagem dos especialistas convive com uma outra tiacutepica doschamados movimentos sociais (lembremos que o documento afirma como umdos objetivos do programa ldquoincluir o enfoque de gecircnero orientaccedilatildeo sexualidentidade de gecircnero e condiccedilatildeo eacutetnico-racial nas accedilotildees educativasrdquo) produzindoum discurso hiacutebrido em que caminhos diversos parecem levar a um mesmoobjetivo final - a medicalizaccedilatildeo do corpo masculinoDe fato a presenccedila no documento do discurso dos movimentos sociaisnormalmente voltados para poliacuteticas identitaacuterias nos parece bastante forte Voltamosaqui a um trecho na introduccedilatildeo do documento segundo o qual o programa desauacutede do homem pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para o reconhecimentoe a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para que advenham sujeitosprotagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio e gozo dos direitos decidadaniardquo Isto eacute os homens devem paradoxalmente ser transformados em ldquosujeitosprotagonistas de suas demandasrdquo Atraveacutes do movimento organizado atransformaccedilatildeo das mulheres em ldquoprotagonistas de suas demandasrdquo envolveu seu

relativo ldquoempoderamentordquo No caso dos homens o ldquoprotagonismordquo implicajustamente o contraacuterio isto eacute assumir sua fragilidade e vulnerabilidade aprendendoa enunciar suas demandas Utiliza-se assim a mesma linguagem e os mesmosargumentos comumente presentes no discurso dos movimentos organizados paraefeitos aparentemente opostosNo acircmbito do documento uma das formas encontradas para lidar com esseaparente paradoxo que consiste em formular uma poliacutetica puacuteblica como se elafosse reivindicada pelos sujeitos por ela visados eacute desmembrar a categoria ldquohomemrdquoem uma seacuterie de subcategorias - iacutendios negros gays travestis portadores dedeficiecircncias trabalhadores rurais etc - que por outras razotildees satildeo historicamentemarginalizadas Ao que parece as mulheres podem formar mais facilmente umacategoria unificada mas os homens natildeo Homem pura e simplesmente semqualquer adjetivo natildeo parece ser uma identidade que se precise assumir (contra aspressotildees da sociedade) ou que se deva fortalecer ou pela qual se precise lutar Porisso talvez a necessidade de despedaccedilaacute-la num sem-nuacutemero de categorias demodo a tornar visiacutevel sua vulnerabilidade A politizaccedilatildeo e sensibilizaccedilatildeo do homemportanto tem por objetivo tornaacute-lo consciente dessa vulnerabilidade Soacute entatildeo eacutepossiacutevel medicalizaacute-lo Neste caso consciecircncia poliacutetica ldquoprotagonismordquo emedicalizaccedilatildeo aparecem como indissociaacuteveisA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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ReferecircnciasBOLTANSKI L As classes sociais e o corpo Rio de Janeiro Graal 1979BOURDIEU P O campo cientiacutefico In ORTIZ R (Org) Pierre Bourdieu Sociologia Satildeo PauloAacutetica 1983______ La domination masculine Paris Seuil 1998BRASIL Ministeacuterio da Sauacutede Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes) Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIAS Port2008PT-09-CONSpdf Acesso em maio 2009CARRARA S Tributo a Vecircnus a luta contra a siacutefilis no Brasil da passagem do seacuteculo aos anos 1940Rio de Janeiro Fiocruz 1996

______ Une science deacuterisoire Lacuteandrologie au Bregravesil entre les deux guerres Vibrant ndash VirtualBrazilian Anthropology v 1 n frac12 jan-dez 2004COSTA A M Desenvolvimento e Implantaccedilatildeo do PAISM no Brasil In GIFFIN Karen COSTAS H (Org) Questotildees da sauacutede reprodutiva Rio de Janeiro Fiocruz 1999FOUCAULT M Vigiar e punir Petroacutepolis Vozes 1977GOMES R Sexualidade masculina e sauacutede do homem proposta para uma discussatildeo CiecircnciaSauacutede Coletiva Rio de Janeiro n 8 p 825-9 2003GOMES R NASCIMENTO E F ARAUacuteJO F C Por que os homens buscam menos os serviccedilosde sauacutede do que as mulheres As explicaccedilotildees de homens com baixa escolaridade e homens comensino superior Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 23 n 3 mar 2007GOMES R NASCIMENTO E F A produccedilatildeo do conhecimento da sauacutede puacuteblica sobre arelaccedilatildeo homem-sauacutede uma revisatildeo bibliograacutefica Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 22n 5 p 901-911 maio 2006MEDRADO B LYRA J AZEVEDO M GRANJA E e VIEIRA S Princiacutepios diretrizes erecomendaccedilotildees para uma atenccedilatildeo integral aos homens na sauacutede Recife Instituto PAPAI 2009OLIVEIRA P P de A construccedilatildeo social da masculinidade Belo Horizonte UFMG 2004PEREIRA A L Accedilotildees educativas em contracepccedilatildeo teoria e praacutetica dos profissionais de sauacutede Tese(Doutorado em Sauacutede Coletiva) - Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio dejaneiro Rio de Janeiro 2008ROHDEN F Uma ciecircncia da diferenccedila sexo e gecircnero na medicina da mulher Rio de JaneiroFiocruz 2001SCHRAIBER L B GOMES R COUTO M T Homens e sauacutede na pauta da sauacutede coletivaCiecircncia e Sauacutede Coletiva v 10 n 1 p 7-17 2005| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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STOCKLE V Is Sex to Gender as Race is to Ethnicity In DEL VALLE T (Ed) GenderedAnthropology London Routledge 1993

Notas Uma primeira versatildeo deste texto foi apresentada no simpoacutesio The Future of Sexual Health SexualHealth in Public Health Policies no XIX Congresso da World Association for Sexual Health Gotemburgojunho de 2009 tendo utilizado dados colhidos na pesquisa ldquoDiferenccedilas de gecircnero na recentemedicalizaccedilatildeo do envelhecimento e sexualidade a criaccedilatildeo das categorias menopausa andropausa edisfunccedilatildeo sexualrdquo coordenada por Fabiacuteola Rohden e apoiada pelo CNPq1 A partir das reflexotildees de Michel Foucault (1977) em torno do panopticismo pode-se afirmar quedeterminados regimes de visibilidade configuram certos sujeitos que de outro modo inexistiriam ouexistiriam de modo inteiramente diferente Natildeo se trata aqui de entrarmos na polecircmica entreconstrutivismo e essencialismo ou seja de decidir se alguns sujeitos estavam sempre laacute agrave espera deserem descoberto ou se satildeo criados pela proacutepria ldquoluzrdquo que os ilumina2 Com ldquoobjetificaccedilatildeordquo natildeo nos referimos aqui a um processo de negaccedilatildeo aos homens de seu estatuto de

pessoa humana mas ao processo de instituiccedilatildeo de certos temas problemas ou sujeitos como objetoslegiacutetimos de conhecimento em determinado campo cientiacutefico conforme formulado originalmente porPierre Bourdieu (1983)3 A partir dos anos 1990 esse processo vem sendo acompanhado pela progressiva transformaccedilatildeo doshomens e da masculinidade em objeto de conhecimento tambeacutem das ciecircncias sociais configurandonovas aacutereas de conhecimento como os chamados ldquomenrsquos studiesrdquo Para isso ver entre outros Oliveira(2004)4 Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIASPort2008PT-09-CONSpdf (acessoem maio 2009)5 Eacute importante destacar que Joseacute Gomes Temporatildeo em 2006 quando ainda era Secretaacuterio Nacionalde Atenccedilatildeo agrave Sauacutede no Ministeacuterio da Sauacutede tentou criar centros de atenccedilatildeo agrave sauacutede no setor privadopara melhorar a assistecircncia agrave sauacutede do homem Em declaraccedilatildeo publicada no jornal O Estado de SatildeoPaulo em janeiro de 2006 Temporatildeo afirmou que o Ministeacuterio da Sauacutede estava analisando a possibilidadede oferecer tratamento para a disfunccedilatildeo ereacutetil atraveacutes da rede puacuteblica incluindo a distribuiccedilatildeo demedicamentos O governo estaria examinando o impacto financeiro de tal medida6 Ao que parece havia no acircmbito do MS desde 2006 uma Coordenaccedilatildeo de Sauacutede do Homem7 Nove meses depois foi substituiacutedo pelo Dr Baldur Schubert um assessor da sua equipe especialistaem seguridade social e sauacutede do trabalho8 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)9 Respectivamente Conselho Nacional de Secretaacuterios de Sauacutede e Conselho Nacional de SecretaacuteriosMunicipais de SauacutedeA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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10 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)11 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrpdf2008_saudehomempdf (acesso em maio 2009)12 Para a discussatildeo sobre a dominaccedilatildeo masculina ver Bourdieu (1998)13 Tais foacuteruns vecircm sendo organizados anualmente pela Comissatildeo de Seguridade Social e Famiacutelia daCacircmara dos Deputados em parceria com a SBU14 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrimagesfolder_noticiajpg (acesso em maio 2009)15 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)16 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)17 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)18 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)19 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)20 O documento passou por uma consulta puacuteblica e foi aprovado pelo Conselho Nacional de Sauacutede emjulho de 200921 O documento lanccedila matildeo de trabalhos importantes que no campo da sauacutede vecircm discutindo amasculinidade como Gomes (2003) Gomes e Nascimento (2006) Gomes et al (2007) Schraiber etal (2005)22 Lemos no documento que ldquoos indicadores apresentados visam a oferecer uma visatildeo ampliada doprocesso de adoecimento e de vulnerabilidade e agravos agrave sauacutede na populaccedilatildeo de homensrdquo (PNAISH2008 p 11)23 Esse aspecto foi tambeacutem destacado em reaccedilatildeo agraves diretrizes do Programa expressa em ldquodocumentomarcordquoproduzido por iniciativa de importantes organizaccedilotildees natildeo-governamentais brasileiras que haacute

muitos anos trabalham com o tema das masculinidades O texto aborda o Programa com base em umaleitura feminista de gecircnero Aleacutem de criticar a centralidade assumida pelas doenccedilas do aparelhogeniturinaacuterio na nova poliacutetica enfatiza-se tambeacutem a relativa desvalorizaccedilatildeo da promoccedilatildeo agrave sauacutede emfavor da oferta de serviccedilos de assistecircncia (MEDRADO et al 2009)24 Eacute interessante pensar como esse movimento vai de encontro agrave luta feminista contra a medicalizaccedilatildeodo corpo feminino25 Ver nota 2| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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Temporatildeo em 200625 e a nomeaccedilatildeo de Ricardo Cavalcanti para a Coordenaccedilatildeoda Aacuterea Teacutecnica da Sauacutede do Homem Cavalcanti eacute um dos pais fundadores damoderna sexologia brasileira e embora sendo ginecologista de formaccedilatildeocertamente facilitou o diaacutelogo entre o governo e a SBU Neste caso a afirmaccedilatildeodos direitos sexuais passa pela sexologia e pela medicina sexualA leitura do documento nos leva agrave conclusatildeo de que a poliacutetica de aproximaccedilatildeocom o Ministeacuterio da Sauacutede e os formuladores de poliacuteticas puacuteblicas empreendidapela SBU foi bem-sucedida jaacute que a preocupaccedilatildeo com a sauacutede sexual (explicitadapor exemplo no objetivo de ldquoestimular implantar implementar e qualificarpessoal para a atenccedilatildeo agraves disfunccedilotildees sexuais masculinasrdquo) ultrapassa em grau deimportacircncia pelo menos no documento outros problemas possiacuteveis dentre osquais poderiacuteamos citar aleacutem da violecircncia os relacionados agrave sauacutede mental Por| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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outro lado a linguagem dos especialistas convive com uma outra tiacutepica doschamados movimentos sociais (lembremos que o documento afirma como umdos objetivos do programa ldquoincluir o enfoque de gecircnero orientaccedilatildeo sexualidentidade de gecircnero e condiccedilatildeo eacutetnico-racial nas accedilotildees educativasrdquo) produzindoum discurso hiacutebrido em que caminhos diversos parecem levar a um mesmoobjetivo final - a medicalizaccedilatildeo do corpo masculinoDe fato a presenccedila no documento do discurso dos movimentos sociaisnormalmente voltados para poliacuteticas identitaacuterias nos parece bastante forte Voltamosaqui a um trecho na introduccedilatildeo do documento segundo o qual o programa desauacutede do homem pretende ldquopolitizar e sensibilizar homens para o reconhecimentoe a enunciaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais e de sauacutede para que advenham sujeitosprotagonistas de suas demandas consolidando seu exerciacutecio e gozo dos direitos decidadaniardquo Isto eacute os homens devem paradoxalmente ser transformados em ldquosujeitosprotagonistas de suas demandasrdquo Atraveacutes do movimento organizado atransformaccedilatildeo das mulheres em ldquoprotagonistas de suas demandasrdquo envolveu seu

relativo ldquoempoderamentordquo No caso dos homens o ldquoprotagonismordquo implicajustamente o contraacuterio isto eacute assumir sua fragilidade e vulnerabilidade aprendendoa enunciar suas demandas Utiliza-se assim a mesma linguagem e os mesmosargumentos comumente presentes no discurso dos movimentos organizados paraefeitos aparentemente opostosNo acircmbito do documento uma das formas encontradas para lidar com esseaparente paradoxo que consiste em formular uma poliacutetica puacuteblica como se elafosse reivindicada pelos sujeitos por ela visados eacute desmembrar a categoria ldquohomemrdquoem uma seacuterie de subcategorias - iacutendios negros gays travestis portadores dedeficiecircncias trabalhadores rurais etc - que por outras razotildees satildeo historicamentemarginalizadas Ao que parece as mulheres podem formar mais facilmente umacategoria unificada mas os homens natildeo Homem pura e simplesmente semqualquer adjetivo natildeo parece ser uma identidade que se precise assumir (contra aspressotildees da sociedade) ou que se deva fortalecer ou pela qual se precise lutar Porisso talvez a necessidade de despedaccedilaacute-la num sem-nuacutemero de categorias demodo a tornar visiacutevel sua vulnerabilidade A politizaccedilatildeo e sensibilizaccedilatildeo do homemportanto tem por objetivo tornaacute-lo consciente dessa vulnerabilidade Soacute entatildeo eacutepossiacutevel medicalizaacute-lo Neste caso consciecircncia poliacutetica ldquoprotagonismordquo emedicalizaccedilatildeo aparecem como indissociaacuteveisA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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ReferecircnciasBOLTANSKI L As classes sociais e o corpo Rio de Janeiro Graal 1979BOURDIEU P O campo cientiacutefico In ORTIZ R (Org) Pierre Bourdieu Sociologia Satildeo PauloAacutetica 1983______ La domination masculine Paris Seuil 1998BRASIL Ministeacuterio da Sauacutede Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes) Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIAS Port2008PT-09-CONSpdf Acesso em maio 2009CARRARA S Tributo a Vecircnus a luta contra a siacutefilis no Brasil da passagem do seacuteculo aos anos 1940Rio de Janeiro Fiocruz 1996

______ Une science deacuterisoire Lacuteandrologie au Bregravesil entre les deux guerres Vibrant ndash VirtualBrazilian Anthropology v 1 n frac12 jan-dez 2004COSTA A M Desenvolvimento e Implantaccedilatildeo do PAISM no Brasil In GIFFIN Karen COSTAS H (Org) Questotildees da sauacutede reprodutiva Rio de Janeiro Fiocruz 1999FOUCAULT M Vigiar e punir Petroacutepolis Vozes 1977GOMES R Sexualidade masculina e sauacutede do homem proposta para uma discussatildeo CiecircnciaSauacutede Coletiva Rio de Janeiro n 8 p 825-9 2003GOMES R NASCIMENTO E F ARAUacuteJO F C Por que os homens buscam menos os serviccedilosde sauacutede do que as mulheres As explicaccedilotildees de homens com baixa escolaridade e homens comensino superior Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 23 n 3 mar 2007GOMES R NASCIMENTO E F A produccedilatildeo do conhecimento da sauacutede puacuteblica sobre arelaccedilatildeo homem-sauacutede uma revisatildeo bibliograacutefica Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 22n 5 p 901-911 maio 2006MEDRADO B LYRA J AZEVEDO M GRANJA E e VIEIRA S Princiacutepios diretrizes erecomendaccedilotildees para uma atenccedilatildeo integral aos homens na sauacutede Recife Instituto PAPAI 2009OLIVEIRA P P de A construccedilatildeo social da masculinidade Belo Horizonte UFMG 2004PEREIRA A L Accedilotildees educativas em contracepccedilatildeo teoria e praacutetica dos profissionais de sauacutede Tese(Doutorado em Sauacutede Coletiva) - Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio dejaneiro Rio de Janeiro 2008ROHDEN F Uma ciecircncia da diferenccedila sexo e gecircnero na medicina da mulher Rio de JaneiroFiocruz 2001SCHRAIBER L B GOMES R COUTO M T Homens e sauacutede na pauta da sauacutede coletivaCiecircncia e Sauacutede Coletiva v 10 n 1 p 7-17 2005| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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STOCKLE V Is Sex to Gender as Race is to Ethnicity In DEL VALLE T (Ed) GenderedAnthropology London Routledge 1993

Notas Uma primeira versatildeo deste texto foi apresentada no simpoacutesio The Future of Sexual Health SexualHealth in Public Health Policies no XIX Congresso da World Association for Sexual Health Gotemburgojunho de 2009 tendo utilizado dados colhidos na pesquisa ldquoDiferenccedilas de gecircnero na recentemedicalizaccedilatildeo do envelhecimento e sexualidade a criaccedilatildeo das categorias menopausa andropausa edisfunccedilatildeo sexualrdquo coordenada por Fabiacuteola Rohden e apoiada pelo CNPq1 A partir das reflexotildees de Michel Foucault (1977) em torno do panopticismo pode-se afirmar quedeterminados regimes de visibilidade configuram certos sujeitos que de outro modo inexistiriam ouexistiriam de modo inteiramente diferente Natildeo se trata aqui de entrarmos na polecircmica entreconstrutivismo e essencialismo ou seja de decidir se alguns sujeitos estavam sempre laacute agrave espera deserem descoberto ou se satildeo criados pela proacutepria ldquoluzrdquo que os ilumina2 Com ldquoobjetificaccedilatildeordquo natildeo nos referimos aqui a um processo de negaccedilatildeo aos homens de seu estatuto de

pessoa humana mas ao processo de instituiccedilatildeo de certos temas problemas ou sujeitos como objetoslegiacutetimos de conhecimento em determinado campo cientiacutefico conforme formulado originalmente porPierre Bourdieu (1983)3 A partir dos anos 1990 esse processo vem sendo acompanhado pela progressiva transformaccedilatildeo doshomens e da masculinidade em objeto de conhecimento tambeacutem das ciecircncias sociais configurandonovas aacutereas de conhecimento como os chamados ldquomenrsquos studiesrdquo Para isso ver entre outros Oliveira(2004)4 Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIASPort2008PT-09-CONSpdf (acessoem maio 2009)5 Eacute importante destacar que Joseacute Gomes Temporatildeo em 2006 quando ainda era Secretaacuterio Nacionalde Atenccedilatildeo agrave Sauacutede no Ministeacuterio da Sauacutede tentou criar centros de atenccedilatildeo agrave sauacutede no setor privadopara melhorar a assistecircncia agrave sauacutede do homem Em declaraccedilatildeo publicada no jornal O Estado de SatildeoPaulo em janeiro de 2006 Temporatildeo afirmou que o Ministeacuterio da Sauacutede estava analisando a possibilidadede oferecer tratamento para a disfunccedilatildeo ereacutetil atraveacutes da rede puacuteblica incluindo a distribuiccedilatildeo demedicamentos O governo estaria examinando o impacto financeiro de tal medida6 Ao que parece havia no acircmbito do MS desde 2006 uma Coordenaccedilatildeo de Sauacutede do Homem7 Nove meses depois foi substituiacutedo pelo Dr Baldur Schubert um assessor da sua equipe especialistaem seguridade social e sauacutede do trabalho8 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)9 Respectivamente Conselho Nacional de Secretaacuterios de Sauacutede e Conselho Nacional de SecretaacuteriosMunicipais de SauacutedeA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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10 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)11 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrpdf2008_saudehomempdf (acesso em maio 2009)12 Para a discussatildeo sobre a dominaccedilatildeo masculina ver Bourdieu (1998)13 Tais foacuteruns vecircm sendo organizados anualmente pela Comissatildeo de Seguridade Social e Famiacutelia daCacircmara dos Deputados em parceria com a SBU14 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrimagesfolder_noticiajpg (acesso em maio 2009)15 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)16 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)17 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)18 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)19 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)20 O documento passou por uma consulta puacuteblica e foi aprovado pelo Conselho Nacional de Sauacutede emjulho de 200921 O documento lanccedila matildeo de trabalhos importantes que no campo da sauacutede vecircm discutindo amasculinidade como Gomes (2003) Gomes e Nascimento (2006) Gomes et al (2007) Schraiber etal (2005)22 Lemos no documento que ldquoos indicadores apresentados visam a oferecer uma visatildeo ampliada doprocesso de adoecimento e de vulnerabilidade e agravos agrave sauacutede na populaccedilatildeo de homensrdquo (PNAISH2008 p 11)23 Esse aspecto foi tambeacutem destacado em reaccedilatildeo agraves diretrizes do Programa expressa em ldquodocumentomarcordquoproduzido por iniciativa de importantes organizaccedilotildees natildeo-governamentais brasileiras que haacute

muitos anos trabalham com o tema das masculinidades O texto aborda o Programa com base em umaleitura feminista de gecircnero Aleacutem de criticar a centralidade assumida pelas doenccedilas do aparelhogeniturinaacuterio na nova poliacutetica enfatiza-se tambeacutem a relativa desvalorizaccedilatildeo da promoccedilatildeo agrave sauacutede emfavor da oferta de serviccedilos de assistecircncia (MEDRADO et al 2009)24 Eacute interessante pensar como esse movimento vai de encontro agrave luta feminista contra a medicalizaccedilatildeodo corpo feminino25 Ver nota 2| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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relativo ldquoempoderamentordquo No caso dos homens o ldquoprotagonismordquo implicajustamente o contraacuterio isto eacute assumir sua fragilidade e vulnerabilidade aprendendoa enunciar suas demandas Utiliza-se assim a mesma linguagem e os mesmosargumentos comumente presentes no discurso dos movimentos organizados paraefeitos aparentemente opostosNo acircmbito do documento uma das formas encontradas para lidar com esseaparente paradoxo que consiste em formular uma poliacutetica puacuteblica como se elafosse reivindicada pelos sujeitos por ela visados eacute desmembrar a categoria ldquohomemrdquoem uma seacuterie de subcategorias - iacutendios negros gays travestis portadores dedeficiecircncias trabalhadores rurais etc - que por outras razotildees satildeo historicamentemarginalizadas Ao que parece as mulheres podem formar mais facilmente umacategoria unificada mas os homens natildeo Homem pura e simplesmente semqualquer adjetivo natildeo parece ser uma identidade que se precise assumir (contra aspressotildees da sociedade) ou que se deva fortalecer ou pela qual se precise lutar Porisso talvez a necessidade de despedaccedilaacute-la num sem-nuacutemero de categorias demodo a tornar visiacutevel sua vulnerabilidade A politizaccedilatildeo e sensibilizaccedilatildeo do homemportanto tem por objetivo tornaacute-lo consciente dessa vulnerabilidade Soacute entatildeo eacutepossiacutevel medicalizaacute-lo Neste caso consciecircncia poliacutetica ldquoprotagonismordquo emedicalizaccedilatildeo aparecem como indissociaacuteveisA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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ReferecircnciasBOLTANSKI L As classes sociais e o corpo Rio de Janeiro Graal 1979BOURDIEU P O campo cientiacutefico In ORTIZ R (Org) Pierre Bourdieu Sociologia Satildeo PauloAacutetica 1983______ La domination masculine Paris Seuil 1998BRASIL Ministeacuterio da Sauacutede Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede do Homem (princiacutepiose diretrizes) Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIAS Port2008PT-09-CONSpdf Acesso em maio 2009CARRARA S Tributo a Vecircnus a luta contra a siacutefilis no Brasil da passagem do seacuteculo aos anos 1940Rio de Janeiro Fiocruz 1996

______ Une science deacuterisoire Lacuteandrologie au Bregravesil entre les deux guerres Vibrant ndash VirtualBrazilian Anthropology v 1 n frac12 jan-dez 2004COSTA A M Desenvolvimento e Implantaccedilatildeo do PAISM no Brasil In GIFFIN Karen COSTAS H (Org) Questotildees da sauacutede reprodutiva Rio de Janeiro Fiocruz 1999FOUCAULT M Vigiar e punir Petroacutepolis Vozes 1977GOMES R Sexualidade masculina e sauacutede do homem proposta para uma discussatildeo CiecircnciaSauacutede Coletiva Rio de Janeiro n 8 p 825-9 2003GOMES R NASCIMENTO E F ARAUacuteJO F C Por que os homens buscam menos os serviccedilosde sauacutede do que as mulheres As explicaccedilotildees de homens com baixa escolaridade e homens comensino superior Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 23 n 3 mar 2007GOMES R NASCIMENTO E F A produccedilatildeo do conhecimento da sauacutede puacuteblica sobre arelaccedilatildeo homem-sauacutede uma revisatildeo bibliograacutefica Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 22n 5 p 901-911 maio 2006MEDRADO B LYRA J AZEVEDO M GRANJA E e VIEIRA S Princiacutepios diretrizes erecomendaccedilotildees para uma atenccedilatildeo integral aos homens na sauacutede Recife Instituto PAPAI 2009OLIVEIRA P P de A construccedilatildeo social da masculinidade Belo Horizonte UFMG 2004PEREIRA A L Accedilotildees educativas em contracepccedilatildeo teoria e praacutetica dos profissionais de sauacutede Tese(Doutorado em Sauacutede Coletiva) - Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio dejaneiro Rio de Janeiro 2008ROHDEN F Uma ciecircncia da diferenccedila sexo e gecircnero na medicina da mulher Rio de JaneiroFiocruz 2001SCHRAIBER L B GOMES R COUTO M T Homens e sauacutede na pauta da sauacutede coletivaCiecircncia e Sauacutede Coletiva v 10 n 1 p 7-17 2005| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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STOCKLE V Is Sex to Gender as Race is to Ethnicity In DEL VALLE T (Ed) GenderedAnthropology London Routledge 1993

Notas Uma primeira versatildeo deste texto foi apresentada no simpoacutesio The Future of Sexual Health SexualHealth in Public Health Policies no XIX Congresso da World Association for Sexual Health Gotemburgojunho de 2009 tendo utilizado dados colhidos na pesquisa ldquoDiferenccedilas de gecircnero na recentemedicalizaccedilatildeo do envelhecimento e sexualidade a criaccedilatildeo das categorias menopausa andropausa edisfunccedilatildeo sexualrdquo coordenada por Fabiacuteola Rohden e apoiada pelo CNPq1 A partir das reflexotildees de Michel Foucault (1977) em torno do panopticismo pode-se afirmar quedeterminados regimes de visibilidade configuram certos sujeitos que de outro modo inexistiriam ouexistiriam de modo inteiramente diferente Natildeo se trata aqui de entrarmos na polecircmica entreconstrutivismo e essencialismo ou seja de decidir se alguns sujeitos estavam sempre laacute agrave espera deserem descoberto ou se satildeo criados pela proacutepria ldquoluzrdquo que os ilumina2 Com ldquoobjetificaccedilatildeordquo natildeo nos referimos aqui a um processo de negaccedilatildeo aos homens de seu estatuto de

pessoa humana mas ao processo de instituiccedilatildeo de certos temas problemas ou sujeitos como objetoslegiacutetimos de conhecimento em determinado campo cientiacutefico conforme formulado originalmente porPierre Bourdieu (1983)3 A partir dos anos 1990 esse processo vem sendo acompanhado pela progressiva transformaccedilatildeo doshomens e da masculinidade em objeto de conhecimento tambeacutem das ciecircncias sociais configurandonovas aacutereas de conhecimento como os chamados ldquomenrsquos studiesrdquo Para isso ver entre outros Oliveira(2004)4 Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIASPort2008PT-09-CONSpdf (acessoem maio 2009)5 Eacute importante destacar que Joseacute Gomes Temporatildeo em 2006 quando ainda era Secretaacuterio Nacionalde Atenccedilatildeo agrave Sauacutede no Ministeacuterio da Sauacutede tentou criar centros de atenccedilatildeo agrave sauacutede no setor privadopara melhorar a assistecircncia agrave sauacutede do homem Em declaraccedilatildeo publicada no jornal O Estado de SatildeoPaulo em janeiro de 2006 Temporatildeo afirmou que o Ministeacuterio da Sauacutede estava analisando a possibilidadede oferecer tratamento para a disfunccedilatildeo ereacutetil atraveacutes da rede puacuteblica incluindo a distribuiccedilatildeo demedicamentos O governo estaria examinando o impacto financeiro de tal medida6 Ao que parece havia no acircmbito do MS desde 2006 uma Coordenaccedilatildeo de Sauacutede do Homem7 Nove meses depois foi substituiacutedo pelo Dr Baldur Schubert um assessor da sua equipe especialistaem seguridade social e sauacutede do trabalho8 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)9 Respectivamente Conselho Nacional de Secretaacuterios de Sauacutede e Conselho Nacional de SecretaacuteriosMunicipais de SauacutedeA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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10 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)11 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrpdf2008_saudehomempdf (acesso em maio 2009)12 Para a discussatildeo sobre a dominaccedilatildeo masculina ver Bourdieu (1998)13 Tais foacuteruns vecircm sendo organizados anualmente pela Comissatildeo de Seguridade Social e Famiacutelia daCacircmara dos Deputados em parceria com a SBU14 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrimagesfolder_noticiajpg (acesso em maio 2009)15 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)16 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)17 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)18 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)19 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)20 O documento passou por uma consulta puacuteblica e foi aprovado pelo Conselho Nacional de Sauacutede emjulho de 200921 O documento lanccedila matildeo de trabalhos importantes que no campo da sauacutede vecircm discutindo amasculinidade como Gomes (2003) Gomes e Nascimento (2006) Gomes et al (2007) Schraiber etal (2005)22 Lemos no documento que ldquoos indicadores apresentados visam a oferecer uma visatildeo ampliada doprocesso de adoecimento e de vulnerabilidade e agravos agrave sauacutede na populaccedilatildeo de homensrdquo (PNAISH2008 p 11)23 Esse aspecto foi tambeacutem destacado em reaccedilatildeo agraves diretrizes do Programa expressa em ldquodocumentomarcordquoproduzido por iniciativa de importantes organizaccedilotildees natildeo-governamentais brasileiras que haacute

muitos anos trabalham com o tema das masculinidades O texto aborda o Programa com base em umaleitura feminista de gecircnero Aleacutem de criticar a centralidade assumida pelas doenccedilas do aparelhogeniturinaacuterio na nova poliacutetica enfatiza-se tambeacutem a relativa desvalorizaccedilatildeo da promoccedilatildeo agrave sauacutede emfavor da oferta de serviccedilos de assistecircncia (MEDRADO et al 2009)24 Eacute interessante pensar como esse movimento vai de encontro agrave luta feminista contra a medicalizaccedilatildeodo corpo feminino25 Ver nota 2| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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______ Une science deacuterisoire Lacuteandrologie au Bregravesil entre les deux guerres Vibrant ndash VirtualBrazilian Anthropology v 1 n frac12 jan-dez 2004COSTA A M Desenvolvimento e Implantaccedilatildeo do PAISM no Brasil In GIFFIN Karen COSTAS H (Org) Questotildees da sauacutede reprodutiva Rio de Janeiro Fiocruz 1999FOUCAULT M Vigiar e punir Petroacutepolis Vozes 1977GOMES R Sexualidade masculina e sauacutede do homem proposta para uma discussatildeo CiecircnciaSauacutede Coletiva Rio de Janeiro n 8 p 825-9 2003GOMES R NASCIMENTO E F ARAUacuteJO F C Por que os homens buscam menos os serviccedilosde sauacutede do que as mulheres As explicaccedilotildees de homens com baixa escolaridade e homens comensino superior Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 23 n 3 mar 2007GOMES R NASCIMENTO E F A produccedilatildeo do conhecimento da sauacutede puacuteblica sobre arelaccedilatildeo homem-sauacutede uma revisatildeo bibliograacutefica Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 22n 5 p 901-911 maio 2006MEDRADO B LYRA J AZEVEDO M GRANJA E e VIEIRA S Princiacutepios diretrizes erecomendaccedilotildees para uma atenccedilatildeo integral aos homens na sauacutede Recife Instituto PAPAI 2009OLIVEIRA P P de A construccedilatildeo social da masculinidade Belo Horizonte UFMG 2004PEREIRA A L Accedilotildees educativas em contracepccedilatildeo teoria e praacutetica dos profissionais de sauacutede Tese(Doutorado em Sauacutede Coletiva) - Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio dejaneiro Rio de Janeiro 2008ROHDEN F Uma ciecircncia da diferenccedila sexo e gecircnero na medicina da mulher Rio de JaneiroFiocruz 2001SCHRAIBER L B GOMES R COUTO M T Homens e sauacutede na pauta da sauacutede coletivaCiecircncia e Sauacutede Coletiva v 10 n 1 p 7-17 2005| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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STOCKLE V Is Sex to Gender as Race is to Ethnicity In DEL VALLE T (Ed) GenderedAnthropology London Routledge 1993

Notas Uma primeira versatildeo deste texto foi apresentada no simpoacutesio The Future of Sexual Health SexualHealth in Public Health Policies no XIX Congresso da World Association for Sexual Health Gotemburgojunho de 2009 tendo utilizado dados colhidos na pesquisa ldquoDiferenccedilas de gecircnero na recentemedicalizaccedilatildeo do envelhecimento e sexualidade a criaccedilatildeo das categorias menopausa andropausa edisfunccedilatildeo sexualrdquo coordenada por Fabiacuteola Rohden e apoiada pelo CNPq1 A partir das reflexotildees de Michel Foucault (1977) em torno do panopticismo pode-se afirmar quedeterminados regimes de visibilidade configuram certos sujeitos que de outro modo inexistiriam ouexistiriam de modo inteiramente diferente Natildeo se trata aqui de entrarmos na polecircmica entreconstrutivismo e essencialismo ou seja de decidir se alguns sujeitos estavam sempre laacute agrave espera deserem descoberto ou se satildeo criados pela proacutepria ldquoluzrdquo que os ilumina2 Com ldquoobjetificaccedilatildeordquo natildeo nos referimos aqui a um processo de negaccedilatildeo aos homens de seu estatuto de

pessoa humana mas ao processo de instituiccedilatildeo de certos temas problemas ou sujeitos como objetoslegiacutetimos de conhecimento em determinado campo cientiacutefico conforme formulado originalmente porPierre Bourdieu (1983)3 A partir dos anos 1990 esse processo vem sendo acompanhado pela progressiva transformaccedilatildeo doshomens e da masculinidade em objeto de conhecimento tambeacutem das ciecircncias sociais configurandonovas aacutereas de conhecimento como os chamados ldquomenrsquos studiesrdquo Para isso ver entre outros Oliveira(2004)4 Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIASPort2008PT-09-CONSpdf (acessoem maio 2009)5 Eacute importante destacar que Joseacute Gomes Temporatildeo em 2006 quando ainda era Secretaacuterio Nacionalde Atenccedilatildeo agrave Sauacutede no Ministeacuterio da Sauacutede tentou criar centros de atenccedilatildeo agrave sauacutede no setor privadopara melhorar a assistecircncia agrave sauacutede do homem Em declaraccedilatildeo publicada no jornal O Estado de SatildeoPaulo em janeiro de 2006 Temporatildeo afirmou que o Ministeacuterio da Sauacutede estava analisando a possibilidadede oferecer tratamento para a disfunccedilatildeo ereacutetil atraveacutes da rede puacuteblica incluindo a distribuiccedilatildeo demedicamentos O governo estaria examinando o impacto financeiro de tal medida6 Ao que parece havia no acircmbito do MS desde 2006 uma Coordenaccedilatildeo de Sauacutede do Homem7 Nove meses depois foi substituiacutedo pelo Dr Baldur Schubert um assessor da sua equipe especialistaem seguridade social e sauacutede do trabalho8 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)9 Respectivamente Conselho Nacional de Secretaacuterios de Sauacutede e Conselho Nacional de SecretaacuteriosMunicipais de SauacutedeA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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10 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)11 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrpdf2008_saudehomempdf (acesso em maio 2009)12 Para a discussatildeo sobre a dominaccedilatildeo masculina ver Bourdieu (1998)13 Tais foacuteruns vecircm sendo organizados anualmente pela Comissatildeo de Seguridade Social e Famiacutelia daCacircmara dos Deputados em parceria com a SBU14 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrimagesfolder_noticiajpg (acesso em maio 2009)15 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)16 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)17 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)18 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)19 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)20 O documento passou por uma consulta puacuteblica e foi aprovado pelo Conselho Nacional de Sauacutede emjulho de 200921 O documento lanccedila matildeo de trabalhos importantes que no campo da sauacutede vecircm discutindo amasculinidade como Gomes (2003) Gomes e Nascimento (2006) Gomes et al (2007) Schraiber etal (2005)22 Lemos no documento que ldquoos indicadores apresentados visam a oferecer uma visatildeo ampliada doprocesso de adoecimento e de vulnerabilidade e agravos agrave sauacutede na populaccedilatildeo de homensrdquo (PNAISH2008 p 11)23 Esse aspecto foi tambeacutem destacado em reaccedilatildeo agraves diretrizes do Programa expressa em ldquodocumentomarcordquoproduzido por iniciativa de importantes organizaccedilotildees natildeo-governamentais brasileiras que haacute

muitos anos trabalham com o tema das masculinidades O texto aborda o Programa com base em umaleitura feminista de gecircnero Aleacutem de criticar a centralidade assumida pelas doenccedilas do aparelhogeniturinaacuterio na nova poliacutetica enfatiza-se tambeacutem a relativa desvalorizaccedilatildeo da promoccedilatildeo agrave sauacutede emfavor da oferta de serviccedilos de assistecircncia (MEDRADO et al 2009)24 Eacute interessante pensar como esse movimento vai de encontro agrave luta feminista contra a medicalizaccedilatildeodo corpo feminino25 Ver nota 2| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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pessoa humana mas ao processo de instituiccedilatildeo de certos temas problemas ou sujeitos como objetoslegiacutetimos de conhecimento em determinado campo cientiacutefico conforme formulado originalmente porPierre Bourdieu (1983)3 A partir dos anos 1990 esse processo vem sendo acompanhado pela progressiva transformaccedilatildeo doshomens e da masculinidade em objeto de conhecimento tambeacutem das ciecircncias sociais configurandonovas aacutereas de conhecimento como os chamados ldquomenrsquos studiesrdquo Para isso ver entre outros Oliveira(2004)4 Disponiacutevel em httpdtr2001saudegovbrsasPORTARIASPort2008PT-09-CONSpdf (acessoem maio 2009)5 Eacute importante destacar que Joseacute Gomes Temporatildeo em 2006 quando ainda era Secretaacuterio Nacionalde Atenccedilatildeo agrave Sauacutede no Ministeacuterio da Sauacutede tentou criar centros de atenccedilatildeo agrave sauacutede no setor privadopara melhorar a assistecircncia agrave sauacutede do homem Em declaraccedilatildeo publicada no jornal O Estado de SatildeoPaulo em janeiro de 2006 Temporatildeo afirmou que o Ministeacuterio da Sauacutede estava analisando a possibilidadede oferecer tratamento para a disfunccedilatildeo ereacutetil atraveacutes da rede puacuteblica incluindo a distribuiccedilatildeo demedicamentos O governo estaria examinando o impacto financeiro de tal medida6 Ao que parece havia no acircmbito do MS desde 2006 uma Coordenaccedilatildeo de Sauacutede do Homem7 Nove meses depois foi substituiacutedo pelo Dr Baldur Schubert um assessor da sua equipe especialistaem seguridade social e sauacutede do trabalho8 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)9 Respectivamente Conselho Nacional de Secretaacuterios de Sauacutede e Conselho Nacional de SecretaacuteriosMunicipais de SauacutedeA poliacutetica de atenccedilatildeo agrave sauacutede do homem no Brasil

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10 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)11 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrpdf2008_saudehomempdf (acesso em maio 2009)12 Para a discussatildeo sobre a dominaccedilatildeo masculina ver Bourdieu (1998)13 Tais foacuteruns vecircm sendo organizados anualmente pela Comissatildeo de Seguridade Social e Famiacutelia daCacircmara dos Deputados em parceria com a SBU14 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrimagesfolder_noticiajpg (acesso em maio 2009)15 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)16 Disponiacutevel em httpcaferadiobrasgovbrAbertoCafePresidente (acesso em maio 2009)17 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)18 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)19 Disponiacutevel em httpwwwsbuorgbrindexGeralphpdo=noticias (acesso em maio 2009)20 O documento passou por uma consulta puacuteblica e foi aprovado pelo Conselho Nacional de Sauacutede emjulho de 200921 O documento lanccedila matildeo de trabalhos importantes que no campo da sauacutede vecircm discutindo amasculinidade como Gomes (2003) Gomes e Nascimento (2006) Gomes et al (2007) Schraiber etal (2005)22 Lemos no documento que ldquoos indicadores apresentados visam a oferecer uma visatildeo ampliada doprocesso de adoecimento e de vulnerabilidade e agravos agrave sauacutede na populaccedilatildeo de homensrdquo (PNAISH2008 p 11)23 Esse aspecto foi tambeacutem destacado em reaccedilatildeo agraves diretrizes do Programa expressa em ldquodocumentomarcordquoproduzido por iniciativa de importantes organizaccedilotildees natildeo-governamentais brasileiras que haacute

muitos anos trabalham com o tema das masculinidades O texto aborda o Programa com base em umaleitura feminista de gecircnero Aleacutem de criticar a centralidade assumida pelas doenccedilas do aparelhogeniturinaacuterio na nova poliacutetica enfatiza-se tambeacutem a relativa desvalorizaccedilatildeo da promoccedilatildeo agrave sauacutede emfavor da oferta de serviccedilos de assistecircncia (MEDRADO et al 2009)24 Eacute interessante pensar como esse movimento vai de encontro agrave luta feminista contra a medicalizaccedilatildeodo corpo feminino25 Ver nota 2| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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muitos anos trabalham com o tema das masculinidades O texto aborda o Programa com base em umaleitura feminista de gecircnero Aleacutem de criticar a centralidade assumida pelas doenccedilas do aparelhogeniturinaacuterio na nova poliacutetica enfatiza-se tambeacutem a relativa desvalorizaccedilatildeo da promoccedilatildeo agrave sauacutede emfavor da oferta de serviccedilos de assistecircncia (MEDRADO et al 2009)24 Eacute interessante pensar como esse movimento vai de encontro agrave luta feminista contra a medicalizaccedilatildeodo corpo feminino25 Ver nota 2| Seacutergio Carrara Jane A Russo e Livi Faro |

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