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Koichi Kameda de Figueiredo Carvalho Saúde pública, inovação farmacêutica e propriedade intelectual: o desenvolvimento de um novo medicamento contra a malária no Brasil Rio de Janeiro 2012 Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro Biomédico Instituto de Medicina Social

Saude publica inovacao farmaceutica e propriedade intelectual o desenvolvimento de um novo medicamento contra a malaria no Brasil.pdf

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  • Koichi Kameda de Figueiredo Carvalho

    Sade pblica, inovao farmacutica e propriedade intelectual: o

    desenvolvimento de um novo medicamento contra a malria no Brasil

    Rio de Janeiro

    2012

    Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    Centro Biomdico

    Instituto de Medicina Social

  • Koichi Kameda de Figueiredo Carvalho

    Sade pblica, inovao farmacutica e propriedade intelectual: o

    desenvolvimento de um novo medicamento contra a malria no Brasil

    Dissertao apresentada, como requisito para obteno do ttulo de Mestre, ao Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. rea de concentrao: Biotica, tica Aplicada e Sade Coletiva.

    Orientadora: Prof. Dra. Marilena Cordeiro Dias Villela Correa

    Rio de Janeiro

    2012

  • CATALOGAO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CB/C

    Autorizo, apenas para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta

    dissertao, desde que citada a fonte.

    ________________________________________ _________________________________ Assinatura Data

    C331 Carvalho, Koichi Kameda de Figueiredo. Sade pblica, inovao farmacutica e propriedade intelectual: o desenvolvimento de um novo medicamento contra a malria no Brasil / Koichi Kameda de Figueiredo Carvalho. 2012. 113f. : il.

    Orientadora: Marilena Cordeiro Dias Villela Correa

    Dissertao (Mestrado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social.

    1. Propriedade intelectual Brasil Tese. 2. Farmcia Pesquisa Teses. 3. Biotica Brasil Teses. 4. Malria Brasil Teses. 5. Sade pblica Brasil - Teses I. Correa, Marilena Cordeiro Dias Villela. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Medicina Social. III. Ttulo.

    CDU 347.78

  • Koichi Kameda de Figueiredo Carvalho

    Sade pblica, inovao farmacutica e propriedade intelectual: o desenvolvimento de

    um novo medicamento contra a malria no Brasil

    Dissertao apresentada, como requisito para obteno do ttulo de Mestre, ao Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. rea de concentrao: Biotica, tica Aplicada e Sade Coletiva.

    Aprovada em 06 de setembro de 2012.

    Banca Examinadora: _______________________________________________________ Prof. Dra. Marilena Cordeiro Dias Villela Correa (Orientadora) Instituto de Medicina Social IMS/UERJ _______________________________________________________ Prof. Dra. Cludia Ins Chamas Fundao Oswaldo Cruz - FIOCRUZ

    _______________________________________________________ Dra. Jaqueline Soares Instituto Nacional de Propriedade Industrial - INPI

    _______________________________________________________ Profa. Dra. Maria Andra Loyola Instituto de Medicina Social IMS/UERJ

    Rio de Janeiro

    2012

  • AGRADECIMENTOS

    Este trabalho no teria sido possvel sem a contribuio e, principalmente, o apoio de algumas

    pessoas.

    Em primeiro lugar, gostaria de expressar minha gratido Professora Marilena Corra, cuja

    orientao me ofereceu novas perspectivas a respeito do meu objeto de pesquisa e, sobretudo,

    do que ser pesquisador.

    Agradeo tambm Professora Heloisa Helena Barboza, que tanto me incentivou durante a

    graduao a seguir pela vida acadmica e na rea da biotica.

    Aos professores Maurice Cassier, Maria Andrea Loyola e Wanise Barroso pelas valiosas

    sugestes para esta dissertao.

    A Gabriela Chaves, Renata Reis, Luciana Gonalves, Eric Stobbaerts, Michel Lotrowska,

    Eloan Pinheiro, Cludia Chamas, Carolina Rossini, Priscilla Csar e Juliana Veras pelas

    contribuies.

    A Rachel Kiddle-Monroe e Bryan Collinsworth, da Universities Allied for Essential

    Medicines, pela oportunidade de participar da 65a AMS/OMS.

    Aos colegas e amigos do Centro de Tecnologia e Sociedade, alguns no mais integrantes, mas

    cujo apoio no posso deixar de agradecer: Arthur, Bruno, Carlos Affonso, Danilo, Giovanna,

    Jhessica, Joana, Luiz Moncau, Paula, Pedro Augusto, Pedro Belchior, Pedro Francisco,

    Marlia Maciel, Marlia Monteiro, Ronaldo, Srgio e Walter.

    Aos companheiros do IMS, Eduardo, Pedro Villela e Jaqueline.

    A Simone, Slvia e Eliete, da Secretaria do IMS, pela ateno e pelas conversas.

    Aos amigos de sempre, que carrego no corao e cuja amizade tanto me fortalecem e

    inspiram: Rafael, Paulo, Ilana, Patrcia, Caroline Ting, Edmundo, Hiro, Luiza e Guto.

    Ao sensei, pelas mensagens de sabedoria e encorajamento.

    Ao amigo Luiz Villarinho, pela inestimvel contribuio para o fechamento desta dissertao.

    A meus pais e Tie, pelo amor incondicional.

  • RESUMO

    CARVALHO, Koichi Kameda de Figueiredo. Sade pblica, inovao farmacutica e propriedade intelectual: o desenvolvimento de um novo medicamento contra a malria no Brasil. 2011. 97f. Dissertao (Mestrado em Biotica, tica Aplicada e Sade Coletiva) Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

    Esta dissertao tem como objetivo estudar a relao entre propriedade intelectual, inovao e sade pblica, com foco na anlise do consrcio farmacutico para desenvolvimento do medicamento combinao em dose fixa artesunato-mefloquina (ASMQ) contra a malria. A concepo dessa iniciativa se insere num momento histrico, final dos anos 1990 e incio dos anos 2000, em que estudos apontaram a insuficincia da pesquisa e desenvolvimento para as doenas negligenciadas. Na poca, o cenrio da malria era particularmente preocupante, dada a disseminao de resistncia aos medicamentos disponveis e falta de perspectiva do lanamento de novos produtos contra a doena. Para proteger a ltima classe de antimalricos eficazes, a saber,os derivados a base de artemisinina, uma estratgia encontrada foi a do recurso terapia combinada a base de artemisinina (artemisinin based combination therapy ACT). Contudo, dos 4 ACTs recomendados pela OMS em 2001, apenas 1 se encontrava disponvel no mercado. O projeto FACT foi ento criado, em 2002, com o propsito de desenvolver dois novos ACTs artesunato-mefloquina e artesunato-amodiaquina. O consrcio do ASMQ, por suas especificidades, em particular a produo de inovao por um laboratrio pblico do Sul e a circulao Sul-Sul de conhecimentos e tecnologias , o tornam de interesse para estudos nos campos da biotica e da sade pblica; tendo sido, por isso, escolhido como objeto desta dissertao. O estudo se apoiou em pesquisa bibliogrfica, de fundamental relevncia para a compreenso dos problemas de acesso e de disponibilidade de novos produtos para doenas negligenciadas, decorrentes de um modelo de inovao farmacutica sustentado em patentes. De forma complementar, foram feitos: i) trabalho de observao durante a 65a Assembleia Mundial da Sade, da Organizao Mundial da Sadem, evento de importncia para os debates sobre propriedade intelectual e interesse pblico; e ii) entrevistas com integrantes de equipes das duas principais instituies participantes do consrcio FACT (Farmanguinhos/Fiocruz e DNDi). Palavras-chave: Propriedade intelectual. Inovao farmacutica. Malria. Doenas negligenciadas. Parcerias para desenvolvimento de produto. ASMQ. FACT. ACT. Biotica. Sade pblica.

  • ABSTRACT

    This thesis aims to study the relationship between intellectual property, innovation and public health, considering the case of the consortium for the development of the fixed-dose combination artesunate-mefloquine (ASMQ) for the treatment of malaria. The genesis of this initiative is part of a historical moment (late 1990s and early 2000s), when studies highlighted the crisis on R&D for neglected diseases. At that time, the scenario of malaria was particularly worrying, given the spread of drug resistance and also the fact that there was no expectation for launching new antimalarials in the market. A strategy was then developed to protect the last class of effective antimalarials (artemisinin derivatives) by establishment of the artemisin-based combination therapies (ACTs). Nevertheless, only one of the four ACTs recommended by WHO in 2001 was available. The FACT project was then created in 2002 with the purpose of developing two new ACTs - artesunate-mefloquine and artesunate-amodiaquine. The ASMQ Consortium, due to its specific features (production of an innovation by a public laboratory located in the South and South-South knowledge circulation), may interest the studies in the fields of Bioethics and Public Health, and was chosen to integrate this thesis. Besides the analysis of specialized literature, which was of fundamental importance for understanding the problems of access and availability that arises from the current model of innovation adopted by the pharmaceutical industry, an observation work was conducted during the 65th World Health Assembly, World Health Organization, held in Geneva during May 2012, which was of valuable importance for the debates regarding intellectual property and public interest. Also we conducted interviews with actors belonging to the two institutions participants of the consortium FACT (Farmanguinhos / Fiocruz and DNDi) in order to better understand the initiative.

    Keywords: Intellectual property. Pharmaceutical innovation. Malaria. Neglected diseases. Product Development Partnerships. ASMQ. FACT. ACT. Bioethics. Public heath.

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1 ..................................................................................................................................... 50!Tabela 1 .................................................................................................................................... 71 Figura 2 ..................................................................................................................................... 92!Figura 3 ..................................................................................................................................... 96!Figura 4 ..................................................................................................................................... 96!Figura 5 ................................................................................................................................... 103! !

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    ABIA Associao Brasileira Interdisciplinar de AIDS

    ACT Terapia combinada base de arteminisina ("Artesimisin Combination Therapies")

    ACTA Acordo Comercial Anticontrafao ("Anti-Counterfeiting Trade Agreement") ADI Ao Direta de Inconstitucionalidade AGU Advocacia-Geral da Unio

    AMC Compromisso Adiantado de Mercado (Advance Market Commitments) ANVISA Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria ARV Antirretroviral ASAQ Artesunato-Amodiaquina ASMQ Artesunato-Mefloquina B&MG Fundao Bill & Melinda Gates

    BIRPI Escritrio Internacional Reunido para a Proteo da Propriedade Intelectual (Bureaux Internationaux Runis pour la Protection de la Proprit Intellectuelle)

    CAME Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais CE Comunidade Europeia

    CEWG Grupo de Trabalho Consultivo de Especialistas em Pesquisa e Desenvolvimento: Financiamento e Coordenao CHRD Comission on Health Research and Development

    CIPIH Comisso sobre Direitos de Propriedade Intelectual, Inovao e Sade Pblica

    CNRFP The Centre National de Recherche et de Formation sur le Paludisme

    COMS Prembulo da Constituio da Organizao Mundial da Sade COOPI-ANVISA Coordenao de Propriedade Intelectual da ANVISA CRO Contract Research Organization CTD Common Technical Document CUB Conveno da Unio de Berna CUP Conveno da Unio de Paris DADDH Declarao Americana de Direitos e Deveres do Homem

    DND-WG Grupo de Trabalho Medicamentos para Doenas Negligenciadas (Drugs for Neglected Diseases Working Group)

    DNDi Iniciativa Medicamentos para Doenas Negligenciadas (Drugs for Neglected Diseases Initiative) DUDH Declarao Universal de Direitos Humanos

    EWG Grupo de Trabalho de Especialistas em P&D: Coordenao e Financiamento

    FACT Terapia Combinada em dose fixa base de Artemisinina (Fixed-dose Artemisinin Combination Therapy) FARMANGUINHOS Instituto de Tecnologia em Frmacos FDA Food and Drug Administration FDC Combinao em Dose Fixa (Fixed-Dose Combination) FIOCRUZ Fundao Oswaldo Cruz FTA Free Trade Agreement

  • G-FINDER Global Funding of Innovation for Neglected Diseases

    GATT General Agreement on Tariffs and Trade (Em traduo livre para o portugus: Acordo Geral sobre Tarifas e Comrcio) GT Grupo de Trabalho GTPI Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intel

    HIV/AIDS Vrus da Imunodeficincia Adquirida / Sndrome da Imunodeficincia Humana IFA Ingredientes Farmacuticos Ativos

    IGWG Grupo de Trabalho Intergovernamental em Sade Pblica, Inovao e Propriedade Intelectual INCO-DEV International Cooperation with Developing Countries-program INPI Instituto Nacional de Propriedade Industrial LAFEPE Laboratrio Farmacutico do Estado de Pernambuco LPI Lei de Propriedade Industrial MDIC Ministrio do Desenvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior MMV Medicines for Malaria Venture MS Ministrio da Sade MSF Mdicos Sem Fronteiras NEM Novas Entidades Moleculares NIH National Institutes of Health OEA Organizao dos Estados Americanos OMC Organizao Mundial do Comrcio OMPI Organizao Mundial da Propriedade Intelectual OMS Organizao Mundial da Sade ONG Organizao No Governamental ONU Organizao das Naes Unidas OPAS Organizao Pan-Americana de Sade P&D Pesquisa e Desenvolvimento PDP Parcerias Pblico-Privadas para o Desenvolvimento de Produto PIB Produto Interno Bruto

    PIDESC Pacto Internacional de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, da Organizao das Naes Unidas PL Projeto de Lei

    PN-DST/AIDS Programa Nacional de Doenas Sexualmente Transmissveis e AIDS

    PNM Poltica Nacional de Medicamentos PRV Priority Review Voucher

    PSS Protocolo Adicional Conveno Americana sobre Direitos Humanos em matria de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, de 1988, o chamado Protocolo de So Salvador

    STF Superior Tribunal Federal SUS Sistema nico de Sade

    TDR/OMS Programa Especial para Pesquisa e Treinamento em Doenas Tropicais da OMS TLC Tratados de Livre Comrcio TPP Trans-Pacific Partnership

    TRIPS Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights (Em traduo livre para o portugus: Aspectos de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comrcio (ADIPC))

  • UE Unio Europeia UNASUL Unio das Naes Sul-Americanas UNFCCC Conveno-Quadro das Naes Unidas sobre Mudanas Climticas USM Universidade Sains Malasia

  • SUMRIO

    !INTRODUO ...................................................................................................................... 12 Objetivos .................................................................................................................................. 16 Metodologia ............................................................................................................................. 17 Plano da dissertao ............................................................................................................... 18 1 O IMPACTO DAS PATENTES FARMACUTICAS NO ACESSO A MEDICAMENTOS ................................................................................................................ 20 1.1 Direito sade e acesso a medicamentos ........................................................................ 20 1.2 O sistema de propriedade intelectual vigente: estratgias e prticas do patenteamento na rea farmacutica .................................................................................... 25 1.3 A evoluo do sistema internacional da propriedade intelectual e sua relao com o acesso a medicamentos: da CUP ao TRIPS .......................................................................... 30 1.4 Iniciativas para enrijecimento das atuais regras de propriedade intelectual ............ 36 1.5 O patenteamento farmacutico e a defesa da sade pblica no Brasil ........................ 40 2 DA CONSTATAO DE UM DESEQUILBRIO FATAL CRIAO DE BENS PBLICOS PARA PROMOVER O ACESSO A MEDICAMENTOS ............................. 46 2.1 A lacuna em P&D para doenas negligenciadas ............................................................ 46 2.2 Novas iniciativas e propostas para incentivo inovao em sade ............................. 51 2.3 A importncia das PDPs para o desenvolvimento de produtos para doenas negligenciadas ......................................................................................................................... 54 2.3.1 A era das parcerias ........................................................................................................... 54 2.3.2 PDPs para doenas negligenciadas .................................................................................. 56 2.4 A proposta de uma conveno global de P&D para produo de bens pblicos globais ...................................................................................................................................... 59 2.5 A poltica brasileira das PDPs ......................................................................................... 64 3 O CONSRCIO FACT PARA DESENVOLVIMENTO E PRODUO DO ASMQ 68 3.1 O trabalho de terreno ....................................................................................................... 68 3.2 Malria: uma das big three .......................................................................................... 73 3.3 A estratgia dos ACTs ...................................................................................................... 75 3.4 Medicamentos para doenas negligenciadas .................................................................. 78 3.4.1 O grupo de experts sobre desenvolvimento farmacutico ............................................... 79 3.4.2 O projeto FACT ............................................................................................................... 82 3.4.3 Uma PDP com foco nas doenas mais negligenciadas .................................................... 83 3.5 O consrcio FACT e o desenvolvimento do ASAQ ....................................................... 87 3.6 A histria do ASMQ ......................................................................................................... 89 3.6.1 Uma fbrica dentro de outra fbrica ................................................................................ 89 3.6.2 Circulao de conhecimento Sul-Sul ............................................................................... 91 3.6.3 A importncia das inovaes incrementais para a sade pblica ............................. 93 3.6.4 Desafios inerentes produo de inovao por um laboratrio pblico do Sul .............. 97 3.6.5 O desafio do acesso ......................................................................................................... 99 3.6.6 Perspectivas futuras ....................................................................................................... 103 4 CONCLUSO .................................................................................................................... 105 REFERNCIAS .................................................................................................................... 108 APNDICE A - Lista geral de temas abordados nas entrevistas com os atores-chave ........ 113

  • 12

    INTRODUO

    A sade tanto um direito humano reconhecido em Tratados e normas internacionais,

    quanto um direito social previsto na Constituio Federal Brasileira de 1988. Por ser o

    medicamento uma das principais ferramentas para o tratamento e o combate de doenas, a

    garantia de seu acesso torna-se requisito fundamental para a efetivao do direito sade.

    Contudo, o acesso regular a medicamentos essenciais ainda assunto crtico, por no

    ser realidade para a maioria das pessoas no mundo, que habitam os pases em

    desenvolvimento e menos desenvolvidos. Dados como a estimativa feita pela OMS em 2000

    de que um tero da populao global encontra dificuldades para obter acesso a essas

    tecnologias continuam atuais, sendo profusamente divulgados por documentos e outras fontes

    de informao mais recentes1.

    Diversos fatores contribuem para essa situao, tais como problemas relativos

    infraestrutura e qualidade dos produtos farmacuticos, bem como questes polticas,

    determinantes socioculturais de sade mais amplos e preos proibitivos (FMt Hoen, 2002;

    Helfer; Austin, 2007, p. 142). A questo dos altos preos dos medicamentos assume especial

    relevncia, na medida em que a incorporao de novos medicamentos, protegidos por

    patentes, vem colocando em risco a continuidade de polticas governamentais de assistncia

    farmacutica de pases ricos e pobres (Vieira; Mendes, 2007, p. 5-6).

    A patente confere ao seu titular a explorao de modo exclusivo do bem protegido por

    um determinado perodo, findo o qual o produto entra em domnio pblico e passa a poder ser

    livremente copiado. Portanto, durante a vigncia da patente cabe ao seu titular ou terceiro

    licenciado a prerrogativa de definir o preo que considerar mais adequado ao produto. Tal

    sistema de recompensa de inovaes pela atribuio, por parte do Estado, de direitos de

    propriedade exclusivos, ainda que temporrios, se fundamenta no princpio do interesse

    pblico de se fomentar a inovao cientfica, o que potencialmente trar novos benefcios

    sociedade.

    No setor farmacutico, esse sistema considerado chave, seja em razo da facilidade

    da cpia e dificuldade de desenvolvimento e sigilo dos produtos, seja por incentivar

    1 Nesse sentido, documentos da OMS (2003, 2006 e 2011); pginas eletrnicas de ONGs com atuao em prol do acesso a medicamentos, como Mdicos Sem Fronteiras (http://www.msf.org.uk/access_to_medicines.focus) e Universidades Aliadas por Medicamentos Essenciais (http://essentialmedicine.org/issues/access-gap); e artigos cientficos (Reich, 2000; Scherer; Watal, 2002; Sterckx, 2004; Pogge, 2005; Helfer; Austin, 2011, p. 142)

  • 13

    investimentos e esforos em uma atividade considerada cara e arriscada como a de P&D

    farmacutico. Contudo, o que ocorre na prtica o completo desvirtuamento dos fundamentos

    iniciais desse sistema. Esse fato vem sendo constatado com a introduo no mercado de

    poucos produtos genuinamente inovadores e a adoo pelas empresas de prticas de

    patenteamento que visam, antes de tudo, a prolongar monoplios comerciais2 e adiar o

    lanamento de verses genricas do produto, o que promoveria competio e queda de preos.

    Ademais, o estabelecimento discricionrio de preos elevados para medicamentos

    torna-os impeditivos para particulares e governos de pases de menor renda, gerando um custo

    social gravssimo. Mencione-se que a excluso do acesso uma preocupao que povoa

    outros debates envolvendo propriedade intelectual, sendo exemplo emblemtico as normas de

    direitos autorais, que podem entrar em confronto com o direito educao e direitos de acesso

    ao conhecimento, informao e cultura. Todavia, por serem os medicamentos bens

    essenciais manuteno da sade e da vida, a questo do acesso considerado

    particularmente problemtico do ponto de vista moral (Pogge, 2005).

    O impacto das patentes no acesso a medicamentos ganhou dimenso global com a

    assinatura do Acordo TRIPS, em 1994, o qual obrigou todos os pases signatrios,

    independente de seu grau de desenvolvimento e do fato de permitirem ou no o

    patenteamento de produtos farmacuticos, a conferirem proteo intelectual para todos os

    campos tecnolgicos. Embora o prprio Acordo tenha previsto flexibilidades e salvaguardas

    de modo a minorar as possveis repercusses das novas regras em setores vitais para o

    desenvolvimento dos pases, como a sade, a sua adoo dependeu da mobilizao de

    diferentes atores. Assim, alm dos governos de pases em desenvolvimento, organizaes no

    governamentais (ONGs) internacionais e brasileiras, por meio de seu ativismo teraputico,

    tiveram papel crucial em assegurar a utilizao dessas salvaguardas para a proteo da sade

    pblica (Villela, 2010).

    Em paralelo, outras tentativas para enforcement (observncia) e enrijecimento das

    normas de propriedade intelectual passaram a ser buscadas pelos pases desenvolvidos, que

    sediam a maioria das empresas dependentes da proteo desses direitos. Medidas como o

    estabelecimento de regras mais rgidas (TRIPS-plus) no mbito de acordos bilaterais de

    comrcio e tratados regionais, muitas vezes conduzidos em segredo, bem como a

    transferncia das discusses para fruns mais favorveis aos interesses das naes ricas, tm

    2 Entre essas prticas est a do evergreening, que envolve o depsito de novos pedidos de patentes quando as patentes originais esto perto de expirar, com o propsito de prolongar o monoplio comercial e impedir a entrada de concorrentes genricos no mercado (Guimares, 2010, p. 184).

  • 14

    sua importncia acentuada na medida em que os pases em desenvolvimento passam a

    compreender e a utilizar em seu favor as regras do jogo das negociaes internacionais

    (Mello e Souza, 2010, p. 13)

    Visualiza-se ento, nesse quadro, dois movimentos diametralmente opostos: um

    movimento movido pelos interesses comerciais dos detentores de patentes, o qual busca o

    enrijecimento e a expanso das regras existentes; e outro, orientado pelo interesse pblico,

    promovendo resistncia ao atual modelo de propriedade intelectual e inovao.

    Alis, esse modelo, norteado pelo lucro e baseado na concesso de patentes, gera uma

    segunda problemtica, que envolve a insuficincia de produtos inovadores e pesquisas em

    curso para atender a importantes demandas de sade dos pases em desenvolvimento. Nesse

    modelo, os investimentos privados so direcionados para as questes de sade e os mercados

    de maior rentabilidade, sendo negligenciadas aquelas doenas que afetam principalmente as

    populaes mais desfavorecidas (MSF; DND-WG, 2001)

    Com a constatao desse desequilbrio fatal (MSF, 2001), no final dos anos 1990,

    diversas propostas foram feitas e iniciativas implementadas para incentivar e desenvolver

    novos medicamentos, vacinas e diagnsticos para as doenas negligenciadas e mais

    negligenciadas. Um exemplo desses novos arranjos so as parcerias pblico-privadas para

    desenvolvimento de produtos (PDPs), em mbito internacional, que contriburam para a

    mudana positiva do cenrio global de P&D para tais doenas. No entanto, a sustentabilidade

    dessas iniciativas depende de mudanas estruturais no atual sistema de inovao global, como

    as que envolvem o financiamento das atividades de P&D.

    H cerca de uma dcada, o tema vem sendo alvo de debates no mbito da Organizao

    Mundial da Sade. Recentemente, em maio de 2012, um grupo consultivo de especialistas

    (Consultative Expert Working Group: Financing and Coordination CEWG), aps analisar

    novos mecanismos para incentivar a inovao, recomendou o incio das negociaes de uma

    Conveno Global de P&D. Por trs da Conveno, esto dois princpios: a responsabilidade

    compartilhada de todos os pases com os problemas de sade negligenciados, que afetam a

    maior parte da populao mundial, e a promoo de uma maior participao dos Governos na

    definio das prioridades de sade global; e a produo de bens pblicos globais, possibilitada

    pelo aumento do financiamento pblico da P&D em sade e pela adoo de modelos de

    inovao de conhecimento aberto (CEWG, 2012).

    A proposta da Conveno Global de P&D, que j tinha sido discutida por acadmicos

    e outros grupos de experts da OMS, incorpora preocupaes concernentes tica e aos

    direitos humanos, como a justia e a solidariedade global, ao obrigar que pases

  • 15

    desenvolvidos contribuam com problemas primordiais dos pases em desenvolvimento. Por

    outro lado, cabe mencionar que, com a globalizao e a migrao das populaes, questes de

    sade at ento consideradas exclusivas de pases pobres, como doenas tropicais, passam a

    atingir tambm pases desenvolvidos3.

    Uma denominao recente conferida s doenas tropicais negligenciadas ajuda a

    compreender a importncia do combate e, em ltima instncia, da erradicao dessas doenas.

    A compreenso de que essas doenas so perpetuadoras ou promotoras da pobreza ajuda a

    visualizar a mo dupla entre tais doenas e a pobreza, como j exposto por economistas em

    relatrio da OMS de 2001, Macroeconomics and Health: Investing in Health for Economic

    Development: no apenas as dificuldades de particulares e governos em arcarem com

    medicamentos e outras tecnologias de sade levam continuidade dessas doenas, como as

    prprias molstias tm reflexos no desenvolvimento das populaes, ao atingirem a sua vida

    produtiva e intelectual, gerando um ciclo de pobreza. Portanto, o comprometimento dos

    Governos dos pases atingidos em erradicar tais doenas, bem como a contribuio dos pases

    desenvolvidos se trata de uma questo de tica e justia internacional (Resnik, 2006, p. 96).

    Uma dessas doenas persistentes a malria. No final dos anos 1990, o cenrio de

    combate malria era extremamente preocupante, sobretudo em razo da disseminao de

    resistncia aos frmacos disponveis no mercado poca e dada a falta de expectativa de

    lanamento de novos produtos pela indstria. Uma estratgia encontrada foi combinar

    diferentes medicamentos para a proteo da ltima classe de antimalricos a dos derivados a

    base de artemisinina , para os quais ainda no havia sido identificada farmacorresistncia.

    Contudo, das quatro terapias baseadas em derivados de artemisinina (ACTs, conforme sigla

    em ingls) recomendadas pela OMS em 2001, apenas uma se encontrava disponvel no

    mercado.

    Nesse contexto, foi proposto o projeto FACT para o desenvolvimento de dois desses

    ACTs, quais sejam o artesunato-mefloquina (ASMQ) e o artesunato-amodiaquina (ASAQ).

    Tendo sido gestado no seio do mesmo grupo que identificou o desequilbrio fatal da P&D

    em sade global (MSF; DND-WG, 2001), houve a natural incorporao no projeto de

    ideologias como a promoo de medicamentos como bens pblicos globais e o envolvimento

    3 Recente artigo para a New York Times do pesquisador em doenas tropicais negligenciadas, Peter Hotez, informa que alguns estados estadunidenses vm sofrendo com surtos de doenas como dengue e Chagas. Hotez, P. Tropical Diseases: The New Plague of Poverty. 18/08/2012. Disponvel em: http://www.nytimes.com/2012/08/19/opinion/sunday/tropical-diseases-the-new-plague-of-poverty.html?_r=2 . Acesso em 23/08/2012.

  • 16

    de instituies de pases em desenvolvimento (constantemente chamados de pases do Sul4)

    em iniciativas dedicadas s doenas que os afetam.

    Foi considerado de nosso especial interesse o brao do FACT dedicado ao

    desenvolvimento do ASMQ, que parece ter incorporado de modo mais nsito as posies dos

    membros componentes do grupo que o concebeu. As especificidades do consrcio do ASMQ,

    como o fato de ter se apoiado nas competncias do laboratrio pblico brasileiro

    Farmanguinhos (Instituto de Tecnologia em Frmacos, Fundao Oswaldo Cruz), as trocas de

    tecnologia entre instituies do Sul e os desafios de se desenvolver uma inovao

    farmacutica num arranjo diferenciado fizeram dessa experincia o objeto de estudo desta

    dissertao.

    Em nossa viso, a anlise do consrcio do ASMQ interessa tanto s discusses no

    mbito da biotica sobre propriedade intelectual e governana da sade global, quanto para a

    sociologia da sade, do ponto de vista de como se estruturou, com a participao de

    instituies de pases em desenvolvimento e com oportunidade de aprendizado para esses

    atores. Iniciativas como essa se alinham com a atual viso de empoderamento dos pases em

    desenvolvimento, para que atendam eles prprios s necessidades de sua populao e

    diminuam a sua dependncia tecnolgica em relao aos pases mais ricos.

    Objetivos

    O objetivo geral desta dissertao discutir a relao entre propriedade intelectual,

    inovao farmacutica e sade pblica, considerando o cenrio de questionamento do modelo

    de inovao adotado pela indstria farmacutica, e a partir da anlise de um caso de

    desenvolvimento farmacutico com foco numa demanda de sade negligenciada (o

    antimalrico artesunato-mefloquina).

    4 A diviso Norte-Sul uma categorizao poltica e socioeconmica dos pases. Embora a maior parte dos pases do Norte, de fato, pertena ao hemisfrio norte, tal diviso no levou em considerao apenas questes geogrficas, mas tambm econmicas e de desenvolvimento. So includos no Norte os pases desenvolvidos, e no Sul os pases em desenvolvimento e menos desenvolvidos. Durante muito tempo essa diviso foi considerada central para a explicao da desigualdade e da pobreza no mundo, sendo alvo de estudos acadmicos e de polticas pblicas. Atualmente questiona-se a capacidade de essa polarizao entre hemisfrios Norte e Sul representar a realidade de hoje, embora tal classificao ainda seja considerada importante rea de reflexo no mbito das relaes internacionais (Therien, 1999). A despeito desses questionamentos, a classificao continua sendo utilizada em artigos acadmicos e publicaes da sociedade civil (GTPI, Direitos de Propriedade Intelectual e Acesso aos Antirretrovirais: Resistncia da Sociedade Civil no Sul Global, 2011). Alm disso, a classificao amplamente empregada no mbito do consrcio FACT para caracterizar as instituies de pases em desenvolvimento, razo pela qual ser tambm adotada por esta dissertao.

  • 17

    Metodologia

    A metodologia utilizada no presente trabalho constitui: a discusso da bibliografia

    especializada, bem como o levantamento de documentos e textos normativos relativos a

    propriedade intelectual de medicamentos e modelos complementares de inovao para

    doenas negligenciadas. O carter interdisciplinar da pesquisa se refletiu na bibliografia

    selecionada, pertencente aos domnios da biotica, do direito e da sociologia e economia da

    inovao. Os documentos utilizados incluem relatrios e estudos da Organizao Mundial da

    Sade (Macroeconomics and Health: Investing in Health for Economic Development;

    Report of the Consultative Expert Working Group on Research and Development: Financing

    and Coordination) e da ONG Mdicos Sem Fronteiras (Fatal Imbalance: The Crisis in

    Research and Development for Drugs for Neglected Diseases), alm das polticas

    institucionais da DNDi.

    De forma complementar, foi realizado trabalho de observao durante a 65a

    Assembleia Mundial da Sade (AMS), da Organizao Mundial da Sade, que ocorreu em

    Genebra, Sua, em maio de 2012. Essa participao possibilitou reflexes sobre os interesses

    e as questes envolvidas nos debates sobre propriedade intelectual, inovao e sade pblica.

    Alm disso, para melhor compreenso do consrcio do ASMQ, foram realizadas

    entrevistas com 11 atores que atuam nas instituies diretamente envolvidas com a concepo

    e a implementao desse projeto de desenvolvimento farmacutico (Farmanguinhos,

    Fundao Oswaldo Cruz, DNDi).

    Optou-se pela realizao de entrevistas individuais semi-estruturadas, por se entender

    que seria a forma ideal de obteno de informaes para estruturao do captulo sobre a

    histria do consrcio. A despeito de aparentes limitaes na utilizao de entrevistas no

    diretivas (no estruturadas e semi-estruturadas), esse tipo de entrevista permite que o

    pesquisador mantenha uma postura de abertura no processo de interao com o entrevistado,

    evitando restringir-se s perguntas previamente definidas. Possibilita-se, assim, a ampliao

    do papel do entrevistado (Fraser; Gondim, 2004). Segundo esses autores, a defesa da no

    estruturao ou semi-estruturao na pesquisa qualitativa se justifica, pois esta almeja

    compreender uma realidade particular e assume um forte compromisso com a transformao

    social, por meio da autorreflexo e da ao emancipatria que pretende desencadear nos

  • 18

    prprios participantes da pesquisa. Nesse sentido, o sujeito participante deixa o mero papel

    de entrevistado para se tornar verdadeiro co-construtor da pesquisa.

    Cabe mencionar que todas entrevistas foram gravadas e acompanhadas de anotaes

    dos temas e pontos principais cobertos em caderno de campo. As gravaes foram

    organizadas e registradas em arquivo digital. antes de serem transcritas pelo prprio

    pesquisador. Para a transcrio das entrevistas foi utilizado um software especializado

    (Transcriva 2.016). Este processo resultou num total de aproximadamente 12 horas e 150

    pginas de material escrito e catalogado.

    Plano da dissertao

    No primeiro captulo so apresentadas as justificativas jurdicas e econmicas

    normalmente propagadas para a implementao e manuteno do sistema de patentes vigente

    e como, na prtica, esses direitos podem colocar em risco a efetivao do direito sade ao

    afetarem o acesso a medicamentos essenciais. apresentada a evoluo do sistema

    internacional de propriedade intelectual e as contnuas tentativas dos pases mais ricos em

    enrijecer as regras de proteo a esses direitos, e, de outro lado, o movimento de resistncia de

    grupos da sociedade civil e de pases em desenvolvimento em buscar a garantia da utilizao

    de salvaguardas e outras medidas de interesse pblico.

    No segundo captulo, discutida a segunda forma de impacto das patentes no acesso a

    medicamentos, qual seja o direcionamento dos investimentos privados em P&D para doenas

    que afetam primordialmente os pases desenvolvidos. So mencionadas as iniciativas

    propostas e implementadas para estimular a inovao para as doenas negligenciadas, com

    especial foco nas parcerias para desenvolvimento de produto. Tambm abordado o problema

    da sustentabilidade do financiamento e da coordenao de P&D para os problemas de sade

    das populaes mais pobres e a proposta de criao de uma conveno global sob os auspcios

    da OMS.

    O terceiro e ltimo captulo teve como propsito analisar uma iniciativa surgida no

    momento de constatao da crise de P&D para doenas ligadas pobreza. Nesse sentido, foi

    estudado o consrcio FACT para desenvolvimento do antimalrico artesunato-mefloquina,

  • 19

    que no s buscou atender a uma necessidade de sade negligenciada, como deixou a cargo

    de um laboratrio pblico brasileiro o desafio de desenvolver e produzir a inovao.

  • 20

    1 O IMPACTO DAS PATENTES FARMACUTICAS NO ACESSO A MEDICAMENTOS

    1.1 Direito sade e acesso a medicamentos

    A partir do final da Segunda Guerra Mundial (2a GM), diversos documentos jurdicos

    internacionais, embalados pelo movimento moderno de direitos humanos, passaram a

    reconhecer a sade como um direito fundamental de todo ser humano.5 Esses documentos do

    um significado quase holstico sade, tida como um estado de bem-estar fsico, mental e

    social, que deve ser desfrutado por todos, sem qualquer tipo de distino (COMS), e no mais

    elevado nvel (PIDESC). A sade tambm vista como uma questo geopoltica, necessria

    para a obteno da paz e da segurana (COMS), e como responsabilidade dos Estados,

    devendo ser tratada como um bem pblico (PPS).

    Ainda que a inteno desses documentos tenha sido conferir o conceito mais abrangente

    possvel sade, o contedo desse direito no foi muito bem definido.6 Contudo, estudos

    acadmicos e relatrios internacionais, bem como os fatos ocorridos a partir dos anos 2000,

    incluindo a disseminao de pandemias globais (HIV/AIDS, tuberculose e malria), a

    conscientizao dos efeitos adversos dessas pandemias e a introduo no mercado de novos

    antirretrovirais para o tratamento de HIV/AIDS, contriburam para a afirmao do acesso a

    medicamentos como um elemento fundamental para a efetivao do direito sade7 (Helfer;

    Austin, 2007).

    5 Entre os mais clebres esto a Declarao Universal de Direitos Humanos (DUDH), de 1948, o Prembulo da Constituio da Organizao Mundial da Sade (COMS), de 1946, e o Pacto Internacional de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, da Organizao das Naes Unidas (PIDESC), de 1966. A maioria dos pases pertencentes ao continente americano conta tambm com o sistema regional de proteo da Organizao dos Estados Americanos (OEA), que afirmam a proteo do direito humano sade na Declarao Americana de Direitos e Deveres do Homem (DADDH), de 1948, e no Protocolo Adicional Conveno Americana sobre Direitos Humanos em matria de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, de 1988, o chamado Protocolo de So Salvador (PSS). 6 Excetue-se o PSS, que prev a adoo de algumas medidas para a garantia do direito sade pelos Estados Partes: atendimento primrio de sade; extenso dos benefcios dos servios de sade a todas as pessoas sob a jurisdio do Estado; total imunizao contra as principais doenas infecciosas; preveno e tratamento das doenas endmicas, profissionais e de outra natureza; educao de populao sobre preveno e tratamento dos problemas de sade; e satisfao das necessidades de sade dos grupos de mais alto risco que, por suas condies de pobreza, sejam mais vulnerveis (art. 10.2). 7 Outros direitos humanos acabaram tambm sendo relacionados urgncia da garantia do acesso a medicamentos, tais como o direito vida, o direito de partilhar dos benefcios do progresso cientfico e o direito no discriminao. (Helfer; Austin, 2007)

  • 21

    Infelizmente, a garantia desse elemento no realidade na maior parte do globo. Segundo

    a OMS, cerca de um tero da populao mundial no possui acesso regular a medicamentos

    essenciais (OMS, 2003, 2006 e 2011). Enquanto 90 por cento da produo mundial de

    medicamentos consumida por 15 por cento das pessoas, que habitam os pases mais ricos,

    pacientes de pases em desenvolvimento acabam tendo que arcar, eles prprios, com 50 a 90

    por cento dos custos com remdios. Na prtica, inmeras pessoas deixam de usufruir desses

    bens, fundamentais para o desfrute do mais elevado padro alcanvel de sade (COMS),

    sobretudo em razo de preos que tornam medicamentos vitais impeditivos para essas

    populaes. (OMS, 2009).

    Os medicamentos essenciais so aqueles assim considerados para satisfazer as demandas

    prioritrias de cuidados da sade8. A OMS publica a sua Lista de Medicamentos Essenciais

    bianualmente desde 1977, com frmacos indicados para o tratamento tanto de doenas

    transmissveis (malria e HIV/AIDS, por exemplo), quanto de doenas crnicas (como doena

    de Parkinson e cncer). Frise-se, no entanto, que a questo do acesso igualmente

    fundamental para medicamentos no includos em listas oficiais, e mesmo para outras

    tecnologias biomdicas, como vacinas, diagnsticos e demais bens de sade, razo pela qual

    acesso a medicamentos ser tratado no sentido mais amplo possvel neste trabalho.

    No Brasil o acesso a medicamentos um tema prioritrio, que se insere num quadro

    normativo e de polticas pblicas para a garantia da sade. Para a Constituio Federal de

    1988, a sade um direito social9 bsico (art. 6o), fundado nos princpios da universalidade,

    8 A Lista Modelo de Medicamentos Essenciais elaborada conforme os critrios de prevalncia da doena, segurana, eficcia e comparao de custo favorvel dos medicamentos. Atualmente com 350 medicamentos para o tratamento de condies prioritrias, a Lista da OMS pode ser usada pelos pases como um guia para o desenvolvimento de sua prpria lista de medicamentos essenciais. World Health Organization, Fact Sheet No. 325, Disponvel em http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs325/en/index.html No Brasil, a Relao Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME) serve de organizao para as listas estaduais e municipais. As polticas de medicamentos essenciais visam a promoo da disponibilidade, do acesso, da sustentabilidade, da qualidade e do uso racional de medicamentos. Entre as vantagens da adoo dessas listas est uma melhoria na qualidade da prescrio, o que proporciona melhores desfechos de sade, menos erros de medicao e melhor aproveitamento dos recursos e menores custos, a partir da compra em escala maior e simplificao dos sistemas de abastecimento, distribuio e reembolso. (Wannmacher, 2006) 9 O direito sade foi uma inovao da Constituio de 1988, aparecendo apenas acidentalmente nas cartas constitucionais anteriores. A afirmao da sade como um direito social foi fruto da fora dos movimentos populares no momento da redemocratizao poltica do Brasil, no final dos anos 1980. Naquele momento, houve forte engajamento de profissionais de sade ingressantes no servio pblico com o objetivo de prestarem assistncia aos menos favorecidos na formulao de uma nova poltica de sade, alm de intensa participao tambm do setor privado nos debates da Assembleia Constituinte. Assim, dado o ativo envolvimento popular e, em especial, a proposta tcnica de um sistema de sade elaborada pelos sanitaristas, desde a promulgao da Constituio de 1988, o direito sade vem sendo eficaz. De fato, ao contrrio dos outros direitos sociais ali afirmados, o direito sade tem sua garantia vinculada a polticas sociais e econmicas, bem como diretrizes expressamente formuladas e exemplificativamente elencadas no texto constitucional (arts. 196, 198 e 200) (Dallari, 2008, p. 10-11)

  • 22

    equidade e integralidade, e um dever do Estado (art. 196). Esse dever se manifesta por meio

    de aes e servios pblicos que integram uma rede regionalizada e hierarquizada e

    constituem um sistema nico descentralizado, com atendimento integral e participao da

    comunidade (Art. 198). Essa rede constitui o sistema brasileiro de sade pblica (Sistema

    nico de Sade SUS), normatizado pelas leis 8.080, chamada de Lei Orgnica da Sade, e

    8.142, ambas de 1990, e pelas Normas Operacionais Bsicas (NOB 91, 93 e 96).

    Entre as atribuies do SUS est a assistncia farmacutica10 (art. 6o, (I), (d), da lei

    8.080/90), apoiada na Poltica Nacional de Medicamentos (PNM), oficializada pela Portaria

    3.916/98, do Ministrio da Sade. A PNM se detalha em oito diretrizes e quatro prioridades,

    sendo uma dessas diretrizes a reorientao da assistncia farmacutica, que passa a incluir as

    aes destinadas a implementar, no mbito das trs esferas do SUS, todas as atividades

    relacionadas promoo do acesso da populao aos medicamentos essenciais.. Acrescente-

    se que essa reorientao tem como um de seus fundamentos o desenvolvimento de iniciativas

    que possibilitem a reduo nos preos dos produtos, viabilizando, inclusive, o acesso da

    populao aos produtos no mbito do setor privado..

    Desse modo, interpretando-se o direito constitucional sade em vista dos instrumentos

    normativos supracitados e de outros11 garantidores de fornecimento gratuito de medicamentos

    para determinadas doenas, citando-se como exemplos a lei 9.313/96, em benefcio dos

    pacientes com HIV/AIDS, e a lei 11.347/2006, para o tratamento de diabetes), depreende-se

    que o acesso a medicamentos constitui um direito a ser assegurado a todos os brasileiros

    (Rosina, 2012, p. 37).

    Ademais, tambm o Judicirio brasileiro tem se pronunciado no sentido de reconhecer a

    garantia do acesso a medicamentos como elemento necessrio para a concretizao do direito

    sade (Guise et al, 2010). Na verdade, como aponta Loyola (2010), a relao entre acesso a

    medicamentos e direito sade j havia sido construda na esfera judicial no final dos anos

    1990, por meio de intensa judicializao promovida por ONGs de pacientes portadores com

    HIV/Aids. Contudo, esse fenmeno, que tem incio com os mandados judiciais e obriga

    Municpios e Estados a custarem tratamento para pacientes especficos, criticado, em razo

    10 Tal Poltica define o campo da assistncia farmacutica como um grupo de atividades relacionadas com o medicamento, destinadas a apoiar as aes de sade demandadas por uma comunidade. Envolve o abastecimento de medicamentos em todas e em cada uma de suas etapas constitutivas, a conservao e controle de qualidade, a segurana e a eficcia teraputica dos medicamentos, o acompanhamento e a avaliao da utilizao, a obteno e a difuso de informao sobre medicamentos e a educao permanente dos profissionais de sade, do paciente e da comunidade para assegurar o uso racional de medicamentos.. 11 Alguns exemplos so a Lei 9.313/96, que trata do fornecimento gratuito de medicamentos para todos os cidado infectados com HIV/Aids; e a Lei 11.347/2006, que estabelece o acesso gratuito aos medicamentos para o tratamento de diabetes.

  • 23

    do seu impacto no oramento da sade e na prpria manuteno das aes regulares de

    assistncia farmacutica pelo governo. (Oliveira; Bermudez; Osorio-de-Castro, 2007, p. 89)

    Por receio de ferir o direito constitucional sade integral caso no concedam

    imediatamente o atendimento da demanda judicial por certo medicamento, os operadores do

    direito com frequncia baseiam suas decises unicamente na prescrio mdica, sem levar em

    conta a racionalidade do que foi pedido se adequado enfermidade, dada a melhor

    evidncia -, as listas de fornecimento pblico e a quem pertence a responsabilidade pelo

    fornecimento naquela ocasio. Como consequncia dessa prescrio por liminar, recursos

    so gastos com pedidos nem sempre justificveis e at duplicados (aos nveis municipal e

    estadual), o que contribui para o uso irracional de medicamentos e compromete, conforme j

    destacado, o prprio financiamento do sistema12 (Oliveira; Bermudez; Osorio-de-Castro,

    2007, p. 89).

    Alis, esse sistema j tem o seu oramento comprometido pelo crescimento exponencial

    dos gastos das autoridades das trs esferas de governo. Como apontou estudo feito por Vieira

    e Mendes (2007, p. 9), entre 2002 e 2006 houve um crescimento de 123,9% dos gastos

    governamentais com medicamentos, superando enormemente o crescimento dos gastos totais

    com sade no pas (9,6%). Essa parece ser, alis, uma tendncia mundial, que preocupa

    igualmente os governos de pases mais ricos. A ttulo exemplificativo, em 2005 o Canad

    enfrentou aumento de 11% em seus gastos com medicamentos, chegando ao patamar de 24,8

    bilhes de dlares, valor de gasto em sade somente superado por aquele com hospitais.

    Tambm o Reino Unido, pas com modelo de sade focado na ateno primria, enfrentou a

    crise do financiamento de seu sistema, em razo do crescimento de 10% dos gastos com

    medicamentos para aquele nvel de complexidade, entre 2001 e 2002. Uma das justificativas

    apontadas para esse incremento foi a incluso de novos medicamentos, cujos preos altos

    teriam sido consequncia da existncia de direitos de propriedade intelectual. (Vieira;

    Mendes, 2007, pp. 5-6)

    Em um trabalho na rea de sade pblica, no poderia deixar de ser mencionado que

    outros fatores podem afetar o acesso de indivduos em pases em desenvolvimento aos

    medicamentos essenciais, como a pobreza, falhas no financiamento governamental de

    cuidados da sade, problemas de infraestrutura (instalaes inadequadas para o fornecimento

    de cuidados de sade, falta de treinamento apropriado dos profissionais de sade e

    12 Tendo em vista essa realidade, decises mais recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) tm considerado a alocao mais eficiente de recursos financeiros escassos, incluindo o oramento do Ministrio da Sade (Rosina, 2011, p. 37).

  • 24

    deficincias no sistema de distribuio e suprimento de medicamentos), impostos e tarifas

    sobre medicamentos importados, oportunismo poltico de alguns governos e determinantes

    socioculturais de sade mais amplos (Helfer; Austin, 2007, p. 142)

    Ademais, h quem questione o impacto das patentes no acesso aos medicamentos

    essenciais, uma vez que a Lista da OMS inclui apenas um nmero pequeno de produtos

    patenteados, alm de que diversos pases teriam dificuldades para comprar medicamentos

    ainda que estivessem disponveis a preos de custo. (Helfer; Austin, 2011, p. 143)

    Por outro lado, especialistas apontam que medicamentos novos e mais eficazes, como

    antirretrovirais de primeira e segunda linha para HIV/AIDS, so amplamente patenteados nos

    pases mais pobres, e as empresas farmacuticas ativamente buscam o reconhecimento de

    patentes em pases emergentes, como China, ndia e frica do Sul, que possuem mercados

    maiores e capacidade de produo de medicamentos para uso domstico ou exportao. Alm

    disso, a expirao do perodo de transio do Acordo TRIPS, em 2005, tida como uma das

    novas barreiras para o acesso a medicamentos pelas populaes menos favorecidas.

    Apesar de no ser legalmente vinculante, a Lista de Medicamentos Essenciais da OMS,

    tem enorme influncia, seja por servir de modelo para a formulao de listas nacionais, seja

    pelo seu uso por organizaes no governamentais e agncias norte-americanas para limitar

    os medicamentos que sero comprados para fins de doao. No entanto, uma crtica pertinente

    Lista da OMS o fato de incluir apenas alguns frmacos patenteados (em 2004, apenas 17

    dos 319 medicamentos presentes na Lista da OMS eram patenteados nos pases em

    desenvolvimento). Crticos argumentam que a Lista composta por medicamentos

    antiquados e ineficazes, cabendo OMS rever o papel que o preo, sobretudo aqueles

    decorrentes do atual regime de precificao de medicamentos patenteados, desempenha na

    excluso de frmacos patenteados da Lista Modelo (Helfer; Austin, 2007).

    Como se v, a existncia de normas e polticas pblicas, ainda que fundamentais, no

    asseguram na prtica a garantia do acesso a bens de sade pelas populaes que deles

    necessitam. Tal direito cada vez mais comprometido pela concesso de direitos exclusivos

    (via patenteamento) sobre produtos farmacuticos. Conforme ser abordado adiante, o

    monoplio de explorao conferido por uma patente permite ao seu titular definir

    discricionariamente os preos do bem protegido e, dada a ausncia de polticas de controle de

    preo dos remdios em pases como o Brasil, de um lado, e a constante incorporao de novas

    tecnologias aos protocolos de tratamento, como tm ocorrido com os antirretrovirais de

    segunda gerao, de outro, a relao entre propriedade intelectual e acesso a medicamentos se

    torna mais clara.

  • 25

    1.2 O sistema de propriedade intelectual vigente: estratgias e prticas do

    patenteamento na rea farmacutica

    Para melhor compreenso dessa relao aparentemente conflitante entre patentes e acesso

    a medicamentos, ou ainda entre propriedade intelectual e direito sade, parece fundamental

    antes analisar como funciona o atual sistema de patentes. Essa abordagem h de incluir as

    justificativas jurdicas e econmicas geralmente atribudas criao e implementao de um

    sistema de patentes, bem como as crticas que emergem. Alm disso, preciso visualizar a

    evoluo do prprio regime internacional de propriedade intelectual, considerando-se as

    normas e os atores envolvidos; essa evoluo permitir encaixar a questo do impacto das

    patentes farmacuticas no acesso a medicamentos num contexto maior, no qual se enxerga um

    embate entre interesses comerciais dos titulares de direitos de propriedade sobre bens

    intelectuais e o interesse pblico das populaes que buscam acesso aos produtos derivados

    das novas tecnologias.

    A patente um ttulo de propriedade que confere a seu titular a exclusividade temporria

    da explorao de determinada tecnologia.13 Isso significa que o detentor da patente, durante o

    tempo de sua vigncia, tem o direito de impedir que terceiros sem sua autorizao faam uso

    do objeto protegido. Esse monoplio14 de explorao o que permite ao seu titular a

    atribuio de preo que considerar mais conveniente ao bem patenteado.

    13 O alvo da patente a criao do intelecto destinada a resolver problemas de natureza tcnica, o que pode incluir uma srie de bens, desde computadores e utenslios de cozinha a produtos e processos farmacuticos. No Brasil, so objeto de patente as invenes e os modelos de utilidade, que conferem melhoria funcional no uso ou na fabricao de algo j existente. Para isso tais criaes devem atender a requisitos de carter tcnico, quais sejam a novidade, atividade inventiva (isto , no podem ser bvias para um tcnico no assunto) e atividade inventiva. Nesse ponto, as invenes, em sentido lato, se distinguem de outras criaes intelectuais tambm protegidas por direitos de propriedade intelectual, como as obras literrias, cientficas e artsticas. Estas so protegidas por direitos autorais, no tendo a preocupao de atenderem a demandas de ordem tcnica e obtendo proteo automtica a partir do momento em que so criadas. Ambas as criaes so tratadas na disciplina da Propriedade Intelectual, dividida em dois grandes ramos direitos autorais e propriedade intelectual , sendo este ltimo dedicado a invenes, marcas e outros bens intelectuais de natureza industrial. 14 Cabe aqui mencionar uma antiga discusso na doutrina jurdica envolvendo a natureza da propriedade intelectual. Embora parte da doutrina considere consolidado o entendimento de que a proteo de bens intelectuais assume a natureza de propriedade, desconsiderando o fato de essa proteo observar parmetros normativos prprios (Barbosa, C. R. 2009, p. 48), o impasse est longe de ser resolvido. Barbosa, D. B. (2003, p. 16) nota que no obstante a expresso propriedade ter passado a designar direitos nos tratados pertinentes e em todas as legislaes nacionais, boa parte da doutrina econmica a eles se refira como monoplios.. Apesar da presena de alguns pontos de interseco entre propriedade intelectual e demais tipos de propriedade, os bens intelectuais possuem caractersticas diferentes, que geram reflexos em sua proteo. Pelo menos duas importam ser mencionadas. Em primeiro lugar, ao contrrio dos bens materiais, considerados escassos e rivais, os bens intelectuais podem ser utilizados por mais de uma pessoa ao mesmo tempo, alm de serem facilmente copiveis,

  • 26

    A princpio, o maior benefcio sociedade decorre da livre explorao de novos

    conhecimentos, por ser permitida a cpia e estimulada a concorrncia, o que contribui para a

    queda de preos dos produtos finais. Por outro lado, argumenta-se que o monoplio conferido

    pela patente estimula a prpria produo do conhecimento ao possibilitar a recuperao dos

    investimentos despendidos em termos de dinheiro, recursos humanos e conhecimento

    (Rosina, 2011, p. 63).

    Assim, a principal justificativa geralmente atribuda a implementao e manuteno do

    sistema de patentes a de que se trata do incentivo por excelncia para que as empresas

    assumam o risco de desenvolver uma nova tecnologia. Ainda que a patente acabe impedindo

    que uma parcela da populao usufrua dessa tecnologia, esse custo social seria compensado

    por benefcios a mdio e longo prazo com a disponibilidade de novos produtos no mercado e

    a possibilidade de sua utilizao livre no futuro, aps a expirao do prazo da patente15.

    Nessa lgica, no apenas o inventor beneficiado, mas principalmente a sociedade. Isso

    porque em troca do monoplio de explorao o inventor obrigado a tornar pblico o objeto

    da patente. Com o depsito do pedido de patente junto ao rgo responsvel (Instituto

    Nacional de Propriedade Industrial - INPI, no caso brasileiro), e ultrapassado o perodo de

    sigilo16, o conhecimento integra o estado da arte, tornando-se possvel, em tese17, a

    reproduo da inveno patenteada. H ento a disseminao de conhecimento, que, embora

    tenha acesso restrito durante a vigncia da patente, j pode ser utilizado para algumas

    finalidades, como a pesquisa (art. 43, da lei 9.279/96).

    Outras vantagens para a sociedade que adviriam da implementao do sistema patentrio

    so a introduo de novos produtos no mercado, o que de interesse do consumidor, ainda

    que o acesso a tais bens seja apenas em potencial, a depender do poder aquisitivo dos que

    desejam adquirir tais bens; e, de modo indireto, ao permitir a criao de novos produtos e a

    o que impossibilita que apenas o mercado, por si s, mantenha o fluxo de investimentos; essa falha de mercado, capaz de gerar prejuzo aos investidores de dada tecnologia, justificaria a interveno do Estado por meio da criao de leis de propriedade intelectual. Outra distino que, enquanto a propriedade material tende perpetuidade, a propriedade intelectual temporria; uma inveno sob patente, por exemplo, protegida pelo prazo de vinte anos, findo o qual passa a integrar o domnio pblico (Branco, 2011, pp. 18-25). Diante dessas consideraes, Branco (2011, p. 53) considera que o mais adequado seria denominar de direitos intelectuais aqueles decorrentes da proteo dos bens intelectuais. 15 Como identificado em reviso de literatura feita por Rosina (2011), diversos autores, nacionais e estrangeiros, apresentam argumentos com a mesma lgica de raciocnio: a patente o melhor incentivo para que o inventor embarque na estrada incerta da pesquisa e do desenvolvimento de novas tecnologias. 16 A lei 9.279/1996, que trata da propriedade industrial (LPI) e ser melhor explicitada posteriormente, estabelece como perodo de sigilo os 18 (dezoito) meses contados da data de depsito ou da prioridade mais antiga, quando houver, aps o que ser publicado, exceo do caso previsto no art. 75 [patente de interesse da defesa nacional] (art. 30). 17 A LPI obriga que o objeto da patente seja suficientemente descrito, de modo a possibilitar a sua realizao por tcnico no assunto (art. 24).

  • 27

    sua explorao pelas empresas, a gerao de novos empregos, recolhimento de mais impostos

    e o estmulo a realizao de mais investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D)

    (Rosina, 2011, p. 68).

    Alm disso, com a expirao da patente, o conhecimento passaria a integrar o domnio

    pblico. A estaria o principal benefcio sociedade: dada a possibilidade de a tecnologia ser

    livremente copiada, os seus custos de produo poderiam ser reduzidos, o que teria impacto

    no preo e na ampliao do acesso ao produto. Entretanto, vale destacar que o acesso ao

    produto s ocorrer efetivamente se houver interessados em produzir o objeto da patente

    expirada (Rosina, 2011, p. 68)

    No setor farmacutico, as patentes assumem especial relevncia, uma vez que,

    comparados os seus produtos inovadores com os de outras reas, observa-se que os primeiros

    so mais facilmente copiveis e dificilmente desenvolvidos em sigilo (Scherer e Watal, 2001).

    Segundo Reis, Bermudez e Oliveira (2004), a dificuldade de manter o sigilo no campo

    farmacutico decorre do fato de que o medicamento formado por uma entidade molecular e

    a informao sobre os seus efeitos em seres humanos, e para a sua aprovao pelo rgo de

    vigilncia sanitria devem ser feitos testes, os quais tornam pblicos os segredos industriais

    envolvidos. Outro fator que facilita a cpia de medicamentos est relacionado constatao

    de que a maioria dos mtodos de qumica orgnica se encontra amplamente difundida na

    literatura especializada Logo, na ausncia da proteo patentria ou outro mecanismo que

    estabelea a exclusividade de mercado, seria possvel a reproduo do produto com muito

    menos dinheiro e tempo que os despendidos pelo inventor (Guimares, 2010, p. 183; Cassier;

    Correa, 2003).

    Assim, as patentes tambm so tidas como a forma mais eficiente de apropriao da

    inovao da indstria qumico-farmacutica. Aqui novamente trazida a clssica justificativa

    de que o regime de propriedade intelectual constitui o mecanismo mais eficaz de estimular o

    investimento em P&D de novos produtos, ao oferecer as condies necessrias para que o

    titular do privilgio cobre preos altos e recupere os custos de produo dispendidos

    (Guimares, 2010, p. 184).

    Contudo, diversos outros estudos e autores questionam esse entendimento. Nesse sentido,

    Corra (2004), aponta que milhares de pedidos de patente so depositados para pequenas

    solues tcnicas de frmacos j existentes, ao passo que diminui anualmente o nmero de

    depsitos visando proteo de invenes farmacuticas genuinamente inovadoras. A

    despeito de algumas inovaes incrementais terem grande importncia para a sade pblica,

    como ser discutido no captulo 3, a maioria daquelas desenvolvidas pela indstria detentora

  • 28

    da tecnologia original e que so alvo de pedidos de patente tm como objetivo apenas o

    prolongamento de benefcios comerciais de produtos j existentes. Por meio dessa estratgia,

    conhecida como evergreening, depositam-se novos pedidos de patentes quando as patentes

    originais esto perto de expirar, a fim de prolongar o monoplio comercial e impedir que a

    molcula caia em domnio pblico, o que possibilitaria a entrada de concorrentes genricos no

    mercado (Guimares, 2010, p. 184).

    Corroborando esse entendimento, uma pesquisa do National Institute for Health Care

    Management (NIHCM, 2002) sobre o contexto dos Estados Unidos, que so os principais

    defensores da ampliao do escopo de proteo patentria, desde o final da dcada de 1990,

    crescente o nmero de patentes para inovaes incrementais. Aproveitando-se do regime de

    propriedade intelectual vigente nos Estados Unidos, de escopo tradicionalmente mais amplo

    para a proteo patentria, produtores apenas adicionam ingredientes inertes, como corantes e

    conservantes, frmula original, com o fim de obter a extenso da proteo patentria.18

    Essa estratgia adotada pela indstria farmacutica leva ao prprio desvirtuamento das

    razes iniciais e normalmente propagadas para a criao e manuteno do sistema de patentes.

    Uma das consequncias desse desvirtuamento a sua interferncia nas pesquisas biomdicas

    e farmacuticas, que acabam sendo prejudicadas por direitos exclusivos sobre materiais e

    conhecimentos necessrios para a pesquisa. Santos (2007, p. 44) identifica esse

    desvirtuamento como um dos principais paradoxos da propriedade intelectual, na medida

    em que esta tem deixado de ser um instrumento de estmulo inovao para se tornar um

    obstculo a ela. Como aponta o autor, essa metamorfose da inveno-como-bem-da-

    humanidade em inveno-como-arma-da-competio ocorreria no momento em que o valor

    tecnocientfico da inveno se traduz como propriedade monopolizada pelas corporaes,

    por meio da linguagem jurdica.

    Logo, cada vez mais a propriedade intelectual vem sendo utilizada como uma arma

    anti-competio pelas grandes corporaes, no apenas na rea biomdica, mas tambm pelas

    empresas de tecnologia da informao, que embarcam numa verdadeira corrida armamentista

    de patentes a partir da construo de portflios de patentes. Essa estratgia, de cunho

    18! Em acrscimo, dados mais recentes da agncia de vigilncia sanitria norte-americana (Food and Drugs Administration - FDA) apontam o declnio no nmero de novas entidades moleculares e novos biofrmacos aprovados para serem introduzidos no mercado dos EUA. Os ltimos declinaram de mais de 33 entre 1995 e 2001, para menos de 19 entre 2005 e 2011. Em 2011, 10 das 24 novas entidades moleculares e biofrmacos aprovados pelo FDA foram classificadas como prioritrias e 14 como de reviso padro. So classificadas como de reviso prioritria os frmacos e biofrmacos que prometem ser superiores s terapias disponveis, enquanto a reviso padro se aplica aos produtos com qualidades teraputicas similares s de medicamentos j disponveis no mercado (CEWG, 2012; http://www.fda.gov/Drugs/default.htm)

  • 29

    defensivo, tem o objetivo de garantir a continuidade da explorao da inovao protegida, e

    acaba por bloquear ou retardar o avano da pesquisa e desenvolvimento de terceiros. (Paul

    David, p. 46 Interviews for the future, EPO, 2006).

    Heller e Eisenberg (1998) chamaram esse paradoxo da propriedade intelectual como

    obstculo inovao de tragedy of the anticommons, em aluso expresso original criada

    por Hardin (1968, p. 1243-1248). Este autor cunhou a metfora Tragedy of the Commons para

    explicar problemas como superpopulao, poluio do ar e extino de espcies, defendendo

    a tese de que recursos de propriedade comum (bens coletivos) so excessivamente utilizados

    pelas pessoas de modo negativo porque elas no teriam incentivo para conserv-los. Essa

    metfora foi e continua sendo muito utilizada para justificar a privatizao desses bens

    coletivos.

    Segundo Heller e Eisenberg, embora a metfora [da tragedy of the commons] destaque os

    custos de uso excessivo quando os governos permitem que uma quantidade demasiada de

    pessoas utilizem um recurso escasso, negligencia a possibilidade de subutilizao quando os

    governos conferem a um nmero excessivo de pessoas direitos de excluir outras. Resolve-se

    uma tragdia criando-se outra, que se verifica quando mltiplos proprietrios possuem, cada

    um, o direito de excluir terceiros de fazer uso de um recurso escasso e ningum tem um

    privilgio efetivo de uso. Na pesquisa biomdica, isso se verifica quando um nmero

    excessivo de proprietrios obtm direitos sobre essas invenes, o que pode criar obstculos

    para pesquisas futuras. (1998, p. 698)

    Voltando particularidade das patentes farmacuticas, outra consequncia desse

    desvirtuamento envolve os custos sociais decorrentes dos altos preos praticados pelas

    empresas detentoras do monoplio patentrio. Esses custos, ao contrrio do que afirmam os

    defensores do sistema de patentes, acabam no sendo socialmente justificveis quando os

    bens em questo so essenciais para a garantia da sade e da qualidade de vida das pessoas.

    Em contrapartida, torna-se fundamental a adoo de mecanismos capazes de minorar os

    efeitos negativos das patentes, e equilibrar interesses privados legtimos com o interesse

    pblico de acesso a novas tecnologias importantes para a sade pblica.

    Como observa Cassier (2004), a histria da propriedade intelectual de medicamentos

    marcada por essa tenso entre os direitos de apropriao privada via patentes e o direito

    sade da populao e as polticas de sade pblica do Estado. Isso ocorre porque o sistema de

    propriedade sobre bens de sade deve atender a uma dupla finalidade: por um lado, deve

    proporcionar os incentivos aos inventores que permita uma dinmica de inovao apta a

    promover o progresso cumulativo de invenes; e, por outro, deve dispor de mecanismos de

  • 30

    correo, limitao e mesmo suspenso da propriedade, de modo a assegurar que o direito

    sade no seja ameaado. Essas flexibilidades ou salvaguardas ao sistema de patentes podem

    ser encontrados em normas internacionais e na legislao nacional.

    1.3 A evoluo do sistema internacional da propriedade intelectual e sua relao com o

    acesso a medicamentos: da CUP ao TRIPS

    O atual modelo de proteo da propriedade intelectual teve sua origem no sculo XV,

    quando foi aprovada a primeira lei de patentes conhecida na histria (Veneza, 1474), que

    garantia ao inventor o direito exclusivo de produzir o seu invento por um tempo limitado.

    Posteriormente, surgiu tambm o moderno sistema de marcas, a partir da inscrio de

    insgnias, emblemas ou outras marcas de identificao nos novos produtos colocados no

    mercado, permitindo-se o controle sobre a distribuio e comercializao dos produtos.

    (Bermudez et al., 2006, p. 27)

    At o final do sculo XIX cada pas tinha total autonomia para definir suas normas sobre a

    proteo de bens intelectuais. Desse modo, um invento patenteado em um pas poderia ser

    legalmente utilizado em outro pas. Essa realidade veio a mudar em 1883, quando um grupo

    de 11 pases, incluindo o Brasil, assinaram a Conveno da Unio de Paris (CUP). Essa foi a

    primeira tentativa de se criar um sistema internacional da propriedade intelectual, ao

    estabelecer um espao comum de direitos entre os Estados signatrios. A CUP se baseia nos

    princpios da independncia das patentes; tratamento igual para nacionais e estrangeiros;

    e dos direitos de prioridade.

    Segundo o primeiro princpio mencionado (art. 4 bis, CUP), a patente concedida em um

    pas no tem relao com a patente concedida em outro pas. Isso significa que a patente um

    ttulo vlido em mbito nacional.

    O princpio tratamento igual para nacionais e estrangeiros (art. 2, CUP) tem como

    objetivo garantir que todos os pases signatrios da Unio tenham as mesmas vantagens

    previstas ou futuras nas legislaes de cada pas para os seus nacionais. Assim, nenhum pas

    pode dar tratamento preferencial ou discriminatrio em favor de seu nacional.

    O direito de prioridade (art. 4, CUP), por sua vez, confere ao requerente da patente o

    direito de prioridade para depositar o mesmo pedido em outros pases da Unio, por um prazo

  • 31

    de 12 meses contados a partir da data de apresentao do primeiro pedido, no caso de

    invenes e modelos de utilidade.

    A CUP est em vigor at hoje, tendo passado por seis revises desde sua criao

    (Bruxelas, 1900; Washington, 1911; Haia, 1925; Londres, 1934; Lisboa, 1958; Estocolmo,

    1967) e por emendas em 1979.

    Em 1886, um outro tratado internacional sobre propriedade intelectual foi assinado a

    Conveno da Unio de Berna (CUB) -, o qual era dedicado aos direitos de autor. Em 1893,

    os escritrios da CUP e da CUB se unificaram, criando o Bureaux Internationaux Runis por

    la Protection de la Propriet Intelectuelle (BIRPI). No sculo seguinte, em 1967, a BIRPI

    originaria a Organizao Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), com sede em Genebra.

    (WIPO, 2012)

    A OMPI se tornou uma agncia especializada da Organizao das Naes Unidas (ONU)

    em 1974, tendo, inicialmente, como objetivos promover, em nvel mundial, a proteo da

    propriedade intelectual e dar apoio administrativo s unies intergovernamentais estabelecidas

    por acordos internacionais. Contudo, a partir da dcada de 1990, a OMPI perdeu espao para

    a OMC como principal frum para discusses envolvendo propriedade intelectual, em razo

    da incluso desta ltima na agenda do comrcio internacional. Essa incluso ocorreu por meio

    da criao do Acordo TRIPS (sigla em ingls Acordo sobre Aspectos de Direitos de

    Propriedade Intelectual Relacionados ao Comrcio), cuja origem remonta Rodada Uruguai

    de outro Acordo conhecido como GATT.

    O Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comrcio (GATT, na sigla em ingls) foi

    assinado em 1947 e considerado um marco para as negociaes multilaterais, tendo a

    finalidade de reduzir as barreiras ao comrcio internacional. No mbito do GATT foram

    realizadas uma srie de rodadas de negociaes comerciais multilaterais com vistas reduo

    de tarifas alfandegrias e minimizao das prticas de concorrncia desleal. (Bermudez et al.,

    2006, p. 29)

    Por presso do governo norte-americano, que atendia aos interesses de suas indstrias de

    computadores, software e de produtos qumicos, farmacuticos e biotecnolgicos, dentre

    outros, o tema da propriedade intelectual foi includo nas negociaes do GATT. A Rodada

    Uruguai, a ltima e mais longa do GATT, ocorreu entre 1986 e 1994, culminando com a

    criao da Organizao Mundial do Comrcio (OMC) e a assinatura de uma srie de acordos,

    incluindo o Acordo TRIPS. (Chaves et al., 2007, p. 259)

    O TRIPS no buscou apenas harmonizar as normas sobre propriedade intelectual no

    mbito internacional, mas estabelecer um padro mnimo e obrigatrio de proteo. E, ao

  • 32

    contrrio da CUP, a OMC passou a contar com um sistema de soluo de controvrsias capaz

    de definir sanes ao pas considerado violador das disposies presentes no TRIPS.

    Essa obrigatoriedade de conformar as legislaes nacionais s regras do TRIPS significou

    a perda da autonomia na definio do melhor regime de proteo da propriedade intelectual

    conforme seus interesses de desenvolvimento social, econmico e tecnolgico (Bermudez et

    al., 2006, p. 33). Um exemplo foi a expanso da concesso de patentes para todos os setores

    tecnolgicos (art. 27.1), incluindo o farmacutico, embora a maioria dos pases em

    desenvolvimento, na poca, no reconhecessem o patenteamento de medicamentos.

    Por outro lado, o prprio Acordo parece reconhecer possveis impactos das novas regras

    para setores vitais para o desenvolvimento dos pases, como a sade pblica. Para isso,

    permite que os pases adotem flexibilidades e salvaguardas necessrias para a promoo do

    interesse pblico nessas reas (art. 8.1).

    Uma importante salvaguarda prevista no Acordo foi o estabelecimento de perodo de

    transio para que os pases adequassem suas legislaes nacionais s novas regras (arts. 65 e

    66). Os prazos consideraram o nvel de desenvolvimento dos pases: os desenvolvidos tiveram

    um ano (at 1996) para modificarem suas legislaes; os pases em desenvolvimento, cinco

    anos (at 2000); e os pases menos desenvolvidos, onze anos (at 2006). Um perodo

    adicional de cinco anos foi dado aos pases em desenvolvimento (e menos desenvolvidos)

    para conferirem proteo aos campos tecnolgicos no protegidos anteriormente.

    A Declarao Ministerial sobre o Acordo TRIPS e Sade Pblica, mais conhecida como

    Declarao de Doha, de 2001, concedeu outro perodo adicional para o reconhecimento de

    patentes farmacuticas pelos pases em desenvolvimento que no o fizessem antes. Esses

    pases passariam a ter at 2016 para alterarem suas legislaes.

    Segundo Bermudez et al. (2006, p. 37), o perodo de transio, durante o qual no se

    reconhece patentes farmacuticas, poderia ser utilizado para a construo ou o fortalecimento

    da indstria farmacutica local, o que tornaria tais pases mais competitivos no mercado e

    favoreceria a diminuio de sua dependncia externa, tanto econmica, quanto tecnolgica.

    De fato, alguns pases, como a ndia, optaram por utilizar todo o perodo de transio, de

    modo a fortalecer sua capacidade tecnolgica local antes da concesso de patentes

    farmacuticas, o que s veio a ocorrer a partir de 2005. Essa estratgia permitiu que a ndia

    desenvolvesse e consolidasse sua infraestrutura de P&D de medicamentos, assim como a sua

    capacidade de fabricao, adquirindo grande parcela do mercado internacional. Alm disso,

    ao exportar medicamentos a preos mais acessveis do que os praticados pela indstria

  • 33

    transnacional, contribuiu para a viabilidade econmica de programas de sade de diversos

    pases em desenvolvimento (Bermudez et al., 2006, p. 37).

    Embora tambm tivesse direito a fazer uso do perodo de transio, o Brasil passou a

    reconhecer patentes para produtos farmacuticos a partir de 1997, quando entrou em vigor sua

    nova lei de propriedade industrial (lei 9.279/96). Atribui-se como um dos fatores para essa

    deciso a forte presso exercida pelos Estados Unidos desde o final da dcada de 1980,

    inclusive sob ameaa de sanes comerciais, para que o Brasil incorporasse regras mais

    rgidas de propriedade intelectual (Tachinardi, 1993).

    A excluso da concesso de patentes para medicamentos do ordenamento jurdico

    brasileiro ocorrera durante o governo Vargas, em 1945, como uma forma de favorecer a

    substituio da importao desses produtos estratgicos e o desenvolvimento de uma indstria

    farmacutica nacional (Loyola, 2008). Alis, foi com essa perspectiva de proteo de uma

    indstria nacional e da capacidade de inovao que favoreceu a adoo tardia do

    patenteamento na rea farmacutica pela maioria dos pases desenvolvidos: em 1959, na

    Frana; em 1969, na Alemanha; em 1976, no Japo; em 1977, na Sua; em 1978, na Itlia e

    na Sucia; e em 1992, na Espanha (Correa; Cassier, 2010, p. 142)

    Outra flexibilidade prevista no Acordo TRIPS a importao paralela, que se fundamenta

    na doutrina da exausto internacional de direitos, prevista no art. 6o. Segundo essa doutrina,

    um pas pode importar produto patenteado de outro pas, desde que este produto tenha sido

    colocado naquele mercado pelo detentor da patente ou por terceiro autorizado. Como o titular

    da patente j teria sido recompensado pela sua inveno no pas exportador, estariam

    esgotados os seus direitos naquele pas (Chaves et al., 2007, p. 260)

    Em geral, as empresas farmacuticas, com o fim de maximizar seus lucros, praticam

    preos diferenciados nos diferentes pases. Contudo, nem sempre os preos mais baixos so

    praticados nos pases mais pobres. , portanto, importante, como destacam Chaves et al

    (2007, p. 260), a existncia do mecanismo da importao paralela, ao permitir que um pas em

    desenvolvimento importe o medicamento de onde seja vendido ao menor preo. Essa

    estratgia, em ltima instncia, favorece o acesso a medicamentos, uma vez que aumenta o

    poder de compra do pas importador.

    O Acordo TRIPS estabelece no art. 30 a possibilidade de os pases membros preverem

    limitaes aos direitos exclusivos conferidos pela patente, o que permite a incorporao de

    flexibilidades, como o uso experimental e a exceo bolar.

    O uso experimental diz respeito explorao do objeto da patente para fins de

    investigao cientfica. Pode-se afirmar que essa flexibilidade contribui para que se estabelea

  • 34

    o equilbrio entre os interesses da sociedade e do inventor na concesso de uma patente, ao

    aproveitar o conhecimento revelado pelo titular da patente para a pesquisa, o que possibilita o

    desenvolvimento cientfico e tecnolgico do pas mantenedor do sistema patentrio. (Chaves

    et al., 2007, p. 261)

    O outro mecanismo exceo bolar, tambm conhecido como trabalho antecipado

    permite a utilizao do objeto patenteado para a realizao de testes a fim de se obter registro

    de comercializao em agncias reguladoras. Essa flexibilidade possibilita que a verso

    genrica seja lanada no mercado assim que expire a patente do medicamento original.

    (Chaves et al., 2007, p. 261)

    Cabe ainda mencionar a possibilidade de emisso de licena compulsria do objeto da

    patente, qui a mais importante flexibilidade prevista no Acordo TRIPS. Trata-se de uma

    autorizao governamental para a explorao de produto ou processo patenteado por um

    terceiro sem o consentimento do titular da patente (art. 31).

    Uma licena compulsria somente poder ser emitida em circunstncias muito especficas,

    tais como a falta de explorao da patente, em caso de interesse pblico, em situaes de

    emergncia nacional e extrema urgncia, para remediar prticas anticompetitivas e de

    concorrncia desleal e na existncia de patentes dependentes. O direito concesso de licena

    compulsria, bem como a liberdade de determinar os parmetros em que ocorrer tal

    concesso so afirmados pela Declarao de Doha (pargrafo 5o, b). (WTO, 2001)

    Para exemplificar a importncia desse dispositivo na promoo da sade pblica e do

    desenvolvimento tecnolgico, costuma-se mencionar o caso de pases desenvolvidos, como os

    Estados Unidos, que emitiram diversas licenas compulsrias ao longo da segunda metade do

    sculo passado.

    Nos anos 1960 e 1970, o exrcito norte-americano produziu e utilizou tetraciclina e

    meprobamato sem autorizao do titular das patentes; na dcada de 1980, obrigou a empresa

    Eli Lilly a licenciar o know-how e os direitos relativos s patentes existentes e futuras de

    produtos relacionados insulina; e, na dcada de 1990, emitiu diversas licenas compulsria

    com o fim de minimizar monoplios decorrentes da fuso de empresas dominantes do

    mercado de uma mesma classe teraputica. Alm disso, em 2001, o governo norte-americano

    novamente ameaou fazer uso do mecanismo contra a empresa Bayer, para a produo do

    antibitico Ciprofloxacino, em razo da emergncia nacional representada pelo Anthrax e

    outros produtos biolgicos utilizados por bioterroristas. (Reichman et al., 2003; Chien, 2003)

    A questo do impacto das novas regras do TRIPS no acesso a medicamentos foi

    incorporada na agenda do comrcio internacional em novembro de 2001, na IV Conferncia

  • 35

    Ministerial da OMC, em Doha, no Qatar. Como resultado de trs dias dedicados ao tema, foi

    aprovada a j mencionada Declarao de Doha. Apesar de no ter alterado o Acordo, esse

    documento se tornou um instrumento poltico de extrema relevncia para pases em

    desenvolvimento e menos desenvolvidos, na medida em que reconheceu o direito destes

    implementarem todas as flexibilidades previstas no TRIPS relacionadas proteo da sade

    pblica. (Chaves et al., 2007, p. 263)

    Uma preocupao especfica tratada pela Declarao foi a dos pases que estariam

    impossibilitados de emitir uma licena compulsria, em razo da sua falta de capacidade

    tcnica local. Dada exigncia do Acordo TRIPS de que a produo de um objeto patenteado

    deve atender predominantemente ao mercado interno (art. 31 (f)), um pas sem capacidade

    tcnica de faz-lo no estaria habilitado a emitir licena compulsria, ainda que tal

    flexibilidade esteja prevista em sua legislao interna.

    Seguindo instruo da Declarao, em seu art. 6o, em 30 de agosto de 2003, foi aprovada

    uma deciso no mbito da OMC Implementao do Pargrafo 6 da Declarao de Doha

    sobre o Acordo TRIPS e Sade Pblica , que se tornou uma emenda ao Acordo TRIPS em

    2005.

    A emenda, que deve ser incorporada s legislaes nacionais, permite que um pas

    membro da OMC (pas importador) possa emitir uma licena compulsria e importar o

    produto patenteado de outro pas membro (pas exportador) que tenha emitido uma licena

    compulsria para realizar a exportao. A maior parte dos trmites devem ser notificados ao

    conselho do TRIPS, incluindo a necessidade de utilizar o sistema como pas importador e a

    definio da quantidade a ser importada, a prova da falta de capacidade de produzir

    localmente o medicamento. Tambm foram feitas exi