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EDITORIAL 1 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 2, p. 7-9, jul./dez. 2011 SCINTILLA SCINTILLA SCINTILLA SCINTILLA SCINTILLA

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EDITORIAL

1Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 2, p. 7-9, jul./dez. 2011

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ENIO PAULO GIACHINI

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3Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 2, p. 7-9, jul./dez. 2011

SCINTILLASCINTILLASCINTILLASCINTILLASCINTILLA REVISTREVISTREVISTREVISTREVISTA DE FILA DE FILA DE FILA DE FILA DE FILOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVALALALALAL

ISSN 1806-6526

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 2, p. 1-.jul./dez. 2011

Instituto de Filosofia São Boaventura – IFSBSociedade Brasileira de Filosofia Medieval – SBFM

Curitiba PR2011

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Copyright © 2004 by autoresQualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

FAE – Centro UniversitárioIFSB – Instituto de Filosofia São BoaventuraSBFM – Sociedade Brasileira de Filosofia MedievalO IFSB é mantido pela Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus (AFESBJ)

Rua 24 de maio, 135 – 80230-080 Curitiba PRE-mail: [email protected] ou [email protected]

http://www.saoboaventura.edu.br/Reitor: Nelson José HillesheimDiretor geral do Grupo Bom Jesus: Jorge Apostolos SiarcosPró-reitor acadêmico: André Luis Gontijo ResendePró-reitor administrativo: Regis Ferreira NegrãoDiretor do Instituto de Filosofia São Boaventura: Dr. Jairo FerrandinEditor: Dr. Enio Paulo Giachini

a) Comissão editorialDr. Emanuel Carneiro Leão, UFRJDr. Orlando Bernardi, IFANDr. Luiz Alberto de Boni, PUCRSDr. José Antônio Camargo Rodrigues de Souza, UFGDr. João Eduardo Pinto Basto Lupi, UFSCDr. Carlos Arthur R. do Nascimento (PUC-SP)Dr. Francisco Bertelloni (Univ. Nacional da Argentina)Dr. Gregorio Piaia (Univ. di Padova – Italia)Dr. Marcos Roberto Nunes Costa (UNICAP)Dr. Rafael Ramón Guerrero (Unv. Complutense – España)Dra. Márcia Sá Cavalcante Schuback, Södertörns University College

Estocolmo (Suécia)Dr. Ulrich Steiner, FFSBDr. Jaime Spengler, FFSBDr. João Mannes, FFSB

b) Conselho editorialDr. Vagner Sassi, FFSBDr. Marco Aurélio Fernandes, IFITEGDra. Glória Ferreira Ribeiro, UFSJRDr. Jamil Ibrahim Iskandar, PUC-PRDr. Joel Alves de Souza, UFPRDr. Gilvan Luiz Fogel, UFRJ

Revisão e editoração: Equipe internaDiagramação: Sheila RoqueCapa: Luzia Sanches

A partir de 2009 a Scintilla compõe o banco de dados da EBSCO –http://www.ebscohost.com/titleLists/hlh-coverage.htm

Catalogação na fonteScintilla – revista de filosofia e mística medieval. Curitiba: Instituto de Filosofia SãoBoaventura, Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval, Centro UniversitárioFranciscano, v.1, n.1, 2004-SemestralISSN 1806-65261. Filosofia – Periódicos 2. Medievalística – Periódicos.3. Mística – Periódicos.

CDD (20. ed.) 105 189

189.5

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SUMÁRIO

EDITORIAL ...........................................................................7Enio Paulo Giachini

ARTIGOS ............................................................................... 11O vocabulário da argumentação e a estrutura do artigonas obras de Santo Tomás ................................................. 13

F. A. Blanche, O.P.

Anotações sobre as substâncias separadas emTomás de Aquino ............................................................. 39

Rosalie Helena de Souza Pereira

La prudencia política arquitetônica – Los modelos dePlatón, Aristóteles y Tomas de Aquino .............................. 75

José Ricardo Pierpauli

Os nomes divinos na Suma teológica deTomás de Aquino ............................................................. 103

Ivanaldo Santos

As vias ascética e mística segundo Santo Tomásde Aquino ........................................................................ 117

Paulo Faintanin

A noção de pessoa nas obras de S. Alberto Magno ............. 145

Oris de Oliveira

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COMENTÁRIOS ...................................................................... 187Reflexões marginais acerca do hilemorfismo ...................... 189

Hermógenes Harada

TRADUÇÕES .......................................................................... 201Carta da Universidade de Paris ao Capítulo geral dosdominicanos, reunido em Lião, por ocasião da mortede Tomás de Aquino ........................................................ 203Exposição a respeito do Sobre a interpretação.Livro I ............................................................................. 207

Tomás de Aquino

Os princípios da natureza .................................................. 233Tomás de Aquino

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EDITORIAL

7Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 2, p. 7-9, jul./dez. 2011

EDITORIAL

Enio Paulo Giachini

O vol. 8, n. 2 de Scintilla apresenta artigos e trabalhos voltados aogrande escolástico Tomás de Aquino.

A extensa obra tomasiana legada à posterioridade sequer correspondeà sua imensa universalidade e alcance de pensamento. O que pode serdimensionado já pelo que, parece, ter-lhe-ia escapado de uma declara-ção quase ao final da vida, quando teria sido provocado a retomar aatividade de escrever, e ele teria respondido já não poder fazê-lo, pois,diante daquilo que lhe fora dado ver, tudo que já escrevera nada repre-sentava.

A universalidade e ortodoxia de Tomás são um marco de afirma-ção da vida e da humanidade. Seu entusiasmo por Aristóteles estevevoltado à sua intensa vontade de afirmar a vida da criação e àpositividade do cristianismo.

Tomás de Aquino, segundo más línguas, representaria o fim daescolástica e não seu iniciador. Vale lembrar, no entanto, que, segundosua própria concepção filosófica, “o fim de algo não representa suadestruição mas sua total realização”. O tomismo seria assim o fim daescolástica como Deus é o fim de toda existência.

Sua luta contra movimentos não tão ortodoxos, sobretudo contraos maniqueus, nunca o fez perder o espírito de nobreza e de gentilezapara com tudo e com todos. Todo seu intenso esforço de pensar etrabalho estavam a serviço, quem sabe, de uma intuição fundamental,que o acompanhou desde o princípio: seu extremado otimismo frente

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ENIO PAULO GIACHINI

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 2, p. 7-9, jul./dez. 2011

ENIO PAULO GIACHINI

à criação. Como diria Chesterton: “Há algo que percorre toda a obrade S. Tomás de Aquino como uma grande luz, algo bem elementar etalvez inconsciente para ele, e que poderia ter passado como uma qua-lidade pessoal irrelevante... a única palavra que funciona para essa at-mosfera é otimismo”1. Isso transparece desde as suas primeiras frasessobre a realidade do ser.

É esse positivismo e otimismo que o faz afirmar de forma irrestritaa realidade do mundo, que o faz buscar o conhecimento divino sem-pre pautado nos sentidos e no elementar primordial da terra dos ho-mens. Todo ceticismo moderno, as dúvidas radicais e eternas em rela-ção à realidade do real, passam longe de sua filosofia. Essas filosofias sepermitem o aguilhão da dúvida em função da mudança, da transfor-mação, do devir, da pluralidade e diversidade. Se prendem nessa“inconstância”, que para Tomás não passava de um sinal da absoluta econfiável constância do grande ens, da criação e do criador. Tomás vê agrama e não vai dizer que não viu a grama, porque ela hoje existe eamanhã é lançada ao forno. “Se a grama cresce e murcha, isso só podequerer dizer que ela é parte de alguma coisa mais ampla do que elamesma, de alguma coisa ainda mais real, e não que a grama é menosdo que parece ser”2. O caráter enganoso das coisas, que teve um efeitotão triste em tantos sábios, tem neste sábio quase um efeito contrário.Se as coisas nos enganam, elas o fazem porque são mais reais do queparecem ser. Como fins em si, elas sempre nos enganam; mas elas sãoainda mais reais do que consideramos que sejam. Se parecem ter umarelativa irrealidade é porque são potenciais e não atuais. O todo, ogrande fato da potencialidade presente na materialidade nada mais atestado que o fato de que há uma grande realidade atual da qual elas fazem

1 CHESTERTON, G. K. São Francisco de Assis – São Tomás de Aquino. Rio de Janeiro:Ediouro, 2003, p. 289.

2 Id. loc. cit. p. 357.

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parte e para a qual apontam e caminham. Esse é o grande empuxo eveio central da filosofia tomasiana. A aparente negatividade do mun-do não passa de um grande apontar para a positividade atual da reali-dade maior e perfeita.

É assim que todas as coisas têm uma pertença interna a uma evolu-ção de crescimento ordenado, justo através de sua aparente negatividade,falta, transformação etc., mas por pertencerem e rumarem a uma tota-lidade real e atual que tudo contém e preenche.

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ARTIGOSARTIGOSARTIGOSARTIGOSARTIGOS

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O VOCABULÁRIO DA ARGUMENTAÇÃO E A ESTRUTURA...

13Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 2, p. 13-38, jul./dez. 2011

O VOCABULÁRIO DAARGUMENTAÇÃO E A ESTRUTURA

DO ARTIGO NAS OBRAS DESANTO TOMÁS *

F. A. Blanche, O.P.

Proponho-me a estudar aqui certos termos da língua de SantoTomás, que se referem à argumentação. Alguns servem para marcar aspartes do artigo, para dele formar o quadro, por assim dizer; por isso,a determinação do sentido exato dessas palavras acrescentará talvez al-guma coisa ao que sabemos acerca do método do autor da Suma. Atarefa tornar-se-á mais fácil pela aproximação delas e encontrarei aí aocasião de dar sobre um ponto ⟨específico⟩ uma espécie de comentáriodo léxico tomista que espero publicar proximamente1.

* Título do original: “Le vocabulaire de l’argumentation et la structure de l’article dansles ouvrages de Saint Thomas”, Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques, 14e

Année (1925) no 2, pp. 167-87. Tradução de José Eduardo Marques Baioni (UFSCar),revisão de Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento (PUC-SP). Os acréscimos da traduçãovão entre parênteses angulares ⟨ ⟩.

1 Para que as referências sejam tão breves e tão precisas quanto possível, emprego já aquio sistema de notação que usarei no léxico. T, Sum. Teolog.; p, prólogo; t, título; c, corpodo artigo; a1, argumento da 1ª série; a2, argumento da 2ª série, ou sed contra; r, respostaaos argumentos (quando não há senão uma série); r1, resposta aos a1; r2, resposta aos a2.Mesma notação para todas as obras divididas em artigos. Ex.: I, 2 T, 10, 4, 3 a1 = Ia 2ae

Sum. Teol., quest. 10, art. 4, 3o arg. da 1ª série (citada segundo a edição leonina). QuestõesDisputadas: Vr, de Veritate; Pt, de Potentia; Ml, de Malo; Ql, Quodlibet; 4 Ql, 18 = 4o

Quodl., art. 18. G, Contra Gentiles; 2 G, 89 = Contra Gent., livro 2, cap. 89. S,Comentário sobre as Sentenças; 4 S, 10, 1, 1, 7 r = 4o livro das Sentenças, distinção 10,quest. 1, art. 1, resp. ad 7o argum. Mt, Comentário sobre a Metafísica de Aristóteles; 7 Mt,

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A pesquisa especulativa toma freqüentemente em Santo Tomás a for-ma de questão2, forma usual de seu tempo. Podemos distinguir quatropartes neste método: 1.º a questão é posta e, algumas exceções à parte, elao é sob a forma de uma alternativa. Esta é constituída, quase sempre, porduas partes de uma oposição de contradição, e, algumas vezes, ⟨por duaspartes⟩ de uma oposição de contrariedade. 2.º Argumentos são apresenta-dos a favor da primeira parte; depois, a favor da segunda. 3.º A solução édada e provada. 4.º Enfim, vem a refutação dos argumentos que nãoconcordam com a tese demonstrada.

“Pôr a questão” exprime-se muito freqüentemente por uma sópalavra, quaerere ou inquirere. “Circa primum quaerentur tria (1 T, 2,p). Sobre o primeiro ponto, se põem três questões”. “Inquirit specialiter

de principio formali, utrum sit unum omnium existentium in una specie

(3 Mt, 10, 456). Pergunta especialmente acerca do princípio formal,se é único, ou não, para todos os indivíduos que estão em uma mesmaespécie”. Estas palavras correspondem ao termo aristotélico zhtei==n esignificam, como ele, tanto pesquisar quanto perguntar, interrogar3.

13, 1381. = 7o liv. da Metaf., lição 13, no 1381, da edição Cathala (Turim, Marietti,1915). PA, Comentário aos Analíticos Posteriores: 1 PA, 22, 6 = 1o livro Post. An., lição22, parágr. 6 da edição leonina. Salvo as exceções assinaladas, as referências se reportamà edição Vivès. Para as referências às obras de Aristóteles, emprego as siglas de H. Bonitz,Index Aristotelicus, 5o volume da ed. das obras de Aristóteles, de I. Bekker, Berlim,1831. A. a, b. Primeiros Analíticos, liv. 1 e 2; A. g, d. Segundos Analíticos, liv. 1 e 2;M. Metafísica, A, liv. 1o; a, liv. 2o; b, liv. 3o, etc.; t, Tópicos, a-q, liv. 1-8; ti, ArgumentosSofísticos (Soϕ. ‘Elegk.); y, Tratado da alma, p. yuch= =ς, a-g, liv. 1-3; as cifras queseguem reenviam aos cap., páginas e linhas da edição Bekker.2 Por questão, entendo aqui cada artigo e não a seção que se divide em artigos.3 tiv e*sti zhtou==men, oi%on tiv ou\n e*stiV qeovς, h! tiv e*stin a!nqrwpoς ; A. d. 1, 89b 34. E, na passagem citada mais adiante, ... kaiV zhtou==nteς, oi%on, povteron h!lqeKlevwn h$ Swkravthς ... ei* gaVr a@ma evnedevceto, geloi==on toV e*rwvthma (M. i. 5,1055 b 35 – 1056 a 1 (a interrogação seria ridícula). “Quid non solum quaerit de essentia(não interroga somente sobre a essência), sed quandoque etiam de supposito, ut: Quid natatin mari? Piscis” (Pt, 9, 4, 1 r). “Dicit quod illi qui volunt inquirere veritatem (procurar a verdade),non considerando prius dubitationem, assimilantur illis qui nesciunt quo vadant” (3 Mt, 1, 340) ...touVς zhtou==ntaς a!neu tou== diaporh==sai prw==ton ... (M. b. 1, 995 a 35).

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Portanto, quaerere, no começo de uma questão ou de um artigo, sig-nifica propriamente interrogar, perguntar. Ainda que este último sen-tido não difira do outro senão por uma nuance, não é inútil sublinhá-la; se verá por que daqui a pouco.

A mesma idéia é freqüentemente representada, nos Comentários,pelas duas expressões movere quaestionem ou movere dubitationem,pôr uma questão, levantar uma dúvida. As encontramos quase a cadapágina das lições de Santo Tomás sobre o Livro III da Metafísica. Cite-mos somente este texto que indica as três primeiras partes do método:“Moventur autem quaestiones istae tamquam disputandae infra et

determinandae (3 Mt, 3, 368). Ora, estas questões são postas para serdisputadas e resolvidas mais abaixo”, e este outro: “Movet dubitationem

de unitate principiorum in communi (3 Mt, 10, 460). Levanta umadúvida acerca da unidade dos princípios em geral”. Dubitatio4 é aqui oequivalente de quaestio. Pois dúvida, neste caso, não designa a incerte-za do espírito, mas a dificuldade que causa a incerteza, o problema.Não podemos confundir com estas expressões as locuções ponere

quaestionem, ou quaestiones, ou dubitationes, que significam assinalar,indicar uma questão ou enumerar questões, dúvidas. Este sentido re-sulta da significação geral de ponere e da analogia com as expressõesponere rationem, ponere opinionem alicujus: apresentar um argumento,indicar a opinião de alguém. Esta passagem o põe bem à luz: “In pri-

ma, ponit dubitationes, in secunda, causas dubitationum etc. (3 Mt, 2,346). Na primeira [parte], enumera as dúvidas; na segunda, as causasdestas dúvidas”. O verbo ponere, subentendido na segunda frase e pos-to em relação com a palavra causas, mostra que, na primeira, ele nãosignifica levantar dúvidas, mas assinalar, enumerar dúvidas. Sendodubitatio o equivalente de quaestio, ponere quaestionem tem, pois, omesmo sentido.

4 O que Aristóteles exprime por a*poriva. Cf. M. b. 1, 995 b 4.

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A palavra que põe a questão é o advérbio utrum. Ele indica que oproblema é considerado sob o aspecto de uma alternativa e que seráexaminado sobre um ponto o pró e o contra. Na Metafísica, Aristótelesfez ressaltar o valor do advérbio povteron ao qual corresponde utrum

(M. i. 5, 1055 b 32–1056 a 3). O comentário de Santo Tomás, para-fraseando apenas o texto, pode servir de tradução. Eis o comentário:“Hac dictione, utrum, semper utimur in oppositis; ut, cum quaerimus

utrum aliquid sit album aut nigrum, quae sunt opposita secundum

contrarietatem, et utrum sit album aut non album, quae sunt opposita

secundum contradictionem. Sed utrum aliquid sit homo aut album non

dicimus, nisi ex hac suppositione quod non possit aliquid esse album et

homo. Et sic quaerimus utrum sit album vel homo sicut quaerimus utrum

veniat Cleon aut Socrates, supponentes quod non ambo simul veniant ...

quia si contingeret (se era possível) eos simul venire, derisoria esset

interrogatio” (10 Mt, 7, 2060).

Portanto, utrum, se ... ou, exprime sempre uma oposição, quer setrate de uma oposição de contradição ou de contrariedade. Há outrasmaneiras de pôr uma questão filosófica. Aristóteles assinala quatro delasnos Segundos Analíticos (toV o@ti, toV diovti, ei* e*sti, tiv e*stin . A.d. 1, 89 b 24. Quia est, propter quid, an est, quid est). Ter-se-ia, pois,podido se servir, segundo o caso5, de uma das fórmulas: an est, quid

est, propter quid est. Aristóteles observa, nos Tópicos, que a interroga-ção expressa por povteron é a forma própria do problema (provblhma)e aquilo que o distingue da proposição (provtasiς) ou questão sim-

5 É o que fazem, por exemplo, Alexandre de Hales e Alberto Magno, e as fórmulas queempregam variam frequentemente. — “An doctrina sacrae Scripturae vel Theologiae sitscientia?” (Alex. de Hales, Univers. Theolog. Sum. Iª P, Quaest. I, Memb. I. Venetiis,1576). “Quotuplex sit modus Sacrae Scripturae?” Ibid., Memb. 3, art. 4. — “Quid sittheologia secundum definitionem?” (Alb. Magno, Sum. Theolog. Iª P, Q. 2. Ed. Vivés.Paris, 1894, T. 31). “De quo sit Theologia ut de subjecto” (Ibid., Q. 3). — Em SantoTomás, as exceções são bastante raras. Por ex.: “Penes quod contrarietates et diversitas interanimae passiones attendatur” (Vr, 26, 4). Cf. Vr, 1, 1; 5, 1; 13, 1 e 4 e 5; 14, 1 e 2 e 4;Pt, 9, 1 e 2; Ml, 4, 2; 7, 12; 8, 4; 9, 3; 14, 3; 15, 3; 1 T, 10, 5; 20, 4; 29, 1 etc.

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ples. Se nos exprimimos assim: É que (a\rav ge) animal terrestre bípedeé a definição do homem?... esta interrogação constitui uma proposi-ção; ... mas, se dizemos: animal terrestre bípede é, ou não, (povteron)a definição do homem?... se propõe um problema6. As questões quese encontram no início dos artigos de Santo Tomás são, portanto,problemas, no sentido aristotélico da palavra, e é, aliás, a forma deinterrogação que serve de introdução natural à disputa, visto que elaapresenta a dificuldade sob o aspecto de uma alternativa.

Disputar uma questão é discutir sobre um ponto o pró e o contra.Aristóteles tinha já empregado este método; em particular, na Metafísica,onde todo o Livro III é consagrado a levantar as dificuldades queconcernem a esta ciência e a apresentar os argumentos que motivamcada dúvida. No início deste livro7, Aristóteles mostra que a dúvidadeve ser o primeiro movimento daquele que quer adquirir uma certe-za. Nesta dúvida que tende para a ciência, o espírito não permanece demaneira alguma passivo em face de uma obscuridade; ele procura asrazões de duvidar e prolonga a dúvida tão longe quanto possível. Eis aía condição indispensável de uma explicação satisfatória, pois a desco-berta da verdade consiste na solução da dúvida e a dúvida só pode serresolvida se vemos claramente o que a causa. Da mesma maneira queum homem que foi amarrado não poderia se soltar antes de ter exami-nado como está preso, assim também a inteligência não pode se de-sembaraçar da dúvida, que é uma espécie de nó espiritual, antes de tercuidadosamente considerado a maneira em que estão formados os nósque a retêm. Apresentar os argumentos em sentidos contrários quemotivam a dúvida chama-se disputar: disputare (dialevgesqai)8, em-

6 t. a. 4, 101 b 28-37. diaϕevrei deV toV provblhma kaiV h& provtasiς tw/= = trovpw/.Ibid.

7 M. b. 1, 995 a 27-33.

8 oi! dialektikoiV dialevgontai periV a&pavntwn. M. g. 2, 1004 b 19. “Dialectici etsophistae disputant de praedictis”. 4 Mt, 4, 572. Cf. A. g. 12, 77 b 9.

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preender uma disputa, disputatio9 (lovgoς ou toV dialevgesqai). San-to Tomás caracteriza esta parte do método aristotélico dizendo que oFilósofo procede então por modo de disputa. “Primo procedit modo

disputativo” (3 Mt, 1, 338). A discussão prepara a solução do proble-ma ou determinação da verdade. “Secundo incipit determinare veritatem”

(ibid.). Santo Tomás exprime esta última parte do método pela fór-mula procedere demonstrative (4 Mt, 1, 529). Ele faz observar que, naMetafísica, Aristóteles agrupou em um livro as discussões preparatóri-as, mas que, em suas outras obras, a disputa precede a solução de cadaproblema10. É esta última disposição que nos oferecem os artigos deSanto Tomás11.

É de notar que Aristóteles apresenta, por vezes, argumentos contra

as duas partes da alternativa12, enquanto que, em Santo Tomás, a mar-cha da discussão é uniforme: argumentos a favor de uma parte, argu-mentos a favor de outra. Seria muito útil saber até que ponto SantoTomás conservou na disposição de seus artigos a forma da disputa, talqual ela se praticava em seu tempo, e quais modificações ele nela intro-

9 oi! lovgoi kaiV ai* skevyeiς ei*siV mavlista periV touvtwn. A. a. 27, 43 a 43 (Asdiscussões e as pesquisas). e*n deV toi= =ς lovgoiς lanqavnei. A. g. 12, 77 b 31. Aqui,nas disputas dialéticas, por oposição às matemáticas: “Patet quod si nomina infinitasignificent, non erit ratio sive disputatio” (4 Mt, 7, 615). ϕaneroVn o@ti ou*k a$n ei!hlovgoς (M. g. 4, 1006 b 6).

10 3 Mt, 1, 343.

11 Exceto no Comentário sobre as Sentenças, na medida em que o artigo compreendepequenas questões (quaestiunculae); nesse caso, as disputas de todas essas questões sedesenrolam de início, em seguida vêm, na mesma ordem, as respostas ou determinaçõese as soluções dos argumentos.

12 P. ex. Metaf., liv. III, cap. 2. Aristóteles dá razões contra a unidade da ciência queestuda todos os gêneros de causas; em seguida, contra a pluralidade das ciências quetratam das diferentes causas: do mesmo modo, contra a unidade, depois, contra apluralidade, para a ciência que considera de uma só vez os axiomas e a substância.

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duzira13 (talvez, por um retorno ao tipo aristotélico), para obter maissimplicidade, clareza e rigor14; porém, o termo de comparação aindanos falta e seria imprudente ir buscá-lo nos regulamentos do final doséculo XIV15. O que está fora de dúvida é que o grande Doutor, para a

13 Reencontram-se traços da disputa, tal como ela se praticava então, nas discussões doComentário sobre as Sentenças e, mais ainda, como é natural, nas das Questões Disputadase das Questões Quodlibetais. Isso ressalta com evidência daquilo que, em lugar de duassimples séries de argumentos, uns pró a primeira parte da alternativa, os outros, pró asegunda parte, se vê muito frequentemente, nestas obras, um argumento da 1ª série(raramente um argumento da 2ª série, ou sed contra, cf. Pt, 4, 2, 10 a2; 6, 10 3 a2; Vr,26, 6, 5 a2; etc.) receber uma resposta, que é logo descartada por uma réplica daqueleque tinha anunciado o argumento. Aquele que tenta resolver o argumento é chamado“o Respondente”, no de Potentia (cf. 1, 5, 2 a1 e 4 a1; 2, 1, 5 a1. “Sed dicit respondens”).A designação daquele que aí argumenta não é dada. Todavia, mesmo nas QuestõesDisputadas, Santo Tomás não se restringe a seguir o curso da disputa. É visível, emcertos lugares, que ele se desvencilha das fórmulas deste exercício, ele corta, simplifica eregulariza; talvez ele o faça, mais ou menos, em toda parte. Por exemplo, no art. 3, Q. 1do de Potent. 2 a1, em lugar de afastar a interdição do respondente e de lhe acrescentara réplica, Santo Tomás a engloba em um raciocínio que é talvez esta réplica. “Sed Deusnon potest facere quod negatio et affirmatio sint simul vera, ut respondens dicebat. Ergoetc.” Ademais, ocorre frequentemente que todo traço desta troca de respostas desapare-ce (cf. Pt, 1, 4 e 1, 6; 2, 5 e 2, 6; Vr, 2, 14 e 2, 15; etc.). As duas séries de argumentosse desenrolam sem serem cortados por um só sed dices, ou sed dicebus, sed diceret, seddicebatur, sed dicebat (subentendido respondens), sed diceretur, sed dicendam, si dicatur,sem que aí se descubra mesmo uma alusão ao respondente. Nas outras obras divididasem artigos, Coment. sobre o de Trinitate de Boécio e Suma Teológica, esta última disposiçãoé a regra e as exceções são raras (cf. 1 T, 14, 3, 2 a1; 14, 12, 2 a1; 15, 2, 3 a1; etc. Afórmula usual na Suma é: Si dicatur ... contra).14 Sobre a forma e a natureza das Questões Disputadas e das Questões Quodlibetais, cf.Mandonnet, O.P. “Chronologie des Questions Disputées de saint Thomas d’Aquin”,na Revue Thomiste, jul.-set. e out.-dez. (1918), pp. 266-287, 341-371. Sobre a manei-ra em que se desenrolavam certas disputas no final do século XIV, cf. Denifle – Chatelain,Chartularium Univers. Parisiensis. Paris, 1891, T. II, Les Disputes du Collège de Sorbonne.Réglement du 13 nov. 1344, p. 555, no 1096. Para certas disputas solenes, como asVespérias e as Áulicas, v. ibid., Appendix, pp. 603 e segs. Ver também, para esta mesmaépoca, F. Pelster, S.J., Thomas von Sutton O.[pera] P.[hilosophica] etc. 2o art. Zeitschriftfür Katholische Theologie, 3. Quart. Heft (1922), pp. 362-371.15 Para se precaver contra esse obstáculo, basta imaginar que, em nossos dias, no espaço dedez anos, se vê às vezes o ensino das Universidades sofrer modificações importantes. Seria,pois, aventurar-se muito concluir do que tinha lugar em 1360 ou em 1340 àquilo que sepassava 100 anos ou mesmo 70 anos antes, para aquilo que diz respeito ao detalhe dadisputa. Que se tenha publicado, em tal época, regulamentos de certas disputas, é o índicede que se mudava, em qualquer medida, o que era praticado até então; as notas doCartulário da Universidade de Paris assinalam, aliás, algumas dessas modificações.

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construção do artigo como para o conjunto do ordenamento de suasobras, aplicou-se deliberadamente a esta busca da simplificação, daprecisão e da eficácia, que atinge a perfeição na Suma Teológica16.

Contudo, mesmo na Suma, a primeira seção do artigo, desde o inícioaté o Respondeo dicendum, corresponde bem à disputa. É importanteobservá-lo para apreender o sentido exato da expressão que marca o come-ço desta parte. Na Suma, nas Questões Quodlibetais e no Comentário sobre

o De Trinitate ⟨de Boécio⟩, encontra-se sempre neste lugar: Ad primum ouad secundum etc., sic proceditur. Que esta palavra não designa o procedi-mento, o método seguido no artigo, se pode já suspeitá-lo imaginandoque este procedimento, sendo sempre o mesmo, teria sido pueril repetirno início de cada artigo: “Eis como se procede”. O que muda, a cada vez,é o conteúdo do artigo, e é ao conteúdo que a palavra procedere se aplica;mas nós veremos que ela não se refere senão à primeira seção, quer dizer,aquela que corresponde à disputa.

A significação primitiva do verbo procedere, como o indica suacomposição (cedere ir, pro avante), é ir avante, avançar. Ademais, opróprio Santo Tomás o nota17, esse verbo designa um avanço gradual,ordenado, e não um avanço por movimentos bruscos e por saltos.Neste sentido muito geral, a palavra correspondente em Aristóteles éproevrcesqai18, e o sinônimo latino, empregado freqüentemente porSanto Tomás, progredi. Donde compreendemos que, por uma deriva-ção inteiramente natural, procedere, em um de seus sentidos (que sãobastante numerosos), tenha vindo a exprimir a marcha ordenada pelaqual o espírito vai, em seu raciocínio, das premissas à conclusão. Deste

16 Ver A. Masnovo. Introduzione alla Somma Teol. di S. Tommaso. Torino, 1918, pp. 33-55.

17 “... nomen processionis primo est inventum (foi criado) ad significandum motum localemsecundum quem aliquid ordinate ab uno loco per media ordinatim in extremum transit; etex hoc transumitur ad significandum omne illud in quo est aliquis ordo unius ex alio, velpost aliud; et inde est quod in omni motu utimur nomine processionis”. Pt, 10, 1, c.

18 a*duvnaton gaVr a*mϕotevrwς proelqei= =n ei*ς toV provsqen . M. b. 1, 995 a 33.

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ponto de vista, portanto, a palavra designou desde o início a inferência;inferir, concluir (sin.: inferre, concludere, haberi)19, depois, em um sen-tido mais amplo, raciocinar, argumentar, discutir (sin.: ratiocinari,arguere, argumentari, objicere, disputare). Enfim, com recte, expressoou subentendido, ele tomou o sentido de concluir corretamente, porconseguinte, de ser válido, legítimo (sin.: valere, tenere).

Eis aqui textos que estabelecem estas diversas significações: “Cum

dicimus: Essentia est ens20, si procedatur sic: ergo est aliquo ens, vel se vel

alio, processus non sequitur21 (Vr, 21, 4, 4 r). Quando dizemos: A es-sência é existente, se se conclui assim: pois ela é existente por qualquercoisa, ou por ela própria ou por outra coisa, a conclusão não se segue”.— “Objectio procedebat ac si essentialiter virtus esset ultimum potentiae

(I, 2 T, 55, 1, 1 r). O argumento concluía como se a virtude fosse, emsua essência, o grau supremo da potência”22. Muitas vezes, no Contra

Gentiles, no curso da refutação de uma série de argumentos, se encon-tra procedere empregado ao lado de seus sinônimos, inferre, concludere.Por ex.: “Neque etiam sequitur ... ut septima ratio procedebat, ... ut

octava ratio concludebat ... ut duodecima ratio inferebat (2 G, 89). Nãose segue ... como o deduzia o sétimo argumento ... Como o concluíao oitavo argumento ... Como o inferia o décimo segundo argumen-to”. Procedere in aequivoco, ou ex aequivoco, significa concluir graças aum equívoco ou em virtude de um equívoco; quer dizer, em passandodo sentido dado ao termo-médio em uma das premissas a um sentidodiferente atribuído a este termo em outra premissa. “Patet quod ratio

procedit ex aequivoco (1 T, 50, 1, 2 r). É evidente que o argumentoconclui por meio de um equívoco”.

19 “ex hoc quod bonum est objectum voluntatis, potest haberi (se pode concluir) quodvoluntas nihil velit nisi sub ratione boni” (Ml, 6, 6 r).

20 Ens é aqui particípio ⟨presente⟩, como ocorre bastante frequentemente.

21 Cf. a fórmula: si arguatur, ergo (1 T, 16, 5, 3 r).

22 Ainda que este grau não seja senão o objeto da virtude.

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Para o segundo sentido: raciocinar, argumentar, apresentarei as pas-sagens seguintes: “haec doctrina non argumentatur ad sua principia

probanda, quae sunt articuli fidei, sed ex eis procedit ad aliquid aliudostendendum (1 T, 1, 8, c). Esta ciência não argumenta para provarseus princípios, que são os artigos de fé, mas ela os toma como princí-pios de raciocínio, para provar qualquer outra coisa (literalmente: elaargumenta partindo deles)”. Esta passagem é inteiramente probante,pois há um paralelismo completo entre as duas partes da frase e, asoutras palavras permanecendo as mesmas, o sentido, “ad... probanda,ad... ostendendum”; procedit, na segunda ⟨parte⟩, toma o lugar deargumentatur. A seqüência acaba de mostrar que estas duas palavrastêm o mesmo sentido, pois Santo Tomás acrescenta: “sicut Apostolus...

ex resurrectione Christi argumentatur ad resurrectionem communemprobandam. Por exemplo, o Apóstolo tira da ressurreição do Cristoum argumento para provar a ressurreição geral”. Ora, é bem o caso visadopela segunda parte da frase precedente, e procedit é desta vez substituídopor argumentatur, construído, como ele, com a preposição ex. — “Adhucprocedunt quia in inferioribus istis non inveniuntur aliqua principia activa

ad generationem nisi calidum et frigidum (7 Mt, 8, 1455). Eles trazemainda este argumento que nos seres daqui embaixo não se encontra comoprincípios ativos da geração senão o calor e o frio”. “Per quam viam proceditcontra eum Philosophus in I Ethicorum (Vr, 21, 4, c). É por este meioque o Filósofo argumenta contra ele no Livro I da Ética”. Aqui, osinônimo seria: disputat, disputat contra eum.

O terceiro sentido, concluir corretamente, resulta destes textos:“Ratio illa recte procederet si corpus caeleste posset imprimere per se inanimam (Vr, 5, 10, 3 r)23. Este argumento concluiria corretamente seo corpo celeste pudesse por si exercer uma influência sobre a alma”.“Videtur quod haec ratio inconvenienter procedat (7 Mt, 13, 1581).Parece que este argumento não conclui legitimamente”. “Demonstratio

23 Cf. “... ratio illa concluderet, si essentia animae ita corpori uniretur quod esset omninocorpori subjugata”. Vr, 13, 4, 5 r.

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illa de proportione temporis et potentiae moventis procedit de potentiainfinita in magnitudine... non autem tenet de infinito extra

magnitudinem (Pt, 1, 2, 2 r). Esta demonstração tirada da proporçãoentre o tempo e a potência do motor vale por uma potência infinita naextensão... mas ela não é válida para o infinito fora da extensão”24.

Uma vez estabelecidos estes pontos, é fácil de ver que, na expressãoque examinamos, procedere tem o segundo sentido: raciocinar, argumen-tar, e que a fórmula ad primum sic proceditur equivale a: ad primum sicobjicitur ou disputatur, e se deve traduzir: a favor do primeiro ponto, eiscomo se argumenta; quer dizer, eis os argumentos que se empregam emum sentido, depois em outro; em suma, eis como se disputa. Com osargumentos da disputa mudando a cada artigo, se compreende muitobem que a fórmula seja repetida, assim como o Respondeo dicendum. Mas,poder-se-ia objetar, não são somente as razões pró e contra que são novasem cada artigo, o corpo do artigo e as soluções que o seguem são igual-mente diferentes, a cada vez, e, ademais, estas duas últimas partes contêmraciocínios assim como a primeira, por que então procedere, no sentido deraciocinar, não se aplicaria a todo o artigo?

Uma particularidade que apresentam certos quodlibets nos permi-te resolver a questão. No início de um muito grande número dentreeles, em lugar de Ad primum sic proceditur, se encontra “Ad primum sicprocedebatur”25. Pois o imperfeito mostra que se refere ao que se tinhapassado precedentemente. Ora, tanto para as Questões Disputadas quan-to para as Questões Quodlibetais, a “determinação”, quer dizer, a deci-são magistral da dificuldade, não tinha lugar imediatamente após adisputa, mas “o primeiro dia em que o mestre que tinha disputadopudesse dar sua lição”, o primeiro dia legível (dies legibilis)26. Portanto,

24 Ver outros exemplos, ⟨abaixo⟩ pp. 22-23 ⟨no original, pp. 185-186⟩.

25 Cf. I Ql, 2, e 6 e 7 e 9 etc.

26 Cf. Mandonnet. “Chron. des Quest. Disp.”, na Revue Thomiste, jul.-set. (1918), p.268 e seg. “... um domingo, um dia de festa, ou qualquer outro obstáculo podiaimpedir que esse fosse mesmo o dia seguinte da disputa ...” (ibid.).

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no momento em que o mestre redige sua “determinação”, ele recolhepreviamente os argumentos que foram propostos e se reporta assimpelo pensamento à disputa que tivera lugar precedentemente, donde afórmula sic procedebatur. Eis como se disputava: eis os argumentosque foram empregados. Não se encontra jamais, aliás, Respondebatur

dicendum, mas sim respondeo, nem ad primum dicebatur, masdicendum, o que se explica pelo que acabo de lembrar27.

Em um opúsculo que figura dentre as obras de Santo Tomás, masque é apócrifo e que um manuscrito do século XIV atribui a AlbertoMagno28, o tratado de Fato, em lugar da fórmula Ad primum sic

proceditur se encontra esta: Ad primum objicitur sic. Ora, todo o artigo1o deste opúsculo é consagrado à disputa: o destino, ou a fatalidade,existe; o destino não existe; e é somente o artigo 2o

, “Quaeritur quid sit

fatum”, que traz a solução e a resposta aos argumentos das duas séries,naquilo que eles têm de contrário à tese sustentada. Além do que, asexpressões que formam o quadro do artigo são, com pequena diferen-ça, as mesmas que aquelas empregadas por Santo Tomás. Este, nas suasrespostas às razões que combate, chama estas últimas objecta. De outraparte, ele se serve da palavra objicere nos seus Comentários sobreAristóteles para marcar as duas partes da disputa. Objicit ad primam

partem, objicit ad secundam. Portanto, a palavra objicere, empregadano de Fato para designar a disputa, é a equivalente de procedere, queocupa o mesmo lugar em Santo Tomás, e isto confirma que procedere,ele também, aplica-se somente à disputa29.

27 No Io Quodlibet 1, 1 se reencontra a fórmula que faz alusão igualmente à disputaprecedente. “Et ostendebatur quod sic”. E se demonstrava que era assim, se mostrava que sim.

28 Cf. Mandonnet. Écrits authentiques de saint Thomas d’Aquin. Fribourg, 1910, p. 130.

29 Encontra-se com bastante frequência em Alex. de Hales, em lugar de “ad 1um sicproceditur”, “ad quod arguitur sic” (Univ. Theol. Sum. Iª P, Q. 1, Memb. 2, fol. 1) ou “adquod objicitur sic” (Ibid., Memb. 2), muitas vezes simplesmente “ad quod sic”, ibid., Q.14, M. 2, fol. 31. Na Suma de Alberto Magno, reencontramos proceditur e objicitur (cf.I P, Tr. 5, Q. 23, M. 4, a. 1. Ed. Vivès, p. 190, col. 1; Tr. 6, Q. 25, a. 3, part. 1. Ibid.,p. 217, col. 1).

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Aqui é o lugar de determinar o verdadeiro sentido das palavrasobjicere e objectio. Sem dúvida, estes termos têm muitas vezes a signifi-cação que damos a objetar e objeção30, mas não têm esse sentido senãopor posição, quer dizer, em virtude do contexto, e essa não é sua signi-ficação primitiva, nem a mais freqüente. Em nossa língua ⟨o francês⟩,objetar, fazer uma objeção a, significam opor qualquer coisa, seja umfato, seja um raciocínio, a uma simples afirmação, ou a uma tese sus-tentada segundo as regras. Não é o caso para a disputa, tal como aapresentam os artigos de Santo Tomás. Pois ela consiste em razões pró

uma parte da alternativa, depois, em razões em favor da outra parte enão contra as primeiras. Entre os argumentos das duas séries, a oposi-ção não é, portanto, senão indireta. O estudo dos textos apóia essamaneira de ver. Por exemplo, no Comentário sobre a Metafísica, encon-tramos estas expressões: “Primo objicit ad ostendendum aequale esse

contrarium magno et parvo. Secundo objicit ad oppositum (10 Mt, 7,2060). Primeiramente, argumenta para provar que igual é contrário agrande e a pequeno. Em segundo lugar, argumenta para (estabelecer) ooposto”. “Objicit pro utraque parte (7 Mt, 12, 1538). Argumenta emfavor das duas partes”. O equivalente de objicere é ponere ou inducere

rationes, e ainda disputare ad. “Inducit rationem ad unam partem...objicit ad partem contrariam (3Mt, 14,515). Apresenta uma razão próuma parte... ele argumenta pró a parte contrária”. “Ponit rationes ad

utramque partem (3 Mt, 12, 490). Ele dá razões para uma e outraparte”. “Disputat ad unam partem... disputat ad aliam partem (3Mt,5, 387). Defende a favor de uma parte... defende a favor da outra”.Encontra-se igualmente disputare quaestionem ou ad quaestionem,objicere ad quaestionem: expressões que têm o mesmo sentido, a saber,discutir uma questão. Por conseguinte, objicere significa, em geral, ra-ciocinar, argumentar, como procedere, arguere, argumentari, disputare.Isto dará daqui a pouco a chave do Sed contra.

30 Cf. Potest autem aliquid contra praedicta objicere quod Dei substantia est aliquidmajus quam omnia quae ipse facere, vel intelligere, vel velle potest praeter seipsum. 3 G, 56.

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As idéias de objetar, de objeção são, ao contrário, expressas direta-mente pelas palavras obviare, obviatio, instare, instantia, cujos equiva-lentes aristotélicos são: a*pantavn, a*pavnthsiς, e*nivstasqai,

e!nstasiς31. Vimos que, nas Questões Disputadas, o respondente opõeuma interdição àquele que argumenta, tentando enfraquecer seu racio-cínio. Aqui, o argumento é atacado diretamente. Eis um exemplo dis-so: em Pt, 3, 14, 1 a1 e 2 a1, aquele que sustenta a afirmativa argumen-ta assim: A potência da causa que produz toda a substância de umacoisa não é menor com relação ao seu efeito que aquela da causa queproduz somente a forma. Ora, a causa que produz somente a forma,poderia produzi-la de toda eternidade, se ela própria existisse de todaeternidade. Portanto, por muito mais forte razão, Deus, que produztoda a substância da coisa, pode produzir um efeito que lhe seja co-eterno. O respondente tenta então retirar toda eficácia a este argumen-to em objetando que sua conclusão encerra uma impossibilidade, poisse seguiria esta conseqüência absurda: que a criatura seria igualada aocriador com relação à duração. Santo Tomás, em sua solução que se-gue o corpo do artigo, nomeia esta interdição, obviatio, e faz observarque ela não é muito eficaz. “Unde illa obviatio parum est efficax” (ibid.,2 r1). Eis aqui outros textos: “Potest... aliquis huic rationi obviare dicendo

etc. (3 G, 85, arg. 11). Alguém... pode opor uma objeção a esse racio-cínio, dizendo...”. “Excludit quamdam cavillosam responsionem qua

posset aliquis obviare primae rationi (7 Mt, 13, 1577). Ele afasta uma

31 provς deV touVς diaporou= =ntaς e*k tw= =n paradedomevnwn a*poriw= =n r&av/diona*panta = =n ... (M. k. 6, 1063 b 13) ... Si aliqui sunt qui dubitant propter aliquosdefectus ... facile est obviare tali errori, solvendo ea quae faciunt in eis dubitationem (11Mt, 6, 2242). thV proVς tov dittovn a*panthvsei (ti. 17, 176 a 23). Ou* gavr provςtovn lovgon a*lla proVς thVn diavnoian h& a*pavnthsiς au*tw = =n (M. g. 5, 1009 a19-20). Non enim obviandum est eis, vel occurrendum, ad rationes quas ponunt, sed admentem ... (4 Mt, 10, 663). !Eti toV provblema provtasin e*autw/= = poiouvmenone*nistasqai: h& gar e!nstasiς e!stai e*piceirhvma provς thvn qevsin. (pois aobjeção será um argumento contra a tese) (t. b. 2, 110 a 10-11). !Enstasiς d V e*stiVprovtasiς protavsei e*nantiva (A. b. 26, 69 a 37).

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réplica sutil com a qual se poderia fazer uma objeção contra o primei-ro argumento”. As palavras obviare, obviatio implicam a idéia de resis-tência. O espírito não se rende ao argumento que lhe foi dado, porque eleapercebe uma dificuldade que enfraquece este argumento, ou mesmo, odestrói. É o que um outro emprego da palavra obviare e o sinônimo resisteremostram. “Solum enim sapientum... est hujusmodi passionibus obviare (3G, 154). É somente feito de sages... resistir às paixões de esta espécie”.“Secundo [ostendit] qualiter resistendum est eis apparenter... Tertio qualiter

eis obviandum est secundum veritatem (4 Mt, 15, 711). Em segundolugar [mostra] de qual maneira se pode lhes fazer oposição do ponto devista sofístico [que é o deles]. Em terceiro, como se pode dirigir contra elesobjeções fundadas sobre a verdade”.

A mesma idéia é também expressa pelas palavras instare, instantia

“... removebitur opinio talium qui contra omnia instant (11 Mt, 5, 2223).A opinião de semelhantes (espíritos), que contestam tudo, serárepelida”32. “Quia videbatur hoc habere instantiam in principiis a Platone

positis... ideo consequenter hoc excludit (12 Mt, 4, 2462). Como pare-cia que esse se chocava contra uma objeção tirada dos primeiros prin-cípios admitidos por Platão, ... pois ele afasta em seguida esta (dificul-dade)”. “... Ostendit qualiter ferenda esset instantia in demonstrativis...(1 PA, 22, 6). Mostra como deveria ser dirigida a objeção nas ciênciasdemonstrativas”33. “Nec habet instantiam de pluribus trahentibus navem

(1 T, 52, 3, c). E o caso de vários homens que puxam um barco nãoconstitui aí uma objeção”. “Nec contra hoc potest fieri instantia de duobus

quorum unum ab altero dependent, sed non e contrario (I G, 13). E não

32 ... luvoit’ a!n toV legovmenon u&poV tw = =n taV toiau= =ta e*nistamevnwn (M. k. 5,1062 b 9-10).

33 “Dicit ergo primo quod non oportet in demonstrativis ferre instantiam in ipsum, id est,in aliquem paralogismum, sumendo aliquam propositionem inductivam, id est, particularem”(ibid.). Ou! deiV d V e!nstasin ei*ς au*to ϕevrein, a!n h\ h& provtasiς e*paktikhv (A.g. 12, 77 b 34).

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se pode opor a isso a condição de duas coisas em que uma depende daoutra, mas não inversamente”. Não notei que Santo Tomás tenhaempregado estas palavras em um sentido que se encontra nos escolásticosmuito posteriores34, onde elas significam que se insiste sobre uma ob-jeção que se propôs, mostrando por um novo argumento que ela nãofoi resolvida35. Em meu conhecimento, ele não dá jamais este nome àréplica que segue a interdição do respondente.

Os argumentos da segunda série, aqueles que tendem a estabelecera outra parte da alternativa, se abrem pela fórmula Sed Contra (ou,simplesmente, contra) est quod, seguido do enunciado do silogismo:ou bem, Sed contra est ou contra est quod dicit ou dicitur, quando arazão alegada consiste em um texto que faz autoridade. O sentidoexato destas expressões nos é dado por fórmulas mais desenvolvidas:“Rationes autem quae sunt ad oppositum concludunt quod etc. (Vr, 4, 5r2). As razões que militam em favor da (tese) oposta concluem que...”.“Ad ea vero quae in contrarium objiciuntur, posset de facili responderi, siquis vellet contrarium sustinere (Vr, 4, 2, 1 r2). Poder-se-ia facilmenteresponder aos argumentos a favor da parte contrária, se alguém quises-se sustentar o contrário”. Mais brevemente: “Ad id vero quod in contrarium

objicitur, dicendum... (1 T, 14, 16, r2). Quanto ao argumento que se

34 João de Santo Tomás emprega ainda os termos instare, instantia, no mesmo sentidoque o autor da Suma. Cf. “Et instatur illa consequentia: convenit aliquid accidentaliteraliqui, ergo distinguitur ab illo a parte rei, tum ... etc. A esta inferência: uma coisa convéma uma outra acidentalmente, portanto ela se distingue da outra na realidade, se objetaque ... e que...” etc. Ph. Nat. I P, Q. 7, art. 4. Ed. Vivès. T. II, p. 119, col. 2. “Ex quaexplicatione solventur plures instantiae, quae contra istam definitionem objici possunt”.Ibid., Q. 14, a. 1, p. 259, col. 1 ⟨= Cursus philosophicus Thomisticus. Philos. naturalis.Pars I-III. Ed. B. Reiser, O.S.B. Taurini, Marietti, 1933, t. 2, p. 135, col. 2, l. 12-15; p.294, col. 1, l. 40-42⟩.

35 Eles adquirem este sentido em Billuart e Goudin, por exemplo: instabis, replicabis. Éeste último sentido que a palavra instance ⟨instância⟩ conservou na nossa língua ⟨francesa⟩:“novo argumento pelo qual se retorque a resposta feita a um primeiro argumento”(HATZFELD, A.; DARMSTETER, A.; THOMAS, A. Dictionn. Gén. de la LangueFrançaise, verbete instance.

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alega a favor da parte contrária, é preciso responder...”. O que eu disseacima acerca do sentido de objicere é suficiente para justificar estas tra-duções. A expressão Sed contra est, portanto, não significa: “Mas con-tra (as razões dadas a favor da primeira parte) há isto que etc.” Comoeu o fiz observar acima, a segunda série de argumentos não é contra aprimeira série, ela é a favor da segunda parte da alternativa e não seopõe senão indiretamente aos argumentos dados a favor da primeira.O que se opõe diretamente aos argumentos combatidos do ponto devista da tese estabelecida na “determinação” são as respostas que se-guem o corpo do artigo, responsiones ad objecta, quer dizer, respostasaos argumentos (sentido estabelecido precedentemente), que eles sejam

da 1ª ou da 2ª série, visto que eles se afastam da tese. O exemplo daSuma que acabo de citar (1 T, 14, 16 r2) é típico a este respeito36.

A parte do artigo que expõe e prova a tese admitida pelo autor, oque chamamos comumente de corpo do artigo, começa pelas palavrasRespondeo dicendum. Esta expressão não é um pleonasmo, como po-deria parecer (dicendum sendo um equivalente de responsio), e não seresume a respondeo respondendum. Com efeito, se prestarmos bastanteatenção, nos apercebemos que uma e outra destas palavras têm suarazão de ser e exprimem aspectos diferentes da tese. A primeira,respondeo, se explica pelo fato de que a pesquisa tem lugar sob formade interrogação, Utrum ?... Pois o que corresponde formalmente auma pergunta, é uma resposta. Mas nem toda interrogação formulauma dificuldade científica. Pode-se pôr uma questão sobre um sim-ples fato. Por exemplo: Chove? Vistes Pedro? E basta, neste caso, res-ponder sim ou não. Mas em filosofia e em teologia, a interrogação

36 Cf. ainda, 1 T, 17, 1, r2 (designado, aqui, por ad 4m); I, 2 T, 8, 3 r2 (Em I, 2 T, 85, 6c, a resposta é dada ao mesmo tempo para os três a1 e para os três a2). Caso frequente nasQuest. Disputadas. Vr, 10, 12, 1 r2, etc.; 12, 1, 1 r2, etc. e 7, 1 r2, etc. e 9, 1 r2, etc. e assimquase em cada questão. É preciso reconhecer, todavia, que na Suma o argumento a2, ouSed Contra, exprime quase sempre a tese sustentada no artigo e é decisivo.

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exprime uma dúvida especulativa para a qual se há de encontrar a solu-ção37. Ora, é esta idéia que implica a palavra dicendum. A perguntaexige uma resposta, mas, para que esta resposta seja satisfatória, é pre-ciso que ela enuncie os princípios que permitirão dissipar a dúvidalevada a seu ápice pelos argumentos da disputa, e que ela ponha emoperação estes princípios nos raciocínios, de tal sorte que, a luzelucidando o fundo da questão, o espírito seja definitivamente fixado.As idéias deverão, pois, ser escolhidas com um discernimento seguro,e, por via de conseqüência, será preciso ter o mesmo cuidado no em-prego dos termos que as exprimirão. Donde a palavra dicendum. Eisaqui o que é preciso pensar e como é preciso dizê-lo. Mas são princi-palmente as idéias justas às quais esta palavra faz alusão38.

Com efeito, ela não é senão a tradução escolástica de uma expres-são aristotélica que tem esta significação. Quando julga as opiniõesdos filósofos, seus predecessores, Aristóteles se serve muitofreqüentemente das expressões o*rqw=ς, kalw=ς levgein para aprovar, eou*k o*rqw=ς, ou! kalw=ς, kakw=ς levgein para criticar, quer dizer, no

37 Aristóteles observa nos Tópicos (a. b. 105 a 3-7) que nem todo problema é digno deexame. Certas questões não merecem senão uma reprimenda; quando, por exemplo,alguém pergunta se é preciso honrar os deuses e amar seus progenitores. Há outras⟨questões⟩, a que se contenta de responder: abri os olhos, escutai, tocai etc. Em outrostermos, uma simples percepção basta. Por exemplo, quando se pergunta se a neve ébranca. Somente os problemas que exprimem dúvidas cuja solução exige o raciocíniodevem ser examinados.

38 Alexandre de Afrodísias, comentando a passagem em que Aristóteles distingue a propo-sição do problema (cf. acima), estima que se pode compreender assim esta diferença. Aproposição (questão simples) pede que se responda por uma das partes da oposiçãocontraditória; quanto ao problema, ele não exige (somente) a resposta (por uma daspartes), mas a demonstração desta parte. Dito de outro modo, o problema não reclamauma simples resposta, mas uma resposta motivada, plenamente esclarecedora. O proble-ma é qualificado pusmatikhV e*rwvthsiς, quer dizer, pedido de explicação. ... dioV kaiVdokei= pusmatikh= meVn e*rwvthvsei toV provblhma e*dikevnai (ai!thsiς gaVrkataskeuh=ς e*sti kaiV deivxewς kaiV dialektikou= lovgou)..., Alexand. in Top. I, 4(Ar. 101 b 19-28) Edit. M. Walhes, Berlim, 1891, p. 40, l. 29-30.

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primeiro caso, ter uma opinião justa ou exata, no segundo, ter umaopinião inexata. Santo Tomás traduz por recte dicere, non recte dicere39.Por ex.: “Aqueles que admitem as ideias têm, de uma parte, uma opi-nião justa (th/= meVn o*rqw=ς levgousi: Santo Tomás, “in hoc recte dicunt”)acerca do que consideram como seres separados, enquanto elas sãosubstâncias; mas, de outra parte, sua opinião é falsa (th/= d’ouvk o*rqw=ς:Santo Tomás, “in hoc autem non dixerunt recte”) acerca do que cha-mam ideia, o que, sendo uno, é comum a muitas coisas” (M. z. 16,1040 b 27-30; Santo Tomás, 7 Mt, 16, 1642-1643). “’Empedoklh=ςd’ou! kalw=ς ei!rhke tou=to ... (y. b. 4, 415 b 28). E a opiniãoexpressa por Empédocles não é exata acerca disto...”40

O que bem mostra que esta expressão marca antes a qualidade dasideias que a dos termos é esta outra passagem da Metafísica em queAristóteles faz observar que, se ⟨alguém⟩ se põe do ponto de vista deAnaxágoras e expõe distintamente o que ele quis dizer, parecerá talvezque sua doutrina apresente qualquer coisa de mais novo que a deEmpédocles: “...i!swς a!n ϕaneivh kainoprepestevrwς levgwn (M.A. 8, 989 b 5) ... Apparebit ejus dictum mirabilius et subtilius

praecedentium philosophorum dictis” (Santo Tomás, 1 Mt, 12, 196). Éclaro que Anaxágoras, não tendo, nem completamente, nem distinta-mente, exprimido seu pensamento, não são os termos que ele empre-gou, mas as idéias envolvidas naquilo que ele disse confusamente queAristóteles tem aqui em vista. De acordo com isso, seria preciso tradu-zir assim Respondeo dicendum: “Eu respondo, eis aqui a opinião que épreciso adotar, ou, a solução justa é esta”. As razões a favor de cadauma das partes da alternativa não sendo expressas sob forma de inter-rogação, a crítica que delas é feita, após o corpo do artigo, não começapor respondeo, mas simplesmente por dicendum “a solução é esta” (ou,

39 Cf. “hoc non recte dicitur”. 1 T, 19, 9, 1 r.

40 Traité de l’Âme. Tradução ⟨francesa⟩ de G. Rodier, Paris, 1900, T. I, p. 87.

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a resposta é esta, mas, aqui, resposta no sentido de réplica que resolve oargumento). O que confirma a explicação que dei acima.

Vê-se algumas vezes Santo Tomás se servir de um simples dico paraexprimir sua opinião, palavra que se torna usual nos escolásticos poste-riores41. Dico significa então: eu penso ou afirmo que etc. Ela apareceempregada, de preferência, para marcar as partes de uma tese comple-xa, e é precedida de sic, “sic dico”, então, eu afirmo..., quer dizer, desteponto de vista, nestas condições, eu afirmo... Por ex.: em Vr, 10, 8, c,Santo Tomás, falando do conhecimento que a alma tem dela própria,seja espontaneamente, na consciência individual, seja cientificamente,pela psicologia, se exprime assim: “Trata-se da primeira? sic, dico quod,então, afirmo que... Trata-se da segunda e se considera o conceito? sic,dico quod, então, afirmo que...”

O corpo do artigo contém, portanto, a decisão da dúvida expressapela interrogação do início. Após ter procedido por disputa (procedere

modo disputativo), o mestre procedia por demonstração (procedere

demonstrative), seguindo as expressões já citadas de Santo Tomás. Esteúltimo procedimento se exprimia também pelas palavras determinare,determinatio (Aristóteles diorivzein, diorismovς). Santo Tomás em-prega os dois termos com esta significação em 4 Ql, 18, t. “Utrum

determinationes theologicae debeant fieri auctoritate vel ratione. Se asdecisões teológicas devem ser dadas recorrendo-se à autoridade ou aoraciocínio”. No corpo do artigo, “... Si nudis auctoritatibus magister

quaestionem determinet ... se o mestre decide a questão unicamente

41 Por exemplo, em João de Santo Tomás, a propósito da individualidade dos serescorporais. “Dico primo: Non potest natura specifica ex sola entitate sua ... esse principiumadaequatum individuationis. [...] Dico secundo: Non potest assignari pro principioindividuationis haecceitas etc. [...] Dico tertio: Primum et radicale principiumindividuationis non potest esse forma substantialis” etc. Ph. Nat. 3 P, Q. 9, art. 3. Ed.Vivès. T. 3, pp. 51, 56, 58 ⟨= Cursus philosophicus Thomisticus. Philos. naturalis. Pars I-III. Ed. B. Reiser, O.S.B. Taurini, Marietti, 1933, t. 2, p. 772, col. 1, l. 21-25; p. 777,col. 1, l. 47 – col. 2, l. 1; p. 779, col. 1, l. 19-21⟩.

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por autoridades”, quer dizer, passagens de livros que fazem autoridade.Em Aristóteles, diorivzein significa determinar, em outros termos,delimitar, definir, fixar os contornos de uma noção42; depois, fixar,estabelecer43 e, ainda, tratar de44, e o substantivo diorismovς tem sig-nificações correspondentes45. Ele é por vezes expresso por definire, si-nônimo de determinare. “Alio modo interpretamur aliquid in bonum

vel malum, definiendo sive determinando (II, 2 T, 60, 4, 3 r)46. Deuma outra maneira, nós interpretamos qualquer coisa como bem oucomo mal, decidindo ou pronunciando”. Dito de outro modo, emi-tindo um julgamento firme, por oposição à outra maneira, que con-siste em uma interpretação hipotética, “per quamdam suppositionem”.

A palavra determinare não aparece nas fórmulas estereotipadas doartigo47, mas Santo Tomás a emprega freqüentemente nos Comentá-

42 Tuvpw/ meVn ou\n tauvth/ diwrivsqw kaiV u&pogegravϕqw periV yuch=ς (y. b. 1,413 a 9). — “Que nosso esquema e nosso esboço da definição geral da alma sejam, pois,assim apreendidos” (RODIER, G. Traité de l’Âme. Paris, 1900, T. I, p. 71).

43 Diwrismevnwn deV touvtwn (y. b. 5, 416 b 32). Estando estabelecidos estes pontos(ibid., p. 95).

44 Nu=n deV prw=ton periV yovϕou kaiV a*koh=ς diorivswmen (ibid., 8, 419 b 4).Agora, tratemos de início do som e do ouvido (Ibid., p. 113).

45 !Ecei gavr toVn ei*rhmevnon diorismovn (M. g. 3, 1005 b 23). Pois (este princípio)tem os caracteres (literalmente, a determinação) que acabamos de indicar. ’Aϕairei=taigaVr tau=ta tw=n e*n tw/= diorismw/= prosovntwn e!nia (M. q. 5, 1048 a 20). “Namea quae exterius prohibent removent aliqua eorum quae posita sunt superius indeterminatione communi possibilis” (9 Mt, 4, 1821).

46 Determinare oferece uma nuance que não tem diorivzein; implica que a decisão vale,não somente pelas razões que a motivam, mas ainda pela autoridade daquele que a dá;pois não cabe senão ao mestre determinar ou pronunciar. Aqueles que não são mestrespodem bem responder, quer dizer, resolver um argumento proposto, mas não “deter-minar”. Por isso, se encontra a palavra determinare ao lado de definire para exprimir asdecisões dos Concílios e dos Papas. “Patres in Chalcedonensi Synodo congregati secuti suntsententiam Leonis Papae, qui determinavit Christum esse in duabus naturis postincarnationem” (Pt, 10, 4, 13 r).

47 Mas o encontramos, ocasionalmente, nos artigos. Cf. 1 T, 1, 7, 2 a1, 2 r; Vr, 12, 3, 8, a1.

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rios. “Determinat quid est actus (9 Mt, 5, 1823). Determina (ou defi-ne) o que é o ato”. “Determinat propositam quaestionem (10 Mt, 3,1963). Decide a questão enunciada”. “Veritatem determinat quaestionis

(10 Mt, 7, 2060). Estabelece qual é a verdade nesta questão”.“Determinat enim in quarto quod ista scientia considerat ens in quantum

est ens (3 Mt, 4, 384). Determina (quer dizer, decide e prova), no livro4o, que esta ciência considera o ser enquanto ser”. Estas últimas passa-gens, como também a expressão procedere demonstrative, indicam bemque “determinar” não consiste somente em descobrir a verdade e ex-primi-la em termos exatos, mas ainda em estabelecê-la, quer dizer, emdemonstrá-la. A decisão contém esses dois pontos, e é fácil de ver queo segundo é o mais importante. O efeito da disputa é de levar a dúvidaao seu ápice, e o espírito, agitado em sentidos contrários pelos argu-mentos que lhe foram apresentados, hesita, sem poder se fixar. A deci-são deve parar de uma vez esta hesitação, encerrando o espírito emlimites tão exatamente traçados ⟨de maneira⟩ que ele não tenha maisnenhum jogo, e projetando uma luz tal sobre o objeto assim circuns-crito, que o pensamento seja irresistivelmente levado a se conter nesteslimites e a repousar aí por uma adesão absoluta. Ora, as definições e asdistinções podem ser suficientes para a primeira tarefa, mas é a de-monstração que conclui sua obra e força o assentimento.

Uma significação de determinare, vizinha dessa última e que assi-nalei acima, é tratar de, determinare de (Arist. diorivzein periV).Encontramo-la empregada assim nos Comentários. “Determinat de

potentia et actu (9 Mt, 1, 1773). Trata da potência e do ato”48.

Sendo a decisão uma resposta (no sentido de réplica que dissipa adúvida) e uma solução, determinatio tem por sinônimos: responsio e

48 Cf. “... Sacra doctrina non determinat de Deo et creaturis ex aequo” (1 T, 1, 3, 1 r). Noargumento 1 a1: “Creator autem et creatura, de quibus in sacra doctrina tractatur, noncontinentur sub uno genere subjecti”.

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solutio, e determinare: respondere49, solvere50. “Solvit propositam

dubitationem (10 Mt, 8, 2080). Ele resolve a dificuldade enunciada”.“Ponit solutionem (7 Mt, 9, 1467). Ele dá a solução”. “Non autem

videtur esse responsio sufficiens si quis dicat... oportet igitur ex superioribus

solutionem inquirere (3 G, 122). Não parece que isso seja dar umaresposta satisfatória senão dizer... é preciso então procurar a soluçãopartindo do que foi dito acima”.

A resposta aos argumentos que não concordam com a decisão con-siste muito freqüentemente em uma distinção. Santo Tomás faz ob-servar então que, de tal ponto de vista, o raciocínio é válido, mas quenão é deste ponto de vista que é preciso se situar com relação à questãoestudada. “... ex illa ratione probatur quod Deus sit beatus secundum

suam essentiam, non autem quod beatitudo ei conveniat secundum

rationem essentiae sed magis secundum rationem intellectus (1 T, 26, 2,1 r)51. Se prova por este argumento que Deus é feliz em sua essência(ele é essencialmente feliz), mas não que a beatitude lhe convenha emvirtude de sua essência, mas sim52, em virtude de seu intelecto”53. Estamesma ideia é freqüentemente expressa pela palavra procedere no 3o

sentido e algumas vezes no 1o, haec ratio procedit de, procedit in, procedit

49 a*povkrisiς, apokrivnesqai. PeriV d V apokrivsewς prw=ton meVn dioristevontiv e*stin e!rgon tou= kalw=ς a!pokrinomevnou, kaqavper tou= kalw=ς e*rwtw=ntoς.t. q. 4, 159 a 16-18. Cf. M. b. 1, 995 a 28; M. g. 4, 1007 a 9 (4 Mt, 7, 623).

50 luvsiς, luvein. h\n gaVr h& luvsiς e*mϕanivsiς yeudou=ς sullogismou=, par’ o$yeudhvς. ti. 24, 179 b 23. @Otan gaVr luvein mhV duvnwntai lovgouς e*ristikouvς... M. g. 7, 1012 a 18-19.

51 Cf. 1 T, 44, 2, 3 r; 1 T, 45, 4, 3 r.

52 Mais literalmente: não... sob o aspecto da essência (enquanto ela é essência), mas sobo aspecto do intelecto (enquanto ele é intelecto).

53 Magis tem frequentemente, em Santo Tomás, um sentido adversativo “mas bem,mas, ao contrário”, e não comparativo: “antes, ademais”. Ex.: “Causam... formalem malumnon habet, sed est magis privatio formae (1 T, 49, 1, c). O mal não tem causa formal, masele é, ao contrário, privação de forma”.

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secundum, ou quantum ad, ou ex parte etc. Esta razão vale para, em,segundo, quanto a, do ponto de vista de etc. Ex.: “Objectio illa procedit

de paternitate, secundum quod est relatio, et non secundum quod est

constitutiva personae (1 T, 40, 4, 2 r). Este raciocínio vale para a pater-nidade, enquanto ela é relação, e não ⟨vale para ela⟩, enquanto ela cons-titui a pessoa”. “Ratio illa procedit in his quae ex aequo dividuntur (1 T,60, 5, 1 r). Esta razão é válida para as coisas que são, ao mesmo título,membros de uma divisão”. “Objectio illa procedit quantum ad

impositionem nominis (1 T, 13, 6, 1 r). Este argumento vale quanto àimposição do nome”. “Illae rationes procedunt secundum diversitatem

praedicationis (1 T, 13, 10, 2-3 r). Estas razões são válidas, no queconcerne à diversidade de atribuição”. “Ratio illa procedit ex parte

necessitatis materiae (Ml, 5, 5, 1 r1). Esta razão vale do ponto de vistadaquilo que move necessariamente a matéria”. Encontramos tambémpor vezes, absolutamente, non procedit. “Et ideo ratio non procedit (Vr,2, 10, 3, r1). E, por esta razão, o argumento não é válido”.

Como assinalei acima, os sinônimos de procedere, neste sentido,são tenere e valere. “Ratio illa teneret de exemplato quod perfecte

repraesentat exemplar (1 T, 47, 1, 2 r). Esta razão valeria para a cópiaque representa perfeitamente o modelo...”. “Haec solutio non videtur

valere (Pt, 5, 4, 1 r). Esta solução não parece válida”.

A distinção é também expressa por procedere no sentido de con-cluir, provar. “Ratio illa procedit quod falsitas non sit in sensu sicut in

cognoscente verum et falsum (1 T, 17, 2, 3 r)54. Esta razão prova que oerro não se encontra no sentido, como naquele que conhece o verda-deiro e o falso”. “Objectio illa procedit ac si malum haberet causam per

54 É preciso, portanto, suprimir a vírgula posta entre procedit e quod na edição Leonina(in 4a, T. IV, p. 220, col 2. Romae, 1888) pois ela conduz a um contra-senso. SantoTomás diria; “este argumento conclui, porque”, enquanto que ao contrário, em lugar deo conceder, ele o distingue, fazendo observar: “ele prova (somente) que etc., e nãomostra que o erro não existe, sob forma alguma, nos sentidos”.

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se... (Pt, 3, 6, 17 r). Este argumento conclui como se o mal tivesseuma causa essencial...”55

Em certos casos, após ter distinguido, ou negado, uma das premissas,Santo Tomás acrescenta: “... unde ratio non sequitur (Vr, 24, 7, 7 r). Porisso, neste argumento, a conseqüência falta”, o que é exprimido nestestermos pelos escolásticos posteriores: “nego consequentiam: eu nego a con-seqüência”. Encontramos ainda: “... ratio illa bene sequeretur si ratione

propriorum terminorum esset in pluribus locis (4 S, 10, 1, 1, 7 r). A conse-qüência deste argumento seria boa, se ele (o corpo do Cristo) estivesse emvários lugares em virtude de seus próprios limites (ou dimensões)”. Fór-mulas análogas: “Non sequitur, si ex generatione et processione consequuntur

duae relationes quod propter hoc sint tantum duae personae subsistentes (Pt,10, 5, 5 r). Se da geração e da processão decorrem duas relações, não sesegue que não haja por isso senão duas pessoas substancialmente existen-tes”. “Ratio illa sequitur in causis agentibus de necessitate naturae et quantum

ad effectus immediatos, sed in causis voluntariis non sequitur (Vr, 23, 5, 1 r).Este argumento conclui a favor das causas que agem por necessidade denatureza e quanto aos efeitos imediatos, mas não conclui a favor das causasvoluntárias”. Esta última passagem mostra que sequitur, assim empregado,é o sinônimo de procedit (procedit in, quantum ad) e que a fórmula ratio

non sequitur equivale a outra: ratio non procedit, equivalência toda natural,já que um raciocínio não conclui senão se há conseqüência.

Assinalemos, para finalizar, duas expressões que Santo Tomás usaàs vezes na crítica dos argumentos. Quando o raciocínio não é conclu-dente, ele emprega a fórmula: Ratio locum non habet. “haec ratio hic

locum non habet (1 T, 48, 4, 3 r). Este raciocínio é aqui fora de propó-sito, não se aplica”. Quando se trata de uma comparação ou de uma

55 Traduzo causa per se por causa essencial: pois causa per se significa que a causa produztal objeto em virtude de sua essência; em outros termos, é porque a causa tem talessência que o efeito é o que é, e, reciprocamente, um efeito tendo tal essência reclamacomo causa um agente tendo a essência correspondente.

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assimilação que não é justificada, ele diz: “non est eadem ratio56, ounon est simile”. “Unde non est eadem ratio (I, 2 T, 35, 4, 1 r). Por isso,o caso não é o mesmo”. “Et ideo non est simile (Vr, 24, 7, 5 r). E eis porque procede de outra maneira”.

56 Expressão aristotélica: ’EpiV deV tw =n ϕusikw=n meVn, a*idivwn deV ou*siw=n a!lloςlovgoς (alia ratio). M. h. 4, 1044 b 6. Santo Tomás traduz aqui: “... Non est similitermateria sicut in corporalibus generabilibus” etc. (8 Mt, 4, 1740); cf. a expressão contrá-ria: o& d V au*toVς lovgoς kaiV e*piV tw=n a!llwn genw=n , M. i. 2, 1054 a 4. “Et eademratio est in omnibus generibus” (10 Mt, 3, 1971).

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ANOTAÇÕES SOBRE ASSUBSTÂNCIAS SEPARADAS EM

TOMÁS DE AQUINORosalie Helena de Souza Pereira*

Já na filosofia pagã grega houve interesse pelos seres imateriais, isto é,seres absolutamente espirituais, que não pertencem ao universo material.Na tradição filosófica, eles são chamados “substâncias separadas” ou “inte-ligências”; nas tradições religiosas monoteístas, “anjos”. Sua existência éconcebida por duas razões: em primeiro lugar, para assegurar a perfeiçãodo universo, posto que, desde que há evidência da matéria, o universo seriaincompleto sem a existência de seres espirituais; em segundo lugar, paraassegurar a ordem do universo, pois ela exige que se passe de um extremoa outro por meio de intermediários, como, por exemplo, na hierarquia,cujo princípio primeiro é o mais perfeito e os quatro elementos (terra,fogo, ar e água), os menos perfeitos1.

Os seres espirituais existentes entre Deus e o homem são objeto deinvestigação de Tomás de Aquino desde seus anos de bacharel2 emParis, quando redige o opúsculo De Ente et Essentia a pedido de seusconfrades, a fim de esclarecer noções básicas de ontologia. No capítulo

* Mestre em Filosofia pela FFLCH-USP; Doutora em Filosofia pelo IFCH-UNICAMP;atualmente em estágio de Pós-doutoramente na PUC-SP sob a supervisão do Prof. Dr.Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento.

1 Cf. VAN STEENBERGHEN, Fernand. Le Thomisme. Paris: PUF, 1983¹, 1992², p.45.

2 O bacharel dava aulas sob a orientação de um mestre titular, cf. NASCIMENTO,Carlos Arthur R. Santo Tomás de Aquino: O Boi Mudo da Sicília. São Paulo: EDUC,1992, p. 17.

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IV desse opúsculo, Tomás deita as bases de sua teoria sobre as substân-cias separadas, que retoma, mais tarde, na obra que o consagrou, aSuma de Teologia, nas questões que trazem o nome de Tratado sobre os

Anjos. Tomás aponta a dificuldade de conceber os seres que não sãocorpóreos pelo fato de que todo conhecimento humano tem origemna percepção sensorial, cujo objeto são os corpos físicos3.

No final de sua vida, Tomás redige o opúsculo De Substantiis

Separatis, obra tipicamente tomista no método e na doutrina. Estetratado, redigido em Nápoles entre 1272 e 1274 – ano de sua morte –e dedicado a Frei Reginaldo, não teve, no passado, a fortuna do De

Ente et Essentia. Atualmente, porém, reconhece-se que o opúsculosobre as substâncias separadas, embora não tenha sido concluído, éuma obra-prima do pensamento do Doutor Angélico, pelas soluçõesque propõe ao problema, pela visão de conjunto do pensamento filo-sófico e pela hermenêutica histórica que contém4.

Em seguida, passamos em revista algumas das teses principais so-bre as substâncias separadas elaboradas por Tomás de Aquino nessestrês tratados.

1. De Ente et Essentia

M.-D. Chenu observou que o “De Ente et Essentia [de Tomás deAquino] é o mais famoso dos opúsculos, [...] apresenta-se como umbreviário da metafísica do ser”5. O opúsculo difere de um comentário,de uma suma e de uma questão disputada e indica o tamanho de uma

3 TOMÁS DE AQUINO. Questão disputada sobre as criaturas espirituais, art. 5º, apudibid., p. 40.4 Cf. LOBATO O.P., Abelardo. In TOMÁS DE AQUINO. Opuscoli Filosofici: L’ente el’essenza, L’unità dell’intelletto, Le sostanze separate. Trad., introd. e notas de AbelardoLobato O.P. Roma: Città Nuova Editrice, 1989, p. 155.5 CHENU, M.-D. Introduction a l’étude de Saint Thomas d’Aquin. Paris: J. Vrin, 1993,p. 280.

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obra com cerca de 200 páginas. Ptolomeu de Luca, historiador deTomás de Aquino, declarou que os opúsculos condensam o resultadode consultas de várias pessoas. Embora seja considerado um “compên-dio da metafísica” (a expressão seria de João de Ripa6), esse breve trata-do é de “proporções imensas” com “notável poder de síntese”7.

Essa sintética obra da metafísica tomista sempre atraiu o interessede comentadores e estudiosos desde o final do século XIII. Ptolomeude Luca afirma que faz parte dos escritos de juventude – anterior a1254 – e que foi redigido em Paris quando Tomás desempenhava umpapel importante nas disputas como assistente do catedrático EliasBrunet de Bergerac, que proferia as lições. Todavia, é mais plausívelque o texto tenha sido redigido entre os anos 1254 e 12568, períodoem que Tomás compôs outras duas obras, Comentário aos Quatro Li-

vros das Sentenças de Pedro Lombardo (ainda com uma firme presençada filosofia de Avicena) e Os Princípios da Natureza.

Costuma-se observar que em De Ente et Essentia Tomás tomoupor base o Livro VII da Metafísica, de Aristóteles, com o propósito deredigir um prelúdio a este texto aristotélico. Cabe lembrar que noLivro X da Metafísica, dedicado aos conceitos de potência e ato,Aristóteles faz remissão à Metafísica VII, 13, “[...] como dissemos naexposição sobre a essência e sobre o ente”9, e à Metafísica IV, 2, em quediscorre sobre a ciência de tò ón (o ente) e de ousía (essência).

6 D. Odilão Moura escreve que “foi considerado por Ripa como “metaphysicaecompendiolum”. In TOMÁS DE AQUINO. O Ente e a Essência. Edição bilíngue latim-protuguês. Introdução, tradução e notas de D. Odilão Moura, O.S.B. Rio de Janeiro:Presença, 1981, p. 7.

7 MOURA, D. Odilão. Introdução. In ibid., p. 8.

8 Cf. ROLAND-GOSSELIN, M.-D., O.P. In: TOMÁS DE AQUINO. “De Ente etEssentia” de S. Thomas d’Aquin. Texto estabelecido por meio dos manuscritos parisienses.Introdução, notas e estudos históricos de M.-D. Roland-Gosselin, O.P. Paris: J. Vrin,1948, p. xxvi.

9 ARISTÓTELES. Metafísica X, 2, 1053b 17-18: kaì perì ousías kaì perì toû óntos.

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O De Ente et Essentia é um escrito de juventude, dedicado aosfrates et socios. Parece que se dirige a um pequeno grupo de religiosos –condiscípulos, confrades ou talvez discípulos da Ordem recém chega-dos ao convento dominicano de Saint Jacques, vizinho à Universidadede Paris –, que queriam um esclarecimento sobre algumas questõesque permaneciam obscuras desde o surgimento, no final do séculoXII, da Metafísica aristotélica traduzida para o latim. É possível queTomás tenha aproveitado a oportunidade para esclarecer para si mes-mo o léxico e as noções fundamentais da filosofia apresentada naMetafísica, de Aristóteles.

Conforme Alain de Libera, “os termos ens e essentia tiveram um difí-cil ingresso na língua latina clássica”10. Se o primeiro recebeu apenas aqualificação de “neologismo bárbaro” – pois seu significado “o que é” nãoapresentou problemas –, o segundo tem uma história acidentada que re-monta a séculos anteriores ao nascimento da ontologia latina11.

Na formulação dos dogmas da trindade e da cristologia, a distin-ção entre os conceitos teológicos de indivíduo concreto, “quem é” e “oque ele é”, foi de importância capital. As acirradas discussões nos con-cílios12 para chegar-se a um acordo, seja terminológico seja conceitual,sobre a identidade da pessoa de Cristo, sobre as suas duas naturezas(divina e humana), sobre a identidade da substância divina ou da subs-tância das três pessoas, levaram os teólogos a combinar os termos gre-gos ousía, hypóstasis, prósopon, phýsis e os seus correspondentes latinos

10 DE LIBERA, Alain; MICHON, Cyrille. Introduction. In: THOMAS D’AQUIN;DIETRICH DE FREIBERG. L’Être et l’Essence. Le vocabulaire médiéval de l’ontologie.Trad. e comentários de Alain de Libera; Cyrille Michon. Paris: Éditions du Seuil, 1996,p. 9.

11 Ibid., p. 15; ROLAND-GOSSELIN, op. cit., 1948, p 8-9, nota 2.

12 Concílio de Éfeso, em 431; Concílio de Calcedônia, em 451; Concílio deConstantinopla II, em 553; Concílio de Braga II, em 561; Concílio de Latrão, em 649;Concílio de Toledo XI, em 672-676 etc., cf. DE LIBERA; MICHON, op. cit., p. 16,n. 1.

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substantia, essentia, persona e natura. Os medievais herdaram as for-mulações conciliares e as glosas teológicas de Boécio13, que servirampara sistematizar o vocabulário da ontologia latina.

O termo ens é um particípio que possui uma história. Foi cunha-do para traduzir o particípio presente do grego tò ón (do verbo eînai),uma vez que o latim não possuía um particípio equivalente. Tò ónpode ser traduzido por “ente”. O infinitivo grego eînai (ser) equivaleao infinitivo latino esse e pode ser traduzido por “ser”. À parte de suafunção de cópula, o verbo grego eînai se diferencia do sentido de “exis-tir”14. O termo ousía foi incialmente traduzido por natura e, somentemais tarde, por essentia15.

Entender os termos “essência” e “ente”, como se relacionam comas noções lógicas, e entender sob que modo a essência e o ente sãoencontrados nos diversos entes é a questão proposta pelo DoutorAngélico em seu opúsculo, que foi chamado o “Discurso do método, deSanto Tomás de Aquino”16. Os primeiros três capítulos do De Ente et

Essentia são absolutamente peripatéticos. A distinção entre essência eente nos entes dotados de matéria está ancorada na distinção entresubstância segunda e substância primeira que Aristóteles apresenta no

13 Em Contra Eutychen, Boécio faz corresponder o termo grego ousía ao latino essentiapara designar “o que é”; já em sua tradução das Categorias, de Aristóteles, ousía é vertidopor substantia. Ver SAVIAN FILHO, Juvenal. Boécio: Escritos (Opuscula Sacra). SãoPaulo: Martins Fontes, 2005.

14 Cf. KAHN, Charles H. Sobre o verbo grego ser e o conceito de ser. Rio de Janeiro: Núcleode Filosofia Antiga, PUC-RJ, 1997.

15 Nos séculos V-VI, os filósofos trabalhavam com a expressão illud quod est ou com o termores (coisa) – que porém, apresenta problemas – para significar ens / tò ón. A expressão illudquod est pode também verter tò ti estí (o que é). A expressão tò tí en eînai, “o que era ser”,“aquilo que constitui algo que é”, “o que tem de diferenciado” (ARISTÓTELES. MetafísicaZ) foi vertido pela expressão quod quid erat esse – princípio constitutivo do ente sob oaspecto formal, segundo Averróis. A expressão todé ti corresponde à expressão id quod est(quod, “que” no neutro; “aquilo que” corresponde ao grego tò).

16 DUHEM, P. Le Système du Monde. Histoire des Doctrines Cosmologiques de Platona Copernic. 10 v. (1913-1959). Paris: Librairie Cientifique Hermann et Cie., 1954,tomo V, p. 470.

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tratado sobre as Categorias. Tomás cita Avicena para desenvolver seusargumentos, embora as teses do filósofo e médico persa nem sempreconcordem com as do Estagirita. Quando, porém, o Doutor Angélicodesenvolve sua tese sobre a distinção da essência e do ente nas substân-cias separadas ou anjos, o neoplatonismo árabe suplanta o aristotelismo.

Esse opúsculo de Tomás é relativamente contemporâneo ao co-mentário de Alberto Magno sobre o Liber de Causis. Como asseveraPierre Duhem, “não só o Liber de Causis é citado muitas vezes, masainda alguns pensamentos formulados no De Ente et Essentia lem-bram de modo surpreendente pensamentos enunciados por Albertoao estudar o Liber de Causis”17.

Já nas primeiras linhas do Prólogo, Tomás adverte o leitor, para-fraseando Aristóteles, que “um pequeno erro no princípio é grande nofinal”18. É Avicena, porém, o filtro do discurso de Tomás, que avalizaas palavras do filósofo persa ao declarar que “o ente e a essência são osque são primeiro concebidos pelo intelecto”19. À medida que Tomás

17 Ibid., p. 469-470.

18 TOMAS DE AQUINO. Prólogo. O Ente e a Essência. Edição bilíngue latim-portugues. Trad. de Carlos Arthur R. do Nascimento. Apresentação de FranciscoBenjamin de Souza Netto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 13. Cf. ARISTÓTELES. Decaelo I, 5, 271b 8: “[...] um pequeno desvio inicial da verdade, na medida em que seprogride, adquire uma amplitude considerável.” Cf. PLATÃO. Crátilo 436d. Confor-me Roland-Gosselin, Tomás conheceu a versão antiga do De Caelo.

19 TOMÁS DE AQUINO. Prólogo. O Ente e a Essência. Op. cit, 1995, p. 13: “ensautem essentia sunt que primo intellectu concipiuntur, ut dicit Avicenna in principiosue Metaphisice”. Ver AVICENA. Metafísica I, 5, 1-2 (Manuscrito de Paris, BibliotecaNacional, Lat. 16602: remonta a ca. 1240 e é o mais antigo manuscrito do textocompleto da Metafísica, de Avicena). Edição crítica da trad. latina por S. Van Riet:Avicenna Latinus – Liber de philosophia prima sive scientia divina. Louvain; Leiden: E.Peeters; E. J. Brill, 1977, p. 125: “Dicemus igitur quod res et ens et necesse talia suntquod statim imprimuntur in anima prima impressione”. Cf. trad. do árabe de Georges.C. Anawati: AVICENNE. La Métaphysique du Shifa’, Livres I à V. Paris: J. Vrin, 1978,p. 106: “Diremos: o existente (al-mawjud), a coisa e o necessário [são tal qual] suas‘intenções’ (ma‘ani) que se imprimem na alma como um primeiro desenho; desenhoque não é preciso adquirir a partir de outras coisas mais conhecidas”.

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avança em sua exposição, a presença de Avicena e de Aristóteles se acentua.Com efeito, Tomás aceita o pensamento de Avicena quando este apre-senta a essência considerada em si mesma e sob as condições que ad-quire nas coisas e no intelecto (Cap. III).

O Prólogo delineia o objetivo da obra, ou seja, o esclarecimentodos dados fundamentais da metafísica e seu uso filosófico. Propõeseguir uma propedêutica paradigmática de nossa inteligência, ou seja,partir do que é mais conhecido (o composto) para remontar ao menosconhecido (o simples). Tomás quer definir, isto é, fazer uma análisenominal dos termos ens e essentia, e quer buscar o seu significado comoé encontrado nos “diversos” entes, isto é, nos muitos entes, de acordocom o que afirmou o Filósofo (= Aristóteles), ou seja, que “o ente sediz de muitos modos”20, e de acordo com as “intenções lógicas”, isto é,os conceitos determinados quanto às suas características, quanto à suacompreensão e quanto à sua determinação: gênero, espécie e diferença.

O vocábulo “ente” pode ser considerado em duas acepções: 1) comose divide nas dez categorias aristotélicas, ou seja, o ente real, o ente quepõe algo na realidade; 2) o ente de razão, que significa a verdade dasproposições, isto é, tudo aquilo sobre o que é possível formular umaproposição afirmativa ou negativa, ou seja, aquilo que pode ser sujeitode atribuição.

Com a introdução no Ocidente latino do Grande Comentário deAverróis sobre a Metafísica de Aristóteles, cujo título árabe é Tafsir ma

ba‘d at-tabi‘at, a distinção entre essência e existência concentra umadiscussão sobre a validade da tese aviceniana acerca da “acidentalidadedo ser (esse)” em relação à essência (essentia).

No Grande Comentário sobre a Metafísica IV, comm. 3, Averróisrejeita a tese aviceniana ao asseverar: “Avicena enganou-se completa-

20 ARISTÓTELES. Metafísica IV, 2, 1003a 33: tò dè òn légetai mèn pollakhôs.

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mente ao afirmar que o um (unum) e o ser (ens) significam disposi-ções superpostas à essência de uma coisa”21, pois se uma coisa (res)fosse um ente per aliquid additum, haveria regressão até o infinito.Desse modo, Averróis defende a doutrina de Aristóteles, em que “ens

significa a essência (essentia) da coisa sobre a qual se fala”; logo, “ho-mem” (homo) e “o ser-homem” (ens homo) são idênticos22. Averróisafirma que o ente, dito na primeira acepção, significa principalmente aessência, pois, como se divide nas dez categorias23, é necessário que otermo “essência” designe algo que seja comum a todas as realidades quese encontram nos diversos gêneros e nas suas relativas espécies.

Retomando o De Ente et Essentia, Tomás quer investigar quaissão as características próprias da essência nas diferentes ordens das coi-sas, para, em seguida, buscar a sua relação com os conceitos lógicos degênero, de espécie e de diferença. Depois de investigar as substânciascompostas, Tomás prossegue no estudo das inteligências (ou anjos), assubstâncias intermediárias entre o mundo dos corpos compostos e Deus,que é o único ser simples que não admite qualquer composição. Nessainvestigação, o capítulo IV é dedicado ao estudo das substâncias sepa-radas ou simples: a causa primeira, as inteligências separadas e as almashumanas. As substâncias separadas e as almas humanas, porém, não seigualam a Deus – a causa primeira dos entes – em sua simplicidade.

A demonstração de que há substâncias separadas no quadro doaristotelismo, contudo, apresenta a dificuldade maior. A doutrinaneoplatônica das emanações de Al-Farabi e de Ibn Sina (Avicena) jáhavia dado conta dessa dificuldade. O propósito de Tomás, porém, é

21 AVERRÓIS. Grande Comentário sobre a Metafísica. Apud DE LIBERA, Alain. AFilosofia Medieval. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1990, p. 70.

22 DE LIBERA, Alain. A Filosofia Medieval. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1990, p. 70.

23 Essência/substância (ousía); quantidade (posón); qualidade (poión); relação (prós ti);lugar (poú); tempo (póte); situação (keîsthai); posse (ekheîn); ação (poieîn); paixão(páskhein). ARISTÓTELES. Categorias IV, 1b 26.

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apresentar a essência ou natureza das inteligências no interior de umquadro aristotélico. Assim, o estudo das inteligências separadas relaci-ona-se ao estudo da inteligência humana (intelecto ou alma racional),donde seu interesse e pertinência.

Como saber se há substâncias separadas? Como chegar à sua natu-reza ou quididade24 a partir da natureza do intelecto humano, ou me-lhor, como chegar à essência (ousía) das inteligências cósmicas (ou an-jos) a partir da essência do intelecto humano?

Em sua investigação, Tomás tem em conta o objeto próprio doconhecimento ou inteligência humana. Insiste sempre em se conhecer,em primeiro lugar, o mundo material para depois se conhecer as inte-ligências: “[...] pois devemos receber o conhecimento do simples apartir do composto [...]”25. Desse modo, o tomismo representa umavirada na teoria do conhecimento, pois se põe contra o neoplatonismoe o agostinismo que professam o conhecimento sempre voltado parao supraterreno. Tomás, de seu lado, afirma que o conhecimento se dápor meio do contato com as imagens dos corpos e não por meio docontato com o intelecto agente separado, tal qual professa a teoriaemanatista de Avicena.

Nessa perspectiva, como Tomás aborda a questão das substânciasseparadas, essas criaturas que não se assemelham aos compostos dematéria e forma?

O capítulo IV do De Ente et Essentia introduz a distinção entre oser e a essência, “signo distintivo” do tomismo, nas palavras de Alainde Libera26. Tomás quer responder a uma exigência conceitual e a uma

24 Quiditas (está em lugar de quod quid erat esse, que corresponde ao grego tò tí en eînai)parece ter-se imposto a quid erat esse usado nas primeiras versões latinas da Metafísica, deAristóteles, cf. LIBERA; MICHON, op. cit., 1996, p. 18, nota 1.

25 TOMÁS DE AQUINO. Prólogo. O Ente e a Essência. Op. cit., 1995, p. 13.

26 Cf. LIBERA; MICHON, op. cit., 1996, p. 52.

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doutrina histórica. No quadro da doutrina neoplatônica das emana-ções necessárias dos seres a partir do princípio primeiro ou na referên-cia escritural da criação divina professada pelas três religiões monoteístas,a distinção entre o primeiro princípio e todos os outros seres deve serpensada em termos de simplicidade do primeiro e de composição dosentes criados. Como a composição de matéria e forma é a característi-ca fundamental das criaturas que nos são mais acessíveis, Tomás querpensar a composição dos seres angélicos bíblicos, que correspondemaos motores dos corpos celestes de Aristóteles e às inteligências da filo-sofia árabe, a falsafa27. Todos estão de acordo quanto à simplicidade eà perfeição divinas e quanto à composição dos seres sublunares. Odesacordo está na compreensão dos seres intermediários entre Deus eos homens. Se as substâncias separadas fossem elas também compos-tas de matéria e forma, nada haveria para ser acrescentado àquilo que jáfora exposto.

Quando Tomás escreve seu opúsculo, dominava entre os filósofosa teoria de Ibn Gabirol (1021-1058), Avicebron para os latinos, apre-sentada no Fons Vitae, obra que, embora escrita por um judeu emlíngua árabe, circulou amplamente em ambiente cristão em versão la-tina. Ibn Gabirol defendeu que as substâncias espirituais têm uma com-posição hilemórfica, ou seja, eram compostas de matéria e forma, teo-ria que, conforme Tomás de Aquino, seria “incompatível com o quedizem em geral os filósofos”28. As substâncias espirituais são destituí-das de corpo físico, logo são substâncias simples ou separadas da maté-ria. Não sendo compostas de matéria e forma, sua essência ou quididadeé apenas forma. A principal prova disso é a sua capacidade própria deintelecção.

27 Cf. JOLIVET, Jean. Intellect et intelligence: note sur la tradition arabo-latine desXIIe et XIIIe siècles. In: JOLIVET, Jean. Philosophie médiévale arabe et latine. Paris: J.Vrin, 1995, p. 169-180.

28 TOMÁS DE AQUINO. O Ente e a Essência. Op. cit., 1995, § 46, p. 36.

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Tomás argumenta sobre a inteligibilidade das substâncias separa-das a partir de sua analogia com a alma humana. Assim, na condiçãode separadas da matéria, as formas são inteligíveis em ato; tornam-seinteligíveis em ato por meio da capacidade que a própria substânciainteligente tem para receber as formas e elaborá-las. Para que isso ocor-ra, é necessário que a substância inteligente seja absolutamentedesvinculada da matéria, não devendo, portanto, ter nenhuma partede matéria, nem tampouco qualquer forma impressa na matéria. Asformas são inteligíveis porque estão em ato e porque são abstraídas damatéria, de maneira que não há composição de matéria e forma tantona alma humana quanto nas substâncias separadas. Há, sim, a compo-sição de forma e ser. Esta é a tese tomista que define a essência dassubstâncias separadas, fundamentada na nona proposição do Liber de

Causis29. A forma da substância separada é a sua própria quididade ounatureza simples.

Para fundamentar este argumento, o De Ente et Essentia passa a de-senvolver a tese de dependência causal entre os seres. É quando Tomásrecorre à teoria neoplatônica das emanações necessárias: o ser que causapode ter o seu ser sem que haja um outro ser; o causado, porém, não.

29 Segundo Cristina D’Ancona Costa, o grupo constituído pelas proposições 6-10, comexceção da oitava, provém dos Elementos de Teologia, de Proclo. Essas proposições sãoconsagradas à natureza do noûs e à sua maneira de conhecer. As proposições informam queo intelecto é uma substância simples, cuja unidade fundamental não é quebrada pelamultiplicidade dos inteligíveis que ela contém (prop. 6). O intelecto assimila para si tudoo que ele conhece, pois ele torna inteligível quer as realidades superiores quer as realidadesinferiores. Tanto as perfeições divinas como as coisas sensíveis se tornam inteligíveis, assimque se encontram no intelecto, isto é, assim que se tornam objeto de sua intelecção (props.7; 10). Os diversos graus da universalidade das formas inteligíveis presentes nos intelectosformam uma hierarquia entre eles: quanto mais as formas forem universais, mais superiorserá o intelecto que conhece por meio delas (prop. 9). Essa hierarquia é consequência doestatuto intermediário que o De Causis confere à substância intelectual. A natureza noéticaencontra-se entre a Causa Primeira e toda a criação sucessiva: esta proposição é indepen-dente de Proclo. D’ANCONA COSTA, Cristina. Recherches sur le Liber de Causis. Paris:Vrin, 1995, p. 49.

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No composto de matéria e forma (sýnolon30) é a forma que confe-re o ser à matéria, o que significa que não pode haver matéria semforma. Todavia, pode haver formas sem matéria, pois as formas porserem formas não dependem da matéria. As formas que se realizam namatéria, porém, podem ter seu ser apenas na matéria. Isso se dá por-que estão distantes do primeiro princípio, o ato puro. Mas as formasque estão mais próximas do primeiro princípio são formas subsistentespor si próprias, pois elas simplesmente são sem qualquer matéria. Es-tas são as substâncias que não necessitam da matéria e suas essências ouquididades são, portanto, sua própria forma.

A diferença entre a essência das substâncias simples e a essência dassubstâncias compostas está na noção de que as primeiras têm comoessência apenas a forma, ao passo que as segundas, a composição deforma e matéria. Deste argumento derivam duas consequências: 1) aessência das substâncias compostas não pode ser predicada, como, porexemplo, não é possível afirmar que o homem seja a sua própriaquididade; 2) quanto à essência da substância simples – que é sua for-ma –, predica-se da própria forma, pois não há nada além de sua pró-pria forma, a qual é como se fosse um recipiente de forma. Com esseargumento, Tomás se apóia em Avicena (Met. V, 5, 90a, f ), quandoeste observa que a quididade do simples é o próprio simples, pois nadahá além dele próprio que receba a forma31.

Outra diferença entre as substâncias simples e as compostas está nanoção de que a substância simples não se multiplica, como ocorrecom a substância composta. Os seres compostos recebem suas formas

30 Termo da Metafísica de Aristóteles: “Chamo matéria, por exemplo, o bronze; forma,a estrutura e a configuração formal; sínolo, o que resulta deles, isto é, a estátua.”ARISTÓTELES. Metafísica VII, 3, 1029a 1-5.

31 Mais tarde, Tomás mudou de opinião: só em Deus a essência ou quididade pode serpredicada Dele, porque se identifica com Ele. Em outros termos, o abstrato pode serpredicado do concreto. Cf. Qdl. II, a.4, q.2, a 2.

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na matéria designada (signata) e se multiplicam, o que resulta numagrande diversidade de indivíduos, embora sejam todos da mesma es-pécie. Como a forma nas substâncias simples não é recebida na maté-ria, quanto a elas não se concebem diversos indivíduos da mesma espé-cie, embora haja entre elas tantas espécies quantos forem os indivíduos,afirma Tomás apoiando-se em Avicena (Met. V, 2, 87c, A; IX, 4, 105a-b; De An. V, 3, 24b). Assim, cada ser humano é uma individualidadeque pertence a uma única espécie, mas cada anjo é um indivíduo euma espécie singular, pois a espécie angélica não é como a espécie hu-mana, por ser uma forma subsistente.

Todavia, não há nas substâncias inteligentes uma simplicidade absolu-ta, pois elas não são ato puro, como é Deus. Nelas há, pois, um compostode ato e potência. O que não é próprio do conceito de essência vem defora e se compõe com a essência. A essência só é inteligida em sua totalida-de, isto é, em todas as suas partes. Porém, toda essência pode ser compre-endida independentemente de seu ato de ser. De fato, pode-se inteligir ohomem ou a fênix sem que eles existam na realidade física. O ser é algodiverso da essência, a menos que exista algo cuja essência seja seu pró-prio ser. Neste caso, trata-se de um ser único e primeiro, pois nele nãopode haver qualquer multiplicação, como se multiplica o gênero emespécies; tampouco pode haver nele qualquer diferença, pois em seacrescentando a diferença ao ser único, ele deixaria de ser um ser abso-luto e seria um ser em que alguma forma foi acrescentada. Muito menospoderia ser-lhe acrescentada matéria, pois deixaria de ser subsistentepor si ao se tornar material. Mas, em qualquer outro ente, a forma ouquididade distingue-se do seu ser. Nas inteligências separadas, é neces-sário que haja ser além da forma. Desse modo, pode-se afirmar que suaessência é forma à qual advém o ser.

Tudo o que convém a algo é causado pelos princípios de sua pró-pria natureza ou provém de uma causa externa. No entanto, uma coisanão pode ser causa de si mesma, isto é, não pode produzir-se a si pró-

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pria em seu ser. É necessário, portanto, que as coisas recebam o ser dealgo alheio a elas próprias, pois não é possível que o ser da coisa sejacausado por sua forma, isto é, não é possível que o ser da coisa seja suaprópria causa eficiente. Nesse caso, todas as coisas que recebem seu serde outra não possuem o ser em sua própria natureza. Todavia, comotodas as coisas não são apenas ser porque possuem a causa de seu ser,não é possível ir-se ao infinito nas causas. Assim, é preciso que hajauma causa primeira do ser para todas as coisas, sendo esta causa, elaprópria, apenas ser. Portanto, as substâncias separadas ou inteligênciasque têm seu ser a partir da causa primeira, isto é, Deus, são forma e ser.Como recebem algo externo à sua própria natureza, estão em potênciacom relação àquilo que recebem de fora. Como recebem seu ser deDeus, estão em potência quanto ao ser, uma vez que sua natureza é aforma. Desse modo, a forma-inteligência está em potência quanto aoser que recebe do princípio primeiro. Como o que as inteligênciasrecebem é recebido diretamente de Deus, as inteligências estão em atoe em potência; em ato, porque recebem o ser de Deus; em potência,porque há recepção do ato de ser pela essência.

Forma e matéria encontram-se nas inteligências apenas em sentidoequívoco. Como afirma Averróis, no comentário 14 a De Anima III,tudo o que é semelhante ao que convém à matéria – como o padecer,o receber, o estar sujeito a – cabe às substâncias corpóreas e, em sentidoequívoco, às substâncias inteligentes. A quididade ou essência da inte-ligência é a sua própria inteligência; o seu ser, porquanto recebido deDeus, permite a sua subsistência por si na natureza. Eis porque alguns,como Alberto Magno e Alexandre de Hales, afirmam que tais subs-tâncias são compostas pelo quo est e pelo quod est; outros, comoBoécio32, afirmam que elas são compostas pelo quod est e pelo esse.

32 Cf. SAVIAN FILHO, Juvenal. Metafísica do ser em Boécio. São Paulo: Edições Loyola,2008.

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Aristóteles comparou o intelecto possível (antes de pensar) a umatabuleta em que não há nada escrito33. Conforme Averróis, no comen-tário 5 a De Anima III, é exatamente pela existência do intelecto possível(em potência) que podemos supor a existência das inteligências separadas.Como há potência e ato nas inteligências, há uma multidão delas. Se nãohouvesse potência nelas, não haveria uma multidão delas.

Tomás introduz a hierarquia das substâncias separadas quanto aograu de composição de potência e ato que há nelas. Quanto menor ograu de potência de uma inteligência, mais próxima ela está do princí-pio primeiro, pois há mais ato em sua composição. Assim, Tomásconclui – seguindo Averróis (De Anima III, comm. 5) – que o intelec-to possível está para as formas inteligíveis assim como a matéria-prima– último grau do ser sensível – está para as formas sensíveis. Quandoas substâncias inteligentes contêm mais potência, elas estão mais pró-ximas da matéria. Algumas, muito próximas da realidade material, sãoassociadas à matéria, de modo que desta composição resulta um entecomposto de alma e corpo, embora seu ser seja constituído pela almae não dependa do corpo. A alma humana, que é forma, encontra-senum grau superior a outras formas que contêm um grau maior depotência e que, portanto, estão ainda mais próximas da matéria, postoque seu ser não é sem matéria. Há, desse modo, uma hierarquia deordem e de grau descendente até as primeiras formas dos elementos,os mais próximos da matéria. Estes não possuem qualquer operação edependem da disponibilidade da matéria para receber suas formas.

Tomás se põe também contra a teoria da escola franciscana, quesegue a corrente agostiniana, cujo ilustre representante, o teólogoBoaventura (1217-1274), atribui matéria aos anjos e às almas, emboraafirme tratar-se de matéria espiritual. Para Boaventura há, sem dúvida,uma diferença entre matéria e corporalidade; o anjo, incorporal e pu-

33 ARISTÓTELES. De Anima III, 430a 1.

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ramente espiritual, é, porém, sempre uma criatura e, enquanto tal,deve ser composto de matéria e forma, posto que somente Deus éforma absolutamente pura. Se Boaventura chega a identificar matériacom qualquer forma de potência, de modo que a composição dosanjos seja expressa em termos de potência e ato, isto não satisfaz oespírito escrutinador de Tomás, pois, como este afirma, não é possívelusar como sinônimos dois termos que conceitualmente têm significa-dos distintos34. Como os anjos são incorpóreos, eles são imateriais,embora sejam entes compostos porque são criados por Deus. Nessaperspectiva, Tomás se esforça para demonstrar que a sua composição éde essência e ser35.

II. O Tratado sobre os Anjos

O Tratado sobre os Anjos situa-se na primeira parte da Suma de

Teologia. Essa primeira parte foi escrita entre 1267, quando Tomásainda lecionava em Roma, e 1269, quando voltou a ensinar em Pa-ris36. Obra que consagrou Tomás, a Suma de Teologia é fruto de suaspreocupações pessoais quanto às duas formas do ensino universitário, asaber, a explicação de textos e as questões disputadas, que, segundo ele, nãocorrespondiam a uma apresentação orgânica do saber37. Assim, como afir-ma M.-D. Chenu, Tomás compôs a Suma para realizar um objetivo de

34 Cf. TOMÁS DE AQUINO. Quaestiones de spir. creat., art. 1, cit. in LIBERA;MICHON, op. cit., 1996, p. 28, n. 4.

35 Aristóteles distingue várias formas de composição: entre substância e acidente, entrematéria e forma e entre ato e potência.

36 CHENU, M.-D. Santo Tomás de Aquino e a teologia. Rio de Janeiro: Agir, 1967; cf.NICOLAS, Marie-Joseph. Introduction a la Somme Théologique. In TOMÁS DEAQUINO. Somme Théologique (Summa Theologiae). Paris: Les Éditions du Cerf, 1984,Tome I, p. 22.

37 Cf. CHENU, op. cit., 1967, p. 186.

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tríplice registro: 1) expor de maneira concisa e abreviada o conjunto deuma determinada área científica; 2) ordenar sinteticamente os temas evi-tando fragmentações; e 3) realizar esse propósito de modo pedagógico afim de que a obra fosse aproveitada pelos estudantes38.

As questões 50 a 64 da primeira parte da Suma de Teologia anali-sam os entes que a Escritura sagrada denomina “anjos”. Como já assi-nalado, determinar a existência dos anjos implica em determinar a na-tureza de sua inteligência, ou seja, de seu pensamento e de sua vontade.Assim, à natureza das substâncias inteligentes puras deve ser atribuída asua operação específica, que é o ato de conhecer. Tomás determina anatureza desse ato a partir de seu objeto. Uma vez que o objeto deconhecimento das inteligências puras é um objeto imaterial, elas de-vem necessariamente ser imateriais também. A imaterialidade das in-teligências é exigida pelo lugar que elas ocupam na criação divina.

Nas breves linhas que seguem apresentamos algumas noções es-senciais sobre a natureza dos anjos, tema da questão 50, e sobre o atode intelecção dos anjos, tema da questão 5439.

Logo no primeiro artigo, Tomás assevera que é necessário admitira existência de criaturas incorpóreas. Um efeito é perfeitamente assi-milado à sua causa quando imita o que na causa é o seu princípio;assim, ao calor de um corpo se assemelha o calor que ele produz. Deus,ao produzir a criatura por sua inteligência e vontade, produz a perfei-ção do universo. Tal perfeição exige que haja criaturas que conheçam oprincípio divino, ou seja, que imitem a intelecção divina. Mas, comoo ato de intelecção não pode ser o ato de um corpo, é necessário afir-mar que, para haver perfeição no universo, existem criaturas incorpóreasinteligentes que inteligem o princípio intelectivo.

38 CHENU, M.-D. Introduction a l’étude de Saint Thomas d’Aquin. Paris: J. Vrin,1993, p. 256.

39 TOMÁS DE AQUINO. Somme Théologique (Summa Theologiae). Paris: Les Éditionsdu Cerf, 1984, Tome I, Troisième section, Questions 50-64, p. 511-596.

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As substâncias separadas estão entre Deus e os homens. Se compa-radas aos homens, elas são espirituais; se comparadas a Deus, porém,elas são corpóreas, como afirma João Damasceno. No entanto, não hánada nelas que se compare à natureza da matéria corpórea humana. Aafirmação de João Damasceno é apenas comparativa. Em sentido equí-voco é dito que os anjos estão sempre em movimento, porém nãocomo substâncias corpóreas, pois seu movimento é ato puro deintelecção. A afirmação de Ambrósio de que os anjos são seres circuns-critos por limites (terminus) conforme a sua própria natureza significaque são circunscritos ontologicamente, ou seja, sua essência é o que elaé, e não pode ser outra. Desse modo, não se trata de uma limitaçãoespacial, já que esta é própria da matéria corpórea.

No artigo 2º, Tomás questiona se os anjos são compostos de ma-téria e forma. Sua resposta consiste em refutar o hilemorfismo de IbnGabirol (Avicebron), cuja tese é defendida no livro A Fonte da Vida,como já mencionado. Ibn Gabirol afirma que tudo o que a inteligên-cia distingue deve necessariamente ser distinguido na realidade. A inte-ligência apreende separadamente o que é distinto e o que é semelhanteentre a substância incorpórea e a corpórea. O que distingue a substân-cia incorpórea da corpórea é para a substância incorpórea uma forma.O substrato dessa forma é que é comum, é sua matéria. Por essa razão,Ibn Gabirol afirma que há para tudo uma única matéria universal.Desse modo, a forma da substância incorpórea imprime-se na matériados seres espirituais, assim como a forma da quantidade imprime-sena matéria dos seres corpóreos.

Todavia, como argumenta Tomás, não pode haver uma matériaque seja a mesma para os seres espirituais e para os corpóreos. Se ambasas formas, dos seres incorpóreos e dos seres corpóreos, fossem recebi-das pela matéria, seriam recebidas por partes diferentes da matéria, oque, conforme Aristóteles, é impossível, pois a substância da matéria é

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indivisível, porque não pressupõe quantidade (Física III, 204a 940).Ainda que se aceite a quantidade na matéria dos seres espirituais, essahipótese é impossível porque, por definição, os seres espirituais nãosão dotados de quantidades, que é um atributo dos corpos. Quandoentão se considera a substância inteligente em si mesma, não é possí-vel, de modo algum, conceber nela qualquer matéria. O ato deintelecção é absolutamente imaterial, pois o seu objeto são as formasseparadas da matéria. Tampouco é correto afirmar que o que a inteli-gência distingue é igualmente distinguido na realidade, porque a inte-ligência apreende as coisas de acordo com o seu modo próprio de ser,e não de acordo com o modo de ser das coisas materiais. Estas, inferi-ores à intelecção humana, uma vez inteligidas tornam-se mais simplesdo que a sua própria realidade física, que é múltipla. Quanto às subs-tâncias separadas, elas são superiores à inteligência humana, o que im-pede a esta de apreender a sua realidade enquanto tal, devendo, portan-to, compreendê-la ao modo humano, ou seja, o modo de apreender ascoisas compostas. Igualmente a apreensão de Deus se dá do modocomo se apreendem as coisas compostas. Como é reafirmado no arti-go 3º da questão 50, só podemos chegar ao conhecimento dos seresinteligíveis a partir do conhecimento dos sensíveis.

No De Ente et Essentia, cap. II, Tomás já aprofundara as relaçõesentre gênero, espécie, diferença específica e definição, para esclarecer aconfusão que alguns fizeram entre o ente real e o ente lógico. Assim,quanto ao que concerne às substâncias compostas, o gênero designa asubstância no seu todo, sem que seja determinada a forma que lhe é

40 Essa passagem de Aristóteles refere-se ao ilimitado (tò ápeiron): “o ilimitado não é nemgrandeza nem número, mas substância por si mesmo, e não atributo; é indivisível, poiso divisível é grandeza e número”. Para Aristóteles, o ilimitado (tò ápeiron), tal como amatéria e a potência, é indeterminado. Por definição, o ilimitado, a matéria e a potêncianão são passíveis de conhecimento; conhece-se por meio do limite (tò péras), do ato e daforma. A matéria, portanto, não se conhece; é a forma nela impressa que se conhece.

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própria. Desse modo, o termo “animal” aplicado ao ser humano nãoindica apenas a sua parte material, mas a substância do homem en-quanto ser capaz de sensação e de movimento, prescindindo da formaracional que lhe é própria. O gênero está relacionado à parte material,embora não deva ser confundido com a matéria. No caso da diferençaespecífica – o termo “racional” –, ela é deduzida diretamente da forma,prescindindo em primeira instância da referência à uma matéria deter-minada, isto é, no que ela tem de próprio e de distinto em relação àsoutras coisas. A definição – “animal racional”, ou seja, a espécie –,compreende a matéria designada do gênero e a forma designada dadiferença específica. O gênero, a diferença específica e a espécie relaci-onam-se respectivamente à matéria, à forma e ao composto (sínolo)embora não se identifiquem respectivamente, pois cada um deles de-signa o todo (a substância) sob um determinado aspecto.

No Tratado sobre os Anjos, Tomás retoma essa explicação. A dife-rença constitui a espécie, e uma coisa é constituída na espécie a partirdo grau que ela ocupa na escala dos seres. Nas coisas materiais, o quedetermina o grau que a coisa ocupa na escala dos seres é a forma, dife-rentemente daquilo que é determinado, que é a matéria. O gênero dealgo se determina a partir de um princípio diverso daquele que deter-mina a diferença. Nos entes espirituais, gênero e diferença não sãodeduzidos de realidades diferentes, mas de uma única realidade. Odeterminante é o mesmo que o determinado e qualquer distinção pro-cede de nossa maneira de considerar. Considerar algo de “maneiraindeterminada”, isto é, considerar o que a coisa tem em comum comas outras coisas é considerar a coisa no seu gênero; considerá-la de “ma-neira determinada” é considerá-la na sua diferença.

Tomás critica o argumento de Ibn Gabirol em que a inteligênciatem o mesmo modo de recepção das formas que a matéria. Ora, amatéria recebe a forma para ser constituída enquanto espécie. A inteli-gência não recebe a forma desse modo, pois não se constitui enquanto

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espécie. A forma inteligível está na inteligência de acordo com o queconstitui a forma como forma, pois é desse modo que a inteligênciaconhece a forma, sendo este modo de recepção próprio apenas da subs-tância incorpórea.

A forma é ato e o que é forma é ato puro. No anjo há apenasforma, e não matéria. Se não há composto de forma e matéria, há,contudo, composição de ato e potência. Nas substâncias materiais hácomposição de forma e matéria e composição de ato e potência. For-ma e matéria constituem uma natureza composta que não é o seu ser,mas este é o ato de tal natureza composta. Como nos seres incorpóreosnão há matéria e a forma neles subsiste independentemente da maté-ria, a forma nas substâncias separadas está em relação de potência paracom o ato, por referência ao ser (esse). Assim, Tomás determina que acomposição de potência e ato é a composição da substância separada.A forma subsistente no anjo, ou substância separada, faz dele “o queele é”; quanto ao seu ser, este confere ser à forma subsistente, isto é, éno anjo aquilo “pelo qual ele é”. Mas, como o ser das criaturas não épura e simplesmente subsistente, elas são finitas.

As substâncias materiais são finitas em relação a suas formas por-que são limitadas pela matéria que as recebe. Em relação à matéria,porém, são infinitas, já que podem realizar-se indefinidamente, cadaqual numa multidão de seres corpóreos que se distinguem entre si emvirtude da matéria, embora seja sempre a mesma forma, limitada pelamatéria, que se realiza a cada vez.

As substâncias imateriais, por sua vez, são finitas quanto ao seu ser,porque são criadas. Em relação a suas formas, porém, elas são infinitas,porque suas formas são postas no ser cada qual de uma só vez e serealizam de uma única vez. A multidão de realizações de uma mesmaforma impossibilita a sua plena e perfeita realização. Não podendorealizar-se indefinidamente, a forma é de certo modo infinita porquerealiza-se inteiramente, sem limites. Todavia, em si mesma a forma é

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limitada àquilo que ela é, isto é, àquilo que a distingue das outrasformas. Dessa maneira, Tomás substitui a composição de forma ematéria nos anjos, característica do hilemorfismo, pela composição deato e potência. Embora as inteligências sejam destituídas de matéria,elas são criadas por Deus, ato puro, cujo ser é o mesmo que sua essên-cia. As inteligências, porém, recebem o ato de ser de Deus; assim elastêm o ser, mas não são o ser.

III. De substantiis separatis seu de angelorum naturaopusculum

Fruto maduro de uma reflexão pessoal, o Opúsculo sobre as Subs-

tâncias Separadas ou sobre a Natureza dos Anjos parece ter sido com-posto durante os últimos anos de vida de Tomás. Os especialistas situ-am o início de sua composição em 1271, quando o Doutor Angélicoainda se encontrava em Paris. As provas para estabelecer a data de suacomposição originam-se do próprio tratado. Tomás cita duas vezes otratado de Proclo, Elementos de Teologia, que foi traduzido para o la-tim em 1268 pelo dominicano Guilherme de Moerbecke. Sabe-seque Tomás não conhecia o grego, mas a obra de Proclo foi objetoespecial de estudo para o seu comentário sobre o Liber de Causis, gra-ças ao que, ele identificou esta obra como sendo apenas um compên-dio dos Elementos de Teologia. H.-D. Saffrey, estudioso do comentá-rio de Tomás sobre o Liber de Causis, observa que

O fato de que, em toda a sua obra, Tomás tenha utilizado aElementatio apenas nestes dois escritos, no De substantiis separatis eno comentário ao Liber, leva a crer que estes são escritos contempo-râneos [...] Sem dúvida, Tomás redigiu o De substantiis durante otempo em que estudava a Elementatio para escrever o Commento41.

41 SAFFREY, H. D. Sancti Thomae de Aquino super Librum de Causis Expositio. Fribourg:Société Philosophique; Louvain: Éditions E. Nauwelaerts, 1954, p. xxxv. A identifica-ção feita por Tomás está registrada no Prólogo do Comentário.

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A essas provas, acrescente-se a argumentação, o uso de certas ex-

pressões linguísticas e a maturidade da doutrina42. Embora incomple-

to (acredita-se que a morte de Tomás tenha interrompido a sua con-

clusão), o Opúsculo sobre as Substâncias Separadas responde principal-

mente às motivações internas de seu pensamento. Deve-se, contudo,

levar também em conta o fato de que Tomás desenvolve os seus argu-

mentos estimulado pelas últimas traduções para o latim de textos de

filosofia grega, além da premente necessidade de responder às questões

levantadas na vida universitária, muito abalada pela condenação das

teses dos “averroístas latinos” em 10 de dezembro de 1270.

No Prólogo desse opúsculo, Tomás anuncia o objeto de sua in-

vestigação, a saber, os anjos na sua dignidade e excelência. Acrescenta

que não basta investigá-los com os dados da fé cristã, mas é preciso

considerar os frutos da “conjectura humana”. Assim, apresenta uma

história do pensamento sobre o tema, além de uma hermenêutica pró-

pria das teorias formuladas pelos filósofos que empreenderam o estu-

do das substâncias separadas. Na exposição, fica claro que a intenção

de Tomás é a conciliação da razão com a fé no estudo do mundo

supralunar, esse mundo intermediário entre Deus e os homens.

Como assinalado, o interesse de Tomás pelas substâncias separadas

já havia sido despertado na época da redação do De Ente et Essentia.

Na condição de tema de reflexão filosófica, o estudo das substâncias

separadas era, na época, considerado parte do estudo da metafísica,

tanto antes do ingresso no Ocidente latino das obras filosóficas dos

árabes e de Aristóteles, quanto depois. As doutrinas relativas ao tema

tinham por base, entre outros textos, o Liber de Causis, que trata da

42 Cf. LESCOE, F. J. De substantiis separatis: Title and Date. In St. Thomas Aquinas1274-1974. Commemorative Studies. Toronto, 1974, p. 57-66, apud LOBATO, inTOMÁS DE AQUINO, op. cit., 1989, p. 158.

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causa primeira, da inteligência e da alma43. O Liber de Causis era con-siderado obra de Aristóteles até que, em 1268, Tomás o identificoucomo um resumo dos Elementos de Teologia, de Proclo. Com o in-gresso das obras autênticas de Aristóteles na cristandade, o interessepelas substâncias separadas passa a ser avalizado pelo que afirma oEstagirita em De Anima III, 7, 431b 19: “Se é possível ou não o inte-lecto pensar alguns objetos separados, sem ser ele mesmo separado,isto deve ser investigado posteriormente”44.

De início, Tomás estava convencido de que Aristóteles deixara aquestão inconclusa, como ele ressalta em algumas obras45, embora afir-me que a doutrina de Aristóteles não poderia dar conta de provar queo intelecto pudesse atingir tal conhecimento.

A solução de Tomás para a questão das substâncias separadas está nadoutrina da alma enquanto forma do corpo. Conhece-se somente a partirdas substâncias sensíveis e, ao partir do sensível, é possível conhecer-seapenas se há (an sit) substâncias separadas, isto é, que elas simplesmentesão. Em seguida, é possível conhecer-se o que elas não são a partir de seuefeito. Tomás observa que não nos é dado conhecer suas causas em virtudede sua excelência; podemos apenas conhecer a existência de tais causas, masnunca a sua natureza46. Contudo, no comentário à Metafísica, Tomás es-creve que, “[...] segundo a opinião de Aristóteles, o intelecto humano

43 SAFFREY, H. D. L’état actuel des recherches sur le Liber de Causis comme source dela métaphysique au Moyen Âge. In Die Metaphysik im Mittelalter (MiscellaneaMediaevalia, 2). Berlim, 1963, p. 267-281, apud LOBATO, in TOMÁS DEAQUINO, op. cit., 1989, p. 159.

44 ARISTÓTELES. De Anima III, 7, 431b 19. Apresentação, tradução e notas deMaria Cecília Gomes dos Reis. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 120.

45 TOMÁS DE AQUINO. Sententia Libri De Anima III, 7, 431b 19, lect. 12, n. 785;De Veritate, quest. 18 (obj. 8; ad. 8). Apud LOBATO, op. cit., 1989, p. 160.

46 TOMÁS DE AQUINO. QD De Anima, a. 16. Apud LOBATO, op. cit., 1989,p. 160.

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pode chegar ao conhecimento das substâncias simples, o que foi deixadosub dubio no livro III do De Anima”47.

Tomás empreende o seu projeto – escrever sobre as substânciasseparadas – ao apresentar inicialmente a via da razão por meio de umasíntese do que é encontrado nos sistemas filosóficos, para em seguidaapresentar a doutrina cristã segundo a Revelação. O De Substantiis

Separatis pretende “começar pelo que a conjectura humana opinousobre os anjos desde os tempos antigos, de modo que, se encontrar-mos algo consoante com a fé, o tomemos e refutemos o que é incom-patível com a doutrina católica”48. Tomás quer elaborar umaangelologia recorrendo à reflexão filosófica, mas que tenha como cri-tério a fé cristã e a doutrina católica.

O ser humano necessita conhecer a totalidade do universo criadopor Deus, a fim de evitar os erros sobre as coisas divinas. Desse modo,“a consideração das criaturas divinas pertence ao ensino da fé cristã”49.O Doutor Angélico já havia apresentado, enquanto teólogo, o Tratado

sobre os Anjos na Suma de Teologia e dissertado sobre eles em outrasobras, como na Suma Contra os Gentios50, no De Spiritualibus

Creaturis51, nos Quodlibeta52, no De Veritate53 e no De Potentia54.

47 TOMÁS DE AQUINO. In Metaphysica IX, lect. 11, n. 1916. Apud LOBATO, op.cit., 1989, p. 160.

48 TOMÁS DE AQUINO. De Substantiis Separatis, cap. 1, n. 1.

49 TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios II, 2.

50 TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios II, c. 46-55; 91-101; III, c. 41-45;78-80; 103-107, 110; IV, c. 90-95. Apud LOBATO, op. cit., 1989, p. 161.

51 TOMÁS DE AQUINO. QD De spiritualibus creaturis, a. 5-8. Apud LOBATO, op.cit., 1989, p. 161.

52 TOMÁS DE AQUINO. Quest. Quodl., I, 4-5; II, 3-4; III, a. 6-7; VI, a. 2-3; VII, a.1-3; IX, a. 4, 17; XI, a. 4. Apud LOBATO, op. cit., 1989, p. 161.

53 TOMÁS DE AQUINO. QD De Veritate, q. 7-9. Apud LOBATO, op. cit., 1989, p. 161.

54 TOMÁS DE AQUINO. QD De Potentia, 3, a. 18-19. Apud LOBATO, op. cit., p. 161.

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Na argumentação do Opúsculo sobre as Substâncias Separadas, afonte que Tomás segue mais de perto é o ensinamento de Aristóteles.Contudo, embora ele adote a defesa das teorias aristotélicas contra ainterpretação dos averroístas, no que concerne ao conhecimento divi-no dos singulares, ao assumir que as teses do Estagirita são insuficien-tes, Tomás concorda com algumas posições neoplatônicas. As conde-nações do bispo Estêvão Tempier em 1270 e, mais tarde (Tomás jámorto), em 1277, visaram acima de tudo às teses sobre a mediação dassubstâncias separadas no processo de emanações e à doutrina da im-possibilidade do conhecimento dos singulares por parte de Deus, dou-trinas cujas fontes principais são os filósofos árabes, sobretudo Avicenae Averróis. Tomás propõe-se a refutar essas doutrinas expondo a ori-gem das substâncias separadas e o seu papel na organização do mundo.Assim, ao expor as posições dos dois mencionados filósofos da falsafa,o Doutor Angélico mostra a inconsistência de suas teorias. Faz uso dosElementos de Teologia (a obra é citada duas vezes: § 202; 206) e doLiber de Causis. Na segunda parte do tratado, faz uso das obras deDionísio, tido como autor cristão, que purificou a teoria emanantistaneoplatônica. O uso dessas obras, porém, constitui presença doneoplatonismo no De substantiis separatis.

Tomás recorre também aos autores cristãos Agostinho, Gregório,Basílio, Orígenes, Nemésio e João Damasceno55. No entanto, ele visasobretudo combater a tese a respeito do hilemorfismo universal apre-sentada por Ibn Gabirol (Avicebron) no Fons Vitae, embora já tenhacriticado essa doutrina em Suma de Teologia I, 52, 2, e, anteriormente,no De Ente et Essentia. No contexto da época, era preciso refutar atese dos agostinianos, favorável à teoria de Ibn Gabirol. Desse modo,o problema do ser, no que concerne à matéria e à questão da possibili-dade da imaterialidade das substâncias finitas, assume uma posição

55 Cf. LOBATO, op. cit., 1989, p. 165.

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central na sua metafísica. Para Tomás, a compreensão do ser implicauma adequada compreensão da matéria e a sua relação com a forma ea potência. Já no Tratado sobre os Anjos, a doutrina do hilemorfismouniversal teve grande destaque porque a sua refutação era necessária,uma vez que essa refutação representaria a conquista da verdade nointerior da metafísica.

IV. Inteligências separadas e corpos celestes

Tomás de Aquino propõe-se a conciliar as filosofias grega e árabeao mesmo tempo em que quer conciliar essas filosofias com as doutri-nas dos doutores cristãos, o que não deixa de ser uma tarefa árdua, queo faz deslizar de uma posição a outra.

Em seu comentário ao segundo livro das Sentenças56, Tomás quissalvaguardar os ensinamentos dos Padres da Igreja, que haviam afirma-do que os céus, isto é, as esferas celestes portadoras dos astros, nãoeram animados. Tomás declara, seguindo os Padres, que “é possívelque o motor próximo do céu seja uma certa inteligência criada”. Econtinua:

Os filósofos supuseram que diferentes motores correspondemaos diversos movimentos e aos diversos móveis; assim, demons-traram e admitiram o número das inteligências motrizes segun-do o número dos movimentos e dos móveis. A cada orbe desti-naram dois motores; um motor conjunto, que denominaram“alma da esfera”, e um motor separado, que denominaram “in-teligência”. A razão desta suposição é a seguinte: segundo essesfilósofos, a inteligência possui formas universais que não con-vêm à direção imediata do movimento celeste em suas diversasrevoluções e à produção de coisas cujas causas são os movimen-tos dos céus; é necessário, portanto, que exista um motor onde

56 TOMÁS DE AQUINO. Scriptum in IIm librum Sententiarum. Dist. XIV, quaest. I,art. III: “Utrum motus caeli sit ab intelligentia”, cit. in DUHEM, op. cit., 1954, p.539, n. 2.

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residem as formas particularizadas próprias para dirigir o movi-mento; é este motor que eles nomeiam “alma do orbe”. § Po-rém, tal suposição é, em parte, herética, e, em parte, sustentadacatolicamente. § Com efeito, os filósofos afirmam que as coisasemanam de Deus e são causadas por Ele, seguindo uma certaordem. A causa primeira produz imediatamente a primeira in-teligência; desta emana a alma do primeiro orbe e a sua subs-tância. Por consequência, esta alma, ou forma, pode ser nomea-da motor próximo de seu orbe, pois ela lhe confere ser a títulode causa que lhe é apropriada. § Nossa fé não pode aceitar isso,pois afirma, com efeito, que somente Deus é o Criador. Porconseguinte, aos anjos que movem os céus de maneira imediata,podemos dar o nome de motores, mas não de formas substanci-ais ou de almas, pois, destes anjos, os céus recebem apenas omovimento, não recebem a sua existência. § Todavia, podemosaceitar que se diga: os anjos mais elevados, aqueles que possuemas formas mais universais, são os motores distanciados (motoresremoti), anjos separados; e aqueles inferiores, os que possuem asformas mais particularizadas, são motores próximos. É por issoque Avicena afirmou: os motores que, para os filósofos, são inte-ligências, são os que a Lei nomeia anjos superiores; as almas dosorbes, entretanto, são o que a religião nomeia anjos inferioresou anjos ministros (...) § Em seu livro De Substantia Orbis,Averróis diz que o corpo celeste não possui alma vegetativa, por-que está isento de geração e de corrupção. Por outro lado, nãosão coisas das quais o motor dos céus retira a sua ciência; elepossui, a modo de dizer, uma ciência ativa; por conseguinte, océu não tem necessidade alguma de alma sensitiva. Logo, não éno mesmo sentido que os filósofos falam de alma do céu e dealma do homem57.

Embora rejeite a teoria das emanações, porque contrária ao dogmacristão, Tomás parece aceitar, com menos severidade, a teoria da ani-mação dos céus, ou seja, dá-lhe uma interpretação conciliadora. Nosegundo capítulo do De substantiis separatis, ele desenvolve a seguinteargumentação.

57 TOMÁS DE AQUINO, cit. in ibid., p. 539-540.

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O primeiro movente imóvel é um bem desejável. Na sucessão doscéus, o primeiro movente depois do movente imóvel move-se a sipróprio, mas move-se por desejo intelectual pelo movente imóvel ouprimeiro motor. Desse modo, o primeiro movente é dotado de desejoe de inteligência. Mas, como tudo o que se move é corpo, resulta queo primeiro movente é um corpo animado por uma alma inteligente.O primeiro movente, que também é o primeiro céu, não é o únicocorpo movido por um movimento eterno, pois o mesmo ocorre comtodos os orbes inferiores dos corpos celestes, isto é, cada um deles éanimado por sua própria alma, e cada um deles, com seu movimento,tende a seu próprio bem desejável. Desse modo, na ordem das subs-tâncias separadas, cada corpo celeste é animado por uma alma indivi-dual e cada um deles está voltado para o seu objeto de desejo, que é ofim (télos) de seu movimento. Mas, além de algumas substâncias inte-lectuais que estão unidas aos corpos celestes, há também algumas subs-tâncias separadas que não estão absolutamente unidas a qualquer cor-po. Aristóteles procurou definir o número das substâncias ligadas aum corpo pelo número dos movimentos celestes58. Outros, comoAvicena, procuraram determinar o número das substâncias separadaspelo número dos planetas e dos orbes celestes acima deles, que são aesfera das estrelas fixas e a esfera sem estrelas. Tomás observa que pare-ce haver muitos movimentos coordenados ao movimento de uma únicaestrela. Mas todos os outros corpos celestes estão coordenados pelomovimento do céu supremo, sob o qual todos efetuam as suas própri-as revoluções; do mesmo modo, sob uma primeira substância separa-da estão dispostas em ordem todas as outras, e, sob a alma do primeiro

58 Para Aristóteles, as substâncias do mundo sublunar, sujeitas à geração e à corrupção,estão submetidas a uma existência em ato e a uma existência em potência, ou em outrostermos, são compostas de forma e de matéria. Quanto às substâncias eternas, elas são atopuro sem qualquer potencialidade. Isentas de matéria, elas são formas puras e inteligen-tes. Na concepção aristotélica, as inteligências, que são substâncias eternas, são os moto-res das esferas celestes, que são seres divinos.

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céu, estão dispostas todas as outras almas celestes. Ao seguir a doutrinado Filósofo, Tomás observa que é possível afirmar que, entre os cor-pos celestes e Deus, há apenas uma dupla hierarquia de substânciasinteligentes: a ordem hierárquica das substâncias separadas, que são osfins aos quais tendem os movimentos celestes, e a ordem hierárquicadas almas dos orbes, as quais os movem por desejo intelectual59.

Depois de rejeitar a opinião de Ibn Gabirol, que atribui matéria àssubstâncias separadas, Tomás refuta a teoria das emanações de Avicena,pois não só as substâncias separadas são eternas, mas ainda a existênciade cada uma delas não necessita de qualquer causa. E se uma substânciaé desprovida de matéria, ela não pode ter sido produzida, o que signi-fica que a sua existência não pode ter qualquer causa. É preciso que talsubstância seja necessária e eterna.

Esse argumento, válido no que concerne à geração, não diz respei-to à criação, pois a geração consiste em por em ato uma forma que jáestá em potência numa matéria pré-existente. Não há, porém, geraçãoonde não há matéria e não há geração onde a forma preenche toda apotência da matéria, como é o caso dos corpos celestes. Todavia, em-bora não sejam gerados, os corpos celestes e as substâncias separadas dequalquer matéria podem ter um outro ser como causa de sua existên-cia, uma vez que são criados.

Com esse argumento, Tomás se põe contra a teoria das emanaçõesde Avicena, que postula a existência de uma primeira inteligência sim-ples e una, emanada do primeiro Agente, em que se aplica o princípioex uno non provenit nisi unum, “do um não pode provir senão o um”.Assim, para Avicena, do primeiro princípio, absolutamente simples euno, emana uma inteligência de igual natureza que, embora, una e

59 TOMÁS DE AQUINO. De substantiis separatis, cap. II, § 18; 19; 20; 21; 22. PierreDuhem observa que Tomás atribui ao próprio Aristóteles a interpretação que Avicenafaz do pensamento aristotélico em sua própria Metafísica, cf. DUHEM, op. cit., 1954,p. 542.

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simples, está mais distante da simplicidade e da unicidade do primeiroprincípio porque não é seu próprio ser, mas é uma substância que temo ser. Na condição de emanada do princípio primeiro, a primeira inte-ligência não é causa de sua própria existência e, portanto, possui umaexistência distinta de sua essência. Desta primeira inteligência emana omúltiplo, ou seja, a segunda inteligência, a alma do primeiro céu e oprimeiro corpo celeste. Contudo, há uma diferença nessas emanaçõesno que se refere ao conhecimento: a primeira inteligência, quandovoltada para o princípio primeiro, conhece-se como simples e una;nesse ato de intelecção emana a segunda inteligência. Quando voltadapara si mesma, conhece-se a si própria e sabe-se em ato. Neste segundomomento de intelecção, emana a alma do primeiro céu. E, ao conhe-cer-se, sabe que contém a potencialidade e emana o primeiro corpoceleste. Nessa ordem, são emanadas as inteligências, os céus e os cor-pos celestes até o último deles, a Lua. Tal é a doutrina também expostano Livro das Causas.

Tomás rejeita essa doutrina, que atribui o poder de criação às inte-ligências, como sendo contrária à fé cristã. É impossível que as subs-tâncias incorpóreas retirem delas próprias o seu ser, porque pertenceapenas ao primeiro Agente a virtude de produzir um efeito na ausênciade qualquer possibilidade pré-existente. A criação divina é ex nihilo60.

Com isso, Tomás confirma o axioma de Averróis de que a verdadedemonstrada pela razão não pode ser contrária à verdade da fé61.

60 TOMÁS DE AQUINO. De substantiis separatis, cap. X.

61 AVERRÓIS. Discurso Decisivo (Fasl al-Maqal) §18. Tradução (portuguesa) direta doárabe de Aida Hanania Ramezà. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 21. TOMÁS DEAQUINO, Suma Contra os Gentios 1, 7.

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LA PRUDENCIA POLÍTICAARQUITECTÓNICA - LOS MODELOSDE PLATÓN, ARISTÓTELES Y TOMAS

DE AQUINO

Prof. Dr. José Ricardo Pierpauli *

Abstract: El presente estudio tiene por finalidad examinar eldesarrollo evolutivo del concepto de prudencia, en los modelos dePlatón, de Aristóteles y de Tomás de Aquino. Se trata de demostrar dequé modo fue ampliándose progresivamente el marco de referencia yel significado de dicho concepto, según que vario el objeto de la Teologíaen los respectivos autores. Si bien Platón y Aristóteles pertenecen almundo antiguo, el Filósofo junto con Tomás de Aquino puedenreunirse dentro de un paradigma nuevo, a propósito de la virtud de laprudencia, pues en sus respectivos modelos, la phronesis se extendiódesde la dimensión especulativa a la práctica, sin renunciar por ello a sufuerte impronta teológica. Puede decirse que en los tres modelos resultapor completo inadmisible la concepción de la virtud de la Prudenciacomo modelo radicalmente autónomo respecto, ni de la Metafísica,ni de la Teología.

Palabras claves: Phronesis, theoria, praxis, justicia, autonomía

* Investigador Independiente de CONICET-Argentina y Profesor Adjunto Ordinariode Teoría del Estado en la Facultad de Derecho de la Universidad de Buenos Aires.

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JOSÉ RICARDO PIERPAULI

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Introducción

Platón, Aristóteles y Tomás de Aquino pertenecen a dos momen-tos diferentes en la Historia de la Filosofía y en el desarrollo sistemáti-co de la misma. Platón y Aristóteles, ambos adscriptos al pensamientoantiguo, desarrollaron progresivamente, un modelo cuyo marco defondo fue un cosmos más o menos divinizado. Si para Platón el BienSupremo, del que todas las ideas dependen por modo de generación,era el primer analogante de todos los bienes, en cambio para su discí-pulo Aristóteles, antes que el Bien, lo fue el Ser. Ambos buscaron lomismo, a saber, la comprensión filosófica de todo lo real. No obstante,siendo diferentes sus respectivas respuestas, finalmente convergen enun punto importante. Todas las cosas, la multiplicidad perceptible einteligible, encuentran su explicación última, ya sea en el Bien o en elSer. Sus miradas se orientan inequívocamente hacia la trascendencia.El saber por excelencia es pues, el saber acerca de las cosas más altas,pues solo a partir de esa perspectiva pueden conocerse, en sentidoriguroso, todas y cada una de las cosas que nos rodean. Platón yAristóteles son las figuras centrales del mismo paradigma de la Filosofía,aquel caracterizado por, en primer lugar, la subordinación de la Políti-ca a la Metafísica y esta a la Teología Natural. En segundo lugar, Platóny Aristóteles operaron una progresiva distinción entre Política y Teología,entre Política y Metafísica. Dicho proceso fue progresivo. MientrasPlatón exigió del filósofo una clave teológica, como es la comprensióndel Bien más alto, para cumplir acabadamente su menester, Aristóteles,mirando el ser de cada cosa, prefirió articular todo lo real mediante unascenso semejante al platónico, pero firmemente apoyado en aquelloque Platón había puesto entre paréntesis, a saber, la entidad de cadacosa perceptible. El cosmos platónico fue divino a priori, mientras queel aristotélico, solo a posteriori. No por ello fue Aristóteles menospiadoso que Platón. Este partió de una y la misma intuición que sudiscípulo a saber, la existencia de la divinidad. Aristóteles, por su par-

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te, al ascender desde la composición ontológica de cada cosa, acabópostulando la divinidad al modo de una conclusión inevitable de larazón. Mientras que la Teología Natural es el presupuestoincuestionable de la Filosofía platónica, esa Teología fue en el modeloaristotélico, el final del camino filosófico.

El caso de Tomás de Aquino es en buena medida diferente. Enefecto, el Aquinate es la figura central de un nuevo paradigma caracte-rizado, como el primero, por la ubicación de la Política en el interiorde una totalidad onto-teológica. Sin embargo, la diferencia se tornanotoria desde que el cosmos pensado por Tomás es ya un mundo en-tendido como Creación, o bien, a nuestros fines, un mundo sometidoa la Lex Divina. El primer analogante, sea de todos los bienes, o biendel ser de cada cosa, es ahora un Dios, pero no el dios que es postuladoo conclusión de la razón, sino un Dios vivo y omnipotente que sereveló a los hombres como el Ser y el Bien por excelencia. Se trata deun Dios vivo, de algún modo, filosóficamente incomprensible para larazón humana, a no ser que la misma estuviera auxiliada por la Fereligiosa en ese mismo Dios. Si Platón y Aristóteles encontraban, en laestructura ontológica de cada cosa, el saber de orientación para la vidamoral y política, Tomás lo encuentra en las operaciones de Dios, quees el autor de aquellas estructuras ontológicas. La participación platónicay aristotélica explica ahora, en clave metafísica, el orden y la economíade la Creación. A diferencia de los modelos de Platón y de Aristóteles,el de Tomás encuentra en el saber acerca de Dios, el saber por excelenciaen el que comienza y termina la filosofía. En cuanto toca a la phronesis

platónica y aristotélica y a la prudentia de Tomás, debe decirse que,considerando el momento histórico en el qual cada uno de los autoresse inscribe, el desarrollo de la doctrina acerca de esa virtud, fuedesarrollándose de modo progresivo, hasta alcanzar en el Aquinate supunto culminante. Es a propósito de este importante asunto que laordenación de nuestros tres autores debe acomodarse según un nuevocriterio. En efecto, ahora, desde la perspectiva de la virtud de la

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prudencia, Platón pertenece a un momento diferenciado respecto deaquel otro al que pertenecen Aristóteles y Tomás de Aquino.

La prudencia fue más sabiduría que praxis política en Platón,mientras que en Aristóteles y en Tomás fue principalmente praxis, másque sabiduría propiamente dicha. Formulada esta distinción, las cosasdeben reordenarse nuevamente. Ahora, la diferencia se pone demanifiesto entre Aristóteles y Tomás de Aquino. Mientras que laphronesis aristotélica fue más virtud práctica, aunque iluminada por lasabiduría auténtica, la prudentia del Aquinate, siguiendo en esto a sumaestro Alberto Magno y este a su vez, deudor de la doctrina estoica,fue principalmente lo que podríamos denominar una virtud media1,

pues tiene tanto de intelectual (dianoética) como de práctica. Laprudentia del Aquinate es finalmente bien distinta de la aristotélica yde la platónica, desde que el hombre prudente, al modo estoico2, esaquel que sabe cumplir su papel de mediador entre Dios y los hombres,entre los postulados de la Fe y el imperio de las circunstancias, a fin deconservar y conducir la parte de la Creación confiada a los hombres,hacia su más acabada perfección en el Dios Creador.

Objeto pues del presente estudio será reconstruir esa línea deevolución progresiva del concepto de prudencia que, partiendo desdePlatón, llega hasta Tomás de Aquino, a través de Aristóteles. En rigor,no fue Tomás un receptor directo de la doctrina del Filósofo, sino através de Alberto Magno. Solo vistas las cosas de ese modo, por lodemás aun poco frecuente, podrá comprenderse y justificarse la pre-sencia de elementos estoicos en la formulación del Aquinate. Con todo,debe aclararse, que el tono del presente examen, no es de carácter uni-

1 Cfr. ALBERTUS MAGNUS, Super ethica, ed. Colon., T. XIV-II, Aschendorff,Muenster, 1987, p. 394-36.

2 Cfr. WIEDMANN-BILLER. Klugheit, en: Historisches Woerterbuch der Philosophie.Darmstadt: ed. Ritter-Gruender, T. 4, 1976, p. 858.

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lateralmente histórico- filosófico, sino sistemático. La tesis central pudeenunciarse de este modo: El modelo de la virtud de la prudencia es

especialmente útil para comprender de qué modo se articulan las exigencias

de la Teología Sobrenatural y de la Metafísica en el marco de la praxis

política. No hay pues autonomía al modo kantiano, entre esos saberes.La reconstrucción de la doctrina de la prudencia en cada uno de losautores elegidos, ofrece una prueba en favor de la ruptura operada porla modernidad respecto de los paradigmas antiguo y medieval.

1 La Phronesis platónica como problema retórico

Dos son las perspectivas desde las cuales se puede examinar el sig-nificado y el alcance del concepto de phronesis en Platón. Desde elprimer punto de vista corresponde describir el significado de la phronesis

en el marco general de la Filosofía de Platón y de modo especial, en sudimensión especulativa. En cambio, desde el segundo punto de vista,debe observarse la phronesis en su relación con la praxis políticapropiamente dicha. Esta dimensión rigurosamente práctica de la prudencia

no alcanzó en Platón su completo desarrollo. Dichas dimensiones fueronadquiriendo, en los modelos de Aristóteles, de Alberto Magno y deTomás de Aquino respectivamente, un doble crecimiento. En primerlugar, fueron ampliándose notablemente las conexiones de la phronesis

con las restantes virtudes intelectuales (Aristóteles) y, en segundo lu-gar, ese concepto experimentó una notable transformación, desde querecibió su más radical influencia desde la Teología Sobrenatural (AlbertoMagno y Tomás de Aquino). Los matices diferenciadores de ambasdimensiones de la prudencia platónica podrán comprenderse aun mejor,si se tiene en cuenta que la politike episteme platónica es fuertementeonto-teológica. En efecto, la vida política, entendida como la enten-demos vulgarmente, vale decir, solo como praxis, es, según Platón,principalmente sabiduría, pero un tipo de sabiduría acerca de las cosasmás elevadas, sin la cual, ni puede conocerse la Justicia en sí, que es

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regla y medida de las cosas humanamente justas, ni pude asumirse lacondición de buen ciudadano, que es presupuesto de la constituciónde la buena polis. Si la formulación platónica pudiera leerse en clavearistotélica, debiera decirse que, en punto a la prudencia, el polites debeser ante todo, virtuoso. En cambio si pudiéramos leer aquella doctrinaen clave teológica, tal como ocurre en los casos de Alberto Magno y deTomas de Aquino, entonces el prerrequisito del buen ciudadano no esotro que la orientación definitiva y sin vacilaciones hacia la auténticasantidad. Retornando a Platón, debe retornarse a la idea siguiente, asaber, que su phronesis estuvo más identificada con el saber que con laorientación y dirección de la praxis política. De hecho, para Platón lapolitike episteme (fuertemente impregnada de Metafísica y de Teología,aun a riesgo de la debida diferenciación) y phronesis resultan, como severá, conceptos equivalentes. Prudente es ante todo, quien sabe aquello

que debe saberse3.

Así pues, la segunda de las perspectivas enunciadas se torna clara-mente subsidiaria de la primera, vale decir, la orientación y direcciónde la praxis política depende sin más, del conocimiento que se poseaacerca de las cosas más altas, entre las que se encuentra la Justicia, en susignificado onto- teológico. La Justicia que emerge del Bien Supremo,es la clave por excelencia a partir de la cual puede interpretarse yconstituirse correctamente el orden político. Ahora bien, una cosa essaber acerca de las cosas políticas y otra, en parte diferente, es operarsobre la realidad política, a fin de tornarla mejor y más justa. Es aquídonde Platón desarrolla el segundo sentido de su phronesis, comoorientación y dirección de la vida política. Digo que este segundo sen-tido es subsidiario del primero pues para Platón, se trata fundamental-mente de educar el alma del polites, a fin de que el también posea,tanto la orientación en el camino filosófico, como la posibilidad de

3 Cfr. PLATON. Charmides. Werke in acht Baenden. Grieschisch und Deutsch. T. I,Darmstadt: ed. G. Eigler, 1977, 166-c, p. 320.

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contemplar el Bien en sí. Desde este segundo punto de vista, puededecirse que la phronesis platónica es fundamentalmente paideia. Meocuparé en primer lugar, de la phronesis como Filosofía, para luegodiscernir aquello que en buena medida estaba tan solo implícito enPlatón y que recién en nuestros días, Leo Strauss puso en evidencia,esto es, la phronesis platónica entendida, no solo como paideia, sinocomo estrategia política y como retórica.

Si el libro I de la República es o no el primero en el plan de Platón,es aquí una cuestión meramente aleatoria. Importante es destacar que,desde el punto de vista del programa filosófico de Platón visto comoun todo, el saber acera de la Justicia constituye un requisito indispensableque permite traducir la Filosofía en términos estrictamente políticos4.La Justicia Política, como gramática del orden político, se sitúa, comotodos los conceptos, en la esfera del Bien Supremo al cual debe sumisma existencia. Si ser prudente significa ser sabio o filósofo, y, a suvez, ser sabio en cuestiones políticas significa saber acerca de lo Justopolítico por excelencia, entonces una vez más, ser políticamente sabio,implica saber acerca del Bien, que es como saber en absoluto o bien serauténticamente filósofo, antes que político. Mas Platón no habla ennuestro lenguaje, pues no hay en él oposición, ni aun completadiferenciación entre el ser filósofo y el ser político. El Filósofo quedecidió primero ascender desde el fondo de la caverna, debe ahoraretornar a la polis, a fin de intentar, cuando menos, que el orden políti-co sea el más justo posible5.

Tanto la actitud contemplativa, como la idea de Justicia en sí, sonel resultado de la puesta en acto de un hábito nacido en el alma comofruto de la buena paideia. Sin perjuicio del lugar central que ocupa la

4 Cfr. PRAECHTER, K. Die Philosophie des Altertums. Berlin: Velegt bei E. S. Mittlerand Sohn, 1926, ps. 338-339.

5 Cfr. STRAUSS, L. What is political Philosophy. Chicago-London, 1992, ps. 9 y sgts.

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Paideia en la formación de la Polis, que es ante todo, formación delalma del polites, conviene destacar que tanto la Paideia, como susámbitos de desarrollo – la belleza, la verdad y el bien – y su objetopropio, el alma humana, se encuadran ante todo, en el interior delconcepto de Justicia. Pero la Dike no es un concepto realizable en primerlugar, sino fundamentalmente objeto de contemplación. Mediante lasabiduría que alcanza el alma, con la buena paideia descubre el hombre, noaun el político, su lugar, diríamos, su disposición en el orden total del cos-mos. Esa y no otra cosa es el conocimiento de sí mismo de base socráticaexigido por el hombre prudente en que piensa Platón. En este precisosentido la actitud contemplativa constituye una condición necesaria parala vida política. La Justicia que Platón discute en el primer Libro de laRepública y en el nivel de máxima generalización, no es un conceptomeramente político, ni jurídico, sino resueltamente onto- teológico.Es justo aquello que se armoniza con las exigencias emergentes de lanatural constitución de cada cosa, incluida, claro, la persona humana.

La Justicia platónica adquiere de este modo, al menos dosdimensiones. Una de carácter originario o bien estático y otra, deriva-da o bien dinámica. La primera es aquella en virtud de la cual cada cosaes lo que es. Por su parte, el sabio, sabe lo que cada cosa es en sí ytambién la distancia que la separa del Bien, en el orden del cosmos. ElBien Supremo platónico es un concepto referencial, a los fines delconcepto de la comprensión del concepto de orden, desde que el ordense define por relación al Bien, de modo que a cada nivel del bien lecorresponde un nivel de orden. Aludo aquí al nivel metafísico de lafundamentación del Bien y de los bienes, del orden y de los órdenes6.La segunda dimensión en cambio, es aquella en virtud de la cual cadacosa se orienta hacia fines, partiendo de las exigencias de la naturaleza

6 Cfr. HENTSCHKE, A. Politischer Platonismus und die Theorie des Naturrechts, en:RUDOPLH, E. (ed.). Polis und Kosmos. Naturphilosophie und politische Philosophiebei Platon, Darmstadt: Wissenaschaftliche Buchgesselschaft, 1996, p. 61

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que le es propia. Se alude aquí a los niveles de fundamentación moraly político de la Justicia. Si, por tanto, la justicia es un cierto bien, esnaturalmente justo que cada cosa esté tendencialmente orientada haciasu propio bien o el bien de su naturaleza. En todos los casos la Justiciay la Naturaleza están íntimamente unidas y se comportan comoconceptos recíprocamente referenciales, pues lo que es natural, es justoy lo que es justo es natural. Ahora bien, dado que la naturaleza armónicadel alma humana solo puede conocerse a la luz del Bien, que es lafuente generadora de todas las cosas7 y desde la cual dimana laposibilidad del alma para conocer el resplandor de la verdad en cadacosa que es objeto de conocimiento8, el conocimiento de la naturalezaarmónica de cada cosa, presupone el conocimiento del Bien. Luego, elconocimiento de la naturaleza nos entrega subsidiariamente el conocimientode la Justicia que se expresa en el nivel constitutivo de cada cosa, o, aquelloque hemos llamado aquí, la Justicia en su dimensión originaria o bienestática9. Conocer al hombre en su esencia o idea, equivale a conocer surealidad auténtica o bien, su naturaleza verdadera. Pero conocer al hombreen esta dimensión, es conocer su justa constitución y, por tanto, lascoordenadas emergentes en las que su obrar debe luego inscribirse10, afin de completar el bien de la naturaleza humana.

Platón afirma que la condición esencial de la auténtica sabiduría esel conocimiento que proporciona la Filosofía. Ahora bien, dado que laFilosofía es Política, desde que su cometido primario es transformar el

7 Cfr. PLATON. Politeia. Darmstadt: Wissenaschaftliche Buchgesselschaft, 1990, 587b. Para el presente estudio se ha tenido en cuenta el texto crítico de la obra de Platón,editado por Chambry E. con la traducción al alemán de F. Schleiermacher (En adelante:Politeia), Darmstadt: Wissenaschaftliche Buchgesselschaft, 1971, 508 e y 517 c.

8 Cfr. PLATON. Politeia. 508 d.

9 Cfr. REALE, G. Platons protologische Begruendung des Kosmos, en: RUDOPLH,E. op. cit, p. 7.

10 Cfr. PLATON. Politeia. 473 e y 474 a.

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alma del polites, orientándolo decididamente hacia el Bien, el sabio oprudente es aquel que por un lado, sabe lo que debe saberse, pero, porel otro, sabe también conducir el alma del polites, a fin de que estossean artífices de su propia perfección. Como se ve, nuestros intentospor diferenciar la phronesis como sabiduría y como orientación con-creta de la praxis corren a cada momento, el peligro de desvanecerse, almenos en el caso de Platón, pues sabiduría y orientación para la vidapolítica son, en Platón, inescindibles. No obstante, que el gobernantedeba ser sabio (filósofo), implica ante todo, que debe poseer lascualidades características del sabio …y llamaremos prudente a aquella

pequeña porción que manda…da preceptos, ya que tiene entonces en sí

la ciencia de lo concerniente para cada cual y la comunidad entera…11

La Justicia originaria, que es el bien y el orden del alma, es a la vez,condición de la armonía y de la belleza del alma. El alma de los justoses buena, bella y en suma armónica. En este sentido la contemplaciónde la Justicia originaria es el presupuesto fundamental para el rectogobierno de sí mismo y del resto de la comunidad. La contemplaciónde la Justicia es condición del bien del alma, pues, según Platón, laJusticia se define como….la salud, belleza y bienestar del alma; y el

vicio,…enfermedad, fealdad y flaqueza de la misma…12 Es consecuenciadel bien del alma humana y de su recto orden pues, si la Justicia sedefine también como el dar a cada uno lo que le es propio, según la

naturaleza de las cosas, luego la aptitud necesaria para su ejercicio provienede la previa posesión de la auténtica sabiduría, que no es otra cosa queel conocimiento de cada cosa en su estado originario y de sus recípro-cas relaciones por referencia al orden del cosmos y al Supremo Bien.Desde el punto de vista de la fundamentación moral y política de laJusticia, el prudente es ante todo, justo para sí y para los que estánsometidos a su gobierno. Su condición de tal deriva de la posesión de

11 Cfr. PLATON. Politeia. 442 c.

12 Cfr. PLATON. Politeia. 444 e.

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la Filosofía, cuyo objeto primordial es por su parte, el Bien. La sabiduríaen su acepción más amplia, vale decir, como verdadero conocimientode todas las cosas, según la perspectiva del Bien, contiene aquel tipoespecial de sabiduría que llamamos política (politike episteme) Resu-midamente: El saber acerca de la nota esencial del Ser que es el Bien13

le permite al hombre, en su condición política, la razonable correccióndel obrar moral y político, según las exigencias de aquel Bien, siendoeste el principal menester del hombre político prudente.

Luego, la politike episteme puede identificarse con la Prudenciapues, según Platón…(la prudencia) es un modo de ciencia, pues por esta

es por la que se acierta y no por la ignorancia14. Resumidamente: Elobjeto de esta sabiduría específica llamada Prudencia Política, escuádruple. En primer lugar, el prudente debe ser al mismo tiempofilósofo, vale decir, debe conocer el lugar que, en la esfera del Bien,ocupa la Justicia en su máxima generalización. Ello surge lógicamentede la conocida advertencia platónica en el sentido que el gobernantedebe ser filósofo15. En segundo lugar, objeto de la prudencia o sabiduríapolítica, lo es también el conocimiento del alma humana, hacia cuyaperfección se ordena la sabiduría política. En tercer lugar, el conocimientodel Bien y el conocimiento del alma humana, le permiten al hombreprudente, conocer las formas propias de gobierno del alma humana, obien el orden del alma, en su interrelación con los otros hombres.Aludo aquí al conocimiento de las formas naturales de gobierno de lapolis y también a sus formas defectuosas, como derivadas del recto odel injusto orden de la phsike. En cuarto lugar, si la intención políticade Platón es innegable16, también lo es la fundamentación religiosa y

13 Cfr. PLATON. Politeia. 509 b, Cfr. REALE, G. Platons protologische Begruendungdes Kosmos, en: RUDOPLH, E. op. cit., p. 9.

14 PLATON. Politeia. 428 b.

15 Cfr. PLATON. Politeia. 473 d-e.

16 Cfr. FRIEDLAENDER, P. Platone. trad. al italiano de Le Moli A., Bompiani, Milán,2004, ps. 15 y sgts.

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teológica de la sabiduría política o phronesis, desde que no solo lo justopor excelencia, sino la idea acerca de todas las cosas se inscribe, comoqueda dicho, y se interpreta solo en la esfera del Sumo Bien. Luego, siel conocimiento de la naturaleza del alma humana es primordial,también lo será el reconocimiento de la inmortalidad del alma. Ahorabien, si el alma es inmortal, se comprenderá claramente el motivo porel cual Platón cierra su exposición de la ciudad ideal con una reflexiónacerca del lugar y los premios que le están reservados a las almas queobraron aquí en la polis, de conformidad con la Justicia17. En definiti-va, la coronación de la prudencia está dada por el recto gobierno delalma del polites en vistas de los premios y castigos que esperan al almaen el mas allá. Así pues, lo cuádruple determinación del objeto de lapolitike episteme explica de modo sistemático, la determinación detalladade la phronesis.

Como sucede a menudo en sus diálogos, Platón no nos ofrece unaexposición sistemática al modo aristotélico, sino que se limita asugerirnos tan solo, de modo que sea cada uno filósofo de sí mismo.De este modo procede también respecto de la segunda determinaciónde la phronesis, vale decir, aquella que habíamos definido comoorientación concreta de la vida política. Aquí Platón, como dice W.Jaeger, se limita a ubicar el concepto de paideia en el centro de su obrapolítica por excelencia. Pero en el intento de poner en acto su modelopedagógico nos entrega, según Strauss, la enseñanza más valiosa entérminos de orientación para la vida política. En efecto, si el problemapor excelencia es el cómo tornar más justa la polis, y, si ello solo puedeesperarse, logrando previamente que la verdadera sabiduría prevalezcasobre las opiniones vulgares acerca de la política, entonces el gran temaplatónico será pues, como tornar auténticamente sabios (políticamente)

a los hombres, que es tanto como decir, como tornarlos verdaderamente

17 Cfr. PLATON. Politeia. 592 b.

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prudentes en cuestiones políticas. Platón sabe de las ataduras quemantienen a los hombres allí en el fondo de la caverna, imposibilitadospara intentar el ascenso que los redima de su ignorancia, e esto ascensoqueda solo reservado a pocos, y, por tanto, vedado a las mayorías. Sabetambién que los muchos están limitados de cara al camino filosófico,pero lo están, no solo por causa de sus propias limitaciones, sino envirtud de las limitaciones que le vienen impuestas de parte de aquellosinteresados, como los sofistas, en que las cosas políticas no cambien,ajustándose así, según el propio deseo de los políticos inescrupulosos.Platón sabe que en definitiva por un motivo u otro, las mayorías suelenser enemigas de la Filosofía y de la vida filosófica (L. Strauss).

Cómo resolver pues este abismo que separa el acontecer en el fondode la caverna, de los imperativos emergentes del Bien Supremo? SegúnStrauss, Platón optó por hablar para pocos y para muchos al mismotiempo. Platón entendió pues que ser prudente es decir lo que debe

decirse, enseñar aquello que debe enseñarse, pero refiriéndose solo a los

pocos capaces de iniciar el ascenso. Platón decidió pues que ser prudentees también saber hablar entre líneas, habida cuenta que el poder políti-co dominante ejerce la coacción contra sus opositores. Ser prudente estambién ser capaz de articular una hermenéutica salvífica de la auténticasabiduría. Ser prudente es saber vivir filosóficamente, que es lo mismoque saber vivir ejerciendo la buena paideia. Según el mismo Leo Straussen línea platónica, a este respecto, deberíamos ser capaces de eludir lalógica equina18 aquella de Trasímaco, quien, discordando con lasenseñanzas prudentes del sabio, se decidió por el vituperio, la calumniay por la violencia, a fin de interrumpir el mensaje de la sabiduríaverdadera. En este segundo sentido de la phronesis platónica, Platónenseñó la prudencia a través de su modo de hablar en los diálogos. Así

18 Cfr. STRAUSS, L. Persecution and the art of writing. Chicago-London, 1953, p. 23.

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también, puso la phronesis al servicio de la paideia y no tan solo comoresultado de la misma.

2 La Phronesis aristotélica como virtud política

El modelo de la Física de Aristóteles, y, por tanto, eldescubrimiento de la genuina estructuración ontológica de cada cosanos obligan ahora a modificar en buena medida, el horizonte de laphronesis. Hacer descender las ideas desde la alta esfera del Bien hacia elinterior de cada cosa significó, para el Filósofo, modificar también elmétodo filosófico por excelencia. A partir de tal descubrimiento setornó importante, no tanto la contemplación del orden total del cos-mos, sino su composición y resolución, a partir de los elementos mássimples, todos ellos dotados de significación filosófica en sí mismos.El propósito será ahora, como en el caso de Platón, intentar diferenci-ar dos sentidos de la phronesis, a saber, como sabiduría y comoorientación de la praxis política. En efecto, a propósito de lainterpretación del pasaje 1094 b 11 de la Ética a Nicómaco, observaGauthier que pueden diferenciarse, por un lado, una politike episteme

propiamente dicha (Ciencia práctica) y otra, la que se ocupa del efectivogobierno de la polis19. Corresponde pues examinar, en primer lugar, elproceso de constitución de la Ciencia Política propiamente dicha, apartir del fin que la misma persigue, así como su metodología propia,reservando para un momento posterior el examen de las relaciones queexisten entre la ciencia propiamente dicha y la phronesis

19 Cfr. ARISTOTELES. L’Etique a Nicomaque, por Gauthier-Jolif, Louvain-Paris, 1970,ps. 10-11. A los fines del presente estudio se ha consultado Ethikon Nikomakeion (Enadelante EN), Aristotelis Opera, ed. Academia Regia Borussica, Immanuelis Bekkeri,Vol. II, 1094 a 26, Wissenschafltiche Buchgesellschaft, Darmstadt, 1960.ARISTOTELES, Politikon (En adelante P), Aristotelis Opera, ed. Academia RegiaBorussica, Immanuelis Bekkeri, Vol. II, 1252 a 5, Darmstadt: WissenschaflticheBuchgesellschaft, 1960.

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Aristóteles y Platón están de acuerdo en dirigir la atención sobre eldevenir político para estimarlo en el trasfondo sistemático de unaFilosofía general, orientada hacia la Teología. En sus intenciones se prefigura,de ese modo, la unidad inescindible entre el pensamiento y la acción, yentre la reflexión contemplativa y la rigurosamente práctica. La intenciónde ambos es fundamentalmente semejante, mas la diferencia radica enque, mientras Platón duda del dato real, Aristóteles se apoya precisamenteen la realidad que los sentidos encuentran a su paso, pues descubre en losobjetos reales aquellas estructuras simplísimas, materia-forma, potencia –

acto, algo así como un nuevo camino para iniciar el ascenso propuestoantes por Platón. No obstante, volver la atención sobre lo real, implicaestablecer la siguiente distinción. Lo real puede ser considerado en sí mismoo en el despliegue de sus operaciones, entendiendo por tales, la orientaciónde cada cosa hacia su fin debido y, por ello, emergente de la esencia de cadacosa. El conocimiento que entrega la actitud contemplativa es el de la cosaen sí y el de sus relaciones en el marco más amplio del todo del cosmos.Sin embargo, cuando volvemos nuestra atención hacia el devenir político,cabe reflexionar acerca de lo políticamente posible. Es posible aquello quemejor se armoniza con las potencialidades de las cosas implicadas enese devenir político. La materialidad, que es potencialidad, constituyeun favor limitativo a los fines de la mayor perfección imaginable.

Así, la Ciencia Política parte de aquello que es universal y necesario,por caso, la constitución tendencial del hombre hacia su perfección,mientras que la Política, como arte de gobierno ejercido según laPrudencia – phronesis – no se ocupa ya de los fines, sino tan solo de lacontingencia, vale decir, de los medios adecuados para alcanzar los fines,en el marco de lo humanamente posible. Una lectura de la epistemologíaaristotélica se torna pues relevante a nuestros fines, dado que el juicioque precede inmediatamente nuestras determinaciones en términos delobrar político, responde a la forma de un silogismo práctico. La premisamenor recoge los contornos del hecho en sí y sus circunstancias

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concomitantes, la mayor en cambio contiene, por un lado, el aporterecibido de la Ciencia Política y, por el otro, el imperativo de la acciónque es el primer principio práctico. Ambos componentes, desde quese hacen presentes en nuestras conclusiones, vale decir, en la premisamedia, vienen a garantizar, dicho de manera muy esquemática, la rectitudde las operaciones morales y políticas. La presencia del universal queentrega la ciencia, en el enunciado de nuestras normas del obrar político,garantiza la misma rectitud de la normas de ese obrar. Lo dicho podríaformularse de este modo: …el bien debe ser obrado, pero en punto a

estas circunstancias dadas aquí y ahora. Obrar conforme a la recta razón,significa, en primer lugar, obrar según la razón de ser de cada cosa, perotambién significa obrar según el recto discernimiento, lo que equivalea desplegar el alcance de ese silogismo práctico que une en una norma,el universal que es objeto de la ciencia con el singular que rodea nuestrapropia existencia. Por tal motivo, el Filósofo aconseja como antesPlatón, que los hombres de gobierno deben poseer, en alguna medida,el conocimiento de la recta constitución del alma humana. Un ejemplopuede mostrar las ventajas del camino aristotélico, aun para estimar lasepistemologías políticas posteriores al Filósofo. Partir del presupuestoque el hombre es un robot en movimiento (Hobes-Espinosa) o partirde la composición hylemorfica de la naturaleza humana (Aristóteles)dan sin duda, como resultado, dos tipos de conductas políticas,radicalmente diversas, en términos de gobierno. Hobbes y Espinosa seapoyan en una concepción anti-metafísica y mecanicista, mientras queAristóteles, en una concepción metafísica de la persona humana. Elprimer criterio se sustenta en una comprensión meramente ciega de lanaturaleza humana, mientras que el otro, en la buena naturaleza

humana20. En los casos de Platón y de Aristóteles, la phronesis suponedel recurso a la persuasión, desde que admiten la dimensióncontemplativa del alma humana, antes que la unilateralmente biologista.

20 Cfr. ARISTOTELES. EN., 1144 a 33.

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Por su parte, la prudencia hobbessiana o espinosiana se apoyafundamentalmente en la coacción.

Volviendo a Aristóteles, dos son los problemas que deben resolverse,a saber, el de la relación entre physis y Política como phronesis – arte degobierno – y, posteriormente, el de la presencia de las premisasmetafísicas en el juicio de la phronesis. Para comprender la importanciadeterminante del concepto de physis en la primera perspectiva, resultaraútil recurrir a la descripción de las partes del alma, propuesta porAristóteles. Dice el Filósofo que la phsyke está compuesta de dos partes.Ellas son la parte racional – logon – y la irracional – alogon21. Mientrasla parte irracional envuelve la esfera puramente vegetativa y la afectiva,la primera, la dimensión racional, puede dividirse en dos niveles. Ellosson el del nous epistemikon y el del nous logistikon, vale decir, lainteligencia científica y calculadora respectivamente. Mientras el ámbitopropio de la politike episteme es el de la inteligencia científica, el que lecorresponde a la phronesis, es el de la parte calculadora. En cuanto a losrespectivos objetos de una y otra parte del alma racional, debe decirseque el nous epistemikon está orientado hacia lo universal y necesario –

en nuestro caso el Bien, como Bien Común Político – mientras que elnous logistikon se encamina hacia la elección de los medios, según lanorma – kanon – de la recta razón. Sin embargo, antes de circunscribirla atención al alma humana, Aristóteles pudo comprobar que elhombre, en punto a sus tendencias naturales, se orienta hacia fines queno son estrictamente políticos en el sentido en que pueden entendersedesde Maquiavelo en adelante. Vale decir, el hombre es político porquees racional, pero su racionalidad, limitada a la esfera antes descrita de lacontemplación, lo conduce por el camino del ascenso platónico, haciala trascendencia hasta acabar en religiosidad. Luego, la totalidad de laactividad del alma esta en cierto modo influida, por los siguientes

21 Cfr. ARISTOTELES. EN., 1139 a 5.

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factores: 1) La actitud religiosa que la contemplación como theoria

implica, 2) el conocimiento de la verdad que la sujeción a la norma

verdadera22 supone, y 3) las sensaciones y los deseos que, de un modocasi connatural, acompañan aquello que podría llamarse la experienciade lo verdadero y bueno. La pshyke (humana) aristotélica, entendidacomo nous, no solo regula las potencias inferiores del alma, sino queella misma se encuentra inscrita entre las coordenadas de un ordensuperior que la condiciona, esas coordenadas son la politicidad, la

racionalidad y la religiosidad. La totalidad de sus operaciones teoréticasy prácticas resulta circunscrita al interior de esa tridimensional de lapersona humana.

Desde un punto de vista operativo, la función propia de la phronesis

es determinar el justo medio-mesotés, valiéndose para ello de la rectaregla -orthos logos23 que, como dije, proviene de conocimiento superior,en su confrontación con la realidad que nos implica. Algunos textosque el Filósofo dedica a la phronesis, nos permitirán reconstruir el marcosistemático de la prudencia, facilitándonos la dilucidación del segundoproblema a resolver, esto es, el de la existencia de las premisas metafísicasen el juicio prudencial o bien, el de la negación del derecho legítimopara postular la existencia de una Filosofía Política sin Metafísica. Enefecto, la primera observación que Aristóteles formula en el punto departida del libro VI de la Ética a Nicómaco, dedicado al tratamientode las virtudes del intelecto o dianoéticas, es la siguiente: Dado que

dijimos precedentemente que se debe elegir el medio y no el exceso ni el

defecto, y que el medio es como lo establece la recta regla, analizamos

ahora dicho asunto24. Luego agrega, existe una norma de la medida25

22 Cfr. ARISTOTELES. EN., 1138 B 23 y 1138 B 28.

23 ARISTOTELES. EN,1103 b 30 y 1138 b 27.

24 ARISTOTELES. EN., 1138 b 18.

25 ARISTOTELES. EN, 1138 b 22.

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Dicha norma viene dada por el conocimiento científico y por tantoverdadero, del fin a alcanzar. Dicho en otras palabras, la rectitud de laelección descansa sobre los juicios elaborados por la politike episteme.La theoria aristotélica que precede a la acción política no puede perderde vista ni por un solo instante la interacción permanente entre todaslas esferas del alma humana. Solo en ese marco puede entenderse lacompleta extensión de la afirmación siguiente: Aquello que en el

pensamiento son afirmaciones o negaciones, en el deseo son búsqueda y

repulsión… es pues necesario que el cálculo sea verdadero y el deseo recto…

que haya identidad entre aquello que el cálculo enuncia y el deseo

persigue26. Es necesario que la voluntad, pero también nuestra esferaafectiva, se orienten según los resultados de la recta razón, que es tantocomo decir, que es necesario que todas las potencias del alma se dejenestimular por la completa dimensión del objeto de conocimiento yaun mas, que se dejen atraer por sus bondades, hasta tornarse el finverdadero, honesto y deleitable, que a partir de entonces, envuelve alalma plenamente en la realidad. No es estrictamente humana el almaque no gira en torno de los bienes participados del bien supremo.

Esa implicación en lo real significa que nuestros juicios de verdaden cuestiones políticas, si bien nacen en la inteligencia, guardan unareferencia permanente con la estructura ontológica del objeto al que serefieren. Esa referencia puede expresarse del siguiente modo: Nuestras

acciones políticas son libres en la medida en que se despliegan según las

dimensiones ontológicas y deontológicas del objeto que hoy es el fin de esas

operaciones. Por ello, afirma Aristóteles, la elección en términos deacción política, no puede darse, sin la labor de la inteligencia superioro especulativa, ni menos aun, sin el pensamiento27. En virtud de lodicho, y dado que el Filósofo apoya su última afirmación en la

26 ARISTOTELES. EN, 1139 a 25.

27 ARISTOTELES. op. cit., 1139 a 33.

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composición natural y, por tanto, recta del alma humana, corresponderíadecir también que, además de la buena disposición moral – ethos –, larecta determinación prudencial es parte del orden natural de la personahumana. Así pues, el juicio de la phronesis es perfecto, pues emergemediatamente del influjo de lo real e inmediatamente de las operacionescomplejas de la inteligencia humana. Dichos juicios prudenciales vienenpues a perfeccionar la esencia del hombre, dado que le abren el caminode su perfección, que es la perfección del alma humana, en el ámbitopropio de la politicidad. Por tanto, si la phronesis es una virtud orientadaa la acción, pero no sin acoger en su seno el resultado de la theoria ocontemplación superior, la phronesis y en concreto el nous logistikon,debe operar en sinfonía con la totalidad de las potencias del alma.

Se podría afirmar a la luz de lo dicho que, habida cuenta del sentidomístico y religioso que en el pensamiento griego asumió la theoria,una theoria del orden político, o incluso de una moderna Teoría del

Estado, debe entenderse en rigor, no solo sobre la base de ciertospresupuestos de la Metafísica, sino fundamentalmente como Teoríadel Estado sub specie aeternitatis. Así pues, aquella perfección parcialque hasta aquí era de naturaleza política, se torna total, desde que en elobjeto universal y necesario de la Ciencia Política, que es norma de laacción prudencial, se participa, como norma verdadera, el Ser Eternodel dios de los filósofos hacia el que pudo llegar Aristóteles. Vale decir,y aunque se trate de un postulado incomprensible fuera de la correctahermenéutica aristotélica, la prudencia política aristotélica, lejos de serradicalmente autónoma respecto de la Metafísica y de la Teología, debedesenvolver su actividad específica en el marco de una sinfonía, no solo

psicológico-racional, sino celestial, pues en verdad, piensa Aristóteles, laprimera y más importante regla para la phronesis viene de Dios28.

28 ARISTOTELES. Ethikon Eudemion. Aristotelis Opera, ed. Academia Regia Borussica,Immanuelis Bekkeri, Vol. II, 1249 b 16, Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesselschaft,1960.

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3 La Prudentia de Tomás de Aquino como virtud media

El aporte aristotélico a la phronesis permitió acentuar aun más queen el modelo de Platón, la orientación concreta en términos de obrarpolítico. Platón dedicó su atención a mostrar aquello que está presente enAristóteles, a saber el marco contemplativo que envuelve al juicio de laphornesis, en tanto que Aristóteles, no solo operó el descenso de las ideas a latierra, sino la contemplación del Cielo en términos concretos decomprensión y de acción política. El caso de Tomás de Aquino es en partediferente, pues si la transformación llevada a cabo por Aristóteles era signi-ficativa, esta, la del Aquinate, es tan importante al punto de tornar alhombre, a través del juicio de prudencia, en algo así como un ministro delDios Revelado en la conservación y perfección del todo de la Creación.Las operaciones políticas, envueltas en esta nueva esfera que es la Teologíadel Aquinate, no solo tienen por finalidad la perfección del alma humana,sino el perfecto acuerdo del orden político con el orden de la Creación,cuyo autor es Dios. Si se traducen las conclusiones ofrecidas hasta aquí entérminos filosófico-políticos, podrá decirse que el gobernante políti-co, en cuanto prudente, es por excelencia, un ministro de Dios al serviciode Su Creación, acotada a la politicidad.

Debe formularse ahora una digresión importante, en orden a laarquitectura de la Suma Teológica de Tomás de Aquino, a fin de subrayarel lugar que ocupa su tratado acerca de la Prudencia Política. En efecto,el Aquinate hace dos cosas, la primera, sitúa la Prudenciainmediatamente después del tratado de las virtudes teologales. En se-gundo lugar, tanto en el examen de esas virtudes, como en el de lasllamadas cardinales, Tomás centra su atención en la actividad del inte-lecto. Vale decir, el intelecto, en la totalidad de las dimensiones descri-tas a propósito de nuestro capítulo dedicado a Aristóteles, ya no soloestá implicado en el orden total del cosmos, sino en el de la Creación,lo que significa en rigor, que ahora es Dios quien opera sutilmente

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sobre el intelecto, a fin de auxiliarlo en la ejecución de los juiciosprudenciales. Mas ello requiere, según el Aquinate, de algunascondiciones previas.

Es necesario aclarar lo siguiente, no siempre resulta sencillocomprender una u otra tesis de Tomás de Aquino, prescindiendo de latotalidad de su sistema. Un ejemplo de ello; la contemplación queprecede a la acción política, siguiendo en lo fundamental nuestro bos-quejo a propósito del Filósofo, no está tan solo condicionada por lacontemplación del Dios Revelado, que es objeto de la Teología Sobre-natural, sino, modus aristotelicus, por la contemplación del orden totaldel cosmos. Mas ese centro de referencia no fue enunciado por Tomásen el marco de su tratado acerca de la Prudencia, sino apropósito delencuadramiento doctrinario de su Comentario a la Ética a Nicómaco.En efecto, en el prólogo de ese Comentario donde el Aquinate remitela totalidad de las operaciones de la inteligencia al orden del cosmos, alque a su vez, divide según cuatro determinaciones fundamentales. Enprimer lugar, nos orientamos hacia el orden de las cosas que no son elresultado de nuestras operaciones, sino las que simplemente nos atraen,suscitando las operaciones del intelecto, las mociones de la voluntad yla dinámica afectiva, sea del deleite o del rechazo. Podría decirse conM. Scheler, que tiene lugar así la connaturalidad de lo semejante.

Mas, dado que las cosas que nos rodean están sujetas a un orden,puede descubrirse también la inteligibilidad de dicho orden o bien, entérminos estrictamente humanos, la Inteligibilidad Divina de lo real.La primera orientación de la inteligencia es pues la estructura ontológicade la realidad que no creamos sino que simplemente descubrimos. Lasegunda, como fuera sugerido, está dada por el orden del pensamiento(La lógica aludida a propósito de nuestro silogismo práctico) que emergede aquella ontología. Que todos los hombres nacen y mueren es unhecho de la realidad, pero, ahora, de una realidad creada por Dios. Asípor tanto, la premisa mayor que podría enunciarse así… todos los hombres

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son mortales… y que de un modo directo o indirecto está presente enla totalidad de nuestros razonamientos en términos de acción moral ypolítica, no significa tan solo que los hombres nacen y mueren porquela naturaleza así lo demuestra siempre y de modo necesario, sino queese hecho empírico, fundamentalmente querido por Dios, es el puntode partida para el orden de nuestro razonamiento tanto especulativo,como práctico. Vale decir, en las premisas mayores, aquellas que laciencia nos entrega, se refleja sobre todo la Voluntad de Dios en térmi-nos de Lex Divina. En tercer lugar, Tomás afirma que ese razonamientodirige nuestras operaciones voluntarias, las morales y las políticas, asícomo el proyecto de nuestras obras de arte, las que de ese modo, sonalgo así como copias del orden de la Creación. He aquí pues el progra-ma epistemológico que está en la base de la Teología de Tomás deAquino. Mirando en retrospectiva nuestro análisis a propósito deAristóteles, debe decirse que la Lex Divina, la misma que enunciamos,según la razón, bajo el nombre de Lex naturae, es de ahora en más, lagarantía de la rectitud de nuestros juicios prudenciales.

El bien que perseguimos a modo de fin, es ahora un bien queridopor Dios. Un modo específico del bien de Dios mismo. Hay puesentre el Bien y los bienes una relación que, en términos metafísicos,podría definirse como participación y en términos lógicos, comoanalogía. Así por tanto, el bien Común Político es un bien querido por

Dios y al mismo tiempo participado por Dios. La prudencia de Tomas deAquino no ofrece grandes novedades, si la comparamos con laaristotélica, en línea de progreso evolutivo. Lo que nos ofrece es encambio, una profundísima transformación en términos cualitativos,desde que fueron ampliados, tanto al esfera de la contemplación, comola de la acción política y moral. Desde el punto de vista de lacontemplación, el Aquinate remite, no solo la Scientia Politica, sino latotalidad de las virtudes dianoéticas del Filósofo, al objeto que es elDios Revelado. Desde el punto de vista práctico en cambio, la prudencia

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no se ajusta solo a la lex naturae, sino a una lex naturae entendida, unavez más, como participación de la Lex Divina. Lo que el hombre pru-dente persigue ahora, no es apenas mantener el orden del cosmos, sinotornarse en cierta medida, semejante a Dios, toda vez que crea y operasobre realidades, de modo tal de prolongar la Creación misma de Dios,en términos de bondad moral y política. La auténtica prudencia pues,no puede entenderse, sino como tendencialmente orientada hacia elbien, …prudentia autem non est boni et mali, sed boni tantum…29 Sila Política puede ser entendida, según decíamos a propósito deAristóteles, ya sea como ciencia o bien como arte de gobierno y a suvez, este arte es tal, solo en la medida en que se rige por el juicioprudencia, luego no cabe distinguir entre una verdadera y una falsaPolítica, como hace Palacios30, sino que debe decirse de un modo másradical, que hay o no Política, pues la llamada falsa política, vale decir,aquella que no está reflejada e informada por el juicio prudencial, noes en rigor política.

Las implicancias de la teología griega fueron también notablementetransformadas en el interior de la Teología de Tomás de Aquino. Enefecto, dije antes que son los fines los que suscitan la totalidad denuestras actividades tendenciales. A la luz apenas de la remisión del Sery del Bien hacia Dios, toca ahora decir que es Dios quien suscita laactividad de nuestra alma en todas sus esferas constitutivas. Mas dequé modo opera Dios en el alma humana? El Aquinate descarta, aprimera vista, la solución inmediata que la sola fe podía sugerirle, estoes, que Dios opera en el alma solo mediante la Fe. Es precisamente esolo que había explicado antes de tratar acerca de la prudencia. Ahora, enel caso de la virtud que examinamos, se ocupa en cambio, de mostrarla esfera meritoria de la actividad humana, vale decir, de qué modo

29 Cfr. CAIETANUS, T. V. Comentaria. En: Thomae Aquinatis, Secunda secundaeSummae Thelogiae, Roma, 1894, p. 349.

30 Cfr. PALACIOS, L. E. La prudencia política. Madrid, 1978, p. 145.

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puede el hombre ganar méritos delante de ese Dios, operando según lapropia actividad intelectiva o bien mediante la prudencia.Filosóficamente hablando, Dios propone al hombre un fin incardinadoen el orden total del cosmos. Pero también le suscita en el alma, noapenas una sugestión, sino que le confiere la concreta posesión deprincipios tales como son los principios de orden especulativo y práctico.Para nuestro caso, el juicio de prudencia parte, por un lado, de ladetallada reconstrucción de lo real, sea en términos de necesidad cien-tífica o bien de variabilidad contingente. Pero la estimación de la me-

dida justa de nuestra acción requiere de la medida de la variabilidad delas circunstancias, según el primer principio de toda acción concreta asaber, ….el bien político debe ser obrado y su contrario censurado y evita-

do… El significado de este axioma en Tomás es bien diferente que enlos casos de Platón y de Aristóteles. En el Aquinate se trata de obrar apartir del bien querido por Dios e impreso como tendencia en lo másintimo del alma humana al modo de principios. Tomás explica, nadamenos que en el mismo punto de partida de su tratado de la prudencia31,que, como en el caso de Aristóteles y por qué no de Platón mismo, latotalidad de las esferas del alma se ven ahora iluminadas por el quererde Dios. Si el nous aristotélico era definido como luz natural, ahoraese nous no es otra cosa que la Luz Divina que guía, desde el principio,la labor electiva de nuestra inteligencia. Tomás reserva el auxilio de laGracia Santificante para la voluntad, que es su objeto principal. Asípues, Dios auxilia al hombre en lo externo, mediante la lex naturae yen lo interno, ya sea por la Luz Divina que se participa en el intelectoal modo de principios o bien por la Gracia que fortalece la voluntad yenciende el deleite, ya no tan solo por lo honesto, sino por lo santo.

Descubrir el orthos logos no es otra cosa que descubrir el modo enque Dios creó cada cosa y por tanto, el modo en que ahora nos sugiere

31 Cfr. THOMAS AQUINATIS. Summa Theologiae. ed. cit., ps. 349 y sgts.

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operar a imitación Suya. Obsérvese que tanto la determinación de losfines del obrar, como la elección de los medios, que es menester de laprudencia, corresponde rigurosamente al hombre. No es por deducciónpura y simple que articulamos una norma determinada del obrar polí-tico, sino por un movimiento dinámico de sístole y diástole, o bien,de inducción y deducción. Por la inducción reconstruimos la complejarealidad y por deducción, a partir de principios como los menciona-dos, comprobamos en primer lugar, la viabilidad de nuestros proyectos,y, en segundo lugar, postulamos aquello que Alberto Magno32 llamóla norma recta de la conciencia moral y política, vale decir, el esto debe

obrarse aquí y ahora, sin dilaciones… Dado pues que Dios, a diferenciade lo que pensaba Kant en su etapa crítica, se torna discernible entérminos metafísicos, no puede postularse, ni en los casos de Platón,de Aristóteles, ni del mismo Tomás, una radical autonomía de lainteligencia, pues la misma es ante todo, parte de un orden superior yomni-abarcante. Sus actividades no son perfectas, ni acciones huma-nas en sentido riguroso, fuera de ese orden. La inteligencia humana ensu dimensión práctica es autónoma solo en la medida en que toca a ellay solo a ella determinar los fines y los medios que completan laperfección del hombre. Pero es en cambio dependiente de Dios, no almodo unilateralmente coactivo, sino bajo el influjo de un cierto susurroque toca al alma sea, mediante la Fe, sea en fin, mediante la tendencianatural hacia fines, que la presencia de los principios testimonian en elalma humana. Esos fines perfectivos están ya presentes en el alma,desde el mismo momento de su creación. Allí, en la ontología delpersona humana encuentra el juicio de prudencia, su primer dato, a losfines de configurar una completa orientación del obrar concreto. Talvez sería útil dedicar un párrafo a la dilucidación del lugar en que se

32 Cfr. PIERPAULI, J. R. Racionalidad práctica y Filosofía Política. Los modelos deAlberto Magno y de Tomás de Aquino y su significado para la Filosofía Política actual.Buenos Aires, 2007, ps. 110-111.

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desarrolla la dinámica de la prudencia, a saber, si en el intelecto o en elpráctico o en el especulativo. No obstante, reservando esa discusión paraun momento posterior, puede decirse que, a la luz de lo expuesto hastaaquí, parecen tener razón Alberto Magno y Tomas de Aquino33 cuandosugieren que en verdad, la prudencia es una virtud media, pues tiene algode especulativa (dianoética) y algo de práctica. Es en la esfera de la prudenciadonde se conjugan armónicamente, como en el caso de Aristóteles, laarmonía entre el Cielo y la Tierra. Para el Aquinate, como antes para Platóny para Aristóteles, la primera regla de la phronesis proviene de dios, pero yano del dios de los filósofos, sino del Dios Revelado.

Conclusión

Por último, el examen del desarrollo evolutivo que experimentó elconcepto de prudencia desde Platón a Tomás de Aquino, constituye unmodelo, a los fines de comprender el desarrollo también progresivo entérminos de perfección, que unió los modelos de la Filosofía Política,tanto de Platón con la de Aristóteles, así como la de ambos con la deTomás de Aquino. Si bien, desde Platón hasta Tomás de Aquino, fueampliándose la esfera de la politicidad y consecuentemente de la prudencia,ello, si bien favoreció la delimitación de una cierta autonomía relativa de lapraxis política y moral, respecto de la contemplación, no significo, sinembargo el anticipo del programa critico al modo kantiano. Un aspectosobresaliente une, en las diferencias, los tres modelos de la prudencia. Setrata en definitiva, de modos diversos de concebir la contemplación comoorientación para la acción moral y política.

33 Cfr. THOMAE AQUINATIS. Summa Theologiae. ed. cit., p. 352.

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ENIO PAULO GIACHINI

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OS NOMES DIVINOS NA SUMA TEOLÓGICA...

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OS NOMES DIVINOS NASUMA TEOLÓGICA DETOMÁS DE AQUINO

Ivanaldo Santos *

Resumo: O objetivo desse artigo é apresentar e analisar os nomesdivinos na Suma teológica de Tomás de Aquino, especialmente naQuestão n. 13 da Suma. Para tanto, ele foi dividido em duas partes,sendo elas: a) A influência do Pseudodionísio em Tomás de Aquino,b) Tomás de Aquino e os nomes divinos. Por fim, afirma-se que adiscussão de Tomás de Aquino sobre os nomes de Deus contribuiudecisivamente para aprofundar o tema durante a Idade Média e tam-bém na modernidade.

Palavras-chave: Tomás de Aquino, Suma teológica, nomes e Deus.

Abstract: The aim of this paper is to present and analyze the divinenames in the Summa Theologica of Thomas Aquinas, especially inQuestion No. 13 of the Summa. To this end, it was divided into twoparts, namely: a) the influence of Pseudo-Dionysius on ThomasAquinas, b) Thomas Aquinas and divine names. Finally, it is statedthat the discussion of Aquinas on the names of God has decisivelycontributed to deepen the subject during the Middle Ages and wellinto modernity.

Keywords: Thomas Aquinas, Summa Theologica, names, and God.

* Doutor em estudos da linguagem, professor do Departamento de Filosofia e doPrograma de Pós-Graduação em Letras da UERN. E-mail:[email protected]

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Introdução

O tema dos nomes de Deus ou nomes atribuídos à divindade, ouseja, os nomes divinos, não é muito explorado pela filosofia contem-porânea. Em grande medida, a filosofia contemporânea está preocu-pada em investigar questões, como, por exemplo, a linguagem, a vidaprática, a ciência e a política. Os nomes divinos é um tema colocado àmargem da discussão filosófica atual. Entretanto, esse tema foi de sumaimportância na Antiguidade e na Idade Média.

Um exemplo dessa questão é o Crátilo de Platão. Nesse diálogoPlatão afirma que “cada coisa possui um nome” (Crátilo, 416c) e quepor este motivo é preciso haver um “fazedor de nomes” (Crátilo, 389a),ou seja, é preciso haver a figura do legislador, do nomoteta, o indiví-duo que fabrica os nomes. Por causa disso, é preciso haver algum tipode discussão sobre o nome atribuído à divindade.

Platão não realiza essa discussão. Ele apenas indica a existência dapossibilidade, mas não realiza a discussão dos nomes atribuídos à di-vindade. Quem realiza essa discussão, nos Nomes divinos1, com notó-ria profundidade filosófica, é o pensador neoplatônico conhecido como:Pseudodionísio, o Areopagita. Inclusive é possível traçar aproximaçõesfilosóficas entre o Crátilo de Platão e os Nomes divinos doPseudodionísio2.

No entanto, quem também vai se dedicar a essa temática é o mai-or pensador da Idade Média e de toda a história da filosofia, ou seja,Tomás de Aquino. De acordo com Martins (2005), o Aquinate realizauma discussão de cunho filosófico e teológico sobre os nomes divi-

1 Para as citações dos Nomes divinos do Pseudodionísio, o Areopagita, será utilizada asigla ND e o respectivo número do parágrafo, tal qual consta no Corpus Dionisyacum.

2 Sobre as aproximações entre o Crátilo de Platão e os Nomes divinos do Pseudodionísio,recomenda-se consultar: Santos (2008).

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nos. Ele realiza essa discussão em vários momentos de sua volumosaobra, como, por exemplo, na Suma teológica, na Suma contra os genti-

os e no Comentário ao tratado da trindade de Boécio. Analisar todo essevasto material extrapola os simples limites de um artigo acadêmico.

É por isso que o objetivo desse artigo é apresentar e analisar osnomes divinos na Suma teológica3 de Tomás de Aquino, especialmentena Questão N. 13. Para tanto, ele foi dividido em duas partes, sendoelas: a) A influência do Pseudodionísio em Tomás de Aquino, b) To-más de Aquino e os nomes divinos.

1. A influência do Pseudodionísio em Tomás de Aquino

Costa e Oliveira (2007, p. 3) ressaltam que o Pseudodionísio, oAreopagita, foi um pensador que “influenciou muito a Idade Média etodo o pensamento posterior a esse período histórico”. Sua influênciatanto se dá no campo místico-teológico como em outras áreas como,por exemplo, a “filosofia e os estudos da linguagem. Inclusive um dosgrandes pensadores da humanidade, ou seja, Tomás de Aquino, cita oPseudodionísio aproximadamente 1700 vezes ao longo de sua volu-mosa obra”.

O Aquinate foi profundamente influenciado pelo Pseudodionísio4.Um exemplo dessa influência é a discussão sobre os nomes divinos naQuestão N. 13 da Suma teológica. Nessa questão ele cita seis vezes oPseudodionísio e faz afirmações profundamente semelhantes às tesesdesenvolvidas pelo pseudodionísio nos Nomes divinos. Para Tomás deAquino, numa perceptiva geral, os nomes, as palavras, são “deficientes

3 Para as citações da Suma teológica de Tomás de Aquino, será utilizada a sigla ST e orespectivo número do parágrafo.

4 Sobre a influência do Pseudodionísio, o Areopagita, na obra de Tomás de Aquino,recomenda-se consultar: Castro (2009), O’Rourke (1992) e Twetten (2005).

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para representar a Deus” (ST, q. 13, a. 2, r. 3). É por esse motivo que“nenhum nome convém a Deus segundo a razão com a qual é atribu-ído à criatura” (ST, q. 13, a. 5, objeção 3).

Por essas afirmações do Aquinate, nada pode ser dito sobre os no-mes divinos. Elas são produzidas sob influência do pensamento doPseudodionísio.

Para o Pseudodionísio, Deus está “muito longe de qualquer ma-neira de ser, de todo movimento, vida, imaginação, opinião, nome,palavra, pensamento, inteligência, substância, estado, princípio, união,fim, imensidade. De tudo quanto existe” (ND, I, 5). Por esse motivo,“não é possível designar seu nome nem seu modo de ser, pois se elevamuito acima de todo entendimento. É um mistério muito distante darealidade das coisas” (ND, XIII, 3).

O Pseudodionísio afirma que nenhuma palavra pode apresentarou expressar a realidade divina. Isso acontece porque Deus é uma rea-lidade que está fora da realidade humana, que transcende todos osseres, toda linguagem e todo conhecimento. Por esse motivo, “nãopodemos alcançar com o pensamento nem com as palavras o um, oincognoscível, o supraessencial” (ND, I, 5). Por esse motivo, Deus éinominável e, por conseguinte, só resta ao ser humano o silêncio místi-

co, ou seja, a apreensão totalmente desnudada da linguagem humana edireta da divindade por meio da contemplação. Nesse caso, a contem-plação é feita diretamente por meio da Eucaristia.

Com isso, o Pseudodionísio termina caindo em uma espécie deargumento de Parmênides, ou seja, Deus é uno, perfeito, tudo pode e,ainda por cima, está totalmente fora do alcance humano. Por isso,nada sobre Deus pode ser afirmado. Nem mesmo a palavra “Deus”deve ser pronunciada, pois toda forma de expressão linguística sobreDeus é imperfeita, incorreta e não apresenta a realidade divina. O ho-mem só tem acesso a Deus mediante a contemplação eucarística, poisnela existe a adoração em “Espírito e verdade” (João 4,24).

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De um lado, Tomás de Aquino concorda com o Pseudodionísiono tocante ao fato de Deus estar fora da realidade humana e que ohomem não possui uma linguagem capaz de falar sobre Deus de for-ma plena e absoluta, ou seja, “nenhum nome pode designar Deus”(ST, q. 13, a. 1, 1), porque a “essência de Deus está acima do queconhecemos dele e significamos com palavras” (ST, q. 13, a. 1, r. 1). Seisso acontecesse, ou seja, o homem falasse sobre Deus de forma abso-luta, então o próprio homem também seria Deus e, por conseguinte,toda a tradição cristã seria falsa. O problema é que o homem não éDeus e ainda por cima é uma criatura bastante frágil.

Do outro lado, para Tomás de Aquino, se a discussão doPseudodionísio estivesse totalmente correta, então estaríamos diantedo mais radical motor imóvel, ou seja, um Deus totalmente distanteda realidade e que não tem qualquer interesse pelo homem. Um Deusque não salva o homem e nem transforma a realidade. Ao contrário, aBíblia e a tradição filosófica cristã apresentam um Deus próximo aohomem que chega até mesmo a se autoapresentar como amor – “Deusé amor” (1Jo 4,16).

Apesar de um dos seus argumentos estar correto, ou seja, que nãoé possível se afirmar, com convicção, nada sobre Deus, é preciso iralém do Pseudodionísio. É preciso encontrar um argumento filosófi-co que fundamente a relação entre a palavra e Deus, entre o nomeatribuído a Deus e o próprio Deus. Por esse motivo, Tomás de Aquinovai discutir a nomeação de Deus por meio de uma perspectiva filosó-

fico-teológica. Sobre esse assunto, Salles (2010), afirma:O tema da nomeação de Deus em Tomás de Aquino emerge naconfluência tanto de uma perspectiva filosófica quanto teológi-ca, ou seja, tanto na perspectiva da nomeação de Deus pela vianatural/racional quanto na perspectiva da nomeação de Deuspela via da doutrina sagrada, que se baseia na revelação bíblica(SALLES, 2010, p. 68).

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Do ponto de vista teológico, o Aquinate afirma que o homem é“imagem e semelhança” (Gênesis 2,20) de Deus e recebeu dele o poderde “dar nome a todos os animais, às aves do céu e a todas as feras”(Gênesis, 2, 20). Além disso, por meio de Jesus Cristo Salvador, o serhumano ser torna “participante da natureza divina” (2Pedro 1,4).

O que o Aquinate está demonstrando, por meio de citaçõesbíblicas, é que, apesar da linguagem humana não poder falar de formadireta e absoluta de Deus, é possível se falar, mesmo de forma indiretae limitada, sobre ele. O homem, ou seja, a imagem e semelhança deDeus, tem algo a falar sobre esse mesmo Deus. Portanto, apesar de osnomes que o homem atribui a Deus não serem exatamente a nomea-ção correta de Deus, é possível nomeá-lo. É possível atribuir nomes àdivindade. E essa possibilidade Tomás de Aquino vai apresentar pormeio de uma discussão filosófica.

2. Tomás de Aquino e os nomes divinos

Para Tomás de Aquino, deve-se afirmar sempre que “não podemosnesta vida conhecer a essência divina como existe em si mesma, masnós a conhecemos representada nas perfeições das criaturas” (ST, q. 13,a. 2, r. 3), ou seja, não se vê e se conhece Deus de forma direta, mas pormeio de um espelho, que são as diversas criaturas presentes na natureza,incluindo o próprio homem. Ao se olhar para as criaturas, especial-mente para o homem, imagem e semelhança de Deus, se observa o serdivino.

É justamente por meio dessa observação que são “tomados os no-mes divinos” (ST, q. 13, a. 2, r. 2). Para Tomás de Aquino, os “nomessignificam Deus de acordo com o que nosso intelecto conhece dele.Ora, nosso intelecto conhece Deus a partir das criaturas, assim, ele oconhece como estas o representam” (ST, q. 13, a. 2, r. 3). Por essemotivo, quando se diz, por exemplo, “Deus é bom”, isso implica que

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o que o homem entende por bondade preexiste e é advindo de Deus.Nesse caso, não significa que Deus seja de fato bom. Na verdade eleestá acima da bondade. Ele é a causa da bondade, que existe na suaimagem e semelhança, ou seja, no homem. E por existir bondade nohomem, então é possível atribuir o nome de “bom” a Deus e, porconseguinte, dizer: “Deus é bom”. Por analogia, deve-se aplicar o mes-mo raciocínio a outros nomes que são atribuídos a Deus, como, porexemplo, pai, perfeito, amoroso, amigo e outros.

Em Tomás de Aquino (ST, q. 13, a. 1, r. 1) o homem só podenomear algo se for conhecido pelo intelecto. Dessa forma, a nomea-ção direta e absoluta de Deus é impossível, pelo fato de o homem nãoconhecer diretamente a Deus. O homem conhece a Deus por meiodas criaturas existentes na natureza, segundo a relação de princípios, epelo modo da excelência e da negação que cada criatura possui. Porexemplo, as criaturas possuem altura, no entanto, não conhecemos aaltura de Deus. Além disso, a princípio, Deus não tem altura. Por essemotivo, podemos nomeá-lo de “altíssimo”.

Para o Aquinate (ST, q. 13, a. 1, r. 2), atribuímos nomes abstratospara significar a singularidade de Deus, como, por exemplo, “pai” e“bom”, e nomes concretos para significar sua substância e perfeição,como, por exemplo, “perfeito”, “criador” e “único”. No entanto, to-dos esses nomes são falhos e incompletos quanto ao modo de Deus serem si mesmo, pois são produto do intelecto humano e, por sua vez,esse intelecto não conhece a Deus, tal como ele é.

O que o intelecto faz é perceber que há certo grau de perfeição nascoisas e no próprio homem. Por meio do princípio de participação –ou seja, o homem é coparticipante da perfeição de Cristo (Romanos8,17; Efésios 3,6) –, é possível ao intelecto humano inferir que existeem Deus um grau de perfeição muito superior ao existente no serhumano. Por exemplo, se há coisas boas e doces na realidade, entãoem Deus há um grau muito superior de bondade e de doçura. Com

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isso, é possível dizer, por exemplo, que Deus é “bom”, “doce” ou ainda“boníssimo” e “dulcíssimo”.

Sobre essa questão, Salles (2010) ressalta:Graças à realidade do ser como ato causado e participado e aovalor epistemológico da analogia, os nomes predicados de Deussignificam realmente a essência divina, mas não de modo per-feito tal como é em si mesma, mas segundo o nosso modo deentendê-lo, isto é, imperfeitamente e analogicamente. Com efei-to, os nomes divinos significam essencialmente o que Deus é,mas não segundo a perfeição que possuem no esse divino, já quesão concebidos por nós a partir das perfeições existentes nascoisas. (SALLES, 2010, p. 70).

De acordo com Tomás de Aquino, pelo fato de “Deus serincorpóreo” (ST, q. 13, a. 3, a. 3), ou seja, o homem só ter acesso a ele“mediante a fé” (1Pedro 1,5), a qual é o firme fundamento das “coisasinvisíveis” (Romanos 1,20), só é possível nomear Deus por meio demetáforas. Quando se diz, por exemplo, que “Deus é bom”, a palavra“bom” que consta na proposição é apenas uma metáfora que fala sobreDeus. Em hipótese alguma está representando Deus em si mesmo,mas apenas representa metaforicamente o que Deus é e, ao mesmotempo, o desconhecimento do homem sobre ele. É por isso que “to-dos os nomes atribuídos a Deus o são por metáforas” (ST, q. 13, a. 3,r. 1) ou de outra maneira: “nomes só podem ser atribuídos a Deus pormetáforas” (ST, q. 13, a. 3, r. 1).

Nisso o próprio Aquinate pergunta: “Os nomes atribuídos a Deussão sinônimos?” (ST, q. 13, a. 4). Dentro da discussão que é travada,ou seja, dos nomes divinos, essa é uma pergunta de suma importância.Apresentam-se dois motivos para essa importância. Primeiro, se Deusé perfeito, eterno e está além da realidade humana, então apenas umaúnica palavra humana poderá representar a Deus. Ao invés de se dizerou se criar uma dezenas de palavras, bastará ao homem estabelecer queapenas uma única palavra será o suficiente para designar e significar

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Deus. Segundo, tanto filosoficamente como historicamente, são atri-buídos diversos nomes a Deus, tais como: uno, único, bom, perfeito,eterno e outros. Se os nomes atribuídos à divindade forem sinônimos,então bastará apenas uma palavra para unir as diversas formas linguísticasexistentes.

O Aquinate (ST, q. 13, a. 4, r. 3) demonstra que, apesar de Deusser uno e único – sem entrar na discussão filosófica da trindade –, ointelecto humano apreende-o de forma múltipla. Se o homem apre-endesse Deus de forma una e única o próprio homem seria Deus. Nãohaveria distinção entre o homem e Deus. No entanto, isso não aconte-ce. O intelecto tem acesso a Deus de forma indireta, parcial, limitadae imperfeita. Ele não conhece Deus em si mesmo, mas apenas as múl-tiplas manifestações de Deus, ou seja, o intelecto conhece a manifesta-ção, por exemplo, da bondade, do amor e da mansidão de Deus. Eleconhece as manifestações, mas não Deus em si.

É por isso que Tomás de Aquino conclui afirmando que os “no-mes atribuídos a Deus, ainda que signifiquem uma única coisa, nãosão sinônimos, porque a significam segundo razões múltiplas e diver-sas” (ST, q. 13, a. 4, r. 1). Cada nome atribuído a Deus é distinto dooutro nome, ou seja, apresenta uma manifestação diferente de Deus,um atributo, uma razão diferente. Para o Aquinate dizer, por exem-plo, que “Deus é bom” não é o mesmo que afirmar que “Deus é per-feito” ou então “Deus é eterno”. Essas proposições apresentam e signi-ficam atributos e manifestações diferentes de Deus. Por isso, não épossível afirmar que os nomes divinos são sinônimos.

Outra pergunta de suma importância que o Aquinate (ST, q. 13,a. 5) faz é a seguinte: “os nomes são atribuídos a Deus e às criaturas damesma maneira?”, ou seja, a mesma significação de um nome atribu-ído a Deus é dada também ao homem? Essa pergunta torna-se impor-tante, porque muitos nomes que são atribuídos a Deus também sãoatribuídos ao ser humano. Por exemplo, é comum se dizer que “Deus

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é bom”, “Deus é amor” etc. No entanto, também se afirma tal coisado ser humano. É possível dizer, por exemplo, “Pedro é bom” ou “Joãoé amor”. A questão é que Pedro e João são meros mortais e não Deus.

Para Tomás de Aquino (ST, q. 13, a. 5, a. 3), não é possível nome-ar Deus de forma plena e perfeita. Por mais que o ser humano desen-volva palavras e expressões lingüísticas, nunca será possível expressar aessência de Deus. Ele sempre será o inominável, pois “Deus está maisdistante das criaturas do que estas podem estar umas das outras” (ST,q. 13, a. 5, a. 3).

Apesar disso o homem só pode “nomear Deus a partir das criatu-ras” (ST, q. 13, a. 5, r. 1), ou seja, devido a sua condição de ser limita-do e imperfeito, o homem só pode dar qualquer nome a Deus a partirda realidade presente nas criaturas. E somente isso. É por esse motivoque é possível dar o mesmo nome a Deus e a uma criatura. Por exem-plo, é possível afirmar que “Deus é bom” e também que “Pedro ouJoão é bom”. Nesse caso, tanto Deus como Pedro ou João são possui-dores do adjetivo “bom”.

O problema é que o adjetivo “bom” aplicado a Deus demostra e sig-nifica uma característica que está inserida em Deus, ou seja, por essênciaDeus é bom e, além disso, possui qualquer outro atributo que o homempossa lhe dar (perfeito, eterno etc.). Já, quando se diz que um indivíduo(Pedro, João etc.) é “bom”, está se apontando um acidente de sua substân-cia e não algo que compõe sua essência. Em sua essência o homem não ébom, mas possuidor da bondade, e também não é possuidor de qualqueroutro atributo que possa lhe ser atribuído.

Sobre essa questão Tomás de Aquino afirma:Quando o nome de alguma perfeição é dito de uma criatura,significa essa perfeição como distinta, por definição, das outras.Por exemplo, quando se atribui a um homem o nome de sábio,expressamos uma perfeição distinta da essência do homem, desua potência, de seu ser etc. Ao contrário, quando atribuímos

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esse mesmo nome a Deus, não pretendemos significar algo queseja distinto de sua essência, de sua potência ou de seu ser (ST,q. 13, a. 5, r. 1).

Após essa exposição, Tomás de Aquino (ST, q. 13, a. 8, r. 1) partepara saber se o nome, a palavra “Deus” de fato expressa, comunica oque significa Deus. É preciso ver que, de um lado, Deus é perfeito einsoldável. Uma palavra, como, por exemplo, “Deus”, não poderá es-gotar a infinitude de Deus. Do outro lado, Deus é um ser cheio demúltiplas e infinitas qualidades, das quais o homem só tem acesso auma pequena porcentagem. A palavra “Deus” em hipótese alguma es-gota ou expõe sua infinitude. Isso cria um grande empasse, pois a pa-lavra “Deus” é largamente utilizada dentro do convívio social e estápresente na Bíblia, no magistério e na liturgia da Igreja. Em todos osinstantes e em todos os lugares as pessoas usam essa palavra para signi-ficar o ser criador e responsável por todos e por todas as coisas.

Para Tomás de Aquino (ST, q. 13, a. 9, r. 1), qualquer nome queseja dado a um ser individual não pode significar a plenitude desse ser.Por exemplo, um nome como “Pedro” ou “João” não pode significartoda a rica personalidade e a essência de um indivíduo. Em síntese,trata-se de um nome de reconhecimento, de figuração, de semelhançae de comparação, mas nunca reproduz a essência do indivíduo. Quan-do se nomeia, por exemplo, “Pedro” ou “João”, ao mesmo tempo,está sendo realizado um reconhecimento de um individual, se aponta-do para sua figura e apresentando semelhanças e comparações comoutros individuais, mas nunca está significando, de forma plena e ab-soluta, sua essência.

A essência de um individual não se resume ao nome, à palavra. Seo nome tivesse o poder de resumir e significar totalmente a essência deum individual, não haveria separação entre nome e objeto. Pelo con-trário, haveria uma radical união entre ambos. Quando um nome fos-se pronunciado, automaticamente o objeto se faria presente. Por exem-

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plo, em uma aula de história, quando o professor pronunciasse a nome doconquistador romano “César”, apesar dele estar morto a séculos, automa-ticamente ele se materializaria na sala de aula. A questão é que tal coisa nãoacontece. As palavras representam, mas não são os objetos.

O Aquinate não constrói um realismo radical entre palavra e obje-to, onde a palavra expressa, de forma absoluta, o objeto. Seu realismoé de cunho moderado, ou seja, a palavra materializa a significação doobjeto, mas não o objeto em si.

Por isso, Tomás de Aquino afirma que apesar de o nome “Deus”não significar a multiplicidade existente na natureza divina, é um nomeque deve ser utilizado “segundo a opinião” (ST, q. 13, a. 9, r. 1), ouseja, a palavra “Deus” foi e deve continuar sendo utilizada para repre-sentar o ser divino. É uma palavra que goza de amplo prestígio social,que está presente nas diversas culturas, na Bíblia, no magistério e naliturgia da Igreja. É uma palavra que não diz o que o ser divino é em si,mas, de um lado, comunica aos demais indivíduos toda à carga se-mântica que se deseja apresentar sobre o ser divino, e, do outro lado,possibilita que o homem rompa o isolamento, a insegurança e o vaziodiante desse ser. Diante do ser divino, o homem é o nada. No entanto,a palavra “Deus”, ao ser pronunciada em um momento de intimidadecom o ser criador, como, por exemplo, em uma oração, permite que ohomem temporariamente deixe de ser o nada e passe a ser elevado anobre categoria de “filho de Deus” (1João 3,2). É uma palavra querompe o isolamento do homem diante do criador. Ela é uma possibi-lidade de comunicação entre o homem e o ser divino.

Por fim, afirma-se que a discussão de Tomás de Aquino sobre osnomes de Deus contribuiu decisivamente para aprofundar o tema du-rante a Idade Média e também na modernidade. Apesar de atualmenteser um tema periférico dentro da filosofia, ele é de suma importânciapara se compreender os problemas linguísticos que estão em torno da

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problemática de Deus e todos os demais temas suscitados dentro dafilosofia e da teologia.

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AS VIAS ASCÉTICA E MÍSTICASEGUNDO SANTO TOMÁS

DE AQUINO

Paulo Faitanin *

Resumo: O objetivo deste artigo é brevemente resumir e apresen-tar as vias de perfeição da vida espiritual, as vias ascética e mística,segundo Tomás de Aquino, e especialmente a partir da sua obra Liber

de perfectione spiritualis vitae.

Palavras-chave: Espiritualidade, Vias de perfeição, Filosofia Me-dieval, Tomás de Aquino, Tomismo.

Abstract: The aim of this paper is briefly summarize and presentthe ways of perfection of the spiritual life, the ascetic and mysticalway, according to Thomas Aquinas and especially from his work Liber

de perfectione spiritualis vitae.

Keywords: Spirituality, Way of Perfection, Medieval Philosophy,Thomas Aquinas, Thomism.

Introdução

Segundo Tomás, três são os graus de intensidade com que a caridade

se estabelece na alma humana: principiante, proficiente e perfeita. Aquelestrês graus da caridade constituem as três idades da vida interior doespírito. Eles estão correlacionados às duas vias de perfeição: a via

* Professor de Filosofia medieval da Universidade Federal Fluminense. E-mail:[email protected]

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ascética1, de purificação e aperfeiçoamento, à qual os principiantes e osproficientes pertencem e a via mística2, de contemplação e união com acaridade divina, a qual os perfeitos pertencem. Estas duas vias são osacessos comuns à perfeição da vida espiritual. Consideremos, pois, osseus obstáculos e as condições de superação.

Assim como o pecado entra pela parte mais nobre da alma e, des-cendo, faz morada nas partes inferiores, do mesmo modo, a caridadeentra pela parte mais nobre e purifica primeiramente as partes inferio-res, ascendendo até as superiores. Por isso, exigem-se três graus de in-tensidade da caridade, porque, como veremos, são três os graus deintensidade do pecado. Nas exposições que se seguem, considera-seprimeiramente na via ascética a ordem do pecado e do grau da caridadenos principiantes e proficientes e depois na via mística a ordem dopecado e o grau de caridade correspondente. Em ambos os casos rela-cionar-se-ão ao grau e intensidade da caridade correspondente às gra-ças, virtudes, dons e os devidos cuidados exigidos.

1. A VIA ASCÉTICA: principiantes e proficientes

A via ascética causa no homem a ‘noite’ dos sentidos, mediante apurificação do corpo. Para entender isso é preciso compreender a rela-ção entre corpo e alma e entre ascética e mística. Assim como o corpoestá para a alma, a ascética está para a mística, pois há certa relaçãoentre a purificação da alma pelo corpo (ascese) com a purificação docorpo pela contemplação da alma (mística). A ascética orienta-se natu-

1 A palavra ascética ocorre apenas uma vez em todo o Corpus Thomisticum [SententiaEthic., lib. 9 l. 10 n. 15.] e significa purificação.

2 A palavra mystica ocorre muitas vezes no Corpus Thomisticum e se refere: ao revelado,ao secreto [Sententia Ethic., lib. 3 l. 3 n. 12], ao oculto [De div. nom. proemium], ao queexcede o nosso intelecto [De div. nom., c.2, lec.4] e à contemplação [Super Sent., lib.1d.3, q.1, a.1, s.c.2].

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ralmente para a mística e nisto se configura a vida interior do homem.Trata-se, pois, de uma orientação que começa com a graça sobrenatu-ral e se serve do concurso do esforço humano em purificar-se, enquan-to se beneficia, sobrenaturalmente, da caridade divina3 e atinge umaperfeita união com Deus.

A ascese é assegurada fundamentalmente pela abstinência, funda-mento de muitas outras virtudes: jejum, castidade, penitência, mortifi-

cação, abstendo-se até das coisas lícitas para entregar-se mais livremen-te ao serviço de Deus4. Enfim, a ascese é a prática de purificação daalma, mediante a renúncia dos bens exteriores. Isso não seria possívelsem a disciplina do corpo, com relação aos prazeres. Esta reta ordena-ção da alma pelo corpo ao verdadeiro bem se dá porque a inteligênciailuminada pela graça discerne a verdade e influencia a vontade fortale-cendo-a quanto ao fim a ser almejado, ao mesmo tempo em que evitao mal e orienta e corrige os exageros das paixões. Como se trata de umgradativo crescimento espiritual, aqueles que possuem o grau principi-ante da caridade, se enquadram na via ascética, onde procuram a puri-ficação, progridem na caridade e demais virtudes, culminando com orecebimento de outros dons.

§ 1. PRINCIPIANTES: conversão, obstáculos e superação

A caridade principiante é própria daquelas almas que se preocupamem afastar-se do pecado e resistir aos atrativos que as conduzem para oque é contrário à caridade5. De um modo geral, mas não único e ex-clusivo, a caridade nos principiantes decorre da alma tocada pela graçasacramental. Este bem espiritual, dado por Deus à alma, insere-a numa

3 TOMÁS DE AQUINO. STh. II-II, q.84, a.3, c.

4 TOMÁS DE AQUINO. STh. II-II, q.84, a.3, ad 3.

5 TOMÁS DE AQUINO. STh. II-II, q.24, a.9, c.

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visão mais nítida da realidade do pecado. E com a verdade inefável queleva consigo, a graça torna a alma consciente e responsável acerca doverdadeiro estado de pecado em que se encontra. Forma-seconcomitantemente na consciência a certeza da ofensa cometida, aomesmo tempo em que a certifica e a conforta acerca da ação misericor-diosa e acolhedora de Deus. Segue-se a este movimento um desejointenso de reparação do mal, resultante do arrependimento. Todo esseprocesso de abandono do pecado e de abertura e acolhimento da graçaé a conversão, que não é outra coisa senão o retorno consciente e res-ponsável do homem para Deus.

O dom da vida é o primeiro e o mais precioso bem que Deus dá ao

homem. Nele se inscreve, a modo de imagem e semelhança, a perfei-ção de Deus, que encalça a inclinação natural do homem para o pró-prio Deus. Contudo, por causa da lei da concupiscência, esta lei en-contra-se desordenada quanto ao seu fim próprio, porque perverte ofim último e próprio do homem. Por isso, o dom da vida, ao qual seatribuíram na tradição os nomes alma e espírito, é o sujeito de todagraça divina dada ao homem6. Contudo, o dom da vida se, por umlado, se faz necessário para a perfeição do espírito, porque é pressupos-to para o recebimento e acolhimento ulterior de toda graça, por outrolado, não basta ele mesmo para que o espírito alcance, apenas com assuas forças, esta perfeição espiritual.

E isso porque o pecado privou-o da força sobrenatural que origi-nariamente lhe orientava para o bem essencial da natureza humana: asantidade. Em razão do exposto, é preciso que se acresça sobre estedom outros bens que também disponham o espírito humano para oacolhimento, crescimento e alcance da perfeição espiritual. Revestidade graças, a alma é fortalecida para superar os obstáculos que a afligem,

6 O Pe. Gardeil desenvolve profundamente a estrutura metafísica da alma e a suaexperiência mística na seguinte obra: GARDEIL, H. D. La structure de l’âme et l’expériencemystique. Paris: Victor Lecoffre, 1927, esp. vol. 1, pp. 1-350.

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como os vícios mortais e veniais, especialmente, a malícia, a ignorância

e a fraqueza, que lhe advêm por força da concupiscência. De igualmodo, a graça ilumina a inteligência e esta, por sua vez, torna-se capazde orientar a vontade, capacitando-a a exercer seu arbítrio e sua auto-nomia, segundo o bem e a verdade, sobre as paixões, dispondo habitu-almente seu ato de vontade como virtude. Mas tudo isso conforme ocrescimento na graça e a adequada disposição natural do homem.

Se a soberba é o início de todos os pecados, a avareza é a sua raiz. Asalmas que se convertem e são principiantes na caridade devem purificarprimeiramente as filhas da avareza antes mesmo de travar combate coma avareza e com a soberba. De fato, já terão iniciado esta luta quando sedispõem a combater aquilo que se segue da avareza no homem: a con-cupiscência da carne. Esta é a primeira desordem a ser vencida. Bem, adesordem que a avareza causa na vontade não se traduz só na buscadesordenada das riquezas, mas também se estende na busca desordenadados bens que se referem à conservação do indivíduo, como na procurae posse dos bens para o corpo, como o alimento e a bebida. Disso sesegue o pecado, denominado gula, que é o apetite desordenado do de-

sejo e do deleite de alimentos7. Do mesmo modo, a desordem da avareza seestende à busca dos bens que se referem à conservação da espécie, como aunião dos sexos, cuja desordem denomina-se luxúria, que é o apetite

desordenado do desejo e dos prazeres sexuais8.

Denominam-se genericamente impureza a ambos os pecados dagula e da luxúria e, porque o primeiro leva ao segundo9, mais propri-amente denomina-se impureza o da luxúria. O Aquinate diz que aconcupiscência sexual é tanto mais forte quanto maior é a atençãodada ao corpo, seja com a abundância de alimentos ou com as delícias

7 TOMÁS DE AQUINO. STh. II-II, q.148.

8 TOMÁS DE AQUINO. STh. II-II, q.153.

9 JOSEMARÍA ESCRIVÁ. Caminho, n. 126: “A gula é a vanguarda da impureza”.

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das comodidades e, para tanto, cita São Jerônimo na Epistola 69, n. 9que diz: o ventre acalorado pelo vinho logo arroja a espuma da luxúria10.E porque a concupiscência da carne, como a gula e a luxúria, derivamda soberba do espírito, e porque cabe à caridade perfeita combater asoberba, competirá à caridade principiante combater já no início a concu-piscência da carne. Por isso, ainda sob a luz da virtude infusa da fé, a almaque se converte, motivada em seu ânimo pela semente da graça do amor,procura especialmente adquirir as virtudes morais da temperança e for-

taleza, porque são elas que moderam os apetites sensíveis e irascíveis,pelos quais se buscam ou se evitam os bens e os males sensíveis.

Aliadas às graças, as virtudes da temperança e da fortaleza disporãona alma do converso força e cuidado úteis para opor-se aos obstáculose progredir na caridade. A meta é alcançar a virtude da castidade, por-que a luxúria e as suas espécies, são normalmente subsequentes à gula.Tal virtude não é adquirida segundo o esforço natural do homem,porque é um dom de Deus. Como Deus o confere a quem Lhe pedehumildemente, é solícito em espírito e disciplinado no corpo, pararecebê-la, além de pedi-la a Deus há de colocar os meios necessários11.Para tanto nunca é demais recordar quais são os obstáculos que dificul-tam a alma conversa no alcançar ou no participar mais intensamentedeste dom e quais são as virtudes necessárias para tanto.

§ 2. PURIFICAÇÃO: a ‘noite’ dos sentidos

Cabe aos principiantes combaterem as desordens da concupiscên-cia. Quatro são as pedras de tropeço postas no caminho do principian-

10 TOMÁS DE AQUINO. De perfec. spir. vitae., c.10.

11 JOSEMARÍA ESCRIVÁ. Caminho, n. 118: “Deus concede a santa pureza aos que a pedemcom humildade”. Cf. IDEM. Forja, n. 845: “(...) Mas toda a diligência humana, com amortificação, e o cilício, e o jejum – armas necessárias! -, que pouco valem sem Ti, meuDeus!”

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te que busca a continência. Em primeiro lugar se lhe opõe o própriocorpo, pelos vícios da gula e da luxúria, que devem ser combatidoscom o jejum, a vigília, os exercícios físicos, banho frio etc. Em segun-do lugar, se lhe opõe a própria alma, mediante a imaginação e os pen-samentos lascivos, que devem ser combatidos com o próprio pensa-mento absorto nos mistérios divinos (meditação e contemplação); aoração – pois o louvor divino freia os impulsos intempestivos da ima-ginação; jaculatórias; o estudo da Sagrada Escritura; a leitura espiritual;o estudo e a pesquisa visando o bem comum; os bons pensamentos,relacionados sempre que possível à família, ao trabalho, aos amigos; opróprio trabalho para evitar a ociosidade e a preguiça, que são portasde entrada de muitas outras tentações e, também, com a aceitação dealguns sofrimentos, não os que procuramos, mas sobretudo, aquelesque nos chegam sem a nossa deliberação. Em terceiro lugar, se lheopõem também as coisas que os rodeiam, muitas delas indignas em simesmas, as quais se devem combater com a guarda da vista e de todosos demais sentidos, evitando prudentemente seu contato. Em quartolugar, as pessoas com quem tratamos, as quais, por seus atos ou com-portamentos, impedem de modo direto ou indireto o progresso navida de perfeição, por meio de conversas, atitudes, vestimenta, tenta-ções que devem ser combatidas com a solidão, modéstia, boa conver-sa, desviando um mau assunto para um bom etc12.

São muitas as fontes interiores e exteriores de que o cristão dispõepara alcançar a santidade do espírito mediante a purificação do corpo.São fontes interiores as graças sacramentais, as virtudes infusas e osdons do Espírito Santo que atuam intimamente na vida do espírito,sobre o intelecto, vontade e liberdade, fazendo a Trindade Santa habitá-lo, convertendo-o para Deus, aflorando e fazendo crescer a caridade.Os méritos de Cristo conquistados na cruz, mediante o amor do Espí-

12 TOMÁS DE AQUINO. De perfec. spir. vitae., c.10.

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rito e a “onipotência suplicante” da Santíssima Virgem Maria, bemcomo a intercessão dos Santos Anjos e a dos Bem-Aventurados, sãofontes eficacíssimas de santidade para o homem13. Nem mesmo ossantos homens com os quais uma pessoa convive deixam de prestarinestimável auxílio para a sua alma convertida, que se aproxima cadavez mais do mistério da salvação. As fontes exteriores, que decorremda influência das interiores, são também muitas, mas especialmenteduas importam para os iniciantes: a leitura e a direção espirituais.

A oração é, sem dúvida, o alimento que nutre e fortalece o espírito no

início da vida interior, porque é efetivamente o começo de uma inti-midade do espírito humano, em sua ascensão e aplicação, nas coisas deDeus14. A oração é a moção da graça no espírito e a primeira e maisimportante expressão do início de uma vida de perfeição. Ela é efetivosinal da eficácia da graça que, como fonte interior, move a alma emdireção ao bem perfeito que é a caridade. Munido de graças, o espíritoem oração humilde e atenta causa, sempre de novo e cada vez maisintensamente, a livre conversão do espírito para as coisas divinas e aaversão às coisas contrárias a Deus.

A oração do espírito se estende à oração da carne com a mortificação.Este sacrifício de abrir mão livremente da posse ou uso de alguns benslícitos, em razão de um aperfeiçoamento da vontade, constitui umaverdadeira forma de oração dos sentidos15. Esta oração da carne é a quemais adequadamente educa e disciplina o corpo contra o pecado, por-que se vale dos mesmos instrumentos do corpo16. Mas tanto a oração

13 GARRIGOU-LAGRANGE, R. Les trois âges de la vie intérieure, prélude de celle du Ciel. Paris:Cerf, 1938, pp. 35-191.

14 TOMÁS DE AQUINO. STh. II-II, q.83, a.1, ad.2.

15 JOSEMARÍA ESCRIVÁ. “Vocación cristiana”. In: Es Cristo que pasa: Homilias. Madrid:Rialp, 1985, p. 38.

16 TOMÁS DE AQUINO. In: I Cor. c. 6, lec.3.

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do espírito quanto a mortificação (que é a oração da carne), que coo-pera na superação daqueles quatro impedimentos para que o principi-ante progrida na vida de perfeição, só são possíveis ao homem emrazão da presença da luz divina na alma. Sem esta luz, a alma age se-gundo a lei da concupiscência e se orienta não pela luz da razão ou dagraça, mas pelo brilho natural das coisas exteriores.

Nada há de errado com o brilho natural destas coisas, pois ele ésinal sensível do esplendor do universo. Estes bens, Deus os criou paraatender às necessidades naturais do homem de modo que não lhe trou-xessem dor ou sofrimento. Mas se tais bens não lhe atraíssem, nãoseriam eficazes com respeito ao fim para o qual foram criados. Porisso, o problema não está nestes bens sensíveis, mas justamente naalma, em razão da obscuridade da inteligência por falta do uso ou pelomau uso dos retos princípios da razão, que lhe produz uma luz natu-ral: a luz da inteligência. Mas a carência maior é a da luz sobrenatural,que é a graça, que atua sobre a inteligência e intensifica sua luminosidadee perspicácia natural, elevando-a para a consideração das realidades es-pirituais que lhe transcendem.

Sem a luz da graça a alma se torna refém do brilho externo das coisas

sensíveis, porque estas realidades sensíveis lhe dão prazer mediante asensação, imaginação e paixão. Neste estado, a alma despreza os bensespirituais e se volta para os materiais. Igualmente, a alma, por ser denatureza espiritual, perde o seu verdadeiro fim, seu verdadeiro bem.Escraviza-se e se volta para o movimento de suas faculdades inferiores,que lhe causam de modo imediato e efêmero o prazer do corpo, masnão necessariamente o bem perene da alma, porque tais faculdadesdesorientadas não podem oferecer-lhe seu verdadeiro bem espiritual.

A constância da luz da graça na alma depõe progressivamente o bri-

lho da concupiscência na carne. Do mesmo modo, a graça motiva aoração, causa progressivamente no corpo a ‘noite’ dos sentidos, com a

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morte do pecado na carne17. Mas não é possível o progresso das almasque buscam crescer na perfeição espiritual, se não se mantêm as graçasatuais, um reto propósito e uma constante docilidade e disposição davontade humana18. Para a manutenção das graças atuais é indispensá-vel a assídua freqüência ao sacramento da confissão19. A alma benefi-cia-se com este sacramento, pois se livra da culpa e da morte espiritual,lhe são diminuídas as penas decorrentes da culpa perdoada e ardem odesejo e a esperança de salvação20. Dentre as virtudes morais a maisbeneficiada é a da humildade, que cresce ante a consciência da fragili-dade humana e da infinita misericórdia divina.

A eucaristia é o sacramento da caridade21 e o ápice de todos ossacramentos. Com ela a alma, se bem preparada, se beneficia com ou-tras graças, revigora os dons recebidos na confirmação, obtém progres-sivamente, ainda nesta vida, uma vívida participação da glória, dispõe-se com mais vigor contra os pecados futuros22. De modo especial, aeucaristia melhor dispõe o espírito com graças que iluminam a inteli-gência contra a obscuridade da ignorância, ao mesmo tempo em quefortalece a vontade contra a malícia e contra a fraqueza, além de conce-der a esperança da salvação. Fortalecida e orientada pela luz da graça avontade disciplina o corpo pelas virtudes morais, reorientando os sen-tidos para a luz interior e não mais para o brilho externo das coisas,causando-lhe a ‘noite’ dos sentidos. Assim, a caridade principiante cau-sa o primeiro êxtase na alma do convertido: o êxodo do mal sensível do

interior da alma – concupiscência – pela mortificação do corpo, enquanto

é o início da vida na graça.

17 TOMÁS DE AQUINO. In: Ep. ad Col., c.3, lec.1.18 TOMÁS DE AQUINO. STh. III, q.89, a.2, c.19 TOMÁS DE AQUINO. STh. Suppl. q.10, a.4, c.20 TOMÁS DE AQUINO. STh. Suppl. q.10, aa.1-4, c.21 TOMÁS DE AQUINO. STh. III, q.73, a.3, c.

22 TOMÁS DE AQUINO. STh. III, q.79, aa. 1, 2 e 6.

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§ 3. PROFICIENTES: progressão, obstáculos e superação

A caridade proficiente é própria daquelas almas que, mantendo aassiduidade nos sacramentos, se preocupam em progredir cada vez maisno bem, fortificando e aumentando a caridade23. A caridade nos queprogridem decorre da alma tocada por graças especiais, acrescidas àsvirtudes da fé e da esperança, que lhe faz viver mais intensamente avirtude da caridade. Estas graças decorrem de uma assídua, solícita,consciente e livre participação ativa na vida dos sacramentos. Isso mar-ca o início da vida contemplativa, porque incita a alma a viver intima-mente as verdades reveladas pela ação da graça no espírito.

Com estas graças a alma adquire uma visão mais nítida da realida-de da graça. A graça torna-se o bem salutar do espírito e lhe incita aocrescimento por uma abertura ainda maior a Deus. Edifica-se no espí-rito um desejo intenso de permanecer no bem, de habitar na moradada fonte da graça24. Todo este processo de crescimento e acolhimentoda graça produz uma nova conversão, não mais de um retorno paraDeus, mas de um desejo de permanecer por inteiro em Deus.

A constância na oração, a mortificação e a participação assídua dos

sacramentos fazem o espírito progredir, na medida em que tambémpurifica cada vez mais a vontade, ordenando-a retamente de um modomais perfeito para as coisas divinas. Aliada às graças sacramentais dapenitência e da eucaristia, as virtudes cardeais (temperança, fortaleza,justiça e prudência) crescem em perfeição, e as teologais se tornammais intensas na vida do espírito, proporcionando-lhe discernimentoe o cultivo dos dons do Espírito Santo, recebidos como sementes noSacramento do Batismo e aumentados e confirmados no da Crisma25.

23 TOMÁS DE AQUINO. STh. II-II, q.24, a.9, c.

24 TERESA DE ÁVILA. “Castelo Interior”. In: Obras completas. 2 ed. São Paulo: Loyola,2002, especialmente pp. 561-565.

25 CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, n. 1303.

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A purificação agora se dá internamente na alma, especialmente na ima-ginação, sede e fonte das paixões e lugar de ação daquele que se opõe aeste crescimento: o demônio26.

O progresso da graça na alma a eleva, por sua vez, para a purificação

dos desejos interiores desordenados, como os da vontade, culminando naprópria purificação da inteligência. Mas cabe aos proficientes comba-ter primeiramente as desordens da vontade se desejam progredir nacaridade. Por isso devem começar a combater a avareza, raiz de todos odemais pecados27. Ela deve ser combatida porque é pela avareza que sedireciona a alma, pela vontade, para as criaturas, para os bens corruptí-veis e para as riquezas. Note-se que, da aversão a Deus causada pelasoberba, emerge na alma, pela vontade, a conversão às criaturas. Defato, a avareza é a filha dileta da soberba, assim como são filhas daavareza a gula e a luxúria.

Coube no início da conversão combater mais ferozmente a incon-tinência derivada da concupiscência, mediante a mortificação, que nadamais é que a oração dos sentidos, o que lhe causa uma noite dos senti-dos. Este combate persiste agora, mas se acrescentam também o com-bate à avareza e a sua outra filha, a inveja, este apetite desordenado dos

bens alheios, materiais ou espirituais, que se caracteriza como uma certa

tristeza por considerar que o bem do outro é um mal pessoal28. Competeà vontade orientar-se para o bem que lhe informa e ilumina o intelec-to, mas se o intelecto for corrompido com a vanglória, corrompe-seigualmente a vontade com a avareza e com a inveja. Desorientada,então, a vontade se converterá para quaisquer bens, mesmo que estesnão sejam efetivamente um bem para si.

26 TOMÁS DE AQUINO. STh. I-II, q.80, a.2, c.

27 TOMÁS DE AQUINO. STh. I-II, q.84, a.1, c.

28 TOMÁS DE AQUINO, S. STh. II-II, q.36, a.1, c.

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Contra a avareza e a cobiça, só pode a caridade proficiente, crescidana graça, enquanto atua na alma fortalecendo a vontade e a orientapara o bem perfeito. A caridade proficiente supõe a virtude da justiça,que ordena a vontade com respeito ao bem natural e infunde a virtudeda esperança, que fortalece a vontade quanto ao bem sobrenatural e adispõe para outro dom que é o da pobreza e que consiste, mesmosendo rico, em não ter o coração e a intenção postos senão no amor deCristo29. Os proficientes, em razão deste crescimento na graça e nacaridade, ganham maior discernimento porque são mais intensamenteiluminados. Por isso, se convertem mais intensamente para o amor deDeus e se afastam com mais facilidade das coisas contrárias à caridadedivina, embora isso não dispense a devida manutenção do esforço na-tural humano para superar sempre de novo os obstáculos próprios dequem se inicia na via da perfeição. Sem dúvida, a graça progride etorna mais fácil, sem eximir a luta e a disposição do espírito, superarcertas dificuldades próprias de quem progride na perfeição. Esta facili-dade se deve mais ao gozo intenso da presença e sabedoria divinas doque ao esforço humano. Tudo isso o torna mais dócil às graças advindaspela oração, sacramentos, virtudes e dons. Intensifica-se a luz interior,como que iluminando cada canto da alma ainda obscurecido pelo pe-cado. A lei da concupiscência fica cada vez mais domada, ainda quenão eliminada, a desordem da cobiça cada vez mais superada, aindaque não totalmente tolhida, pois a lei da caridade atua mais intensa-mente, mediante as graças que se intensificam.

§ 4. ILUMINAÇÃO: a ‘noite’ do espírito

A alma proficiente progride na caridade, porque participa e compar-

tilha dos segredos divinos. Isso se deve à docilidade em abrir-se aos dons

29 TOMÁS DE AQUINO. De perfec. spir. vitae., c.8.

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do Espírito Santo que lhe causam uma profunda iluminação30, ondese revela a verdade divina que excede à razão e o torna mais intima-mente partícipe da caridade divina. Como que se intensificando maise mais a luz do Espírito na alma, todos os atos da inteligência e davontade se convertem para produzir obras de caridade. Segue-se inte-riormente, como conteúdo desta iluminação, um maior juízo do queé certo e errado, verdadeiro e falso, bom e mau. A consciência amadu-rece, porque é tocada e educada intimamente pela graça.

A alma apaixona-se profundamente por Deus, enquanto cresce semcessar o ardente desejo de unir-se totalmente à caridade divina. Os queavançam, pois, sentem-se chamados à vida contemplativa, ainda queabsortos na vida ativa31. A diversidade de graus e a intensidade de cadadom do Espírito Santo também produz na alma, cada vez mais, umêxtase, um desejo de sair de si, de transbordar e comunicar a caridadenas obras do espírito. Assim, o espírito humano iluminado passa a serinstrumento de purificação das suas ações e obras, porque tudo se fazpor amor a Deus.

A iluminação proveniente de uma vida de graça intensa é o início da

contemplação na alma dos que almejam viver inteira e plenamente napresença de Deus. Como que revelando andares interiores de umaedificação espiritual, a alma iluminada pelos dons do Espírito Santo,eleva-se em movimento contemplativo circular, que parte do entornode si mesmo, retilíneo porque segue diretamente para Deus, e oblíquo,conjugando o conhecimento de si com o de Deus. Assim, pela con-templação, a alma no conhecimento de Deus se conhece mais a simesma, porque conhece mais a verdade divina32. A graça de Deus naalma do homem revela-lhe quem ele é.

30 TOMÁS DE AQUINO. STh. I, q.109, a.3, c.

31 Tomás não contrapõe vida ativa e contemplativa: STh. II-II, q.182, a.3, c.

32 TOMÁS DE AQUINO. STh. II-II, q.180, a.6, c.

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Associadas aos dons, as virtudes morais, próprias da vida ativa,ganham agora uma maior dimensão espiritual neste início da vidacontemplativa, provocada pelo aumento e intensidade da iluminaçãodecorrente da vida na graça. As virtudes morais são beneficiadas comas graças, pois operam para além das forças naturais humanas33. A pru-dência agora tem por medida não mais as circunstâncias de tempo eespaço, mas a métrica eterna da graça e, do mesmo modo, as demaisvirtudes. A castidade, por exemplo, se faz fecunda porque gera muitosfilhos no espírito. Instaura-se um intenso desejo de servir livremente aDeus, em total obediência aos seus desígnios. O zelo da alma profici-ente pelas coisas divinas é a marca visível de suas ações e nelas se plasmaa caridade dos que progridem. Todos estes frutos provenientes da ilu-

minação elevam a alma para a vida de contemplação. Assim, a caridade

proficiente causa o segundo êxtase na alma que progride: o êxodo do

mal espiritual do interior da alma – avareza e suas filhas – pela mortifi-

cação da vontade e pela luz proveniente das graças, virtudes e dos dons do

Espírito, causando-lhe a ‘noite’ do espírito.

2. A VIA MÍSTICA: perfeitos

A via mística inicia-se no homem com a noite do espírito, onde doescuro do espírito só se contempla a luz do Espírito Santo. O ápice damística consiste na contemplação, pelo auxílio da graça infusa. Embo-ra o Espírito possa causar esta iluminação de ordem sobrenatural semsupor a prévia purificação do espírito, ordinariamente aquela se seguea esta, pois, como já se disse, assim como o corpo naturalmente orde-na-se à alma, a ascética naturalmente orienta-se para a mística. Por isso,a graça supõe o exercício pleno da natureza humana, sobretudo darazão e das faculdades que lhe são subordinadas.

33 GARRIGOU-LAGRANGE, R. Les trois âges de la vie intérieure, prélude de celle du Ciel. Paris:Cerf, 1938, esp. p. 336.

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A mística assegura-se basicamente pela contemplação, fundamentoda união mística com o Amor34. Enfim, a mística é a docilidade daalma ao Espírito Santo, por meio da qual se obtém a contemplação,que se dá mediante a infusão de graças e dons que revelam à alma osmistérios da fé, estabelecendo-lhe, por uma via unitiva, sua união comDeus, a partir da qual podem lhe advir, ainda que não necessariamen-te, outras graças extraordinárias, como as visões e revelações que, àsvezes, acompanham a contemplação infusa.

§ 1. PERFEITOS: perfeição, obstáculos e superação

A caridade perfeita é própria dos que se esforçam para unirem-se a

Deus, contemplando-o35. Contemplar é ver a verdade divina, segundoo desígnio de Deus e a perfeição natural do espírito criado. Mas a almanão a contemplaria sem a iluminação, porque o brilho das coisas exter-nas e mesmo o pseudobrilho da vanglória humana não a deixaria ver. Aentrada da luz divina no espírito humano supõe a “noite” do pecado. Estaobscuridade decorre da ausência daquele falso brilho advindo da concupis-cência e das demais espécies de pecados do espírito. Além do mais, a gran-de intensidade da graça faz parecer à alma que encontra na treva, mesmoquando possua uma luz natural que lhe é própria e nada tenha que vercom o brilho do pecado refletido internamente na alma.

A soberba é o início de todos os pecados36 e causa a aversão da almaa Deus. Cabe ao intelecto o conhecimento da verdade que lhe excede eque só encontra em Deus. Ora, como o pecado da soberba atinge ointelecto, a primeira conseqüência recai sobre a razão que, desordenadapelo pecado da soberba, não consegue alcançar a verdade natural nem

34 TOMÁS DE AQUINO. STh. II-II, q.184, a.3, ad 3.

35 TOMÁS DE AQUINO. STh. II-II, q.24, a.9, c; In Isaiam, c.44.

36 TOMÁS DE AQUINO. STh. I-II, q.84, a.2, c.

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a que lhe transcende, causando-lhe o orgulho ou vanglória, que é oapetite desordenado da própria excelência. Segue-se imediatamente àsoberba, como conseqüência desta glória de si, a preguiça, que é o

apetite desordenado configurado como uma profunda tristeza no espírito

do homem, de tal modo que ele não tem ânimo de conhecer ou fazer

nada, apetite este manifestado num torpor do espírito que não pode em-

preender o bem e a verdade37.

Cabe ao perfeito combater sobretudo a soberba da alma. Mas só acaridade perfeita combate a soberba e restitui ao intelecto o bem perfeitoperdido, porque a caridade atua na alma, convertendo-a plenamente aDeus e iluminando o intelecto pela verdade suprema, na medida em quedissipa as trevas da razão, que lhe faziam crer na falsidade de sua excelênciapessoal. A caridade perfeita supõe por parte do esforço humano a aquisi-ção da virtude da prudência, que ordena a razão para a verdade natural. Domesmo modo, ela supõe previamente estabelecida a virtude infusa da fé,pela qual se ilumina a razão com a verdade sobrenatural. Também supõeestabelecida a virtude infusa da esperança, pela qual se fortalece a vontadecom relação à busca do bem sobrenatural.

A virtude da esperança leva em seu interior a semente da virtude dacaridade que aumenta, porque esta última se intensifica e torna a almaplenamente convertida para Deus, dando-lhe o conhecimento de suaverdade e do seu bem. Por isso, a caridade perfeita, já nesta vida, tornaa coroa da perfeição espiritual – a liberdade – plenamente solícita, ser-va, entregue e obediente a Deus. Desse modo, a caridade perfeita con-duz a alma para a obediência, que é um dom, pelo qual se dá a escuta eo cumprimento integral da vontade de Deus. Assim, só com o últimograu de perfeição da caridade combate-se a soberba, a raiz primeira detodos os pecados. Assim, desnudada a alma do que contraria a carida-de divina, a graça a ilumina e a faz ver-se e revela-lhe as verdades divi-

37 TOMÁS DE AQUINO. STh. II-II, q.35, a1, c.

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nas. Ascendendo como um espiral, a alma contemplativa é, ao mesmotempo, levada à escuridão, seja porque a luz da caridade faz parecer treva asua luz natural ou porque a priva plenamente de todo e qualquer ‘brilho’do pecado. Ela, deste modo, é mais intensamente iluminada pela graça,mediante um movimento que parte do conhecimento mais pleno de siaté o conhecimento do que Deus lhe permite saber38.

A virtude da caridade cresce na alma contemplativa conforme odom da sabedoria a engrandece pela força do Espírito Santo39. De fato,a virtude da caridade se torna mais intensa à medida que cada dom doEspírito ilumina, purifica e nutre as faculdades da alma, como a inte-ligência, a vontade e a liberdade. Mas isso não significa que a almaprecise pensar, pois sendo uma verdade infusa não exige nenhum mo-vimento ou esforço do intelecto, sendo supostas somente a sua natu-reza e docilidade. Uma vez mais a alma é purificada intensamente,sendo-lhe provocado o êxodo do orgulho, pois a caridade perfeita nãopode coabitar com a raiz de todo pecado mortal. Diz-se perfeita acaridade, porém não absoluta, porque somente a Deus pertence a cari-dade absoluta. A caridade no espírito humano é perfeita porquecorresponde proporcionalmente à perfeição da natureza humana e nãoporque excede ou se equipara à fonte mesma da caridade que é Deus.

§ 2. UNIÃO: matrimônio místico

Enamorada de Deus a alma aspira entregar-se-Lhe plenamente,unindo-se a Ele e não mais desejando d’Ele se separar. Esvaziada de simesma e preenchida pela caridade divina a alma humana almeja habi-tar a morada celeste, deixando o corpo de morte que ainda lhe arrastapara o pecado. A alma que se une a Deus pela caridade perfeita e pela

38 JOÃO DA CRUZ. “Noite Escura”. In Obras completas. Petrópolis: Vozes, 2002, pp.437-572.

39 TOMÁS DE AQUINO. STh. II-II, q.45, aa.1-6.

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presença divina no seu interior – um conhecimento quase experimen-tal de Deus40 –, deve ser cuidada com mais vivacidade do que se cuidada alma que se inicia na caridade, porque uma moção de pecado, pormínima que seja, a levaria instantaneamente para o início, do mesmomodo que se poderia ir da caridade principiante à perfeita41. Exige-se,pois, que o espírito se encontre maduro na fé, na esperança e na carida-de. Igualmente fiel e perseverante na oração e súplica, pois não é avirtude humana que mantém a presença divina no seio divino, mas amisericórdia divina que ama e quer por inteiro a alma piedosa.

Mas como a graça de Deus não obriga ninguém, o homem perma-nece livre42, embora sua escolha esteja voltada para eleger o bem que éa própria caridade. Mas em sua condição carnal, pois esta união carita-tiva não se dá ainda com a alma separada do corpo, a alma, emboraabsorta na vida espiritual que transcende as forças do corpo, ainda évulnerável aos apelos da carne. Obviamente não se encontra subjugadaa este apelo do mesmo modo como ele se manifesta nas almas dos quese iniciam ou que progridem na perfeição. Isso não significa que sejamenos intensa, mas se não houver luta contra as suas disposições, podeser suficiente para derrubar a alma e levá-la ao início ou a um estadoainda inferior.

Num instante o espírito pode ser arrebatado, ou seja, elevado aeste estado de perfeição pela contemplação infusa43, e noutro, baixadoà vileza da miséria concupiscível humana. E isso ocorre para que ohomem mantenha a humildade, devendo permanecer atento e vigi-lante à fraqueza da sua natureza e à insídia demoníaca que intensifica

40 TOMÁS DE AQUINO. In I Sent., d.14, q.2, a.2, ad.3.

41 TANQUEREY, A. D. Compêndio de Teologia Ascética e Mística. 4 ed. Porto: Apostoladoda Imprensa, 1948, pp. 358-360.

42 TOMÁS DE AQUINO. STh. I-II, q.113, a.3, c.

43 TOMÁS DE AQUINO. STh. II-II, q.175, a.1, c.

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sua ação no estado das almas perfeitas e, ao mesmo tempo, deve estarconvicto de que tudo é obra da bondade de Deus. A permanência

nesta união estabelece o matrimônio da alma enamorada com o seu Es-

poso, em que o espírito humano esvaziado de si deseja encher-se deDeus. Como no matrimônio de homem com uma mulher, em que agraça promove a doação plena dos corpos, neste matrimônio, é a cari-dade perfeita que promove a doação plena dos espíritos dos cônjuges.

§ 3. ESTADO: infância espiritual

Unida em matrimônio espiritual, a alma humana em tudo depen-

de e em tudo se refere a este Amor esponsal. Em nada confia em simesma e tudo espera n’Ele, num pleno e doce abandono. Livre demoções contrárias à caridade, como uma criança, a alma está plena-mente aberta para a formação segundo as graças, que ainda maisexcelsas, revelam ao espírito coisas que ele jamais poderia pensar. Estainfância espiritual une a perfeita humildade à perfeita caridade. Suasmoções são de crescimento na caridade infinita que a natureza finita sópode almejar movida pela própria caridade divina e enquanto se dis-põe adequadamente44. Este estado de infância espiritual não tem rela-ção com a idade cronológica, pois pode se dar em apenas um instantede uma idade qualquer e parecer estar ocorrendo há muito ou já terocorrido há muito.

A vivência desta infância espiritual decorrente do matrimônio místi-

co deixa uma marca indelével na alma humana. Por mais tempo quepossa viver ainda unida ao corpo, ela nunca se esquecerá desta experi-ência mística e não perderá o desejo de voltar a se unir à caridade per-feita. A permanência atual neste estado místico conduz à morte docorpo ou, em outras palavras, à separação da alma do corpo e, portan-

44 TOMÁS DE AQUINO. In Decem praeceptis. Proemium.

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to, à bem-aventurança45. Não porque a caridade perfeita faça o espíri-to odiar o seu corpo, embora deteste o pecado decorrente da lei daconcupiscência que o favorece, mas porque deseja a sua perfeição futu-ra. Mas não é necessário que esta experiência conduza subitamente àmorte, pois a experiência naquele espírito pode servir para os futurosdesígnios de Deus no tempo, como nos casos de Moisés e de SãoPaulo46. Assim, a caridade perfeita causa o terceiro êxtase na alma per-feita: o êxodo total do orgulho da alma e a total saída – êxtase – da alma

de si mesma para Deus.

§ 4. EFEITO: visão beatífica

Quando, pois, Deus providencia que a infância espiritual coincida

com o término da vida neste tempo, segue-se à morte a visão beatíficaou a santificação da alma. Isso não é outra coisa senão a consecução daperfeição da vida espiritual. Se Deus permite que alguns, depois destaintensa e profunda experiência mística, continuem vivendo por certotempo, é para fazer observar e ensinar, mediante o exemplo dos santos,sua ação misericordiosa e salvífica. Santo Tomás, por exemplo, tendolevado uma vida contemplativa, em sua curta jornada, ao contemplara Cristo, pouco tempo ficou ainda entre os homens47. Não raro ossantos acometidos desta união caritativa morrem pouco tempo de-pois. Poucas são as exceções, como no caso de São Paulo, que segundoTomás gozou a visão beatífica ao menos de um modo atual e nãohabitual48. Isso talvez para não lhe causar sofrimento pela privação doque antegozaram pelo espírito nesta união.

45 TOMÁS DE AQUINO. De perfec. spir. vitae, c.4.

46 TOMÁS DE AQUINO. STh. II-II, q.175, a.3, c.

47 TORRELL, J.-P. Iniciação a Santo Tomás de Aquino. São Paulo: Edições Loyola, 1999,pp. 339-346.

48 TOMÁS DE AQUINO. STh. II-II, q.175, a.3, ad.3.

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Não há como nesta vida possuir a visão beatífica, pela caridade per-feita49. Portanto, os que gozam da união espiritual não gozaram a vi-são beatífica, pois sua condição é o definitivo abandono do corpo demorte. Mesmo os que viveram esta experiência mística não alegam tervisto Deus face a face, mas a plena certeza de Sua presença íntima eprofunda na vida do seu espírito, por toques, sussurros, revelações egraças extraordinárias, em benefício próprio ou de outras pessoas. Semdúvida, estas almas podem e devem ser denominadas santas, tantopelo fato da experiência quanto pelo que professam de amor a Deusem espírito e no corpo, seja fazendo o que outros homens por esforçonatural não fariam, seja fazendo com maior perfeição aquilo que qual-quer homem seria capaz de fazer, mas não faz. Trata-se, pois, do efeitoda caridade perfeita nestas almas.

Devemos todos desejar a visão beatífica, mas humildemente nãodevemos almejar a experiência mística ou ações extraordinárias, senãoa ascética, porque os que a recebem não a receberam porque quiseramou por seu próprio esforço, já que tudo é dom de Deus, que conduz aalma que Lhe é dócil para as coisas que Ele convenientemente dispõepara a vida de cada um50. Para Deus, uma vida com experiência místicanão é mais digna e valiosa que uma vida sem a mesma experiência.Não são os homens que escolhem ter ou não tais experiências, masDeus que os escolhe e lhes enche de dons, pelos quais se tornam capa-zes de vivenciar tal experiência. Uma alma que busca a Deus incansa-velmente ao longo de toda a sua vida sem êxtases, mas com um ‘mar-tírio’ diário, é também para Deus um verdadeiro bem espiritual e quedeseja de modo pleno com o Seu amor “ciumento”. Não é menossanta uma alma que passa, por sua jornada, no esquecimento, nummartírio sem relatos místicos, mas de perfeitas asceses, que igualmente

49 TOMÁS DE AQUINO. De perfec. spir. vitae, c.5.

50 TOMÁS DE AQUINO. De perfec. spir. vitae, c.8.

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a faz crescer e permanecer no efeito do êxtase do amor divino. Ela podeigualmente alcançar a visão beatífica, pois a condição não está nos atosextraordinários, mas na caridade, que segundo a providência e a misericór-dia divinas ela é antes necessária na via ordinária ascética, pela qual o espíri-to humano se converte a Deus e busca purificar-se do pecado.

CONCLUSÃO

Concluindo, se pode dizer que a diversidade de graus da virtude

da caridade e mesmo a intensidade de sua perfeição não dependemabsolutamente, como há muito se supunha, do estado de vida em queuma pessoa se encontre. Um religioso não é necessariamente mais per-feito do que um leigo na caridade, pelo simples fato de pertencer a umestado de vida que o condicione à perfeição espiritual. E isso porquenão são os estados que tornam as pessoas perfeitas, mas a própriavivência da caridade, independente do estado ou condição51. Sem dú-vida, o estado de vida do religioso, pelo que se propõe, pode ser maisperfeito que o estado de vida do casado, por exemplo, porque se dis-põe a uma maior entrega, incondicional, de amor a Deus, quandopelo voto abstêm-se das riquezas (pobreza), do bem conjugal (castida-de) e da própria vontade (obediência)52. Isso exige uma maior entrega,adequando mais a vida ao propósito da consecução da perfeição espiri-tual. Contudo, há de se saber que a perfeição da vida espiritual nãoconsiste necessariamente em viver neste ou naquele estado de vida,nem mesmo em fazer tais votos, mas única e exclusivamente em viverna caridade, segundo a exigência do preceito, independente da condi-ção ou do estado de vida em que se encontra e a que foi chamado53.

51 TOMÁS DE AQUINO. De perfec. spir. vitae, c.9.

52 TOMÁS DE AQUINO. De perfec. spir. vitae, c.12.

53 TOMÁS DE AQUINO. De perfec. spir. vitae, c.10.

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A obra de Deus é, segundo Tomás, levar todos à santidade. E nissoele segue de perto a doutrina cristã clarificada pelo Apóstolo dos gen-tios. Por isso, a santidade se estende a toda condição de vida54 e, nestaótica, nada impede que o casado viva a castidade, segundo a caridade,tão ou mais intensa e perfeitamente do que a vive um religioso. Defato, se este promete por voto, mas não cumpre e aquele não prometepor voto, mas a cumpre, o casado, mesmo sem voto de castidade, vivea caridade de modo mais perfeito do que o religioso, porque a vivesegundo a exigência do sacramento que recebeu e pelo qual é chamadoa ser casto, enquanto é fiel a Deus e à esposa pelo vínculo conjugal55. Eo mesmo se diga da pobreza, pois não é condição para a perfeiçãoespiritual ser pobre, pois há e houve muitos ricos que não puseram osseus corações nas riquezas56. Contudo, isso não diminui em nada asdificuldades para o rico entrar no céu, ao contrário, sem o coração nagraça fica efetivamente impossível. Não diferente é com relação à obe-diência, pela qual se renuncia à própria vontade57. É bem verdade queeste é o mais excelso voto, porque é o abandono do bem mais preciosoque alguém possui em sua natureza: a liberdade. De fato renunciar aosbens externos materiais é proporcionalmente mais fácil do que aban-donar os bens espirituais internos da alma. Assim, renunciar à liberda-de é mais difícil do que renunciar aos bens materiais. Por isso, no quediz respeito à perfeição da vida espiritual, não se quer negar a eficáciados votos se cumpridos na caridade, mas alertar que tais votos nãoimprimem necessariamente a condição de perfeição espiritual.

54 JOSEMARÍA ESCRIVÁ. “Vocación cristiana”. In: Es Cristo que pasa: Homilias. Madrid:Rialp, 1985, pp. 23-43; IDEM. Caminho, n. 291.55 TOMÁS DE AQUINO. De perfec. spir. vitae, c.9; AGOSTINHO. De bono coniugali, nn. 25-27. In PL 40, 390-392. Para Tomás, o matrimônio não é simplesmente um remédiopara a concupiscência, mas um sacramento que leva o homem à santidade, se vivido nacaridade.56 TOMÁS DE AQUINO. De perfec. spir. vitae, c.8; AGOSTINHO. Epistola 31, n. 5. In PL 33,124.57 TOMÁS DE AQUINO. De perfec. spir. vitae, c.11.

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Os votos são instrumentos valiosos para aqueles que, tocados pelosdons a que se referem aqueles atos da vontade pessoais e livres, sãochamados por inteiro em sua condição de vida para alcançarem a per-feição do espírito. Contudo, exige-se que todos estes dons sejam orde-nados pela própria caridade, perfeição maior, pois todo e qualquerdom não é senão um fruto da caridade divina no espírito humano.Todos os homens são indistintamente chamados e instruídos para acaridade: alguns o são mediante um dom específico que o EspíritoSanto lhes dá, como por exemplo, o dom da castidade na continência,e outros por outro dom, como o da pobreza. Contudo, tanto a casti-dade quanto a pobreza, ainda que sinais da caridade, não são em simesmas o dom da caridade, mas antes algo que favorece seu alcance,pois a caridade é o dom perfeito. O comum para todos os que trilham o

caminho para a perfeição, mediante a caridade, é viver, cada vez mais,purificando-se e aperfeiçoando-se, na medida em que se unem, mais emais, a Deus pela mesma caridade. Temos visto que o dom da carida-de não isenta o esforço humano naquilo que lhe compete, pois a salva-ção do homem passa pelo próprio homem, enquanto de sua parte eledisponha dos meios e lute contra os obstáculos que mais intensamentearrastam-no contrariamente à vida de perfeição. A primeira coisa comque deve se armar para esta batalha é da convicção de que isso só épossível se for auxiliado pelas graças que o fortaleçam e o façam adqui-rir e crescer nas virtudes morais.

Se um é o critério, muitas são as vias de perfeição, de acordo comos diversos graus de intensidade da caridade, com as diversas condiçõesde vida e com a diversidade de pessoas, tanto em seu aspecto psíquicoquanto somático. Assim, os esforços individuais que cada homem do-cilmente põe de sua parte a serviço da recepção, manutenção e progres-so da caridade, podem estabelecer diversos graus da caridade58. Segun-

58 TOMÁS DE AQUINO. STh. II-II, q.24, a.9, c.

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do as vias normais, a caridade entra na alma, como uma semente, pelobatismo. Cresce com as graças recebidas no sacramento da penitência,produz frutos com a eucaristia e ramifica-se em muitas outras graçascom os dons do Espírito Santo que aumentam e se confirmam pelosacramento da confirmação. Estas são as vias pelas quais os cristãosiniciam-se na jornada de sua perfeição espiritual. Pelo mesmo batis-mo, o homem dispõe-se a adquirir e crescer nas virtudes morais quelhe são naturais e que disciplinam o corpo e a alma para um bemnatural perfeito.

Como perfeição espiritual própria da alma, a caridade não podeser alcançada mediante os próprios esforços naturais da alma. Por isso,Deus providenciou virtudes infusas diretamente no espírito humanoque crescem segundo a docilidade do mesmo espírito humano à atua-ção do Espírito Santo. Eis as virtudes infusas: fé, esperança e caridade.Com o batismo a alma recebe a fé, como uma semente, um princípio,como se disse. A constante abertura da alma batizada à graça divina,promove na mesma, segundo a providência e misericórdia divinas, ohábito deste princípio da fé, enquanto lhe faz surgir o hábito da fé,que é a virtude infusa da fé. Com a confirmação, a alma recebe maispropriamente, em certo sentido, a semente da esperança e, igualmen-te, segundo a docilidade da alma ao Santo Espírito, pela infusão dagraça, estabelece-se a virtude infusa da esperança. Do mesmo modo,com a Eucaristia, sacramento da caridade, a alma dócil à ação do Espí-rito Santo, recebe por infusão a virtude da caridade. Estas três virtudesinfusas fortalecem as virtudes morais. A oração humilde, a vida segun-do as virtudes morais, a assídua freqüência aos sacramentos e o cresci-mento das virtudes infusas dispõem a alma ao desenvolvimento e au-mento dos dons concedidos pelo Espírito Santo na confirmação e arecepção de tantas outras graças. A presença constante da graça ilumina

a alma e a conduz para a contemplação das verdades divinas, ocultas àsforças naturais da razão. Tudo isso causa uma moção interna na pró-

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AS VIAS ASCÉTICA E MÍSTICA...

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pria alma no sentido de desejar unir-se a Deus e de tornar-se partícipe,para todo sempre, de Sua vida: eis a caridade perfeita e a perfeição da

vida espiritual, que é o êxtase do amor divino por nós e em nós.

REFERÊNCIAS

1. PRIMÁRIAS

As obras de Tomás de Aquino no texto acima citadas e abaixorelacionadas, com as respectivas abreviaturas, foram pesquisadas naEdição do Corpus Thomisticum, de Enrique Alarcón: http://www.corpusthomisticum.org/iopera.html

Catena aurea in Lucam – Catena in Luc.

Compendium Theologiae – CTh.

Contra Impugnates Dei – Contra Impug.

Contra Retrahentes – Contra Retrah.

Collationes in Decem praeceptis – In Decem praeceptis.

De perfectione spiritualis vitae – De perfec. spir. vitae.

Expositio in Dionysium De divnis nominibus – De div. nom.

Expositio super librum Boethii De Trinitate – De Trinitate.

Expositio libri Boethii De ebdomadibus – De ebdom.

In decem libros Ethicorum expositio – In Eth.

In libro de causis expositio – De causis.

In quattuor libros Sententiarum – In Sent.

Principium Rigans Montes – Rigans Montes.

Quaestiones disputatae De Malo – De malo.

Quaestio disputata De Caritate – De caritate.

Quaestiones disputatae De Spiritualibus creaturis – De Spir. Creat.

Quaestiones disputatae De Potentia Dei – De Pot.

Quaestiones disputatae De veritate – De Ver.

Quaestiones Quodlibetales – Quodl.

Summa Contra Gentiles - CG.

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PAULO FAITANIN

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Summa Theologiae – STh.

Super Evangelii S. Ioannis lectura – In Ioan.

Super Epistolam B. Pauli ad Romanos Lectura – Super Rom.

2. Secundárias

ESCRIVÁ, J. Caminho. 9 ed. São Paulo: Quadrante, 1999.

ESCRIVÁ, J. Forja. 2 ed. São Paulo: Quadrante, 2005.

FAITANIN, P. O valor do sofrimento. 2 ed. Cadernos da Aquinate, 1. Niterói:Instituto Aquinate, 2008.

FAITANIN, P. O único necessário. 1 ed. Cadernos da Aquinate, 4. Niterói:Instituto Aquinate, 2008.

FRANCISCO DE SALES. Filotéia. 14 ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

GARDEIL, H. D. La structure de l’âme et l’expérience mystique. Paris: VictorLecoffre, 1927.

GARRIGOU-LAGRANGE, R. Les trois âges de la vie intérieure, prélude de celledu Ciel. Paris: Cerf, 1938.

JOÃO DA CRUZ. S. “Noite Escura”. In: Obras completas. Petrópolis: Vo-zes, 2002.

LECLERCQ, J. La philosophie morale de Saint Thomas devant la penséecontemporaine. Paris: Vrin, 1955.

MARITAIN, J. Distinguer pour unir ou Les degrés du savoir. Paris: Desclée deBrouwer, 1947.

PÈGUES, TH. Initiation Thomiste. Paris: Pierre Téqui, 1925.

SERTILLANGES, R. P. Le Christianisme et les Philosophies. Tome I. 2 ed.Paris: Aubier, 1941.

STEIN, E. “Espírito e Fé – morte e ressurreição (a noite escura do espíri-to)”. In: A ciência da Cruz. 3 ed. São Paulo: Loyola, 2002.

TANQUEREY, A. D. Compêndio de Teologia Ascética e Mística. 4 ed. Porto:Apostolado da Imprensa, 1948.

TERESA DE ÁVILA. “Castelo Interior”. In Obras completas. 2 ed. São Pau-lo: Loyola, 2002.

TORRELL, J.-P. Iniciação a Santo Tomás de Aquino. São Paulo: EdiçõesLoyola, 1999.

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A NOÇÃO DE PESSOA NAS OBRAS...

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A NOÇÃO DE PESSOA NAS OBRAS DES. ALBERTO MAGNO

Oris de Oliveira *

Introdução

Minha intenção era fazer um trabalho sobre a noção de pessoasegundo os principais teólogos da Idade Média: Alexandre de Hales,S. Boaventura, Sto. Alberto, Sto. Tomás de Aquino e Duns Scotus.Bem cedo, porém, percebi que isso ultrapassaria de muito os limitesde minha possibilidade imediata, não só pela dificuldade, como tam-bém pela extensão. Diante da necessidade de limitar preferi estudarSto. Alberto Magno, e a razão desta preferência é ter sido Mestre Albertoum predecessor, um contemporâneo de Sto. Tomás de Aquino, cujopensamento sobre o objeto deste trabalho muito me interessa.

M. Van Steenberghen observa com razão: “é um lugar comumrepetir que Tomás é o discípulo de Alberto, mas pouco se tem feito atéagora par estabelece4r de modo preciso o que Tomás deve a Alberto, epode-se dizer o mesmo em relação a todas as fontes imediatas às quaisSto. Tomás recorreu”1.

Este árido e modesto trabalho, que para ser compreendido neces-sita, ao menos, de uma iniciação à filosofia escolástica, pretende daruma despretensiosa contribuição ao melhor conhecimento de uma fonteimediata dentro de um tema bem delimitado.

* Professor da Faculdade de Franca – UNESP [email protected] Apud Histoire de l’Église (Fliche et Martin), 13, Le mouvement doctrinal du IX auXIV siècle, Bloud et Gay, Paris, 1951, p. 480.

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ORIS DE OLIVEIRA

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O que apresento aqui como doutrina de Sto. Alberto, sobretudono que concerne a afirmações isoladas, não é necessariamente doutrinaexclusivamente dele, mas comum, talvez, com nuanças mais ou me-nos acentuadas, a todos, ou a alguns teólogos de seu tempo.

A recomposição do pensamento albertiano apresenta váriasdificuldade.s feita a coleção de textos, tem-se a impressão de encon-trar-se diante de cacos de uma velha estátua quebrada, que necessita dereconstituição. Se uns parecem sobrar, parecem faltar outros2.

Poder-se-á reconstituir com esses cacos, mesmo incompletamen-te, uma estátua de valor artístico, como se fez com o belo anjo daIgreja de Flavigny?

O Pe. Roland-Gosselin tinha razão quando escreveu: “De todos oscontemporâneos de Sto. Tomás, aquele que mais nos importa conhecer éevidentemente seu mestre, Alberto Magno. Mas talvez seja ele tambémum daqueles cujo pensamento é dos mais difíceis de se compreender, querdevido a falhas das edições mal estabelecidas, incompletas, de cronologiaincerta, quer por causa de um pensamento que se exprime em pleno traba-lho de elaboração, de pesquisa ou de árdua discussão; além do que, nemsempre está plenamente de acordo consigo mesmo sobre o valor respecti-vo de suas opiniões filosóficas e de suas crenças teológicas.

É claro que em muitos outros de sua época se encontram tais im-precisões ou hesitação. Mas a imensidão das obras de Alberto e quiçámesmo a vizinhança do genial discípulo, cuja certeza, firmeza e prestí-gio de uma autoridade secular queremos encontrar no mestre, faráestas imprecisões parecerem mais numerosas3.

2 Essa observação se aplica sobretudo para os “axiomas”. Chamo de axioma toda afirma-ção que Sto. Alberto faz sem preocupação de prova, como verdade evidente e comumenteaceita, e de que em geral se serve para maiores ou menores de seus silogismos.3 ROLAND-GOSSELIN, M.D. Le “De ente et essentia” de S. Thomas d’Aquin(Bibliothèque Thomiste, VIII, ed. Le Saulchoir, Kain (Belgique), 1926, p. 89.

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Esta vizinhança apresenta outra dificuldade: algumas vezes somos tenta-dos a dar um sentido “tomista” a certos textos de Sto. Alberto e, para isso,bastaria às vezes um empurrãozinho discreto ou uma inadvertência.

O plano deste trabalho é clássico. Primeiro uma breve biografia(não farei mais eu transcrever os dados fornecidos por P. Glorieux4, e acronologia das obras de que me servirei.

O corpo do trabalho será dividido em três capítulos: o primeirosobre as definições medievais de pessoa; o segundo estabelecerá umacomparação entre as noções de pessoa e “res naturae”, “suppositum”etc.; no terceiro será exposto o pensamento de Alberto sobre o caráteranalógico da noção de pessoa. Uma conclusão e uma breve bibliogra-fia completarão o conjunto5.

***

“Curriculum vitae” de Sto. Alberto

Nascido em 1206-7 em Lavingen (Suábia), filho do conde deBollstaedt, durante seus estudos em Págua entrou para a Ordem dosFrades Pregadores, graças à influência de Jordão a Saxônia. Leitor su-cessivamente em Colônia (1228), Hildesheim (1233), Friburgo,Ratisbona e Estransburgo, foi enviado para Paris a fim de adquirir osgraus teológicos; bacharel sentenciário (1240-42), depois mestre, re-gente no convento de Saint Jacques (1242-48). Fundou em Colônia(1248) o “Studium generale” em que ensinou até seu provincialato(1254-57). Em fins de 1256 está na Cúria (Agagni e Roma) para acondenação de Guilherme de Santo-Amor.

Novamente leitor em Colônia (1257-60); no capítulo deValenciennes (1259) faz parte da comissão dos estudos.

4 GLORIEUX, P. Rérpertoire des Maîres en Théologie de Paris au XII siècle (Etudes dephilosophies médiévale). Paris: J. Vrin, 1933.5 Para referências, cidntificamente completas, reportar-se à bibliografia final.

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ORIS DE OLIVEIRA

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Nomeado Bispo de Ratisbona (5 de janeiro de 1260) resignou ocargo dois anos mais tarde; talvez tenha feito uma estadia mais prolon-gada na Itália. É encarregado pelo papa da pregação da Cruzada naAlemanha e Boêmia (1263-64). Reside, depois, por longo tempo, emWurtzburgo. Encontramo-lo mais tarde leitor em Estransburgo (1268-69), depois em Colônia (1269-74). Assistiu ao Concílio de Lyon(1274). É encarregado de diversas missões (Bélgica, 1276); vai a Parispara defender Sto. Tomás; desde 1277 começa a declinar e morre emColônia a 15 de novembro de 1280. Recebeu os títulos de “DoctorUniversalis” e “Doctor Expertus”6.

Cronologia das obras

Summa de creaturis, anterior a 1243

In I e III sententiarum, 1243-44

In II Sententiarum, 1246

In IV Sententiarum, 1249

In XII Metaphysicorum, 1267-70

Summa Theologiae: Lib I após 1270; Lib II após 1274

Capítulo I – As definições de pessoa

1. A definição nominal

Resumamos o que disse Alberto sobre a definição nominal de pes-soa. Ele distingue nesta palavra a etimologia e a composição7. A origemetimológica de “persona”: “pro et sono, nas” ou “per se sonans”. Segun-do a lei etimológica dos temos, “persona” deveria ter a última sílababreve. Todavia, sendo este termo reservado para designar nos teatros os

6 Glorieux, op. cit. p. 62.7 Cf. In I Sent. Dist. XXIII, art. 2 obj. 6; ibid. ad 6m.

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grandes personagens, “quibus non compeit brevis syllaba”, uma palavraque tivesse a penúltima sílaba longa exprimir-lhes-ia melhor grandeza8.

A composição de “persona” é “per se una” (ou unum), segundo umaopinião que se atribui a Simão Tournay ou a Isidoro9.

Alberto distingue assim uma dupla interpretação do nome. A primei-ra, que se pode chamar de gramatical10, baseia-se sobre o som das sílabasou sobre a disposição das letras; a segunda sobre a significação do nome.

A primeira interpretação não nos permite saber o que é a pessoa,porque “in talibus interpretationibus, interpretatum non sequiturnaturam interpretantium”.

Para que se possa dizer que tal ser é ou não pessoa, é necessáriobasear-se sobre a segunda interpretação (secundum nominissignificatum), que, por sua vez, tem sua base na composição do nome,porque ‘dicimus compositum significationem trahere a suiscompenentibus”11. Alberto dá muita importância à segunda interpre-tação e, praticamente, a considera definição real.

Frequentemente Sto. Alberto contrapõe a “res nominis” ou ao “ususnominis” ou à “ratio nominis” ou “a “proprietas et compositionominis”12. Esta contraposição corresponde ao que Sto. Tomás cha-mará mais tarde “res significata per nomen” e “impositio nominis”13.

8 Cf. In I Sent. Dist. XXIII, art. 4, sol; I Pars Summae Theologiae, Tract. X, Q. 44Memb. I, contra quartam 1.9 In I Sent. Dist. XXIII, art. 2, ad 6m. I Pars Summae Theol. Tract. X Q. 44, memb. I,sol et ad 1m.10 In III Sent. Dist. X, art. 3, obj. 2.11 Ibidem, ad 2m.12 Cf. in I Sent. Dist. XXV, art 1 ad 1m.Ibid. art. 2, sol.Ibid. dist. 26, art. 1, ad. 1mSumma theol. I P., Tract. X, Q. 44, memb. I, sol.13 Cf. Summa Theol. De Sto. Tomás, Ia pars, q. 13, a. 6,c.

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Para concluir este parágrafo resta observar que Alberto (como amaioria dos teólogos medievais) emprega como sinônimos “persona”e “personalitas” e não me foi dado encontrar uma justificação do em-prego indiferente desses dois termos.

2. Explicação das definições medievais de “persona”

Eis as definições medievais de pessoa, explicadas por Sto. Albertono livro das sentenças e na Summa Theologiae:

A primeira é a de Boécio: – “Persona est rationalis naturae individuasubstantia”.

As definições segunda, terceira e quarta são tiradas do IV livro doDe Trinitate, de Ricardo de S. Vitor.

“Alia definitio (segunda) est Ricardi in IV lib De Trinitate, sic:“Personam dicimus aliquem solum a coeteris omnibus singulariproprietate discretum”.

“Item (terceira), infra ibidem: – Persona divina est divinae naturaeincommunicabilis existentia”.

“Item (quarta), infra ibidem, Persona est existens per se solumjuxta singularem rationalis naturae existentae modum”.

A quinta definição é a dos “Magistri”: – Persona est hypostasisdistincta proprietate ad dignitatem pertinente14.

Poder-se-ia perguntar: – Porque tantas definições?

É verdade, diz Alberto, apoiando-se em Aristóteles, que uma coisanão pode ter senão um “esse” e consequentemente apenas uma defini-ção. Contudo, devido à riqueza inteligível de seus aspectos, podem-se

14 Cf. In I Sent. Dist. XXV, art. 1; I P. Summae Theol. Tract. X, Q. 44, memb. II.

Na suma, Alberto omite a segunda definição do Scriptum.

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dar várias “assignationes” de uma cousa, as quais não são verdadeirasdefinições, mas somente “manifestationes” mais claras que o nome(majoris declarationis quam nomen)15.

Segundo Alberto, o que diferencia estas definições é o fato de a deBoécio regerir-se à “communis intentio personae” e ser portanto apli-cável a Deus, aos anjos e aos homens, ao passo eu as de Ricardo, corri-gindo a de Boécio, aplicam-se somente às pessoas divinas. A definição,dita “magistral”, é dada “per comparationem ad mores vel civilia” ebaseia-se na propriedade do nome16.

A definição de Boécio. Devido ao contexto teológico dentro do qualse desenvolve o pensamento albertiano, o problema que mais o preocupaé explicar como essa definição, que à primeira vista parece não poder apli-car-se senão ao homem, pode também ser aplicada a Deus.

Comecemos pelos dois termos: Substantia individua.

“Substantia” pode ser tomada de quatro modos diferentes: – pri-meiramente “substantia” opõe-se a acidente. Designa então a naturezado primeiro predicamento e diz-se indiferentemente da ‘prima” e da“secunda” substância e significa “ens per se existens, gratia ejus quod estper existere difvisum contra accidens”.

O segundo e o terceiro modo referem-se respectivamente à“substantia prima” e à segunda, “secundum quod primam dicimus abactu substandi secundae et accidenti, secundam autem ab actu substandiprimae et accidenti”.

No quarto modo substantia designa “quid uniuscujusquepredicamenti et hanc vocant quidam substantiam logicam, etc.17

15 I P. Summae Theol. Tract. X Q. 44, memb. II, sol.16 Cf. ibidem, e I Sent. Dist. XXV, art. 1, in fine.17 Cf. In I Sent. Dist. XXV, art. 1, ad Quaest. 2.

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Depois destas considerações gerais, Alberto diz que na definiçãode Boécio substantia pode significar a “substantia in communi” (naturacommunis quae est ut secunda), ou “suprir” por “hypostasis” (quae estut prima substantia).

Malgrado sua afirmação, segundo a qual parece mais conforme àintenção de Boécio dizer que “substantia” designa a “natureza communis”,e, pelo acréscimo de “individua”, suprir pela “hypostasis”, Alberto nãose decide definitivamente por nenhuma das duas interpretações. Comefeito, encontram-se alhures, em seus escritos, textos em que, confor-me a necessidade do momento, adota e justifica quer uma, quer outra.

Segundo a interpretação adotada, atribui-se consequentemente aotermo “individua” um suplência diferente. Dizendo-se por exemplo,que substantia supre por “hypostasis” (opinião de certos mestres (?), dir-se-á que “individua” não faz senão explicitar o que “hypostasis” significa18.

Se, pelo contrário, admite-se que substantia designa a “naturacommunis”, o termo “individua” não somente explicita, mas permite“substantia” suprir por um suposto incomunicável19.

Individua. Não indica este termo apenas negação, mas algo depositivo porque: “negatio (enim) consequens positionem relinquitpositionem ante se”20.

Todavia, em razão da negação que “individua” implica, dizer que“substantia est individua” é afirmar que é incomunicável.

A definição seria mesmo incompleta sem “individua” , porque anoção de pessoa exclui uma tríplice comunicabilidade: comunicabi-lidade a vários, como a do universal, comunicabilidade como aquela

18 Cf. Ibid. Ad quaest. 3.19 Cf. Ibidem.20 Cf. Ibidem, ad quaest. 4.

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da parte; e enfim capacidade de ser assumida por outro ser (comunicabileper unioenem in singularitamem alterius).

Mesmo quando se admite que “substantia” supre por “hypostasis”o termo “individua” é necessário porque “hupostasis” inclui apenas aincomunicabilidade a muitos, sendo as duas outras incomunicabilidadesexpressas por “individua”21.

Rationalis nature. Por causa desses dois termos, parece não ser adefinição de Boécio aplicável senão ao homem.

É verdade que “rationale” se diz “proprie” do homem; no entanto,tomada em sentido mais largo (communiter), “natura rationalis” indi-ca todo ser capaz de julgar o verdadeiro e o falso, o bem e o mal. Nestesentido, aplica-se primeiro a Deus, depois aos anjos e ao homem22.“Rationalis” pode significar simplesmente “intellectualis”23.

As explicações do caso indireto (obliquus) dos termos “rationalis

naturae” deram ocasião a muitas precisões importantes.

A objeção põe assim o problema: na definição de um acidente ostermos que se acham no caso indireto indicam as diferenças específicas doacidente; os termos que se acham no caso direto (in recto) indicam ogênero. Logo, em tais definições, o caso indireto indica o “subjectum circaquod est per se essentia accidentis definiti”. Baseando-se nesta comparaçãoparece também que os termos “rationalis naturae” indicam o “subjectumcirca quod est persona”, o que é manifestamente falso24.

Eis a resposta: – Já que a pessoa designa a ‘sustantia supposita”, ocaso indireto marca a diversidade existente entre a “substantia supposita”e a natureza. diversidade real nas criaturas (illa [scl. Substantia supposita]

21 Cf. Ibid. dist. XXIII, art. 6, ad 2m; In III Sent. Dist. X, art. 3, sol.22 In I Sent. Dist. XXV, art. 1, ad 2m.23 I P Summae Theol., Trat. X q. 44, m. II, ad def. 1am, ad 1m.24 In I Sent. Dis. XXV, art. 1, q. 1, item 2.

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in creaturis diversitatem aliquam rei habet ad naturam cujus est sivequa est), em Deus porém “secundum modum intelligendi”25. Maisadiante há maior precisão: “natura rationalis aliquid est personae vel reut in inferioribus, vel modo intelligendi ut in superioribus”26.

O texto paralelo da Summa Theologiae é mais explícito e dá fun-damentação metafísica ao pensamento: “in veritate respiciendo adsimplicitatem rei in divinis unumquodque divinorum praedicatur dealio in rectitudine: et sic persona est essentia et proprietas essentia”.

“Respiciendo ad modum intelligendi communem, divina exhumanis intelligimus, sicut dicit. Dyonisius, eo quod humana suntexemplata a divinis; et sic convenientius dicitur persona rationalisnaturae sive essentiae quam rationalis natura vel essentia. Dicit enimHilarius quod aliud est ignis, et quod ignis est; et aliud est homo, etquod hominis est; et aliud Deus et quod Deus est; et generaliter aliudnatura et quod naturae est: et hoc quidem in creatis aliud est re, indivinus autem aliud modo significandi”.

“Cum ergo persona res naturae site t rem naturae dicat in recto,naturam autem dicat in obliquo, et dicat eam ut quo est res naturae, etideo supposita persona non supponitur natura vel essentia,convenientius dicitur rationalis naturae quam rationalis natura”27.

Vejamos agora rapidamente as explicações sobre as outras defini-ções medievais, explicações eu se encontram apenas na Summa. NoScriptum Alberto julga inútil disputar sobre as definições de Ricardo edos “Maggistri”.

Segunda definição: Persona est intellectuallis naturaeincommunicabilis existentia”.

25 Ibidem, ad qm. 1, ad 2m.26 Ibidem, ad 5m.27 I P Summae Theol. Tract. X, q. 44, memb. II, ad def. primam, ad 2m.

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O termo “natura” deve ser tomado no mesmo sentido em que éempregado por Boécio, isto é, “natura est unamquamque reminformans specifica diferentia”. É necessário todavia notar que esta “di-ferença específica em Deus não se une a um gênero para constituí-loem uma espécie. Deus é simples e nele o “quod est” e o “quo est”identificam-se realmente e só se diferenciam “modo intelligendi”28.

O termo existência substitui com mais propriedade o termosubstantia da definição de Boécio29.

Não seria melhor dizer que a pessoa é um existens, em vez deexistentia?

Alberto responde: – “persona non tam quis quam quid dicit, dicitenim quem in esse substantiali”, o que se exprime melhor pelo termoexistentia, que significa ao mesmo tempo: – “quis, qui et quid”30.

Incommunicabilis. Tomado em seu sentido ordinário é mais vasto(majoris commutatis est) do que pessoa, mas determinado por“rationalis naturae” pode ser “última diferentia” da definição, e nessecaso identifica-se com pessoa.

Terceira definição: – Persona est existens per se solum secundumquemdam rationalis existentiae modum”.

As explicações desta definição não nos interessam especialmente.Referindo-se a um problema teológico e trinitário, Alberto justifica aexpressão “existen per se solum”31.

Ricardo teria empregado o “secundum quemdam modum”, por-que define a pessoa divina “in communi”. A expressão determina ape-nas o modo de existência “singulariter” que lhe convém32.

28 I P. Summae Theol. Tract. X, q. 44, memb. II, ad def. 2m, ad 1m.29 In I Sent. Dist. XXV, art. 1, in fine.30 I P. Summae Theol. Tract. X, 1. 44, memb. II, ad def. 2am, ad 4m.31 Ibidem, ad def. 3am, ad 1m.32 Ibidem, ad 2m.

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Definição “magistral”: Persona est hypostasis distinctaincommunicabili proprietate ad dignitatem pertinente”.

O contexto trinitário influenciou bastante a explicação, mas paranós é suficiente notar o que afirma: – é a fraqueza de nossa inteligênciaque nos obriga a definir a pessoa divina por um “intellectuscompositurs”. Na realidade tudo o que esta definição acrescenta aotermo “hupostasis”, dele não se distingue realmente, mas apenas “modosignificandi”33.

Merece nossa atenção a seguinte afirmação, que só mais tarde en-contrará plena justificação: – “secundum communem intentionempersonae, abstracta personalitate per intellectum, remanet hypostasis,quae secundum intellectum substat personalitate”34.

Estas são as explicações dadas por Alberto das clássicas definiçõesmedievais da pessoa. Percebe-se que elas nos informam muito vaga-mente da idéia que o Doutor Universal fazia de pessoa. Elas põemcertas dificuldades, que serão esclarecidas nos capítulos seguintes.

Capítulo II

Comparação entre a noção de pessoa e as noções significadas pelostermos: – “quod est”, “quo est”, natura, forma essentia, esse,suppositum, subjectum, hypostasis, substantia, subsistentia, individum.

Para termos idéia da necessidade desta comparação, basta ler osnumerosos “axiomas”. Tomemos por exemplo, estas: – “persona dicitrem naturae distinctam, et magis significatur per quis quam per quid

quia quid quaerit de natura indistincta35. Persona secundum vocabulum

33 I P. Summae Theol., Tract. X, q. 44, memb. II, ad def. 4am, ad 1m.34 Ibidem ad 2m. Alberto não deixa de notar que esta afirmação só é válida “in divinis”.35 In I Sent. Dist. XXIII, art. 1, sed contra 3.

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compositionem per se una “nihil est per se unum nisi “hoc aliquid” insubstantia, forma autem de se communis est, natura, autem in potentia:ergo per se unum non est nisi hoc aiquid in substantia etc.36

Para proceder com ordem, primeiramente procuraremos saber osentido de cada um destes termos; faremos em seguida uma compara-ção com a noção de pessoa.[

1. Definição dos termos

Sem dar as explicações que seriam desejáveis, Alberto apresentacomo sinônimos “quo est” e “natura”, ou “quo est” e “forma”. Emuma mesma solutio não somente aparecem como sinônimos, mas comotendo a mesma propriedade, a comunicabilidade: – In quibusdam enimdiffert hupostasis a natura, sive “quod est” a “quo est”: ita tamen quodnatura sive “quo est”. E, mais adiante: “in quibus (in sole, luna et stellis)etiam forma, sive “quo est” licet sit communicabile etc.37

Por aí se explica por que ele afirma: “ex modo intelligendi “quoest” accipitur natura”38.

O termo “essentia” (ousia) indica o ‘compositum”. A razão dada ésuficientemente clara: – essentia autem est illa a qua esse, et cujus actusest esse, ut dicit Boetius et Tullius, esse autem non est actus essentiaenisi quae est in materia, et ideo illam compositum vocaverunt39.

36 Ibidem, art. 2, obj. 6.37 In I Sent. Dist. II, art. 20 sol.38 Ibidem, dist. XXIII, art. 2, ad sed contra 4.39 Ibidem, art. 4, sol. Nas Sentenças, estudando os termos essentia (ousia), subsistentia(ousiosis) e pessoa (prosopon), Alberto distingue o “mudus acceptionis philosophorum”(Boécio e Prepositini) e “modus acceptionis sanctorum” (Sto. Agostinho e Jerônimo). Adiferença explica-se pela preocupaão que os santos tinham em evitar termos ambíguos,expondo a fé à gente simples.

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Segundo Prepositino, podem-se consideram duas coisas nopredicamento da substância40: – “substantia subjecti” e “substantia quaeest subjectum”.

A essentia indica a “substantia subjecti”, quer dizer: – id quod estnaturalis substantiae, quod est praedicamentum” (sic)41.

A essência indica também a natureza “per moum formae”, e daí aidentificação entre a essência e o “quo est” e a legitimidade da afirma-ção: – “ex parte “quod est” sumitur essentia”42.

A dificuldade é bem maior no que diz respeito à significação de“esse” nos escritos de Alberto.

Seria inútil recomeçar aqui um trabalho que já foi feito, e muitobem feito, pelo P.M.D. Roland-Gosselin, o.p.43.

Eis o que diz Alberto na “Summa de Creaturis”: – “Similiter esse vocoformam compositi quod praedicatur de ipso compósito, sicut homo est esseSocratis, et angelus est esse Raphaelis: et in hoc differt a forma materiaequae non praedicatur de toto compósito, nec est forma totius sed partisciliatmateriae; in his enim quae nom sunt generabilia (ut dicunt quidamphilosophi) non est forma partis, sed totius tantum, vel si eis forma partisnon tamen nomen diversum vel a nomine formae totius vel a forma totius.Nec intelligo quod forma totius sit idem qud universale cum habet esse incompósito: – sed ipsa est qua aliquid est esse, ut dicit philosophus, et abilla per intentionem abstrahitur universale”44.

40 Prepositino, Mestre de Teologia em Paris (1140-50-1210).41 In I Sent. Dist. XXIII, art. 4, sol.42 Ibidem, dist. XXV, art. 5, ad 1m.43 Op. cit. II partie, chap. VIII, albert le Grand. Resumo rapidamente o conteúdo destecapítulo, nas páginas que se seguem.44 Summa De creaturis, Trct. IV, q. 21.

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Não é de admirar, pois, ver no mesmo tratado o “esse” apresenta-do como sinônimo de “quo est” ou de “essentia simplex sive simplicitasessentiae”45.

Foi somente mais tarde, quando escreveu o “De veritate intelectus”(discutido em Agnani, 1256) e o “De causa et processu universalitatisa prima causa” (1270) que Alberto, influenciado por Avicena, empre-gou o termo “esse” no sentido de “existência”46.

Na Summa Theologiae, obra em que se gostaria de encontrar opensamento definitivo do Mestre, “une equivoque au moins persisteradans l’emploi des deux termes, id quod est et esse”47.

Na primeira parte da Summa48, o “esse” é tomado como sinôni-mo de existência, ao passo que na segunda parte49, como sinônimo de“quo est” (princípio formal).

Quod est. Aqui encontramo-nos diante de textos fragmentários,não muito claro.s Talvez seja bom notar inicialmente que o pensa-mento albertiano sobre o “quod est” evoluiu em paralelo com suaconcepção sobre o “esse”50.

Eis um dos textos mais importantes: “Id autem quod est intelligoesse id quod substat formae et praecipue illud ratione cujus subsistit.Hoc autem est in quo forma compositi habet esse secundum naturam:

45 Ibidem, Tract. IV, q. 21.46 Cf. De unitate intellectus, c. 7 ad 21m, 23m, 25m, 30m.

De causis et processu universalitis, L. I, Tr. I, c.8;

Ibidem, c. 10; L. II, Tr. C. 15.47 Roland-Gosselin, op. cit. p. 180.48 I P. Tract. IV, q. XIX, m. 3, sol et ad 1m, ad 2m.49 II pP., Tract. I, Q. III, memb. 3, art. 2; cf. ibidem, Tract. 4, q. 13, memb. 1; Tract. XII,q. 72, memb.2.50 Cf. Rolland-Gosselin, op. cit. pp. 172-184.

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et hoc in quibusdam separatur a forma quae est in ipso pergenerationem sed in generabilibus semper est in esse uno et uniusnaturae et propter hoc in illis non determinatur nisi per esse, per for-mam et per actum substandi illi; et ideo praedicatur etiam (ut dicuntquidam et bene) de eo in quo est, secundum quod dicimus quodSócrates est hoc quod est: materia enim non praedicatur de eo cujusest materia”51.

Em outro texto fundamental Sto. Alberto, ao mesmo tempo emque apresenta o “quod est” como sinônimo de “hypostasis”, de“substantia” e de “suppositum”, afirma que o “quod est” se encontra dequatro maneiras nos seres.

Primeiro: há os seres nos quais o “quod est” difere do “quo est”.

Com efeito, nos seres submetidos à geração e à corrupção, o “quoes” (natura) é comunicável e se comunica no ato da geração pela divi-são do “quod est”.

Segundo: há os seres nos quais o “quo est” difere do “quo est” ou danatureza comunicável, mas na realidade não se comunica porque tem den-tro de si toda a matéria na qual a forma pode existir (sol, lua, estrelas).

Há uma terceira espécie de seres nos quais o “quo est” se distingue do“quod est”, que é simples e indivisível, porque imaterial. É o caso dosanjos, cuja espécie não se comunica e se realiza em um suposto apenas.

Finalmente há o ser divino no qual não há nenhuma diferençaentre o “quo est” e o quod “est”52.

Em todos os textos que me foi dado ver, exceto num, Santo Albertoafirma que há diversidade real entre o “quod est” e o “quo est” nas

51 Summa de Creaturis, Tract. IV, q. 21.52 In I Sent. Dist. II, art. 20, sol.

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criaturas (in inferioribus) por causa de sua “compositio universalis”,mas apenas de razão em Deus53.

O “quod est” pode ser considerado como noção intermediária en-tre o “quis est” e o “quo est”, ou entre o “qui est” e “quo est”. Ao passoque o “qui est” “dicit rem naturae non in specie determinata” e o “quisest” eandem rem naturae dicit in specie determinata”54, o“quod est” é designado quando se diz, por exemplo, “homo est idquod est”, ou “Deus = habens ditatem”55.

Res naturae. “Rem naturae intelligimus compositum ex materiaet forma, vel quod est et quo est, in natura et sub natura communi, ethoc est hoc aliquid in natura”56 ou ainda: – “cum dicitur res naturae

intelligitur dupliciter: — hoc est res intenta a natura et constituta a

naturae actu: ergo res naturae est illa quae propinquior et immediatiorest generationi: cum ergo generet per se hic et nunc non est res naturaenisi aliquid constitutum per actum generationis in natura illa, scilicethoc aliquid’57. É inútil ressaltar a sinonímia estabelecida entre “resnaturae’ e “hoc aiquid”.

Suppositum, hypostasis, subjectum, substantia

Esses quatro termos serão estudados juntos porque se identificam“secundum nominis rationem”58.

53 II P., Summae Theol. Tract. L, q. 3, memb. 3, art. 2; In I Sent. Dist. XXIII, art. 2, adsed contra 4.54 I P., Summae Theol., Tract. X, q. 43, memb II, art. 2, ad 2m.55 Ibidem, obj. 4; ibidem, q.45, memb. I, art. 1, sol.56 In I Sent. Dist. XXVI, art. 4, sol.57 In III Sent. Dist. VI C, art. 2.58 In I Sent. Dist. XXVI, art. 3, obj. 2; cf. I P. Summae Theol. Tract. X q. 43, memb II,art. 1, sol.

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É essencial à noção de “suppositum” uma “habitudo inferioris adsuperiorius, sive particularis ad commune indeterminatum etindistinctum”59.

É justamente este “respectus ad naturam communen cui supponiturut incommunicabile”, que caracteriza o “suppositum” em comparaçãocom a “res naturae”60.

Eis a razão da afirmação precedente: – “cum dicitur Petrus est homo,Joannes est homo, Thomas est homo, commune est eis quod est homouna ratione este i commune: – ergo quilibet illorum similem alii habetrespectum ad natauram communem, quae significatur in homine. Ex istaergo similitudine respectus causatur alia communias proportionis ad unum,scilicet quod sicut supponitur naturae communi, ita et alius, et ex istoaccipiunt communitatem suppositi: ita quod unusquique est suppositumhominis: ergo suppositum dicitur stans sub natura communi61.

Essa comunidade em relação à natureza comum não dá à “ratiosuppositi” senão uma universalidade acidental. Com efeito: – “ratioaccidit Socrati et Platoni esse supposita per hoc quod homo secundumeandem rationem praedicatur de eis”62.

A substância, ou melhor, como diz o texto, o predicamento dasubstância pode ser considerado sob dois pontos de vista: – ou como“substantia subjecti” (essentia ou ousia), ou como “substantia subjeta”.Esta pode ser encarada como sujeito dos acidentes e denomina-se en-tão “substantia prima” (quae propriissime dicitur), ‘hypostasis” e sim-plesmente “substantia”; pode ser encarada como “in se subsistens nullo

59 Ibidem.60 In I Sent. Dist. XXVI, art. 4, sol.61 In III Sent. Dist. VI art. 2.62 In I sent. Dist. XXIII, art. 5, sol. Cf. I P. Summae Theol. Tract. X, q. 44, memb. I, ad3m.

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indigens: et illa est genera est species substantiae”: denomina-se então“subsistentia” ou “ousiousis”63.

Apesar da identificação entre “suppositum” e “subjectum”, cadauma dessas noções exprime aspecto diferente. Ao passo que o“suppositum” (hypostasis) exprime uma referência à natureza comumsob a qual se encontra, “subjectum” exprime “ens in se completumoccasio alteri exitendi im eo, et hoc habet respectum ad accidens, licetnon sit in intellectu sui habitus accidentis: et hoc vocatur ab Aristotelesubstantia et a graecis (sic) “upostasis”64.

Individuum. O “individuum” se define como “habens accidentiaindividuantia”65, ou como “distinctum collectione accidentium quaein alio non possunt inveniri”66; ou melhor ainda: – “quod est in seunum et sua singularitate esta b aliis divisum”67.

Não nos parece que santo Alberto tenha encontrado, ou ao menosexplicitado a distinção, apresentada por Santo Tomás mais tarde, entre“individuum” simplesmente e “quiddam individuum in gênerosubstantiae, etiam in rationali natura”68.

63 In I Sent. Dist. XXII, art. 4, sol Um texto da Summa Theol. (I P. Tract. X, q 43,memb. (, sol) explica: – “Et hoc est secundum compositionem vocabuli: sistit enimquod in seipso stat proprio termino et etiam alia sistit ne fluat ulterius; quod autem fluitut sit, non sistit, sicut accidens. Subsistit vero quod stans sub aliquo sistit in illo: et hocproprie subsistens, et modus existentiae sive subsistentiae vocatur proprie”.64 In i Sent. Dist. XXVI, art. 4, sol. Cf. Summa Theol. I P. Tract. X q. 43, memb. I, sol.Lendo Santo Alberto percebe-se que o termo “hypostasis” supre quer por “suppositum”(stans sub nat. Communi) quer por “subjectum” (sujeito de acidentes).65 In I Sent. Dist. XXVI, art. 4, sol.66 In III Sent. Dist. VI, art. 2.67 Ibidem, dist. X, art. 1, ad qm 2m.68 Cf. v. g. Sto. Tomas, Summa Theol. III P. q. XVI, art. 12; q. II, a. 2, ad 3m.

São Boaventura apresenta uma distinção análoga: – In III Sent. Dist. X, art. 1, q. 3,respondeo.

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2. Comparação dos termos supra analisados com a noção de pessoa

Mais uma vez Alberto estabelece comparação entre estes termos e anoção de pessoa, pondo, por exemplo, assim o problema: – “Quaedifferentia sit inter rem naturae, suppositum, hypostasim et personam”69.

Alberto conclui o artigo estabelecendo uma “ordem” entre as no-ções, ordem que a mesma da enumeração: – “... igitur ex hoc patetquod ista sunt ordinata, quod primum est res naturae constituta,secundum autem suppositum, tertio vero hypostasis70, quartumindividuum, quintum persona”71.

Em relação ao ser divino esta ordem indica, ou as etapas que per-corre nossa inteligência discursiva, obrigada a servir-se de analogadoscriados para melhor conhecer a Deus, ou o modo de exprimir esteconhecimento, modo que segue o de conhecer72.

Em relação aos seres criados denominar esta ordem, uma “ordoconcretionis”, porque indica as diversas etapas cada vez mais concretaspor que passam os seres para tornarem-se pessoas. De todas essas no-ções a de pessoa aparece portanto como a mais concreta73.

Porque a mais concreta pessoa inclui tudo o que há de positivo nasprecedentes, acrescenta-lhes a dignidade da natureza racional e recebe adistinção de uma propriedade que a impede de ser comunicável ou comoparte, ou como universal, ou “per unionem in signularitatem alterius”74.

69 In III Sent. Dist. VI, art. 2.70 Aqui “hypostasis” supre por substância como sujeito dos acidentes. Cf. supra, nota 1.71 In III Sent. Dist. VI, art. 2.72 Cf. I P. Summae Theol. Tract. X q. 43, memb. I sol: – “Ratio istorum quatuornominum (essentia, subsistentia, hupostasis (substantia) et persona) est acceptio essedivini séc. nostrum intellectum. (...) Et hoc modo intellectus quo rem accipit, significatper dictionem, regulareiter verum est quod hoc quod contigit intelligi, hoc modo quocontigit inteligi, contigit significari. Unde etc.”73 In III Sent. Dist. VI, art. 2.74 Ibidem.

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Para melhor compreender o pensamento albertiano sobre a distin-

ção entre essas noções, sobre a conexão que entre elas há, devida a umacerta inclusão que comportam por serem mais ou menos concretas,não será inútil examinar duas séries de textos.

A distinção aparecerá mais evidente pelas respostas às seguintes ques-tões: – (note-se que são postas na ordem inversa da “concretio”): —

An Christus, sec. quod est homo, sit persona.

An Christus, sec. quod est homo, sit individuum.

An in eo quod homo sit etiam suppositum Et an sec. and quodhomo sit res naturae”75.

Alberto responde negativamente às duas primeiras. Das razões da-das pra justificar porque o Cristo, “Sec quod homo”76, não é pessoa,podemos concluir o seguinte: – para que um ser, que tem a naturezahumana, seja pessoa em virtude da mesma natureza, é preciso que seja“singularis humana singularitate”77, e por uma singularidade que seoponha não só a toda pluralidade mas também e sobretudo a todacomunicabilidade78.

Nesta passagem, como em muitas outra,s Santo Alberto estabele-ce a sinonimia entre as noções de singularidade e personalidade79.Os“axiomas” sobre a correlação entre ambas não faltam Sobre isto volta-remos no capítulo seguinte.

75 In III Sent. Dist. X, art. 1.76 “... si ly sec. quod notat causam vel naturae conditionem, hoc est, quod humanitas sitcausa” (Ibidem).77 Ibidem, ad qm 1am, ad 1m e ad 2m.78 Ibidem, ad 3m.79 Cf. In III Sent. Dist. V, art. 3, ad 6m.

Ibidem, art. 11, sol. E ad 1m, 2m, 4m.Ibidem, art. 12, sed contra 2, sol., e ad 2m, ad 3m.

Ibidem, art. 15, sol.

Ibidem, dist. X, art. 1, ad qm 1am, ad 1m, ad 2m.

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É também muito interessante a resposta negativa à questão: – “anChristus, sec. quod homo, sit individuum”.

Como a noção de indivíduo é menos concreta que a de pessoa,não seria possível a um ser, a que se aplica o predicado “homo”, ser“individuum” sem ser pessoa?

Para Alberto isso não é possível. Um homem que é “singularishumana singularitate” (uma pessoa portanto) é também individuum,porque assim se define individuum: – “quod in se est unum et suasingularitate esta b allis divisum”80. Daí, conclui ele “(ut ita) omniaindividua incommunicabilitatem personae includunt in suo intellectu,licet non habeant in se quod sint supposita rationalis naturae”81.

Pelo que se depreende deste texto, e de outros semelhantes82, adistinção entre “individuum” e pessoa consiste em que ‘persona” é nomereservado aos indivíduos de natureza racional.

Não é pois de admirar ver “persona” e “individuum” definidospela singularidade. – “principium (enim) individuantium est personaesingularitas, hoc est, proprietas personalis, a ua persona persona est”83.

80 In III Sent. Dist. X, art. 1, ad qm 2.81 Ibidem. Não tendo Alberto encontrado a distinção entre ‘individuum”, tout court”e “quoddam individuum etian in rationali natura”, sente-se embaraçado para conciliarduas verdades: — 1) O Cristo, sec. quod homo, não é indivíduo; 2) como “ens homo”“habet colectionem individuantium”. O embaraço pode julgar-se por esse texto: –“Ipsa individuantia si vis fiat in individuantibus non habet in eo quod homo: principiumenim individuantium est personae singularitas, hoc est, proprietas personalis, a quapersona persona est: et hoc non habet in eo quod homem, sedin eo quod Filius Dei, sedhoc verum est quod ipse ens homo habet illam colllectionem individuantium, et in eoquod homo habet aliqua quae non in alio inveiuntur, sed illa non complentsingularitatem individuantionis ejus” (Ibidem, ad 1m). Cf. supra, p. 18, nota 5.82 Cf. In III Sent. Dist. II, art. 2, sed contra 2; ibid. dist. VI, a. 2.83 In III Sent. Dist. X, art. 1, ad qm 2, ad 1m (texto completo na nota 81).

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Alberto responde afirmativamente às duas questões, acima menci-onadas, isto é – “an Christus, sec. quod homo, sit suppositum” e “ansit res naturae”.

Em relação à primeira questão (an sit suppositum) percebe-se cer-ta reserva na resposta afirmativa, reserva que se manifesta pelas expres-sões “potest concedi”, “si concedatur”. Da resposta depreende-se o se-guinte: para que um ser seja “suppositum hominis” é suficiente queseja “hoc aliquid in hac natura communi quae est homo”84, ou quetenha a mesma proporção que os outros homens (por exemplo, Pedroou Paulo) têm em relação à natureza comum85.

A resposta à segunda questão (an sit res naturae) é feita sem hesita-ção: – “concedo hoc in omni sensu”86.

Com efeito, a um ser, que em virtude de sua natureza é “resnataurae”, é indiferente que esta possua singularidade própria ou dadapor outro ser87. E a razão é esta: ao passo que a pessoa inclui umatríplice incomunicabilidade, “res naturae’ (ou “hoc aliquid”) não a in-clui88. Poder-se-ia por acaso dizer: “non est res res naturae, ergoincommunicabile non est”? Não, porque “res naturae sequitur adincommunicabile et non e contrario”89.

84 Ibid, q. 3, obj.2.85 Ibidem, obj. 2. Devido à identificação estabelecida entre “suppositum”, “subjectum”e “hypostasis”, o que se diz para “suppositum” vale para “subjectum” e “hypostasis”. Cf.por ex.: – In I Sent. Dist. XXIII, art. 6, ad 2m; In III Sent. Dist. V, a. 3, ad 6m; ibid. dist.VI, a. 2; ibid. disto. X, a. 3, sol.; I P. Summae Theol., Tract. X, 1. 44, memb. II.86 In III Sent. Dist. X, art. 1, ad 1qm 4.87 Ibidem, ad 1m.88 Ibidem, obj. 2. A doutrina da tríplice incomunicabilidade da pessoa é verdadeiroleit-motiv nos escritos de Alberto, e diga-se de passagem, era doutrina clássica entre osteólogos medievais.89 Ibidem.

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Examinemos agora outra série de textos90 na qual aparecerá nãomais a distinção, mas a conexão ou inclusão, das noções de que se ocupaeste parágrafo.

O pensamento albertiano manifesta-se respondendo a questão se-guinte: “In quo illorum (scillicet res naturae, suppositum hypostasis,substantia, individuum persona) facta est unio?”91 (trata-se da uniãoda natureza humana com a divina no Cristo).

O início da resposta pode parecer desconcertante, porque, tendoem vista apenas este texto, seríamos levados a crer que o que há depróprio na pessoa e no indivíduo é algo de acidental: ‘unio est in renaturae hominis, et suppositi, et hypostasis, et individui et personae.Si enim tantum esset in persona et non in aliis oporteret quod hichomo et hic Deus non esset unum nisi in accidente quoddam.

Eodem modo si in natione individui tantum unirentur non essentunum per naturam sed in accidentium collectione tantum”92.

Pode-se todavia explicar por outros textos o que Alberto quer di-zer, porque alhures distingue o que faz a pessoa, ou a individuação, doque a torna “distinguibilis” para nós. São acidentes individuantes quetornam “distinguibilis” (ostendunt personam distinctum esse), mas é a‘participatio formae super hanc materiam (esse distinctum super quodest in angelis) que faz a distinção pessoal93.

Portanto, quando Alberto diz que uma união feita “tantum inpersona” ou “in individuo” seria acidental (in accidente quoddam),

90 Cf. supra, pp. 19-20.91 In III Sent. Dist. VI, art. 3.92 Ibidem, ad 3m.93 ... notandum quoddam facit personam, et aliquid ostendit eam esse discratam. Hocautem facit personam quod facit eam esse per se unam... Individuantia sutem ostenduntpersonam distinctam esse, et in materialibus quidem materialiter sunt individuantia, inintellectualibus spiritualiter” (Summa De creaturis, Tract. IV, q. 28, art. 1, sol).

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não visa senão o aspecto exterior da pessoa, quer dizer, seus acidentes,pelos quais conhecemos a distinção.

Continuemos leitura do texto interrompido por esta explicação.

Seria inconcebível que duas naturezas se unissem “in hypostasis” (inactu substandi naturae) sem unir-se ao mesmo tempo “re naturae’, porque“hoc non est intelligibile quod id quod est aliquid non sit idem et unumcum illo “hoc aliquid”, cum suposita non sint diversa”94.

É também inconcebível que duas naturezas se unam de modo talque haja ‘supposita” distintos com unidade de “hypostasis”: – “et ulteriusnon potest intelligi qualiter hypostasis sit diversa, et non individua. Etsi individua ponantur diversa, non intelligitur qualiter persona umaesse possit”95.

A multiplicidade de hipostasis por seu lado implica multiplicidadede indivíduos e consequentemente de pessoas: “et si individua ponanturdiversa, non intelligitur qualiter persona uma esse possit”96.

Pelo que se depreende deste texto pode-se dizer que malgrado adistinção estabelecida entre as supracitadas noções, Santo Alberto nãoas considerava como separadas na realidade.

Para terminar este parágrafo resta-nos ver as relações estabelecidasentre a pessoa e o “esse”.

Vimos acima que o “esse” pode designar ou a “forma totius” (quese opõe à “forma partis”), que outra cousa não é senão a natureza, aessência, o “compositum”, ou também a existência.

Temos um texto onde é explicada muito claramente a distinçãoentre o “suppositum” e o “esse” (= forma totius, compositum essentia).

94 In III Sent. Dist. VI, art. 3, ad 1m.95 Ibidem.96 Ibidem.

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Há uma dupla comparação: a primeira entre o “suppositum” (quodest) e o “esse” em relação ao acidente; a segunda entre o acidente e o“esse em relação ao sujeito de inesão.

Ao passo que o “suppositum” pode ser sujeito de um acidente(guardando a distinção em relação a este mesmo acidente e tendo umanatureza que lhe seja diferente), o “esse” não só não se mistura com oacidente porque não pode ser seu sujeito de inesão (non habet rationemsubstandi), mas também é determinado pelo ato de inesão (per inesse)de maneira diferente da do acidente.

Com efeito, ao passo que o sujeito pode existir sem o acidente,neste não o pode. O “esse” pelo contrário adere ao suposto (inestsupposito) sem que este possa existir sem ele97.

Resumindo-se pode-se dizer que a distinção estabelecida entre o“suppositum” (quod est) e o “esse’ (= forma totius) é do mesmo tipoque a que existe entre o ato e a cousa que este ato atualiza (esse quoddicit actum ejus quod est)98.

Quais as relações entre a pessoa e o “esse” (=existência)?

O pensamento albertiano está longe de ser claro, sem ambigüidades.

Nos textos em que se emprega o termo “esse”, significando clara-

mente a existência, não se estabelece comparação entre “esse” e“suppositum” ou “quod est”. Estabelece porém com a substância, afir-mando que desta ele não é nem o “genus” nem a “diferencia”, nem a‘potentia”, nem o “actus”99. Rolland-Gosselin afirma que nos Comentári-os das Sentenças não há menção sobre a distinção entre a essência e a exis-tência, o “esse” não tendo no Scriptum, o sentido de existência100.

97 Summa De creaturis, Tract. IV q. 21, ad obj. 2am.98 Summa De creaturis, Tract. IV, q. 21, art. 1, ad obj. 2am.99 I P. Summae Theol. Tract. IV, q 19, memb. 3, ad 2m. cf. ad 1m.100 Rolland-Gosselin, op. cit. p.176.

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Há todavia exceção a esta afirmação geral. Trata-se de dois artigos emque se põem os seguintes problemas: “utrum Christus aliquo modo sitduo, sicut ista opinio dicit”; “utrum in Christo sit unum esse simpliciter”101.

Podemos resumir do seguinte modo o conteúdo destes dois arti-gos sobre as relações entre o “esse” e a “hypostasis” (note-se que aqui“hypostasis” aparece como sinônimos de pessoa).

Primeiro é preciso distinguir vários “esse”102.

a) aliud est esse hujus simpliciter.

b) aliud est esse hujus sec. naturam hanc vel illam.

c) aliud est esse hujus vel illius.

Ad a): Esse hujus simpliciter est esse personae verl hypostasis, sec.quod est hupostasis.

Como o “esse hujus simpliciter” pertence à hypostase, onde nãohá senão uma hypostase, há apenas um “esse”.

As duas afirmações: “esse est hypostasis” e “unius hypostasis nonest nisi unum esse” são dois “axiomas” várias vezes repetidos103.

Ad b):”Esse sec. naturam illam hanc vel illam, est esse acceptum incomparatione ad natauram facientem esse in hypostasi.

Tomando “esse” nesse segundo sentido pode-se admitir que umser que possui duas naturezas tenha dois “esse”. Ainda neste caso seriamelhor dizer: “unum duplex in constituente esse”.

Ad c) “Esse naturae (hujus vel illius) est esse quod habet natura inse: Omnis enim reshabet suum esse.

101 In III Sent. Dist. VI, art. 4 e 5.102 In III Sent. Dist. VI, art. 5, in corpore.103 Cf. in III Sent. Dist. VI, a. 4, q. (arg. 1); ibid. arg. 2; ibid. sol. E ad 1m. Ibidem art.6, sol.

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Esta doutrina não é bem clara, há de se convir, mas é meu deverrespeitar as ambigüidades que o pensamento de Abelardo comporta.

E para terminar, uma texto em que Alberto afirma que na hipóstasehá a “essentia” e o “esse ipsius essentiae”; este dá a essência (sic) àhipóstase. Este “esse” (que dá) difere da essência nada como a causa deseu efeito104.

Resta-nos concluir estes segundo capítulo.

Creio que estamos agora capacitados para compreender a maiorpartes dos axiomas relativos à noção de pessoa nas obras de SantoAlberto; infelizmente, porém, a extensão deste trabalho impede-lhes atranscrição.

Certamente haveria lugar para maiores precisões que em parte sefarão no capítulo seguinte. Esforçar-me-ei, sempre com auxílio de tex-tos, mas onde Alberto deixar imprecisões, estas serão respeitadas, eonde guardou silêncio, prefiro ainda, uma vez que o meu silencia sejao eco do dele.

Capítulo III – Caráter analógico da noção de pessoa

1. Considerações gerais

Alberto afirma diversas vezes eu a noção de pessoa é analógica105.

104 “In hypostasi est essentia et esse ipsius essentiae, id est, esse quod dat essentiam (sicapud ed. Borgnet e Jammy) hypostasi, et differunt sicut effectus et causa (unde illanon est natura). In III Sent. Dist. VI, art. 5, ad. Obj. 2am.105 Seria fora de propósito tentar aqui um resumo da teoria albertiana da analogia.Contento-me em citar uma passagem de seu comentário ao VII livro da Metafísica deAristóteles (Tract. I, C. IX, text. Et comm. 15): - “est enim aequivocum, cujus solumnomen est commune et unum, substantia autem cui aptatur deffinitio et insuper ipsadeffinitio penitus diversa.Univocum autem illi oppositum est, cujus nomen et substantia et substantiae ratio estpenitus unum.

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A noção é analógica porque convém “per prius et posterius” a Deus,aos anjos e ao homem.

A res indicada ou significada pelo nome convém por prioridade aDeus; no entanto, “secundum usum nominis”, convém primeiro aosseres inferiores.

A prioridade da conveniência do “usus nominis” à criatura se expli-ca pela definição nominal, ou mais precisamente pela composição donome: “cum enim et ab aliis divisum divisione quae essentialis et perse est, constat quod in hac perfecta ratione non dicitur de persinisdivinis (...). Unde si proprietas et compositio nominis attendaturperfectiore ratione de creatis quam de increatis dicitur106.

Se se puser o problema numa perspectiva de causalidade e deexemplaridade, será preciso dizer que “persona” (como aliás todos osnomes divinos) convém ‘per prius” a Deus107.

Mas não haveria, entre as definições clássicas, uma analógica, quese pudesse aplicar a Deus e às criaturas?

Sim. A de Boécio tem essa possibilidade porque exprime a“communis intentio personae”108.

Para que a noção possa aplicar-se a Deus, aos anjos e aos homensnão é necessário que o ‘modus discretionis personalis” seja o mesmo

Analoguma utem est proportionatum ad unum, et hoc est cujus nomen est unum et ressive substantia nominata illo nomine est una et eadem: sed ratio est diversa, eo quodratio diversificatur per reme t modum rei illius. Huic autem opponitur “multipliciterdictum”, cujus quidem nomen unum et ratio nominis una, res autem non penitus una,sicut totum et pars quae de continuo et discreto una dicuntur ratione: cum tamen nonsit totalitas, neque una ratio continui et discreti”.106 Summa Theol. I P. Tract. X, q. 44, memb. I, et ad 1m.107 Ibidem.108 Cf. In I Sent. Dist. XXV, art. 1, in fine; Summa Theol. I P. Tract. 44, memb. II, sol.

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para naturezas tão distintas como a divina, a angélica e a humana: “sufficitconvenientia proportionis qua ista communis passio referatur ad trêsnaturas; et dicunt quod illud est suppositum rationalis naturae: quiahoc inveniatur in Deo, angelo et homine, ideo non oportet quo modusdiscretionis sit unus”109.

Feitas essas breves e gerais considerações, vejamos como se realizaem cada um desses seres a noção de pessoa.

2. A “ratio personalitatis” no homem, no anjo e em Deus

A – A “ratio personae’ no homem

Devido ao caráter teológico das passagens em que Alberto estuda apessoa, sua preocupação volta-se primeiro para o dogma trinitário, emseguida pra a “discretio personalis” no anjo e no mistério da Encarnação.Ocasionalmente apenas fala da noção de pessoa no homem. Apesardisso, é possível encontrar elementos para algumas considerações.

Substantia indivisua. Alberto segue a doutrina mais comum deseu tempo, segundo a qual a alma humana, mesmo existindo separadade seu corpo, não é pessoa. A razão dada é esta: a alma “secundumsuam difinitivam substantiam” permanece forma (entelechia) de umcorpo orgânico e físico. Guardando esta dependência em relação a esse,não possui a incomunicabilidade essencial à noção de pessoa110.

À alma humana não convém nem mesmo o predicado “homo”porque ‘ratio hominis est convenientius toti ut toti; ergo non convenitpraedicari hominem ubi nos est totum in ratione totius”111.

109 In II Sent. Dist. III, art. 5, ad 1m.110 In III Sent. Dist. V, art. 16. Cf. ibidem, art. 3, ad. 6m; ibidem dist. VI, art. 2;Summa Theol. I P. TYract. X, q. 44, memb. II, ad illud quod objicitur.111 In III Sent. Dist. XXII, art. I, sed c. 2.

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Boécio deve ser entendido em relação ao ‘compositum” (corpo ealma unidos). Todavia, só a união d alma e do corpo não é suficientepra formar pessoa humana. É preciso que a união faça “singularehominis ut hominis”112. A união da alma e do corpo permite apenasatribuir ao ser que possui este composto o predicado ‘homo’. E isto éválido para todo homem, porque não é “inquantum” homem queSócrates, por exemplo é pessoa, mas “inquantum” hic homo; enquantohomem é apenas ‘animal rationale mortale”113.

Donde vem a possibilidade de uma pluralidade de pessoas humanas?

Ter uma substância dividida ou partilhada por várias pessoas é pró-prio da imperfeição da natureza formal criada, que não é plenamentesimples: “quoniam si (“formae creatae natura) posset etiam secundumesse et secundum id quod est, maneret una”114.

Daí resulta que “in inferioribus” “per substantiam formae etmateriae, sive quod est sive quo est, personae ad invicem distinguntur”;ou hypostasis inferioribus) different per materiam et formam et persubstantiam compositam”115.

Quando se pergunta qual é o princípio interno da distinção daspessoa, Alberto responde sempre que sua individuação (in se indivisumet ab allis divisum) vem da matéria e dos acidentes próprios. Donderesulta que toda pessoa criada (in inferioribus) tem uma dupla imper-feição: a divisão e a dupla composição: composição essencial com a ma-téria e acidental com os acidentes individuantes116.

112 Ibidem, dist. V, art. 11, ad 1m et 2m.113 Ibidem, art. 12, ad 2m.114 In I Sent. Dist. XXIII, art. 1, ad 4m.115 Ibidem, ad 5m;; In I Sent. Dist. XXVI, art. 1, ad 6m.116 Ib idem, dist. XXIII, art. 2, sol.

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O princípio interno, que faz que a pessoa seja ‘per se uma” é a“particulatio” da forma sobre “esta” matéria117.

Para Alberto, o princípio da incomunicabilidade, essencial à “ratiopersonalitatis,”, não se distingue do princípio de individuação.

No homem a matéria é não só o princípio da individuação, mas tam-bém o da incomunicabilidade ou da singularidade da pessoa, como tam-bém o é em relação à “res naturae”, ao “suppositum” e ao “indivíduo”118.

Eis aí portanto porque “persona” e “individuum” (quando estanoção se realiza em uma natureza racional) não se distinguem, e por-que também “singularitas” e “personalitas” aparecem sempre como si-nônimos. Com efeito, o que caracteriza a pessoa humana, quando acomparamos com a angélica, é poder ser pessoa “in potentia”, antes desê-lo “in actu”. Ter a personalidade “in actu” é possuir a singularidade,e tê-la “in potentia” significa não possuí-la119.

Esta doutrina aparece na cristologia.

Demos liberdade à nossa imaginação e suponhamos duas coisas:

1. Que o verbo deponha a humanidade que assumiu;

2. Que uma força infinita assuma uma pessoa humana “in actu”120.

Da primeira suposição segue-se que o “conjunctum ex anima etcorpore” passa a ser um homem, ou melhor, “hic homo”, portanto, umapessoa121.

Pergunta-se então: Quid ei contulit illam personalitatem quamDeus non habuit” (Notar atentamente como é posto o problema).

117 Summa de creaturis, Tract. IV, q. 28, art. 1, sol.118 In III Sent. Dist. VI, art. 3, ad 1m.119 In III Sent. Dist. III, art. 5, ad 2m.120 Istae positiones sunt vanae et sec intellectum phantasticum tantum” (in III Sent.Dist. V, art. 12, et ad 4m).121 Ibidem, ad 3m.

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É a singularidade, que esta natureza não possuía antes, que lhe dá apersonalidade.

Pergunta-se ainda: “quid confert ei illam singularitatem?”

A singularidade lhe é dada “per accidens”, pela divisão122.

Se supusermos que uma força infinita assume uma pessoa huma-na “in actu”, não haveria “aliquid dignitatis”, algo positivo (non enimconsumitur nisi quod est) da pessoa, que seria destruído?123

Sim, uma força infinita teria podido assumir uma pessoa humana,mas nesse caso a personalidade seria destruída ‘per accidens”, do mes-mo modo que na suposição anterior, a divisão lhe havia sido dada124.

Se quisermos falar, a propósito destes textos, de constitutivo dapessoa ou de personalidade (emprego indiferentemente esses dois ter-mos, como o fazia Alberto), tudo o que se poderá dizer é que a pessoaé constituída pela singularidade. Quando um “conjuntum ex anima etcorpore’ a possui é pessoa, quando a perde, deixa de sê-lo. Para Alberto,portanto, a singularidade é o “quid” que dá a personalidade e o “quid”positivo (aliquid dignitatis) que desapareceria por uma assunção125.

122 “Ad hoc autem quod quaeritur: - quid conferat ei personalitatem quam prius nonhabuit? Dicendum quod singularitas quam prius non habuit sive incommunicabilitas,ut alii dicunt.Si antem quaeritur iterum: - quid confert ei illam singularitatem. Dicendum quoddivisio per accidens confert ei. Et si dicatur quod divisio posius tollit quam aufert.Dicendum per se aufert, et per accidens confert divisum esse unu, et ab alio divisum:et haec est singularitas” (Ibidem).123 Cf. In III Sent. Dist. V, art. 12, ad 1m; ibidem, obj. 4.124 Ibidem, ad 4m.125 A propósito dessa doutrina de Alberto, o P. Gillon escreve: “Estas expressiones:destrueretur, corrumperetur, implican en San Alberto y Sto. Tomás una nueva conceptionde lo que se llama el “constitutivo formal’ de la personalidae? Ciertamente que si se lãsopone a los ‘desineret’, ‘cessaret’ de Odon Rigaud y de San Buenaventura, parecenindicar una entida o pr lo menos un ‘modo’ positiv, que la asunción de una humanidadpreexistente por lo Verbo vendria necessariamente destruir” (La nocion de persona enHugo etc. p. 177) (cf. infra referências).Seria bom notar, para não atribuir a Alberto (como também a Tomás e demais escolásticos)doutrinas por ele não ensinadas, e também para não projetar em seus escritos perspec-tivas posteriores da problemática, notar, digo, que seria a singularidade o algo positivodestruído, destuição que se faria “per accidens”.

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Rationalis naturae. Já tivemos ocasião de fazer observar que o casoindireto (obliquus) indica, na definição de Boécio, a distinção real que hánas criaturas entre a ‘substantia supposita” (ou “quod est’) e a natureza(“quo est”). Tentemos melhor compreender isto no caso da pessoa humana.

Antes de tudo, é evidente que a pessoa se distingue realmente da“natura communis”. Quando se diz, por exemplo, Pedro é homem,Paulo é homem, o predicado “homem” indica uma essência comumcomunicável, que convém a muitos sujeitos incomunicáveis. É evi-dente que o sujeito não é “per identitatem” a natureza comum, senãouma só e mesma coisa seria comunicável e incomunicável, o que écontraditório126.

Essas afirmações parecem aludir a uma natureza comum abstrata127.

Mas em uma pessoa dada, como exprimir melhor a distinção en-tre a natureza e a pessoa?

Um axioma responde assaz claramente : “cum persona (ergo) resnaturae site t rem naturae dicat in reto, naturam autem in obliquo, etdicat eamut ‘quo est’ res naturae, etc...”128

É necessário portanto não concebera natureza e a pessoa como duascoisas separadas; a natureza é o princípio formal (quo) da ‘res naturae”e da pessoa.

Alhures há uma outra distinção, que aliás não contradiz a afirma-ção precedente, e permite a Alberto provar teologicamente a possibili-dade da encarnação: no homem a natureza distingue-se ‘actu et tempore”da perfeição pessoal129.

126 Summa Theol. I P. Tract. X, q. 43, memb. II, art. 1, ad sed c. 1 et 2; cf. ibidem,Ulterius quaeritur, 2.127 Cf. In III Sent. Dist. V, art. 2, sol.128 Summa Theol. I P. Tract. X, q. 44, memb Ii, ad def. iam, ad 2m.129 In III Sent. Dist. II, art. 2, ad 1m. Cf. ibid., dist. III art. 5, 2m.

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B - A “ratio personae” no anjo

Procurarei ser breve, considerando apenas aquilo que é próprio aoanjo.

Substantia. Nos anjos a “forma partis” não se distingue da “formatotius”, porque a forma não tem necessidade de unir-se, como no casodo homem, a uma matéria e formar o “compositum”.

Individua. A individuação que se faz no homem pela matéria, faz-seno anjo pela distinção ou “particulatio” do “esse” (quo est) sobre o “quodest” e o particulariza: “facit eam (singularitatem personae) fundamentumesse particulans et individuans ipsum esse per se super se”130.

Foi a propósito do anjo que Alberto teve oportunidade de elabo-rar observações metafísicas entre o “suppositum” (quod est) e o “esse”(quo est)131.

Os acidentes individuantes (espirituais e não corporais) não cau-sam a pessoa, mas nô-la tornam cognoscível132.

Rationalis naturae. O caso indireto desses termos indica tambémpara os anjos a diversidade real entre o “suppositum” ou “substantiasupposita” e a natureza133, sendo esta o “quo est res natuae”134. Comoa “res naturae” é também no anjo, o composto do “quo est e o do“auod est”, o anjo não é simples como Deus

Isso, todavia, não quer dizer que no anjo a natureza preceda a pes-soa, como no homem em que há uma precedência no tempo (tempore)e em ato (actu)135.

130 In II Sent. Dist. III, art. 5, ad 3m. Cf. Summa de Creatures, Tract. IV, q. 28, art. I, sol.131 Cf. Rolland-Gosselin, op. cit., pp. 89-103.132 Summa De creaturis, tract. IV, q. 28, art. 1, sol. Et ad 3m.133 In I Sent. Dist. XXV, art. 1, ad q. am, ad 2m; Summa Theol. Tract. X, q. 44, membIi, ad def. 1am, ad 2m.134 Ibidem.135 In III Sent. Dist. II, art. 2 sed c. 2 et ad 1m.

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No anjo a pessoa está sempre em ato porque possui sempre a sin-gularidade136.

C – A “ratio personalitatis” em Deus

O ponto de partida da atribuição da noção de pessoa a Deus é aperfeição que implica. Em um “sed contra” (que conclui no mesmosentido da solutio) escreve: “Ultimum et perfectissimum rationalisnaaturae est persona; ergo personalitas ultima dicit perfectionisrationem; quidquid autem perfectionis est, Deus attribui est: ergopersonalitas Deo attribui debet, et máxime, ut videtur”137.

Pode-se considerar a natureza divina de dois modos: primeira, abs-tração feita de toda personalidade; segundo fazendo-se abstração detoda personalidade ensinada pela fé.

Considerada sob o primeiro aspecto a natureza divina é pura abs-tração intelectual (erit in intellectu tantum), que não é capaz de reali-zar ação alguma, e ‘intellegitur per modum alicujus in quo sit secundumesse, quia intelligibitur ordinabilis ad personam”.

Se a considerarmos fazendo abstração somente da pessoa tal qualnos ensina o dogma trinitário, Deus permanece, “secundumintellectum”, ‘ens, unus in se rationalis naturae et discretus suiusattributis ab omnibus aliis; et ita manebit in ratione personae, licet

136 Cf in KK Sent. Dist. III, art. 5, ad 2m.Alberto baseia-se nesta afirmação para explicar que o anjo não é “assumptibilis”. Eleencara sempre uma assunção tal qual se fez, isto é, que nada destuiu na natureza que foiassuminada. Já vimos que, em relação à natureza humana, foi posta a hipótese dapossibilidade de uma força infinita assumir uma pessoa “in actu”. A resposta foi afirma-tiva. Não me consta que Alberto tenha levantado a mesma hipótese em relação ao anjo,mas sua doutrina sobre a ‘discretio personalis” no anjo parece excluir tal possibildade.137 In I Sent. Dist. XXIII, art. 1, sed c. 6; ibidem, art. 2, obj. 7.

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non manebi in ratione personae hujus vel illius, et illi convenit assumerevel operari, et uniri sibi ex sui omnipotentia quidquid voluerit”138.

Podemos aplicar a Deus a definição de pessoa feita por Boécio,contanto que não nos deixemos enganar pela linguagem139.

Ao passo que nas criaturas o caso indireto dos termos “rationalisnaturae” indicam certa diversidade real (diversitas aliqua rei) entre anatureza e a pessoa ou o “suppositum”, com relação a Deus o casoindireto não implica mais do que uma diversidade no “modusintelligendi” ou “supponendi”140. Entre a natureza divina e a pessoa háidentidade absoluta entre o “quo est” e o “quod est”.

Para significar o “quo est” em Deus empregamos o termo “deitas”,e para o “quod est” o termo “Deus” = “habens deitatem”.

O trabalho teológico sobre o dogma trinitário obrigou Alberto adistinguir em Deus não só o “quod est” e o “quo est”, também o “quiest” e o “quis est”.

138 In III Sent. Dist. V, art. 2, sol. Cf. In I Sent. Dist. II, art. 12, 2º, sed c. 3 et ad 1m.139 Apesar de Alberto afirmar que não é a mesma “ratio personalitatis” que se realiza emDeus quando o consideramos segundo os dados da fé ou fazendo abstração desta, auma e outra dessas “rationes” é aplicada a definição de Boécio. Cf. In III Sent. Dist. V,art. 2, ad 3m.140 Cf. In I Sent. Dist. XIX, art. 8, ar. 4m; Ibid. dist. XXXII, art. 5, sol.; Ibid. dist. XXV,art. 1, q 1am, ad 2m et ad 5m.“dico autem diversum modum dicendi quando quidem unum duobus nominibussignificatur; sed ratione modi significandi cum significato principali aliquid connotaturin uno quod non connotatur in alio, sicut bonum, justum, sapiens dicitur de Deo. (...)Diversus autem modus supponendi quando quidem quae dicuntur eadem sunt re,tamen propter diversum modum significandi, supposito uno non supponitur alterumeisdem praedicatis: et sic persona est essentia, tamen supposita persona non supponituressentia respectu eorumdem praedicatoru. Et ex hoc causatur quartum, scilicet, diversusmodus attibuendi: attribuitur enim uni quod non attribuitur alteri: eo quod licet eademsit re, modo tamen significandi defferunt”. (Summa Theol. I P. Tract. X, q. 44, membI, ad 3am. Sententiam). De fato, Alberto usa, nos escritos, indiferentemente essesmodos.

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ORIS DE OLIVEIRA

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O “qui est” é a “hypostasis” (commumente definida = hypostasisest substantia cum proprietate). O “quis est”” é tal ou tal pessoa, porexemplo, o Pai (comumente definida = hypostasis distincta proprietatead dignitatem pertinente141.

Alberto não deixa de reconhecer que esta distinção cria numerosasdificuldades na explicação do mistério trinitário142, e é fora da alçadadeste trabalho o exame delas. Resta-nos, portanto, concluí-lo.

Conclusão

Se tivéssemos tido tempo de estudar a noção de pessoa em outrosautores medievais, seria agora o momento para uma comparação coma doutrina de Alberto.

A título de conclusão, farei umas observações gerais sobre certasambigüidades do pensamento albertiano e sobre a noção de pessoa emgeral.

Comecemos por observar que a noção de “quod est não é suficiente-mente clara. Embora Alberto distinga bem o “quod est” da matéria, da“forma partis”, da “forma totius” (= esse ou quo est), não se vê muitoclaramente qual é esta realidade que “substat formae et ratione cujussubsistit”, e que no anjo é o “fundamentum” que particulariza a forma.

Se houvesse, como em Deus, apenas uma distinção de razão (sec.modum intelligendi) entre o “quod est” e o “quo est”, toda dificulda-de desapareceria. Mas Alberto sempre afirma que nas criaturas há di-versidade real entre o “quod est” e o “quo est”.

141 Summa Theol. I P. Tract. X q. 43, memb II, art. 1; cf. In I Sent. Dist. XXVI art. 4.142 Cf. HUFNAGEL, Alfons. Das Person-Problem etc. especialmente pp. 231-232 (cf.bibliografia).

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Um outra ambiguidade, consequência, com certeza, da preceden-te, é a identificação feita entre o “quod est” de uma parte e o“suppositum”, a “hypostasis”, a pessoa, de outra.

De um lado é sabido que Alberto considera a “res naturae”, o“suppositum”, a “hypostasis” e a foriori a pessoa, como o compostoresultante da união do “quod est” e do “quo est”.

De outro, há textos em que o “quod est” não aparece como uma“parte” da pessoa ou da “hupostasis”, mas simplesmente como seu si-nônimo, significando, do mesmo modo que “hypostasis” e pessoa, otodo, que se distingue do “quo est”, princípio formal, que é a parte.

Concebendo o “quod est”, como parte a doutrina da distinção real(nas criaturas) entre o “quod est” como um todo, sinônimo então de“hypostasis” e “suppositura”, parece desaparecer a distinção já mencio-nada entre o “quod est” e o “quo est”. (Seria infantil pensar que Albertoconcebendo o “quod est” como um todo, tivesse concebido tambémcomposto de “quod est” e “quo est”).

Se houvesse apenas uma distinção de razão entre essas duas noçõespoder-se-ia considerar a mesma realidade como “quod est” e quo est”,havendo somente uma distinção “secundum modum” intelligendi”.Tal não é com certeza o pensamento albertiano porque o “quod est” étomado como sinônimo de “hipostasis” ou de “suppositum” justa-mente quando se fala da diversidade real nas criaturas entre “quo est” e“quod est”.

Ao invés de procurar explicações para justificar essas dificuldades,é mais objetivo reconhecer simplesmente que há ambiguidade na obrade Alberto

Concluindo este trabalho, sem querer dar uma definição da pessoa“ad mentem”, desejaria recordar, em suas grandes linhas a noção depessoa nas obras albertianas.

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A noção de pessoa se identifica com as de “res naturae’ (distincta),

‘suppositum” (=hypostasis”), substantia prima (= hypostasis) ou

‘subjectum”, e “individuum” quando essas noções se realizam em na-

turezas racionais (sentido lato).

A pessoa se identifica com a “res naturae quando esta já se encontra

distinta, quer dizer, já indivualizada por esta matéria (ou pelo

fundamentum) e pelos acidentes individuantes, que não a constituem

mas a manifestam.

A noção de “suppositum” não ajunta à ‘res naturae” mais do que

uma relação à natureza comum.

Esta mesma “res naturae” recebe o nome de “substantia prima” ou

“subjectum” se a considerarmos como um ser capaz de servir de sujeito

para acidentes. Se a considerarmos como um ser que não tem necessi-

dade de apoiar-se em outro, temos a subsistência”.

Uma “res naturae”, que é “individuum” (in se indivisa et ab aliis

divisa), não pode ser comunicável nem como o universal, nem como

parte, nem ser assumida ‘in singularit atem alterius”, ao menos sem

perder a “ratio personalitatis”, quer dizer, sem perder sua própria sin-

gularidade. (Contra intellectum est quod manente singulari tollatur

singularitas (ab ipso), quia hoc non potest intelligi”).

Pode parecer extranho que Alberto (como outros teólogos medie-

vais) não tenha tentado uma definição própria de pessoa.

Julgava ele, e nesse particular também concordou com seus con-

temporâneos, que a definição de Boécio era suficiente.

Mais concisamente: supondo tratar-se de uma natureza racional, a

pessoa é a “substantia individua”, nada mais, nada menos.

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Referências

BORGNET, A. Beati Alberti Magni Opera Omnia. Paris: Vives, 1890-1899. Os textos citados neste trabalho foram tirados desta ediçãoNos casos duvidosos foi consultada a edição Jammy.

JAMMY, P. Beati Alberti Magni Tomus primus. Etc. Lugduni, 1651.

HUFNAGEL, Von Alfons. Das Person-Problem bei Albertus Magnus StudiaAlbertina, etc. p. 202-233.

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Studia Albertiana. Festschrift für Bernhard Geyer Zum 70 Geburtstage.Heausgegeben von Dr. Hairich Ostlender. AschendorffscheVerlagsbuchhadlung. Münster West, 1952.

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Hermógenes Harada *

Introdução

Hilemorfismo, segundo Logos, Enciclopédia luso-brasileira de Filo-

sofia, vol. 2 é “Sistema ou doutrina filosófica, segundo a qual a estru-tura última ontológica dos corpos é constituída por duas componen-tes ou princípios radicais de ser: a matéria primordial (hyle) e a formasubstancial (eídos ou morfé)”. Hylé e morfé se diz em latim materia et

forma. Assim hilemorfismo é o princípio constitutivo do ente expres-so no binômio matéria e forma. Esse princípio era muito usado naIdade Média. E na nossa época, no ensino da filosofia neo-escolástica etambém na teologia, hoje já passado, se usou e se abusou desse binômio,a ponto, p. ex., de procurar distinguir nos sacramentos o que era ma-téria e o que era forma, p. ex., na confissão, onde os pecados confessa-dos eram matéria, e a fórmula da absolvição era forma. Assim ohilemorfismo caiu num grande descrédito, e o que hoje chamamos dehilemorfismo foi considerado como um modo primitivo e ingênuode conceber a estrutura dos entes do universo material numamundividência de uma humanidade que vivia e pensava ainda dentroe a partir da existência artesanal de fabricação de artefatos.

Entretanto, se examinarmos o uso que Raimundo Lull faz desseprincípio, combinando o binômio matéria-forma com um binômio

* Publicação póstuma.

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variante de potência e ato, de imediato percebemos que os medievaisusavam esse binômio matéria e forma com grande habilidade, proces-sando nesse uso uma grande variação de diferenciação subtil, de talmodo que o princípio matéria-forma se nos revela como um princí-pio dinâmico universal que rege não somente o mundo físico-materialdas substâncias compostas (coisas sem vida, vegetais, animais, sereshumanos enquanto corporal), mas também toda a escalação dos entesem diferentes intensidades do ser, cuja essência é liberdade, i. é, dassubstâncias simples ou espirituais (ser humano enquanto alma e espíri-to, as diferentes ordens dos anjos). Só que então nesse nível da intensi-dade do ser dos entes espirituais, não se fala de matéria e forma massim de potência e ato.

Como acima foi dito, hoje o hilemorfismo é considerado comoexplicação primitiva e ingênua de uma humanidade que tentava inter-pretar o universo como produto de fabricação artesanal. Nós, hodiernos,com razão, temos dificuldade de tomar a sério essa explicação dohilemorfismo. Esta teoria assim interpretada nos parece demasiada-mente ingênua e grotesca. Pois, ela vê o universo como imensa oficinaartesanal, onde estão os entes em diferentes níveis de perfeição de ocor-rência, como que surgindo, crescendo, se consumando a modo de pro-dutos de fabricação artesanal, em que sempre se acha a composição domaterial que é informado e configurado através de uma determinação,em vista de uma finalidade de serventia, tendo como ação produtivados entes um causador que efetua a obra.

Essa teoria da constituição do universo como efeito de uma causaefetivante ou eficiente, usando o material prejacente para configurá-lo emvista de um determinado fim da serventia, portanto como um jogo decausa material, causa formal, causa final e causa eficiente, embora se atri-bua a Aristóteles é claramente uma versão des-mitilogizada da teoria dacriação do mundo (cf. Gênesis), portanto vem de uma doutrina teológicamedieval do Criador, Criação e criaturas. Assim, quase inconscientemente

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nós, hodiernos, dizemos: aqui não se trata de uma real explicação da coisaela mesma chamada universo e sua estruturação, mas sim de uma explica-ção que vem de uma mundividência, digamos religiosa. Pode ser interes-sante e curioso enquanto manifestação cultural de uma época do passado,mas enquanto explicação filosófico-científica da realidade é bem primitivae grosseira.

Na verdade, essa dificuldade não provém da primitividade e ingenui-dade da explicação cosmológica dos medievais, mas sim da maneira super-ficial e grosso modo de como nós entendemos a colocação medieval daCriação. Por considerarmos o princípio matéria-forma como teoria pro-veniente de uma crença, subestimamos o nível da compreensão altamentediferenciada e nuanceada de suas descrições, explicações e distinções. É quenós, hodiernos, incorremos na equivocação de perspectiva, quando nacompreensão do princípio matéria-forma o pensamos quase exclusiva-mente como modelo de fabricação de um vaso na mão de um oleiro.Temos assim causa material = barro; causa formal = configuração do vaso;causa final = a serventia do vaso; e causa eficiente = o oleiro como sujeito eagente da fabricação do vaso. É nesse modelo artesanal que explicamos aCriação do universo. Matéria em diferentes níveis de elaboração; forma, odeterminante que dá a cada nível de matéria a sua forma ativa e o queassim surge como ente é orientado na sua efetivação como definido emvista de um determinado fim e tudo isso causado por Deus como porcausa eficiente primeira.

Esse modo de entender o hilemorfismo, como já foi explicitadoacima, é ingênuo demais para fazer jus à compreensão do princípiomatéria-forma como o entendiam os medievais. Pois esse modelo defabricação de um vaso só vale para o mais baixo nível do surgimentode um ente, a saber, do ente material-físico sem vida. Nesse modelo, acausa final e a causa eficiente não aparece no seu ser próprio como umgrau superior de intensidade do ser como vida, sensibilidade,racionalidade e como diversos níveis do espírito.

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Repetindo o que já foi dito, com outras palavras, o que seja causafinal e causa eficiente como os medievais conheciam só se torna maisevidente se, p. ex., escutarmos a palavra causa não como o que dá acausação, mas sim como coisa. É que a palavra causa é a mesma da coisa

(res = realidade). Temos assim causa, i. é, coisa material e formal; cau-sa, i. é, coisa final e causa, i. é, coisa eficiente. Em vez de coisa pode-mos também dizer realidade, ou ente ou ser. Trata-se de diferentesníveis da intensidade crescente de ser e indica também relacionamentode crescimento da autonomia e da mútua dependência entre esses dife-rentes graus da intensidade do ser. Os medievais expressavam esse rela-cionamento mútuo de crescimento da autonomia, na medida em quecrescia a intensidade do ser e a mútua dependência entre os diversosgraus de intensidade do ser com os termos ens a se (ente ou realidade apartir de si = a plenitude do ser = Deus, de quem tudo depende) e ens

ab alio (ente ou realidade a partir do outro = os entes em escalaçãocrescente da intensidade do ser expresso nas quatro causas ou coisas:coisa sem vida; coisa vegetal; coisa animal; coisa homem; e diferentesgraus de coisa espírito = anjos). Assim, coisa material depende da coisaformal; e a coisa constituída de causa material e causa formal, dependeda coisa final; e esta da coisa eficiente. Depende em que sentido? Nosentido de, acima do nível de coisa material sem vida, haver outrosníveis de coisas, cujos nomes como formal, final e eficiente indicamdiferentes graus da intensidade, complexidade, riqueza do ser, mutua-mente correlativos numa escalação ascendente até se chegar à máximaintensidade do ser, ao ser por excelência que não é mais ab alio, mas ase, i. é, o ser pleno e ab-soluto, Deus. A dinâmica da coisa material épassividade; a dinâmica da coisa formal é atuação; da coisa final é atu-ação, cuja vigência consiste em diferentes graus de autoconstituiçãocomo vigência, vida vegetal; como vigência da vida da sensoriedadeanimal; como vigência da vida anímica psicossomática humana (ima-

ginação, cf. Da imaginativa, sensibilidade toda própria etc.), comovigência do ânimo (vigor) racional como grau da vigência do espírito

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(que portanto inclui inteligência, vontade e sentimento), a partir doqual segue uma escalação de vigências cada vez mais intensas comointelecto, espírito e mente no homem e diferentes graus do espíritocomo nove coros dos anjos – (portanto a doutrina dos anjos nos me-dievais não é tão ingênua como nos parece) – até se chegar ao próprioDeus como Espírito supremo, a se.

As coisas ou os entes cuja vigência se inicia com o homem, for-mando os círculos concêntricos da intensidade do ser até se chegar àsuprema vigência Deus, se caracterizam como formando potencializaçãocada vez mais imensa, profunda e criativa da liberdade que recebe tam-bém o nome de espírito. Liberdade aqui indica a autonomia do ser, apartir de si, caracterizada na expressão que diz o próprio de Deus, asaber, a se. Os entes ab alio são como que participação graduada daaseidade de Deus, de tal modo que a participação a mais íntima epróxima dessa aseidade, i. é, o relacionamento do Criador e criaturas,se chama filiação divina. A Criação, o Criador, as criaturas no seu inter-relacionamento mútuo não podem ser compreendidos adequadamen-te se os tentamos entender sob a categoria da causação, i. é, de causa eefeito, mas sim através do inter-relacionamento de encontro chamadofiliação divina, em diferentes graus descendentes até se chegar à puramatéria-prima, onde o índice de “filiação” não se chama filiação massim causação. Com outras palavras, a verdadeira compreensão dobinômio matéria-forma só pode ser captada se, em vez de partir delecomo processo de produção artesanal de um ente sem vida na suacomposição como causa material e causa formal de uma causação efici-ente para um determinado fim, tentarmos colocá-la na perspectiva dadifusão da liberdade da bondade de Deus, a se, se comunicando gra-tuitamente e sem medida no relacionamento da filiação divina às cria-turas em diferentes níveis de participação.

A partir dessa perspectiva tentemos ler e analisar o texto deRaimundo Lull sobre Forma.

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Forma

O texto intitulado Da Forma se acha no Livro da Lamentação da

Filosofia, logo depois do Prólogo. O comentário desse texto serve comopreparação para o comentário do capítulo Da Imaginativa, texto queconstitui o núcleo da nosso tema. Nesse comentário não falamos pro-priamente da Matéria, mas em comentando a Forma, comentamos aomesmo tempo a Matéria, na medida em que é necessário para o nossouso, a fim de compreender o princípio matéria-forma como fundosobre o qual se fala da imaginativa.

Comentário:

A forma se define: “Sou o ente que dou o ser à coisa. E sou absoluta

e primitiva, pois que com a matéria-prima constituo uma só substância

geral de todo o universo”.

Embora não se possa provar científico-historiograficamete, a ma-neira coloquial de a forma se apresentar como pessoa num relaciona-mento dialogal tu-a-tu, pode para alguém que é medieval como Lull,não ser apenas um gênero literário, mas sim a maneira de ver o inter-relacionamento entre criaturas com Deus e entre si como um imensodiálogo de comunicação e participação, exatamente por a Criação serentendida a partir do a-priori da filiação divina. Nesse ponto é interes-sante observar que muitos dos pensadores escolásticos da época de Lull,ao expor tratados especulativos de densa abstração conceptual, secos eformais, começam numa oração ou expõem todo o tratado na formade oração dialogal (cf. p. ex. Santo Anselmo) como a dizer que a reali-dade básica e fundamental do ente no seu ser é o encontro com Deus.

A forma é um ente que, juntamente com a matéria-prima, se ca-racteriza como sendo uma só substância geral de todo o universo.

Observemos como Lull usa a palavra ente, ser, coisa e substância

com diferentes nuances. Ente vem do latim ens, -tis e é particípio ativo

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do verbo esse i. é, do verbo ser. Ente (ens) significa portanto em sendo.No seu uso corrente é substantivo e assim o ente é em geral entendidoestaticamente como um algo. Mas, na sua forma de particípio ativo,ente significaria a dinâmica da ação de ser, a vigência, o vigor do emsendo. Ente é tudo que de alguma forma está referido ao verbo ser,num sentido o mais geral e o mais indeterminado. Só que essa genera-lidade e indeterminação não significam o vazio abstrato, inteiramenteformal, mas sim vastidão e imensidão, profundidade e, ao mesmotempo, a vigência do vigor de ser em todos os seus detalhes econcretizações. Para de alguma forma tornar presente essaindeterminação concreta da imensidão, profundidade e vitalidade doser em todas as suas manifestações como entes, é, em sendo, experi-mente imaginar a imensidão abissal do universo como um mar deforça em pulsação, em mil e mil diferentes constelações de diversida-des qualitativas e quantitativas, fazendo surgir, crescer e consumar-semilhares de entes que aparecem como isso e aquilo, quais irrupções,rebentos desse imenso mar de força. É como se o imenso mar no seutodo pulsasse e se ondulasse em milhares e milhares de ondas, gotasd’água, como concreções vivas de todo abismo do mar. Uma outraimagem que de alguma forma nos aproximasse do fundo a partir doqual Lullus fala da forma como sendo uma só substância de todo ouniverso seria uma sinfonia cósmica, onde cada nota, cada conjuntode notas se entrelaçam e formam o caudaloso fluxo de tonâncias, me-lodias, silêncios, percussões e repercussões como o imenso profundo esempre renovado vir à fala do abismo de possibilidade do ser. Nessaimensidão do ser podemos divisar vários momentos do mesmo. Umavez a imensidão do todo, sem limites; outra vez, a mesma imensidãodo todo como plenitude de atuação e expansão, e ao mesmo tempocomo abismo vazio de passivação ou recepção, que como que impreg-nando o todo está presente em todas as pulsações que surgem e desa-parecem, constituindo cada impulsão e cada vibração como concreção.Se entendo o ente como toda a aparição dessa imensidão plurivalente,

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então eu me aproximo da compreensão do ser como indeterminado,no sentido da plenitude e ao mesmo tempo do vazio simultâneo nasua dinâmica. Daí diz a forma: “Eu sou ente que dou ser à coisa”. Enteque deve ser a coisa como presença da totalidade da imensidão comotudo e nada simultaneamente na total indeterminação ou na totalinfinitude da presença e ausência ao mesmo tempo. Nada e Tudo comoinfinito momento da recepção do ser e como infinito momento dedoação do ser, isto é matéria e forma, como o pano de fundo do abis-mo cósmico do ser. É essa dinâmica do tudo e do nada simultâneo quese constitui como ente (em sendo), entendido agora como coisa, esta,aquela coisa e constelações de coisas como concreções do universo.Essa “realidade” receptiva e donativa, esse nada e plenitude na dinâmi-ca como pregnância do todo é absoluta e primitiva, no sentido de serela o primeiro, o mais elementar abrir-se do todo dos entes no seu sercomo constituindo o uno, uma só substância como todo: uni-verso.Substância, porque é acentuado o momento da pregnância da presen-ça da plenitude, cujo fundo é o abismo da gratuidade como nada, i. é,como diziam os medievais “ex nihilo sui et subiecti” (gratuidade doser). Abismo do nada da gratuidade do ser é matéria primtiva ou pri-

meira como potência receptiva (potentia oboedientialis) e forma, a ple-nitude na sua presença total como atuação da doação gratuita. Mastanto a atuação donativa como a recepção enquanto forma e matériase dá simultaneamente, desencadeando milhares de percussões e reper-cussões de doação e recepção como que num movimento de explosão,ou melhor, de difusão ou expansão originária (primitiva ou primeira),deslanchado o imenso movimento da constituição do mundo, dosmundos dos mundos: a Criação. Essa presença-percussão é absoluta

(ab-soluta), i. é, solta, livre, à vontade na dinâmica da sua difusão, qualum irromper alegre e gratuito do universo no seu todo. É esse movi-mento da percussão absoluta-primitiva que constitui, como percussãoe repercussão do mesmo, milhares e milhares de entes (em sendo) atu-ais e possíveis. Assim, a forma juntamente com a matéria-prima cons-

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titui a substância geral do universo. Geral significa aqui universal e aomesmo tempo generatica, i. é, o que faz nascer (cf. genus, -eris = nas-cimento, geração). Se algo assim pode ser o fundo da concepção douniverso na doutrina da Criação, da qual certamente Lull participava,devemos então dizer que o Criador simultaneamente e“prioritariamente” cria o nada (= matéria-prima = possibilidade gratui-ta de receber = potentia oboedientialis) como a imensidão da genero-sidade grata da recepção, da passividade acolhedora e no mesmo ins-tante a plenitude da doação difusiva de si como forma. Certamente éisso que os medievais queriam dizer quando falavam, como acima jámencionamos, que Deus criou o universo ex nihilo sui et subiecti, i. é,Deus criou o universo a partir do nada, do nada de si, do nada sem osubjacente anterior, i. é, livre e gratuitamente. Esse movimento dovigor ou da vigência generativa do universo, qual um imenso e abissal‘big-bang’ do universo como toque inicial proveniente da recepção edoação primordial e elementar como o instante da ignição da explosãopode ser o que Lull chama de composição absoluta, i. é, a total ab-solutaliberdade do instante do toque. Em geral, a nossa compreensão dacomposição não faz jus ao fenômeno, porque entendemos a composi-ção como ajuntamento de elementos já existentes a outros elementostambém já existentes. É como se somássemos pedaço por pedaço, peçapor peça, algo mais algo. Na realidade toda e qualquer composição, eprincipalmente na colocação de uma dimensão do sentido do ser maisintenso, como p. ex., na arte (composição musical), o que vem à falano instante da composição é a percussão e repercussão do todo que napossibilidade de vir à concreção já foi lançado de antemão. Esse ‘ictus’constitutivo elementar e inteiramente livre ab-soluto no seu toque ini-cial (forma) atravessa todas as dimensões do universo, ou melhor, atra-vessa os entes, os em-sendos naqueles princípios que de maneira umtanto vazia e estática chamamos de bondade, grandeza, duração e po-

der, instinto, apetite, vontade, verdade, prazer e perfeição. Aliás princí-pios poderiam ser no fundo repetições desse ‘ictus’ inicial, dessa igni-

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ção originária em cadeias de repercussões. Lull chama essas iniciaçõesou movimentos generativos de percussão e repercussão de princípios

inatos, i. é, anteriores na dinâmica da ignição a tudo quanto vem à falacomo percussão e repercussão desses inícios, desses princípios. Essaanterioridade dos princípios não é a anterioridade estática de uma cau-sa ao seu efeito, mas sim, diria Lull, no movimento de interação dacorrelatividade concordante, i. é, não é assim que primeiro vem isso edepois o outro, pois se é a simultânea presença de tudo e nada no ictus,na ignição de todo do universo em concatenação de percussão e reper-cussão, o anterior e o posterior se estruturam como concomitância deinteração, abrindo-se cada vez como mundo, como o abrir-se e esten-der-se de paisagem em leque. Por isso diz a forma: “Provindo de todos

os princípios inatos, sou ativamente uma única forma absoluta; ativando,

existo pela bondade, pela grandeza e assim por todos os outros princípios

inatos, dos quais sou constituída; e assim sou absoluta”.

Isto tudo significa que a forma deve ser vista sob dupla perspecti-va. Se o universo é difusão da irradiação do ser; e forma e matériaprincípio, meio e fim da dinâmica da ignição ou do ictus inicial quelança a totalidade dos entes no seu ser em cada dimensão, horizonte,setor e concreção cada vez seu, como no primeiro toque da percussãode uma sinfonia está lançado o todo da sinfonia no velamento edesvelamento de cada item do que ali repercute; então o princípio dematéria e forma, pode ser considerado substancialmente, i. é, na recep-ção e doação onipresente, subsistente como sub-stância instantânea natotalidade dos entes como ser no ente e ao mesmo tempo pode sertambém considerado acidentalmente, i. é, recepção e doação tematizadacada vez em instantes das concreções dos entes como este e aqueleente. Sendo assim, a forma substancialmente considerada pode a par-tir dos instantes da concreção ser considerada como potência para cadaatualização, i. é, tematização da concreção de cada ente, i. é, do cadaem-sendo. Assim, a onipresença subsistente, digamos maciça ou substan-

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cial da forma ou melhor a forma substancialmente considerada, emsendo como in-stância onipresente, se dá como ato e em assim sendoé possibilidade doadora, i. é potência, poder para todas as formas par-ticulares ou acidentalmente atuantes em instantes da concreção de cadaente; e como para cada doação é dada a matéria como instante recepti-vo, formam-se cada vez em concreto agentes substanciais. Por isso, aforma pode dizer: “Sou duplamente forma, a saber: substancialmente e

acidentalmente. E sou ente em potência para todas as formas particulares

que surgem, existindo eu em ato e elas e os agentes substanciais provindo

de minha essência. De mim e deles provêm as formas acidentais, que em

mim e neles são sustentadas e permanecem. Por isso sou forma absoluta”.É muito importante ouvir aqui o termo absoluto dinamicamente, natotal simbiose ou interação – (passividade é também uma ação) – for-ma-matéria como doação e recepção, em cujo movimento a forma, aose doar, recebe o ser recebido, da matéria e a matéria o poder receber,da forma, numa intimidade dialogal que se repete infinda einfinitesimalmente na alegria da gratuidade.

Do que dissemos, se torna compreensível porque Forma diz de si:“Sou substância em potência”.

Os medievais caracterizavam substância como ens in se e acidente,como ens in alio. A palavra accidens significa o que cai sobre (ad-cadere).Em grego substância se diz hypokeímenon e acidentes symbebekóta (neu-tro plural). A maneira como Lull entende substância e acidente, pelomodo como ele usa essas palavras ao explicitar a “composição” maté-ria-forma, mostra que Lull está inclinado ao entender essas palavras nadireção do que os gregos acenam quando dizem hypokeímenon esymbebekóta.

Costuma-se traduzir hypokeímenon como o que jaz debaixo ouabaixo: hypó = sob, de baixo, em baixo; keímenon = do verbo keisthai

= jazer, estar ali deitado. Daí, em latim se traduziu sub (hypó) + stantia

(keímenon): o que está debaixo de. A palavra substância, assim ouvida,

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conota algo como fundo, sob a superfície, algo constante, oculto embaixo, algo como núcleo, firme e maciço, como bloco permanenteatrás das aparências mutáveis. Ao passo que o acidente evoca algo quevem assim de acréscimo, algo que não subsiste em si, mas somenteapegado ao outro, algo que pode ser e não ser, algo não essencial masacidental. Sem dúvida, com essa compreensão da substância e aciden-te, estamos no modo usual de conhecer uma coisa físico-material. Essamaneira de ver o ente como substância e seus acidentes é tão óbvia porela corresponder a uma maneira cotidiana e usual de ver a realidade.Nesse sentido usual e pouco refletido, a bondade, p. ex., não seriasubstância, nem a angústia, a noite, pois não encontramos ali nada defisicamente concreto a modo de bloco e núcleo permanente atrás dasaparências.

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TRADUÇÕESTRADUÇÕESTRADUÇÕESTRADUÇÕESTRADUÇÕES

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CARTA DA UNIVERSIDADE DE PARIS...

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CARTA DA UNIVERSIDADE DE PARIS(02/05/1274) AO CAPÍTULO GERAL

DOS DOMINICANOS, REUNIDO EMLIÃO (20/05/1274), POR OCASIÃO DA

MORTE DE TOMÁS DE AQUINO(07/03/1274) *.

O reitor da Universidade de Paris, os procuradores e demais mes-tres em exercício nas artes em Paris, aos veneráveis em Cristo, padres,mestre e provinciais da Ordem dos Frades Pregadores, bem como atodos os frades reunidos no capítulo geral de Lião, saudação naqueleque dispõe tudo salutarmente e provê sabiamente a todo o universo.

Lamentamos cheios de lágrimas e não sem razão decidimos deplo-rar em comum nestes dias com soluçante clamor a perda de toda aIgreja universal, assim como a desolação manifesta do estúdio parisiense.

Oh, quem nos dera pudéssemos exibir o lamento de Jeremias! Oqual, se deplorava tão inconsolavelmente a destruição e a ruína da Je-rusalém material, nós, incendidos de maior zelo, somos obrigados alamentar tão danosa perda de nossa nova Jerusalém da Igreja universal.Ouviu-se o rumor portador do lamento doloroso e queixoso, que,acima do modo costumeiro, causando logo em seguida inaudito es-

* Traduzido do original latino publicado por A. Birkenmajer, “Der Brief der PariserArtistenfakultät über den Tod des hl. Thomas von Aquino”, Beiträge zur Geschichteder Philosophie des Mittelalters, Munique, v. 20, fasc. 5, p. 1-35, 1922. O texto seencontra às pp. 2-5. Tradução para o português por Carlos Arthur do Nascimento.

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panto nas mentes de todos e trazendo depois incalculável assombro,trespassou o íntimo de nossas vísceras e feriu quase letalmente o inte-rior dos corações. Confessamos que quase não conseguimos dizê-lo:de fato o amor nos embarga, mas a dor e a veemente angústia noscompele a dizer que sabemos, pelo que se diz em geral e pelo murmú-rio de muitos, que o doutor venerável frei Tomás de Aquino foi cha-mado deste mundo. Quem poderia supor que a divina providênciativesse permitido que a estrela d’alva preeminente no mundo, que oesplendor e luz do século, ou mesmo, para dizermos com mais verda-de, que o luminar maior que presidia ao dia, recolhesse seus raios?Claro, não sem razão julgamos que o sol tenha anulado seu fulgor etenha sofrido um sombrio e inopinado eclipse, quando um raio detanto esplendor é subtraído a toda a Igreja. Embora não ignoremosque o autor da natureza o tenha concedido por um tempo a todo omundo por especial privilégio, se quisermos nos apoiar nas autorida-des dos filósofos antigos, pareceria que a natureza o teria estabelecidoespecialmente para elucidar seus segredos.

Por que insistimos inutilmente agora em tais palavras? É dolorosodizê-lo: embora o solicitássemos insistentemente da assembléia reuni-da em vosso capítulo geral de Florença (12/06/1272), não pudemosobtê-lo. No entanto, para que não nos mostremos ingratos para coma memória de tão grande clérigo, padre e doutor, que não pudemosreaver vivo, mas dotados de afeição devota, vos pedimos humilde-mente, como dádiva suprema, os ossos do mesmo já morto. Pois étotalmente inconveniente e indigno que outra terra e outro lugar, quenão a mais nobre de todas as cidades universitárias, Paris, que primeiroo educou, alimentou e dele cuidou e depois recebeu dele próprio ali-mentos e cuidados inefáveis, conserve seus ossos inumados e sepulta-dos. De fato, se com razão a Igreja honra os ossos e as relíquias dossantos, para nós não é sem fundamento que nos pareça digno e santoconservar o corpo de tão grande doutor em honra perpétua. De modo

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que, daquele cujos escritos perpetuam a fama entre nós, a duradouramemória de sua sepultura o estabeleça sem fim nos corações de nossossucessores.

Além disso, esperando que nos atendais completamente neste pe-dido devoto, suplicamos humildemente que vossa benevolência pro-cure nos transmitir com urgência certos escritos relacionados com afilosofia, iniciados por ele em Paris e deixados inacabados em sua par-tida e que cremos que ele tenha terminado no lugar para onde foi.Suplicamos especialmente o “Comentário de Simplício sobre o livroAcerca do Céu e do Mundo”, a “Exposição do Timeu de Platão” (porProclo) e o livro “Acerca das canalizações de águas e a construção demáquinas hidráulicas”, dos quais fez menção, prometendo especial-mente no-los enviar. Igualmente, se compôs algo pertinente à lógica,como humildemente pedimos ao mesmo quando partiu de entre nós,digne-se vossa benignidade transmiti-lo à nossa corporação.

Como o sabe melhor vosso discernimento, estando nós expostosa muitos perigos neste mundo perverso, suplicamos fraternalmente,com devotas preces, que nos ampareis com especial afeto com o sufrá-gio de vossas orações neste vosso capítulo.

Queremos selar esta carta com os selos do reitor e dos procurado-res. – Dado em Paris no ano do Senhor de 1274 no dia de Mercúrioantes da descoberta da Santa Cruz.

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EXPOSIÇÃO A RESPEITO DO SOBRE A INTERPRETAÇÃO...

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EXPOSIÇÃO A RESPEITO DOSOBRE A INTERPRETAÇÃO. LIVRO I *

Lição XIII

1) Depois que o Filósofo determinou acerca da oposição dasenunciações e mostrou como as enunciações opostas dividem o verda-deiro e o falso, inquire aqui acerca de algo que poderia ser duvidoso,isto é, se o que foi dito se encontra igualmente em todas as enunciaçõesou não.

A respeito disto faz duas considerações: primeiro, propõe uma desi-gualdade; segundo, prova-a ali, “pois, se toda afirmação etc.” (n. 7).

2) A respeito do primeiro, deve-se considerar que o Filósofo esta-beleceu no que precede uma tríplice divisão das enunciações (lição VIII,2 e 3; lição X, 10). Destas, a primeira foi de acordo com a unidade daenunciação, isto é, na medida em que a enunciação é pura e simples-mente una ou una por conjunção; a segunda foi de acordo com aqualidade, isto é, na medida em que a enunciação é afirmativa ou ne-gativa; a terceira foi de acordo com a quantidade, posto que uma certaenunciação é universal, uma certa outra particular, outra ainda indefi-nida e enfim outra singular.

3) Trata-se aqui, porém, de uma quarta divisão das enunciações deacordo com o tempo. Pois, uma delas é acerca do presente, outra acer-ca do passado e outra acerca do futuro. Esta divisão também pode ser

* Exposição sobre os livros de Aristóteles, Sobre a interpretação e Analíticos posteriores,Texto da edição Leonina, Aos cuidados do P. Fr. Raymundo Spiazzi, Turim, Marietti,1955.

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tomada do que foi dito acima; de fato, foi dito acima (lição VIII, 8)que é necessário que toda enunciação seja constituída de verbo ou decaso do verbo; ora, o verbo e o que consignifica o tempo presente, e oscasos do verbo são os que consignificam o tempo passado ou futuro.

Pode-se, porém, tomar uma quinta divisão das enunciações de acor-do com a matéria. Considera-se esta divisão de acordo com a referên-cia do predicado ao sujeito, pois, se o predicado pertence por si aosujeito, diz-se que é uma enunciação em matéria necessária ou natural,como quando se diz “o homem é animal” ou “o homem é capaz derir”. Se, porém, o predicado repugna por si ao sujeito, como que ex-cluindo sua determinação, diz-se que a enunciação é em matéria im-possível ou removida, como quando se diz “o homem é asno”. Se,porém, o predicado se referir ao sujeito de maneira intermediária, detal modo que nem repugna por si, nem pertence por si ao sujeito, dir-se-á que a enunciação é em matéria possível ou contingente.

4) Consideradas, pois, estas diferenças das enunciações, o juízoacerca da verdade e da falsidade não se apresenta de modo igual emtodas. Daí, o filósofo, concluindo a partir do preestabelecido, dizerque “naquilo que é”, isto é, nas proposições acerca do presente, e “na-quilo que foi”, isto é, nas enunciações acerca do passado, é necessárioque a afirmação ou a negação seja verdadeira de maneira determinada.Isto, no entanto, se diversifica de acordo com a quantidade diversa daenunciação, pois nas enunciações nas quais algo é predicado universal-mente de sujeitos universais, é necessário que uma seja sempre verda-deira, isto é, a afirmativa ou a negativa, e a outra falsa, isto é, a que lheé oposta.

Com efeito, foi dito acima (lição XI, 3ss) que a negação daenunciação universal, na qual algo é predicado universalmente, é a ne-gativa, não universal, mas particular e, reciprocamente, a universal ne-gativa não é diretamente a negação da universal afirmativa, mas daparticular. É preciso assim, de acordo com o que foi dito anteriormen-

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te, que em qualquer matéria, uma delas seja sempre verdadeira e aoutra falsa. Dá-se a mesma determinação nas enunciações singularesque também se opõem contraditoriamente, como foi tratado acima(lição XI, 7). Mas, nas enunciações, nas quais algo é predicado nãouniversalmente acerca do universal, não é necessário que uma seja sem-pre verdadeira e a outra falsa, pois, ambas podem ser simultaneamenteverdadeiras, como foi mostrado acima (lição XI, 8).

5) Isto, de fato, apresenta-se deste modo no que se refere às propo-sições que são acerca do passado ou acerca do presente; mas, se tomar-mos enunciações que são acerca do futuro, também se apresentam demodo igual, no que diz respeito às oposições, as que são acerca dosuniversais, tomados universalmente ou não universalmente. Pois, emmatéria necessária, todas as afirmativas são verdadeiras de maneira de-terminada, tanto nas futuras como nas passadas e nas presentes; as ne-gativas, porém, são falsas. Em matéria impossível, acontece ao contrá-rio. Em matéria contingente, as universais são falsas e as particularessão verdadeiras, tanto nas futuras como nas passadas e nas presentes.Nas indefinidas, são simultaneamente verdadeiras, tanto nas futurascomo nas presentes e nas passadas.

6) Mas, nas singulares e futuras, há uma certa desigualdade.Pois, nas passadas e presentes, é necessário que, em qualquer maté-ria, uma das opostas seja verdadeira de maneira determinada e aoutra falsa. Mas nas singulares que são acerca do futuro não é ne-cessário que uma seja verdadeira de maneira determinada e a outrafalsa. Isto é dito, de fato, no que se refere à matéria contingente;pois, no que se refere à matéria necessária é impossível, dá-se nassingulares futuras determinação igual à das presentes e passadas.Aristóteles, no entanto, não fez menção da matéria contingenteporque pertence propriamente ao singular o que advémcontingentemente; o que cabe ou repugna por si, é atribuído aossingulares de acordo com as determinações dos universais.

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Todo o presente intento, portanto, versa a respeito do contingen-te: se nas enunciações singulares acerca do futuro em matéria contin-gente é necessário que uma das opostas seja verdadeira de maneira de-terminada e a outra falsa.

7) Depois, quando diz “pois, se toda afirmação etc.”, prova a dife-rença preestabelecida.

A esse respeito faz duas considerações: primeiro, prova o pretendi-do, conduzindo a uma incompatibilidade; segundo, mostra que éimpossível aquilo que se segue ali “porque, portanto, acontecem in-compatibilidades etc.” (lição XIV).

A respeito do primeiro, faz duas considerações: primeiro, mostra quenas singulares e futuras nem sempre se pode atribuir de maneira determi-nada a verdade a uma das opostas; segundo, mostra que não pode ser queambas careçam da verdade, ali “No entanto, nem porque etc.”

A respeito do primeiro estabelece duas razões, nas quais a primeiraestabelece uma certa consequência, a saber, que se toda afirmação ounegação é verdadeira ou falsa de maneira determinada, tanto nas singu-lares futuras como nas demais, por conseguinte e necessário que tudoé ou não é de maneira determinada.

Depois, quando diz “por isso, se este de fato etc.” ou “se, portanto,este, de fato etc.” como se tem no grego, prova a consequência já enun-ciada. Com efeito, admitamos que há duas pessoas, das quais uma dizque algo acontecerá, por exemplo, que “Sócrates correrá”, e a outra dizque exatamente isto mesmo não acontecerá. Suposta a admissão pré-via, isto é, que nas singulares futuras acontece que uma delas é verda-deira, a saber, a afirmativa ou a negativa, segue-se que é necessário queuma das duas diz a verdade, mas não ambas, pois não pode ser que, nasproposições singulares futuras, ambas sejam simultaneamente verda-deiras, isto é, a afirmativa e a negativa, pois isto só tem lugar nas inde-finidas. Ora, do fato de que é necessário que uma delas diga a verdade,

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segue-se que é necessário ser ou não ser de maneira determinada. Provaisto por conseguinte, pois esses dois seguem-se reciprocamente, a sa-ber, que seja verdadeiro o que é dito e que assim seja na coisa.

Isto é o que manifesta, por conseguinte, dizendo que “se é verda-deiro dizer que é branco”, segue-se por necessidade que assim é nacoisa; e se é verdadeiro negar, segue-se por necessidade que assim não é.E reciprocamente, pois, se assim é na coisa ou não é, segue-se pornecessidade que é verdadeiro afirmar ou negar. A mesma reciprocidadeaparece também no falso, pois, se alguém mente, dizendo o falso,segue-se por necessidade, que assim não é na coisa, tal como ele afirmaou nega; e reciprocamente, se assim não é na coisa tal como ele afirmaou nega, segue-se que aquele que afirma ou nega mente.

8) Portanto, o procedimento desta razão é o seguinte. Se é necessá-rio que toda afirmação ou negação nas singulares futuras seja verdadei-ra ou falsa, é necessário que todo aquele que afirma ou nega de manei-ra determinada diga o verdadeiro ou o falso. Disto, porém, segue-seque é necessário que tudo seja ou não seja. Logo, se toda afirmação ounegação é verdadeira de maneira determinada, é necessário que tudoseja ou não seja de maneira determinada. Disto conclui ulteriormenteque tudo é por necessidade.

Pelo que é excluído um tríplice gênero de contingentes.

9) Com efeito, alguns acontecem como em muito poucos, acon-tecendo por acaso ou por sorte. Alguns referem-se a ambas as partes,pois não se referem mais a uma parte que à outra; estes procedem daescolha. Alguns, enfim, advêm como na maioria, assim como as pes-soas ficarem grisalhas na velhice, o que é causado pela natureza. Se,porém, tudo adviesse por necessidade não haveria nenhum destes con-tingentes. Por isso, diz “nada é” no que se refere à própria permanênciado que permanece contingentemente; “nem se torna” no que se refereà produção do que é causado contingentemente; “nem por acaso” no

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que se refere ao que é em menor parte ou como em muito poucos;“nem em ambas as partes” no que se refere ao que se porta igualmentepara com ambas, isto é, o ser ou o não ser, e não está determinado paranenhum destes – o que significa quando acrescenta “nem será, nemnão será”. Com efeito, acerca do que está mais determinado a umaparte podemos dizer de maneira determinada de modo verdadeiro queisto será ou não será, assim como o médico diz do convalescente demodo verdadeiro – este ficará são, embora casualmente sua saúde sejaimpedida por algum acidente. Donde, o filósofo também dizer no IIlivro Sobre a geração (cap. XI; Com. ST, lição XI) que “quem há decaminhar não caminha”. Com efeito, acerca daquele que tem o propó-sito determinado para caminhar, pode-se dizer que ele caminha, em-bora sua caminhada seja impedida por algum acidente. Mas, daqueleque se situa em relação a ambos os lados, é próprio que não seja possí-vel dizer dele de modo determinado, nem que será, nem que não será,pois, não está mais determinado para um do que para outro. Manifes-ta, porém, como se segue da hipótese precedente que nada se refere aambos os lados, acrescentando que, se toda afirmação ou negação éverdadeira de maneira determinada, é preciso que, ou aquele que afir-ma ou aquele que nega diga o verdadeiro; assim, suprime-se o que serefere a ambos os lados, pois, se fosse algo que se refere a ambos oslados, portar-se-ia igualmente quanto ao realizar-se ou ao não se reali-zar não mais em relação a um do que a outro.

Deve-se, porém, considerar que o Filósofo não exclui aqui expres-samente o contingente que se dá o mais frequentemente por uma du-pla razão. Primeiro, com efeito, porque tal contingente não exclui queuma das enunciações opostas seja verdadeira e a outra falsa de maneiradeterminada como foi dito (acima, neste mesmo n.). Segundo, por-que, excluído o contingente que é o menos frequentemente que acon-tece por acaso, exclui-se por conseguinte o contingente que é o maisfrequentemente. De fato, o que é mais frequentemente em nada diferedo que é menos frequentemente, senão porque falha em menor parte.

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10) Depois, quando diz “ademais, se é branco etc.”, estabelece asegunda razão para mostrar a desigualdade já enunciada (supra, 6), le-vando ao impossível. Com efeito, se a verdade e a falsidade se apresen-tam de maneira igual nas proposições presentes e futuras, segue-se quetudo que é verdadeiro acerca do presente será também verdadeiro acer-ca do futuro, do modo que é verdadeiro acerca do presente. Ora, agora éverdadeiro dizer de modo determinado acerca de algo singular que é bran-co; portanto, primeiro, isto é, antes que aquilo se tornasse branco, eraverdadeiro dizer que isto será branco. Ora, a mesma determinação pareceestar no próximo e no remoto; portanto, se um dia antes foi verdadeirodizer que isto será branco, segue-se que sempre foi verdadeiro dizer acercade qualquer daqueles que se realizaram que será. Se, porém, é sempreverdadeiro o dizer acerca do presente, visto que é, ou acerca do futuro,visto que será, isto não pode não ser ou não haver de ser.

Consequência, cuja razão é patente, pois é incompatível que algoseja dito ser verdadeiramente e que não seja. Pois está incluído na signifi-cação do verdadeiro que seja aquilo que é dito. Se, portanto, sustenta-seque é verdadeiro aquilo que se diz acerca do presente ou acerca do futuro,não é possível que isto não seja presente ou futuro. Ora, o que não podenão se dar significa o mesmo que o que é impossível não se dar. E o que éimpossível não se dar significa o mesmo que o que é necessário que se dê,como se dirá de modo mais completo no segundo.

Segue-se, portanto, do que precede que tudo o que haverá de ser,necessariamente vem a ser. Do que, segue-se ulteriormente que nadaseja referente a ambos os lados nem por acaso, pois o que acontece poracaso não é por necessidade, mas como em muito poucos; isto, po-rém, deixa de lado como incompatível. Também o primeiro, portan-to, é falso, isto é, que tudo o que é verdadeiro que é, será verdadeirodizer de maneira determinada que será.

11) Para a evidência do que, deve-se considerar que, visto o verda-deiro significar que algo seja dito ser o que é, algo é verdadeiro da

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maneira como tem o ser. Quando, porém, algo é no presente, tem oser em si mesmo e, assim, pode verdadeiramente dizer-se dele que é;mas, enquanto algo é futuro, ainda não é em si mesmo; é, porém, dealgum modo na sua causa. O que acontece de três modos.

De um modo, de maneira que esteja na sua causa de modo que prove-nha dela por necessidade; tem, então, o ser na sua causa de maneira deter-minada; tem, então, o ser na sua causa de maneira determinada; donde, sepoder dizer acerca dele de maneira determinada que será.

De outro modo, algo está em sua causa como a que tem inclina-ção para seu efeito, a qual pode, no entanto, ser impedida; donde,também isto está determinado em sua causa, mas de maneira mutável.Assim, pode-se dizer verdadeiramente acerca disto – isto será –, masnão com certeza total.

De um terceiro modo, algo está em sua causa puramente em po-tência, que também não está mais determinada para um do que paraoutro; donde, resta que de nenhum modo se pode dizer de maneiradeterminada de um deles que virá a ser, mas apenas que é ou não é.

12) Depois, quando diz “no entanto, visto que nem etc.”, mostraque a verdade não está totalmente ausente de ambos os opostos nasproposições singulares futuras. Primeiro, propõe o que pretende, di-zendo que, assim como não é verdadeiro dizer que em cada um de taisopostos há o verdadeiro de maneira determinada, também não é ver-dadeiro dizer que nenhum dos dois é verdadeiro; como se dissermos:“nem será, nem não será”.

Segundo, ali “com efeito, primeiro, como seja etc.”, prova o quefoi proposto, por duas razões.

Destas, a primeira é a seguinte. A afirmação e a negação dividem overdadeiro e o falso, o que é patente pela definição do verdadeiro e dofalso, pois o verdadeiro nada mais é que ser o que é ou não ser o quenão é; e o falso nada mais é que ser o que não é ou não ser o que é.

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Assim, é preciso, que se a afirmação é falsa, que a negação seja verda-deira e reciprocamente. Ora, de acordo com a postura supracitada, aafirmação, pela qual se diz – “isto será” – é falsa; mas nem por isso anegação é verdadeira. Igualmente, a negação será falsa, não se dando aafirmação verdadeira. Portanto, a postura supracitada é impossível, querdizer, que a verdade esteja ausente de ambos os opostos.

Sustenta a segunda razão ali “em relação a esta, se é verdadeiroetc.”. Esta é a seguinte. Se é verdadeiro dizer algo, segue-se que istoseja. Por exemplo, se é verdadeiro dizer que algo é grande e branco,segue-se que é ambos. Assim, tanto acerca do futuro como do presen-te, pois segue-se que será amanhã, se é verdadeiro dizer que será ama-nhã. Portanto, se a postura supracitada é verdadeira, dizendo que nemserá amanhã, nem não será, seria preciso que nem viesse a ser, nem nãoviesse a ser. O que é contra a determinação do que se refere a ambos oslados, pois o que se refere a ambos os lados se relaciona a um ou aoutro, como haverá uma batalha naval amanhã ou não haverá. Assim,a partir disto, segue-se a mesma incompatibilidade que no já dito.

Lição XIV

1) O filósofo mostrou acima (lição precedente), levando a umaincompatibilidade, que não há de modo igual o verdadeiro ou o falsode maneira determinada em um dos opostos nas enunciações singula-res e futuras, como dissera antes acerca das outras enunciações (liçãoXI, 7; XIII, 4-5). Mostra agora que as incompatibilidades a que levarasão impossíveis.

A este respeito faz duas considerações. Primeiro, mostra as impos-sibilidades que se seguiam; segundo, conclui como a verdade se portaem relação a estas, ali “portanto, ser o que é etc.” (lição XV).

2) A respeito do primeiro faz três considerações: primeiro, apre-senta as incompatibilidades que se seguem; segundo, mostra que estas

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incompatibilidades se seguem da postura precedente, ali “com efeito,nada impede etc.” (n. seguinte); terceiro, mostra que as incompatibili-dades mencionadas são impossíveis, ali “dado que estas são impossí-veis etc.” (n. 5).

Diz, portanto, primeiro, concluindo a partir das razões anterior-mente enunciadas, que estas incompatibilidades se seguem se susten-tar-se que é necessário que uma das enunciações opostas seja verdadeirade maneira determinada e a outra seja falsa, igualmente nas singularescomo nas universais, isto é, que nada naquilo que vem a ser refira-se aambas as partes, mas tudo seja e venha a ser por necessidade.

A partir disto introduz ulteriormente duas outras incompatibili-dades. Das quais a primeira é que não seria preciso deliberar acerca dealgo; com efeito está provado no livro II da Ética (cap. III; Com. ST,lição VII) que a deliberação não é acerca do que é por necessidade, masapenas acerca dos contingentes, que podem ser e não ser.

A segunda incompatibilidade é que todas as ações humanas quesão em vista de algum fim (por exemplo, um negócio que é em vistada aquisição de riquezas) seriam supérfluas. Pois, se tudo advém pornecessidade, contra o propósito dos seres humanos, pois, parecem de-liberar e negociar com o propósito de que, se fizerem isto, dar-se-á talfim, se porém fizerem algo distinto, dar-se-á outro fim.

3) Depois, quando diz “com efeito, nada impede etc.”, provaque as incompatibilidades enunciadas são consequência da posturaenunciada.

A este respeito faz duas considerações: primeiro, mostra que asincompatibilidades anteriormente enunciadas se seguem, caso se sus-tente um certo possível; segundo, mostra que as mesmas incompatibi-lidades seguem-se mesmo que este não seja sustentado, ali “mas nemisto difere etc.” (n. seguinte).

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Diz, portanto, primeiro, que não é impossível que mil anos antes,quando nada estava premeditado ou preordenado entre os seres huma-nos acerca do que se passa agora, alguém tenha dito que isto será, porexemplo, que tal cidade será destruída, outro, porém, tenha dito queisto não será. Ora, se toda afirmação ou negação é verdadeira de ma-neira determinada, é necessário que um dos dois tenha dito o verda-deiro; portanto, foi necessário que um dos dois adviesse por necessida-de. A mesma determinação se encontra em tudo o mais; portanto,tudo advém por necessidade.

4) Depois, quando diz “mas nem isto difere etc.”, mostra que omesmo se segue se aquele possível não for sustentado (n. precedente).Com efeito, nada difere, no que diz respeito à existência ou ocorrênciadas coisas se, afirmando um que isto virá a ser, outro negar ou nãonegar. De fato a coisa se apresentará de tal modo se isto for feito, assimcomo se isto não for feito. Com efeito, não é por causa do nossoafirmar ou negar que se muda o curso das coisas, de modo que algoseja ou não seja, pois a verdade de nossa enunciação não é causa daexistência das coisas, mas antes ao contrário. Igualmente, também nãodifere, no que diz respeito à ocorrência daquilo que se dá agora, se tiversido afirmado ou negado mil anos antes ou em qualquer tempo antes.Assim, portanto, se em qualquer tempo passado a verdade dasenunciações se apresentava de tal modo que era necessário que um dosopostos fosse dito de modo verdadeiro; e ao fato de que é necessárioque algo seja dito de modo verdadeiro segue-se que é necessário queisto é ou vem a ser; tem-se como consequente que tudo aquilo quevem a ser se comporta de tal modo que vem a ser por necessidade.

Assinala a razão desta consequência pelo fato de que se admitir-seque alguém diz de modo verdadeiro que isto será, não pode não vir aser. Assim como, suposto que seja um ser humano, não pode não serum animal racional mortal. Com efeito, isto é significado quando sediz que algo é dito de modo verdadeiro, isto é, que seja assim como é

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dito (lição precedente, 7 e 11). Ora, o relacionamento daquilo que sediz agora com o que virá a ser é o mesmo que era o daquilo que se diziaantes com aquilo que é presente ou passado. Deste modo, tudo acon-teceu, acontece e acontecerá por necessidade, porque era sempre verda-deiro dizer o que agora está feito como existente no presente ou nopassado, porque virá a ser.

5) Depois, quando diz “caso isto não seja possível etc.”, mostraque o que precede é impossível: primeiro, por meio de uma razão;segundo, por meio de exemplos sensíveis, ali “e muito que nos é mani-festo etc.” (n. 7).

A respeito do primeiro, faz duas considerações: primeiro, mostrao propósito nas coisas humanas; segundo, também nas outras coisas,ali “e porque é totalmente etc.” (n. seguinte).

No que se refere às coisas humanas, mostra que é impossível o quefoi dito, pelo fato de que o ser humano manifestamente parece ser oprincípio daqueles futuros que realiza como sendo senhor dos seusatos e tendo em seu poder agir ou não agir. Com efeito, se este princí-pio for removido, suprime-se toda a ordem do relacionamento huma-no e todos os princípios da filosofia moral. De fato, supresso este, nãohaverá nenhuma utilidade da persuasão, nem da ameaça, nem da puni-ção ou da remuneração, pelas quais os seres humanos são atraídos paraos bens e desviados dos males e, assim, esvazia-se toda a ciência civil.

Portanto, o filósofo toma como princípio manifesto o fato deque o ser humano seja princípio de futuros; ora, não é princípio defuturos, senão pelo fato de que delibera e faz algo. Com efeito, os queagem sem deliberação não têm domínio do seu ato, como sendo livre-mente juízes do que deve ser realizado, mas são movidos por um certoinstinto natural para agir, como é patente nos animais irracionais.Donde, ser impossível o que foi concluído acima que não seja precisonegociar e deliberar. E, assim, é também impossível aquilo de que seseguia, isto é, que tudo sucede por necessidade.

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6) Depois, quando diz “e porque é totalmente etc.”, mostra omesmo também nas outras coisas. Com efeito, é manifesto tambémnas coisas naturais que há algumas que nem sempre estão em ato; por-tanto, acontece nelas ser e não ser; do contrário, ou sempre seriam, ousempre não seriam.

Ora, o que não é, começa a ser algo pelo fato de que se torna isto,assim como o que não é branco começa a ser branco pelo fato de que setorna branco. SE, porém, não se torna branco, permanece não entre bran-co. Portanto, nos em que acontece o ser e o não ser, acontece também otornar-se e o não se tornar. Portanto, os que são tais não são nem se tor-nam por necessidade, mas há neles a natureza da possibilidade, pela qual sereferem ao tornar-se e ao não se tornar, ao ser e ao não ser.

7) Depois, quando diz “e muito que nos é manifesto etc.”, mostrao propósito por meio de exemplos sensíveis. Com efeito, seja, porexemplo uma roupa nova. É manifesto que é possível cortá-la, poisnada impede o corte, nem da parte do agente nem da parte do pacien-te. Prova, porém, que simultaneamente com o fato de que é possívelque ela seja cortada, é também possível que ela não seja cortada, domesmo modo como acima (lição XI, 10) provou que duas proposi-ções indefinidas opostas são simultaneamente verdadeiras, quer dizer,pela assunção do contrário. Com efeito, assim como é possível queesta roupa seja cortada, também é possível que ela se gaste, isto é, seestrague pela velhice. Ora, se gasta-se não é cortada; portanto, ambossão possíveis, isto é, que ela seja cortada e que não seja cortada.

A partir disto conclui de maneira universal que nos outros futurosque não estão sempre em ato, mas estão em potência, é manifesto ofato de que nem todos são ou se tornam por necessidade, mas algunsdeles se referem a ambos os lados, os quais não se referem mais à afir-mação do que à negação. Há outros, porém, nos quais um deles acon-

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tece o mais frequentemente; acontece, contudo, também o menos fre-quentemente que a outra parte seja verdadeira e não a anterior, isto é, aque acontece o mais frequentemente.

8) Deve-se porém, considerar que, como diz Boécio neste lugarno Comentário (De interpretatione, 2. ed. lib. III, p. 233 ss), algunsopinaram de maneiras diversas a respeito do possível e do necessário.

Com efeito, alguns os distinguiram de acordo com a ocorrência,como Diodoro, que disse que é impossível o que nunca será; é, po-rém, necessário o que será sempre; enfim, é possível o que às vezes seráe às vezes não será.

Os estóicos, porém, distinguiram-nos de acordo com os impedi-mentos externos. Disseram, com efeito, que o necessário é o que nãopode ser impedido que seja verdadeiro; o impossível, o que está sem-pre impedido da verdade; possível o que pode ser impedido ou não serimpedido. Ora, ambas as distinções parecem ser inadequadas. Pois, aprimeira distinção é a partir de algo posterior. Com efeito, algo não énecessário porque sempre será, mas antes, sempre será porque é neces-sário; e o mesmo é patente nos demais. A segunda distinção, porém, éa partir de algo externo e como que acidental. Com efeito, algo não énecessário porque não tem impedimento, mas porque é necessário,então não pode ter impedimento.

Por isso, outros determinaram-nos melhor de acordo com a natu-reza das coisas, de tal modo que seja dito necessário o que em suanatureza está determinado apenas para ser; impossível, o que está de-terminado apenas para não ser; possível, o que não está inteiramentedeterminado para nenhum dos dois, quer se refira mais a um do que aoutro, quer se refira igualmente a ambos, o qual é chamado de contin-gente para ambos os lados. Isto é o que Boécio atribui a Filon.

Ora, essa é manifestamente a sentença de Aristóteles neste lugar.Com efeito, estabelece a razão da possibilidade e da contingência, no

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que é a partir de nós, pelo fato de que somos deliberativos, e no resto,pelo fato de que a matéria está em potência para ambos os opostos.

9) Ora, parece que esta razão não é suficiente. Com efeito, assimcomo nos corpos corruptíveis a matéria se encontra em potência, refe-rindo-se ao ser e ao não ser, assim também nos corpos celestes encon-tra-se potência para os diversos “onde” e, no entanto, nada ocorre nelescontingentemente, mas apenas por necessidade. Donde dever se dizerque a possibilidade da matéria para ambos, se falarmos de maneirageral, não é razão suficiente da contingência, a não ser que se acrescentetambém, da parte da potência ativa, que não seja inteiramente deter-minada para um; do contrário, se for determinada para um, de talmodo que não possa ser impedida, tem-se como consequente que leve,do mesmo modo, por necessidade a potência passiva ao ato.

10) Alguns, pois, atentando para isto sustentaram que a potênciaque está nas próprias coisas naturais recebe a necessidade a partir dealguma causa determinada para um, que denominaram destino. Des-tes, os estóicos colocaram o destino numa certa série ou conexão decausas, supondo que tudo que acontece neste mundo tem causa; ora,posta a causa, é necessário pôr o efeito. Se uma causa por si não basta,muitas causas concorrentes para isto recebem a determinação de umacausa suficiente. Concluíam, assim, que tudo ocorre por necessidade.

11) Ora, Aristóteles anula esta razão no livro VI (V, cap. III) daMetafísica (Com. ST lição III), destruindo as proposições assumidas.Diz, com efeito, que nem tudo que vem a ser tem causa, mas apenasaquilo que é por si. Aquilo, porém, que é por acidente não tem causa, pois não é propriamente ente, mas se classifica de preferência, com onão ente, como Platão também disse (Sofista). Donde, ser músicotem causa e igualmente ser branco; mas o fato que consiste em o bran-co ser músico não tem causa, dando-se o mesmo em todos os outroscasos similares. Igualmente, também esta proposição de que posta acausa, mesmo suficiente, é necessário por o efeito é falsa. Com efeito,

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nem toda causa, ainda que seja suficiente, é tal que seu efeito não possaser impedido; assim como o fogo é causa suficiente da combustão dasmadeiras, e, no entanto, a combustão é impedida pelo derramamentode água.

12) Se, porém, ambas as proposições supracitadas fossem verda-deiras, infalivelmente seguir-se-ia que tudo acontece por necessidade.Pois, se qualquer efeito tem causa, haveria que reconduzir um efeito(que virá a ser depois de cinco dias, ou depois de não importa quantotempo) a alguma causa que é no presente ou já foi no passado. Se,porém, posta a causa, é necessário pôr o efeito, através da série dascausas, a necessidade chegaria até o último efeito. Por exemplo, se co-meu salgados, tem sede; se tem sede, sairá de casa para beber; se sairá decasa, será morto pelos ladrões. Portanto, como já comeu salgados, énecessário que seja morto. Por isso, Aristóteles para excluir isto, mos-tra que ambas as proposições supracitadas são falsas como se disse.

13) Ora, alguns objetam contra isto dizendo que todo por aciden-te se reconduz a algo por si e, assim, é preciso que o efeito que é poracidente seja reconduzido a uma causa por si. Mas não atentam que oque é por acidente é reconduzido ao por si, na medida em que é aci-dental ao que é por si, assim como o músico é acidental a Sócrates etodo acidente a algum sujeito existente por si. Igualmente, tudo queem algum efeito é por acidente, é reconduzido ao por si, na medidaem que é acidental ao que é por si, assim como o músico é acidental aSócrates e todo acidente a algum sujeito existente por si. Igualmente,tudo que em algum efeito é por acidente, é considerado a respeito dealgum efeito por si, que no que se refere ao que é por si, tem umacausa por si; no que se refere, porém, ao que está presente nele poracidente, não tem uma causa por si, mas uma causa por acidente; pois,é preciso referir proporcionalmente o efeito a sua causa como se diz nolivro II da Física (Cap. III; com ST, lição) e no livro V (IV, cap. II) daMetafísica (Com. ST, lição III).

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14) Alguns, porém, não atentando para a diferença dos efeitos poracidente e por si, tentaram reconduzir todos os efeitos que sobrevêmaqui embaixo a alguma causa por si, que sustentavam ser a virtude doscorpos celestes na qual punham o destino, dizendo que o destino nãoé nada mais que a força da posição dos astros. Ora, a necessidade emtudo o que se passa aqui não pode provir desta causa. Com efeito, aquimuito resulta do intelecto e da vontade, que por si e diretamente nãose submetem à virtude dos corpos celestes, pois, visto o intelecto ou arazão e a vontade que está na razão não serem atos de um órgão corpo-ral, como se prova no livro Sobre a alma (liv. III, cap. IV; Com. ST,lição VII), é impossível que o intelecto ou a razão e a vontade se sub-metam diretamente à virtude dos corpos celestes; com efeito, nenhu-ma força corporal pode agir por si senão numa coisa corpórea. As for-ças sensitivas, porém, na medida em que são atos de órgãos corporais,submetem-se por acidente à ação dos corpos celestes. Donde, o Filó-sofo, no livro Sobre a alma (liv. III, cap. III; Com ST, lição IV) atri-buir a opinião dos que sustentam que a vontade humana se submeteao movimento celeste àqueles que não sustentavam que o intelectodifere do sentido. No entanto, indiretamente a força dos corpos celes-tes repercute no intelecto e na vontade, na medida em que o intelectoe a vontade se servem das faculdades sensitivas. Ora, é manifesto queas paixões das faculdades sensitivas não acarretam necessidade para arazão e a vontade. Pois o continente tem concupiscências más, masnão é arrastado, como é patente pelo que diz o Filósofo no livro VII(cap. I; Com. ST, lição I) da Ética. Assim, portanto, a partir da virtudedos corpos celestes não provém necessidade no que vem a ser pelarazão e pela vontade.

Nem, igualmente, nos outros efeitos corporais das coisas corrup-tíveis, nos quais muito ocorre por acidente. Ora, o que é por acidentenão pode ser reconduzido a alguma virtude natural, como a uma causapor si, pois a virtude da natureza se ordena a um. Ora, o que é por

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acidente não é um; donde, ter sido dito acima (lição V, 11) que estaenunciação “Sócrates é branco músico” não é una, pois não significaapenas um. Deste modo, o Filósofo diz no livro Sobre o sono e a vigília

(Sobre a predição pelos sonhos cap. II) que muito, cujos sinais preexistemnos corpos celestes, como por exemplo nas chuvas e tempestades, nãoacontece pois é impedido por acidente. Embora também aquele im-pedimento, considerado em si mesmo, se reconduza a alguma causaceleste, o encontro destes, visto ser por acidente, não pode serreconduzido a alguma causa que age naturalmente.

15) Mas deve-se considerar que o que é por acidente pode ser to-mado pelo intelecto como uno, como o branco ser músico, o que,embora em si mesmo não seja uno, o intelecto toma como uno, namedida em que, compondo, forma uma enunciação una. Tendo-seisto em conta, acontece que o que em si ocorre por acidente e casual-mente é reconduzido a algum intelecto preordenante. Assim como oencontro de dois servos em certo lugar é por acidente e casual no quese refere a eles, visto um ignorar acerca do outro; no entanto, pode sertencionado pelo senhor, que envia ambos para que se encontrem emcerto lugar.

16) Tendo isto em conta, alguns sustentaram que o que quer quese realize neste mundo, mesmo o que parece fortuito ou casual, sereconduz à ordem da providência divina, da qual diziam que o destinodepende. Alguns imbecis negaram isto, julgando acerca do intelectodivino a modo do nosso intelecto, que não conhece os singulares. Ora,isto é falso, pois o inteligir divino e seu querer é o seu próprio ser.Donde, assim como seu ser compreende por sua virtude tudo o que éde qualquer modo, na medida que é por participação dele, assim tam-bém seu inteligir e seu inteligível compreende todo conhecimento etodo cognoscível e seu querer e seu querido compreende todo apetitee todo apetecível o que é o bem. De tal modo que, pelo fato mesmode que algo é cognoscível, cai sob seu conhecimento e, pelo fato mes-

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mo de que é bom, cai sob sua vontade, assim como, pelo fato mesmode que é ente, algo cai sob sua virtude ativa, que ele compreende per-feitamente, visto que é agente através do intelecto.

17) Ora, se a providência divina é causa por si de tudo que aconte-ce neste mundo, pelo menos dos bens, parece que tudo acontece pornecessidade.

Primeiro, por parte de sua ciência, pois sua ciência não pode errar;assim, aquilo que ele conhecer parece que é necessário que ocorra. Se-gundo, por parte da vontade, pois a vontade de Deus não pode serineficaz; parece, portanto, que tudo que quer ocorre por necessidade.

18) Ora, estas objeções procedem do fato de que o conhecimentodo intelecto divino e a operação da vontade divina são pensados aomodo do que se encontra em nós, quando no entanto, se portammuito diferentemente.

19) Com efeito, primeiro, da parte do conhecimento ou da ciên-cia, deve-se considerar que, para conhecer o que ocorre de acordo coma ordem do tempo, a faculdade cognoscitiva, que de algum modo estácontida sob a ordem do tempo, se porta de um modo, e de outro aque está totalmente fora da ordem do tempo. Exemplo adequado doque pode ser tomado da ordem do lugar. Pois, de acordo com o Filó-sofo no livro IV da Física (Cap. XI; com. ST,. Lição XVII), de acordocom o anterior e o posterior na extensão, há anterior e posterior nomovimento e por conseguinte no tempo. Se houver, portanto, mui-tos seres humanos transitando por algum caminho, cada um dos queestá compreendido sob a ordem dos transeuntes tem conhecimentodos precedentes e subseqüentes na medida em que são precedentes esubseqüentes, o que cabe à ordem do lugar. Deste modo, cada umdeles vê os que estão junto de si e alguns dos que os precedem. Mas osque estão depois de si, não pode ver. Ora, se houvesse alguém fora detoda a ordem dos transeuntes, por exemplo, postado numa torre alta

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de onde pudesse ver todo o caminho, veria, com efeito, simultanea-mente todos os presentes no caminho, não sob a determinação deprecedente e de subsequente (quer dizer, em comparação com seu olhar),mas veria todos simultaneamente e como um deles precede o outro.

Portanto, como nosso conhecimento cai sob a ordem do tempo,ou por si ou por acidente (donde, também a alma ao compor e dividirter necessidade de acrescentar o tempo, como se diz no livro III Sobre

a alma (Cap. VI; Com ST lição XI), tem-se como consequente que ascoisas caem sob seu conhecimento, sob a determinação do presente,do passado e do futuro. Por isso, conhece as presentes como existentesem ato e de algum modo perceptíveis ao sentido; as passadas comorecordadas; as futuras, porém, não conhece em si mesmas porque ain-da não são, mas pode conhecê-las nas suas causas. Por certeza, se estive-rem totalmente determinadas em suas causas, de modo que resultemdelas por necessidade; por conjectura, se não estiverem de tal mododeterminadas que não possam ser impedidas, assim como as que sedão o mais frequentemente; de modo nenhum, se estiverem inteira-mente em potência nas suas causas, não mais determinadas para umdo que para outro, assim como as que são para ambos os lados. Defato, algo não é cognoscível na medida em que é em potência, masapenas na medida em que é em ato, como é patente pelo que diz oFilósofo no livro IX (VIII, cap. IX) da Metafísica (Com. ST, lição X).

20) Ora, Deus está inteiramente fora da ordem do tempo, comoestabelecido no cimo da eternidade, que é toda simultaneamente, aoqual todo o curso do tempo se subordina de acordo com um olharúnico e simples dele. Por isso, com um único olhar vê tudo que serealiza de acordo com o decurso do tempo, e cada um conforme éexistente em si mesmo, não como futuro a si mesmo, no que se refereao olhar dele, na medida em que está somente na ordem de suas causas(embora veja também a própria ordem das causas), mas vê de maneiratotalmente eterna cada um daqueles que estão em qualquer tempo,

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assim como o olho humano vê em si mesmo Sócrates sentado e nãoem sua causa.

21) Ora, pelo fato de que um ser humano vê Sócrates sentado,não se suprime a contingência disto, que diz respeito à ordem da causaao efeito. No entanto, o olho humano vê de modo certíssimo e infa-lível Sócrates sentado enquanto está sentado, pois cada qual, na medi-da em que é em si mesmo, já está determinado. Resta, assim, portan-to, que Deus conhece de modo certíssimo e infalível tudo que vem aser no tempo; no entanto, o que acontece no tempo não é nem vem aser por necessidade, mas contingentemente.

22) Igualmente uma diferença deve ser atentada da parte divina.Pois a vontade divina deve ser entendida como existente fora da or-dem dos entes, como uma certa causa prodigalizando todo o ente etodas as suas diferenças. Ora, o possível e o necessário são diferençasdo ente. Por isso, a necessidade e a contingência nas coisas e a distinçãode ambas, de acordo com a determinação das causas próximas, se ori-ginam da própria vontade divina. Com efeito, para os efeitos que quisque sejam necessários, dispôs causas necessárias; no entanto, para osefeitos que quis que sejam contingentes, ordenou causas agentes con-tingentes, isto é, podendo falhar. De acordo com a condição destascausas, os efeitos são ditos ou necessários ou contingentes, emboratodos dependam da vontade divina, como da primeira causa, que trans-cende a ordem da necessidade e da contingência.

Isto, porém, não pode ser dito da vontade humana, nem de ne-nhuma outra causa, pois toda outra causa já cai sob a ordem da neces-sidade ou da contingência. Por isso, é preciso que ou a própria causapossa falhar, ou seu efeito não seja contingente, mas necessário. Ora, avontade divina é infalível; no entanto, nem todos os seus efeitos sãonecessários, mas alguns contingentes.

23) Ora, alguns se esforçam igualmente por destruir a outra raizda contingência que o Filósofo sustenta aqui pelo fato de que somos

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deliberativos, pretendendo mostrar que a vontade, ao escolher, é mo-vida, por necessidade, pelo que é apetecível. Com efeito, como o bemé o objeto da vontade, não pode (como parece) desviar-se do fato deque apeteça aquilo que lhe parece bom, assim como a razão tambémnão pode desviar-se do fato de que dê assentimento ao que lhe pareceverdadeiro. Parece, assim, que a escolha que é consequente à delibera-ção sobrevém sempre por necessidade e, assim, tudo de que somosprincípio pela deliberação e pela escolha sobrevém por necessidade.

24) Deve-se dizer que é preciso prestar atenção a uma igual dife-rença acerca do bem, como acerca do verdadeiro. Ora, há um certoverdadeiro, que é conhecido por si mesmo, assim como os primeirosprincípios indemonstráveis, aos quais o intelecto dá assentimento pornecessidade; mas há certos verdadeiros que não são conhecidos por si,mas por outros. A condição destes, porém, é dupla. Com efeito, al-guns resultam como conseqüentes dos princípios, por necessidade; detal modo que não podem ser falsos, apresentando-se os princípios comoverdadeiros, como são todas as conclusões das demonstrações. O inte-lecto dá assentimento a estes verdadeiros, por necessidade, depois deperceber a concatenação deles com os princípios, não antes, porém.

Há, no entanto, alguns que não resultam como conseqüentes dosprincípios, por necessidade, de tal modo que poderiam ser falsos, apre-sentando-se os princípios como verdadeiros, como é o que é matériade opinião, ao que o intelecto não dá assentimento por necessidade,embora, por algum motivo incline-se mais para uma parte do quepara a outra.

Assim, também há um certo bem que é apetecível por causa de si,como a felicidade, que tem a determinação de fim último. A vontadeadere a tal bem por necessidade. Com efeito, todos apetecem ser feli-zes, por uma certa necessidade natural. Há, porém, certos bens que sãoapetecíveis por causa do fim, que se comparam ao fim como as con-

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clusões ao princípio, como é patente pelo que diz o Filósofo no livroII da Física (cap. IX; Com. ST, lição XV).

Se houvesse portanto alguns bens, os quais não se apresentando,alguém não poderia ser feliz, estes seriam ainda apetecíveis por necessi-dade e ao máximo por aquele que percebesse tal concatenação. Talvezsejam tais o ser, viver e inteligir e o que acaso haja de similar. Mas osbens particulares nos quais os atos humanos se detêm não são tais,nem são apreendidos sob aquela determinação de sem o que não podehaver felicidade, como por exemplo, comer este alimento ou aqueleou abster-se dele. Têm, no entanto, com que movam o apetite, deacordo com algum bem considerado neles. Por isso, a vontade não élevada, por necessidade, a escolhê-los. Por esta razão, o Filósofo indi-cou expressamente a raiz da contingência no que é realizado por nós nadeliberação que diz respeito ao que é em vista do fim e, no entanto,não é determinado. Com efeito, naquilo em que os meios são deter-minados, não é preciso deliberação, como se diz no livro III da Ética

(Cap. III; Com. ST. Lição VII).

Isto, na verdade, foi dito para salvar as raízes da contingência queAristóteles sustenta aqui, embora pareça ultrapassar a maneira de pro-ceder dos assuntos de lógica.

Lição XV

1) Depois que o Filósofo mostrou que é impossível o que se se-guia das supracitadas razões, aqui, removido o impossível, conclui averdade.

A esse respeito, faz duas considerações. Com efeito, uma vez queargumentando por impossível, procedera das enunciações para as coi-sas e já removera as incompatibilidades que se seguiam a respeito dascoisas, agora, em ordem inversa, primeiro mostra como se apresenta a

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verdade a respeito das coisas; segundo, como se apresenta a verdade arespeito das enunciações, ali “pelo que, como as orações são verdadei-ras etc.” (n. 4).

A respeito do primeiro, faz duas considerações. Primeiro, mostracomo se apresentam a verdade e a necessidade a respeito das coisasconsideradas de maneira absoluta; segundo, como se apresentam a res-peito delas por comparação com seus opostos, ali “também na contra-dição há a mesma determinação etc.” (n. 3).

2) Diz, portanto, primeiro, como que concluindo do que prece-de, que se o que foi dito anteriormente é incompatível, de tal modoque tudo ocorreria por necessidade, é preciso dizer que a respeito dascoisas apresenta-se o seguinte, a saber, que tudo que é, é necessário queseja, quando é, e tudo que não é, é necessário que não seja, quando nãoé. Essa necessidade funda-se neste princípio: é impossível simultanea-mente ser e não ser. Com efeito, se algo é, é impossível que isto simul-taneamente não seja; portanto, é necessário que isto seja então.

Isso porque, impossível não ser significa o mesmo que para ele sernecessário, como se dirá no segundo livro. Igualmente, se algo não é, éimpossível que isto simultaneamente seja; Portanto, é necessário quenão seja, pois também significam o mesmo. Deste modo, é manifes-tamente verdadeiro que tudo que é é necessário que seja, quando é; etudo que não é é necessário que não seja pelo tempo quando não é.Essa necessidade não é absoluta, mas por suposição. Donde se podesimples e absolutamente dizer que tudo que é é necessário que seja etudo que não é é necessário que não seja, pois não significam o mesmoque todo ente, quando é, é por necessidade e que todo ente é simples-mente por necessidade. Pois, o primeiro significa uma necessidade porsuposição, o segundo uma necessidade absoluta.

O que foi dito do ser deve ser entendido igualmente do não ser,pois é distinto não ser simplesmente por necessidade e não ser pornecessidade quando não é. Por isso, parece que Aristóteles exclui o que

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foi dito acima (lição XIII, 4): que se, naquilo que é, um dos dois éverdadeiro de maneira determinada, então, antes que viesse a ser, umdos dois viria a ser de maneira determinada.

3) Depois, quando diz “também na contradição etc.”, mostra comose apresentam a verdade e a necessidade a respeito das coisas por com-paração com seus opostos e diz que há a mesma determinação na con-tradição que na suposição.

Com efeito, assim como aquilo que não é absolutamente necessá-rio torna-se necessário por suposição do mesmo, pois é necessário queseja quando é, assim também o que não é em si absolutamente neces-sário torna-se necessário pela disjunção do oposto; pois, acerca de cadaqual é necessário que seja ou não seja e que venha a ser ou não venha e istosob disjunção. Esta necessidade funda-se sobre este princípio: que é im-possível as contraditórias serem simultaneamente verdadeiras ou falsas (li-ção XI, 7). Donde, ser impossível nem ser nem não ser; portanto, é neces-sário ou ser ou não ser. No entanto, se um dos dois for tomado separada-mente, não é necessário que ele seja de maneira absoluta.

Manifesta isso, por um exemplo. Pois é necessário que uma batalhanaval venha a acontecer amanhã ou não venha a acontecer; mas não énecessário que uma batalha naval venha a acontecer amanhã; igualmente,também não é necessário que não venha a acontecer, pois isto cabe à neces-sidade absoluta; mas é necessário que ou venha a ser amanhã ou não venhaa ser, pois isto cabe à necessidade que está sob a disjunção.

4) Depois, quando diz “pelo que, como etc.”, a partir do que seapresenta a respeito das coisas, mostra como se apresenta a respeito dasorações.

Primeiro, mostra como se apresenta de maneira uniforme na ver-dade das orações, assim como a respeito do ser e não ser das coisas;segundo, finalmente conclui a verdade de toda a indagação, ali “peloque, é manifesto etc.” (n. seguinte).

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Diz, portanto, primeiro que, visto as orações enunciativas se portarempara com a verdade de modo como as coisas para com o ser ou não ser(pois, pelo ato de que a coisa é ou não é, a oração é verdadeira ou falsa), porconseguinte em todas as coisas que se portam de tal modo que se referema ambas as partes e quaisquer que se portam de tal modo que não importaquais contraditórios deles podem acontecer, seja igualmente, seja um deleso mais frequentemente, segue-se por necessidade que também a contradi-ção das proposições se porte de igual modo.

Expõe consequentemente quais são aquelas coisas, cujas contradi-tórias podem acontecer. Diz que são tais as que não são sempre, comoas necessárias, nem não são sempre como as impossíveis, mas às vezessão e às vezes não são. Posteriormente manifesta como se apresenta demodo igual nas enunciações contraditórias. Diz que, destas enunciações,que são acerca dos contingentes, é necessário que sob a disjunção umadas partes da contradição seja verdadeira ou falsa; não porém,determinadamente esta ou aquela, mas refere-se a ambas as partes. Seacontecer que uma das partes da contradição seja mais verdadeira, comoacontece nos contingentes que são o mais frequentemente, nem porisso é necessário que, por necessidade, a outra delas sejadeterminadamente verdadeira ou falsa.

5) Depois, quando diz “pelo que, é manifesto etc.”, conclui o in-tento principal e diz que é manifesto a partir do que foi dito anterior-mente que não é necessário em todo gênero de afirmações e negaçõesopostas, uma ser determinadamente verdadeira e a outra ser falsa, poisa verdade não se apresenta do mesmo modo nos que já são no presentee nos que não são, mas podem ser ou não ser. Mas se apresenta emambos da maneira como se disse, pois, nos que são, é necessário quedeterminadamente um deles seja verdadeiro e o outro falso, o que nãoacontece nos futuros que podem ser ou não ser.

Termina assim o primeiro livro.

Tradução de Carlos Arthur do Nascimento

São Paulo, 23 de março de 1994.

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OS PRINCÍPIOSDA NATUREZA

Tomás de Aquino *

Capítulo 1

Nota que algo pode ser embora não seja, mas algo é. Aquilo quepode ser se diz ser em potência; aquilo que já é se diz estar em ato. Maso ser é duplamente: a saber, ser da coisa essencial ou substancial, comoser homem, e isso significa ser simpliciter. E o outro ser é acidental,como o por exemplo o homem ser branco, e isso significa ser algo.Para os dois seres há algo em potência. Algo pois está em potência paraser homem, como esperma e óvulos; algo está em potência para serbranco, como o homem. Tanto aquilo que está em potência para sersubstancial, quanto aquilo que está em potência para ser acidental podeser chamado de matéria, como o esperma para o homem e o homempara a brancura. Mas nisso se diferencia o seguinte: Pois a matéria queestá em potência para o ser substancial é chamada de matéria a partirde que (ex qua); mas a que está em potência para o ser acidental, se dizmatéria em que (in qua). Assim, falando com propriedade, o que estáem potência para o ser acidental se diz sujeito (subiectum), mas aquiloque está em potência para o ser substancial se diz propriamente maté-ria. Por isso se diz haver acidentes no sujeito, mas não que a formasubstancial esteja no sujeito.

* De principiis naturae. ad fratrem Sylvestrum.

Textum Leoninum Romae 1976 editum ac automato translatum a Roberto Busa SJ intaenias magneticas denuo recognovit Enrique Alarcón atque instruxit. Trad. de EnioPaulo Giachini. http://www.corpusthomisticum.org/iopera.html

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E, nesse sentido, a matéria difere do sujeito: pois sujeito é o quenão tem ser a partir do que advém, mas tem o ser completo por si,assim como o homem não possui o ser da brancura. Mas a matériatem o ser daquilo que lhe advém, pois de si tem ser incompleto. As-sim, falando simplesmente, a forma dá ser à matéria, mas o sujeito dáser aos acidentes, embora às vezes uma seja tomado pelo outro, comoa matéria pelo sujeito e vice-versa. Mas assim como tudo aquilo queestá em potência pode ser chamado de matéria, assim tudo aquilo apartir de que algo tem seu ser, seja que ser for, substancial ou acidental,pode ser chamado de forma; como o homem, sendo branco em po-tência, torna-se branco em ato pela brancura, e o esperma, sendo ho-mem em potência, se faz homem em ato pela alma. E uma vez que aforma torna o ser em ato, se diz que a forma é o ato. Mas aquilo quetorna o ser substancial em ato é a forma substancial, e aquilo que tornao ser acidental em ato se diz forma acidental.

E uma vez que a geração é um movimento para a forma, a umadupla forma corresponde uma dupla geração: uma geração simpliciter

corresponde a uma forma substancial; mas a geração secundum quid

corresponde à forma acidental. Quando se introduz a forma substan-cial se diz que algo veio a ser simpliciter. Mas quando se introduz aforma acidental, não se diz que algo veio a ser simpliciter porém setornou isso; assim, quando o homem se torna branco, não dizemosque o homem veio a ser ou foi gerado simpliciter mas veio a ser ou foigerado branco. E aqui uma corrupção dupla corresponde a uma gera-ção dupla, a saber, simpliciter e secundum quid. Mas a geração e acorrupção simpliciter não estão senão no gênero da substância; mas ageração e a corrupção secundum quid estão em todos os gêneros. Eporque a geração é certa mudança do não ser ou do não ente para o sere o ente, e o contrário, porém, a corrupção deve ser do ser para o nãoser, não se dá a geração a partir de qualquer não ser, mas do não enteque é ente em potência; como a estátua a partir do bronze, que é está-

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tua em potência e não em ato. Para que haja geração são necessárias trêscoisas: a saber, ente em potência, que é matéria; não ser em ato, que éprivação; e aquilo através de que se torna em ato, a saber, forma. Assimcomo quando do bronze devém a estátua, o bronze que está em po-tência para a forma da estátua é matéria. Mas aquilo que não está figu-rado ou não está disposto se diz privação; e a figura, a partir da qual sechama de estátua, é a forma, mas não forma substancial, uma vez que obronze, antes de receber a forma ou a figura já possui ser em ato, e seu sernão depende daquela figura; mas é forma acidental. Todas as formas artifi-ciais são portanto acidentais. A arte portanto só pode ser operada em cimado que já está constituído num ser perfeito por natureza.

Capítulo 2

Há portanto três princípios da natureza, a saber, matéria, forma eprivação; um desses, a saber, a forma, é aquilo de que se dá a geração;os outros dois são parte daquilo a partir do que se dá a geração. Entãomatéria e privação são idênticas no sujeito mas diferem na razão (ratio).Aquilo portanto que é o bronze é igual a não-figurado, antes do ad-vento da forma; mas é dito bronze por uma razão (ratio) e não figura-do por outra; então a privação é chamada de princípio não por si, maspor acidente, a saber, porque coincide com a matéria; por exemplo, épor acidente que dizemos que o médico edifica; pois isso não se dá porser médico, mas por ser construtor, que no médico coincide num úni-co sujeito. Mas o acidente é duplo: a saber, necessário, que não é sepa-rado da coisa, como o risível no homem; e não necessário, que é sepa-rado, como o branco do homem. Assim, embora a privação seja prin-cípio por acidente, não se deduz que não seja necessária para a geração,porque a matéria não é desprovida de privação; enquanto está sob umaforma tem a privação da outra, e vice-versa, assim como no fogo há aprivação do ar e no ar a privação do fogo. E, sabendo que a geração se

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dá a partir do não ser, não dizemos que a negação seja princípio, mas aprivação, uma vez que a negação não determina para si o sujeito. Pode-se dizer não vê também do não ente, como uma quimera não vê; eigualmente de entes que não nasceram tendo a visão, como as pedras.Mas se atribui a privação apenas a determinado sujeito, a saber, àqueleem que é natural vir a surgir o hábito; assim como só se fala de ceguei-ra daqueles a quem é natural verem. E uma vez que a geração não se dáa partir do não ente simpliciter, mas do não, enquanto está em algumsujeito, e não em qualquer um mas num sujeito determinado (portan-to, não é de qualquer não-fogo que surge o fogo, mas de tal não-fogo,a respeito do qual é natural surgir a forma do fogo), assim se diz por-tanto que a privação é princípio. Mas difere dos outros no fato de queos outros são princípios tanto no ser quanto no devir. Para que surjauma estátua, portanto, é necessário que haja o bronze e que, por fim,surja a figura da estátua; e novamente, quando a estátua já está ai pre-sente, é necessário haver as duas. Mas privação é princípio no devir enão no ser: porque para que venha a existir estátua é necessário que nãohaja estátua. Se houvesse, não viria a ser, pois o que vem a ser não é, anão ser em coisas sucessivas. Mas naquilo que já é estátua, ali não háprivação de estátua, porque afirmação e negação não são simultâneas, edo mesmo modo tampouco privação e hábito. Assim, a privação éprincípio por acidente, como se expôs acima, mas os outros dois sãoprincípios por si.

Do que se disse, portanto, fica evidente que a matéria difere daforma e da privação segundo a razão (ratio). A matéria é assim aquiloem que se compreende a forma e a privação: como no bronze se com-preende a figura e o não-figurado. Pois às vezes a matéria é denomina-da de privação, às vezes sem privação: como o bronze, enquanto maté-ria da estátua, não importa a privação, pois do fato de eu dizer bronzenão se compreende não-disposto ou não-figurado; mas farinha, en-quanto matéria relacionada ao pão, implica em si a privação da forma

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do pão, pois do fato de eu dizer farinha significa não-disposição ounão-ordenação oposta à forma do pão. E uma vez que, na geração, amatéria ou o sujeito permanece, mas não a privação, e nem a compo-sição de matéria e privação, assim a matéria que não implica privação épermanente, mas a que implica é transitória.

Há que se saber que certa matéria tem a composição da forma;como o bronze, sendo matéria em relação à estátua, o próprio bronze,porém, é composto de matéria e forma; e por isso não se diz que obronze seja primeira matéria porque tenha matéria. Mas se diz primei-ra matéria àquela matéria compreendida sem qualquer forma e priva-ção, mas sujeita à forma e à privação, porque antes dessa não há outramatéria. E essa é chamada também de Hyle. E uma vez que toda defi-nição e todo conhecimento se dá pela forma, assim a primeira matériapor si não pode ser conhecida ou definida a não ser por comparação,como se diz que isso é primeira matéria, que assim está referida paracom todas as formas e privações, como o bronze para a estátua e onão-figurado. E essa é dita prima simpliciter. Pode-se dizer tambémque algo é primeira matéria em relação a algum gênero, assim como aágua é a matéria dos líquidos. Todavia, não é prima simpliciter, porqueé composta de matéria e forma, sendo que tem uma matéria anterior.

Há que se saber que a primeira matéria e também a forma não égerada nem corrompida, isso porque toda geração é para algo de algo.Isso porém de que é a geração é matéria; isso para que é, é forma. Se,portanto, matéria e forma fossem geradas, a matéria proviria da maté-ria e a forma da forma, ao infinito. Sendo, que, falando propriamente,a geração não é senão do composto.

Deve-se saber também que a primeira matéria se diz numerica-mente una em tudo. Mas o um em número se diz de dois modos: asaber. Que possui uma forma determinada em número, como Sócrates:e assim a primeira matéria não pode ser dita una numericamente, umavez que em si não teria nenhuma forma. E também se diz que algo é

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uno numericamente, por ser sem disposições pelas quais se dá a dife-rença em número.

Saiba-se também que, embora a matéria não tenha em sua nature-za nenhuma forma ou privação, como na ratio do bronze não há ne-nhum figurado nem não-figurado, jamais está desprovida de forma ede privação. Uma vez está sob uma forma, outra está sob outra. Masjamais poderá ser por si, pois, uma vez que em sua ratio não possuiqualquer forma, não tem ser em ato, visto que ser em ato só pode sera partir da forma, mas está só em potência. E assim o que quer queesteja em ato não pode ser chamado de primeira matéria.

Capítulo 3

Do que se disse, fica claro, portanto, serem três os princípios danatureza, a saber, matéria, forma e privação. Mas esses não são sufici-entes para a geração. O que está em potência não pode conduzir a simesmo para ato: assim como o bronze que está em potência para aestátua não torna a si mesmo em estátua, mas necessita de um opera-dor, que extraia a forma da estátua da potência para o ato. Também aforma não extrai a si da potência ao ato (e falo da forma do gerado, aqual dizemos ser o término da geração); a forma não é se não apenasno ser que deveio: o que é operado está em devir, isto é, enquanto acoisa devém. É necessário portanto que ao lado de matéria e formahaja algum princípio que aja, e esse se diz ser eficiente ou movente, ouagente, onde está o princípio de movimento. E, como diz Aristótelesno segundo livro da Metafísica, uma vez que tudo que age não agesenão intencionando a algo, é necessário que haja algo quarto, a saber,aquilo que é intencionado pelo operante: e isso se diz fim.

E sabendo que todo agente, tanto natural quanto voluntário,intenciona o fim, não se segue também que todo agente conheça o

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fim ou que delibere sobre o fim. É necessário conhecer o fim naquiloem que as ações não são determinadas, mas têm de ser haver comcoisas opostas, como têm de se haver agentes da vontade; e assim énecessário que conheçam o fim pelo qual determinam suas ações. Masnos agentes naturais há ações determinadas: sendo que não é necessárioescolher as coisas próprias ao fim. Temos um exemplo de Avicena,sobre o tocador de cítara que não necessita deliberar de quaisquer no-tas das cordas, uma vez que as notas já estão determinadas nelas; docontrário, haveria retardo entre as notas, o que geraria desarmonia.Isso pode ser mais bem visto no agente voluntário, que delibera, doque no agente natural. E isso fica claro na argumentação a partir domaior, que é possível ao agente natural intencionar ao fim sem delibe-ração: e intencionar tal coisa nada mais era que ter uma inclinaçãonatural para isso.

Do que se disse, portanto, fica evidente que são quatro as causas: asaber, material, eficiente, formal e final. Isso, embora se diga que prin-cípio e causa sejam conversíveis, como se diz no quinto livro daMetafísica, apesar de, no livro da Física, Aristóteles colocar quatro cau-sas e três princípios. Ele toma as causas, porém, tanto extrínsecas quantointrínsecas. Matéria e forma são ditas causas intrínsecas à coisa, umavez que são partes constituintes da coisa; as causas eficiente e final sãoditas extrínsecas, porque estão fora da coisa. Mas toma como princípi-os apenas causas intrínsecas. A privação, porém, não é mencionadaentre as causas, pois é princípio por acidente, como se disse. E ao dizer-mos quatro causas, compreendemos causas per se, às quais se reduzemtambém as causas por acidente, porque tudo que é por acidente é re-duzido àquilo que é por si. Mas, embora, no livro primeiro daMetafísica, Aristóteles chame de princípios às causas intrínsecas, comose diz no livro 11º da Metafísica, chama-se de princípio propriamenteàs causas extrínsecas; elemento, às causa que são partes da coisa, isto é,as causas intrínsecas, e chama-se de causa a ambos. Mesmo assim, às

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vezes, toma-se um pelo outro. Assim, toda causa pode ser chamada deprincípio, e todo princípio causa.

Mas, embora a causa pareça atribuir algo ao princípio, enquantoempregado em comum, porque aquilo que é primeiro, não importan-do se o que segue é posterior ou não, pode ser chamado de princípio,como o fabricante é dito princípio da faca, uma vez que o ser da faca éa partir de sua operação. Mas quando algo é movido da negrura para abrancura, se diz que o negro é o princípio de seu movimento; e assim,em geral, se diz princípio a tudo aquilo a partir do qual começa o serdo movimento: embora a negrura não seja aquilo a partir do que sesegue o ser da brancura. Mas só se chama de causa aquela coisa primei-ra, a partir donde segue-se o ser do posterior: donde se diz que a causaé aquilo a partir de que se segue o ser de outro. E assim aquele primei-ro donde começa o ser do movimento não pode ser chamado de causapor si, mesmo sendo chamado de princípio: e é por isso que se colocaa privação entre os princípios e não entre as causas, uma vez que aprivação é aquilo donde começa a geração. Mas pode também ser cha-mado causa por acidente, enquanto coincide com a matéria, como seexpôs acima.

Mas não se chama de elemento, propriamente, a não ser às causasa partir das quais se dá a composição da coisa, que são propriamentemateriais. E novamente não de qualquer causa material, mas daquela apartir da qual se dá a primeira composição: assim como os membrosnão são elementos do homem, porque também os membros são com-postos de outros; mas dizemos que a terra e a água são elementos,porque esses não são compostos de outros corpos, mas a partir dessesse da a primeira composição dos corpos naturais.

Por isso, no livro quinto da Metafísica, Aristóteles diz que elemen-to é aquilo a partir do que se compõe a coisa por primeiro, está nela enão é dividido segundo a forma. A explicação da primeira parte, aqui-

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lo a partir do que se compõe primeiramente a coisa, fica evidente apartir do que dissemos. A segunda parte, a saber, que está nela, vemcomo diferença daquela matéria que é corrompida do todo por gera-ção: como o pão é a matéria do sangue, mas não se gera o sangue a nãoser que se corrompa o pão; sendo que o pão não permanece no sangue;sendo que não se pode dizer que o pão seja um elemento do sangue.Mas é necessário que os elementos, de algum modo, permaneçam,não sendo corrompidos, como se diz no livro De Gener. A terceiraparte, a saber, e não é dividido segundo a forma, vem como diferençadaquelas coisas que têm partes distintas na forma, a saber, na espécie,como a mão, cujas partes são carne e ossos, que diferem segundo aespécie. Mas o elemento não é dividido em partes diversas segundo aespécie, como a água, da qual qualquer partícula é água. Ao ser doelemento, portanto, não é necessário não ser dividido segundo a quan-tidade, mas basta não ser dividido segundo a espécie: também se nãofor dividido, se diz elemento, assim como as letras são chamadas ele-mentos das palavras. É evidente, portanto, que o princípio, de algummodo, se aplica a mais [maior extensão] que a causa; e a causa, a maisque o elemento. E é isso que diz o Comentador no livro quinto daMetafísica.

Capítulo 4

Uma vez tendo visto que são quatro os gêneros de causas, saiba-seque não é impossível que a mesma coisa tenha muitas causas: como aestátua, cuja causa é o bronze e o artista, mas o artista como eficiente,e o bronze como matéria. Não é impossível, porém, que a mesmacoisa seja causa de contrários: Como o capitão, que pode ser causa dasalvação ou da submersão do navio, aquele pela ausência, esse, pois,por presença. Saiba-se também que é possível que a mesma coisa possaser causa e causada, em relação à mesma coisa, mas de movo diverso:

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como o passeio é causa da saúde enquanto eficiente, mas a saúde écausa do passeio enquanto fim: algumas vezes o passeio se dá por causada saúde. E igualmente o corpo é matéria da alma, mas a alma é formado corpo. Chama de eficiente à causa que é tal em relação ao fim, umavez que o fim é em ato apenas pela operação do agente: mas se chamaao fim de causa do eficiente, uma vez que não se opera a não ser porintenção do fim. Sendo que eficiente é causa daquilo que é o fim: paraque haja saúde; mas não faz o fim ser fim, e assim não é causa dacausalidade do fim, ou seja, não faz o fim ser final: como o médico fazcom que a saúde seja em ato, mas não faz com que a saúde seja fim.Mas o fim não é a causa daquilo que é eficiente, mas é causa que fazcom que o eficiente seja eficiente: A saúde, portanto, não faz com queo médico seja médico (e falo da saúde que se torna operante através domédico), mas faz com que o médico seja eficiente. Assim, o fim écausa da causalidade eficiente, pois faz o eficiente ser eficiente: do mes-mo modo que faz a matéria ser matéria, e a forma ser forma; uma vezque a matéria não recebe forma a não ser pelo fim, e a forma nãoperfaz a matéria a não ser pelo fim. Por isso, se diz que o fim é a causadas causas, porque é causa da causalidade em todas as causas.

A matéria, portanto, é chamada causa da forma, uma vez que aforma só é na matéria; e de modo semelhante a forma é causa da ma-téria, uma vez que a matéria só tem ser em ato através da forma. Amatéria e a forma, assim, são ditas tal em mútua relação, como se dizno Segundo livro da Física. São assim chamadas portanto em vista docomposto, como as partes para com o todo, e o simples para com ocomposto. Mas uma vez que a causa, enquanto é causa, é naturalmen-te anterior ao causado, sabendo que anterior se diz de dois modosdistintos, como afirma Aristóteles no 16º livro do De Animal; emfunção da diversidade desses, algo pode ser chamado anterior e poste-rior em relação à mesma coisa, e causa e causado. Algo portanto échamado anterior a outro pela geração e pelo tempo, e novamente

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pela substância e complemento. E uma vez que a operação da naturezaprocede do imperfeito para o perfeito, e do incompleto para o com-pleto, o imperfeito é anterior ao perfeito, segundo a geração e o tem-po, mas o perfeito é anterior no complemento: como podemos dizerque o varão antecede o infante na substância e no complemento, maso infante antecede o varão na geração e no tempo. Mas, embora nascoisas geráveis o imperfeito seja anterior ao perfeito, e a potência ante-rior ao ato, considerando nalguma coisa na qual o imperfeito seja an-terior ao perfeito e que a potência seja anterior ao ato, falando simples-mente porém, é necessário que o ato e o perfeito sejam anteriores: poisaquilo que conduz a potência ao ato é ato, e o que aperfeiçoa o imper-feito é perfeito.

Assim, a matéria é anterior à forma pela geração e pelo tempo:pois aquilo em que algo advém é anterior àquilo que advém nele.Assim, a forma é anterior à matéria, pela perfeição, uma vez que amatéria não tem o ser completo a não ser pela forma. De modo seme-lhante, a causa eficiente é anterior à final, pela geração e pelo tempo,uma vez que da causa eficiente provém o movimento para o fim; maso fim é anterior à causa eficiente enquanto é eficiente, na substância eno complemento, uma vez que a ação da causa eficiente não se com-pleta a não ser pelo fim. Assim, essas duas causas, a saber, matéria eeficiente, são anteriores pela via da geração; mas a forma e o fim sãoanteriores pela via da perfeição.

Deve-se notar também que há dois tipos de necessidade: a saber,necessidade absoluta e necessidade condicional. A necessidade absolutaé a que procede das causas anteriores pela via da geração, que são maté-ria e eficiente: como a necessidade da morte, que provém da matéria eda disposição dos componentes contrários; e essa se diz absoluta por-que não tem impedimentos. Chama-se assim também a necessidadeda matéria. Mas a necessidade condicional procede das causas posteri-ores pela geração, a saber, da forma e do fim: assim como se diz ser

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necessário haver concepção se se deve gerar o homem; e essa é condici-onal porque não é necessário simpliciter que essa mulher conceba, masapenas sob a condição que o homem deva ser gerado. E essa é chamadade necessidade do fim.

E deve-se saber que três causas podem coincidir numa única coisa,a saber, forma, fim e eficiente: como fica claro na geração do fogo.Fogo gera fogo, portanto, o fogo é causa eficiente enquanto gera; enovamente o fogo é forma enquanto transforma em ato aquilo queantes era potência; e novamente é fim, enquanto é intencionado peloagente e enquanto terminam nele as operações do mesmo agente.

Mas o fim é de dois modos, a saber, fim da geração e fim da coisagerada: como podemos ver na geração da faca. A forma da faca é o fimda geração; mas o cortar, que é a operação da faca, é o fim do própriogerado, a saber, da faca. Mas, às vezes, o fim da geração coincide comas duas causas mencionadas, a saber, quando a geração se dá a partir dosemelhante na espécie, como quando o homem gera o homem, e aoliveira a oliva: coisa que não pode ser compreendida do fim da coisagerada.

Saiba-se porém que o fim coincide com a forma no mesmo nú-mero, isso porque aquilo numericamente idêntico que é a forma dogerado é o fim da geração. Mas uma vez que o eficiente não coincidenum número idêntico, mas na espécie idêntica, é impossível que ofato e a coisa feita sejam numericamente idênticos, mas podem seridênticos em espécie, como quando o homem gera o homem, o ho-mem gerador e o gerado são diversos em número mas idênticos naespécie. Mas a matéria não coincide com as outras, pois, pelo fato deser ente em potência, a matéria possui a razão (ratio) do imperfeito,mas as outras causas, sendo em ato, tem a razão (ratio) do perfeito;mas o perfeito e o imperfeito não coincidem no mesmo.

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Capítulo 5

Ora, tendo visto haver quatro causas, a saber, eficiente, material,formal e final, deve-se saber que qualquer uma dessas causas se classifi-ca de diversos modos. Se diz que algo é causa por anterioridade e algooutro por posterioridade, como dissemos que a arte e o médico sãocausa da saúde: mas a arte é causa por anterioridade e o médico porposterioridade; e igualmente se dá na causa formal e nas demais causas.Note-se que sempre devemos reconduzir a questão à causa primeira,como quando se pergunta: Por que este está sadio? Há que se respon-der: porque o médico o curou, e novamente, por que o médico ocurou? por causa da arte de curar que ele possui.

Saiba-se que tanto se pode dizer causa próxima quanto causa pos-terior, e tanto se pode dizer causa remota quanto causa anterior. Umavez que essas duas divisões das causas, uma por anterioridade e a outrapor posterioridade, e a divisão das causas uma remota e a outra próxi-ma, significam o mesmo. Observe-se porém que aquilo que é maisuniversal chama-se sempre de causa remota, e aquilo que é mais espe-cífico, causa próxima: como dizemos que a forma do homem próxi-ma é sua definição, a saber, animal racional mortal, mas animal é causamais remota, sendo assim a substância é ainda mais remota. Todos ossuperiores, portanto, são formas dos inferiores. E, semelhantemente, amatéria próxima da estátua é o bronze, mas a remota é o metal, e aindamais remota é o corpo.

Assim, uma das causas é per se, outra é por acidente. Chama-se decausa per se a causa de alguma coisa enquanto tal, como o construtor éa causa da casa, e a madeira a matéria do banco. A causa por acidente éaquela que incide na causa per se, como quando dizemos que ogramático constroi. Se diz que o gramático é causa de construção poracidente, não portanto enquanto gramático, mas enquanto isso acon-tece no construtor. O mesmo se dá nas outras causas.

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Assim, algumas das causas são simples, outras compostas. Chama-se de causa simples quando só se chama de causa aquilo que é causa porsi, ou também aquilo que é por acidente: como quando dizemos queo construtor é a causa da casa e igualmente quando dizemos que omédico é causa da casa. Chamamos de causa composta, porém, quan-do as duas são chamadas de causa, como quando dizemos: o médicoconstrutor é causa da casa.

Segundo o que expõe Avicena, pode-se chamar de causa simplesaquilo que é causa sem adição de outro, como o bronze para a estátua,pois sem adicionar outra matéria, do bronze se faz a estátua; e como sediz que o médico produz a saúde ou que o fogo aquece. Mas a causacomposta se dá quando é necessário a intervenção de muitas coisasnisso que seja a causa: assim como um homem não é a causa do movi-mento da nave, mas muitos; e assim como uma pedra não é a matériada casa, mas muitas.

Novamente algumas das causas estão em ato, algumas em potência. Acausa em ato é aquela que causa a coisa em ato, como o construtor quandoconstroi, ou o bronze quando dele surge a estátua. Mas a causa em potência éaquela que, embora não cause a coisa em ato, pode porém causá-la: como oconstrutor enquanto não está construindo.

E saiba-se que, falando de causas em ato, é necessário que a causa eo causado sejam simultâneos, de tal modo que, se um é, o outro tam-bém é. Portanto, se o construtor é em ato, é necessário que esteja cons-truindo. E se a construção está em ato é necessário que o construtoresteja em ato. Mas isso não é necessário em causas que estão apenas empotência.

Saiba-se porém que a causa universal compara-se ao causado uni-versal, e a causa singular é comparada ao causado singular: assim comodizemos que o construtor é causa da casa, e este construtor é causadesta casa.

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Capítulo 6

Saiba-se também que, falando de princípios intrínsecos, a saber,matéria e forma, a conveniência e a diferença dos principiados é deacordo com a conveniência e diferença dos princípios: alguns portantosão numericamente idênticos, como Sócrates e esse homem demons-trado como Sócrates; alguns são diversos em número e são idênticosem espécie, como Sócrates e Platão, que embora convenham na espé-cie humana, diferem quanto ao número. Alguns, porém, diferem quan-to à espécie mas são idênticos no gênero, como o homem e o asnoconvêm no gênero animal; mas alguns são diversos no gênero, mas sãoidênticos apenas segundo a analogia, como substância e quantidade,que não convêm em nenhum gênero mas convêm apenas segundoanalogia: convém pois apenas naquilo que são ente. Mas ente não égênero, porque não é predicado univocamente mas analogamente.

Mas para compreender isso, saiba-se que algo pode ser predicado dediversas coisas, de três maneiras: unívoca, equívoca e analogamente. Épredicado univocamente aquilo que é predicado segundo nome idêntico esegundo a mesma ratio, ou seja, definição, como o animal é predicado dohomem e do asno. Ambos são chamados de animal e ambos são substân-cia animada sensível, que é a definição de animal. É predicadoequivocamente aquilo que é predicado de algo segundo nome idêntico esegundo ratio diversa: como se chama de cão ao animal que late e ao celes-te, que convêm apenas no nome mas não na definição ou na significação:aquilo que vem significado no nome, portanto, é a definição, como se dizno livro 4 da Metafísica. Se diz ser predicado analogamente aquilo que épredicado de muitos, cujas rationes são diferentes, mas são atribuídas auma única e mesma coisa: Assim como se diz sadio ao corpo animal, àurina e à bebida, mas de modo algum significa a mesma coisa em todos. Éatribuído à urina como sinal de saúde, ao corpo como ao sujeito, e àbebida como causa; muito embora todas essas rationes sejam atribuídas aum único fim, a saber, à saúde.

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Às vezes, portanto, aquelas coisas que convêm por analogia, ouseja, por proporção ou comparação ou conveniência, são atribuídas aum único fim, como fica evidente no exemplo citado; às vezes a umúnico agente, como é chamado de médico também aquele que operaatravés da arte e daquele que opera sem arte, como a parteira, e tam-bém dos instrumentos, mas por atribuição a um agente que é a medi-cina; às vezes porém por atribuição a um sujeito, como se chama deente à substância, à qualidade, à quantidade e a outros predicamentos.Pois não é completamente pela mesma ratio que a substância é chama-da de ente, de quantidade e dos outros, mas todos chamam-se tal apartir do fato de serem atribuídos à substância, que é sujeito dos ou-tros.

E assim se diz ente primeiramente da substância e depois dos ou-tros. Por isso, ente não é gênero de substancia e de quantidade, umavez que nenhum gênero é predicado por anterioridade e posterioridadede suas espécies, por isso o ente é predicado analogamente. E foi issoque afirmamos, que a substância e a quantidade diferem pelo gênero,mas são idênticos por analogia.

Assim, portanto, daquelas coisas que são idênticas em número,em forma e em matéria, são numericamente idênticas, como Túlio eCícero. Mas daquelas coisas que são idênticas em espécie, e diversasem número, também a matéria e a forma não é numericamente amesma, mas é a mesma na espécie, como a matéria e a forma de Sócratese de Platão. E igualmente a matéria e a forma daquelas coisas que sãoidênticas pelo gênero também são princípios idênticos pelo gênero,como a alma e o corpo do asno e do cavalo diferem pela espécie, massão idênticos pelo gênero. E igualmente os princípios daquelas coisasque convêm apenas segundo a analogia, são idênticos apenas segundoa analogia ou proporção. Matéria, forma e privação, portanto, ou po-tência e ato, são princípios da substância e de outros gêneros. Muitoembora a matéria da substância e da quantidade e igualmente a forma

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e a privação das mesmas difiram segundo o gênero, convêm apenassegundo a proporção, na medida em que como a matéria da substân-cia está para a substância, na ratio da matéria, assim está a matéria daquantidade para com a quantidade. Todavia, assim como a substânciaé causa dos demais, assim os princípios da substância são princípios detodos os outros.

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