SCHNAIDERMAN, Boris - Dilemas de Uma Tradução O Senhor Prokhartchin de Dostoiévski

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  • Dilemas de uma traduo: O senhor Prokhartchin de DostoivskiAuthor(s): Boris SchnaidermanSource: Revista de Letras, Vol. 17 (1975), pp. 279-289Published by: UNESP Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita FilhoStable URL: http://www.jstor.org/stable/27666217 .Accessed: 26/06/2014 11:33

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  • Boris Schnaiderman

    DILEMAS DE UMA TRADU??O O Senhor Prokhartchin de Dosto?evski

    Tendo escolhido para tema de tese de livre-doc?ncia * um estudo na medida do poss?vel aprofundado do conto "O senhor Prokhar tchin", tive de enfrentar, no decorrer do trabalho, uma s?rie de

    dilemas, a come?ar pelo seguinte: fazer nova tradu??o ou apro veitar alguma das varias existentes em portugu?s? O fato de serem indiretas nao anulava o problema, pois, contrariando em

    certa medida a expectativa, sei de tradu?oes indiretas do russo

    que apresentam grandes qualidades, superando consideravel mente outras diretas da mesma obra.2

    Entre as tradu?oes consultadas, a que me pareceu mais elaborada literariamente foi a de Vivaldo Coaracy, na edi?ao da Jos? Olym

    pio. 3 ? realmente um belo texto em portugu?s. Mas, seria su

    ficiente? As caracter?sticas que eu pretend?a ressaltar na obra de

    saparec?an!, em grande parte, na tradu??o. Esta amaciava o ori

    ginal, tornava-o mais acess?vel ao leitor, mais agrad?vel. A pr? pria seq?encia narrativa ficava adaptada a um discurso l?gico -discursivo. O texto do original era acompanhado passo a passo,

    mas faltava um longo trecho descritivo que me parec?a essencial

    para a constru??o do conto. 4 E a mesma ausencia constatei na

    tradu??o de Natalia Nunes 5, embora n?o pare?am ter utilizado na tradu??o a mesma fonte intermediaria.

    O fato se liga, no meu entender, ao problema geral das tradu?oes do russo. Com esta ou aquela exce??o, est? superada a fase do

    1. Schnaiderman, Boris, Dostoi?vski entre a prova e a poesia (O conto "O senhor Prokhartchin" ), tese de livre-doc?ncia defendida em 1974 junto ? Faculdade de Filosofia, Letras e Ciencias Humanas da Universidade de Sao Paulo.

    2. Como exemplo de excelente tradu??o indireta do russo, pode-se citar O idiota, de Dostoi?vski, em tradu??o de Jos? Geraldo Vieira, Obras com pletas e ilustradas de F. M. Dostoi?vski, Livraria Jos? Olympio Editora, Vol. IV, Rio de Janeiro, 1960. 3. Livraria Jos? Olympio Editora, Vol. VIII, Rio de Janeiro, I960'. 4. Trecho pr?ximo do final, onde se enumeram as moedas encontradas no colch?o de Prokhartchin, ap?s a morte deste. 5. Dostoi?vski, Fi?dor, Obra Completa, Companhia Aguilar Editora,

    Volume I, Rio de Janeiro, 1963.

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    completo falseamento ?as tradu?oes, que foi caracter?stico da di vu?ga?ao maci?a da literatura russa a partir da d?cada de 1880, quando a aproxima??o pol?tica russo-francesa e o livro de Mel chior de Vogu? sobre o romance russo6 estimularam aquela di vulga??o. Os livros ent?o surgidos s?o, com muita freq??ncia, adapta?oes ao gosto do p?blico franc?s m?dio, e retradu?oes do que ent?o se publicara em Paris foram fr?quentes no Brasil at? a d?cada de 1940.

    Mas se hoje em dia geralmente h? maior fidelidade, pelo menos quanto a cortes e adapta?oes, como altera??o na ordern dos ca

    p?tulos, condensa??o do argumento, etc (o romance de Dostoi? vski Os irm?os Karamazov foi durante muitos anos a maior vitima de semelhantes adapta?oes, apresentadas como tradu?oes do ori

    ginal), h? consider?vel predominio, mesmo em nosso meio, da tradi?ao de elegancia e bom gosto ditada pelo padr?o franc?s. Um editor franc?s dif?cilmente se conforma com a aspereza de lin guagem e o despojamento estil?stico de alguns autores russos.

    Tive ocasi?o de tratar deste assunto num dos primeiros artigos sobre literatura russa que escrevi7, onde afirmei que tradu?oes francesas excelentes como estilo, como texto em franc?s, carac

    terizam-se, no entanto, por maior suavidade, por um polimento de arestas que altera completamente o torn do original. Como um

    dos exemplos, eu citava na ocasi?o a tradu??o de Ni?totchka Niezu?nova, por Henri de Mongault e Lucie D?sormonts, onde, no trecho em que Ni?totchka acompanha o padrasto pelas ruas

    de Petersburg?, ap?s a morte da m?e, e ele desee para junto de um canal, sentando-se sobre a ?ltima baliza, o texto original diz: "A dois passos de nos, havia um v?o", e na tradu??o ficou: "?

    deux pas de nous, l'eau tourbillonait". 8

    Ora, em rela?ao ao conto "O senhor Prokhartchin", semelhantes

    "polimentos de estilo" e frases de efeito se tornam particularmente catastr?ficos, pois se trata de urna das obras mais estranhas de

    Dostoi?vski, onde cada palavra tem a sua importancia, e o "em

    be?ezamento" fere o conto no que ele tem de mais caracter?stico.

    Alias, quando Tzvetan Todorov quis fazer, em franc?s, um estudo sobre Memorias do subsoto de Dostoi?vski, defrontou-se com o

    6. Vog??, Eug?ne Melchior de, Le roman russe, Pion, Paris, 1892, 3* edi?ao.

    7. Scbnaiderman, Boris, "Tradu?oes do russo", Suplemento Literario de O Estado de S?o Paulo,, 7-2-1959.

    8. Dosto?evski, F. M., Oeuvres, Gallimard (Biblioth?que de la Pl?iade), p. 1.116.

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    mesmo problema, e, para ter um texto utiliz?vel, lan?ou m?o de uma nova tradu??o.

    9

    Em "O senhor Prokhartchin", os longos per?odos, os par?grafos comprid?ssimos, t?m a sua fun??o, d?o, por exemplo, um toque arcaico ao discurso do narrador. Torn?-los mais curtos, faz a

    obra mais leg?vel, mais agrad?vel para o leitor, mas tenho eu o

    direito de suprimir uma dificuldade que ? inerente ? constru??o do conto, e que evidencia determinadas caracter?sticas do genio criativo de Dostoi?vski? O senhor Prokhartchin fala de modo ar revesado, mas ?as tradu?oes, pelo menos ?as que tive ocasi?o de

    consultar, seu discurso ? mais coerente, tem melhor seq?encia, nao

    est? repleto ora de part?culas expletivas, ora de part?culas que parecem colocadas ali apenas para estorvar a comunica?ao, e que marcam uma situa??o caracter?stica. Nao ser? importante con

    servar tudo isto na tradu??o? Alias, em teor?a da tradu??o lite raria, tem muitos seguidores o ponto de vista de que, freq?ente

    mente, ? preciso fazer violencia com a lingua para a qual se traduz e romper os seus padr?es, a fim de transmitir melhor o espirito do original (encarada por este prisma, a tradu??o torna-se at? um fator de enriquecimento da linguagem literaria).

    Depois que decid? proceder ? tradu??o do conto para o traba ?ho, surgiu um segundo dilema: traduzir antes de efetuar uma an?lise minuciosa ou depois desta?

    O trabalho universitario nos liberta, muitas vezes, de uma das maldi?oes terr?veis do tradutor: a tarefa de encomenda para as editoras, mal remunerada, com prazo certo e quase sempre dema siadamente apressada. Mas o fato de eu poder trabalhar o texto com mais vagar, ou melhor, com mais intensidade e concentra

    c?o, n?o anulava o dilema. Eu j? refletira sobre o conto, tinha uma id?ia clara do que pretend?a defender na tese, mas ainda assim deixei a tradu??o para o fim, pois quanto mais eu traba lhava o

    original, mais patentes se tornavam as suas caracter?sticas de obra impar, injustamente relegada a um plano secundario.

    Este conto de Dostoi?vski, que foi t?o mal recebido pela cr?tica de seu tempo, e que realmente s? podia surpreender e chocar o leitor russo da d?cada de 1840, continua a sugerir uma impress?o

    de estranheza e obriga o leitor a um esfor?o de compreens?o, em bora a literatura deste s?culo nos tenha acostumado muito mais

    9. Dosto?evski, F. M., Notes d'un souterrain, Notice bibliographique et introduction de Tzvetan Todorov, traduction et notes de Lily Denis, Aubier,

    Paris, 1972.

    19 - Revista de Letras

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    a procurar beleza no ins?lito, no estranho, na ambig?idade e flui dez de uma obra literaria.

    Terceiro escrito publicado pelo autor, ele testemunha a busca de algo que fosse al?m do "ensaio fisiol?gico" russo, que n?o vi sasse

    simplesmente documentar urna realidade social e humana, mas p?n?trasse nos escaninhos desta, no que ela possu?a de mais

    estranho e indevassado, e criasse um mundo novel?stico pr?prio^ com um instrumental forjado no processo dessa cria??o.

    V. G. Biel?nski, o cr?tico russo mais famoso da ?poca, que ha via recebido com entusiasmo o primeiro romance de Dostoi?vski,

    Gente pobre, e matizado com express?es algo paternalistas a rea

    cao negativa que lhe suscitou O sosia, deu sobre este conto uma aprecia??o francamente desfavor?vel, escrevendo, entre outras coisas: "A nosso ver, nao foram a inspira??o nem a criatividade livre e ingenua que suscitaram esta estranha novela, e sim algo.

    . .

    como dizer? ?' talvez sutileza retorcida, talvez pretens?o. . . ?

    poss?vel que estejamos enga?ados, mas, neste caso, para que pre cisa ela ser t?o rebuscada, repassada de maneirismo, imcompre ens?vel, como se fosse alguma ocorr?ncia real, mas estranha e

    confusa, e n?o uma cria??o po?tica? Na arte, nao deve existir nada de obscuro e incompreens?vel; suas obras est?o ?cima dos assim chamados 'acontecimentos reais* justamente porque o poeta ilumina com a chama de sua fantasia todos os meandros ?ntimos

    de seus her?is, todas as causas ocultas de seus atos, retira do acontecimento por ele narrado tudo o que ? casual, apresentando aos nossos olhos apenas o indispens?vel, como resultado inevi^

    t?vel da causa eficiente".10

    O cr?tico dif?cilmente poderia ser mais expl?cito. Se nao deixa de apresentar int?resse, mesmo de um ponto de vista atual, a sua

    exigencia de que a obra art?stica seja mais verdadeira que os "acontecimentos reais", tudo o mais expressa com rara felicidade o apego as normas do determinismo causal do s?culo XIX. O "rebuscado", o "maneirismo", o "incompreens?vel", n?o t?m lugar no mundo ficcional que deseja o cr?tico. E este julgamento severo tem repercutido atrav?s dos tempos, sendo citado com apre?o, por exemplo, por V. S. Nietch?ieva, em nota a uma edi??o recente das Obras reunidas de Dostoi?^

    10. Biel?nski, V. G., Vzgli?d na r?skuiu litierat?ru 181^6 goda (Um olhar sobre a literatura russa era 1846), in Sobr?nie sotchini?nii (Obras reu nidas), Goslitizd?t (Editora Literaria do Estado), Moscou, 1949, vol. I.

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    vski. n O car?ter enevoado, dif?cil, do conto tem assustado cr?ti cos das mais diferentes tendencias. Por exemplo, Henri Troyat, que em sua biograf?a de Dostoi?vski refere-se bem negativamente a Biel?nski e seu grupo literario 12, chega a definir "O senhor Prokhartchin" como "este conto inocente e in?til".13

    Evidentemente, nao podemos contentar-nos com estes testemu

    nhos de perplexidade e incompreens?o. A obra est? ai, com sua beleza estranha, seu fasc?nio e vitalidade. Ser? algo mal reali zado? O que ela tem de enigm?tico, ser? resultado de inseguran?a do jovem escritor, como queriam os cr?ticos de seu tempo? Ou dever? ser procurado em causas externas, por exemplo a censura

    da ?poca, como escreve N. S. Nietch?ieva, argumento retomado

    por Natalia Nunes em nota previa ? sua tradu??o do conto? 14

    "Mal realizado", "mal acabado", e expressoes que tais nos deixam

    sempre de sobreaviso, quando se trata de grandes escritores, acusados com tanta freq??ncia de escrever mal, de n?o dar o

    devido acabamento a seus trabamos. Ora, um grande escritor que escreve mal. .. N?o ser? antes uma deficiencia de leitura, uma recusa a penetrar na maneira espec?fica do artista criador, em

    sua linguagem peculiar, que nao se molda ao estal?o comum? 15

    "Inseguran?a" no jovem Dostoi?vski? O que se nota nele ? uma busca pertinaz dos meios mais adequados de express?o, e uma

    seriedade nessa busca, realmente rara. N. K. Mikhail?vski, que deu, em seu famoso artigo "Um talento cruel" (1882), uma apre cia??o bem negativa dos contos e novelas de Dostoi?vski da pri

    meira fase, percebeu, no entanto, a importancia deles, como algo que trazia in nuce toda a obra futura: "... nesta velha miu?alha,

    podem-se encontrar os prenuncios de todas as ulteriores imagens,

    quadros, id?ias e processos art?sticos e l?gicos de Dostoi?vski".15

    11. Dostoi?vski, P. M., Sobr?nie sotchini?nii (Obras reunidas), Moscou, 1956, Vol. I, p. 675.

    12. Troyat, Henri, Dostoi?vski, Am?ric Edit., Rio de Janeiro, s.d., vol. I, pp. 86 e segs. 13. Ob. cit., vol. I, p. 103. 14. Nunes, Natalia, "Nota preliminar" (a "O senhor Prokhartchin"), edi??o Aguiiar das Obras de Dostoi?vski, vol. I, p. 392.

    15. Em varias passagens de Um romance de Balzac: A pele de onagro, Editora A Noite, Rio de Janeiro, 1952, Paulo R?nai volta-se contra a id?ia, bastante consagrada durante muito tempo, de que Balzac "escrevia

    mal". Lembra, particularmente, que Thibaudet via na condena?ao do estilo de Balzac a influencia da ?criture artiste ? Flaubert ? p. 86.

    16. Mikhail?vski, N. C, Jest?ki talant, in Litieraturno-crititcheskie staVi (Artigos cr?tico-literarios), Goslitizd?t, Moscou, 1957.

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    E a censura da ?poca? Natalia Nunes lembra: "Parece que ante riormente a este conto teve Dostoi?vski o pro jeto dum romance que ir?a intitular As reparti?oes suprimidas. Daqui podemos ad mitir a hip?tese de que o tema da miser?vel condi?ao dos mo destos funcionarios p?blicos..."17 Escreve tamb?m: "Chegado a

    este ponto, deve o leitor inteirar-se de que a historia do senhor Prokhartchin, quando viu a luz da publica??o diferia muito, j?, daquela que saiu diretamente da pena do escritor. Tinha passado entretanto pelas m?os dos censores que retalharam e suprimiram o que entenderam, isto ?, o que lhes parec?a perigoso.

    "Numa carta que o escritor escreveu a seu irm?o, a este prop? sito, dizia:

    'Prokhartchin ficou muito desfigurado. Aqueles cavalheiros re solveram proibir o termo funcionario.

    . .

    *

    "Ora, ? aqui que est? a chave do segredo, a explica??o da causa da avareza do senhor Prokhartchin. No fundo ele n?o ? avaro por vicio ou mania, mas porque. . . porque ? um pobre, um hu

    milde funcionario p?blico.

    410 senhor Prokhartchin ? um conto de inten??o social e a cari catura do avarento ? um subterfugio literario, um disfarce, que

    mesmo assim foi descoberto pela censura. E s?o tamb?m as mu tila?oes que esta lhe imprimiu que explicam a forma ca?tica deste conto. Porque o leitor, ao l?-lo, deve ficar com a impress?o de que faltam aqui 'algumas partes*, que a historia 'flutua* num am biente de torvelinhos desarticulados".18

    Esta interpreta?ao baseia-se em fontes russas muito acatadas.

    Mas, assim mesmo, n?o convence. As queixas contra a censura

    s?o fr?quentes no jovem Dostoi?vski; anos mais tarde, por?m, ele retrabalhou suas obras da primeira fase, e ent?o, com a mudan?a dos criterios da censura, quando a palavra "funcionario" j? se tornara quase obrigat?ria em fie??o, n?o seria dif?cil para o es

    critor apresentar uma vers?o nova de seu conto, sem os "torve linhos desarticulados" a que se fez men??o.

    Ademais, ainda que a desarticula??o fosse estranha ? inten??o primeira do autor (G. M. Fridlender aventa a hip?tese de que

    Dostoi?vski, ap?s a queixa em carta ao irm?o, teria conseguido

    17. Nunes, Natalia, "Pr?logo geral" a Novelas da juventude de Dostoi?vski, in Ob. cit., p. 135.

    18. Nunes, Natalia, "Nota preliminar", p. 392.

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    anular os cortes da censura -? explica??o para o fato de s? ter

    introduzido peque?as modifica?oes estil?sticas na reda??o final19.) o texto deve ser estudado por nos como est?, e pode dizer-nos

    muito, mesmo com esta intromiss?o, esta suposta colabora?ao do

    censor, que em todo caso, mesmo se existiu, foi depois aceita

    por Dostoi?vski.

    Os "torvelinhos" a que se refere Natalia Nunes j? est?o incor porados ? obra. Alias, estar?o realmente "desarticulados" ("tor velinhos desarticulados" ? express?o sem d?vida feliz ) ? Ou ? preciso procurar neles um tipo de articula?ao que nao era cor

    rente na ?poca, e que seria a contribui??o espec?fica de Dostoi? vski? N?o estar?o eles muito pr?ximos do rompimento da se

    qu?ncia temporal consagrada, rompimento esse na forma em que o encontramos em muitas obras modernas, como as Ficciones de

    Borges?

    "E quem sabe, depois desta indaga?ao -?

    perguntava eu na tese ?'

    possamos indicar algumas caracter?sticas da obra de Dostoi?

    vski que se tenham tornado evidentes, na base do processo uti

    lizado na constru?ao deste conto? Se Mikhail?vski tem raz?o, talvez semelhante estudo seja ?til para a compreens?o de Dos toi?vski em geral."

    Depois de lidar com o conto quase diariamente, durante alguns meses, e de aplicar a ele diferentes procedimentos de an?lise, pareceu-me ter fundamentado, bem ou mal, urna conclus?o de

    algum int?resse: o da proximidade de Dostoi?vski da linguagem po?tica, sobretudo nos primeiros contos, fato para o qual pro curei tamb?m dar uma explica??o no campo da diacronia.

    Tudo isso tornou mais consciente o meu trabalho de tradutor. ?

    verdade que, iniciada a tarefa, e apesar dos anos de pr?tica, de

    frontei-me com nova dificuldade, a pedra de toque de toda tra

    du??o literaria. Ortega y Gasset, no magistral ensaio "Miseria e

    esplendor da tradu??o" 20, afirma que "escrever bem consiste

    em fazer peque?as erosoes ? gram?tica, ao uso estabelecido, ?

    norma vigente na lingua" 2?, e a tendencia do tradutor ? encerrar

    19. Fridlender, G. M., nota em Dostoi?vski, F. M., P?lnoie sobr?nie sotchni?nii (Obras completas), Editora Na?ka (A Ciencia), Leningrado, 1972, vol. I, p. 503.

    20. Ortega y Gasset, Jos?, "Miseria y esplendor de la traducci?n", in Obras, Espasa-Calpe S.A., Madrid, 1943, vol. II, pp. 1363-1380.

    21. Ob. cit., p. 1364.

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    o escritor ?raduzido na pris?o da linguagem normal. Com efeito, o tradutor, na maioria dos casos, ? um escritor medio, escrevendo na linguagem literaria m?dia. E quando ele se afasta desta, os pr?prios revisores das editoras zelam com freq??ncia para que a norma da linguagem corrente nao seja transgredida.

    Evidentemente, n?o se pode esperar que Dostoi?vski seja tradu zido por outro Dostoi?vski, mas desde que o tradutor procure pe netrar ?as peculiaridades da linguagem do original, aplique-se com afinco e faca com que sua criatividade orientada pelo ori

    ginal permita, paradoxalmente, afastar-se do texto para ficar mais

    pr?ximo deste, um passo importante ser? dado. Deixando de lado a fidelidade mec?nica, frase por frase, tratando o original como um conjunto de blocos a serem transpostos, e transgredindo sem receio, quando necess?rio, as normas do "escrever bem", o tra

    dutor poder? traz?-lo com boa margem de fidelidade para a lin

    gua com a qual est? trabalhando.

    No meu caso espec?fico, pude beneficiar-me, ainda, de um debate

    elevado, por ocasi?o da defesa da tese. O texto apresentado era, conforme o definiu D?cio Pignatari numa conversa, t?picamente "brutalista", pois eu me preocupara em apresen tar esta caracte

    r?stica de Dostoi?vski, escamoteada por tradutores ciosos de apre sentar um trabalho em boa linguagem literaria. Orientado por esta opini?o de D?cio e por sugest?es que me foram feitas por ocasi?o da defesa, devo retrabalhar o texto, pois realmente exa

    gerei um pouco no sentido da "brutalidade", ? preciso encontrar um

    "ponto de equilibrio" que se aproxime mais do original. Mas nada disso anula a minha tese essencial, a da importancia deste conto, que permite situar Dostoi?vski como precursor de toda a

    fie??o moderna, criador que foi de obras em que o rompimento do determinismo causal do s?culo XIX resulta numa prosa es tranhamente pr?xima da poesia, rica de contrastes e de saltos,

    onde o elevado se mistura com o baixo, as id?ias mais elevadas, com o cotidiano mais trivial, o real emp?rico alia-se ao simb?lico, a realidade aparentemente cha ?, muitas vezes, parodia, estiliza??o de uma outra realidade, num jogo de m?scaras, de duplica??o do mundo, de fragmenta??o da imagem numa oposi??o de "es

    pelhos", enfim, na inser??o da novela ou do romance numa to

    talidade m?ltipla e variada ao infinito, din?mica e fluida, em que o real ? a m?scara de outro real, em que nada ? definitivo ou es

    tratificado, conforme tem sido apontado por alguns dos estudiosos mais serios da obra de Dostoi?vski.

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    Como peque?a exemplo do que venho afirmando, transcrevo a

    seguir o final da minha tradu??o, o trecho em que o senhor Pro khartchin est? deitado no caix?o, tendo em volta a senhoria e os inquilinos do albergue miser?vel em que vivera.

    Aproximaram-se novamente da cama de Semi?n Iv?novitch. Agora ele estava deitado como se d?via, corn a sua melhor, e alias ?nica roupa, escondendo o queixo enrijecido atr?s da gravata, cujo la?o fora feito um tanto desajeitadamente, lavado, penteado, mas nao de todo barbeado, pois nao se encontrara uma navalha: a ?nica, pertencente a Zin?vi Pro

    k?fievitch, se gastara ainda no ano anterior e fora vendida com vantagem no belchior; os inquilinos iam, portanto, ? barbear?a. Apesar de tudo, ainda n?o tiveram tempo de por ordern ?as coisas. Os biombos quebrados jaziam como antes e, desnudando o isolamento de Semi?n Iv?novitch, eram como um s?mbolo de que a morte arranca a cobertura de todos os nossos segredos, intrigas e artimanhas. O recheio do colch?o tamb?m nao fora arrumado e depositava-se em volta, em tufos densos. Um poeta poderia muito c?modamente comparar todo este cantinho, de repente congelado, com o ninho destruido de uma andorinha "caseira": tudo fora dilacerado pela tempestade, mortos os filhotes e a m?e, e dispersada em volta a caminha quente deles, feitas de penugem, peninhas, fiapos de

    algod?o... Alias, Semi?n Iv?novitch assemelhava-se antes a um velho ego?sta e um pardal ladr?o. Estava aquietado, parec?a ter-se escondido de todo, como se nao fosse ele o culpado, como se nao tivesse engendrado ardis, a fim de enga?ar toda a boa gente, sem ter consci?ncia nem vergonha, e do modo mais indecoroso. Ele agora nao ouvia mais os

    prantos e solu?os de sua ofendida senhoria, que ficara ?rfa. Pelo contrario, como um capitalista experimentado, afiado em seu oficio, que at? no caix?o n?o gostaria de perder um momento sequer em ina?ao, parecia estar completamente entregue a certos c?lculos especulativos. Em seu rosto apareceu certo pensamento profundo, e seus labios estavam com primidos, de modo t?o significativo, que em vida de Semi?n Iv?novitch n?o se poderia de modo algum suspeit?-lo como algo inerente ? sua pessoa. Ele aparec?a, agora, mais inteligente. O olhinho direito estava franzido com ar maladro; Semi?n Iv?novitch parecia querer dizer algo, comunicar alguma coisa bem necess?ria, explicar-se, sem perder tempo, o mais depressa poss?vel, pois surgira um assunto para tratar, e o tempo era escasso... E como que se ouvia: "Que ? isto? Por que ficas assim?

    Deixa disso, mulher boba! N?o choramingues! Dorme, m?e! Eu j? morri; agora, n?o se precisa mais; o que, realmente?! 33 bom ficar dei

    tado ... Alias, n?o ? disso que estou f alando ; tu, mulher, es uma figura realmente, procura compreender; agora, estou morto; e que tal, isto ?, pois n?o, alias n?o pode acontecer assim, mas se eu n?o morri e me levantar, escuta, o que ser? ent?o, hem?"

    Depois de nos mostrar um velho estranho, enigm?tico, que evi tava gastar um n?quel a mais, de coloc?-lo num albergue miser?

    vel, de lev?-lo aos extremos da alucina??o, quando o mundo de seus sonhos doidos se torna mais real e palp?vel que o cotidiano

    mon?tono e mesquinho, de mostr?-lo moribundo e grotesco, en

    quanto dois de seus companheiros de pens?o remexem no colch?o

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    em que est? deitado, e ele ca? primeiro de lado, de costas para os que procuram as moedas e, depois, de cabe?a para baixo, dei

    xando de fora apenas as pernas ossudas e azuis, Dostoi?vski nos

    d? esta descri?ao magn?fica do velho no caix?o. Deveria eu torn?-la mais elegante, mais "francesa", menos brutal e desarti

    culada, se a pr?pria desarticulac?o da linguagem deste final coin cide com a desarticulac?o do mundo de Prokhartchin? Ou teria de aplicar a este conto de 1846 os procedimentos da fic??o moderna? Sem sombra de d?vida, optei pela segunda alternativa, pois s?

    assim, no meu entender, seria poss?vel dar em portugu?s algo da maneira dostoievskiana em seus primeiros contos.

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    Article Contentsp. [279]p. 280p. 281p. 282p. 283p. 284p. 285p. 286p. 287p. 288p. 289

    Issue Table of ContentsRevista de Letras, Vol. 17 (1975), pp. 1-359Front MatterCirandagem: Introduo poesia de Augusto Meyer [pp. 9-38]O romance de jos cndido de carvalho [pp. 39-61]A palavra na obra de joo cabral de melo neto [pp. 63-90]Oposies significativas [pp. 91-100]Flannery O' Connor and the Southern Renaissance [pp. 101-105]De sacchari opificio carmen: Um poema e dois autores [pp. 107-116]As verses latinas do hino nacional brasileiro e do hino bandeira nacional [pp. 117-130]Os processos de lexicalizao em portugus e seu tratamento na gramtica gerativa [pp. 131-146]Graa aranha, sua vida, sua obra [pp. 147-163]Brasil: Lngua Padro ou Diglossia? [pp. 165-177]Rapporti tra testo poetico e testo musicale nella lirica galego-portoghese [pp. 179-186]Por uma definio mais precisa de ditongo [pp. 187-203]No pas dos andrades: Miramar e Macunama: Radicalidade na arte e na prxis [pp. 205-230]A linguagem beckettiana em "en attendant godot" [pp. 231-253]A estrutura teatral de quebranto de coelho netto [pp. 255-269]Mltipla 2Mltipla 2: [Introduction] [p. 273-273]A traduo como resgate [pp. 275-277]Dilemas de uma traduo: O senhor Prokhartchin de Dostoivski [pp. 279-289]William Carlos Williams: Altos e baixos [pp. 291, 293-300]William Carlos Williams: Variantes & Vertentes [pp. 301-312]William Carlos Williams: Anotaes de um multi-percurso [pp. 313-332]

    ResenhasReview: untitled [pp. 335-338]Review: untitled [pp. 339-345]Review: untitled [pp. 345-347]Review: untitled [pp. 347-353]Review: untitled [pp. 353-359]

    Back Matter