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FILOSOFIA AN1IGA:

pensamento

pr-socrtico,--

Figura grega do sculo VI a.c. representando cena do cotidiano da Grcia na poca do nascimento da filosofia.

Iniciemos esta viagem pelo tempo e investiguemos como a conscincia racional essa aventura do Questes filosficas Como o universo? Qual fundamento de todas as coisas (a arch)? Como tudo se articula para formar a realidade? A realidade essencial dinmica ou estvel? As coisas so por acaso ou por necessidade? Conceitos-chave arch, mito, complexo de dipo, Iogas, razo, plis, monismo, dualismo, pluralismo, gua, ar, fogo, terra, quatro elementos, peiron, nmero, devir, aforismo, mobilismo, pensamento dialtico, ser, tomo, vazio, acaso, necessidade, mecanicismo, ontologia, lgica, paradoxo, falcia comeou a suplantar a conscincia mtica na Grcia antiga, engendrando as cincias. Quem foram os principais atores desse processo inaugural? O que buscavam, o que encontraram? pensamento, a filosofia, da qual derivaram todas

o que veremos em seguida.

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Captulo 10 Filosofia antiga: pensamento pr-socrtico

PLIS E FILOSOFIA A passagem do mito ao logosNa histria do pensamento ocidental, a filosofia nasce na Grcia entre os sculos VII e VI a.C., promovendo a passagem do saber mtico (alegrico) ao pensamento racional (logos). Essa passagem ocorreu durante longo processo histrico, sem um rompimento brusco e imediato com as formas de conhecimentos utilizadas no passado. Como vimos antes (no captulo 5), durante muito tempo os primeiros filsofos gregos compartilharam de crenas mticas, enquanto desenvolviam o conhecimento racional que caracterizaria a filosofia. Essa transio do mito razo "significa precisamente que j havia, de um lado, uma lgica do mito e que, de outro lado, na realidade filosfica ainda est includo o poder do lendrio" (CHTELET, Histria dafilosofia: ideias, doutrinas, v. 1, p. 21). Conforme analisa o historiador francs Pierre Grimal (1912-1996) em A mitologia grega:se ope ao l.(')g05 como a fantasia razo, como a palavra que narra palavra que demonstra. Lagos e mito so as duas metades da linguagem, duas funes igualmente fundamentais da vida do esprito. O lagos, sendo uma argumentao, pretende convencer. O lagos verdadeiro, no caso de ser justo e conforme "lgica"; falso quando dissimula alguma burla secreta (sofisma). Mas o mito tem por finalidade apenas a si mesmo. Acredita-se ou no nele, conforme

a prpria vontade, mediante um ato de f, caso parea "belo" ou verossmil, ou simplesmente porque se quer acreditar. O mito, assim, atrai em torno de si toda a parcela do irracional existente no pensamento humano; por sua prpria natureza, aparentado arte, em todas as suas criaes. (p. 89).

A fora da mensagem dos mitos reside, portanto, na capacidade que tm de sensibilizar estruturas profundas, inconscientes, do psiquismo humano. Conheamos, ento, um pouco da mitologia grega.

Mitologia gregaOs gregos cultuavam uma srie de deuses (Zeus, Hera, Ares, Atena etc.), alm de heris ou semideuses (Teseu, Hrcules, Perseu etc.). Relatando a vida desses deuses e heris e seu envolvimento com os humanos, criaram uma rica mitologia, isto , um conjunto de lendas e crenas que, de modo simblico, fornecem explicaes para a realidade universal. Integra a mitologia grega grande nmero de "relatos maravilhosos" e de lendas que inspiraram e ainda inspiram diversas obras artsticas ocidentais. O mito de dipo, rico em significados, um exemplo disso. Na Antiguidade, foi utilizado pelo dramaturgo Sfocles (496-406 a.C}, na tragdia dipo rei, para uma reflexo sobre as questes da culpa e da responsabilidade 'dos indivduos perante as normas e os tabus (comportamento que, dentro dos costumes de uma comunidade, considerado nocivo e perigoso, sendo por isso proibido a seus membros). Leia no boxe a seguir um resumo desse relato mtico.

o mito

A saga de dipo Laia. rei da cidade de Tebas e casado com Jocasta. foi advertido pelo orculo (resposta que os deuses davam a quem os consultava) de que no poderia gerar filhos. Se esse aviso fosse desobedecido. seria morto pelo prprio filho e muitas outras desgraas surgiriam. Laia no acreditou no orculo e teve um filho com [ocasta. Quando a criana nasceu. porm. arrependido e com medo da profecia. ordenou que o recm-nascido fosse abandonado em uma montanha. com os tornozelos furados. amarrados por uma corda. O edema provocado pela ferida a origem do nome dipo. que significa "ps inchados" . Mas o menino no morreu. Pastores o encontraram e o levaram ao rei de Corinto. Polibo. que o criou como se fosse seu prprio filho. J adulto. ao ouvir rumores de que era filho ilegtimo. procura o orculo de Delfos em busca da verdade. O orculo no responde sua dvida. mas revela seu trgico destino: matar o pai e se casar com a me. Para evitar que a profecia acontea. foge de Corinto em direo a Tebas. No decorrer da viagem. encontra-se com o rei de Tebas. Laio. Arrogante. o rei ordena-lhe que deixe o caminho livre para sua passagem. dipo desobedece s ordens do desconhecido e uma luta se trava entre ambos. na qual dipo mata Laia.

Unidade 3 A filosofia na histria

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Sem saber que havia matado

o prprio ~

pai, prosseguiu sua viagem. No caminho, deparou-se com a Esfinge, um monstro metade leo, metade mulher, que lanava enigmas aos viajantes

e devorava quem no os decifrasse, atormentando os ~ moradores de Tebas. A Esfinge apresenta a dipo este enigma: "Qual o animal que de manh tem quatro ps, dois ao meio-dia e trs tarde?". dipo responde: " o homem. Pois na manh da vida (infncia) engatinha com ps e mos: ao meio-dia (na fase adulta) anda sobre dois ps: e tarde (velhice) necessita das duas pernas e do apoio de uma bengala". Furiosa por ver o enigma decifrado, a Esfinge se mata. Como recompensa por ter salvo Tebas desse flagelo, dipo proclamado

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/~.e.:

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rei e casa-se com a viva de l.aio. Jocast' sua dipo e a Esfinge. me verdadeira. Uma nova maldio, a peste, cai sobre a cidade. Consultado, o orculo respondeu que a peste no findaria at que o assassino de Laio fosse castigado. Ao longo das investigaes para descobrir o criminoso, a verdade esclarecida. Inconformado com seu destino, dipo cega-se e [ocasta enforca-se. dipo deixa Tebas, partindo para um exlio na cidade de Colona.

o complexo

de dipo

Como todo mito, a saga de dipo apresentaria, em linguagem simblica e criativa, a descrio de uma realidade universal da alma humana, de acordo com as interpretaes desenvolvidas por Freud e jung na passagem do sculo XIX para o sculo XX (conforme estudamos no captulo 4). Elaborando uma reinterpretao psicolgica desse mito grego, Freud transformou-o em elemento fundamental da teoria psicanaltica, sob o nome de complexo de dipo. O complexo de dipo pode ser entendido como: Conjunto organizado de desejos amorosos e hostis que a criana experimenta relativamente aos pais. Sob a sua chamada forma positiva, o complexo apresenta-se como na histria de dipo rei: desejo da morte do rival, que a personagem do mesmo sexo, e desejo sexual pela personagem do sexo oposto. Sob sua forma negativa, apresenta-se inversamente: amor pelo progenitor do mesmo sexo e dio ciumento ao progenitor do sexo oposto. Na realidade, estas duas formas encontram-se em graus diversos na chamada forma completa do complexo de dipo. Segundo Freud, o complexo de dipo vivido no seu periodo mximo entre os trs e cinco anos [...]. O complexo de dipo desempenha um papel fundamental na estruturao da personalidade e na orientao do desejo humano. (LAPLANCHE e PONTALlS, Vocabulrio da psicanlise, p. 116).

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Captulo 10 Filosofia antiga: pensamento pr-socrtico

Plis e razoRetornemos a nosso tema, o nascimento da filosofia. Segundo anlise do historiador francs jean-Pierre Vernant (1914-2007), o momento histrico da Grcia antiga em que se afirma a utilizao do logos (a razo) para resolver os problemas da vida estaria vinculado ao surgimento da plis, cidade-Estado grega. A plis foi uma nova forma de organizao social e poltica desenvolvida entre os sculos VIII e VI a.c. Nela, eram os cidados que dirigiam os destinos da cidade. Como criao dos cidados, e no dos deuses, a plis estava organizada e podia

ser explica da de forma racional, isto , de acordo com a razo.

Debate em praa pblicaA prtica constante da discusso poltica em praa pblica pelos cidados - especialmente em Atenas - contribuiu para que o raciocnio bem formulado e convincente se tornasse, com o tempo, o modo adotado para refletir sobre todas as coisas, no s as questes polticas. Por isso, para Vernant, a razo grega filha da plis, e o nascimento da filosofia relaciona-se de maneira direta com o universo espiritual que assim surgiu:

o sistema da plis primeiramente uma extraordinria preeminncia da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder. [...] A palavra no mais o termo ritual, a frmula justa, mas o debate contraditrio, a discusso, a argumentao [...]. A arte poltica essencialmente exerccio da linguagem; e o Iogas, na origem, toma conscincia de si mesmo, de suas regras, de sua eficcia, atravs de sua funo poltica. [...] Uma segunda caracterstica da plis o cunho de plena publicidade dada s manifestaes mais importantes da vida social. [...] A cultura grega constitui-se, dando a um crculo sempre mais amplo - finalmente ao demos [povo] todo - o acesso ao mundo espiritual, reservado no incio a uma aristocracia [...]. Tornando-se elementos de uma cultura comum, os conhecimentos, os valores, as tcnicas mentais so levadas praa pblica, sujeitos crtica e controvrsia. [...] Doravante, a discusso, a argumentao, a polmica tornam-se as regras do jogo intelectual, assim como do jogo poltico. Era a palavra que formava, no quadro da cidac(e, o instrumento da vida pblica; a escrita que vai fornecer, no plano propriamente intelectual, o meio de uma cultura comum e permitir uma com pleta divu Igao de con heci mentos previa mente reservados ou i nterd itos. (VERNANT, origens do pensamento grego, p. 34-36). As

o que implica

1. "Lagos e mito so as duas metades da linguagem, duas funes igualmente fundamentais da vida do esprito." O que quer dizer Pierre Grimal com essa afirmao?

2. Por que se pode dizer, baseado no estudo dohelenista Jean-Pierre Vernant, que o surgimento da filosofia foi engendrado em "praa pblica"?

Conversa filosfica1. A persistncia dos mitos"Acredita-se ou no nele (o mito), conforme a prpria vontade, mediante um ato de f, caso parea 'belo' ou verossmil, ou simplesmente porque se quer acreditar." (GRIMAL, mito/agia grega, p. 89). A Reflita sobre essa afirmao, investigue o tema e procure identificar pois, compartilhe com a classe suas reflexes e descobertas. alguns mitos do mundo atual. De-

Unidade 3 A filosofia na histria

1170mados de "pr-socrticos" foram contemporneos de

PR-SOCR TICOS

Os primeiros filsofos gregosDe acordo com a tradio histrica, a fase inaugural da filosofia grega conhecida como perodo pr-socratco (isto , anterior a Scrates). Assim, esse perodo abrange o conjunto das reflexes filosficas desenvolvidas desde Tales de Mileto, no sculo VII a.c., at o surgimento de Scrates, no sculo V a.c. difcil conhecer o pensamento desse perodo em toda a sua dimenso, pois so poucos os escritos encontrados dos seus pensadores, e at mesmo as datas de nascimento e morte so incertas. Cabe ressaltar, tambm, que alguns filsofos cha-

Scrates, mas so assim designados porque mantiveram o tipo de investigao de seus predecessores, centrado na natureza (como vimos no captulo 5 e que estudaremos em seguida com mais detalhes). Scrates, por sua vez, inaugurou outro tipo de reflexo, centrada no ser humano, dando incio a outra tradio filosfica (como veremos no prximo captulo).

Pensadores de MiletoQuando afirmamos que a filosofia nasceu na Grcia, devemos tomar essa afirmao mais precisa. Afinal, nunca houve, na Antiguidade, um Estado grego unificado. O que chamamos de Grcia nada mais era que o conjunto de muitas cidades-Estado (plis), independentes umas das outras e muitas vezes rivais.

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