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SAÚDE NA ROÇA EXPRESSÕES DA QUALIDADE DAS PRÁTICAS DE ATENÇÃO PRIMÁRIA SABRINA SINABUCRO KANESIRO BIZELLI ELEN ROSE LODEIRO CASTANHEIRA

Saude Na Roca

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  • SADE NA ROAExprEssEs da qualidadE das prticas dE atEno primriaSabrina Sinabucro KaneSiro bizellielen roSe lodeiro caStanheira

  • Sade na roa

  • Conselho Editorial Acadmico

    Responsvel pela publicao desta obra

    Profa Dra Maria Cristina Pereira Lima

    Profa Dra Ana Teresa de Abreu Ramos Cerqueira

    Profa Dra Eliana Goldfarb Cyrino

  • Sabrina S. KaneSiro bizellielen roSe l. CaStanheira

    Sade na roaExpresses da qualidade

    das prticas de ateno primria

  • 2011 Editora UNESP

    Cultura AcadmicaPraa da S, 108 01001-900 So Paulo SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br [email protected]

    CIP Brasil. Catalogao na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    B552s

    Bizelli, Sabrina Sinabucro Kanesiro Sade na roa : expresses da qualidade das prticas de ateno

    primria / Sabrina Sinabucro Kanesiro Bizelli, Elen Rose Lodeiro Castanheira. So Paulo : Cultura Acadmica, 2011.

    146p.

    Inclui bibliografiaISBN 978-85-7983-218-5

    1. Programa Sade da Famlia (Brasil). 2. Famlia Sade e higiene Poltica governamental Brasil. 3. Medicina da famlia Brasil. I. Castanheira, Elen Rose Lodeiro II. Ttulo.

    11-8073. CDD: 362.820981

    CDU: 614.2(81)

    Este livro publicado pelo Programa de Publicaes Digitais da Pr-Reitoria de

    Ps-Graduao da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (UNESP)

  • Agradecimentos

    Aos gestores que, como anfitries, to bem nos acolheram e com suas vivncias nos deram subsdios para as reflexes deste livro.

    s equipes das Unidades de Sade da Famlia e a cada profis-sional, que nos confiaram suas histrias, risos e angstias.

    Aos nossos familiares, que nos apoiaram de diferentes ma-neiras.

  • O trabalho que se segue resultado da dissertao de mestrado Sade na roa: estudo de caso de uma Unidade de Sade da Fa-mlia, realizada como parte qualitativa da pesquisa Avaliao da gesto da ateno bsica nos municpios de quatro regionais de sade do Estado de So Paulo, desenvolvida com recursos da linha de fomento PPSUS (Fapesp, CNPq, MS e SES SP) no ano de 2007.

  • Sumrio

    1 A qualidade da ateno bsica em sade: colocao do problema 11

    2 O caminho hermenutico 17

    3 O ponto de partida 27

    4 Dilogos com o servio: marco dois 31

    5 O desfecho dialtico da compreenso 127

    Referncias bibliogrficas 141

  • 1A qualidade da

    ateno bsica em sade: colocao do problema

    Mesmo que o ttulo do livro, Sade na roa, possa sugerir, o propsito deste estudo no tratar da questo da ruralidade, mas problematizar as qualidades e os obstculos enfrentados por ser-vios de sade em municpios imersos num contexto de baixa urba-nizao e dificuldades infraestruturais. O termo roa, reiteradas vezes referido no dilogo com os sujeitos deste trabalho, foi trazido para expressar um modo de relao das pessoas caractersticos de municpios pequenos ligados terra e aos dilemas locais. Esse modo peculiar de existir reflete-se na pessoalidade das relaes e um dos principais elementos presentes na articulao das prticas trazidas pelo estudo.

    A pergunta que se coloca se e como a extenso do Sistema nico de Sade traduz a garantia dos direitos de universalizao, integralidade e equidade em prticas de ateno em sade, conside-rando-se a efetiva expanso de servios de ateno bsica em todo o territrio nacional, inclusive em lugares de difcil acesso e com graves dificuldades socioeconmicas.

    Atualmente, a Sade da Famlia constitui-se na principal estra-tgia de reorientao do modelo assistencial e visa melhoria da qualidade dos servios de ateno bsica. Sua expanso demonstra os grandes investimentos em todos os nveis federativos que tm

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    sido realizados: em 2003, havia 19 mil equipes em 4,4 mil munic-pios, cobrindo 35,7% da populao brasileira; em 2007, esses n-meros passaram a 27.324 equipes, 5.125 municpios e 46,6% da populao coberta (Brasil, 2007b).

    Entretanto, a relao entre o nmero de equipamentos insta-lados e o acesso sade no direta e necessria, uma vez que este ltimo no garantido apenas pela existncia do servio, mas tambm por sua permeabilidade populao. Esse aspecto tem in-trnseca relao com o modo como so realizadas as prticas nos espaos, de forma integral, democrtica e equnime.

    A proposta rizomtica da Sade da Famlia objetiva uma maior penetrao nos interiores sociais por parte da equipe, ou seja, uma cobertura mais abrangente da populao pelo servio e uma maior permeabilidade das aes afirmativas em sade comunidade. Desse encontro entre equipe e populao resultariam dois vetores importantes: a incorporao dos problemas desse grupo social em sua complexidade nas aes de promoo da sade e a aproximao da comunidade do exerccio de prticas saudveis.

    Ao trazer as questes do cotidiano da populao para o interior das prticas em sade, a equipe torna-se prxima do usurio e da realidade vivida por ele. Essa aproximao pode gerar maior com-prometimento, envolvimento e responsabilizao em relao sade da comunidade (Campos, 2002). Pode gerar porque o pro-cesso depende do vnculo estabelecido entre o profissional e os indivduos, bem como outras questes referentes prpria com-plexidade do sistema de sade brasileiro, como mostra Viana et al. (2006).1

    1. Os autores apontam questes como as desigualdades socioespaciais da cidade constituda historicamente a partir da urbanizao vinculada a interesses cor-porativos; a maior oferta de servios de mdia e alta complexidade, mas com li-mitada capacidade de resposta e qualidade; a dificuldade de implantao da ESF dada a realidade complexa e com desigualdades sociais; o mix pblico--privado; as polticas de repasses de recursos vinculada taxa de cobertura de servios; e a violncia urbana que resulta em rotatividade de profissionais.

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    A Sade da Famlia o alvo de diversos estudos cuja principal questo verificar se h efetiva inovao se comparada ao modelo de ateno dos tradicionais ambulatrios e centros de sade (Bod-stein et al., 2006; Elias et al., 2006; Ibaez et al., 2006). De modo geral, os resultados apontam que a realizao de mudanas coexiste com a reiterao do modelo que se quer superar.

    Em relao ao desempenho da ateno bsica no municpio de So Paulo, Elias et al. (2006) observaram uma avaliao dos usu-rios mais favorvel s unidades de sade da famlia (USF) quando comparadas s unidades bsicas tradicionais. Nessa mesma pers-pectiva, Ibaez et al. (2006) demonstram que os profissionais das USF foram mais bem avaliados do que os das unidades bsicas tra-dicionais, considerando-se as dimenses vnculo, elenco de ser-vios, enfoque familiar e orientao comunitria; entretanto, no houve diferena avaliativa entre os dois tipos de unidades ao se le-var em conta os parmetros porta de entrada e acessibilidade.

    Trabalho realizado por Capozzolo (2003) constata que, apesar de propostos novos arranjos tecnolgicos na estratgia da sade da famlia, a organizao do trabalho nas USF ainda permanece cen-trada na oferta de assistncia mdica individual, o que proporciona a manuteno de dificuldades para se realizar uma clnica am-pliada, ou seja, uma abordagem que englobe aspectos para alm da dimenso biolgica do corpo doente. A autora aponta o risco da simplificao da ateno em funo da grande demanda e do ex-cesso de trabalho observados nos servios da rede bsica do muni-cpio estudado.

    Por outro lado, ao se analisar o parmetro riqueza, que compe o ndice Paulista de Responsabilidade Social (IPRS), pde-se ob-servar uma relao direta com a cobertura da estratgia de sade da famlia e uma relao inversamente proporcional a essa varivel, ou seja: [...] quanto maior a porcentagem de cobertura do PSF, menor o indicador de riqueza do IPRS no municpio, reforando a ideia de que nesses municpios a clientela do SUS proporcionalmente maior (Viana et al., 2006, p.582). Ademais, a varivel IPRS , nesse trabalho, considerada importante tanto por refletir as condi-

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    es de vida da populao quanto por incorporar na discusso a (in)capacidade de sustentabilidade econmica local e sua depen-dncia de recursos federais ou estaduais,2 num contexto de muni-cipalizao e descentralizao do sistema de sade (Viana, 2002; Arretche, 2000).

    Nesse contexto, os municpios brasileiros deparam-se com o desafio da gesto e da organizao do sistema de sade municipal, pois constituem diretrizes nacionais que se impem a todos eles, independente de caractersticas locais como grandeza populacio-nal, riqueza produzida, ndices de desenvolvimento econmico e social. Essa condio propicia o aparecimento de formas singulares de prticas de sade j que, embora haja diretrizes e normas gerais, cada cidade cria uma forma de gerenciar o sistema de sade local, e cada unidade de sade trabalha com caractersticas espe cficas. Apesar do avano desse processo na construo do SUS, pouco controle h sobre a qualidade dos servios prestados nos muni-cpios.

    A avaliao da qualidade da ateno bsica tem sido tema atual de convergncia das discusses realizadas no meio acadmico e da gesto do sistema de sade, uma vez que justifica a aplicao ou a supresso de investimentos na rea, afetando diretamente a ateno sade do cidado. fato que pesquisas tm trazido informaes que apresentam panoramas gerais e auxiliam na tomada de decises (Contandriopoulos, 2006), porm to considerveis quanto elas so aquelas que se aproximam da realidade de forma a estud-la qualitativamente, atentando a aspectos peculiares e especficos, ne-cessrios para o entendimento do universo da ateno bsica e para o entendimento de como se efetiva enquanto campo de prticas (Uchimura et al., 2002; Deslandes, 1997).

    2. Em pesquisa, Arretche (2000) no verifica relao direta entre nvel de riqueza econmica e graus de descentralizao isoladamente, porm encontra variaes de descentralizao relacionadas a aes de interveno e incentivo dos go-vernos estaduais e federal, de impacto principalmente em municpios com baixa capacidade econmica.

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    A qualidade da ateno em sade, pautada nos princpios tico--normativos do SUS universalidade, integralidade e equidade , passa a ser balizadora das aes e prticas desenvolvidas nos ser-vios de sade, ou seja, um requisito no modo de se fazer sade: no basta fazer, preciso fazer com qualidade. Introduz-se, assim, a necessidade de um julgamento sobre as aes desenvolvidas, de uma postura crtica sobre a qualidade da ateno primria em sade.

    Pesquisa avaliativa realizada por Castanheira et al. (2007), com foco na organizao e gerenciamento dos servios de ateno b-sica, desenvolveu um instrumento estruturado respondido pelos gerentes e equipes de 598 unidades localizadas em 115 municpios do Estado de So Paulo. Os critrios de qualidade utilizados ba-searam-se em normas que representam um primeiro nvel de tra-duo dos princpios da universalidade, integralidade e equidade, e orientam a definio de indicadores que procuram representar de forma sinttica a qualidade da organizao dos servios. As mlti-plas mediaes necessariamente presentes nesse processo apontam para a necessidade de abordagens complementares que possam ampliar a compreenso sobre a qualidade do trabalho concreta-mente operado nos servios de ateno bsica.

    Entre os resultados encontrados chamou ateno o fato de uma unidade de sade da famlia localizada na zona rural de um muni-cpio de pequeno porte populacional menos de cinco mil habi-tantes e colocao baixa na dimenso riqueza do ndice Paulista de Responsabilidade Social ser avaliada positivamente. Sua ava-liao contrariou a tendncia geral de baixa pontuao observada entre as unidades rurais, porm confirmou a tendncia geral de USF serem mais bem avaliadas. Confirmou tambm a tendncia de contexto, ou seja, em geral, os municpios de pequeno porte so estruturados no modelo de ateno baseado na ESF, especialmente os socioeconomicamente vulnerveis.

    Essa unidade, particular em sua dinmica e desempenho, rene, entretanto, um conjunto de caractersticas que remetem realidade de unidades de sade cujos contextos sociais enfrentados so bas-

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    tante comuns no pas. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (Brasil, 2007a) mostram que 46,75% dos municpios brasileiros possuem populao inferior a dez mil habitantes, e apro ximadamente 24% tm menos de cinco mil habitantes. No Es-tado de So Paulo, 44,65% apresentam populao inferior a dez mil habitantes e 25,74%, menos de cinco mil habitantes.

    Nesse sentido, traduz-se num campo interessante e pertinente para dialogarmos na busca da compreenso das seguintes questes orientadoras: Como so organizadas e se operam as aes de sade num local caracterizado por condies socioeconmicas adversas, porm simultaneamente propcias para o desenvolvimento da ESF? O modelo em prtica aproxima-se do proposto, direcionado pelos princpios da universalidade, integralidade e equidade, princpios que norteiam a construo de servios de qualidade?

    Tendo em vista as questes colocadas, os objetivos centrais do estudo foram: compreender como se caracterizam e so organi-zadas as prticas de cuidado por meio da estratgia da sade da fa-mlia em um servio de ateno bsica localizado em municpio de pequeno porte e de baixo ndice de riqueza; e analisar a aproxi-mao dessas prticas dos conceitos de universalidade, integrali-dade e equidade, princpios norteadores para a construo de servios de qualidade.

    Para o desenvolvimento do problema colocado, seguimos um caminho construdo a partir da hermenutica. Vejamos a seguir.

  • 2O caminho hermenutico

    E vocs, loucos lcidos, sifilticos, cancerosos, meningticos crnicos, vocs so incompreendidos. H um ponto em vocs que mdico algum jamais entender e este o ponto, a meu ver, que os salva e torna au-gustos, puros e maravilhosos: vocs esto alm da vida, seus males so desconhecidos pelo homem comum, vocs ultrapassaram o plano da normalidade e da a severidade demonstrada pelos homens, vocs en-venenam sua tranquilidade, corroem sua estabilidade. Suas dores ir-reprimveis so, em essncia, impossveis de serem enquadradas em qualquer estado conhecido, indescritveis com palavras. Suas dores repetidas e fugidias, dores insolveis, dores fora do pensamento, dores que no esto no corpo nem na alma mas que tm a ver com ambos. E eu, que participo dessas dores, pergunto: quem ousaria dosar nosso calmante? Em nome de que clareza superior, almas nossas, ns que estamos na verdadeira raiz da clareza e do conhecimento?

    Artaud

    O que nos atravessa, dos muitos sentidos disparados pela ci-tao de Antonin Artaud, a penria da linguagem para produzir pensar e a limitao em especial da linguagem do conhecimento cientfico, cujos regimes de verdades engendram determinadas prticas sociais.

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    Segundo Gadamer (1997), toda a compreenso que se constri do mundo e do ser linguagem, assim como sem linguagem no haveria mundo (ou ser).1 Em suas palavras, o ser que pode ser en-tendido linguagem. Mas o ser est alm de nossa capacidade de express-lo, ou seja, ele supera a limitao de nossa habilidade de expresso.

    Ento, o que inspira a citao de Artaud a crtica s manifesta-es do pensamento humano que se tm mostrado empobrecidas de direes outras que no o hegemnico sentido da racionalidade positivista das cincias biomdicas, pela qual se pauta a atual pr-tica corrente da medicina e assistncia em sade.

    Nesse modelo de cincia, o que se perde so verdades rapida-mente dispensadas em nome da clareza da razo, como dogmas re-ligiosos ou polticos, superstio, preconceito, prticas costumeiras e conhecimentos tradicionais, acervado e certificado por um m-todo que desconsidera outras formas de se abordar o conhecimento. A crtica dirige-se pretenso de verdade contida no mtodo cien-tfico positivista e forma fragmentada do saber tcnico que compe um conjunto de regras disciplinadoras para o discurso (Crtes, 2006; Lawn, 2006; Minayo, 2004; Coreth, 1973).

    A fragmentao caracterstica do prprio pensamento ociden-tal, que, em seu descomprometimento com os conceitos da tra-dio, no os torna teis para a construo do pensamento. Os desdobramentos na cincia aparecem no tratar os conceitos como concepo erudita ou como ferramentas em sua manipulao tc-nica. Ambas as utilizaes no contemplam a compreenso herme-nutica do acontecimento segundo um filosofar responsvel e crtico e no consideram costumes da linguagem as tradies e a histria da qual fazemos parte (Gadamer, 1997).

    1. Gadamer, numa posio anticartesiana, enfatiza que as transformaes da lin-guagem acontecem nas infinitas trocas dialgicas dentro do contexto da tra-dio e histria (Lawn, 2006), negando o controle humano e individual do movimento.

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    A hermenutica considera que a compreenso realiza-se, na histria, como linguagem tradicionalmente transmitida e tempo-ralmente validada. Parte da experincia concreta dos homens e sua finitude, concebendo que o intrprete e seu objeto fazem parte do mesmo contexto, da mesma tradio e da mesma temporalidade histrica (Crtes, 2006; Brito, 2005; Minayo, 2004; Coreth, 1973). Desse modo, no possvel haver a dicotomia entre aquele que quer compreender e o objeto a ser compreendido.

    A compreenso comea por aquilo que j compreendido e es-tende-se pelo estranhamento, num pndulo entre o familiar e o desconhecido, recuperando o que foi perdido e produzindo nova construo (Brito, 2005; Minayo, 2004; Demo, 1981). Ademais, a investigao hermenutica constitui-se em uma fuso de hori-zontes, pois o sujeito da interpretao no interpreta uma expe-rincia externa a si, mas a sua prpria experincia do horizonte lingustico do outro interpretado (Ayres, 2005).

    A opo pela hermenutica como atitude filosfica diante do objeto da pesquisa permitiu-nos uma aproximao do servio e das pessoas do local de uma postura tica compreensiva. Apesar de a hermenutica no ser uma metodologia propriamente dita, ela apresenta implicaes tanto para a epistemologia quanto para o mtodo cientfico como as j exploradas, que nos ajudam a ampliar o horizonte do campo de investigao (Ayres, 2008; Bernstein, 1983 apud Ayres, 2005; Coreth, 1973).

    Para uma melhor visualizao do percurso traado mesmo considerando que eventos no acontecem no tempo de maneira li-near , destacamos alguns acontecimentos de transformao da compreenso, segundo cada momento hermenutico: a explici-tao do lugar de onde partimos, ou seja, a construo do referen-cial terico para dialogar com a realidade; a compreenso da realidade por meio da imerso no universo vivido pelos profissio-nais em suas rotinas de trabalho no servio de sade e por meio das narrativas por eles construdas; a reconstruo do conhecimento sobre a qualidade da ateno em sade a partir da ressignificao dos sentidos da universalidade, integralidade e equidade.

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    Algumas consideraes importantes merecem ser feitas para explicitar o modo como construmos o trabalho de campo, ou me-lhor, expor as demarcaes que nortearam o dilogo com o local estudado e reflexes.

    O contato com a realidade cotidiana do trabalho no servio de sade da famlia aconteceu durante uma semana til. A obser-vao foi feita em diferentes circunstncias da vivncia no servio, como as ocasies de contato direto com a comunidade assistida a recepo do paciente na unidade, o atendimento da enfermagem, as consultas com mdicos e outros profissionais, a visita domi-ciliar , bem como os momentos entre os responsveis as reu-nies da equipe de trabalho, os seus deslocamentos, as pausas para descanso.

    O dirio de campo foi construdo por meio da narrativa das observaes e impresses por mim vivenciadas a partir de um olhar do estrangeiro. Esse olhar traduz-se numa postura do pes-quisador diante da realidade aberta a novas afetaes e ressigni-ficao de identidades e conceitos trazidos pelo forasteiro de sua terra estrangeira.2

    O trabalho de campo foi inspirado no mtodo etnogrfico. Se-gundo Nakamura (2009), o observador busca no campo aquilo que faz sentido do ponto de vista do referencial terico que o mo-tivou investigao. A partir desse esforo intelectual no dilogo com esse campo, buscou-se realizar no registro uma descrio densa (Geertz, 1989).

    Geertz3 concebe que no h uma receita para o dilogo na busca da compreenso de significados, comportamentos e aes do

    2. Peixoto (2006), em O olhar estrangeiro, que compe uma coletnea de textos sobre o olhar (Novaes, 2006), debate essa questo na sociedade contempornea saturada de clichs, banalizao, descartabilidade das coisas, na qual a veloci-dade do movimento das cidades transforma as espessuras em fachada. O autor questiona a capacidade do homem ps-moderno de conseguir ver atravs do esvaziamento de significados das imagens pela repetio.

    3. Geertz considerado o principal representante da antropologia interpretativa ou ps-moderna, que se inspira na tradio filosfica da hermenutica. Dife-

  • SADE NA ROA 21

    outro, o que para ele pressupe um controle, rigor ou preocupao com a objetividade (Jesus et al., 1998, p.33), sendo, portanto, ne-cessria a imerso nos dilemas essenciais da vida (Geertz, 1989).

    Tambm realizamos entrevistas4 com os profissionais da rea da sade, a saber, o secretrio municipal, os agentes comunitrios, a enfermeira, os auxiliares e tcnicos de enfermagem, o mdico, o dentista, o auxiliar de consultrio dentrio, os responsveis pelas vigilncias sanitria e epidemiolgica e o corpo tcnico-administra-tivo. Ao final, foram 14 sujeitos entrevistados.

    O roteiro das entrevistas foi construdo a partir do questionrio estruturado aplicado em pesquisa anterior,5 procurando abordar as-pectos qualitativos da assistncia, e teve por objetivo aprofundar as principais problemticas envolvidas, sobretudo as questes rela-tivas universalidade, integralidade e equidade. Trabalhos rea-lizados anteriormente utilizaram essas dimenses da assistncia como categorias avaliativas de anlise citadas por Connil (2002).

    A leitura e a releitura exaustivas para a organizao e anlise do material trouxeram para primeiro plano as narrativas que provo-caram as reflexes construdas sobre as condies da vida cotidiana dos atores sociais e as prticas atravessadas pelos vetores orienta-dores de qualidade: universalidade, integralidade e equidade. Em muitos dos assuntos destacados, houve interseo dos vetores, uma vez que eles se relacionam entre si e, em alguns momentos, so pre-condio para existncia um do outro. Optamos, nesses casos, por

    rentemente das outras correntes dentro da antropologia, cujo smbolo redu-zido a um significado, essa aponta para uma complexidade de significados e na relativizao de contextos. Alm disso, preocupa-se mais com os fundamentos da pesquisa do que com as tcnicas utilizadas (Jesus et al., 1998).

    4. As entrevistas foram gravadas em meio digital e, aps a transcrio, os arquivos foram destrudos. Todas as atividades foram realizadas com a permisso do secretrio de Sade e com o prvio consentimento informado dos envolvidos. Esclarecimentos ticos como o resguardo do anonimato e o relato sobre o pro-cedimento adotado com os materiais produzidos foram dados antes de cada en-trevista.

    5. Castanheira et al. (2009, 2007).

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    escolher e trabalhar apenas um aspecto do assunto para facilitar a compreenso e organizao do trabalho escrito.

    Em seguida, as reflexes produzidas foram reunidas em torno de conceitos introduzidos, a esttica, a tica e a poltica, com o in-tuito de construir base de sustentao e plano de orientao no exerccio de ressignificao de sentido dos princpios norteadores da qualidade.

    Sobre o municpio

    Localizado em uma regio deprimida do Estado de So Paulo, o municpio onde foi desenvolvido o estudo participa de um Co-legiado Gestor Regional do qual 56,25% de seus integrantes tm menos de dez mil habitantes e 25%, populao inferior a cinco mil moradores. Com um nmero inferior a quatro mil habitantes, o mu-nicpio estudado pertence a essa ltima poro. Segundo a Fun-dao Sistema Estadual de Anlise de Dados (Seade), a densidade demogrfica baixa, 9,25 habitantes/km2, e o grau de urbanizao 48,43%, bem abaixo de 93,70%, porcentagem que caracteriza o Estado de So Paulo (Seade, 2007).

    Em relao ao ndice Paulista de Responsabilidade Social, per-tence ao grupo 3, ou seja, ao conjunto dos municpios com nvel de riqueza baixo (16, contra 55 do estado), mas com bons indicadores nas demais dimenses. No que concerne longevidade e escolari-dade, seus nmeros, 75 e 70, respectivamente, superam os do es-tado, 72 e 65 (Seade, 2006). Verificamos, portanto, que a dimenso riqueza fator bastante significativo no rebaixamento do IPRS,6 confirmando-se, em prtica, a relevncia da dimenso no agrava-mento de questes especficas, como na sade.

    6. O IPRS composto por trs dimenses renda, escolaridade e longevidade , que sinalizam a evoluo das condies de vida dos municpios do Estado de So Paulo (Seade, 2007).

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    Em 2007, a participao nos vnculos empregatcios em servios era de 84,45%; as demais propores dividiam-se em 8,83% no co-mrcio e 6,71% na agropecuria (Seade, 2007).

    A taxa de mortalidade infantil do mesmo municpio, em 2007, foi de 12,66 por mil nascidos vivos, enquanto a do municpio de So Paulo, 13,07. Em funo da baixa sensibilidade desse indi-cador quando aplicado a locais com base populacional muito pe-quena, analisamos a variao do nmero absoluto de bitos por ano para obtermos uma melhor dimenso da mortalidade infantil. Em 2007, re gistrou-se um bito em 79 nascidos vivos. Num perodo de dez anos, houve variao de um a trs casos, constando, em alguns anos, o fenmeno como inexistente (Seade, 2007).

    Entre os nascidos em 2007, quatro pesavam abaixo de 2.500 g. No mesmo ano, foi registrado um caso de desnutrio infantil entre crianas menores de um ano. Em relao diarreia, entre aquelas com idade inferior a dois anos, foram notificados 19 casos, dos quais apenas nove usaram o tratamento de reidratao oral. Das 316 crianas com at 4 meses cadastradas, 252 obtiveram aleita-mento materno exclusivo e 64, misto (Brasil, 2007c).

    No que se refere assistncia s gestantes, os dados mostram que, em 2007, 76,92% das gestantes realizaram sete ou mais con-sultas de pr-natal, um nmero superior ao do estado, de 75,73% (Seade, 2007). Apenas 30,38% das gestantes realizaram parto ce-srea, ao passo que, no estado, a proporo foi de 55,36%. Todas as 445 gestantes cadastradas foram acompanhadas e 110 possuam menos de 20 anos (Brasil, 2007c).

    Das 5.212 pessoas cadastradas como portadoras de hipertenso, 5.071 tiveram acompanhamento; entre os 997 pacientes diabticos, foram dispensados cuidados a 957. No houve ocorrncia regis-trada de tuberculose em 2007, e todos os 27 casos notificados de hansenase foram acompanhados (Brasil, 2007c).

    Finalmente, sobre a avaliao da qualidade da ateno bsica, em pesquisa realizada num universo de 307 unidades bsicas de sade que pertencem aos municpios que compem a regio do De-partamento Regional de Sade da qual o municpio estudado faz

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    parte, verificou-se que as unidades de sade, a rural e a urbana, si-tuaram-se em 10o e em 28o lugares no ranking de qualidade, respec-tivamente (Castanheira, 2007).

    A rede municipal de sade

    A rede de sade municipal possui dois equipamentos de sade da famlia. O primeiro localiza-se na regio central da cidade e responsvel por toda a zona urbana. Sua estrutura fsica composta por dois nveis: no trreo, h o funcionamento da unidade de sade; no piso superior, cujo acesso se d por meio de escadas, concen-tram-se a Secretaria de Sade e seus departamentos administra-tivo, de agendamento, de informao , bem como as vigilncias epidemiolgica e sanitria. No momento da pesquisa, a parte supe-rior encontrava-se em reforma, e essas sees estavam funcionando em um local provisrio.

    Nessa unidade da zona urbana funciona a chamada Equipe I, composta por um mdico da famlia, uma enfermeira, um cirur-gio-dentista, cinco agentes comunitrios de sade, nove auxiliares de enfermagem, um tcnico de enfermagem, uma auxiliar de con-sultrio dentrio, um auxiliar de farmcia, um recepcionista, trs auxiliares administrativos, dois auxiliares de servios gerais e cinco motoristas. Esse grupo atende, por dia, em torno de 60 pessoas.

    A segunda unidade a qual denomino Unidade Rural Prin-cipal, e cujo funcionamento foi o alvo de estudo desta pesquisa situa-se no bairro rural. Sua equipe, denominada Equipe II, composta por um mdico da famlia, uma enfermeira, duas auxi-liares de enfermagem, cinco agentes comunitrios, uma recepcio-nista, um auxiliar de servios gerais e dois motoristas. Atende em torno de 50 pessoas por dia segundo os entrevistados.7

    7. Durante a semana na qual estivemos presente nessa unidade, no foi obser-vado esse volume de pessoas mencionado pelos entrevistados em torno de 10

  • SADE NA ROA 25

    Para atender a toda a rea da zona rural, cuja densidade demo-grfica bem menor se comparada urbana, a Equipe II utiliza duas outras estruturas fsicas. A estrutura de Apoio I, para a qual se desloca uma vez a cada semana, e a Estrutura de Apoio II, na qual no h regularidade de atendimentos prestados, pois so espordicos.

    O municpio conta com dois cirurgies-dentistas. Um que in-tegra a equipe de sade da famlia, e outro contratado para con-sultar, em alguns dias da semana, no perodo noturno, apenas na unidade central da zona urbana. O dentista da sade da famlia atende a toda a populao do municpio, atuando na unidade do centro e, duas vezes por semana, desloca-se para a Unidade Rural Principal e para a Estrutura de Apoio I.

    a 15 pessoas por dia. Na Estrutura de Apoio I, observamos um nmero maior de pessoas atendidas, chegando a aproximadamente 30 pessoas.

  • 3O ponto de partida

    A construo do conhecimento sobre o servio teve incio antes mesmo da ida ao local. realizado a seguir um recorte-partida para explicitar o referencial terico que nos ajudou no dilogo com a realidade e auxiliou a sua caracterizao, compondo um primeiro movimento no processo hermenutico.

    Na compreenso de como se operam as prticas no servio, al-guns olhares conceituais estiveram presentes. A observncia dos nexos de poder que permeiam as relaes entre os sujeitos envol-vidos foi um deles, ao conceber a relevncia do poder como ferra-menta de interpretao.

    Um exemplo do emprego de dispositivo de poder o panptico, que funciona automatizando e desindividualizando o poder, ou seja, qualquer um pode exercer o poder fazendo a mquina fun-cionar, seja o gestor, o conselheiro de sade ou os prprios colegas de trabalho. O panptico capaz de estabelecer uma proporo direta entre o mais poder e a mais produo (Foucault, 1984c, p.182).

    Para entender a lgica do panoptismo, Foucault (1984c) des-creve a figura arquitetural do Panptico de Bentham: na periferia, uma construo em anel dividida em celas, contendo duas janelas que permitem que a luz atravesse a cela de lado e que deem visibili-

  • 28 Sabrina S. KaneSiro bizelli elen roSe l. CaStanheira

    dade da torre central e dela para si, em que cada detento permanece individualizado e constantemente visvel. No h comunicao nem visibilidade entre celas, evitando compls, conluios, dissipa-es, contgios. O seu efeito a produo de um estado perma-nente de vigilncia independente daquele que vigia, numa sensao provocada pelo funcionamento automtico do poder.

    Esse mecanismo pode apresentar-se de maneira evidente nas relaes de trabalho, entretanto no se configura como dominao exercida por um elemento ou um grupo, mas provm de todos os lugares.

    Ainda de maneira mais sutil, a proliferao de tecnologias de controle na forma de biopoder ou seja, disciplinas do corpo e re-gulaes da populao em torno das quais desenvolvida a organi-zao do poder sobre a vida descrita por Foucault (1984a, 1985, 1988) em seus estudos sobre a tica que regia os comportamentos na Antiguidade e que deu incio ao surgimento de certo tipo de subjetividade que constitui o sujeito moderno: um individua-lismo cada vez mais interessado nos aspectos privados da exis-tncia, valorizando a conduta pessoal e o extremo interesse em si.

    [...] preciso entender que o princpio do cuidado de si adquiriu um alcance bastante geral: o preceito segundo o qual convm ocupar-se consigo mesmo em todo caso um imperativo que circula entre nu-merosas doutrinas diferentes; ele tambm tomou a forma de uma atitude, de uma maneira de se comportar, impregnou formas de viver; desenvolveu-se em procedimentos, em prticas e em receitas que eram refletidas, desenvolvidas, aperfeioadas e ensinadas; ele constituiu assim uma prtica social, dando lugar a re laes interin-dividuais, a trocas e comunicaes e at mesmo a instituies; ele proporcionou, enfim, um certo modo de conhecimento e a elabo-rao de um saber. (Foucault, 1985, p.50)

    A tica de construo do cuidado de si, ou o que Foucault chama de esttica da existncia, exige a observncia de cuidados com o corpo, os regimes de sade, os exerccios fsicos sem excesso, a sa-

  • SADE NA ROA 29

    tisfao, to medida quanto possvel, das necessidades (Foucault, 1984a, p.56). Ela implica um sujeito capaz de descobrir se est em estado de necessidade, sofrendo algum mal e que deve cuidar-se, seja por si mesmo, seja por algum que tenha competncia para tanto. Est, portanto, em estreita relao com o pensamento e a prtica mdicos.

    Nesse sentido, o saber mdico desempenha papel na construo de mecanismo funcional de controle social (Mendes-Gonalves, 1994). Esse saber produtor de verdade que se define como con-junto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos especficos de poder (Foucault, 1984a, p.13) delega figura do mdico o poder de definir, legislar e julgar o que normal e o que patolgico (Mendes-Gonalves, 1994; Canguilhem, 1990).

    Outro aspecto na relao do mdico com o saber abordado por Schraiber (1995). Ela define a instncia intelectual do processo de trabalho, resultando na apropriao do projeto de trabalho por parte desse profissional e, no mbito da produo dos servios, nomeia-o como mentor do trabalho. Esse movimento se traduz na reproduo de formas hierarquizadas de trabalho, dificultando a realizao das tarefas em equipe.

    Alm disso, a autonomia1 (Schraiber, 1995) na prtica mdica tradicionalmente exercida no mbito da clnica individual, fator que dificulta ainda mais o trabalho em sade nos moldes territoria-lizados e sanitaristas, o qual se caracteriza por aes de natureza coletiva. A autonomia tcnica no trabalho mdico auxiliou-nos nas reflexes produzidas ao trabalharmos com os polos liberdade e res-ponsabilidade das aes do profissional no processo de interveno.

    Mendes-Gonalves (1994) evidencia a dificuldade de inte-grao sanitria ao contrastar a Clnica individualizao do normal e do patolgico que leva ruptura das conexes sociais

    1. Schraiber (1995) trabalha a autonomia tcnica no trabalho mdico enquanto intimidade no processo de interveno nos dois polos, liberdade e responsabi-lidade das aes do profissional.

  • 30 Sabrina S. KaneSiro bizelli elen roSe l. CaStanheira

    do sujeito e a Epidemiologia disciplina que toma em um mesmo objeto de conhecimento os aspectos biolgicos e sociais da sade e da doena pela racionalidade tecnolgica do trabalho distinta.

    Segundo o autor, a demanda potencial na dimenso epidemio-lgica procura apreender as necessidades de sade da populao, enquanto na dimenso clnica pressupe que se caracteriza como necessidades de assistncia mdica (Mendes-Gonalves, 1994).

    Assim como Mendes-Gonalves, Campos (2000) aposta na re-lao dialtica entre a clnica e a sade no mbito coletivo em que a clnica ganha eficcia ao incorporar aspectos sociais e aes de pre-veno e promoo sade, e a sade coletiva torna-se possvel na ateno individual de programas coletivos.

  • 4dilogos com o servio:

    marco dois

    A viagem ao municpio

    Pela manh do dia de ontem, ligo para o gestor da sade para con-firmar minha ida ao municpio. Por telefone, ele informa que j falou com toda a equipe, e que esto aguardando a minha chegada. Ao saber que eu estaria em M. [municpio de referncia para a re-gio do DRS], oferece o transporte que diariamente sai s onze horas da noite, levando os usurios para consulta nos servios de mdia e alta complexidade no dia seguinte. A van voltaria s duas da tarde. Fico entusiasmada. Primeiro, por j me aguardarem a suposta recusa do gestor pela pesquisa est superada , e, segundo, por no ter que dirigir sozinha numa estrada desconhecida seria a primeira vez que guiaria at a regio.

    No Departamento Regional de Sade, as pessoas perguntam--me se sinto enjoos em viagens, pois, alm de longa, a estrada bas-tante sinuosa, como se me preparassem para o que me esperava. O motorista, sem dificuldades, encontra-me na Regional e, com muita simpatia, guia-me gentilmente at um veculo com o em-blema do Estado de So Paulo.

    H vrias pessoas na conduo, incluindo mais dois motoristas um, que est no volante, e outro, como paciente, pois foi a So

  • 32 Sabrina S. KaneSiro bizelli elen roSe l. CaStanheira

    Paulo para consultar-se. Pergunta-me em qual local gostaria de assentar-me, uma vez que os ditos melhores na frente com o mo-torista e os lugares perto da janela j estavam ocupados. Os bancos esto cobertos com o plstico de fbrica e o calor no interior do automvel intenso. Sento perto da porta. Pergunto se a van nova, e me respondem que no tem nem trs mil quilmetros. Os motoristas, conversadores e bem-humorados, questionam-me curiosos se eu estou indo para trabalhar no posto de sade. Escla-reo que vou trabalhar para uma pesquisa da faculdade.

    A van ainda passa por mais um hospital para pegar a ltima pessoa. A mulher despede-se da me e do irmo. O motorista faz a mesma pergunta que fez a mim, e a mulher prefere ficar no banco frente do meu com a criana no colo justificando que precisa ficar perto da porta para que ela e a filha no passem mal. A outra filha maior fica no banco de trs.

    Interesso-me em saber se a van sempre vai cheia, e respondem--me que sim, mas que na volta nem sempre est lotada, pois as pessoas aproveitam para ficar um pouco por l.

    Finalmente partimos s trs da tarde. As conversas entre os passageiros giram em torno das con-

    sultas. Dois deles relatam ter perdido viagem. A primeira passa-geira, porque a enfermeira no avisou que seu filho, de 4 anos, deveria ficar em jejum para poder ser internado. Ele faria uma ci-rurgia na plpebra esquerda, pois recebeu um coice de um burro no olho, e sua viso est comprometida. A me deu ao menino um lanche para comer na viagem.

    A segunda no se consultou devido ao cancelamento das con-sultas do dia pelo mdico. Todos reclamam da falta de considerao do mdico por no ter avisado e de como eles so folgados.

    O calor intenso, e, apesar de os vidros estarem todos abertos e a ventilao ser boa, o banco quente por causa do plstico. aper-tado e desconfortvel. As pessoas cochilam.

    16h23A van para. O motorista pede para trocar com outro, pois est

    com sono. sua primeira viagem longa, por isso o acompanha-

  • SADE NA ROA 33

    mento de outro mais experiente. As pessoas aproveitam a parada no posto para ir ao banheiro.

    O tempo est agora mais fechado, ventando forte, garoando e esfriando. Fechamos os vidros.

    Mais estrada.Preciso ir ao banheiro novamente. Pergunto ao motorista onde

    estamos, e responde que a cidade mais prxima est longe. H bu-racos na estrada e a van chacoalha bastante. Silncio.

    18h42Chegamos ao hospital de M. [municpio de referncia mais

    prximo]. Todos descem e utilizam o toalete do hospital. No esta-cionamento, converso com algumas pessoas enquanto esperamos os outros. Dizem que estavam com muita vontade de ir ao banheiro tambm. Apesar disso, ningum pediu para que parassem.

    Passamos pelo laboratrio para pegar um resultado de exame enquanto o motorista come uma pizza num bar. O outro moto-rista, que havia trocado no meio da viagem, reclama do comporta-mento do colega: Ainda se fosse para todo mundo comer, tudo bem. No h atrasos, e agora o motorista, j satisfeito, troca nova-mente para guiar a conduo. As pessoas esto impacientes para chegarem logo em casa. Vam bola, gente!, exclama o menino.

    As pessoas agora esto animadas e conversam. O menino can-tarola a mesma msica infantil repetidamente, enquanto a me ralha. As pessoas tossem. Por causa de esse trecho ser basicamente composto por curvas, a me que entrou com as duas crianas faz jus ao seu conhecimento sobre si: passa mal e vomita. Logo em seguida, o menino tambm o faz s que, ao contrrio da mulher que utilizou um saquinho plstico, ele despeja sobre a caixa de remdios.

    Ao margearmos a cidade de M. [municpio vizinho], vemos a falta de iluminao da cidade. As pessoas temem que a casa esteja na mesma situao, mas se acalmam ao passarmos, mais frente, pela estao de energia toda iluminada.

    ltimo morro para chegarmos cidade e a surpresa: definitiva-mente no h luz em parte alguma!

  • 34 Sabrina S. KaneSiro bizelli elen roSe l. CaStanheira

    A cidade est escura, h pessoas na rua, mas no se consegue identificar com facilidade quem quem. A msica alta vinda de um carro anima as pessoas em frente a um restaurante. O motorista para e, sem sair do veculo, conversa com o dono do restaurante, que tambm o proprietrio da penso, dizendo ter trazido a mu-lher para a qual o gestor da sade havia reservado hospedagem. Ele diz no haver lugar. Escuto a conversa apreensiva e comeo a me arrepender por no ter ficado em M. [municpio de referncia mais prximo]. Pede para me levar at l e que seu filho vai me recep-cionar. Dar um jeito.

    A van estaciona na Unidade de Sade. As pessoas saem despe-dindo-se. Verifico a pousada que se localiza logo em frente.

    Vejo uma cobra no meio da rua refletindo a luz da lua.Despeo-me de todos e sigo o recepcionista. No h chuveiro quente.No h energia para poder trabalhar no computador.Sinto-me cansada e insegura por estar num lugar desconhecido,

    na escurido. No pensei ser to difcil.Fico olhando a luz da vela e adormeo. (Dirio de campo,

    1o dia)

    A experincia da viagem e a chegada ao municpio recolocam as principais questes que permeiam o contexto do estudo: as condi-es socioeconmicas e geopolticas locais, traduzidas em primeiro plano pelo pequeno porte populacional do municpio e localizao de difcil acesso, bem como as dificuldades do poder pblico local para enfrentar os problemas estruturais na sade, na educao e na gerao de renda.

    Mesmo tratando da ateno em sade em nossa narrativa, no h como separ-la e distanci-la, ainda que artificialmente, das condi-es socioeconmicas e culturais da vida das pessoas do municpio, pois elas mantm relaes intrnsecas no modo de produzir prticas sociais (em sade).

    Nesse primeiro momento, percebemos o papel fundamental exercido pelo transporte na composio de estratgias na assis-

  • SADE NA ROA 35

    tncia em sade e na vida do muncipe, criando condies para o acesso da populao s aes de sade como tambm incidindo na agilizao dos processos.

    Sua utilizao responde a necessidades internas, como o deslo-camento de pessoas em situaes de urgncia e emergncia ou dos profissionais de sade at as mesmas, a locomoo dos profissio-nais de sade at as unidades estabelecidas na zona rural e visitas domiciliares a locais distantes, assim como o transporte de malotes com documentos entre as unidades e a Secretaria de Sade.

    Interessante notar a apropriao e o uso do transporte da sade pela populao, devido escassez de transporte coletivo no muni-cpio segundo entrevista, h, uma vez por semana, um nibus que circula entre a zona urbana e bairros da zona rural , baixa capaci-dade econmica da populao, que a impossibilita da posse de ve-culo prprio, ou mesmo proximidade e familiaridade entre as pessoas e profissionais da sade, facilitando essa situao, como mostram as passagens a seguir:

    Como a enfermeira no est na unidade, nos dirigimos casa do mdico. H uma grande fila no supermercado ao lado de sua casa. O secretrio explica que dia de recebimento da Bolsa Famlia. En-quanto esperamos, uma senhora pergunta se o carro vai demorar mais um pouco para sair, e o gestor responde que sair imediata-mente. Desapontada, ela comenta que queria ir junto, mas preci-sava esperar a filha. Em seguida voltamos secretaria, e a enfermeira est espera. O porta-malas preenchido com medicamentos. Todos os dias, uma conduo leva e busca os dois profissionais para o bairro rural. (Dirio de campo, 2o dia)

    O motorista chega, e partimos de ambulncia. No caminho, uma pessoa que percorre a p a estrada nos avista e pede carona. O motorista para. comum as pessoas aproveitarem o transporte da sade. (Dirio de campo, 3o dia)

    As caronas no ocorrem apenas nos limites do municpio, tambm so comuns entre municpios, transportando encomen-

  • 36 Sabrina S. KaneSiro bizelli elen roSe l. CaStanheira

    das ou pessoas que aproveitam para visitar parentes, passear em outras cidades, ou mesmo transportar visitantes.1

    Uma auxiliar de enfermagem pede para o motorista levar um ser-rote para a me em M. [municpio de referncia mais prximo] todos criticam o pedido com risadas e brincadeiras. (Dirio de campo, 3o dia)

    A van ainda passa por mais um hospital para pegar a ltima pessoa. A mulher despede-se da me e do irmo [...]. Interesso-me em saber se a van sempre vai cheia para M. [municpio de refe-rncia para a regio do DRS] e respondem-me que sim, mas que na volta nem sempre est lotada, pois as pessoas aproveitam para ficar um pouco por l. (Dirio de campo, 1o dia)

    Esses veculos so os mais usados para o transporte intermuni-cipal e de considervel relevncia no que tange aos recursos hu-manos, estratgicos e financeiros. Isso ocorre pela falta dos servios que no so oferecidos pelo municpio, como exames, consultas de mdia e alta complexidade, atendimentos de urgncia e emer-gncia, cirurgias, tratamentos e outros. Segundo o gestor, os gastos com transporte chegam a somar quase 70% do oramento total da Sade. Exemplifica: [...] para voc mandar um carro para M. [municpio de referncia para a regio do DRS], fica em torno de quatrocentos reais, e vai carro todo dia para l, quando no vo dois, quando no trs (Entrevista Gestor).

    A importncia atribuda ao transporte de pessoas manifesta nas situaes cotidianas de estresse que envolvem o secretrio de Sade na sua resoluo. So casos cuja soluo gera mais gastos Sade, como exemplificado a seguir:

    1. Fato que ocorreu com a pesquisadora na ida ao municpio com o transporte local. Essa situao comum quando h vagas no veculo, principalmente de-vido escassez de horrios e dias de nibus interurbanos e a inexistncia de li-nhas diretas.

  • SADE NA ROA 37

    [...] a gente gasta muito com viagens. Uma ambulncia vai para M. [municpio de referncia mais prximo], e tem uma paciente que no viaja de ambulncia, ela quer outro carro para lev-la [...] porque ela no viaja atrs, e o motorista no leva porque ela tem uma criana. Foi encaminhada para M. [municpio de referncia mais prximo], e s tem uma ambulncia para fazer o transporte, pois uma Kombi est em M. [municpio de referncia para a regio do DRS], e essa Ducato que o estado deu est transportando 18 pacientes da zona rural para c para a fisioterapia, e s tenho a am-bulncia ali. Essa paciente precisa ser transferida para M. [muni-cpio de referncia mais prximo], e ela no quer ir de ambulncia porque... porque no quer, entendeu? Isso que gera muito gasto para a gente, da voc tem que fretar um txi para levar essa pessoa. [...] Voc recorre a outros setores, recorro ao fundo social ou ad-ministrao, Eles tm carro, No, no tm, O carro deles j viajou, Ento vai ter que ir de ambulncia. (Entrevista Gestor)

    A utilizao do servio de txi tambm comum, assim como a utilizao de veculo particular para a resoluo desse tipo de problema:

    Eu tenho cedido muito o meu carro particular, agora ele est des-montado, porque eu viajei com ele ontem, e comeou baixar leo [...]. Se no tivesse, ela ia com meu carro. (Entrevista Gestor)

    Segundo o gestor, essa situao foi criada por trocas de favoreci-mentos polticos e tem sido mantida at ento:

    O que gerou isso foi o seguinte: so problemas plantados h muito tempo que voc no consegue arrancar a raiz. a questo de apa-drinhamento de vereador, de candidatos a prefeito, candidatos a vereador que, chegam ao ano da poltica, eles do carro at para voc ir beber no bar: Eu preciso fazer uma consulta, Pode marcar que eu te levo, da fica. (Entrevista Gestor)

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    Outros momentos de utilizao da populao de sua situao social e do quadro poltico do municpio para benefcio prprio so exemplificados:

    [...] porque a distncia que voc leva os pacientes complicada, pelo transporte, pessoas que no tm condies de pagar o ali-mento, no tm dinheiro para viajar e no fim acaba causando trans-torno para a secretaria, que tem que bancar tudo.

    No bairro rural, tem nibus, parece, uma vez por semana para atender a populao que de l. Se voc vai com um carro da Sade, o pessoal sabe que aquele carro vai, eles j agendam para vir na-quele carro. Se voc vai ao N. [outro bairro rural], as pessoas, s vezes, nem vm para c [zona urbana], mas viu o carro l, eles j agendam para vir. Chegou aqui, voc tem que levar de volta. Tem uma senhora que agora mesmo foi para M. [municpio de refe-rncia para a regio do DRS] de carona, foi passear, chegou ali, viu que era o carro: Quero ir embora, eu falei: No tenho carro para a senhora ir, Ah, ento eu vou l conversar com o prefeito. O prefeito fala: No tem carro, [senhora responde] Ento eu vou l no adversrio poltico. (Entrevista Gestor)

    Alm da preservao poltica e da estrutura de assistncia apoiada no transporte j instituda na cultura local, a dificuldade de reverter e modificar essa situao pode tambm ser atribuda ao conceito de qualidade da rede de sade relacionado ao investimento nessa rea como sinnimo de acesso, como demonstra o seguinte trecho:

    Tem transporte para todo mundo. coisa que voc no v em outra cidade. Eu fiz faculdade fora daqui, ento a gente conhece um pouco; se voc est doente, voc se vira para ir ao mdico. Aqui no: tem um planto que trabalha at como txi, que vai na casa, busca, traz, leva de novo, vai na mata entregar. Pelo menos o trans-porte, claro tem os seus efeitos, ningum perfeito, mas aqui muito bom. O povo ainda tem essa regalia, o carro vai at num

  • SADE NA ROA 39

    bairro distante, busca a pessoa, de noite ou um dia antes, traz para pousar, depois leva na casa de novo ento tem... pelo menos o transporte bem equipado, a gente no faz melhor porque no tem condies financeiras, mas o que possvel a gente consegue. (En-trevista Diretor Visa)

    A Secretaria de Sade dispe de quatro ambulncias, duas S10, uma Montana e dois carros de ambulatrio uma Kombi e uma Ducato. O nico veculo comprado pelo municpio a Kombi, os demais foram cedidos pelo estado.

    A estrutura montada de suporte ao transporte contempla sete motoristas que trabalham em esquema de rodzio trs motoristas ficam de planto durante 24 horas, viajando em dias alternados, dois motoristas ficam no transporte de ambulatrio e dois na uni-dade da zona rural alternadamente (inclusive moram no bairro) com escalas de folga.

    Os destinos dependem da distribuio de agendamentos organi-zados por um funcionrio especfico para essa funo na se cre taria, dependendo do convnio de prestao de servio com outros muni-cpios. Segundo o funcionrio responsvel, todos os dias sai um ve-culo para M. (municpio de referncia mais prximo) s segundas e teras-feiras, levando pessoas para coleta de exames laboratoriais, no decorrer da semana, para procedimentos como radiografia, retorno de cirurgia, internaes e urgncias e emergncias , em geral s oito horas, quando a unidade est aberta, para incluir no transporte even-tuais urgncias ou pessoas que no estejam na lista. O nmero de pessoas varia de 5 a 12 transportadas por dia.

    O funcionrio responsvel pelo transporte procura organizar os outros oito municpios de forma a sempre deixar pelo menos um veculo disponvel no municpio para eventuais necessidades o ideal disponibilizar um transporte para a equipe da zona urbana e um para a equipe da zona rural, porm nem sempre possvel. Re-lata momentos em que chegou a enviar carros para cinco lugares diferentes. Em geral, o veculo que circula entre o municpio e o de referncia mais prximo faz o percurso vrias vezes ao dia pela ca-

  • 40 Sabrina S. KaneSiro bizelli elen roSe l. CaStanheira

    rncia de conduo. Assim, mesmo com todo o planejamento reali-zado pela secretaria na organizao do complexo transporte, a articulao diria e rearranjos so necessrios: Porque muitas vezes esse carro de manh sai e dali a dez ou quinze minutos acon-tece uma emergncia e tem que ir outro carro (Entrevista Resp. Transportes).

    M. (municpio de referncia para a regio do DRS) um dos municpios que possui a maior parte dos servios de referncia em especialidades. O fluxo quase dirio para atendimentos de alta e mdia complexidade, e, por causa da distncia e condies da es-trada, o veculo parte do municpio pela madrugada e retorna apenas s vinte horas. Esse trajeto o mais criticado pelos funcio-nrios entrevistados, dada a exposio situao desgastante de pessoas j debilitadas pela doena, como mostra a seguinte fala:

    O paciente, s vezes, tem que sair s onze horas da noite para ser atendido s duas horas da tarde l em M. [municpio de referncia para a regio do DRS], por conta do paciente que tem que ir para So Paulo, ento acho cruciante para o paciente ficar, ainda mais o povo daqui que meio... meio no, bastante tmido, tem uma di-ficuldade grande de andar na cidade. Eu vejo por mim mesmo: antes de ir embora daqui,2 eu tinha grande dificuldade de estar li-dando na cidade. O povo tem medo de tudo da cidade, ento eu acho quanto mais perto o servio de sade tivesse da populao, seria mais saudvel. (Entrevista Resp. Transportes)

    Alm de enfrentar o tempo de espera, os pacientes devem, so-bretudo, suportar a prpria viagem. Essa realidade pde ser viven-ciada pela pesquisadora em sua ida ao municpio com o veculo que transportava os pacientes de volta como descrito no primeiro trecho citado do dirio de campo.

    2. O profissional responsvel pelo transporte e pelos sistemas de informao morou seis anos em So Paulo.

  • SADE NA ROA 41

    Nesse trecho, o assunto discutido entre os passageiros a perda de viagem uma situao comum, segundo entrevista com a fun-cionria da secretaria responsvel pelos agendamentos externos. causada pela dificuldade de estabelecer uma comunicao eficaz com os prestadores e por sua no responsabilizao pela no comunicao do cancelamento das consultas.

    Outros problemas em relao aos prestadores so levantados, como os retornos, as contrarreferncias e a prpria relao con-flituosa. Em relao aos retornos no h um padro estabelecido, alguns so marcados no prprio local da consulta e outros so mar-cados pelo prprio municpio. Nessa ltima forma, os usurios devem ser encaixados na agenda novamente, muitas vezes tomando a vaga de uma nova consulta, o que dificulta o atendimento e a agi-lidade no trabalho do setor de agendamento, alm da demanda acumulada:

    Eles marcam retorno na agenda do mdico, o paciente vai e perde a viagem porque no tem a vaga, no DRS no tem a vaga, ento nossa dificuldade muita, tem bastante retorno acumulado. (Entrevista Resp. Agendamento)

    As contrarreferncias so outra reclamao, pois, na maioria das ocasies, os usurios voltam de consultas externas sem infor-maes formais sobre sua condio de sade e, muitas vezes, no conseguem reproduzi-la para o profissional local para que este possa acompanh-lo de forma mais profcua.

    Um agravante da dificuldade de enfrentamento dos problemas entre o municpio e os prestadores a relao estabelecida direta-mente, que conflituosa:

    [...] os prestadores, tambm... [parece que] eles esto fazendo favor para o municpio, porque eles recebem do SUS, eles recebem a ta-bela SUS, agora eles tratam a gente assim como se fosse um favor para o municpio, de atender o municpio. A gente tem que ficar implorando por consulta: Por favor, urgente. Eu acho que isso

  • 42 Sabrina S. KaneSiro bizelli elen roSe l. CaStanheira

    no legal. A voc j se estressa por voc ter que se humilhar para o prestador. (Entrevista Resp. Agendamento)

    O estresse vivenciado pela funcionria atribudo ao aumento da demanda e ao atual quadro de vagas reduzidas, gerando uma de-manda reprimida:

    [...] a cidade est crescendo, a populao est ficando mais exi-gente, est procurando mais a unidade de sade, ento h um ac-mulo de demanda reprimida dessas especialidades e as vagas que vm, no absorvem. [...] Exemplo, vm cinco solicitaes de to-mografia, e h uma vaga mensal. Com isso, quatro mensais vo acumulando. Hoje em dia, a gente tem um acmulo de quarenta e cinco e uma vaga ms. Neurologia, a gente encaminha para o neuro, o neuro solicita uma tomo, isso implica o tratamento do pa-ciente porque ele nunca vai [...] solucionar o seu problema, porque [...] leva dois ou trs anos para fazer a tomo, quer dizer que ele no vai ter retorno com o neurologista, o problema dele vai continuar, ele vai continuar passando no mdico, vai continuar solicitando exame aqui e nunca vai ter solucionado. (Entrevista Resp. Agen-damento)

    A insuficincia de vagas acontece no circuito da central de regu-lao do Departamento Regional de Sade, mas o mesmo no ocorre no consrcio regional, do qual o municpio participa, em que as solicitaes em cirurgia e ortopedia so absorvidas. A situao de reduzido nmero de vagas para o universo da demanda existente administrada pela funcionria da seguinte forma: ao receber a guia de solicitao do usurio, verifica se urgente ou no pelo diagns-tico mdico; se for, encaixa em uma possvel vaga; do contrrio, segue a disposio das vagas segundo a data da solicitao.

    As reclamaes advindas da demora no atendimento da solici-tao por vagas pelos usurios na secretaria criam um clima tenso e conflituoso com a populao:

  • SADE NA ROA 43

    Aqui mesmo os que usam o servio particular usam o SUS. Aqui tem muitos professores, Iamsp, eles usam o SUS tambm, tanto consultas e exames eles fazem no SUS. Ento temos aqui aproxi-madamente 4.026 pessoas que usam o SUS. Eles encadeiam aqui, tanto da unidade do centro quanto da unidade rural, eles enca-deiam aqui. Essa agenda que ns temos para toda essa populao. A gente atende a todos, reclamao de todos, complicado. Ento a dificuldade que eu sinto mais por falta de vaga e no poder atender a todos. Eles no entenderem isso, eu acho que o psicol-gico, o nervoso, s vezes o estresse do dia a dia. isso, a falta de vagas, a populao no entender, o prestador tambm falhar e a falha sempre vem para a gente, porque a gente que est aqui cara a cara com o paciente. (Entrevista Resp. Agendamento)

    Gerncia e gesto

    Uma das caractersticas importantes a ser destacada sobre a gesto o papel simultneo de gestor e de gerente exercido pelo secretrio de Sade, devido sua presena na resoluo de ques-tes gerenciais do cotidiano dos servios de sade e ao exerccio das atividades exigidas pelo cargo. A agitada dinmica da rotina do gestor mostrou-se durante todo o perodo de permanncia da pesquisadora no municpio, bem como na turbulenta entrevista realizada com ele, constantemente interrompida por seu telefone celular.

    Encontro-me com o secretrio de Sade que j me aguarda. Ele mostra-me a unidade de sade do centro, apresentando-me s pes-soas, sempre se referindo a mim como quela da qual falei que vinha. A unidade est cheia e h pessoas esperando a conduo ao lado de fora. [...] O gestor fica de um lado ao outro, resolvendo questes sobre a lotao do veculo que est para sair, passando orientaes e informes para alguns profissionais, atendendo telefo-

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    nemas, bem como me explicando acerca das coisas da unidade. (Dirio de campo, 2o dia)

    Est sempre informado sobre tudo o que acontece nas unidades, mesmo relatando estar fora do municpio com frequncia.

    Outra caracterstica a ser destacada a proximidade da popu-lao com a gesto no somente com o gestor da sade como com o prprio prefeito , gerando um termmetro avaliativo direto sobre a sade local e tambm criando uma armadilha do jogo mani-pulativo praticado pela prpria populao. Esse segundo efeito do fcil acesso aos nveis de governo contornado pela relao de con-fiana entre o secretrio de Sade e o prefeito:

    [...] quando eu falo: Olha, no d para fazer isso, eles vo l ao prefeito, que me liga. Eu explico para ele o porqu no d para fazer e quando d para fazer e o prefeito fala: Olha, no posso atender voc agora, mas a Secretaria da Sade vai atender tal dia, e a pessoa volta a falar comigo, e eu explico para ela tranquilo. (En-trevista Gestor)

    Segundo o gestor, a proximidade do prefeito com a Sade tambm grande, bem como o incentivo ao Programa de Sade da Famlia:

    O prefeito incentiva todos os programas da Sade. A gente senta, conversa, ele vem direto aqui na secretaria, ele mora aqui do lado. Ento ele passa para saber o que est acontecendo, o que no est acontecendo, o que precisa, o que no precisa. (Entrevista Gestor)

    Mesmo com a prefeitura participando das polticas de sade local e tendo a centralizao dos recursos financeiros da sade, a secretaria que realiza sua administrao, como empenho de re-cursos e compras, justificando ao prefeito quando necessrio. A priorizao da sade pela gesto municipal motivo inclusive para

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    desavenas com outras secretarias, mas, apesar disso, h diversas atividades realizadas integrando as diferentes secretarias, como eventos, palestras nas escolas e o trabalho da odontologia. Entre-tanto, a viso fragmentada de gesto a partir de secretarias distintas e independentes ainda bastante presente, o que dificulta uma maior integrao nos trabalhos realizados por elas.

    O municpio gasta em torno de 17% do oramento com a sade, dos quais 70% so destinados a gastos relacionados ao transporte, segundo relato do gestor, para manter a estrutura descrita anterior-mente.

    O transporte o assunto nuclear na gesto, aparecendo em v-rios momentos da entrevista, mesmo quando o tema discutido outro. Apesar da identificao de outras reas com necessidade de investimentos, como infraestrutura e aes educativas, a exigncia, inclusive da populao, do transporte prevalece.

    Ento deixam a desejar as questes educativas, porque hoje, se o mdico fizer um encaminhamento, nem que seja por coisa pe-quena, o pessoal vai brigar para sair do municpio. (Entrevista Gestor)

    O quesito transporte aparece apenas como um efeito de outras questes enfrentadas pelo municpio, como a capacidade de ateno limitada em urgncia e emergncia, em exames diagnsticos e relacionada a outros nveis de ateno , bem como s condies socioeconmicas da populao. Alm disso, os moradores do mu-nicpio (inclusive os servidores pblicos) parecem ter incorporado a condio de dependente de meios externos como estratgia de sobrevivncia, possivelmente dada a sua pr-condio de baixa riqueza.

    Essa fragilidade, num contexto geral, sentida na capacidade de produo de diferena da populao local, refletida no senti-mento de poder de mudana do gestor, como demonstra o se-guinte trecho:

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    Eu acho que no interfere [a rotatividade de pessoas no cargo de secretrio3 no andamento da sade municipal] pelo seguinte: na Sade, voc j tem um parmetro para voc trabalhar, ento no tem como eu mudar, entrar um secretrio e mudar o sistema de tra-balhar. A gente tem que seguir o sistema. (Entrevista Gestor)

    Posicionamento passivo tambm verificado na participao no Colegiado Gestor Regional:

    [...] a questo do colegiado, agora, para ns, novidade, formou-se nesse ano. A inteno fortalecer no s o municpio, mas forta-lecer a regio como um todo. Pode dar certo e pode no dar, porque tem municpios maiores que sempre pegam a fatia maior do bolo. Nosso municpio esquecido, o municpio vizinho esquecido [...] a gente no tem aquela voz ativa dentro disso a. Por isso a maioria dos secretrios de municpios pequenos no abre a boca, no fala nada: Ah, mas por que voc no faz desse jeito?, Para voc fcil falar, por que eu no fao desse jeito, para mim l difcil. (Entrevista Gestor)

    A explicao para a inibio:

    Sinceramente, eu acho que o medo do gestor falar, em discutir com as pessoas que so mais instrudas, que tm uma formao maior, porque a maioria, nos colegiados, dos municpios, os seus secret-rios de Sade so mdicos, ento eles tm argumentos melhores para discutir com as pessoas que no so.4 (Entrevista Gestor)

    Nesse contexto regional de desigualdades de poder, o papel que o Departamento Regional de Sade exerce, mediando interesses,

    3. O entrevistado o terceiro secretrio de Sade desde o incio do atual mandato da gesto municipal.

    4. O gestor entrevistado tem nvel secundrio, e sua formao de auxiliar de en-fermagem.

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    muito importante para o estabelecimento de negociaes mais equnimes:

    [...] hoje a gente tem uma voz mais ativa, porque a gente tem mais contato com ele [diretor do DRS] [...]. Eles tm ajudado a gente nesse sentido, mas tem municpio que nem participa dessas reu-nies devido a nunca ter voz ativa, sempre prevalecendo o que eles falam: assim e acabou. Voc no tem voz ativa l. Hoje tem mudado bastante, mas tem que mudar muito ainda nesse sentido. (Entrevista Gestor)

    O Estado, alm de protetor e mediador, associado a cobranas e exigncias que, em alguns momentos, produzem mudanas como a interveno realizada na Estratgia de Sade da Famlia pelo DRS para elevao de ndices da ateno bsica que acarretou a melhoria da qualidade do trabalho realizado pelas equipes , porm, em outros, caracterizam-se pela sobrecarga de carter burocrtico:

    [...] ns tivemos problemas com o CNES, no Datasus, de corte de verba, porque temos um problema com a Internet, temos problema com o transporte, tem um monte de coisa e eles pedem coisas: Olha, quero coisa para amanh. A voc tem que fretar txi, tem que fretar carro para poder disponibilizar o que eles querem e, s vezes, quando chega: Deu problema, voc tem que trazer a base de dados de novo, no assim que a gente a quer, voc vai ter que voltar para o municpio e fazer amanh. Ento causa um trans-torno para a gente. No sei se voc percebeu, mas a nossa Internet ora voc tem, daqui a pouco voc no tem, ela lenta demais, ento... (Entrevista Gestor)

    Outra face do mesmo Estado o de mantenedor. Existe a de-pendncia do municpio tanto no mbito financeiro como no pro-fissional, com dificuldade tcnica na elaborao de planejamentos, como o Plano Municipal de Sade, que ainda no havia sido escrito

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    e cuja conotao dada apenas a formal, burocrtica [...] a gente vai fazer a adequao dele junto com a equipe de acordo com o Sis-pacto (Entrevista Gestor) e a Conferncia Municipal de Sade, cuja organizao fora copiada de outro municpio.

    Quando discutido o tema municipalizao e descentralizao, a rplica o encargo:

    um peso maior para o municpio [...], o municpio no est preparado para assumir essa responsabilidade. [...] os profissionais no esto capacitados para atender essa demanda, a populao estava acostumada com uma coisa e hoje cobra muito, algo que o municpio no pode atender em vrios aspectos da cobrana. (En-trevista Gestor)

    A cobrana mencionada refere-se novamente ao transporte, porm para outros lugares que no os delimitados pelo acordo de regionalizao. As exigncias vm para a realizao de tratamentos fora do estado, como no Paran, demonstrando, por um lado, a in-satisfao da populao com o atual cenrio de assistncia e, por outro, o desconhecimento das estratgias de ateno do SUS.

    Nesse segundo ponto, o desconhecimento da comunidade no que se refere s questes do SUS manifesto inclusive na incipiente participao popular na sade, bem como na baixa instrumentali-zao de controle social. Apesar de a ltima Conferncia Municipal da Sade realizada ter sido divulgada populao por meio dos agentes comunitrios e de cartas-convite Cmara Municipal e aos lderes de bairro, disponibilizando o transporte, estiveram pre-sentes apenas os funcionrios da sade, membros do conselho e o vereador presidente da Cmara.

    A participao do Conselho Municipal de Sade aparece nas entrevistas com duas caractersticas. A primeira a de ouvidoria e fiscalizao, exercendo o papel de controle social: [...] eles vm de vez em quando ao posto tambm observar como est, porque os pacientes vo reclamar e eles vm tambm para ver se est

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    sendo mesmo do jeito que os pacientes falam (entrevista Aux. Enfermagem).

    A segunda caracterstica o de exerccio da oposio poltica, sendo o Conselho meio de alguns membros para importunar a gesto da situao:

    Tem uma questo poltica por trs que diz: O secretrio est fa-zendo um bom trabalho? Vamos tentar complicar o trabalho dele, ver como ele se sai disso. [...] Porque quando tudo est bem, eles querem fazer de tudo para voc no ficar bem. (Entrevista Gestor)

    Como afirmado anteriormente, existe certa postura geral de passividade diante dos assuntos locais; mas, por outro lado, h tambm extrema atividade e agressividade relacionadas s ques-tes polticas do municpio.

    Diante da discusso sobre qualidade dos servios de sade, a atual gesto define-a como situao de satisfao da populao ma-nifestada pela ausncia de reclamaes do servio e pela verificao de melhoria nos indicadores de sade local. O principal entrave para tal condio avaliado na escassez de recursos financeiros, os quais facilitariam a resoluo dos atuais problemas enfrentados pelo municpio: a aquisio de mais veculos para a viabilizao de todas as atividades propostas pela Sade da Famlia e tambm a rea lizao da urgncia e emergncia; a contratao de mdicos por salrios satisfatrios e exigidos por eles para atuarem no municpio.

    Essa ltima dificuldade um entrave, inclusive, para se manter o atual modelo da ateno bsica. O financiamento da equipe de PSF no municpio efetua-se atravs do programa estadual Qualis. Dentre suas condies, consta a formao completa da equipe, tendo, por-tanto, o recurso suspenso na eventual ausncia de mdico. No mo-mento, a dificuldade para se contratar mdicos impele a gesto a propor uma mudana no modelo da ateno bsica: manter uma equipe de PSF na zona urbana e um PA na zona rural. Essa proposta, alm de proporcionar a queda na qualidade na ateno em sade da

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    zona rural hoje coberta pela Equipe II objeto do atual estudo e sobrecarga de trabalho para a equipe da zona urbana, poder acar-retar a demisso de profissionais alocados e a interrupo de todo o trabalho construdo por essa equipe nesses anos.

    Percurso e chegada: a unidade rural

    [...] O porta-malas preenchido com medicamentos. Todos os dias uma conduo leva e busca os dois profissionais para o bairro rural [o mdico e a enfermeira].

    [...] O caminho de terra. Discutimos a respeito dos pinus que invadem a paisagem e suas consequncias ambientais e sociais. Tambm sobre as condies de moradia esgoto, gua e energia dos habitantes dos bairros rurais perifricos.

    [...] Quanto gua, coletam da mina impotvel. Relata que, mesmo dando orientaes e hipoclorito, no suficiente para conter os problemas gerados por essas situaes [diarreia, micoses]. Descreve um caso de um morador que lhe pediu um filtro de gua, pois sua filha ouvira na escola que era preciso filtrar a gua antes de beber e agora se recusava a tomar gua at que o pai arranjasse um filtro para a casa. O secretrio lhe concedeu o pedido. (Dirio de campo, 2o dia)

    O carter domstico5 e interiorano da Unidade Rural Principal apresenta-se de imediato na prpria estrutura fsica, no que se refere disposio arquitetural e funcional das salas. O servio uti-liza-se de uma casa comum, tpica da regio, considerando-se o ta-manho, a forma e o estilo. Seus cmodos so utilizados como consultrios do mdico, da enfermeira e do dentista o deste l-timo tambm aproveitado como sala de reunio da equipe por ser o maior , como salas de pr-consulta, de observao, de procedi-

    5. A palavra domstico no foi usada para designar amador, desregrado, super-ficial, mas no sentido de familiar, caseiro, ntimo.

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    mentos, de vacinao e farmcia. H apenas um banheiro que no corresponde s necessidades de uma unidade de sade, a qual exige sanitrios masculino e feminino no s para o pblico, mas tambm para os profissionais. Apesar de a pintura ensaiar conceder certa distino unidade, de os tons empregados serem novos, seus ele-mentos denunciam a precariedade e o improviso, semelhante s casas dos arrabaldes. Esses traos so homogneos tanto na uni-dade principal quanto na de apoio localizada em um bairro mais distante. Tais caractersticas facilitam a aproximao do equipa-mento e a populao.

    A edificao familiar e convidativa da unidade impele uma dada relao com o espao e explicita a forma de sua utilizao pelos pro-fissionais e pela populao. Em geral, as pessoas usam a varanda da estrutura como sala de espera, sentadas na mureta ou encostadas nos pilares da antiga garagem. Esse espao liga-se imediatamente sala da recepo, onde h um banco de madeira usado para a espera do atendimento.

    Na Estrutura de Apoio I, a sala possui algumas cadeiras, que normalmente so cedidas s mulheres e aos idosos. Os demais esperam em p. Interessante notar que as reas internas de espera so ocupadas mais por mulheres, enquanto os homens preferem es-perar nas reas externas.

    As pessoas aguardam dentro e fora da unidade [abaixo do beiral, pois chuvisca]. uma casa com sala, cinco cmodos pequenos, um banheiro e uma cozinha. A sala possui quatro cadeiras do tipo es-colar , e as pessoas esperam em p. As mulheres e crianas esto dentro da casa, os homens conversam fora. (Dirio de campo, 3o dia)

    A Estrutura de Apoio II , consideravelmente, mais precria que a anterior. Para atender a populao de regies mais distantes, utilizado um barraco da igreja, o qual foi usado como escola an-teriormente. A antiga sala de aula usada como sala de espera e pr-consulta h velhas balanas para pesagem de adultos e crian-as, poucas cadeiras e nada mais. Do lado oposto do salo, h uma

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    porta que o separa de outra sala menor. Foi relatado como aconte-cem as consultas: nessa pequena sala h duas mesas escolares, uma ao lado da outra, diante das quais as pessoas so atendidas pelo m-dico e pela enfermeira simultaneamente.

    Dadas as condies extremamente precrias6 da Estrutura de Apoio II, a descrio da situao pelos depoentes tomou certo tom hilrio, apesar da gravidade da circunstncia. Essa situao proble-mtica se revelou na recusa, por parte de outros mdicos, de traba-lhar nesse local, e na eventualidade dos atendimentos o que no acontece com a Estrutura de Apoio I, para onde h sistematica-mente o deslocamento semanal da equipe.

    Evidentemente, as consultas realizadas na Estrutura de Apoio II possuem carter genrico e superficial, devido falta de privaci-dade, de recursos e de enfoque.7 A justificativa da insistncia da equipe em manter os atendimentos na estrutura, mesmo que even-tuais, a distncia desses bairros das outras duas estruturas, o que ocasiona a dificuldade de deslocamento da populao ali residente.

    Em geral, os temas das conversaes na sala de espera da Unidade Rural Principal giram em torno de assuntos pessoais, como filhos, maridos, conhecidos, ou fatos genricos ocorridos na cidade, queixas de sade, dentre outros, numa utilizao do espao para encontros e socializao da populao. Nesse aspecto, h semelhana com a Estrutura de Apoio I pelo fato de a equipe deslocar-se para o local apenas uma vez por semana, o que faz o atendimento populao tomar o carter de evento: espera-se o acontecimento consulta em sade.

    Durante o tempo decorrido da fase de campo, o auxiliar admi-nistrativo responsvel pela recepo da Unidade Rural Principal esteve em perodo de frias, eventualidade que proporcionou o

    6. Pudemos visualizar internamente o lugar por meio de fotos tiradas por entre os vidros quebrados das janelas. No conseguimos entrar porque as chaves do local estavam com o agente comunitrio da rea.

    7. O modelo tecnolgico mantido nas aes executadas pela equipe predomi-nantemente o da assistncia clnica anatomopatolgica individual (Mendes--Gonalves, 1994).

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    acompanhamento de um fluxo de atendimento atpico. Por outro lado, pude observar certa normalidade, no havendo tumultos e descompassos no andamento dos atendimentos pela equipe, sendo o trabalho de recepcionar as pessoas tranquilamente incorporado no processo de trabalho pelos profissionais presentes.

    Outro fator que ocasionou a tranquilidade observada na semana foi no ter ocorrido o dia reservado para consultas de certo bairro rural. Uma vez por semana, um nibus da prefeitura transporta at a unidade os moradores desse distante bairro que foram previa-mente agendados e organizados pelo agente comunitrio de sade responsvel pela rea. Segundo relato dos funcionrios, nesses dias o fluxo de pessoas e as atividades na unidade so intensos.

    O fluxo da Unidade Rural Principal observado nesse perodo foi o seguinte: o paciente chega unidade, senta-se; em seguida, a tcnica de enfermagem separa seu pronturio se a pessoa est agendada, este j est separado e chama-a para a pr-consulta. Em alguns casos, a profissional pergunta-lhe o nome, mas, em geral, j a conhece e sabe qual o agente comunitrio de sade res-ponsvel por sua famlia. Esse dado importante para a identifi-cao dos pronturios, pois estes so organizados por famlia e dispostos na prateleira na sala da pr-consulta, por setor de agente comunitrio. No houve utilizao de senhas, apesar de haver uma caixa de senhas na recepo.

    Na Estrutura de Apoio I diferentemente da unidade principal, onde h um balco em formato de meia-lua que separa uma pe-quena rea com mesa, cadeira, agendas, papis, materiais de escri-trio e computador8 da sala de espera , no h um local destinado recepo. A organizao observada foi a que se segue: a agente comunitria responsvel pela rea abre a unidade e separa todos os pronturios das pessoas agendadas no dia e os das eventuais. Ela organiza-os em ordem de chegada dos usurios. Quando o mdico, a enfermeira e a auxiliar de enfermagem, trazidos pelo motorista da

    8. No h conexo com a Internet, pois a estrutura de rede no chega at a uni-dade, existindo apenas na unidade da zona urbana.

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    Unidade Rural Principal,9 chegam unidade, todas as pessoas j esto presentes. Algumas saem e voltam conforme o tempo de es-pera. A agente comunitria que auxilia a tcnica de enfermagem na pr-consulta chama a pessoa pelo nome. Como o corredor que liga os cmodos pequeno, os sons das conversas na sala de es-pera, dos chamados da agente comunitria, do mdico e da enfer-meira juntam-se formando um grande rudo que contribui para frenesi geral.

    A sala de espera da Estrutura de Apoio I desprovida de qual-quer objeto excetuando cadeiras , cartazes ou outros elementos informativos. J a Unidade Rural Principal difere daquela, como mostra a passagem a seguir.

    Nas paredes, alguns informes:

    ATENO!!!!!!!!!A partir de 2 de maio de 2007 as consultas AGENDADAS tero

    PRIORIDADE no atendimento sobre as consultas eventuais.Deixe agendada desde j a sua!

    Equipe II PSF

    ATENO PAIS E ESCOLARESSERO FORNECIDOS ATESTADOS MDICOS

    PARA JUSTIFICAR AUSNCIA S AULAS SOMENTE NA PRESENA DOS PAIS OU RESPONSVEL

    MAIOR DE IDADE.Dr. M1

    9. A equipe transportada com o veculo disponibilizado para a unidade rural. Entretanto, dado o grande fluxo de transporte inter e intramunicipal, eventual-mente esse veculo alocado para realizar outras tarefas, e a equipe, nesses casos, espera at que retorne. Nessas situaes, a espera pela chegada da equipe Estrutura de Apoio I pode demorar quase um perodo inteiro.

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    ATENOHORRIO P/ FICHA DE MANH DAS 8h S 9h

    TARDE DAS 12h S 13hAUTORIZAO:

    Dr. M1.Dr. M2

    SILNCIO

    Na porta da sala do mdico, h o aviso:

    NO FORNEO ATESTADONo insista

    ATENO!!!!!!!!!Hipertensos e diabticos

    Favor comparecer no seu dias sextas-feiras

    Tambm h alguns cartazes trazendo os benefcios da atividade fsica, controle da presso arterial e os dez mandamentos do co-rao saudvel, campanha contra a hansenase e contra a dengue. Ainda nas paredes, mapa do territrio de abrangncia da unidade,

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    destacando as microreas cobertas pelos agentes comunitrios de sade, dias e horrios de atendimentos e atividades tanto da Uni-dade Rural Principal quanto das Estruturas de Apoio I e II, bem como descrio dos meses e bairros para pesagem do programa Bolsa Famlia.

    Um organograma da equipe esclarece: primeiro, o coordenador secretrio municipal de Sade, em seguida, generalista mdico, su-pervisora enfermeira e cirurgio-dentista; depois, subordinada supervisora enfermeira, auxiliar de enfermagem, seguido de ACS agente comunitrio e, subordinado ao cirurgio-dentista, ACD au-xiliar de consultrio dentrio.

    Ao lado do computador se encontram compartimentos com nomes de cada agente comunitrio de sade para recados ou exames.

    Na caixa suspensa, h o seguinte escrito:

    SENHORES USURIOS COLABORE COM A ADMI-NISTRAO COLOCANDO SUAS RECLAMAES OU SUGESTES

    (Dirio de campo, 2o dia)

    Segundo a descrio anterior, alguns problemas so priorizados intuitivamente e h tentativa do estabelecimento de uma dada ordem no servio, veiculada por meio de frases informativas e normativas.

    Das mensagens expostas, identificam-se trs direes que se so-brepem: do servio aos usurios, dos profissionais a eles prprios, e da administrao aos usurios e profissionais.

    As mensagens dirigidas aos usurios possuem dois tipos de ca-rter. O primeiro tipo est relacionado sade coletiva e educao em sade. Entretanto, apesar de haver anncios expostos por toda a unidade, esse dispositivo de comunicao no explorado para abordar questes de sade locais consideradas relevantes, uma vez

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    que no h investimento por parte do servio na confeco de car-tazes so todos provindos da secretaria estadual e do Ministrio da Sade. O investimento na produo de cartazes pelo servio est concentrado no segundo tipo de mensagem que referente tenta-tiva de barrar o usurio e delimitar o seu. Verifica-se a nfase em frases como no insista, seu dia, somente, prioridade, bem como a definio de data para iniciar a regra, indicando o prvio em-barao na execuo de certas normas. Pode-se dizer que a dificul-dade advm da ambiguidade produzida pela pessoalidade nas relaes e pela familiaridade dos usurios com os profissionais do servio, fatores que, por um lado, facilitam o trabalho de arregi-mentar a comunidade para as questes do servio e, por outro, difi-cultam o esforo da equipe em estabelecer e manter a organizao por ela idealizada como a implantao do esquema de fichas de atendimento.

    Outro inconveniente para os profissionais, que se manifesta nos cartazes, provm do fenmeno descrito anteriormente, de a unidade tornar-se ponto de encontro das pessoas. A famosa palavra encontrada pelos corredores dos hospitais e centros de sade tambm se acha na parede da unidade: Silncio!.

    H mensagens como definio das reas de abrangncia dos agentes comunitrios, dias e horrios de atendimento nos bairros unidades de apoio , organograma, local para recados e exames, que, apesar de aparentemente serem dirigidas aos usurios, na rea-lidade, disparam mais na direo dos profissionais. Muito alm do intuito de organizar o trabalho, nelas h a explicitao de demarca-es de reas de responsabilidades funcionando como proteo para os prprios profissionais e, sobretudo, de posies na escala hierrquica de poder.

    O esforo incuo para instituir lugares preestabelecidos de poder expresso na seguinte fala:

    [...] quando voc trabalha no interior, coloca-se aquela pergunta: Quem manda mais?. Um agente comunitrio que tem cinquenta votos em suas casas [...] ou a enfermeira padro, ou seja, nosso

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    cargo aqui, a gente supervisora, se voc abrir o organograma, voc v que a enfermeira est bem centralizada e no nem o m-dico. [...] no isso que funciona, no ? No porque, como eu falei, ou voc l a cartilha que eles mandam voc ler ou... (Entre-vista Enfermeira)

    O discurso que diz que a enfermeira est hierarquicamente acima do agente comunitrio e ao lado do mdico no estabelece por si s uma relao de poder. Outras relaes de poder atravessam esses corpos e instituem conformaes distintas, como no caso da poltica partidria local e de outras foras circulantes no localizadas.

    Por fim, ao direcionar-se aos usurios, a secretaria tem uma dupla inteno, pois, indiretamente, a sua mensagem tambm se dirige aos funcionrios. Embora a forma de expresso seja impera-tiva, a caixa de sugestes configura uma estratgia da Secretaria da Sade municipal para auxiliar em sua gesto aspirando demo-cracia nas aes e porosidade para a opinio pblica.

    Mesmo no havendo significativo retorno desse mecanismo gesto, pela falta de uso da caixa pelos usurios, ele continua pre-sente. Isso nos conduz a inferir que, alm das j citadas, h ainda duas funcionalidades que podem ser consideradas. A primeira a preservao da boa imagem pblica da administrao, contribuindo para o amortecimento de possveis insatisfaes e movimentaes contrrias a ela. Ao se criar um mecanismo institucionalizado de queixas, os protestos so organizados e, aos poucos, perdem a fora da manifestao, tanto que a caixa subutilizada. A segunda funo um sutil dispositivo de controle da equipe, ou seja, qualquer pessoa pode anonimamente denunciar profissionais para a secre-taria. O raciocnio do panptico entra em vigor: cada um controla a si mesmo em seu trabalho, pois, mesmo ausente, o domnio sobre os sujeitos se faz presente.

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    Momentos da assistncia

    Dilogos com as auxiliares de enfermagem

    A importncia do trabalho das auxiliares de enfermagem no processo geral de produo do cuidado nesse municpio traveste-se de maneiras diferenciadas segundo o arranjo organizativo do ser-vio. Em certos momentos, o trabalho o suporte do funciona-mento da unidade de sade e, em outros, adquire a centralidade no processo da assistncia.

    Em geral, as atividades diurnas realizadas na execuo do Pro-grama da Sade da Famlia dirigem-se pr-consulta das consultas mdica e de enfermagem, aos procedimentos solicitados pelo m-dico como inalaes, curativos, aplicao de medicamentos via oral, intravenosa e outros , assim como organizao da farmcia e entrega de medicamentos, orientao, ao acompanhamento nas visitaes e palestras educativas, vacinao, esterilizao de ma-teriais, como tambm ao preenchimento e organizao dos regis-tros habituais de uma unidade de sade da famlia.

    Aps o expediente de funcionamento, inicia-se o planto, no qual as auxiliares de enfermagem protagonizam o papel central na articulao de aes para a efetuao do cuidado. Todas essas ativi-dades so executadas por duas auxiliares de enfermagem, ambas possuindo trajetrias profissionais bastante semelhantes. Iniciaram suas carreiras como agentes comunitrias de sade, passaram a atuar, mais tarde, como atendentes de enfermagem antes mesmo de realizar o curso de auxiliar de enfermagem. H trs anos vincu-laram-se Estratgia de Sade da Famlia, apesar de j trabalharem na unidade e na rea rural h muitos anos o perodo de trabalho de cada uma de 12 e 13 anos.

    O fato de ambas morarem no bairro da unidade somado ao longo perodo de trabalho no mesmo local so ingredientes deci-sivos tanto para o traado da rede de cuidado nos casos de ur-gncia e emergncia fora do expediente da Sade da Famlia como veremos mais adiante , como para a construo de uma relao

  • 60 Sabrina S. KaneSiro bizelli elen roSe l. CaStanheira

    de proximidade e confiana entre a comunidade e os usurios do servio. Isso influi na