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SCINTILLA

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SCINTILLA

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SCINTILLA REVISTA DE FILOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVAL

ISSN 1806-6526 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 1-190

jul./dez. 2012

Instituto de Filosofia São Boaventura – IFSB Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval – SBFM

Curitiba PR 2012

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Copyright © 2004 by autores Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.FAE – Centro Universitário IFSB – Instituto de Filosofia São Boaventura SBFM – Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval O IFSB é mantido pela Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus (AFESBJ) Rua 24 de maio, 135 – 80230-080 Curitiba PR E-mail: [email protected] ou [email protected] http://www.saoboaventura.edu.br/ Reitor: Nelson José Hillesheim Diretor geral do Grupo Bom Jesus: Jorge Apostolos Siarcos Pró-reitor acadêmico: André Luis Gontijo Resende Pró-reitor administrativo: Regis Ferreira Negrão Diretor do Instituto de Filosofia São Boaventura: Dr. Jairo Ferrandin Editor: Dr. Enio Paulo Giachini a) Comissão editorial Dr. Emannuel Carneiro Leão, UFRJ Dr. Orlando Bernardi, IFAN Dr. Luiz Alberto de Boni, PUCRS Dr. José Antônio Camargo Rodrigues de Souza, UFG Dr. João Eduardo Pinto Basto Lupi, UFSC Dr. Carlos Arthur R. do Nascimento (PUC-SP) Dr. Francisco Bertelloni (Univ. Nacional da Argentina) Dr. Gregorio Piaia (Univ. di Padova – Italia) Dr. Marcos Roberto Nunes Costa (UNICAP) Dr. Rafael Ramón Guerrero (Unv. Complutense – España) Dra. Márcia Sá Cavalcante Schuback, Södertörns University College Estocolmo (Suécia) Dr. Ulrich Steiner, FFSB Dr. Jaime Spengler, FFSB Dr. João Mannes, FFSB b) Conselho editorial Dr. Vagner Sassi, FFSB Dr. Marco Aurélio Fernandes, IFITEG Dra. Glória Ferreira Ribeiro, UFSJR Dr. Jamil Ibrahim Iskandar, PUC-PR Dr. Joel Alves de Souza, UFPR Dr. Gilvan Luiz Fogel, UFRJ

Revisão e editoração: Equipe interna Diagramação: Sheila Roque Capa: Luzia Sanches A partir de 2009 a Scintilla compõe o banco de dados da EBSCO - http://www.ebscohost.com/titleLists/hlh-coverage.htm

Catalogação na fonte

Scintilla – revista de filosofia e mística medieval. Curitiba: Instituto de Filosofia São Boaventura, Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval, Centro Universitário Franciscano, v.1, n.1, 2004-SemestralISSN 1806-65261. Filosofia - Periódicos 2. Medievalística – Periódicos. 3. Mística – Periódicos.

CDD (20. ed.) 105 189 189.5

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SuMáRIO

Editorial ...............................................................................7Enio Paulo Giachini

artigos ...................................................................................11O universal e o singular ...........................................................13

Alain de Liberá

Étienne Gilson e a circularidade da metafísica tomista ...........43Sergio de Souza Salles

O método dialético e o sic et non de Pedro Abelardo ................65Pedro Rodolfo Fernandes da Silva

A participação política e o regimento da coisa pública nos escritos de Francesc Eiximenis .................................................87

Rogério Ribeiro Tostes Dennys Robson Girardi

Trabalhar honestamente ..........................................................113Hermógenes Harada

A organização curricular dos estudos filosóficos do Guia dos estudantes ...................................................................127

Idalgo J. Sangalli

Filosofia medieval ...................................................................145Emmanuel Carneiro Leão

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tradução ...............................................................................177Do modo de aprender e meditar ..............................................179

Hugo de São Vítor

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7Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 7-9, jul./dez. 2012

* Professor da FAE, Centro universitário.

EDItORIaL

Enio Paulo Giachini*

Caros leitores,

Montamos um número de Scintilla com algumas indicações, reflexões, voltadas ao tema da disciplina, estudo e método na me-dievalidade.

A maioria dos artigos está referida a essa temática, inclusive o texto da tradução de Hugo de S. Vitor, ao final do volume.

Esses três conceitos não devem ser compreendidos inicialmente como conceitos contemporâneos, com teor próprio da ciência atual. Tampouco se restringem ao estudo no sentido de compreender que o estudo implicaria método e disciplina para seu progresso, ou seja, para que haja progresso na aquisição e progresso dos estudos, são necessários disciplina e método. É que, via de regra, hoje, compreen-demos estudo, método, disciplina como conceitos isolados, campos semânticos, como partes da composição de um todo. De um lado ciência, do outro, práxis.

Essa confusão é tão intensa em nossas “academias”, que hoje compreendemos formação quase que incondicionalmente como formação profissional; para adquirir essa formação profissional, é necessário, estudo, método e disciplina; hoje, formamos técnicos, funcionários, agentes; se exagerarmos um pouco, caricaturizando essa realidade, podemos dizer que formamos agenciadores, robôs, peças de engrenagem. As grandes corporações industriais, técnicas

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8 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 7-9, jul./dez. 2012

Enio Paulo Giachini

invadiram de tal modo as “academias” que influem diretamente na montagem dos currículos escolares e na captação antecipada dessas “forças de trabalho”.

Por outro lado, tampouco se poderá pensar haver a possibilidade de um currículo voltado limpidamente, polidamente para o “huma-no”; e ainda, até que ponto os eixos de ciências humanas inseridos forçadamente nos currículos de áreas técnicas não são um ferro de madeira, um resquício de má consciência, ou ainda um eco distante de um desafio mais próximo e mais simples do pensar e viver huma-nos, um nihilismo incompleto, isso é coisa que requer estudo.

Nesse sentido, é importante ler nossos antepassados com a co-ragem de ultrapassar nosso saber pronto em relação a eles. O que se busca na abordagem medieval desses temas, então, é compreender um modo de ser, estranho ao viver moderno e atual, de aprimo-ramento nuclear da totalidade humana numa singularidade, numa individualidade; o aprimoramento do universal, do comum, da co-munidade, no singular, no individual. O cultivo e melhoramento da humanidade cada vez no homem singular; o aprimoramento do homem singular cada vez numa atividade própria, singular.

Buscando mostrar esse encaminhamento de modo inverso: seja em qual for a atividade em que o ser humano se exercite, seja qual for sua profissão e o exercício a que se empenhe, há um encaminha-mento de aprimoramento e crescimento que visa a atingir a totalida-de, a humanidade, o universal.

O itinerário dessa caminhada não é aleatório. É preciso ser estu-dado, retomado, aprimorado, exercitado. Estudo, método e discipli-na são janelas ou portas de entrada de um exercício de melhorização do todo.

O homem medieval compreendia a atividade humana, seja onde for e como for, como exercício de crescimento, arte. Sendo portei-ro, hortelão, cozinheiro, ferreiro, religioso, ou o que quer que seja, havia um caminho de crescimento, um crescimento na habilidade

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Editorial

que transformava, com o tempo, o trabalho, o indivíduo e influía na apropriação e transformação do mundo. O trabalho, assim compre-endido, é exercício de artesania na habilidade de bem viver.

É nesse sentido que se deve compreender também tamanho em-penho dos medievais no cultivo das virtudes. São forças que levam a uma única força, à habilidade do bem viver. A prática da disciplina leva a alma à virtude e a virtude, à beatitude. Assim, nas obras, há que se observar a disciplina no discernimento, na diligência e na honestidade. O discernimento prefere o necessário ao útil, o melhor ao bom, o ótimo ao melhor; a honestidade no agir busca levar em consideração sempre e primeiramente o direito e o dever da perten-ça ao todo. Artesania é método de melhorização, de obediência a e seguimento do curso “natural” proativo do humano.

Método, estudo, disciplina são modos de dizer o empenho na aquisição de uma habilidade, de uma arte. “Mas habilidade que não é um talento natural. Arte é uma habilidade trabalhada por um lon-go tempo. Então, se diz que existe arte de viver, arte, habilidade de viver, conquistada, bem trabalhada. Arte de plantar, arte de escre-ver..., toda e qualquer profissão tem que ser arte; é uma habilidade, uma competência útil, que serve. Uma habilidade conquistada, bem trabalhada”.

Nesse sentido, não há acepção de trabalhos, de atividades ou de ocupações.

Trabalho não é função, trabalho é lugar e exercício para se tra-balhar a si mesmo na busca e aprendizagem do sentido de viver. Por isso, no aprimorando da arte do trabalho honesto, o homem me-dieval se tornava mestre, não importando qual atividade exercesse. Mestre é alguém que aprendeu a aprender e onde quer que esteja e atue exercita esse aprendizado.

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ARTIgOS

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O unIvERSaL E O SInguLaR

Alain de Libera (Université de Genève)

Tradução: Everton Grein Mauro Fernando Roman

Nullum universale est singulare, et nullum singulare est universale, diz uma auctoritas evocada em um tratado atribuído a um discí-pulo de Abelardo, outrora editado por Victor Cousin sob o título de Fragmentum Sangermanense De generibus et speciebus1: nenhum universal é singular, e nenhum singular é universal2. Quem duvida-ria? Universal e singular são contrários. Uma coisa, digamos, uma substância, é ou universal ou singular. Ela não pode ser ambos ao mesmo tempo. A natureza do particular não passa no universal. A do universal não passa no particular. Nec particularitas, nec universalitas in se transeunt, já dizia Boécio em seu Comentário das Categorias de Aristóteles. Não há mais transitio do universal no particular do que da substância no acidente ou do acidente na substância.

Quare neque substantia in accidentis, neque accidens in subs-tantiis naturam transit. At uero nec particularitas, nec uniuer-salitas in se transeunt. Namque uniuersalitas potest [170D] de particularitate praedicari, ut animal de Socrate uel Platone, et particularitas suscipiet uniuersalitatis praedicationem sed non

1. O De generibus et speciebus foi editado em V. Cousin, Ouvrages inédits d’Abélard, Paris, 1836, p.507-550. P. O. Kingen deu uma nova edição e uma tra-dução inglesa em um apêndice de sua tese Abailard and the Problem of Universals, Dissertation Abstracts International # 8220415.

2. De generibus..., ed. Cousin, p.521.

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Alain dE LibEra

ut uniuersalitas sit particularitas, nec rursus ut quod particulare est uniuersalitas fiat3.

Uma universalidade pode se predicar de uma particularidade, uma particularidade recebe a predição de uma universalidade, isso não resulta em que uma universalidade é particularidade nem que o que é particular se torne, na ocasião dessa predicação, universalida-de4. Eles não se tornam um no outro. Boécio contra Hegel? Ou antes:

3. O texto de Boécio é uma transposição quase literal do Comentário às Catego-rias de Aristóteles por questões e respostas de Porfírio, ed. A. Busse, In: Aristotelis Categorias Expositio per interrogationem et responsionem, CAG, IV, 1,Berlin, G. Reimer, 1887, p.72, 3-15 segs.; trad. R. Bodéüs, Paris, Vrin, 2008, p.157: “Bem, eu digo que a substância não pode tornar-se acidente, nem o acidente substância [...] Novamente, o universal não pode ser particular, e o particular não pode ser universal. Por outro lado, o particular pode se ver atribuir um dos universais: assim, a Sócrates, que é uma substância particular, pode-se atribuir homem, que é precisamente um universal, porque Sócrates é o homem. [...] Mas a substância, como tal, não pode tornar-se acidente, nem do seu lado, o acidente como tal, uma substância e novamente, o universal como tal não pode tornar-se particular, nem o particular como tal, universal”. Com o original grego sob os olhos, vemos que a “passagem” (transit) de Boécio corresponde ao “tornar-se” porfiriano (γένοιτο) tanto como a “inquietude” (Unruhe) hegeliana. Reencontraremos a palavra γένοιτο na definição porfiriana do indivíduo como “um encontro de característi-cas específicas”. O texto de Porfírio é uma resposta à questão de saber “quais são, entre as coisas, aquelas que não podem se combinar entre elas e quais são aquelas que o poderiam”, levada pela divisão mínima dos seres em quatro gêneros (ver a nota seguinte). A resposta – acidente e substância, universal e particular não pode se combinar – é fundada sob o fato de que em cada par um termo é colocado pela negação da relação que qualifica o outro: o acidente estando definido pela relação de inerência (ser em um sujeito), o universal por aquela atribuição essencial ou sinonímica (dizer-se de um sujeito), a substância é definida por não ser em um sujeito e o particular por não se dizer de um sujeito. O acidente não pode portanto tornar-se substância, nem o particular universal (e reciprocamente).

4. O emprego boeciano das palavras abstratas universalitas e particularitas no lu-gar de universale e particulare é notado e comentado pelo autor do De generi-bus et speciebus. O propósito de Boécio nesse texto é de justificar a divisão em quatro gêneros “dos seres e das palavras suscetíveis de os significar”, a tétrade ou o reagrupamento mínimo, introduzido nesses termos por Porfírio (Busse, p.71, 19 segs.; Bodéus, p.153): “… os seres são ou bem substância universal ou bem substância particular ou bem acidentes universais ou bem acidentes particulares.

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Hegel contra Boécio? O Uebergehen da dialética hegeliana seria o eco do transire boeciano? Poderia se acreditar nisso ao ler tal ou tal página, da Estética, por exemplo, onde a afirmação que o universal “passa” ao particular fundamenta a própria teoria do conceito.

O conceito é [...] universal que por um lado se nega como tal determinando-se e particularizando-se, e do outro suprime esta particularidade que é a negação do universal. Porque o universal passa ao particular que não é ele mesmo senão o próprio universal particularizado sobre seus diversos elementos. Consequentemen-te, ele não encontra outro absolutamente distinto, mas restabelece no particular sua unidade consigo mesmo enquanto universal5.

Há aparentemente dois extremos, dois pólos filosóficos: um bo-eciano, antigo e medieval, onde se coloca um limite intransponível

Não se pode, com efeito, propor outra divisão mais simples que esta”. A divisão “mais extensa” é aquela dos dez gêneros categoriais, a tétrade, as “dez categorias”: “substância, quantidades, qualidades, relativos, produção, afeição, momento, lo-calização, ordem, posicionamento”. À questão de saber “porque a divisão mais simples comporta quatro gêneros”, Porfírio responde (Busse, p.71, 28-71, 37; Bodéus, p.153-155): “É que a subdivisão no mais alto nível, quer dizer a primei-ra, comporta dois: a substância e o acidente. Mas é isso. Não podemos exprimi--las sem fazer menção seja do universal, seja do particular. As substâncias, com efeito, devem se exprimir seja universalmente (como quando dizemos ‘animal’, ‘cachorro’, ‘homem’) seja no particular (como quando dizemos ‘Sócrates’, ‘Bucé-falo’). E os acidentes são também universais ou particulares. A ciência com efeito é um acidente universal, enquanto a ciência de Aristarco é um acidente particular. Ora, visto que não exprimimos simplesmente a substância (mas o fazemos seja de modo universal [ou] particular), isto é individualmente, nem o acidente (mas o fazemos também seja de modo universal, [ou] particular), a divisão resulta em quatro gêneros, enquanto que em princípio, ela não compreende a substância e o acidente”. Temos portanto: Sócrates, a substância particular ou “primeira” no léxico de Aristóteles, definido por ¬ IS (não inerente de um sujeito) e ¬ DS (não dita de um sujeito); o Homem, a substância universal ou “segunda”, definido por ¬ IS & DS (homem se diz de Sócrates, animal se diz de homem [e de Sócrates]); a ciência, acidente universal, definido por IS & DS; a ciência de Aristarco, acidente particular, definido por IS & ¬DS.

5. G. W. F. Hegel, Esthétique, I, trad. C. Bénard, Paris, Livro de Bolso (Clássicos da filosofia), 1997, p. 174.

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entre universal e singular, outro, hegeliano e moderno, onde se or-questra sua transgressão. O esquema é simples. Ele é simplista. É verdade que muitos filósofos têm concordado e concordariam ain-da em dizer que o universal e o singular são contrários, até mesmo contraditórios, e que nada pode ser ao mesmo tempo um e outro. No entanto, não é necessário ser um hegeliano para contestar esse dispositivo. É o que faz, por exemplo, Alain Badiou, na segunda de suas Oito teses sobre o universal, quando coloca, aparentemente sem reverência a Hegel que “todo universal é singular, ou é uma singularidade6”. Para um medievalista, historiador da filosofia, a tese badiana é seguramente paradoxal. Ela é senão comum, pelo menos fortemente atestada. Mais exatamente, abundam os enunciados que colocam também que todo universal é singular. Trata-se, portanto, da mesma tese? É possível duvidar. Por quê? Este é o tipo de questão que nos reúne hoje. Pode-se trazer respostas bem distintas. Alguns dirão que o enunciado de Badiou não responde ao mesmo problema que um enunciado medieval que, também afirmaria que todo uni-versal é singular (ou o negaria). Outros dirão que o tema ‘universal’ não remete em Badiou ao que remete, remetia ou remeteria o termo ‘universal’ em tal ou tal pensador medieval. Outros enfatizarão que Oito teses sobre o universal não significa Oito teses sobre os universais. O que torna a dizer que as ditas teses não respondem ao que se chama “o” problema dos universais. Todas essas respostas têm seu mérito e seus defeitos. Não caiamos na armadilha da alternativa en-

6. Cf. A. Badiou, “Oito teses sobre o universal”, www.ciepfc.fr/spip.php?article 69 (26. 12. 2008): “É necessário, portanto sustentar que todo universal se apresenta, não como uma regulamentação do particular ou das diferenças, mas como uma singularidade subtraída dos predicados identitários, embora, bem entendida, ela proceda em e através desses predicados. À assunção das particularidades é preciso opor sua substração. Mas se uma singularidade pode pretender ser substrativa-mente o universal, é porque o jogo dos predicados identitários, ou a lógica dos saberes descritivos da particularidade, não permite de modo algum prevê-la ou pensar nela”. Badiou acrescenta: “resulta que uma singularidade universal não é da ordem de ser, mas da ordem do aparecimento. Daí a tese 3: todo universal se origina de um evento, e o evento é intransitivo às particularidades da situação”.

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tre a continuidade e a descontinuidade em história. Perguntemo-nos simplesmente o que entendemos com o ressoar / raciocinar, desde a cena medieval, sob este título: “o universal e o singular”.

Primeiramente, a história de um problema, ou melhor, a gênese de um problema: aquele, precisamente, dos universais. Uma forma padrão de colocar o problema dos universais é: os universais são pa-lavras, coisas ou conceitos? É sob essa forma tripartite que, desde 1845, a Academia das Ciências Morais e Políticas a fixou, com Vic-tor Cousin, para a filosofia francesa, e com ela a delimitação das três posições tomadas: nominalismo, realismo e conceitualismo7. Que se permita recordar aqui, o problema da Academia não é aquele que a alimentou, durante séculos, a reflexão sobre o estatuto dos uni-versais. Inicialmente, há, de fato, um questionário completamente diferente – o “questionário de Porfírio”, o aluno de Plotino, o editor das Enéadas, o único filósofo a quem jamais se aconselhou a tratar sua depressão pelo estudo intensivo da lógica, e que tenha sido bem sucedido. Três questões, portanto:

[...] concernente aos gêneros e às espécies, [...] saber (1) se eles existem ou se eles não consistem senão em puros conceitos, (2) ou, supondo que eles existam, se eles são corpos ou incorpóreos, e, (3) nesse último caso, se eles são separados ou se eles existem nos sensíveis e em relação a eles8.

Esse questionário figura em uma obra precisa, o Isagoge, uma introdução à leitura das Categorias de Aristóteles. Porfírio, sabe-se bem, não responde a suas próprias questões. Por quê? “Porque, diz ele, elas representam uma busca mais profunda e exigem outro exa-me, muito mais longo”, destacado da filosofia primeira, ou melhor,

7. É sobre o conflito entre essas três posições que está centrado o programa da His-tória da filosofia escolástica anunciada naquele ano pela Academia, o prêmio foi ganho por Barthélemy Hauréau. Sobre esse ponto, cf. A. de Libera, La Querelle des universaux, Paris, Éd. du Seuil, 1996, p. 11-12.

8. Porphyre, Isagoge, 1. 2, trad. A. de Libera & A. Ph. Segonds, Paris, Vrin (Sic et Non), 1998, p. 1.

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da teologia9. A primeira alternativa pergunta se os gêneros e as espé-cies, e por extensão os outros predicáveis, – diferença, propriedade e acidente – são ou não conceitos puros, quer dizer vazios ou o que remete ao próprio nada puro; a segunda, uma vez colocada, que eles existem ou subsistem, se eles são ou não corpos; a terceira, uma vez colocada, que eles são incorporais, se eles existem ou não nos sensíveis. O aspecto estóico do questionário, herdado de fato de um de seus grandes adversários peripatéticos, Alexandre de Afrodísia, vale ser sublinhado. Porfírio, nas suas Sentenças, Alexandre, têm por parceiros ou alvo os estóicos. É evidente, por exemplo, na sentença 42, onde contra “os discípulos de Zenão”, Porfírio distingue (a) os incorpóreos, “que subsistem em relação ao corpo” (pros ta soma-ta ufistai) – a “forma imanente à matéria, quando ela é concebida como esvaziada da matéria” – e (b) aqueles que são “inteiramente separados dos corpos e dos incorpóreos, subsistindo em relação aos corpos”10. Vê-se que o questionário de Porfírio no Isagoge, é bem teológico num certo sentido; em todo caso, é finalmente na terceira questão, que pergunta nada menos que isso: que tipo de incorpóreos são os gêneros e as espécies? Eles são todos imanentes no sensível? É transcendente? Nada exige diretamente aqui uma análise em termo de palavras, de coisas e de conceitos. É, no entanto, a essa questão que Porfírio não coloca, muito mais do que à questão que ele colo-ca, e à qual ele não responde, ao menos no Isagoge, que responde a tradição dos comentadores. Por quê? Digamos que, como um trem,

9. Após ter esquivado seu próprio problema, que não se enquadra com o skopos (objetivo, propósito, tema), das Categorias. Porfírio declara sem ambiguidade que o ponto de vista do Isagoge é lógico e peripatético: “… eis as questões das quais eu evitarei de falar […]; por outro lado, concernente aos gêneros e espécies e aos outros [termos] em questão, como os Antigos, e mais particularmente aqueles do Peripatos, trataram de uma maneira mais lógica, é o que eu vou me esforçar em te mostrar.

10. Cf. Porfírio, Sentenze sugli Intelligibili. Testo greco a fronte, a cura di G. Gir-genti, Milan, Rusconi, 1996, p. 158-159. Ver, no mesmo sentido, a sentença 19, éd. -trad. Girgenti, p. 96-97.

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um questionário pode levar a um outro. É o que fazem os Comen-tadores gregos do Isagoge, “introdução” as Categorias, é simples: eles reportam na obra de Porfírio o questionário que organiza a leitura da obra a qual ele introduz, em outras palavras: o questionário sobre o σκοπός, o propósito, o tema ou o objeto das Categorias: as categorias (substância, qualidade, quantidade etc.) são elas φωναί (vozes), os νοήματα (os conceitos) ou as πράγματα (as coisas)? Essa transferên-cia, essa transposição sobre os predicáveis de uma grade de questio-namento formulado para os predicamentos, prolonga uma primei-ra transferência, uma primeira reversão ou retroversão. Que, com efeito, não reconheceria na tríade φωναί – νοήματα – πράγματα a formulação simplista, cara ao neoplatonismo, do triangulo semânti-co estabelecido por Aristóteles no capítulo primeiro do Peri Herme-neias. Esse movimento regressivo do esquema “palavras, conceitos, coisas” do Peri Hermeneias às Categorias e das Categorias ao Isagoge tem uma vantagem evidente: ele reforça a coesão do Organon, ho-mogeneizando ao mesmo tempo o léxico e o domínio de objetos. Os medievais abordam um problema dos universais construído sobre a aristotelização forçada de um dispositivo mais amplo, onde a teoria dos incorpóreos tinha ainda direito de cidadania.

Os comentadores estariam errados em operar essa transferência? A julgar pelo resultado, não. Discute-se ainda ora mais ora menos em seus termos o problema dos universais, esqueceu-se há um bom tempo o questionário de Porfírio11. Eles tinham boas razões em fa-

11. Na filosofia moderna e contemporânea, as principais teses na presença oposta dos partidários das “classes naturais primitivas” (A. Quinton), do “nominalismo da semelhança” (H. H. Price), dos “universais” no sentido estrito, das “classes naturais dos tropos” (G. F. Stout) e das “classes de semelhanças dos tropos” (D. C. Williams) – alguns filósofos tentaram combinar a teoria dos tropos e a admis-são dos universais (J. Cook Wilson). No que constitui a melhor introdução às problemáticas atuais dos universais – Universals. An Opinionated Introduction, Boulder-San Francisco-Londres, Westview Press (Focus Series), 1989, p. 18 –, o filósofo australiano D. M. Armstrong apresenta assim as seis teorias em questão (minha tradução): “1. Teoria das CLASSES NATURAIS PRIMITIVAS (Primi-

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zê-lo? Talvez, porque era claramente a melhor maneira de adotar, como solicitava Porfírio, o ponto de vista dos peripatéticos, se expri-mindo λογικώτερον sobre os predicáveis, para pelo menos abrir o debate ou a investigação que se supõe concluir fora do Organon, na metafísica ou na teologia.

Não é da única montagem reversiva dos três textos que consti-tuem a Logica Vetus que foi tirado o problema dito dos universais. A palavra não figurava em outras partes do questionário de Porfírio. Ele figura por outro lado no De anima I, 1, 402b7 e as duas Questões que Alexandre consagrou a essa passagem: O que significa a citação de Aristóteles no primeiro livro da Alma: “o animal tomado univer-salmente ou bem não é nada ou bem é posterior”. Esta “posteridade” tem tido boa sorte. Quem diz posterior diz anterior. Não seria neces-sário mais do que isto para encaixar a divisão porfiriana das ciências, modelada sobre aquela de Aristóteles, uma distinção entre os estados

tive natural class view): A classe de todas as coisas brancas constitui uma classe natural que apresenta um grau suficiente de naturalidade (a class with a reasonable degree of naturalness). Isso é tudo o que podemos dizer a propósito do que faz que uma coisa branca seja branca (that is all that can be said about what makes a white thing white). 2. NOMINALISMO fundado sobre a SEMELHANÇA (Resemblance Nominalism): As coisas brancas constituem uma classe natural em virtude do fato objetivo de que todas elas se assemelham em um certo grau. A semelhança é um fato objetivo mas não analisável. 3. Admissão de UNIVERSAIS (Universals): Todas as coisas brancas têm em comum uma propriedade idêntica (ou um conjunto de propriedades ligeiramente diferentes que correspondem às diversas nuances do branco. 4. Teoria das CLASSES NATURAIS DE TROPOS (Natural classes of tropes): Cada coisa branca tem sua própria propriedade de brancura inteiramente distinta [das outras brancuras] (its own, entirely distinct, property of whiteness). A classe das brancuras constitui uma classe natural primi-tiva. 5. Teoria das CLASSES DE TROPOS fundadas sobre a SEMELHANÇA (Resemblance classes of tropes): Cada coisa branca tem sua própria propriedade de brancura, mas os membros da classe das brancuras se assemelham todos mais ou menos estritamente, sendo a semelhança um elemento primitivo (inderivablel). 6. Admissão do TROPOS e de UNIVERSAIS (Tropes plus universals): Cada coisa branca tem sua própria propriedade de brancura, mas essas propriedades particu-lares elas mesmas tem cada qual uma propriedade universal de brancura (but these particular properties themselves each have a universal property of whiteness)”.

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do universal. A alternativa aberta por 402b7 não poderia ser aceita, a partir do momento em que não se permanecesse mais bloqueado na primeira alternativa porfiriana, e que se entendia sustentar uma teoria que afirmava ao mesmo tempo, que o animal tomado univer-salmente não era nada, mas não era, no entanto, somente posterior, em outras palavras simples conceito abstrato, extraído de semelhanças entre singulares.

É nesta recusa do empirismo estrito que os comentadores neo-platônicos forjaram a doutrina que harmoniza de fato o platonismo e o aristotelismo, chamada de “os três estados do universal”. A con-cordância ou a conciliação são aqui o motor da invenção. Do mesmo modo que a posição final sobre o skopos das Categorias faz a síntese: não só as palavras, nem só as coisas, nem só os conceitos, mas as pa-lavras que significam coisas pela mediação dos conceitos12, ou seja, o conjunto do triangulo semântico, e não somente um de seus vértices, é um ponto de vista unificador que é procurado para pensar o status dos “predicáveis” ou “universais”. É o que obtém Amônio, com a teoria “dos três estados do universal”, pro ton pollón (anteriores aos múltiplos), en tois pollois (nos múltiplos), epi tois pollois (posteriores aos múltiplos), incorporando a concepção aristotélica do universal “abstrato” ou “posterior” dos Segundos Analíticos na distinção, atesta-da a partir da época da Média Academia, entre formas imanentes à

12. Sobre essa síntese das três posições, cf. Ph. Hoffmann, “Catégories et langage selon Simplicius. La question du “skopos” du traité aristotélicien des Catégories”, in I. Hadot (éd. ), Simplicius. Sa vie, son oeuvre, sa survie. Actes du colloque international de Paris, 28 sept. -1 oct. 1985 Berlin-New York, W. de Gruyter (Peripatoi, 15), 1987, p. 68 et 72-73. O lugar de Porfírio no dispositivo é difícil de apreciar: segundo Olympiodoro, ele é partidário da tese peri fônon; segundo Philopon e Elias, ele sustenta a tese peri noématón; segundo Simplício, ele é o primeiro exegeta à exprimir a “boa” interpretação do skopos das Categorias, a interpretação “completa”, quer dizer sintética, que atribui como objeto no livro “os termos predicados” (peri tón katégoroumenón), quer dizer “as palavras simples que significam as realidades, na qualidade de que elas são significantes, e não pura e simplesmente como elementos léxicos”.

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matéria e Ideias transcendentes (platônicas)13. Essa teoria atravessará os séculos: encontramo-la, adaptada ao monoteísmo, entre cristãos siríacos a partir dos anos 530, mas é somente no século XIII que ela se difunde entre os latinos graças ao uso que Alberto O Grande fez da Lógica de Avicena, seu principal vetor na idade universitária. A teoria de Amônio, retomada por Avicena, depois por Alberto, de-pois por todos os filósofos e teólogos da Via Antiqua, propõe uma espécie de Odisséia do inteligível universal: teológica, anterior a coi-sa, paradigmática de uma palavra ante rem, universal existente no pensamento divino, descende no múltiplo, se particulariza, se torna in re, antes de recobrar uma universalidade abstrata no pensamento humano, post rem, e de se fazer mental ou psicológico14.

13. Ver a distinção entre “inteligíveis primeiros” (objetos da “intelecção física”) e “inteligíveis segundos” em Alcínoo, Didaskalikos, chap. 4. 7, éd. J. Whittaker, trad. P. Louis, Paris, Belles Lettres (CUF), 1990, p. 7 (= éd. C. F. Hermann, Platonis dialogi., BT, t. VI, Leipzig, 1853, p. 155, 39-41): “E, já que entre os in-teligíveis, uns são primeiros como as Ideias, os outros, segundos, como as formas inerentes à matéria e inseparáveis dessa matéria, haverá assim dois tipos de intelec-ção, uma tendo por objeto os primeiros, e a outra os segundos”. A distinção dos três estados do universal é exposta por Amônio, In Porph. Isag., éd. Busse, CAG, IV, 3, Berlin, G. Reimer, 1891, p. 41, 10-42, 26: “Para esclarecer o que o texto [de Porfírio] quer dizer, apresentemo-lo por meio de um exemplo, porque não é ver-dade que os [filósofos] designam simplesmente e ao acaso tais coisas como corpos, tais outras como os incorpóreos, mas eles o fazem ao termo de um argumento, e eles não se contradizem uns aos outros, porque cada um entre eles diz coisas razo-áveis. Imaginemos, portanto, um anel, com uma impressão [representando], por exemplo, Aquiles, assim com uma infinidade de selos de cera; suponhamos que o anel marque com sua chancela em todos os selos; suponhamos agora que alguém venha mais tarde e que veja os selos, constatando que todos [as marcas] vêm de uma única impressão: ele terá em si mesmo a marca, quer dizer, a impressão na sua faculdade discursiva (dianoia); podemos portanto dizer que a chancela sobre o anel é “anterior aos múltiplos”; que a marca nos selos é “nos múltiplos”, ao passo que aquele que é na faculdade discursiva daquela que a imprimiu, é “posterior aos múltiplos” e “posterior na ordem do ser”. Bem, isso é o que é necessário compre-ender no caso dos gêneros e das espécies”.

14. Para tudo isso, eu me permito indicar A. de Libera, L’art des généralités. Thé-ories de l’abstraction (Philosophie), Paris, Aubier, 1999 e Métaphysique et noéti-que. Albert le Grand, Paris, J. Vrin (Problèmes et controverses), 2005.

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A teoria de Amônio não responde diretamente nem ao questio-nário de Porfírio nem ao problema das palavras, dos conceitos e das coisas, ela afirma a harmonia do platonismo e do aristotelismo: o universal não é somente anterior a coisa, nem somente imanente a coisa, nem somente posterior a coisa, mas os três15. Ela não interessa senão para quem é verdadeiramente preocupado em conciliar Aristó-teles e Platão. Lá onde essa preocupação não existe, ela perde muito do seu atrativo. Explica-se assim que ela não desempenha qualquer papel durante a Idade greco-latina da filosofia medieval, digamos de Boécio a Abelardo, que o ignoraram como ignoram Platão e em um grau menor Aristóteles, e que ela não desempenha nenhum [papel] mais nas correntes filosóficas tal qual o nominalismo. Abelardo nun-ca evocou a teoria de Amônio, porque Boécio, sua fonte principal, o ignora ou não se interessa. Ockham não a menciona senão para corrigi-la, e certamente não para salvar o platonismo nem o suposto acordo dos dois “grandes” filósofos.

Do que falam aqueles que falam do universal e do singular quan-do eles não tratam do questionário de Porfírio ou do problema dos universais na versão que se tornou padrão para nós? O que faz o interesse da história da filosofia medieval é que se deve, sempre que for possível, superar intrigas de longa duração e seguir outras pistas além daquela do comentário das obras canônicas, Isagoge ou as Ca-tegorias. A teologia tem sua palavra a dizer da Antiguidade Tardia à Segunda Escolástica. Falar do universal e do singular como falaram os filósofos e teólogos do século VI ao XVI, é no mínimo: interessar--se por outros Binômios como universal e geral, universal e comum, singular e particular; é debruçar-se sobre a distinção entre a teoria do

15. O debate medieval sobre os universais é muitas vezes apresentado atualmente como opondo platonismo e aristotelismo – os filósofos contemporâneos chamam aliás “platonismo” de Transcendent Realism, quer dizer, toda teoria que admite a existência de propriedades ou de universais “não instanciados” (“uninstantiated properties”), e remete a Aristóteles a tentativa de “trazer os universais para a terra”, e lhe atribuir, como Armstrong, uma teoria dos universals in things “whose Latin tag is universalia in rebus” (Universals, p. 77).

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universal e mereologia ou, se preferirmos, sobre o que aproxima ou distingue a dupla universal-singular da dupla todo-parte; é seguir os debates teológicos sobre a Trindade e a união hipostática, e ao mes-mo tempo interessar-se pela história ao longo do curso das relações entre o indivíduo, natureza e pessoa, é sondar as teorias do pecado original; é voltar-se para as teorias da abstração; e envolver-se tam-bém no terreno minado das teorias do intelecto, é abordar as teorias do conhecimento, do conhecimento dito abstrativo do universal, do conhecimento dito intuitivo do singular; é, enfim, e quem se surpre-enderá, voltar sobre o que caracteriza os nominalismos e os realismos medievais, definir com precisão suas posições filosóficas, e analisar e discutir sobre todos os terrenos onde eles se afrontam, estatuto on-tológico das proposições (dictum propositiones), teoria do significável complexamente (significabile complexe), teoria do esse obiectivum ou obiective. Tudo isso leva longe. Ainda mais longe que a história dos problemas – ou para retomar a formula de Collingwood, dos com-plexos constituídos de questões e respostas –, tem uma matéria mais rica que aquela das QCM: as distinções, as regras, os argumentos, os exemplos fazem parte dela. Universal e singular conduzem, portanto, a tudo ou quase tudo – em todo caso bem além “do” problema dos universais.

...entre as coisas umas são universais, outras singulares – e eu cha-mo universal o que, por natureza, pode servir de predicado a di-versos sujeitos, singular o que não pode16...

...entre os predicáveis, uns não se dizem senão de um só, como os indivíduos (por exemplo Sócrates, este homem ou esta coisa), enquanto que outros se dizem de vários (como os gêneros, as es-pécies, as diferenças, os próprios e os acidentes que são comuns, e não particulares a um só indivíduo)17.

Duas definições, das quais uma, a de Aristóteles, fala das coisas (pragmata), a outra a de Porfírio, fala de categouroumena, de predicá-

16. Aristóteles, De interpr., 7, 17a38-40.

17. Porfírio, Isagoge, 1. 6.

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veis, portanto de termos – a menos que admitamos que uma coisa, e não somente um termo, possa ser dita de uma outra, e que existam proposições reais, feitas de coisas, como certos realistas do século XIV sustentarão18. Duas definições que nos dizem o que significa universal (predicável de muitos) e singular (predicável de um só), sem distinguir singular e indivíduo. Duas definições que não nos dizem no entanto do que um singular é feito, o que constitui tal ou tal indivíduo, tal ou tal singular enquanto indivíduo ou singular.

Numa célebre passagem do Isagoge (7.19-27), Porfírio escreve que um indivíduo (atomon) “é constituído de propriedades cuja reunião (athroisma) não poderia jamais se encontrar idêntica em outro”19. Eis uma reposta à questão. Mas o problema levantado pelos dois enun-ciados precedentes volta imediatamente: Porfírio fala de coisas indivi-duais ou de termos individuais – e por que não de conceitos individu-ais (no sentido em que se fala na filosofia moderna das características ou das notas, Merkmalen, notae, de um conceito20)? A alternativa palavras-coisas existe: hoje ainda se debate sobre a questão de saber se

18. Cf. sobre esse ponto L. Cesalli, Le Réalisme propositionnel. Sémantique et on-tologie des propositions chez Jean Duns Scot, Gauthier Burley, Richard Brinkley et Jean Wyclif, Paris, Vrin (Sic et Non), 2007.

19. “… a espécie que não é senão espécie, [se diz] de todos os indivíduos, e enfim, o indivíduo, de um único entre os particulares. Chamamos “indivíduo” Sócra-tes, este branco, e o filho de Sofronisco (desde a condição que Sofronisco não tenha além de Sócrates como filho) e este que vem lá. Esses [seres] são portanto chamados “indivíduos”, porque cada um dentre eles é constituído por caracteres próprios, cujo agrupamento não poderia jamais se produzir identicamente em um outro: com efeito, os caracteres próprios de Sócrates não poderiam jamais ser os mesmos no caso de um outro ser particular, ao passo que estes do homem, eu quero dizer do homem comum, podem ser os mesmos no caso de muitos homens, ou melhor, mesmo no caso de todos os homens particulares, enquanto homens.”

20. Cf. o artigo “Merkmal” (A. de Libera), no Vocabulaire Européen des Philoso-phies, sob a dir. de B. Cassin, Paris, Le Robert-Éd. du Seuil, 2004. Ver também sobre esse ponto (como sobre o número de problemas evocados aqui) I. Angelelli, Études sur Frege et la philosophie traditionnelle, trad. por J. -F. Courtine, A. de Libera, J. -B. Rauzy & J. Schmutz, Paris, Vrin (Problèmes & Controverses), 2007.

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o enunciado do Isagoge 7.19-27 propõe uma teoria da constituição ontológica ou “natural” dos indivíduos ou uma teoria da “significação dos predicados individuais”21. Nos séculos XI e XII, perguntava-se se era necessário ensinar, isto é, interpretar, ler, o Isagoge in voce ou in re ou ambos. O problema é particularmente agudo no caso da reunião não repetível de propriedades, invocado por Porfírio22. São conheci-das ao menos três teorias ontológicas da constituição do indivíduo pela união de caracteres próprios na filosofia antiga:

T1: uma substância “primeira”, uma “hipóstase”, é aquilo em que existe uma (athroisma sumbebékotón), “reunião de acidentes”, teoria atestada na Suda23.

T2: uma substância sensível é um tipo de união (συμφόρησις) de qualidades tomadas com a matéria na qual elas existem24.

21. J. Barnes, Porphyry. Introduction, Oxford, Clarendon Press (Clarendon Later Ancient Philosophers), 2003, p. 342: “… that theory has usually been taken to con-cern not the meaning of individuals predicates but the nature of individual items”.

22. Sobre essa noção e essa problemática, cf. C. Erismann, La Genèse du réalisme ontologique durant le haut Moyen âge. Étude doctrinale des théories réalistes de la substance dans le cadre de la réception latine des ‘Catégories’ d’Aristote et de l’’Isagoge’ de Porphyre (850-1110), tese (EPHE-Lausanne), novembro 2006, e, do mesmo, “Un autre aristotélisme? La problématique métaphysique durant le haut Moyen Âge. A propósito de Anselmo, Monologion 27”, Quaestio. Annuario di storia della metafisica, 5, 2005, p. 143-60; “Collectio proprietatum. Anselme de Canterbury et le problème de l’individuation”, Mediaevalia. Textos e estudos, 22 (2003), p. 55-71; “L’individualité expliquée par les accidents. Remarques sur la destinée “chrétienne” de Porphyre”, in C. Erismann & A. Schniewind (éd. ), Compléments de substance. Études sur les propriétés accidentelles, Paris, Vrin (Problèmes et controverses), 2008, p. 51-66; cf. en outre J. Brumberg-Chaumont, Sémantiques anciennes et médiévales du nom propre, tese (EPHE), maio 2004.

23. Entrada no 585: upostasis, linhas 1-4 (citado por Barnes, ibid. ).

24. Esta teoria é evocada por Plotino nas diversas passagens das Enéadas, da qual VI, III, 8, 30-34, onde ele explica que uma substância sensível pode bem ser composta de não-substâncias, uma vez que ela não é ela mesma verdadeiramente substância, mas unicamente imitação das substâncias verdadeiras.

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T3: um indivíduo é uma reunião de qualidades – teoria atribuí-da a Porfírio no Isagoge, e criticada por Dexippe25.

Para J. Barnes, nenhuma destas teorias é a de Porfírio e a própria ideia que elas operam é absurda:

… how could Socrates, a thing of flesh and blood, be made or constituted by a set of qualities or accidents? If you add snub--nosedness to baldness you get a complex quality – you do not get a chap26.

Na leitura barnesiana o que sustenta Porfírio é, portanto, so-mente TP: “A term is individual if and only if it corresponds to the conjunction of a number of expressions, each of which holds of some one and the same item”27. Confirmando o adágio segundo o qual a autoridade tem um nariz de cera que se pode entortar à vontade em todos os sentidos, os medievais tiraram de Porfírio todas as teorias possíveis, incluindo diversas teorias ontológicas – e não somente semânticas – da individualização. Se, como escreve Porfí-rio, “não são essas diferenças específicas que distinguem Sócrates de Platão, mas um concurso de qualidades que é próprio” a Sócrates, “uma combinação particular de qualidades” (idiotéti de sundromés poiotétón)28, todas as variações sobre o nome próprio, os predicados

25. Sobre esse texto e sua visão antiporfiriana, cf. P. Hadot, Porphyre et Victori-nus, II, Paris, Etudes Augustiniennes, 1968, p. 99, n. 4 e R. Chiaradonna, “La teoria dell’individuo in Porfirio e l’idiôs poion stoico”, Elenchos, XXI (2000), p. 303-331 (esp. p. 317-328).

26. J. Barnes, Porphyry…, p. 345.

27. J. Barnes, Porphyry…, p. 151.

28. In Cat., Busse, p. 129, 9-10; Bodéüs, p. 427, n. 1: “A diferença entre as subs-tâncias primeiras não é portanto em procurar em uma qualidade essencial, comum a vários, mas [...] em um “concurso de qualidades”, aparentemente acidentais. A palavra “qualidade”, na ocorrência não deve ser tomada no senso estrito, porque as propriedades visadas incluem outras determinações acidentais (o tamanho etc.). Esta visão das coisas, ainda que não aristotélica, permite certamente enunciar um princípio de individualização na ordem substancial, onde os indivíduos são pre-cisamente sujeitos de múltiplas propriedades não essenciais; mas como explicar a

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individuais, o concurso de qualidades, a qualidade própria, a idiós poion estóica foram experimentadas desde Boécio à Abelardo sobre o tema porfiriano. Grosso modo, pode-se tecer uma trama dupla: uma tese boeciana na qual cada indivíduo é uma substância distin-guida por uma qualidade própria e a tese porfiriana, que vê ali uma coleção de propriedades, entre estes dois pólos, correspondendo ao que Armstrong chamaria substance-attribute view et bundle-of-tropes view29, um que conserva a substância, o outro que a reúne em uma síndrome de qualidades, um feixe de tropes ou de particulares abstra-tos (esta humanidade, esta brancura), o conflito é particularmente agudo a partir do século XII30. Certas teorias nos aparecem de um

individualidade das realidades não substanciais? Como tal branco, por exemplo, difere-se de tal outro branco?” A moderna teoria dos tropes ou “particulares abs-tratos” é uma tentativa de resposta a esta questão. Para a introdução dos tropes na filosofia contemporânea, cf. D. C. Williams, “On the Elements of Being”, Review of Metaphysics, 7 (1953), p. 3-18 et 171-192.

29. Sobre os tropos na Idade Média, cf. C. Martin, “The Logic of the Nominales, or, The Rise and Fall of Impossible Positio”, Vivarium, 30 (1992), p. 110-126; J. Marenbon, The Philosophy of Peter Abelard, Cambridge, CUP, 1997, p.119-30; A. de Libera, “Des accidents aux tropes. Pierre Abélard”, Revue de métaphysique et de morale, 4 (2002), p.509-530; La Référence vide. Théories de la proposition, Paris; PUF, 2002, p. 122-126 et 269-297; “Aliquid, aliqua, aliqualiter. Signifiable complexe et théorie des tropes aux XIVe siècle”, in Paul J. J. M. Bakker (éd. ), Che-mins de la pensée médiévale. Études offertes à Zénon Kaluza, Turnhout, Brepols, 2002, p. 27-45; J. Marenbon, “Was Abelard a Trope Theorist?”, in C. Erismann & A. Schniewind (éd. ), Compléments de substance…, p. 85-101. Sur les tropes, cf. D. M. Armstrong, Universals…, p. 114-115, 127-188 et 136; K. Mulligan, P. Simons & B. Smith, “Truth-makers”, Philosophy and PhenomenoLogical Rese-arch, 44 (1984), p. 287-321; K. Campbell, Abstract Particulars, Oxford – Cam-bridge (Mass. ), Blackwell, 1990; P. Simons, “Particulars in Particular Clothing: three trope theories of substance”, Philosophy and Phenomenological Research, 54 (1994), p. 553-575; A. Chrudzimski, “Two Concepts of Trope”, Grazer Philo-sophische Studien, 64 (2002), p. 137-155.

30. Um extraordinário esclarecimento sobre as teorias realistas do século XII em J. Brumberg-Chaumont, “Le problème du substrat des accidents constitutifs dans les commentaires à l’Isagoge d’Abélard et du Pseudo-Raban (P3)”, in C. Erismann & A. Schniewind (éd. ), Compléments de substance…, p. 67-84 (com p.82 e

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nominalismo deflacionista radical, como aquela que sustenta que ter uma qualidade própria é ser “chamado por um nome próprio”, a que se objeta que se a qualidade própria se remetesse ao nome, um sujeito X que não tem nome não teria qualidade própria e, recipro-camente que se ele tivesse vários nomes, ele teria tantas qualidades, quanto nomes, o que é absurdo31.

Primo si nomen est qualitas tunc quando iste caruit nomine, ca-ruit propria qualitate. Secundo, qui ex necessitate tenendum est quod iste tot habet qualitates quot habent nomina …32

Outra teoria explica que a qualidade própria de um sujeito indi-vidual é precisamente a “coleção de todas as suas propriedades”. Seu defeito é manifesto: como escreve Petrus Hispanicus Non-Papa e o anônimo ‘Strenuum negationem’, quando se identifica a quantidade própria de um indivíduo com uma coleção de propriedades aciden-tais, ela não será estável, mas em perpétua mutação – ou variação33: “não será a mesma qualidade que será significada hoje e ontem” por um mesmo nome próprio (se encontrará o mesmo argumento em Abelardo)34; além disso, um nome próprio com o ‘Sócrates’, “sig-

83 dois esquemas representando as relações internas da Árvore de Porfírio nas duas principais teorias). No momento se dispõe de uma edição crítica das qua-tro versões de P3, da qual a primeira é atribuída ao grande adversário realista de Abelardo: Guillaume de Champeaux. Cf. Y. Iwakuma, “Pseudo-Rabanus super Porphyrium (P3)”, Archives d’histoire doctrinale et littéraire du Moyen Âge, 75 (2008), p. 43-196.

31. E não se deve ao fato de ter tantos nomes quantas qualidades próprias. Sobre a polionimia entre os canaques, consultaremos, a partir deste ponto de vista o grande livro de Maurice Leenhardt: Do Kamo. La personne et le mythe dans le monde mélanésien, 1947.

32. Cf. R. W. Hunt, “‘Absoluta’. The ‘Summa’ of Petrus Hispanus on Priscianus ‘Minor’”, Historiographia Linguistica, II/ 1 (1975), p. 110.

33. Cf. R. W. Hunt, “‘Absoluta’…”, p. 111: “Quibus illud obviat quod variacio-nem sequitur variacio proprie qualitatis”.

34. O texto deste Pedro de Espanha, distinto do Petrus Hispanus Papa (o papa João XXI), ao qual se atribuiu por miuto tempo o principal manual de lógica do

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nificando a coleção de várias propriedades sem significar nenhuma delas em particular, será semelhante a um nome coletivo” (isto é, um nome como ‘popolus’ ou ‘exercitus’)35. Para outros autores, dis-cutidos por Petrus Hispanicus, em sua suma de gramática, um nome próprio como ‘Sócrates’ ou ‘Platão’ significa “certa singularidade da essência” isto é, “uma qualidade singular substancial, da qual Só-crates conclui que é Sócrates e Platão, que é Platão”, qualidade que se pode nomear (nuncupari) de um nome forjado de ‘platonidade’” para Platão ou de ‘socratidade” para Sócrates, “conforme Boécio”36.

Com efeito, é Boécio que forja as palavras platonitas e socratitas para distinguir o universal do singular37. Comentando o Peri Herme-

século XIII as Summulae Logicales ou Tractatus, foi editado por C. H. Kneepkens no volume III de Het iudicium constructionis, Nijmegen (diss.), 1987. Sobre sua influencia na Idade Média, ver, do mesmo, “The Absoluta Cuiuslibet attributed to Petrus Hispanus”, in I. Angelelli & P. Pérez-Ilzarbe (ed. ), Medieval and Re-naissance Logic in Spain, Hildesheim, Olms (Philosophische Texte und Studien, band 54), 2000, p. 373-403. Os paralelos entre Strenuum Negationem e Absoluta cuiuslibet são traçados por R. W. Hunt, “‘Absoluta’…”, p. 110-111.

35. Absoluta cuiuslibet, ed. C. H. Kneepkens, p. 26: “Ad quod dicemus quod mutatis eius proprietatibus mutata erit eius propria qualitas nec eadem hodie sig-nificabit quam heri. Et si hoc nomen ‘Socrates’ pluriorum significat collectionem ita quod nullum illorum, videbitur esse collectiuum.”

36. Absoluta cuiuslibet, ibid.: “Tertia sententia est quod propria qualitas suppo-siti sit singularitas essentie quedam, scilicet singularis qualitas et substantialis, a qua socrates habet ut sit socrates, et Plato ut sit Plato, que ficto vocabulo, ut ait Boethius, platonitas potest nuncupari. Hec intelligi potest, etsi non sit proprium nomen. Nominari autem non potest nisi ficto nomine. Cuius consideratio cum propria sit grammaticorum, transferunt quidam ad dialecticam, sed non bene”.

37. Platonitas é mais difundida que socratitas. Os dois termos tiveram concorren-tes infelizes. Os dois primeiros – lentulitas et appietas – foram lançados por Cí-cero, para serem logo esquecidos – a não ser em uma retomada, tão tardia quanto isolada, em Thomas Hobbes. No século XII Richard de Saint-Victor introduz a danielitas, que terá ainda menos sucesso. Cf. M. Tulli Ciceronis Epistularum ad Familiares Liber Tertius. Ad Ap. Claudium Pulchrum, 3. 7, § 5: “Illud idem Pau-sania dicebat te dixisse:” quidni? Appius Lentulo, Lentulus Ampio processit ob-viam, Cicero Appio noluit?” quaeso, etiamne tu has ineptias, homo mea sententia

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neias 7, 17a38-b3, ele explica (1) que certas “qualidades”, como (a) humanidade, que são “comunicadas a várias [coisas]” apresentam-se ao mesmo tempo ‘como um todo para cada um e “como um todo para todas [tomadas em particular, mas “a todos/as aqueles/aquelas que participam da definição da humanidade”. Por outro lado, (3) um nome como ‘Platão’ remete o espírito “a uma só pessoa e a uma substância particular”, porque a proprietas (característica) de Platão é uma “qualidade singular, a platonidade (platonitas), incomunicável a qualquer outra substância”: “Plato enim unam ac definitam subs-tantiam proprietatemque demonstrat quae convenire in alium non potest” (Platão, com efeito, mostra uma só substancia e propriedade bem definida que não se pode encontrar em outro”).

A tese de Boécio é simples: um termo universal tomado parti-cularmente, como homo em aliquis homo, não tem relação com o um termo singular, como Plato. Tomado particularmente o univer-sal continua o universal. Platão, ao contrário, “não será jamais um universal”, porque “ele indica uma substância definida e uma pro-prietas” que não se pode encontrar senão em Platão. Vários homens podem portanto receber o nome de ‘Platão’ por “imposição”, isso não faz deste nome um universal. Neste caso, o nome é “comum” a vários, mas “a propriedade ou natureza” que ele designa, a saber, a de Platão-o-mestre-de-Sócrates, não o é. A humanidade é um universal, a platonidade não38. A oposição aqui introduzida é claramente on-

summa prudentia, multa etiam doctrina, plurimo rerum usu, addo urbanitatem, quae est virtus, ut Stoici rectissime putant? ullam Appietatem aut Lentulitatem valere apud me plus quam ornamenta virtutis existimas?”. Th. Hobbes (que teve que procurar muito!) retoma dos dois em seus Elements of philosophy, Part 1. Of logic, chap. 3, Of proposition.

38. Boécio, In Librum Aristotelis Peri Hermeneias II, ed. C. Meiser, Leipzig, 1880, p. 136, 1-137, 25: “Alia est enim qualitas singularis, ut Platonis uel Socratis, alia est quae communicata cum pluribus totam se singulis et omnibus praebet, ut est ipsa humanitas. est enim quaedam huiusmodi qualitas, quae et in singulis tota sit et in omnibus tota. Quotienscumque enim aliquid tale animo speculamur; non in unam quamcumque personam per nomen hoc mentis cogitatione deducimur,

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tológica: de um lado, a humanitas, “a qualidade comunicada a vários que se mostra por inteiro em cada um e por inteiro em todos” os ho-mens, qualidade cujo nome (nomen) não leva a ideia de uma pessoa particular, mas a todos os que participam de sua definição (i.e. a de humanidade); de outro, a qualidade “incomunicável” a uma plurali-dade não mais que à “uma outra subsistência”, a qualidade singular, que é “própria a um só”, a de Platão. Reconhece-se aqui o tema da comunicação dos idiomas – tão importante em teologia quanto em filosofia. É através deste idioma incomunicável que Boécio forja a palavra platonitas, a fim de designar o que “pertence a um só ho-mem, e não qualquer um, mas somente a Platão”. Enquanto a pa-lavra “humanidade” contém “a humanidade de Platão e de todos os outros homens, quaisquer que sejam”, a palavra “platonidade” con-vém apenas a um, Platão. É o que faz com que “ao enunciado da pa-lavra (vocabulum) ‘Platão’ o ouvinte pense numa só pessoa e em uma substância particular”, mas não quando ele ouve a palavra ‘homem’. Na distinção ontológica entre dois tipos de qualidade nas coisas – as comunicáveis e as incomunicáveis –, Boécio faz portanto correspon-

sed in omnes eos quicumque humanitatis definitione participant. unde fit ut haec quidem sit communis omnibus, illa uero prior incommunicabilis quidem cunc-tis, uni tamen propria. nam si nomen fingere liceret, illam singularem quandam qualitatem et incommunicabilem alicui alii subsistentiae suo ficto nomine nun-cuparem, ut clarior fieret forma propositi. age enim incommunicabilis Platonis illa proprietas Platonitas appelletur. eo enim modo qualitatem hanc Platonitatem ficto uocabulo nuncupare possimus, quomodo hominis qualitatem dicimus hu-manitatem. haec ergo Platonitas solius unius est hominis et hoc non cuiuslibet sed solius Platonis, humanitas uero et Platonis et caeterorum quicumque hoc uoca-bulo continentur. unde fit ut, quoniam Platonitas in unum conuenit Platonem, audientis animus Platonis uocabulum ad unam personam unamque particularem substantiam referat; cum autem audit hominem, ad plures quosque intellectum referat quoscumque humanitate contineri nouit. atque ideo quoniam humanitas et omnibus hominibus communis est et in singulis tota est (aequaliter enim cuncti homines retinent humanitatem sicut unus homo: si enim id ita non esset, nu-mquam specialis hominis definitio particularis hominis substantiae conueniret): quoniam igitur haec ita sunt, idcirco homo quidem dicitur uniuersale quiddam, ipsa uero Platonitas et Plato particulare.”

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der uma distinção entre dois tipos de termos ou substantivos, os uni-versais (comuns) e os singulares (próprios). Como define a qualidade incomunicável e singular? Por quatro características que atuam nos dois níveis ontológico e lingüístico: 1º. Ela convém apenas a uma única substância singular e particular; 2º. Ela é própria apenas a um só e não pertence senão a um único indivíduo determinado; 3º. Ela é particular como o próprio sujeito é particular (a platonidade é particular como Platão é particular); 4º. Os nomes correspondentes têm as mesmas características: ‘Platão e platonidade’ são particulares como Platão e a platonidade são particulares. A análise ontológica e a análise semântica (ou lógica) andam portanto claramente juntas: é o par Platão / ‘Platão’ que é singular, i.e., incomunicável / impredicá-vel com / de vários ou de um outro (contrariamente ao par homem / ‘homem’ que é universal, i.e. comunicável comunicável / predicável com / de muitos). Este conjunto de tese sobre a ontologia do indi-víduo que evidencia um componente “linguístico” integra a teoria lingüística porfiriana da imposição dos nomes. À objeção de que o nome ‘Platão’ poderia ser imposto a vários indivíduos – e portanto deixar de pensar em um só indivíduo caracterizado por uma proprie-dade ou qualidade determinada (a platonidade) –, Boécio responde que um nome pode parecer como “comum conforme o vocábulo” (uma expressão que Abelardo virá a explorar), mas a propriedade de Platão, “a que era propriedade ou natureza deste Platão discípulo de Sócrates, não convirá” jamais a um outro indivíduo, “mesmo se ele for chamado pelo mesmo vocábulo”. Como distinguir entre este homem e Platão, ao se supor que um indivíduo é constituído por um simples feixe de qualidades ou propriedades? Uma teoria realista, criticada por Abelardo, apresenta uma visão interessante, que consis-te em duas afirmações:

1) esse homem não é produzido pelo conjunto de suas proprie-dades acidentais, Sócrates, ao contrário o é;

2) Sócrates é produzido pelo conjunto de suas propriedades aci-dentais não enquanto homem mas enquanto Sócrates.

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Para os partidários desta teoria, a expressão hic homo (“este ho-mem”), dito de outra forma um universal afetado por um determi-nante ou demonstrativo, não nota nada além do homem tomado em sua essência pessoal (hominem in hac personali essentia), enquanto o nome próprio ‘Sócrates’ é designador de acidente, designativum aci-dentis. A teoria comporta três versões, que se distinguem conforme ‘Sócrates’ seja considerado como designador:

1 todos os acidentes de Sócrates, separáveis ou inseparáveis;

2 somente os acidentes inseparáveis de Sócrates;

3 uma forma própria, chamada “socracidade”.

A primeira versão é a teoria discutida pelo anônimo Strenuum negationem. Abelardo precisa o que os seus partidários respondem à argumentação da variação. Todos os acidentes de Sócrates, separáveis ou inseparáveis, estando compreendidos no nome ‘Sócrates’, sua tese é de que este nome foi imposto de tal modo que, a todo instante em que é proferido, ‘Sócrates’ significa todos os acidentes que Sócrates possui neste momento preciso. Pode-se aproximar esta teoria da noção aristotélica de “unidade / entidade acidental” ou de kooky object (no sentido de Gareth Matthews)39. Ela me parece estar presente nas dis-cussões contemporâneas sobre a interpretação da pessoa em termos de “complexos de tropos”40. Em qual senso pode-se dizer que uma

39. A saber a entidade/unidade accidental que é, por exemplo, Sócrates-sentado “that comes into existence when Socrates sits down and which passes away when Socrates ceases to be seated”. Cf. G. Matthews, “Accidental Unities”, in M. Scho-field, M. Nussbaum (ed. ), Language and Logos, Cambridge, 1982, p. 251-262.

40. Discussões que prolongam os debates sobre a definiçao lockeniana da pessoa fundada sobre a consciência e a memória (“a co-ciência faz a própria pessoa”). Cf. K. Trettin, “Persons and Other Trope Complexes. Reflections on Ontology and Normativity”, e-Journal Philosophie der Psychologie, juni 2005, p. 8: “On this scenario, Mary [um indivíduo constituído de tropes] is changing all the time, physically and mentally, in virtue of gaining or losing individual properties (tro-pes). In which sense then – if in any sense at all – can one speak about Mary’s personal identity? On the trope view, Mary obviously does not have a once and

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pessoa, considerada como um trope-complex – que estes tropos sejam puramente físicos, físico-mentais ou puramente mentais – continua a mesma pessoa ao longo do tempo, se ela não cessa de adquirir e de perder tropos ou propriedades individuais? A teoria criticada por Abelardo se comunica claramente com o problema da identidade diacrônica. Mas cada uma de suas teses abre um dossiê diferente:

(1) a significação de ‘Sócrates’ varia frequentemente, conforme a variação dos acidentes de Sócrates41.

(2) ‘socracidade’ designa a coleção total dos acidentes de Sócrates.

Aceitar a dupla variação ontológica e lingüística de Sócrates / ‘Sócrates’, é fazer de Sócrates um “complexo de tropos”, de ‘Sócrates’ um nomen collectivum e embarcar os dois no barco de Teseu. Fazer da qualidade própria de um indivíduo a coleção total de seus acidentes, é esboçar a tese leibniziana que afirma que todo indivíduo tem uma noção completa conhecida antecipadamente por Deus, que corres-

for all determined personal identity. Instead she is something like a plurality or ag-gregate of ‘identities’, which are temporally determined by the actual tropes which constitute the complex that is identical with ‘her’. Whenever a trope is gained, or a trope is lost (which is due to a certain sub-relation of ontological dependency – namely – causality), Mary changes her personal identity. All that she is depends on the tropes which constitute her, including eventually the tropes she memorises or anticipates.” Sobre este ponto, cf. A. de Libera, Archéologie du sujet, II, La Quête de l’identité, Paris, Vrin (Bibliothèque d’histoire de la philosophie), 2008.

41. Na teoria discutida por Abelardo, os acidentes têm quase o mesmo status que uma sombra individual, são, de alguma forma, propriedades intermitentes. O problema é que Sócrates não é um objeto intermitente, e que ele é, além disso, um objeto completo. A particularidade desta teoria é de constituir, sob a chefia da “socracidade” o objeto completo Sócrates a partir de um conjunto de propriedades que, sendo todas acidentais, são todas intermitentes ou suscetíveis de intermi-tências. Neste sentido, talvez não baste dizer que a socratidade é um “indivíduo composto”. A verdadeira questão é saber se o próprio Sócrates não se torna, por sua vez, um objeto intermitente. O que resta, de fato, de Sócrates, se a substancia-lidade se reduz, aliás, à essencialidade de uma só essência material, substância una e absoluta que a cada instante acidentam complexos individuais de propriedades intermitentes (a socracidade, a planonidade etc.)?

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ponde a “o que cada um chama de ‘si’”. Espera-se que o ponto (2) su-prima o escândalo ontológico / linguístico introduzido por (1). A noção da coleção total mereceria portanto uma investigação a parte tendo em vista este papel e...sua posteridade: um fio tênue liga o indivíduo segundo esta teoria leibniziana do individuum entendido como su-jeito que possui uma noção individual completamente determinada, capaz de fornecer por análise a razão de todos os seus atributos42. Está na hora de concluir. Dizíamos ao começar: “universal e singu-lar são contrários, mesmo contraditórios. Uma coisa, digamos uma substância, é universal ou singular. Ela não pode ser os dois ao mes-mo tempo. O particular não passa pelo universal. O universal não passa pelo particular”. Um simples sobrevôo da literatura filosófica do século XII mostra totalmente o contrário. Em razão disso, a fonte principal de todas as discussões da Alta Idade Média sobre os uni-versais, Boécio, sustenta uma teoria do “sujeito único” do particular e do universal (PL 64, 85C4-D4), afirmando que é uma mesma coisa x particular e universal, esta própria teoria completada por uma te-oria do “sujeito único” da sensação e da intelecção, que afirma que a mesma coisa x é ao mesmo tempo o sujeito da sensação, que percebe x com as condições sensíveis que fazem de x uma coisa particular (i.e. um x: x1 ou x2 ou x3...ou xn) e o sujeito do pensamento que percebe x sem estas condições, i.e. como o que é predicável de todos os ‘x’.

Uma das duas teorias criticadas no De Generibus et Speciebus suscita a ideia de sujeito único até a afirmação de que não há es-sências universais, e que os indivíduos diversamente considerados são eles próprios as espécies, os gêneros subordinados e os gêneros mais gerais. Esta teoria, conhecida sob o título de “segunda teoria da coleção”, atribuída hoje a Gauthier de Mortagne († 1174), é aspe-ramente discutida por Abelardo. Jean de Salisbury descreve assim a tese dos partidários de Gauthier:

42. Cf. G. W. Leibniz, Lettre à Arnaud, 23 março 1690, G II, p. 136.

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Partiuntur [... ] status43, duce Gautero de Mauritania, et Platonem in eo quod Plato dicunt individuum, in eo quod homo, speciem, in eo quod animal, genus, sed subalternum, in eo quod substantia, generalissimum.

A substância, sendo definida como gênero supremo na Árvore de Porfírio, a divisão real do gênero substância conforme uma ordem descendente fornece os momentos lógicos da inserção do indivíduo na ordem ascendente das denominações. Deste ponto de vista, como substância, todo indivíduo é gênero supremo. Isso nos leva à segunda tese sobre o universal de Alain Badiou: “todo universal é singular, ou é uma singularidade”. Eu disse ao começar que esta afirmação estava bem atestada na Idade Média. Mas quais são as teses que correspon-dem em realidade a esta formulação? Eu me contentaria em evocar aqui duas, bem diferentes uma da outra, para não dizer opostas.

A primeira foi fornecida, entre os séculos XI e XII, pelo tólogo Odon de Cambrai44 no seu tratado sobre o pecado original: “Est […] omnis essentia singularis, tam individua quam universalis”, “Toda essência é singular, seja ela individual ou universal”45. Como? Tanto a essência individual quanto a essência universal têm uma singularida-

43. Os partidários de Gauthier “dividem o status”, dito de outro modo – e litera-lemente – os estados de coisa (a Sachlage ou Sachverhalt de Husserl): Platão en-quanto Platão tem status: indivíduo; como homem: espécie; como animal: gênero subordinado; como substância: gênero supremo (generalíssimo). Abelardo utiliza igualmente a palavra status, que designa nele não o Homem (ou homem comum de Porfírio, depois dos realistas), mas o esse hominem. Sobre tudo isso, ver o capí-tulo sobre Abelardo de L’Art des généralités.

44. Sobre tudo isso, cf. C. Erismann, “Singularitas. Éléments pour l’histoire du concept: la contribution d’Odon de Cambrai” , in J. Meirinhos & O. Weijers (ed.), Florilegium medievale. Études offertes à Jacqueline Hamesse à l’occasion de son éméritat, Louvain-la-Neuve, 2009, s. p. Sur Odon de Cambrai (aliás de Tour-nai), cf. I. M. Resnick, “Odo of Tournai, the Phoenix, and the Problem of Univer-sals”, Journal of the History of Philosophy, Volume 35/ 3, July 1997, p. 355-374.

45. O texto foi publicado na PL 160, col. 1071-1102. Sobre o problema, cf. I. M. Resnick, On Original Sin and a Disputation with the Jew, Leo, Concerning the Advent of Christ, the Son of God, Philadelphie, 1994.

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de que lhes é própria pela qual é inspecionada separadamente das ou-tras: “utpote habens essentiae suae singularitatem qua sigillatim ins-picitur ab aliis” - tese da platonidade discutida por Petrus Hispanus Non-Papa. De onde, temos a regra que estipula que “todo indivíduo é singular, mas nem todo singular é individual (“Et sic individuum omne singulare; non autem omne singulare individuum”). Nem todo singular é individual é uma tese, à primeira vista, mais descon-certante do que todo universal é singular. Ela não é menos sensata. Poder ser inspecionado separadamente, sigillatim, isto é, discernido de outros, de todos os outros, eis o que faz o singular: “Singular se diz em verdade do que se deixa discernir de todos os outros por uma certa propriedade” (“Singulare vero dicitur, quod aliqua proprietate discernitur ab omnibus aliis”). Esta distinção, esta discernibilidade, essa discrição caracteriza tudo o que é, tudo o que é real, tudo o que é alguma coisa; não se a encontra somente nos indivíduos, mas nos universais: “Haec autem uniuscuiusque rei discretio ab aliis omni-bus, non tantum in individuis est, sed et in universalibus”. Com efeito, todos os universais têm propriedades que os distinguem dos outros, certamente não por ou para a sensação, mas por ou para a razão: “Habent enim et universalia suas proprietates, quibus etsi non sensu ratione tamen discernuntur ab aliis”. “A razão de fato percebe” ou “ela também compreende a natureza dos universais pela força de sua sagacidade, e ela os distingue uns dos outros e os distingue dos indivíduos”, o que faz com que, “ainda que sejam comuns, os universais tenha certa singularidade de ou em sua essência, como os indivíduos”46. Uma essência universal singular não é um absurdo. Ma espécie é universal enquanto for predicada de vários indivíduos e singular enquanto se distinguir de todas as outras espécies subor-dinadas ao mesmo gênero e, além disso, de todo o resto, mesmo que se trate de espécies subordinadas a todos os outros gêneros, gêneros eles mesmos e indivíduos: ab omnibus aliis.

46. “Ratio namque naturam universalium vi suae sagacitatis et capit, et ab invicem et ab individuis discernit, ut, quamvis sint communia suae tamen essentiae singu-laritatem quamdam habeant, sicut individua.”

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Completamente diferente é, no século XIV, a tese de Guilaume d’Ockham, que também sustenta que o universal é singular. Mais exatamente, Ockham explica que singular se toma em dois sentidos: primeiramente por tudo o que é um e não vários; e neste caso, se sustentamos que um universal é uma certa qualidade ou uma afec-ção do espírito, predicável de vários, como signo, todo universal é verdadeiramente e realmente singular – porque da mesma forma que todo signo vocal comum a uma pluralidade de referentes por insti-tuição é verdadeira e realmente um em número, toda intenção, todo conceito, da alma, que significa muitas coisas extramentais é real e verdadeiramente singular e numericamente um, porque é uma coisa e não várias coisas, mesmo se significa muitas coisas47. Se, ao contrá-rio, singular é tomado por tudo o que é um e não vários, e também não é destinado a ser o signo de muitas coisas, nenhum universal é singular, “já que todo universal é”, isto é, não é nada senão o que é “naturalmente apto a ser o signo de várias coisas e a ser predicado de várias coisas”. Disso Ockham infere que nada é universal, se, como muitos o fazem, entende-se por universal qualquer coisa que não é numericamente um48. Esta tese se toma literalmente: nada é univer-

47. “Est autem primo sciendum quod ‘singulare’ dupliciter accipitur. Uno modo hoc nomen ‘singulare’ significat omne illud quod est unum et non plura. Et isto modo tenentes quod uniuersale est quaedam qualitas mentis praedicabilis de pluri-bus, non tamen pro se sed pro illis pluribus, dicere habent quod quodlibet uniuersa-le est uere et realiter singulare: quia sicut quaelibet uox, quantumcumque communis per institutionem, est uere et realiter singularis et una numero quia est una et non plures, ita intentio animae, significans plures res extra, est uere et realiter singularis et una numero, quia est una et non plures res, quamuis significet plures res”.

48. Guillaume d’Ockham, Summa logicae (Suma sobre a lógica), trad. J. Biard, Mauvezin, Edições T. E. R, 1988, p. 50: “Aliter accipitur hoc nomen ‘singulare’ pro omni illo quod est unum et non plura, nec est natum esse signum plurium. Et sic accipiendo ‘singulare’ nullum uniuersale est singulare, quia quodlibet uniuer-sale natum est esse signum plurium et natum est praedicari de pluribus. Unde uocando uniuersale aliquid quod non est unum numero, – quam acceptionem multi attribuunt uniuersali –, dico quod nihil est uniuersale nisi forte abuteris isto uocabulo, dicendo populum esse unum uniuersale, quia non est unum sed multa; sed illud puerile esset”.

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sal significa nada existe que não seja numericamente um – o que torna a dizer que tudo o que é é singular. Tese que se verifica para o uni-versal que existe: todo universal é uma coisa singular: somente existe universal semântico, por significação, no sentido preciso de que o universal é um signo, um signo de vários: “Dicendum est igitur quod quodlibet uniuersale est una res singularis, et ideo non est uniuersale nisi per significationem, quia est signum plurium”.

Esta teoria, Ockham a situa sob a autoridade de um filósofo. Não Aristóteles, nem Boécio. Mas Avicena. Uma forma mental, uma for-ma na alma, está ligada a uma multiplicidade, neste sentido ela é um universal, porque o universal é uma intenção no intelecto, cuja com-paração, isto é, a relação a seus “relata”, não varia, qualquer que seja o que consideremos entre eles”; uma tal forma, que é universal compara-da aos seus indivíduos, é individual quando à alma singular onde está impressa, uma vez que faz parte das formas imanentes ao intelecto49.

A tese de Avicena é assim apresentada por Ockham como estri-tamente equivalente à sua. O que o filósofo quer dizer, que se diz na época “árabe”, é que o universal é uma “intenção singular da alma”, naturalmente apta a ser predicada de muitos, e que do fato de ela ser naturalmente apta a ser predicada de muitos ela é dita universal, enquanto que do fato de ser uma forma existente realmente no inte-lecto ela é dita singular. E é assim, portanto, que “singular!” dito no primeiro sentido se predica do universal, mas não no segundo.

Vult dicere quod uniuersale est una intentio singularis ipsius ani-mae, nata praedicari de pluribus, ita quod propter hoc quod est nata praedicari de pluribus, non pro se sed pro illis pluribus, ipsa dicitur uniuersalis; propter hoc autem quod est una forma, exsis-

49. « Et hoc est quod dicit Auicenna, V Metaphysicae: “Una forma apud intel-lectum est relata ad multitudinem, et secundum hunc respectum est uniuersa-le, quoniam ipsum est intentio in intellectu, cuius comparatio non uariatur ad quodcumque acceperis”. Et sequitur: “Haec forma, quamuis in comparatione indiuiduorum sit uniuersalis, tamen in comparatione animae singularis, in qua imprimitur, est indiuidua. Ipsa enim est una ex formis quae sunt in intellectu”.

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tens realiter in intellectu, dicitur singularis. Et ita ‘singulare’ pri-mo modo dictum praedicatur de uniuersali, non tamen secundo modo dictum50.

Haveria ainda muito a dizer. A tese de Ockham foi, de fato, apaixonadamente discutida. Com efeito, afirmar que o universal é singular torna a dizer, viu-se, que nada é universal. Isto talvez suprima um problema, o do universal, mas isso não resolve o do singular. Mais difícil que o problema dos universais, que ele não tratou no Isagoge, é o problema que Porfírio nos legou ao definir o indivíduo. É filosoficamente razoável sustentar, com uma parte da tradição porfiroboeciana, que o indivíduo é essencialmente consti-tuído como indivíduo por uma coleção de propriedades acidentais que, além disso, seriam significadas por um nome como ‘Sócrates’ ou ‘Platão’? Podemo-nos satisfazer com uma tese como a de Abelar-do, para quem dizer que o indivíduo é constituído de propriedades equivale somente a dizer “que ele tem naturalmente tantos nomes de propriedades quanto nomes que não podem se adaptar a ne-nhum outro simultaneamente por predicação” (“habere naturaliter

50. E Ockham prossegue: “… ad modum quo dicimus quod sol est causa uniuer-salis, et tamen uere est res particularis et singularis, et per consequens uere est causa singularis et particularis. Dicitur enim sol causa uniuersalis, quia est causa plurium, scilicet omnium istorum inferiorum generabilium et corruptibilium. Di-citur autem causa particularis, quia est una causa et non plures causae. Sic intentio animae dicitur uniuersalis, quia est signum praedicabile de pluribus; et dicitur etiam singularis, quia est una res et non plures res”. O universal é portanto duplo: natural e convencional, mas, nos dois casos, trata-se de um símbolo. “Verumta-men sciendum quod uniuersale duplex est. Quoddam est uniuersale naturaliter, quod scilicet naturaliter est signum praedicabile de pluribus, ad modum, propor-tionaliter, quo fumus naturaliter significat ignem et gemitus infirmi dolorem et risus interiorem laetitiam. Et tale uniuersale non est nisi intentio animae, ita quod nulla substantia extra animam nec aliquod accidens extra animam est tale uniuer-sale. Et de tali uniuersali loquar in sequentibus capitulis. Aliud est uniuersale per uoluntariam institutionem. Et sic uox prolata, quae est uere una qualitas numero, est uniuersalis, quia scilicet est signum uoluntarie institutum ad significandum plura. Unde sicut uox dicitur communis, ita potest dici uniuersalis; sed hoc non habet ex natura rei sed ex placito instituentium tantum”.

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tot proprietatum nomina, quae nulli alii simul per praedicationem aptari queant”) e que isso basta para o distinguir dos outros? Parece--me que a questão não está bem distinta. Dito de outro modo: que se possa ainda argumentar a favor ou contra uma tese sustentando que a diferenciação entre indivíduos se faz “do ponto de vista das no-minações, não quanto ao da natureza real” (natura rerum). Filosofia e história da filosofia aqui se encontram.

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43Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 43-64, jul./dez. 2012

ÉtIEnnE gILSOn E a

CIRCuLaRIDaDE Da MEtaFíSICa tOMISta

Sergio de Souza Salles*

Resumo: A demonstração filosófica da noção tomista de ser tem sido objeto de controvérsia entre os estudiosos de Tomás de Aquino. Dentre os que se opõem à possibilidade da demonstração do ser como ato de ser (actus essendi), encontra-se Étienne Gilson (1884-1978). Neste artigo, pretende-se apresentar uma alternativa metodológica ao suposto círculo vicioso presente nos argumentos de Tomás de Aquino em favor da descoberta do ser como ato de ser (actus essendi).

Palavras-chave: Tomás de Aquino, Étienne Gilson, ser, círculo vicioso.

abstract: The philosophical demonstration of thomistic notion of being has been the subject of controversy among scholars. Étien-ne Gilson (1884-1978) is among those scholars opposed to the possibility of demonstration of being as act of being (actus essendi). In this article, we intend to present a methodological alternative to the supposed vicious circle present in Aquinas’ arguments in favor of the discovery of being as act of being (actus essendi).

Keywords: Thomas Aquinas, Étienne Gilson, being, vicious circle.

* Doutor em Filosofia pela PUC-RJ; Coordenador Adjunto do Mestrado em Direito da Universidade Católica de Petrópolis. E-mail: [email protected]

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44 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 2, p. 43-64, jul./dez. 2012

SErgio dE Souza SallEs

Introdução

A possibilidade de uma demonstração filosófica da noção pro-priamente tomista de ser (esse) tem sido objeto de controvérsias en-tre os tomistas. Contextos como o do capítulo quarto do De Ente et Essentia, bem como o do primeiro artigo da segunda questão do De Potentia favorecem a interpretação apriorística da distinção entre essentia e esse nos entes finitos, já que as premissas dos argu-mentos propostos por Tomás de Aquino são estruturadas a partir da comparação entre o ser, cuja essência é idêntica ao seu próprio ser (ou seja, Deus), e os demais entes, nos quais o ato de ser não é idêntico à essência. Ao supor em termos comparativos a dis-tinção que, em princípio, deveria ser objeto de demonstração, o argumento proposto pelo Aquinate parece ser problemático.

Dentre os principais intérpretes da metafísica de Tomás de Aqui-no, Étienne Gilson1 procurou evitar a problemática demonstração da distinção entre ser e essência nos entes, defendendo a indemonstra-bilidade da noção tomista de ser (esse). Com efeito, segundo Gilson, a metafísica de Tomás “pressupõe a presença ao espírito da noção primeira do ser como tal, ipsum esse, ipsum purum esse”2.

O autor de L’être et l’essence observa, aliás, que a maioria dos teólogos e filósofos medievais recusaram a composição do ser finito, que resulta da noção tomista de ser como ato em relação à essência. A título de exemplo, cita João Duns Escoto que nega absolutamen-te a diversidade de ser e essência nos entes finitos, com as seguintes palavras: “simpliciter falsum est quod esse sit aliud ab essentia”3. A partir da ponderação sobre a histórica controvérsia em torno da

1. Para uma introdução ao pensamento de Étienne Gilson, confira: MONDIN, B. La Metafisica di S. Tommaso d’Aquino e i suoi interpreti. Bologna: ESD, 2000, p. 74-86.

2. GILSON, Étienne. L’être e l’essence. Paris: J. Vrin, 2000, p. 385. Semelhante interpretação é apresentada em outra obra: “La notion première d’être, avant toute autre, est pour la métaphysique un donné, à la fois appréhendé comme tel et éclairé de la lumière de Qui Est, cause de tout intellect comme de tout intelligibile” (GIL-SON. Introduction a la philosophie chrétienne. Paris: J. Vrin, 1960, p. 123).

3. Cf. GILSON. Introduction a la philosophie chrétienne. Paris: J. Vrin, 1960, p. 123.

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composição de ser e essência (esse et essentia) nos entes finitos, con-clui Gilson sua principal obra de metafísica nos seguintes termos:

Eis uma grande lição de modéstia para os filósofos e teólogos. A tese sobre a qual repousa toda a metafísica do ser é qualquer coisa de simplesmente falso, segundo Duns Escoto. O mais ex-traordinário é que esta tese não é nem refutável nem demons-trável, porque ela pertence à ordem dos princípios, os quais só se podem ver ou não ver4.

No entanto, se a tese sobre a qual se sustenta toda a metafísica tomista não é demonstrável, nem refutável, porque pertence à or-dem dos princípios, como explicar que o próprio Tomás elabore argumentos em favor da composição e distinção de ser e essência nos entes? Para Étienne Gilson, estes argumentos não são demons-trativos senão sob certas condições, a saber: 1) pela pressuposição da existência de Deus5; 2) pela pressuposição da criação dos entes6; 3) pela suposição da noção tomista de ipsum purum esse7.

4. “Voilà une grande leçon de modestie pour les philosophes et théologiens. La thèse sur laquelle repose toute la métaphysique thomiste de l’être est quelque cho-se de simplement faux, selon Duns Scot. Le plus remarquable est que cette thèse n’est ni réfutable ni démontrable, parce qu’elle appartient à l’ordre des principes, qu’on ne peut que voir ou ne pas voir” (GILSON. L’être e l’essence, 2000, p. 385).

5. Após considerar o segundo argumento do De ente et essentia (c. 4) a favor da distinção entre ser e essência nos entes que não são o seu próprio ser, pondera Gilson: “La valeur de l’argument dépend docentièrement de celle d’une certaine notion de Dieu à laquelle, quelle qu’en soit la valeur réelle, beaucoup de théolo-giens, dont certains furent des saints, semblent n’avoir jamais pensé” (GILSON. Introduction a la philosophie chrétienne, 1960, p. 101).

6. Ao se referir ao primeiro argumento do De ente et essentia (c. 4), referente à intelecção da essência (intellectus essentiae), Gilson observa que: “L’argument est irréfutable, mais que prouve-t-il? D’abord que l’être actuel n’est pas inclus dans la notion de l’essence. (...) Pour qu’une essence passe du possible à l’être, il faut donc qu’une cause extérieure lui confère existence actuelle. (...). N’etant pas à soi-même la causa de sa propre existence, l’être fini doit la tenir d’une cause supérieure, qui est Dieu. En ce sens, ce que l’on nomme distinction d’essence et d’être signifie simplement que tout être fini est un être créé” (GILSON. Introduction a la phi-losophie chrétienne, 1960, p. 99).

7. Tendo considerado todos os argumentos do quarto capítulo do De ente et essentia, conclui Gilson: “Ces raisons, et toutes celles du même genre, ont ceci de commum qu’elles supposent déjá conçue la notion d’être entendue au sens, non pas de l’étant (ens, habens esse, ce qui est), mais bien de l’acte d’être (esse) qui, composant avec l’essence, en fait précisément un étant, un habens esse. Or, dès qu’on a conçu cette notion proprement thomist d’esse, il n’y a plus de problème, il ne reste plus rien à démontrer” (GILSON. Introduction a la philosophie chrétienne, 1960, p. 103).

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Estabelecidas todas estas pressuposições como verdadeiras, em especial a terceira que é exclusiva de Tomás, obtém-se, segundo Gil-son, o que os filósofos chamam de demonstração da distinção real entre essência e ser nos entes finitos. Tudo passa a depender, portan-to, da noção tomista de Deus como ipsum esse, posto que pensar o purum esse é nada mais do que pensar o próprio Deus8.

Se a interpretação de Gilson está correta, então todos os ar-gumentos de Tomás de Aquino em favor da distinção e composição de essência e ser nos entes não passam de círculos viciosos. Esta consequência é explicitamente reconhecida pelo próprio Gilson, nos seguintes termos:

Vemo-nos aparentemente colocados em uma espécie de dialéti-ca, em que os dois termos re-enviam um ao outro perpetuamen-te: Deus é o ser puro, porque, se a essência fosse nele distinta do ser, ele seria um ser finito, e não Deus; inversamente, a essência do ser finito é outra em relação ao seu ser, porque, se sua es-sentia fosse idêntica ao seu esse, este ser seria infinito, seria Deus. (...); como faria [a Igreja] esta escolha [por Tomás] se a doutrina repousa no fim das contas sobre um círculo vicioso?9

O que chama a atenção na interpretação gilsoniana não é so-mente a constatação do caráter circular dos argumentos favoráveis à distinção entre essentia et esse nos entes criados, os quais me-ramente supõem como dada a existência de Deus como ipsum purum esse e o esse finitum como criado, mas, sobretudo, a tentativa de justificar este modo de proceder como um método realmente metafísico, fundado na intuição indemonstrável de princípios au-toevidentes.

Como diz Gilson, se a metafísica é ciência na medida em que parte de princípios autoevidentes, sua tarefa deve consistir numa

8. “Penser l’esse pur, c’est penser Dieu. (...) Tout dépend donc ici de la notion thomiste de Dieu” (GILSON. Introduction a la philosophie chrétienne, 1960, p. 103, 108).

9. GILSON. Introduction a la philosophie chrétienne, p. 109-110.

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meditação frequente destes mesmos princípios que servem de base à dedução das conclusões10. Nesse sentido, a metafísica tomista repousaria numa intuição original, fruto da meditação sobre o nome de Deus, tal como exposto no Êxodo (3,14). A partir da pré-via aceitação de Deus como aquele que é, o metafísico procederia à dedução de uma série de corolários sobre os entes, sempre em con-sonância com o pressuposto indemonstrável do ipsum esse. Assim compreendida, a metafísica desenvolver-se-ia por uma via sintética e dedutiva por definição. Em suma, a filosofia do ser de Tomás de Aquino pressuporia uma visão ou meditação essencialmente teoló-gica. Eis a principal razão para Tomás de Aquino preferir, segundo Gilson, as demonstrações segundo a ordem adequada ao ensino e à exposição teológica, ao invés da ordem propriamente filosófica.

O que Étienne Gilson parece não levar em consideração é jus-tamente a complementariedade entre o método resolutivo e o com-positivo na metafísica do Aquinate, cujo círculo não é logicamente vicioso e cujas premissas não dependem necessariamente da afirma-ção de Deus como ipsum esse subsistens.

Se é verdade que em grande parte da obra de Tomás de Aquino a tese da distinção e composição de essentia et esse é estabelecida em contraposição a Deus, cuja essência é seu próprio ser, isso cor-responde às exigências do método sintético- compositivo utilizado pelo teólogo de Aquino. Não obstante, não é menos verdade que o filósofo de Aquino consagra diversos argumentos nos quais procura demonstrar a distinção e composição de essentia et esse segundo uma ordem de descoberta propriamente filosófica, conforme o método analítico-resolutivo de sua metafísica11.

10. “La métaphysique est donc science, à partir du point où, s’étant saisie du prin-cipe, elle commence d’en déduire les conséquences” (GILSON. Introduction a la philosophie chrétienne, 1960, p. 103).

11. Sobre a natureza resolutiva e compositiva do método metafísico de Tomás de Aquino, confira: SALLES, Sergio S. Análise e síntese em Tomás de Aquino. Petrópolis: UCP, 2009.

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A complementaridade e circularidade desses métodos permi-tem entender o que pertence ou não à ordem da descoberta filosó-fica, independentemente da revelação.

É sobre a existência e natureza das demonstrações filosóficas da composição e distinção entre essência e ser nos entes finitos que é preciso se deter. Com efeito, deve ser ainda objeto de discussão se a tese da composição e distinção de essentia et esse nos entes pres-supõe ou não a noção intensiva de ser; e, além disso, se pressupõe ou não a existência de Deus e a doutrina da criação dos entes. Para os fins desse artigo, importa saber se a tese da não-identidade de essência (natureza) e ser (ato de ser) nos entes naturais ou materiais é demonstrável filosoficamente para Tomás de Aquino. Em caso afirmativo, a metafísica tomista desenvolve-se segundo uma ordem autêntica de descoberta filosófica, independente de qualquer pres-suposto (teológico) ou intuição (filosófica) indemonstrável. Ade-mais, tal ordem de descoberta deve evitar qualquer círculo vicioso, embora conserve a circularidade que é própria a toda investi-gação racional12.

Para tanto, pretende-se evidenciar que há, em Tomás de Aqui-no, uma via de resolução (secundum rationem) de todas as compo-sições dos entes na composição originária de ser (actus essendi) e essência (essentia), que não pressupõe a tese do ipsum esse subsistens. Se a leitura aqui proposta da descoberta resolutiva do ser através

12. Para Tomás de Aquino, há na investigação racional uma circularidade intrín-seca, porém, não viciosa. Na medida em que compreende a investigação racional como a busca das causas, Tomás de Aquino sustenta que há um movimento dis-cursivo do(s) efeito(s) à(s) causa(s) e outro que vai da(s) causa(s) ao(s) efeito(s). Essa dupla via da causalidade pertence ao esquema da via de resolução (via re-solutionis) e da via de composição (via compositionis). Ambas, portanto, fazem parte do que o próprio Tomás de Aquino denominará “circularidade da razão”, expressão inspirada em Dionísio Areopagita, que denota antes de tudo a relação entre a razão e o intelecto (ratio et intellectus), ou ainda, entre a via do juízo (via iudicii) e a via de invenção (via inventionis).

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do De Ente et Essentia e das Quaestiones Disputatae De Potentia13

estiver correta, então a distinção entre essência e ser nos entes não pressupõe necessariamente a aceitação da existência de Deus, nem o assentimento prévio à doutrina da criação dos entes, como su-geriu Étienne Gilson.

1. a descoberta resolutiva do ser no De ente et Essentia

No quarto capítulo do De ente et essentia (ca. 1252-1256), que serve de base à interpretação gilsoniana, Tomás investiga de que modo a essência está nas substâncias separadas, isto é, na alma, nas inteligên-cias separadas e na causa primeira. Após considerar que até mesmo as inteligências (substâncias ou formas) sem matéria são compostas, ou seja, possuem potência (habent premixtionem potentiae), Tomás procu-ra demonstrar a natureza desta composição nos entes que são simples quanto à forma ou essência a partir da demonstração da distinção en-tre ser e essência na ordem do ente enquanto tal14.

Em outros termos, até mesmo os entes cujas essências não são compostas de forma e matéria são compostos em razão de algum grau de potencialidade. Ora, se assim é, ainda que simples quan-to à forma ou essência, há de haver outra ordem de composição real no ente enquanto tal, não mais restrita à ordem essencial de composição entre matéria e forma. Esta ordem de composição é aquela que Tomás procura demonstrar resolutivamente15 como relativa à união entre essência e ser nos entes.

13. A escolha do De Ente et Essentia e do De Potentia não pressupõe aqui que a descoberta resolutiva do ser em Tomás de Aquino circunscreva-se a tais obras.

14. “Huismodi ergo substantiae quamvis sint formae tantum sine materia, non tamen in eis est omnimoda simplicitas, ut sint actus purus, sed habent premixtio-noem potentiae” (TOMÁS DE AQUINO. De ente et essentia, c. 4, n. 52).

15. Os argumentos que demonstram a composição de essência e ser nos entes são resolutivos secundum rationem, porque possuem como termo último o que é universal e comum a todos os entes enquanto tais, e como ponto de partida o que é mais evidente para nós, a composição de ato e potência nos entes sujeitos ao movimento.

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O argumento exposto aqui em favor da distinção entre es-sência e ser, segundo De Finance, é a maneira mais didática en-contrada por Tomás de Aquino no início de sua carreira16. O argu-mento principia com a premissa maior, segundo a qual tudo o que não pertence à noção de essência ou quididade lhe é acrescentado extrinsecamente, e estabelece composição com a essência. A razão oferecida por Tomás para a aceitação desta premissa consiste em que nenhuma essência pode ser concebida sem tudo aquilo que lhe é próprio. Com isso, tudo o que não é concebido ao se entender a essência não faz parte necessariamente dela, mas lhe é acrescentado extrinsecamente, fazendo com ela composição17.

A premissa menor do argumento sustenta que toda essência ou quididade pode ser concebida sem que algo do seu próprio ser o seja. A razão disso, esclarece Tomás, evidencia-se pelo fato de o homem poder conhecer o que é o homem ou a fênix, ignorando, ao mesmo tempo, se os mesmos têm ser na natureza das coisas (an habeat esse in rerum natura). Ora, se é possível conceber a essên-cia ou quididade do ente sem conceber ao mesmo tempo o seu ser (esse), então o esse não faz parte propriamente da essência, ou seja, é outro em relação à essência (esse est aliud ab essentia), sendo-lhe acrescentado extrinsecamente por uma certa composição.

O argumento faz ainda uma importante ressalva em sua con-clusão que excetua, a título hipotético (nisi forte), aquele caso no qual haja alguma coisa (res) cuja quididade ou essência seja o seu próprio ser (ipsum suum esse)18. A importância desta observação re-side, em primeiro lugar, em seu caráter hipotético (nisi forte), ou seja, Tomás não está supondo a existência real deste ser como

16. DE FINANCE, Joseph. Être et agir, 1960, p. 98.

17. TOMÁS DE AQUINO. De ente et essentia, c. 4, n. 52.

18.“Ergo patet quod esse est aliud ab essentia vel quidditate, nisi forte sit aliqua res cuius quidditas sit ipsum suum esse” (TOMÁS DE AQUINO. De ente et essentia, c. 4, n. 52).

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condição para a validação do próprio argumento que pretende jus-tificar a distinção entre essência e ser nos entes.

Em outras palavras, como o raciocínio conduz à afirmação se-gundo a qual os entes possuem o ser distinto da essência (esse est aliud ab essentia), Tomás se apressa em observar que poderia haver neste caso uma exceção: a do ser cuja essência é idêntica ao seu ser (res cuius quidditas sit ipsum suum esse). Sobre esta possibilidade Tomás concentrar-se-á em seguida.

A validade deste raciocínio desenvolvido por Tomás no início de seu itinerário intelectual, quando não é absolutamente rejeitada, é deixada como uma questão em aberto19. Entretanto, o realismo epistemológico de Tomás de Aquino implica que não é a essência concebida à base do discernimento da realidade da essência nos en-tes concretos, mas sim o contrário, ou seja, é a realidade da essência que, ao ser concebida, nos informa que a mesma não inclui em suas notas fundamentais o ser (esse).

É por essa razão que Tomás esclarece a premissa maior do argumento, dizendo que nenhuma essência pode ser concebida sem tudo aquilo que é propriamente da sua parte. Ora, a razão para que a essência não possa ser concebida senão com tudo o que é real-mente e propriamente parte de si mesma reside em última instância na própria realidade da essência e não no nosso modo de concebê--la. Por conseguinte, se o ser fizesse parte da própria essência, a conheceríamos como sendo, ou melhor, como possuindo ser essen-cialmente no próprio ato de simples apreensão. Em outros termos, é porque a essência é distinta do ser que nós a inteligimos de certo modo (distinguindo do esse in actu), e não o contrário. Por essa razão, Tomás pode partir do nosso modo de conhecer para o ser,

19. “Whether or not Thomas himself would have wished it to be presented as a valid argument in its own right for anything more than a conceptual distinction remains, in my opinion, an open question” (WIPPEL, John. The Metaphysical Thought of Thomas Aquinas: from finite being to uncreated being, 2000, p. 143).

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sem que isto implique em priorizar a ordem do conhecer sobre o ser, nem em assumir uma distinção meramente intelectual como critério de determinação das distinções reais.

Ainda que a validade do argumento resida no realismo episte-mológico de seu autor, Tomás não se contenta somente com esta primeira justificação da composição de essência e ser nos entes. Em seguida, trata de investigar a hipótese sugerida ao final do primeiro argumento sobre a existência de uma realidade cuja quididade ou essência seja o seu próprio ser. É neste contexto que Tomás introduz e desenvolve um novo argumento que complementa o anterior e será recorrente em sua obra, inclusive no De Potentia.

A originalidade deste argumento consiste na tese segundo a qual é impossível que haja mais de um ser cuja essência seja idêntica ao seu próprio ser, ou seja, todos os seres, com exceção do ser tão-somente ser (esse tantum) são compostos de esse mais um princípio receptivo e multiplicador do ser. Com efeito, se talvez (forte) existisse um ser cuja essência fosse seu próprio ser, então o mesmo seria necessariamente único e primeiro20.

Tomás de Aquino procura justificar a tese da unicidade do ser, cuja essência é idêntica ao seu próprio ser, explicando que lhe é impossível multiplicar-se. A razão alegada consiste em que a multiplicidade de uma coisa pode ocorrer de três modos, cor-respondentes a três tipos de composição: 1) pela adição de alguma diferença (como ocorre a multiplicação da natureza genérica nas espécies); 2) pela recepção da forma em diversas matérias (como se dá na multiplicação da natureza específica nos diversos indivíduos); 3) pela recepção em outro do que é uno e absoluto em si mesmo. Esta terceira possibilidade é exemplificada de modo hipotético, a saber: se houvesse o calor separado (absoluto), o mesmo seria dis-

20. “(...) nisi forte sit aliqua res cuius quidditas sit ipsum suum esse. Et haec res non potest esse nisi una et prima (...)” (TOMÁS DE AQUINO. De ente et essentia, c. 4, n. 52-53).

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tinto do calor não separado (não absoluto), em virtude da própria separação21.

Dadas estas três possibilidades de multiplicação, resta saber se a coisa que é tão somente o seu próprio ser (esse tantum) pode ou não ser multiplicada. Ora, se tal ser é tão-somente ser (esse tantum), o mesmo não pode ser multiplicado pelo primeiro modo, ou seja, por acréscimo de alguma diferença. Afinal, se, por hipótese, o ser tão- somente ser (esse tantum) recebesse acréscimo de algu-ma diferença, o mesmo não seria tão-somente ser (non esset esse tantum), mas sim um ser mais alguma forma acrescida (sed esse et praeter hoc forma aliqua)22. Em outros termos, a hipótese de um ser tão-somente ser exclui qualquer possibilidade de acréscimo de algo ou de alguma forma além (praeter) do próprio ser23.

Tampouco tal ser tão-somente ser poderia ser multiplicado pelo segundo modo, ou seja, pela recepção da forma em diversas matérias, que também se comportariam como algo diverso do ser (esse)24. Tomás, porém, não tece nenhum comentário sobre o ter-ceiro modo de multiplicação, o que parece ser evidente. Com efeito, supor a multiplicação do esse tantum pela recepção em outra

21. “(…) quia impossibile est ut fiat plurificatio alicuius, nisi per additionem ali-cuius differentiae, sicut multiplicatur natura generis in species, vel per hoc quod forma recipitur in diversis materiis, sicut multiplicatur natura speciei in diversis individuis; vel per hoc quod unum est absolutum et aliud in aliquo receptum: sicut, si esset quidam calor separatus, esset alius a calore non separato, ex ipsa sua separatione” (TOMÁS DE AQUINO. De ente et essentia, c. 4, n. 53).

22. O acréscimo de qualquer forma ou de qualquer outro princípio ao esse tan-tum implicaria necessariamente que o que é acrescido é essencialmente diverso do próprio esse.

23. “Si autem ponatur aliqua res quae sit esse tantum, ita ut ipsum esse sit sub-sistens, hoc esse non recipiet additionem differentiae, quia iam non esset esse tantum, sed esse et praeter hoc forma aliqua” (TOMÁS DE AQUINO. De ente et essentia, c. 4, n. 53).

24. “(…) et multo minus recipiet additionem materiae, quia iam esset esse non subistens sed materiale” (TOMÁS DE AQUINO. De ente et essentia, c. 4, n. 53).

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realidade que não é o próprio esse, é conceder a tese do próprio Tomás. Afinal, também neste caso, a multiplicação exige neces-sariamente que o princípio multiplicador seja distinto do esse. Mas, se assim fosse, o esse não seria tão-somente ser (esse tantum) porque seria esse mais algum princípio receptivo multiplicador; o que seria contraditório com a própria noção de esse tantum.

Em suma, supor a multiplicação do ser tão-somente ser (esse tantum) é sustentar algo contraditório, uma vez que se houvesse (forte) o ser tão-somente ser, um tal ser não poderia ser senão o seu próprio ser (ipsum suum esse), ou seja, seria impossível que fosse o seu próprio ser, mais (et praeter) alguma coisa (forma ou matéria). O ipsum esse na medida em que é esse tantum não pode ser multiplicado nem diversificado. O ser (esse) só pode ser mul-tiplicado e diversificado por algo que é outro em relação ao esse.

Demonstrada a impossibilidade da multiplicação do ipsum esse enquanto esse tantum, Tomás de Aquino pode sustentar sua tese, segundo a qual o ser que é o seu próprio ser não pode ser senão um único. Por conseguinte, todos os demais entes que não são tão-somente ser (esse tantum) possuem o ser (esse) mais alguma quididade, natureza ou forma que os diferenciam.

Poder-se-ia objetar que o argumento em questão só tem valor hipotético, uma vez que parte da suposta existência de um ser cuja essência seria idêntica ao seu próprio ser, para concluir pela distin-ção entre essência e ser nos demais entes, ou seja, todo o argumento dependeria da prévia aceitação da existência de Deus.

Como observa John Wippel25, o ponto principal do argumento consiste em mostrar que é impossível existir mais de um ser cuja essência seja idêntica ao seu próprio ser. Nem esta tese, nem a con-clusão que ela legitima possuem caráter meramente hipotético, pois

25. WIPPEL, J. The Metaphysical Thought of Thomas Aquinas: from finite being to uncreated being. Washington: The Catholic University of America Press, p. 146-147, 2000.

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Tomás justifica a impossibilidade da multiplicação do ser que é seu próprio ser e, portanto, legitima a afirmação da unicidade do ser tão- somente ser. Tampouco a conclusão é hipotética, porque To-más não raciocina a partir da possibilidade da existência do ser tão-somente ser para a sua atualidade, mas sim a partir da impos-sibilidade de dois entes serem o seu próprio ser (ipsum suum esse). É este ponto de partida que permite concluir pela existência de uma distinção e composição entre o esse e a essência (quididade ou forma) em todos os entes, com exceção daquele que é tão-somente ser (esse tantum).

Em nenhuma etapa do argumento, Tomás de Aquino pressu-põe a existência de Deus como parte integrante de sua tese, das premissas ou da conclusão. Isto é absolutamente desnecessário na medida em que pretende demonstrar a distinção entre ser e essência nos entes a partir da unicidade do ser que é idêntico ao seu próprio ser, que, por sua vez, é sustentada pela impossibilidade de existir mais de um ser que seja tão-somente ser. Assim, se aceitarmos que há uma multiplicidade de entes que possuam ser (esse), então é ine-vitável concluir que em todos estes entes a essência é diversa do ser (esse), porque é impossível que exista mais de um ser cuja essência seja idêntica ao seu ser.

Em relação aos entes que não são o seu próprio ser, Tomás de Aquino pôde concluir que possuem o ser como realidade recebida pela essência (quididade ou forma), realmente distinta do ser que recebem. Mas, não devemos entender esta distinção como uma separação en-tre duas coisas (inter rem et rem), mas sim como uma não-identidade de dois princípios constitutivos dos entes. Afinal, para Tomás, “tudo aquilo que recebe algo de outro está em potência em relação a este outro, e esse algo recebido é ato daquele que recebe”26.

26. “Omne autem quod recipit aliquod ab alio, est in potentia respectu illius; et hoc quod receptum est in eo, est actus eius” (TOMÁS DE AQUINO. De ente et essentia, c. 4 , n. 56).

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Com isso, torna-se claro que o itinerário para a demonstração da distinção entre essência e ser nos entes, com exceção do ser tão-somente ser, conduz à compreensão da unidade dos princípios constitutivos dos entes que não são o seu próprio ser, como uma unidade de composição entre a potência receptiva (essência) e o ato recebido (ato de ser).

Esta unidade de composição não é intuída, mas pode ser co-nhecida uma a partir da outra, ou seja, de modo resolutivo e com-positivo. Pela via de resolução secundum rationem, a unidade da composição de essência e ser nos entes é conhecida como termo último (ad quem) da redução da unidade de composição de potên-cia e ato nos entes sujeitos ao devir. Neste sentido, a unidade da composição de essência e ser é resolvida na unidade da composição de potência e ato, o que é universal e comum a todos os entes que não são o seu próprio ser. Pela via de composição secundum ratio-nem, a unidade de essência e ser nos entes é conhecida como termo primeiro (a quo), pois o que é universal e comum na ordem do conhecer e do ser é a origem dos raciocínios compositivos. Tomás de Aquino utiliza-se, portanto, tanto da via compositiva quanto da via resolutiva para a defesa da distinção real entre essência e ser nos entes compostos.

2. a descoberta resolutiva do ser no De Potentia

A descoberta pelo método resolutivo da composição real nos entes de essentia et esse como uma composição de potência e ato, participante e participado, conduz a filosofia de Tomás de Aqui-no a um novo horizonte metafísico. Como demonstrou Cornélio Fabro, a “noção intensiva de ser” é anunciada de modo paradig-mático na nona objeção do segundo artigo da sétima questão do De Potentia, que pode servir como guia e medida da metafísica do Doutor Angélico27.

27. TOMÁS DE AQUINO. De Potentia, q. 7, a. 2, ad 9.

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Em relação ao De Potentia, é mister considerar: 1) a ordem de exposição (via compositionis secundum rationem), inversa à or-dem de justificação filosófica (via resolutionis secundum rationem); 2) as implicações da noção tomasiana do ser (esse) a partir de sua ordem de exposição e resolução propriamente metafísica.

Em relação à exposição, a série de afirmações sintéticas que cons-tituem a resposta de Tomás à nona objeção poderiam ser recapitula-das na seguinte ordem: 1) o ser é ato perfeitíssimo (actus perfectissi-mus); 2) toda forma é concebida em ato pelo ato de ser (actus essendi); 3) o ser é ato de todos os atos e perfeição de todas as perfeições; 4) o ser enquanto ato de ser (esse ut actus essendi) é outro em relação à essência, diferindo ainda do ente comum (ens commune); 5) ao ato de ser (actus essendi) nada se pode acrescentar como algo mais formal ou como realidade extrínseca ao próprio ser (ipsum esse); 6) todas as coisas estão para o ser como a potência está para o ato.

A ordem de exposição da resposta à nona objeção é de natureza evidentemente compositiva (via compositionis secundum ratio-nem), uma vez que a reflexão metafísica instaura-se, desde o iní-cio, sob a afirmação do ser como ato de todos os atos e perfeição de todas as perfeições, para deduzir daí que nada pode ser acrescido ao esse e que tudo o mais se comporta em relação ao esse como a potência em relação ao ato. Mas, como a perspectiva própria à reflexão metafísica é que o ponto de partida e o ponto de chegada coincidem efetivamente, a afirmação do ser como ato do ente e a afirmação do ser como ato de todos os atos e perfeição de todas as perfeições implicam-se mutuamente.

A resolução secundum rationem propriamente dita está aqui im-plícita, uma vez que Tomás segue a explicação do que concebe por ser (“hoc quod dico esse”) a partir de uma premissa sintética, o que ordena o raciocínio segundo a via de composição secundum ratio-nem, a qual procede do princípio intrínseco formal mais universal e comum aos entes aos demais princípios ou efeitos que são par-ticulares face ao esse. Reconhecer o caráter explicitamente compo-

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sitivo deste trecho capital do De Potentia é imprescindível para a apreciação analítica do argumento segundo a ordem da descoberta filosófica (secundum via resolutionis), que segue a ordem inversa à da via compositiva (via compositionis secundum rationem).

Como mencionado previamente, a resolução de todos os atos e de todas as perfeições do ente no ato de ser (actus essendi) tem como ponto de partida a ordem de composição dos entes e como princí-pios basilares tanto a prioridade metafísica do ato sobre a potência quanto a dependência desta em relação àquele. Considerando que o que é mais evidente para nós é a realidade sensível submetida ao devir e que o movimento não pode existir senão pela realidade dos contrários, todo ente sensível é necessariamente composto, segun-do a composição de potência e ato.

É a consideração da ordem de composição a partir da ordem dinâmica (o que move está para o movido segundo a ordem da cau-salidade) que manifesta o caráter resolutivo da transição intelectual do ato como ação ou operação do ente ao ato como perfeição ou determinação intrínseca ao ente. Por isso, a “intuição” genuina-mente aristotélica do binário potência-ato e das composições que dele resultam (substância e acidente, matéria e forma) são com-preendidas, doravante, à luz do ato de ser (actus essendi).

Dentre todos os princípios constitutivos do ente, aquele pelo qual o ente possui realidade e atualidade, garantindo a sustentação de todas as ordens de composição do ente, é o ser (esse). Por essa razão, todas as coisas estão para o ser como a potência está para o ato. O ser (esse) é o primeiro dentre todos os atos e, portanto, a forma e todos os demais atos do ente são potências em relação ao ser (potentia essendi). Os outros atos do ente, que são particulares e se consideram atos com relação às próprias e imediatas potências, devem se chamar potências, e em potência com relação ao primeiro de todos os atos que é o ser (esse).

A divisão do ente em essência (potência) e ser (ato) penetra, assim, com mais profundidade a divisão aristotélica do ente em

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forma (ato) e matéria (potência), resolvendo as esferas constituti-vas, compositivas e dinâmicas do ente no ser (esse).

Uma vez encontrado pela via resolutiva o fundamento de todas a s composições do ente no ser (esse), entendido como ato fundante (esse ut actus essendi), Tomás de Aquino pode concluir que não se pode agregar ao ser (esse) nada que lhe seja estranho, ou seja, extrínseco. Afinal, o contrário do ser (esse) é o não-ser absoluto. Considerando que não se pode acrescentar o não-ser ao ser28, é evidente que tudo o que se acrescenta ao ser deriva sua perfeição do próprio ser (ipsum esse). Por essa razão, nada está para o ser (esse) como algo extrínseco.

Se o esse é ato de todos os atos e perfeição de todas as perfeições, então toda vez que o esse emerge nos entes não o faz senão de modo limitado e restrito e não de modo pleno e absoluto. Mas, se o esse nos entes não se encontra de modo pleno e absoluto é em razão de um princípio intrínseco que o recebe limitando e limita recebendo. Tal princípio não pode ser senão a potência, cujo ser depende intrinsecamente do actus essendi.

É sempre a potentia essendi (essência ou forma) o que recebe e limita o actus essendi. Assim sendo, a razão da finitude do esse nos entes que não são o seu próprio ser não pode ser suficientemente esclarecida senão por um princípio intrínseco portador do esse de modo restrito e limitado.

Em sendo ato irredutível e pleno, o ser (esse) jamais se comporta como potência em relação a qualquer outra coisa ou perfeição. Ao contrário, tudo o que é acrescido ao ser o é como uma restrição do ser, uma vez que tudo o que é está para o ser como o princípio receptivo está para a perfeição recebida. Mas deve-se observar que todas estas restrições já se encontram originariamente contidas no ser, que é o ato e a perfeição sem restrição alguma.

28. Cf. TOMÁS DE AQUINO. De Potentia, q. 9, a. 7, ad 15.

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É por isso que o Aquinate pode afirmar que as formas e todas as operações derivadas delas, embora determinem limitando e restrin-gindo o ser, não são acrescidas ao ser como algo extrínseco. O ser é sempre o princípio a quo de toda e qualquer perfeição dos demais princípios constitutivos do ente (id quod habet esse), conferindo a definitiva atualidade ao que é (quod est) enquanto tal.

Em razão da prioridade metafísica do ato sobre a potência e da dependência desta em relação àquele ao qual é ordenada, resulta ainda que o ser (esse) é perfeição primeiríssima em relação a todas as coisas e que tudo o que é depende intrinsecamente do ato de ser (esse ut actus essendi).

Sustentar resolutivamente a prioridade absoluta do ser (esse) em relação aos demais atos do ente (ens) e a dependência de todos os constituintes do ente em relação ao próprio ser (ipsum esse), é compreender, por outro lado, que o ser é ato último, já que toda atualidade diversa do ser deriva sua perfeição do próprio ser (ipsum esse). Com efeito, tudo aquilo que é em potência e em ato não pos-sui atualidade senão enquanto tem ser (habet esse).

Neste contexto, deve-se ressaltar ainda que o ser (esse) não é uma perfeição meramente possível, mas uma perfeição realíssima sem a qual tudo o que é cairia no absoluto não-ser. Que o ente é em ato (ens in actus) pelo ato de ser (actus essendi) é uma afirmação autenticamente tomista, consequência legítima da resolução de todos os atos e perfeições do ente (ens) no ser (esse). Todavia, não se deve entendê-la como se o ser fosse simplesmente uma condição da possibilidade da existência do ente, tal como propõe Avicena. O ser (esse) não é uma perfeição possível acrescida ao ente, concebido essencialmente ou idealmente como algo extrínseco ao próprio ser.

Todas as perfeições constitutivas do ente (quer seja na ordem aci-dental ou na ordem substancial, quer ainda na ordem essencial de composição de matéria e forma), bem como as perfeições operativas, podem ser consideradas como realidades existentes ou não, possíveis ou não, quer isto ocorra graças à virtude do agente, quer do intelecto,

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mas o ser (esse) não pode ser concebido senão como perfeição real, atual e intensiva, raiz de qualquer outra perfeição do ente. Tudo o que tem ser (id quod habet esse) tem sua fonte de realidade, perfeição e sustentação intrínseca no ato de ser (actus essendi).

Mesmo se considerada na ordem do possível, a noção de qual-quer realidade depende do ato de ser. Como o ser subordina a si não só as perfeições constitutivas, como a forma do ente em ato (ens in actus) que depende do ser tanto para ser quanto para ser concebida em ato, mas também os atos enquanto operações e ações dos en-tes, o próprio ato de intelecção e seus efeitos se fundam em última instância no ato de ser.

Por isso, a afirmação da dependência da intelecção da forma em relação ao ser pode ser complementada pela resolução das operações do cognoscente no ato de ser. Em suma, a resolução secundum ra-tionem desvela o caráter fundante do ser em relação à forma do ente em ato, à forma inteligível (ratio) e ao próprio ato de intelecção, completando, assim, o processo instaurado pelo juízo de separatio em relação à ratio entis, objeto formal da metafísica. Por isso, não se deve confundir a noção de ser ou ente comum (ens commune) com a de ser enquanto ato de ser (esse ut actus essendi).

Ao afirmar que o ser é o ato de todos os atos e a perfeição de todas as perfeições, Tomás de Aquino sintetiza de modo definitivo o caráter intensivo e absoluto do ipsum esse face às demais perfeições constitutivas e operativas dos entes, que dependem intrinsecamen-te do ato de ser (actus essendi).

A síntese de todas as perfeições e de todos os atos no ato de ser responde tanto pela exigência de um termo último para a resolução secundum rationem (pois, é impossível proceder aqui ao infinito já que para além do ser não há absolutamente nada), quanto pela necessidade de encontrar um princípio primeiríssimo de derivação dos princípios constitutivos (ordem de composição) e dinâmi-cos (ordem de causalidade) dos entes.

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Considerações finais

Embora Deus seja primeiro quanto ao ser, não o é em relação ao conhecimento humano (principium nostrae cognitionis est a sensu29). Essa afirmação, tão cara a Tomás de Aquino, deve ser recordada toda vez que se questiona a autenticidade da ordem das demons-trações filosóficas no corpus thomisticum. Com efeito, o que é primeiro na cognição humana não é primeiro quanto ao ser, mas o que é primeiro quanto ao ser pode ser conhecido filosoficamente pela via de resolução dos efeitos na causa.

Para Tomás de Aquino, a metafísica parte do ente como primum cognitum, no qual se resolve toda outra intelecção, pois o ente está implícito em toda e qualquer noção (ratio) e realidade (res). Mas, partir do ente (ens) não é partir do ser (esse), quer esse último seja entendido como actus essendi, quer ainda como ipsum esse subsistens.

O esse não nos é dado imediatamente na intelecção do ente, se-não como esse commune, conteúdo inteligível necessário e irredu-tível da ratio entis. O esse só se torna conhecido como ato do ente na dependência da resolução (secundum rationem) das composições do ente na composição de essentia et esse, que são distintos realmen-te. Trata-se de um processo gradativo de formulação de juízos e raciocínios que resolvem as potências dos entes em seus respectivos atos, bem como os atos imperfeitos dos entes no ato imanente perfeito que é o ato de ser (esse ut actus essendi).

A via de resolução é uma via de fundação – para utilizar a ex-pressão de Cornélio Fabro – e não uma via de dedução, sustentada num pressuposto indemonstrável. Com efeito, transitar dos atos mais superficiais e instáveis aos mais constitutivos e permanentes e destes ao ato de todos os atos é propriamente resolver todos os atos e todas as perfeições dos entes no ato de ser (esse ut actus essen-

29. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I, q. 84, a. 7, co.

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di). E alcançar o ser como actus essendi é, sem dúvida, base de toda ulterior investigação analógica do ipsum esse subsistens.

Se há uma circularidade entre a descoberta do esse ut actus es-sendi pela via de resolução pelas causas intrínsecas (secundum rationem) e a descoberta do esse ut ipsum esse subsistens pela via de resolução pelas causas extrínsecas (secundum rem), não se trata de uma circularidade viciosa. É o próprio Tomás de Aquino que oferece essa chave de leitura quando, inspirado na tradição neo-platônica de Dionísio Areopagita, ressalta que: “a circularidade [da razão] observa-se nisto: que a razão chega às conclusões a partir dos princípios na via de invenção, e examina as conclusões desco-bertas de acordo com a via do juízo, resolvendo-as nos princípios”30.

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30. Cf. TOMÁS DE AQUINO. De Potentia, q. 10, a. 8, ad 10.

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O MÉtODO DIaLÉtICO E O sic Et

non DE PEDRO aBELaRDO

Pedro Rodolfo Fernandes da Silva*

Resumo

O presente artigo investiga o método dialético em Pedro Abe-lardo a partir da concepção desse pensador acerca do problema dos universais, o qual marcou toda a discussão acerca do método no século XII. Abelardo é crítico do realismo e defensor da ideia de que os universais são palavras (voces) dotadas de significação (significatio) que designam a coisa individual. Como exemplo do emprego do método dialético na análise das questões teológicas, é tomada a obra Sic et non, na qual evidencia-se a dialética como busca da verdade no discurso, examinando atentamente os significados dos termos utili-zados e observando a temporalidade e a causalidade do que é dito.

Palavras-chave: método, dialética, problema dos universais, Sic et non.

Introdução

Pedro Abelardo (1079-1142) destaca-se no período medieval por suas várias contribuições no campo da lógica, da ética, da teo-logia, entre outros. Em seus escritos é característico o emprego do

* [email protected]

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método dialético, entendido como o tratamento lógico em ordem sistemática (ordo disciplinae).

Segundo Rémusat1, toda discussão acerca do método no século XII pode ser reduzida à questão dos universais. Ela foi de fato capital naquele contexto e responsável por agitar as escolas e a sociedade da época, ocupando as mentes humanas do período de Escoto Erígena à Reforma Protestante. Assim, a depender da resposta que se apre-sentava a esse clássico problema, tinha-se o desenho do método de análise das diversas questões das diversas áreas.

Pedro Abelardo, o peripatético do Pallet, é seguramente o maior lógico do século XII e dessa forma tornou-se também uma referên-cia quanto ao problema dos universais naquele século. Admirado e seguido por muitos, sobretudo os clérigos que vinham a Paris tomar suas lições, foi também condenado e perseguido por outros, que ti-nham nesse pensador um sujeito temerário por arvorar-se a explicar os dogmas da religião à luz da razão2.

Neste artigo, pretende-se apresentar os fundamentos do método dialético adotado por Pedro Abelardo no modo de tratamento do problema dos universais. Após isso, tomar-se-á a obra Sic et Non como exemplo da aplicação do método dialético na análise de ques-tões teológicas.

a Logica ingredientibus3 e a crítica ao realismo

O problema dos universais, segundo Aristóteles4, remonta ao próprio Sócrates. Na acepção platônica, o universal é entendido

1. RÉMUSAT, 1845, p. 319.

2. É o caso da crítica de Bernardo de Claraval a Abelardo: “[...] Mas, ao jactar-se de estar apto a dar a razão de todas as coisas, empreende, contra a razão e contra a fé, dar razão das que estão acima da razão” (SAN BERNARDO, 1950, p. 997).

3. No que se refere às citações dessa obra, utilizar-se-á a seguinte tradução: ABE-LARDO, Pedro. Lógica para principiantes. Tradução do original em latim de Car-los Arthur Ribeiro do Nascimento. 2ª ed. São Paulo: UNESP, 2005a.

4. ARISTÓTELES, Metafísica, XIII, 4, 1078 b 28.

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como a forma ou a espécie5, enquanto que na acepção aristotélica, o universal é a forma ou a substância6, de modo que somente destes é que existe ciência.

Em termos lógicos, a definição de universal dada por Aristóte-les, “o que, por sua natureza, pode ser predicado de muitas coisas7”, tornou-se clássica. Porfírio (ca. 232/3-304), no início de sua Isagoge8 – obra na qual comenta as categorias aristotélicas do ser – apresenta três questões quanto ao gênero e às espécies: 1) se eles subsistem ou encontram-se somente no pensamento; 2) se subsistentes, são corpó-reos ou incorpóreos e 3) se são separados ou subsistem nos sensíveis e relativamente a estes.

Boécio (ca. 470-525), ao traduzir e comentar a obra de Porfí-rio, transmitiu tais questões à posteridade, de modo que a Isagoge constitui-se numa introdução ao estudo da filosofia aristotélica.

A proeminência do problema dos universais no século XII se deve a um conjunto de fatores, dentre eles podem-se mencionar as transformações socioeconômicas e políticas impulsionadas por uma época de relativa paz, o que fez acentuar a produção agrícola por meio da invenção de expedientes relativamente simples que, à época, revolucionaram a vida no campo, como “o moderno atrelamento dos animais, a coelheira dura, os tirantes, a disposição em fila e a ferragem com pregos9”. Surgiram as cidades e nestas um movimento intelectual que atraiu jovens estudantes de várias partes.

Mencionem-se ainda os problemas de ordem teológica, como a discussão acerca da Trindade. Roscelino, por exemplo, ao adotar a postura nominalista insistia que em Deus, como nas espécies criadas,

5. PLATÃO, Parmênides, 132 a.

6. ARISTÓTELES, De Interpretatione, 17 a 37.

7. Idem, 7, 17 a 39.

8. PORFÍRIO, 1994, pp. 18-23.

9. BEUJOUAN, 1959, p. 143.

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PEdro Rodolfo FErnandEs da Silva

os indivíduos é que são reais, culminando assim numa interpretação triteísta10. Desse modo, o problema dos universais parece que per-passou várias áreas da vida social e cultural do século XI ao XV.

Abelardo também se deteve a tratar o problema dos universais, sobretudo na introdução da obra Logica Ingredientibus. Depois de abordar as três espécies de filosofia (especulativa, moral e racional), Abelardo glosa o início da Isagoge de Porfírio, para, ao fim da intro-dução, dedicar-se a responder às três questões clássicas apresentadas por Porfírio, acrescentando a essas uma quarta:

[...] será que é necessário que tanto os gêneros como as espécies, enquanto são gêneros e espécies, tenham alguma coisa subordi-nada através da denominação ou se, destruídas as próprias coisas denominadas, então o universal poderia constar da significação da intelecção, como este nome “rosa” quando não há nenhuma das rosas às quais é comum11.

Antes de responder às clássicas questões sobre o problema dos universais, Abelardo se depara com as posições assumidas por seus contemporâneos e as refuta, sobretudo a postura representada por seu mestre, Guilherme de Champeaux, um representante do realismo.

Apesar dos matizes que a postura realista assume, podemos re-sumi-la dizendo que os realistas “colocam uma substância essencial-mente a mesma em coisas que diferem umas das outras pelas formas; essa é a essência material dos singulares nos quais está presente, e é uma só em si mesma, sendo diferente apenas pelas formas dos seus inferiores12”.

Como crítica ao realismo, afirma Abelardo que

[...] se essencialmente o mesmo, embora marcado por diversas formas, existe nos singulares, é necessário que a substância que é afetada por estas formas seja a que é marcada por aquelas, de tal

10. Cf. GILSON, 2001, p. 290.

11. ABELARDO, 2005a, p. 51-2.

12. ABELARDO, 2005a, p. 55.

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modo que o animal formado pela racionalidade é o animal for-mado pela irracionalidade e, assim, o animal racional é o animal irracional e, desse modo, os contrários estariam presentes simulta-neamente no mesmo13.

Dessa forma, a crítica de Abelardo aponta para o fato de que o realismo ignora que há entre os seres diferença e multiplicidade, e acaba por permitir a contradição nas sentenças e nos próprios seres, pois o gênero seria afetado tanto pela racionalidade quanto pela ir-racionalidade.

A crítica de Abelardo prossegue, na Logica Ingredientibus, com relação aos matizes que o realismo pode assumir, sempre mostrando a impossibilidade de que a essência absolutamente idêntica, tomada como coisa, exista simultaneamente em seres diversos. Em síntese, a conclusão da crítica de Abelardo é de que não é possível entender os universais como coisas (res), restando somente a possibilidade de entendê-los como palavras (voces)14. Na crítica de Abelardo ao rea-lismo pode-se vislumbrar uma tomada de posição implícita sobre a natureza das coisas, que são estritamente individuais, excluindo-se toda forma de universalidade real.

O nominalismo de abelardo e o problema da significação

Abelardo não apenas propõe seu nominalismo, negando que existam coisas universais. Ele também afirma que os universais são palavras – ou, mais precisamente – afirma que os universais são voces (termo usado em latim para uma palavra escrita ou falada)15.

Quando, na Logica Ingredientibus, Abelardo argumentou que os universais são voces, ele claramente pretendia insistir que eles não

13. Idem, ibidem, p. 57.

14. ABELARDO, 2005a, p. 66.

15. Na Logica Nostrorum Abelardo sustenta que os universais não são voces, mas sim sermones. Cf. FUMAGALLI, 1969, p. 8.

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são coisas de espécie alguma. Mas, alguém poderia objetar, dizendo que as palavras (voces) em si são coisas. Para um leitor moderno, isto pode parecer um trocadilho pedante, mas para um filósofo do século XII que compartilhasse desse entendimento sobre voces, tal objeção seria motivo de preocupação.

Palavra não é uma tradução completamente exata de vox. Lite-ralmente, vox significa “voz”. Após Prisciano16, gramáticos e filósofos do século XII utilizaram vox para se referir aos sons produzidos pelas cordas vocais de homens e outros animais.

Esses sons podem ser sem sentido (como acontece com os sons sem sentido do balbuciar de um bebê), ou significativos. Palavras significativas (voces significativae) podem ter sua importância natural (como acontece com o latido, que indica que um cão tem raiva) ou por imposição e convenção humana: tais voces (voces significativae ad placitum) são ordinariamente significados pelo termo palavras.

De acordo com Marenbon17, quando Abelardo diz que os uni-versais são voces, ele quer dizer que são voces significativae ad placitum (palavra significativa por convenção). Isto não significa, contudo, responder à acusação de que voces são coisas. Se possui sentido ou não, uma vox é o que é produzido pela ação das cordas vocais: ele é, na definição dada por Prisciano, o ar muito fino que é golpeado.

Essa questão foi objeto de inúmeras controvérsias entre os lógi-cos e gramáticos no início do século XII. Alguns argumentaram que voces têm ar (como Prisciano parece sugerir), e, portanto, substância. Outros, baseando-se na autoridade de Aristóteles e Boécio, encon-traram meios para explicar a definição de Prisciano, afirmando que voces são as medidas do ar atingido pelas cordas vocais e seriam, por-tanto, acidentes da categoria de quantidade. Abelardo – pelo menos no período em que escreveu a Logica Ingredientibus – tratou a po-

16. Priscianus Caesariensis, gramático latino do século VI.

17. MARENBON, 1997, p. 177.

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lêmica como uma questão meramente verbal, embora insistisse que voces remetia a uma medida de ar, e não ao próprio ar18.

Assim, quando Abelardo fala de voces, ele obviamente quer con-siderá-las como portadoras de significados, ou seja, o universal não se predica de muitos enquanto uma essência comum a vários, pois “não há participação em alguma realidade comum, mas somente uma participação no mesmo predicado, que não representa uma re-alidade diversa nas coisas”19.

Essa participação no mesmo predicado atribuído a vários desig-na uma condição própria de cada indivíduo, denominada por Abe-lardo de status: “também podemos chamar de estado de homem as próprias coisas estabelecidas na natureza do homem, das quais aque-le que lhes impôs a denominação concebeu a semelhança comum”20.

O estado de homem, por exemplo, não designa algo diverso des-te homem individual, mas sim que este é um homem. Portanto, o estado “pende para o lado das coisas e é o correlato ex parte rerum da palavra universal. Abelardo o caracteriza como um esse tale, por exemplo, esse hominem para os indivíduos humanos”21.

Além de vox, Abelardo também se utilizou de sermo. O empre-go e a distinção estabelecidos entre vox e sermo apontam para uma importante questão: as palavras são universais apenas porque as con-venções humanas as fazem tais, ao invés de apenas sons.

Sermo, por sua vez, significa “discurso”. Trata-se de um termo que não era usado pelos lógicos para escrever sobre os universais e para o qual Abelardo pretende dar um novo significado técnico.

Apesar de idênticos na sua essência, vox e sermo diferem na ori-gem. Vox deve sua origem à natureza, afirma Abelardo - vox é ou um

18. Idem, ibidem, p. 177-8.

19. BOEHNER & GILSON, 2000, p. 300.

20. ABELARDO, 2005a, p. 73.

21. NASCIMENTO, 2005, p. 32, nota 5.

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sopro de ar ou a sua medida. Sermo, por sua vez, deve sua origem à convenção humana - sermo é uma palavra portadora de significa-do (significatio). As palavras transmitem significados porque certo grupo de sons é aceito por convenção (seguindo um ato original de imposição), como o nome dado para as coisas de uma espécie22.

O que Abelardo não analisa é que há algo de verdadeiro entre o que é uma entidade física e o que foi estabelecido com um significa-do de acordo com as convenções humanas.

Embora a compreensão de Abelardo sobre os universais fosse muito influente, pelo menos por algumas décadas a sua tentativa de introduzir sermo como um termo técnico teve pouco sucesso. Quando da revisão da Theologia Sumi Boni para escrever a Theologia Christiana, Abelardo substituiu devidamente sermones por voces em uma passagem onde ele explicitamente contrastou o enunciado das palavras com a sua função de significante23.

Mas, mesmo nas Glosas, Abelardo não tende a usar a palavra ser-mo após a sua primeira discussão sobre tal assunto. Ele prefere usar os termos mais comuns entre os lógicos, tais como vocabulum e no-mem, para significar palavras impostas que comportam um sentido (em contraste com voces). Desse modo, não é de admirar, então, que aqueles que adotaram a leitura de Abelardo sobre os universais e so-bre muitas outras questões, ficaram conhecidos na segunda metade do século XII não como “sermonalistas”, mas como “nominalistas”.

Do exposto, segue que Abelardo, ao negar a existência real dos universais, postula a noção de que o universal é uma vox ou um sermo. Resta entender de que modo ocorre essa imposição de um universal a um conjunto de coisas. Certamente que não é do mesmo

22. Cf. Sup. Porf. IN: MARENBON, 1997, p. 178.

23. Cf. Theologia Sumi Boni 150: 950-3, modificada em Theologia Christiana 255: 1955-9. In: MARENBON, 1997, p. 179.

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modo como afirmou Roscelino24 dizendo que os universais são me-ros flatus vocis (sons vazios).

Afirma Abelardo na Logica ingredientibus que os universais “sig-nificam pela denominação coisas verdadeiramente existentes, isto é, as mesmas que os nomes singulares e que, de modo algum, estão colocados numa opinião vazia”25.

Pode-se afirmar com Boehner e Gilson que, para Abelardo, a “universalidade convém aos nomes enquanto estes exercem a função de expressões significativas”26, ou seja, os universais designam as coi-sas segundo um modo próprio de significação (significatio).

No início do século XII os lógicos tendiam a usar a palavra sig-nificatio em um sentido amplo – segundo o qual qualquer modo em que a linguagem representa um pensamento ou uma coisa é um tipo de significação.

Um bom exemplo do uso que Abelardo faz da significação no sentido amplo é quando, na Dialectica, ele distingue quatro tipos principais de significação: por imposição, determinação, geração e exclusão.

Com o desenvolvimento de seu pensamento lógico, Abelardo tornou-se ainda mais seguro deste ponto de vista, de modo que ten-deu a usar significatio no sentido mais rigoroso. Assim, tal termo foi empregado por Abelardo no sentido de que significar x (alguém ou algo) é causar um ato mental de compreensão de x em alguém ou, simplificando, causar um pensamento de x em alguém.

Contra o recurso ao plano gramatical, segundo o qual cada pala-vra significa todas as coisas que a nomeia e a causa da qual é imposta, Abelardo sustenta um critério mais determinado e preciso de signifi-

24. GILSON, 2001, p. 289.

25. ABELARDO, 2005a, p. 87.

26. BOEHNER & GILSON, 2000, p. 306.

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catio. Não podemos atribuir à significatio uma função que ultrapassa esses limites: o significado de um nome é exclusivamente o que é chamado por esse nome.

As respostas de Abelardo aos problemas colocados por Porfírio também possibilitam entrever a noção de indivíduo, que parece ser cara a Abelardo.

Com relação à primeira pergunta porfiriana – se os gêneros e as espécies subsistem, responde Abelardo que o universal “significa pela denominação coisas verdadeiramente existentes, isto é, as mesmas que os nomes singulares e que, de modo algum, estão colocados numa opinião vazia”27.

Em relação à segunda questão – se os subsistentes são corporais ou incorporais – responde Abelardo que os nomes universais podem ser “corporais, isto é, separados na sua essência, e incorporais quanto à designação do nome universal, porque não os denominam separa-da e determinantemente, mas confusamente”28.

A terceira questão porfiriana pergunta se os universais, sendo incorporais, são eles separados das coisas sensíveis ou subsistentes nelas, ao que responde Abelardo que

[...] os universais subsistem nos sensíveis, isto é, que significam a substância intrínseca existente na coisa sensível em virtude das formas exteriores e que, significando essa substância que subsiste em ato na coisa sensível, manifestam-na contudo, como natural-mente separada da coisa sensível29.

Compreendendo-se incorporal e corporal como sensível e não sensível, a terceira questão remonta à segunda, de modo que o uni-versal é sensível ou corporal enquanto voces e não sensível ou incor-poral enquanto significatio.

27.ABELARDO, 2005a, p. 87.

28. Idem, ibidem, p. 89.

29. ABELARDO, 2005a, p. 89-90.

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Por fim, a quarta questão colocada pelo próprio Abelardo acerca do fato de que, se todas as coisas denominadas pelo nome universal fossem destruídas, poderia ainda o universal consistir apenas na sig-nificação da intelecção, ao que responde Abelardo que

[...] de modo algum admitimos que haja nomes universais quan-do, tendo sido destruídas as suas coisas, eles já não são predicáveis de vários, porquanto nem são comuns a quaisquer coisas, como o nome da rosa, quando já não perduram mais rosas, o qual, en-tretanto, ainda é então significativo em virtude da intelecção, em-bora careça de denominação, pois, de outra sorte, não haveria a proposição: não há nenhuma rosa30.

Uma vez expostas as respostas de Abelardo quanto ao problema dos universais, pode-se inferir que há uma ruptura entre o indivíduo e o gênero, de modo que o primeiro de fato existe empiricamente, enquanto o segundo é um nome designativo segundo um modo pró-prio de significação.

Verifica-se que de acordo com Abelardo todas as coisas que en-contramos no mundo são singulares. Assim, uma cor que vemos, ou um som que ouvimos, é também uma determinada coisa singular. Em suas obras que versam sobre lógica, Abelardo insiste na distinção entre o singular e o universal, na unidade do indivíduo e na diferen-ça entre ambos31.

Segundo Jacobi32, Abelardo reconhece que em alguns casos te-mos nomes próprios a nossa disposição para a nomeação de coisas singulares, como por exemplo, o nome de um determinado humano singular. Com efeito, é precisamente da função do nome próprio marcar uma coisa singular como tal. Assim, os substantivos próprios são usados repetidas vezes - isto é, para nomear diferentes pessoas ou coisas. Mas não se deve procurar uma propriedade comum das

30. Abelardo, 2005a, p. 91.

31. ESTÊVÃO, 1990, p. 23.

32. JACOBI, 2004, p. 133.

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pessoas ou coisas nomeadas, pois nesse caso, os nomes próprios re-presentam, por assim dizer, uma multiplicidade de coisas de modo equívoco.

O caso é diferente, porém, quando nomeamos as coisas singula-res por meio de um termo descritivo, conjugado com um pronome demonstrativo: “essa substância”, “este corpo”, “este animal”, “este ho-mem”, este branco etc. Aqui entendemos não só a coisa singular, mas também algo sobre essa coisa singular, ou seja, que é uma substância, ou um corpo. Ao indicar a coisa singular, desta forma, dirigimos nossa atenção sobre ela com referência a um aspecto bem definido.

a lógica aplicada à teologia: o sic et non e o método dialético

O Sic et Non parece representar muito bem a intersecção entre os escritos de lógica e de teologia e por isso merece lugar à parte. Escrito provavelmente entre os anos de 1121 e 1132 e composto de 158 questões reunidas em três conjuntos (fé, sacramento, caridade) e estruturadas no estilo da disputatio, servindo de modelo para o que mais tarde serão as Sumas, o texto propõe o método dialético no estudo da teologia, enfatizando o cuidado com o entendimento das palavras, pois há momentos em que estas são usadas, por exemplo, de acordo com o público ao qual é dirigido:

O que mais nos impede de chegar à comunicação é o modo inu-sitado de locução e muitas vezes também o significado diferente das palavras, quando a mesma é usada uma vez num sentido, ou-tra vez noutro. Acontece que assim como uma pessoa é rica em ideias, também o é em palavras. Segundo Cícero: “A identidade em todas as coisas é a mãe da saciedade”, isto é, provoca fastídio. Por isso convém que num mesmo assunto as palavras variem, e que nem tudo seja apresentado com palavras vulgares e comuns, pois, como diz Santo Agostinho, certas coisas são encobertas para que não percam valor, e são tanto mais preciosas quanto com mais diligência foram investigadas e, com mais esforço, conquistadas.

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Seguidamente acontece também que, devido à diversidade daque-les com quem falamos, as palavras devem ser modificadas, pois sucede com frequência que o significado próprio das palavras é desconhecido para alguns ou pouco usado por eles33.

Assim, questões como: se a fé deve se basear somente em razões humanas, ou não? Se a fé diz respeito somente às coisas invisíveis, ou não? Será que Deus tem livre arbítrio, ou não? Algo acontece contrá-rio à vontade de Deus, ou não? Deus tudo sabe, ou não; trazem no enunciado a contradita de modo a estabelecer o confronto entre os textos, os quais Abelardo deslinda em busca de uma solução que não contradiga, necessariamente, as autoridades invocadas.

Segundo Jolivet34, nessa obra, o objeto e o método dialéticos de-pendem mais estritamente da questão da linguagem da fé. Acrescen-ta ainda que esta obra está dividida em duas partes: uma compilação de textos tirados, na maior parte, dos “santos” (Padres da Igreja) e um prólogo.

Dessa forma, quando são encontradas variações ou contradi-ções nos textos dos Santos Padres, deve-se examinar com cuidado o que poderia ser a causa dessas diferenças e considerar o tempo, as circunstâncias e as intenções do escritor. Além disso, comparando cuidadosamente os diferentes significados da mesma palavra em di-ferentes autoridades, chega-se facilmente à solução da dificuldade. Essa prática da oposição sistemática dos textos, embora encontrasse reserva em alguns círculos restritos, tornou-se algo como a dúvida de Descartes ou as antinomias de Kant.

Se Abelardo nunca publicara este escrito, ele talvez não o tivesse feito por receio de por em perigo a unidade da crença e também por-

33. ABELARDO, 2005b, p. 116-7. Além desse texto que é uma tradução elabora-da por Luís Alberto de Boni a partir de: PETER ABAILARD. Sic et Non. A Crit-ical Edition. Chicago, 1976; utilizar-se-á a edição Ed. J.-P Migne. Paris: Migne, 1855. Sic et non. Patrologia latina. Vol. 178.

34. JOLIVET, 1994, p. 83.

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que isso implicaria em perigo para si mesmo, pois se sabe que o livro era suficiente para comprometer o autor que se encontrava por essa época acusado no Concílio de Soissons, em 1121, o qual condenara por heresia a obra Theologia Summi Boni.

Gilson exalta a importância histórica do Sic et non e acresce o seguinte comentário:

Essa obra reúne os testemunhos aparentemente contraditórios da Escritura e dos Padres da Igreja sobre um grande número de ques-tões. Abelardo erige em princípio que não se devem utilizar arbitra-riamente as autoridades em matéria de teologia. Quanto à intenção que determinou a composição da obra, nada permite ver nela, como por vezes se obstina a fazer, o desejo de arruinar o princípio da au-toridade, opondo-se os Padres da Igreja uns aos outros. Abelardo declara expressamente, ao contrário, que reuniu essas contradições aparentes para levantar questões e suscitar nos espíritos o desejo de resolvê-las. O método do Sic et non é inteiramente incorporado à Suma teológica de Santo Tomás, em que cada questão opõe as auto-ridades a favor às autoridades contra, mas desenlaça essa oposição escolhendo, determinando e provando a solução35.

Carvalho36 observa que essa obra colige mais de duas mil cita-ções devidamente classificadas, o que suporia um trabalho em equi-pe e um rico acervo bibliográfico ou a utilização de um ou vários florilégios.

De fato, o período em que a obra foi escrita, tomando por refe-rência a datação proposta por Mews37, corresponde a onze anos de trabalho intercalados com a redação de outras obras, dentre as quais o Dialogus e a Historia Calamitatum, bem como a experiência como abade em São Gildas e o retorno a Paris ao monte de Santa Geno-veva onde fundou escola. Nesse ínterim, Abelardo tomou contato com uma variada gama de textos e foi auxiliado por alunos que o

35. GILSON, 2001, p. 342.

36. CARVALHO, 2001, p. 26.

37. MEWS, 1986, p. 122; 131.

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acompanhavam – o que de algum modo explicaria a riqueza desse texto. Marenbon38 aponta nesse mesmo sentido que para a redação do Sic et non Abelardo usou, como um estudante atualmente pode-ria usar, um arquivo de fichas (card index) para coletar material para seus escritos sobre teologia. Assim, parece não pairar dúvidas quanto ao esforço de Abelardo em deslindar o texto sagrado e os textos dos padres à luz lógica dialética.

Para Abelardo, a busca da evidência na linguagem deve estar acima da eloquência, pois pela primeira pode-se chegar à verdade enquanto que pela segunda incorre-se na incompreensão ou na com-preensão distorcida dos ouvintes. Citando Agostinho39, afirma que as palavras possuem uma característica insigne: amar a verdade mais que as palavras. Portanto, as palavras devem ser um meio para o en-contro com a verdade e não a própria verdade.

O problema posto por Abelardo no prólogo centra-se na discus-são sobre os cuidados necessários ao cotejar passagens da escritura entre si e passagens da escritura com os textos dos santos padres:

Se, pois, algumas coisas nos Evangelhos foram corrompidas devi-do à ignorância dos copistas, por que admirar-se se há casos seme-lhantes nos escritos dos padres posteriores, que gozavam de uma autoridade muito menor? Se, pois, nos escritos dos santos, parece que algo não condiz com a verdade, então é piedoso, conforme a humildade e devido pela caridade (‘que tudo crê, tudo espera e tudo suporta’ – 1 Cor 13,7 – a fim de não supor facilmente erros naqueles a quem ama), que creiamos que esta passagem do texto não foi fielmente interpretada ou foi corrompida, ou nós não a conseguimos compreender40.

Posto o problema, pode-se afirmar que o papel da dialética nesse trabalho de separar o joio do trigo, de deslindar o texto sagrado e os

38. MARENBON, 2004, p. 24.

39. AGOSTINHO, Sobre a Doutrina Cristã 11; PL 34, 108. IN: DE BONI, 2005, p. 117, nota 6.

40. ABELARDO, 2005b, p. 119.

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textos dos santos padres é de servir de instrumento para a busca da verdade. A dialética busca a verdade no discurso, examinando atenta-mente os significados dos termos utilizados e observando a tempora-lidade e a causalidade do que é dito, pois seguidamente acontece que aquilo que é concedido num tempo é proibido noutro e que a cau-sa que motiva certo discurso pode não ser a causa última do discurso que se pretende verdadeiro: a caridade, pois uma “[...] coisa é mentir, outra, errar ao falar e afastar-se da verdade pelas palavras, não pela malícia41”. A primeira implica no ato da consciência que intenciona enganar, a segunda implica no descuido do emprego da palavra que se pretende verdadeira, mas que eventualmente pode enganar.

Nesse ponto da análise desponta a dimensão ética do discurso: a intenção de proferir a verdade, ainda que eventualmente possa in-correr no risco de enganar ou omitir o que edifica.

[...] Quem pensa que entendeu as Sagradas Escrituras ou alguma parte delas, saiba que não as entendeu se pela compreensão que tem não for levado ao duplo amor, de Deus e do próximo. Quem, porém, afirmar algo que seja útil para edificar a caridade, nem enganou maliciosamente, nem mentiu se disse algo que o leitor não julga ser a interpretação correta daquele tópico. No mentiroso existe a vontade de dizer algo falso42 [...].

O discurso ético é, portanto, aquele que carrega a boa intenção do orador em edificar a caridade no ouvinte. Ainda que isso não seja suficiente – pois há que se ter os cuidados no emprego dos termos de modo a evitar incompreensões ou equívocos – a intencionalidade é o critério último para avaliar a moralidade do discurso. O cuidado no emprego dos termos e a boa intenção do agente são os elementos fun-damentais para que o discurso se aproxime maximamente da verdade.

A concepção de Abelardo acerca dos universais evidencia-se na leitura dialética da escritura e dos santos padres realizada no Sic et

41. Idem, ibidem, p. 126.

42. ABELARDO, 2005b, p. 125.

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non: a análise dos significados dos termos singulares como possibi-lidade da verdade do texto sagrado. A dialética, como instrumento para compreensão dos mistérios da fé. Dessa forma, Abelardo inicia o estudo da teologia enquanto ciência que perscruta os mistérios divinos à luz da razão, pois “[...] duvidando chegamos à procura, e procurando chegamos à verdade”43.

A inquirição é de fato a primeira chave do conhecimento; é a questão diligente e frequentemente praticada pelos filósofos perspi-cazes de alta qualidade. Tal postura, porém, fez com que a filosofia de Abelardo recebesse de alguns de seus contemporâneos o rótulo de ceticismo religioso. No entanto, tal rótulo era injusto. O espírito de investigação pode levar ao ceticismo, mas não é o ceticismo. Abe-lardo era um cristão e pode ter caído em erro, mas não em dúvida.

Conclusão

A filosofia de Pedro Abelardo, fundamentando-se na noção ló-gica de singularidade, caracteriza o método dialético como a busca da verdade no discurso, examinando atentamente os significados dos termos utilizados e observando a temporalidade e a causalidade do que é dito. Assim, a dialética prima pela busca da verdade no singu-lar, realidade última de toda existência e de todo discurso.

A verdade não pode ser buscada fora da singularidade, pois nesta é que se pode observar as condições reais de existência. Da mesma forma, a dialética na análise do discurso deve considerar o signifi-cado dos termos em seu contexto, fora do qual poderia assumir a universalidade e implicar em equívocos.

No Sic et non Abelardo investiga em 158 questões relativas à fé, aos sacramentos e à caridade, constando de várias passagens da escritura e dos santos padres que são confrontadas porque inspiram

43. Idem, ibidem, p. 129.

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contradição numa primeira e rápida leitura. Assim, questões como “a fé diz respeito somente às coisas invisíveis, ou não?”, “será que Deus tem livre arbítrio, ou não?”, “algo acontece contrário à vontade de Deus, ou não?”, “Deus tudo sabe, ou não?” trazem no enunciado a contradita de modo a estabelecer o confronto entre os textos, os quais Abelardo deslinda em busca de uma solução que não contradi-ga, necessariamente, as autoridades invocadas.

Exemplo do emprego do método dialético na discussão teológi-ca, o Sic et non pode ser considerado como ponto de partida natural do espírito de investigação aplicado à teologia, ou seja, à tradição escrita das doutrinas cristãs. Pela inquirição e confrontação exaus-tiva do texto sagrado e dos textos dos Santos Padres, Abelardo não pretendia exaurir o senso do mistério destas fontes, antes, porém, pretendia aclarar e eliminar as dúvidas decorrentes de leituras e in-terpretações equivocadas. Abelardo foi um cristão e enquanto tal poderia cair em erro, mas não em dúvida, e se, pelo seu raciocínio, alterou a fé, nunca buscou, porém, enfraquecê-la.

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a PaRtICIPaçãO POLítICa E O

REgIMEntO Da COISa PúBLICa nOS ESCRItOS DE FRanCESC

EIxIMEnIS

Rogério Ribeiro Tostes* Dennys Robson Girardi**

Resumo: Francesc Eiximenis, franciscano minorita de origem catalã, exercera profunda influência sobre os últimos soberanos da dinastia de Barcelona, ao mesmo tempo em que se tornava o porta--voz dos ideais do patriciado urbano de Catalunha e Valência. Por se mostrar atuante nesta posição lhe foi possível plasmar novos conte-údos a antigos conceitos que justificavam a potestade soberana das monarquias medievais. Por essa via, vendo na res publica christiana a imagem do corpo político, Eiximenis valorizaria a máxima fide-lidade dos membros ao bem comum, a vez que imporia uma severa restrição à titularidade real, rebaixando a razão em que jazia a cabeça ao mesmo nível do pacto firmado pela concórdia dos membros.

I. a modelação do civismo comunal na experiência mediterrânica

Adianta-se saber que posicionar um elenco de abstrações medie-vais para a origem da autoridade da lei – ou, conforme for o caso,

* Universitat de Lleida, Inst. Raimundo Lúlio-IBCFRL.

** FAE Centro Universitário, Inst. Raimundo Lúlio-IBCFRL.

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para o fundamento da soberania de estado – não deve nos trazer nada de novo junto àqueles que ainda buscam da filosofia política o situ nascendi de seu Estado moderno. Entretanto, vendo a insistência com que o tema evolui, é preciso dar algum relevo a questionamen-tos que se contraponham a uma apreensão ideológica de suas causas; ponderando com isso acerca dos tradicionais limites em que se usam os medievais como ancestrais de uma virtualidade lógica, tão extensa quanto a mesma ideia de civilização ocidental. Na emergência de debates como esse se espera recolher novas evidências para a demons-tração de um modelo que tem seus equivalentes em cima da in-terpretação do pensamento histórico. Com efeito, tal modelo segue no aprofundamento daquelas pistas que alimentam uma percepção linear da história do pensamento político, construída tantas vezes em base teleológica. Logo se abre uma escolha imediata, mas tão implícita quanto delicada, acerca do papel que tais operações her-menêuticas investem na contribuição desse “projeto civilizacional”1.

Mesmo que a discussão em torno dos escritos políticos do frade Eiximenis também possa dar sua contribuição a uma coleção de está-gios do itinerário estatal, ela não se supõe caminhar no rumo de tão coincidentes circunstâncias históricas2. Ao revés, a inserção temporal eiximeniana requer uma leitura entre seus congêneres ideológicos. É

1. Para uma discussão prévia, v. “A formação do direito medieval e os vícios da retórica filogenética do estado” In: TOSTES, Rogério Ribeiro. “Ells tenen a nós com a senyor, e nós a ells com a bons vassals e companyons” Principatus Catha-loniae, o aparato institucional e seu verbum: Dos Usatges de Barcelona às Cortes Gerais de Montsó (1382-1384). Universidade Federal do Paraná, Dissertação de Mestrado em História, Curitiba, 2011, p. 93-120.

2. Assim o veremos, a exemplo das celebrações em torno de Eiximenis e dos seis-centos anos de sua morte, como um pretexto pode emergir para se sancionar de última hora o autonomismo dos catalães e trazer, na esteira do civismo republica-no, o discurso já familiar do pactismo político medieval. É a mesma percepção que faz revelar a “surpreendente atualidade” e a vigência dos problemas enfrentados séculos atrás, que tornam conclusivas suas projeções nessa narrativa da história: “Sus ecos, en pleno siglo XXI, no se han apagado, como entenderá cualquiera que considere las vicisitudes por las que han pasado los dos Estatutos de Autonomía aprobados por el pueblo y las Cortes bajo la Constitución de 1978”. Leia-se in: Giner, Salvador. Orígenes del Pactismo Republicano: Francesc Eiximenis, teórico de la virtud cívica, El Pais, Madrid, 13 de enero de 2010.

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através deles que se entretecem valores de um modelo orgânico de sociedade, que, além de assumir a liça aristotélica de São Tomás, já fizera evocar o espaço citadino como experiência fundamental para a res publica cristã.

Na longa disputa política que marca a cronologia da Baixa Idade Média, disputa entre os poderes temporais e espirituais sediada por Império e Papado, é que se incrementam os seus elementos institu-cionais, pelo menos a partir do século XIII. Foi sob este recuo cro-nológico que se atenuou a primazia dos velhos valores feudo-senho-riais, conectos ao universo setentrional europeu, para começar outro embate no qual se contrastariam as novas concepções organicistas de comunhão política.

É quando entram em causa as interpretações sobre a natureza da sociedade política e sobre os fundamentos soberanistas daqueles que se colocam à testa de seu comando. Seguindo um esquema repetido alhures por W. Ullmann – o mesmo que assinala no medievo os umbrais do estatismo moderno –, emerge a relação de forças conhe-cida como “poder ascendente”, momento em que se transferem as concepções tomistas de natureza e lei natural à legitimidade de um corpo orgânico, resvalando, pura e simplesmente, à ideia de comu-nidade política3. Ali, a soberania é interpretada segundo a mística de uma ascese mais profunda, a do corpus mysticum, que recupera a analogia paulina da esperança salvífica advinda da revelação, uma analogia que integra o crente a uma posição cósmica, mas também reproduz em suas conexões um agente voluntarioso do sujeito por decorrência da graça que este alcança no “tempo da predestinação”; uma graça mediada pela comunhão do saber revelado, “de modo que a esperança não cede ao desapontamento porque se apoia na graça

3. ULLMANN, Walter. Historia del pensamiento político en la Edad Media. Trad. esp. Rosa Vilaró Piñol. 7a reimpressión. Barcelona: Editorial Ariel, 2009, p. 190-194.

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(charis) derramada em nossos corações pelo espírito santo (pneuma hagion), que nos foi concedido”4.

Nessas transferências de sentido, se inseriam, subrepticiamente, as finalidades do regime político em linha aristotélico-tomista. É tam-bém em razão disso que se naturalizaria o posto do governante e seu papel eletivo, tal como destacado pelos escolásticos, que de João de Paris, João de Salisbury até os escritos de Marsílio de Pádua, teorizam a participação do comum na sociedade civil5. O soberano porta os mis-térios do direito, manifesto como sacerdócio da lei e que envolvia uma profunda convicção da sacralidade desse encargo à maneira pontifical6.

Em todas estas formulações se detectam argumentos gerais, es-pecificados depois pelos matizes que representam as suas próprias tradições institucionais. No caso de fixar o ambiente de influência do frade Eiximenis, nosso interesse tende aos modelos de bom governo desenvolvidos no interior das comunas do centro-norte da Itália7;

4. VOEGELIN, Eric. A era ecumênica. Ordem e História, volume IV. Trad. Ed-son Bini, da versão em língua inglesa. São Paulo: Edições Loyola, 2010, p. 311.

5. Cf. VILLEY, Michel. La Formation de la pensée juridique moderne. Paris: Quadrige/PUF, 2003, p. 181-200. Ou, para o polêmico debate travado com este último acerca da invenção dos direitos naturais, v. TIENEY, Brian. The Idea of Natural Rights: Studies on Natural Rights, Natural Law and Church Law (1150-1650). Michigan: W. B. Eerdmans Publishing Co., 1997, p. 13-42.

6. KANTOROWICZ, Ernst H. Segretos de Estado. (Un concepto absolutista y sus tardíos orígenes medievales.) Trad. L. Rodríguez Aranda. Revista de Estudios Políticos, nº 104, Madrid, 1959, p. 45.

7. Esta determinação geográfica recebeu alguma ênfase historiográfica que a quis sempre justificada; entretanto, esta originalidade hoje se mostra menos restrita, problematizada pelas investigações que matizaram essa interpretação, passando a considerá-la também no restante da península. Tomadas suas variações locais, nelas se veriam estimular a formulação dos ideais de civismo político, presos pela recuperação de discursos clássicos acerca do governo ideal e o interesse do bem comum. Dentro da multidinária bibliografia que trata do assunto, pode-se con-sultar uma síntese mais recente, in: GILLI, Patrick. Cidades e sociedades urbanas na Itália medieval. Séculos XII-XIV. Trad. Marcelo Cândido da Silva. São Paulo/Belo Horizonte: Ed. Unicamp/ Ed. UFMG, 2011.

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ou mesmo nas regiões do sul peninsular, onde havia uma predomi-nância de grandes linhagens nobiliárias , em que a dinâmica política do século XIV seguiria a da protagonização dos centros urbanos, ela própria decorrente da tensão exercida pelos vetores da monarquia e da nobreza. Estimulou-se uma colocação de agentes institucionais, a exemplo das facções menos poderosas ou das elites burocráticas, cuja ascendência social firmariam a prerrogativa do espaço citadino como núcleo ativo da comunidade. Não seriam apenas as comunas de Pisa, Florença, Veneza, Siena ou Milão as únicas a reproduzirem essa tônica da urbanidade; à semelhança destas, tributava-se grande importância às formas do civismo urbano idealizado desde as oligar-quias de Palermo, Cataneo e Messina8. Bem planeadas, essas noções iriam germinar o corpo das instituições representativas, justamente estimuladas pelo fator de isolamento e pela gradual soberania do espaço comunitário, ambos mui fortalecidos com a consciência da vida urbana e de sua exaltada “religião cívica”. Tais distinções permi-tiam o aparecimento quase simultâneo de novos protagonistas, que vinham das principais fileiras das elites urbanas. Com ele também vai se caracterizando uma burguesia mais consciente de sua posição estamental, que agora finalmente se vê incluída no esquema teológi-co de participação ordenamental da sociedade9.

A organização dos espaços comunais italianos mostra que, em meio a toda a verticalidade denotada com os esquemas tradicionais, também pode ser viável um regime de governo em que se instrumen-talizam outros meios de participação. A idealização deste modelo é tão forte, que seus argumentos de justificação se replicam de muitas

8. Cf. CORRAO, Pietro. Fra città e corte. Circolazione die ceti dirigenti nel regno di Sicilia fra Trecento e Quattrocento. In: ROMANO, A. (a cura di). Istituzio-ni politiche e giuridiche e strutture del potere politico ed economico nelle città dell’Europa mediterranea medievale e moderna. La Sicilia. Messina: Accademia peloritana dei Pericolanti, 1992, p. 13-42. Disponível em: <www.retimedievali.it>.

9. TOSTES, Rogério Ribeiro. O nascimento do purgatório como preparação do burguês: espaços citadinos, teologia social medieval. Revista Vernáculo, nº 17-18, 2006, p. 126-137.

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maneiras, seja na valorização teológica dada pelos franciscanos ao espírito da urbanidade, tanto de uma confecção cultural de novos ideais de cortesia10. Ia-se ainda mais longe, a ponto de elaborar um conceito de nobiltade bastante peculiar, em que as valorações do pos-to aristocrático contidas nos estatutos comunais chegavam a manter inclinações expressamente “antinobiliárias”11. Em regiões como Tús-cia ou Toscana, os velhos distintivos mantidos pelos estratos milite eram depreciados ante a preferência dos ideais de fama e fortuna, chegando-se algumas vezes a se justapor juridicamente esses status. Em De nobiltade legum et medicine, Coluccio Salutati afirmava que pouco importaria a dignidade do sangue se se tomasse em conta o brilho das virtudes professadas em honra da coisa pública12.

A ampla circulação dos esquemas comunais de organização polí-tica – levados a distâncias remotas dentro do alforje de São Francisco –, teriam se espraiado nos séculos XIII e XIV por uma vasta área de contágio que se tem identificado de “arco mediterrânico”. No espectro aberto por este arco se situam cidades que interligaram o fluxo comercial, constituindo verdadeiros núcleos regionais onde os grupos urbanos atuam como depositários diretos dessa racionalidade ético-econômica13. Os territórios integrados aos domínios da Coroa

10. ROMAGNOLI, Daniela. Cortesia nella città: un modello complesso. Note sull’etica medievale delle buone maniere. In: La città e la corte. Buone e cative maniere tra Medioevo ed Età Moderna. Milano: Guerini, 1991, p. 24.

11. DONATI, Claudio. L’idea di nobiltà in Italia. Secoli XIV-XVIII. Roma/Bari: Laterza, 1988, p. 3-9, referindo-se a Bartolus em seu comentário ao De Dignita-tibus, liv. XII.

12. Idem, ibidem, p. 9, citando o De nobiltade legum et medicine de Coluccio Salutati: “Unde et inolevit illos appellare nobiles, qui maiorum suorum claritate conspicui sunt; non quidem antiquitate sanguinis, quoniam omnes unico descen-dimus ab Adam, sed antiqua dominatione familie, que suum nomen, virtute pro-genitorum, fama, gloria, potentia, dignitatibus, divitiis et clientelis diu famosum potuit conservare”.

13. TODESCHINI, Giacomo. Mercato medievale e razionalità economica moder-na. Reti Medievali, nº 7, Firenze, 2006/2. Disponível em: <www.retimedievali.it>.

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de Aragão mantinham as mesmas continuidades dessa dinâmica. Foi principalmente em terras catalães e valencianas que tal projeção se converteria, também graças ao seu múnus econômico, em instru-mento de pressão contra os velhos setores estamentais da igreja e da aristocracia baronial14.

O aparecimento do protagonismo, ou de vários protagonismos regionais, de setores do patriciado urbano toma parte no mesmo movimento que alavancara as pretensões monárquicas sobre a insti-tucionalização do seu corpo político. À base das ancoragens jurídicas dos studia de direito romano, o pensamento dogmático dá as razões de partida para a elaboração de uma ficção da corporação civil. Tal como se nota no ambiente comunal italiano, os coletivos urbanos da Catalunha e do reino de Valência adotam correlatos homólogos, se autodefinindo personalidades jurídicas próprias, celebrando a uni-versitas como comunidade política fundamental.

Do mesmo modo, a pujança de suas cidades é celebrada, pois através dela se materializa o ideal agostiniano da ciuitas Dei, em que o aprimoramento do homem se completa no cristão. A presença do franciscanismo junto das outras ordens mendicantes reforça essa apologia de um ideario urbano, que contrapõe o citadino ao paga-nus, inferindo que o rústico desconheceria os valores suficientes da ética. O frade Francesc Eiximenis fala assim de uma “malícia pagesí-vol” (i.e. a maldade do aldeão), um vício que recai sobre aquele que, em sua rusticidade, está próximo à condição do animal, condição própria do homem que “és així brutal que no sap fer ne entendre en neguna cortesia ne en neguna civilitat ne policia”15. Aprofundada no mote aristotélico, essa linha de argumentos não enxerga alternativa à

14. SABATÉ, Flocel. La civiltà comunale del medioevo nella historiografia spag-nola: affinità e divergenze. In: I Convegno Internazionale di Studi. La civiltà co-munale italiana nella storiografia internazionale (Pistoia, 2005). Centro di studi sulla civiltà comunale, Pistoia-Firenze, 2008, p. 117-162.

15. Francesc Eiximenis. Terç del Crestià, cap. CIII. Lo Crestià. Ed. Albert Hauf. Barcelona: Edicions 62-La Caixa, 1983, p. 114.

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habilitação moral do espírito, sem a qual não se atingiria uma poten-cial e verdadeira plenitude. No prefácio de seu Regiment, o mesmo Eiximenis exaltava a cidade de Valência, que, além de ser a cabeça do reino de que toma nome, é a “elet entre los altres de tota Espanya”.

De igual, a virtude daqueles que participam do espaço citadino é louvada desde sua nobreza espiritual e são representados pelos pro-homines das capas dirigentes, às quais se dirige Eiximenis. A elas é que se transfere o encargo de zelar pelos menores da terra e pela paz da comunidade, pois foi para tanto que “Déus vos haja comanada tan noble terra, e tan alta ciutat, e tan gloriós poble e tan endreçats habitadors…”16. Também em Catalunha as distinções da elite cidadã conferiam sinais de nobilitamento, a partir de que se amadureceriam novos argumentos jurídicos como os de T. de Mières, quem também expusera uma sugestiva familiaridade com os valores comunais ita-lianos, vindo a postular em pleno século XV que “cives et burgenses aequiparari militibus”17.

Reunidos em torno de todos esses esquemas, o da cidade como espaço ideal do politicus christianus e o do burguês em sua ativida-de geradora de riquezas, a finalidade última do mote franciscano se manifesta pela justificação da ordem comum. Dentro desta, a “coisa pública” trava contato com os debates sobre a corporação mística da sociedade medieval e a originalidade da plenitude de poder requeri-da pelos discursos régios. Aliada da tradição exegética que atenuava a interpretação da teologia agostiniana do direito ao mando senho-rial (Herrschaft) como qualidade da dominatio e que propunha em

16. Francesc Eiximenis. “La lletra que l’actor del llibre tramet, endreçat aquell, als jurats de la ciutat de València”. In: Regiment de la Cosa Pública. Ed. Daniel Mo-lins del Rei. “Els Nostres Classics” vol. XIII. Barcelona: Editorial Barcino, 1927, p. 37.

17. Tomàs de Mières. Apparatus super constitutionibus curiarum generalium Cathaloniae. Barcelona, 1621, vol. I, p. 110 cit. in: SABATÉ, Flocel. La civiltà comunale..., p. 119.

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seu lugar um modelo de “equidade escatológica”18, vinha a máxima romanista quod omnes tangit que firmara a ideia de consenso sobre matérias políticas de interesse público19. Assim a noção de pacto ins-titucional naturaliza esses discursos em relação direta com a postestas soberana. Uma noção que se mostra bastante coerente com o princí-pio de unidade do universo, com o qual todas as coisas se integram no uno – omnis multitudo deriuatur ab uno – e que serve aos pre-ceitos da comunidade eiximeniana, onde “cascuna bona comunitat haja a ésser unitat e benivolència... lligada en amor e en concòrdia”20. Nesta unidade, o exercício do governo é pautado nos modelos de regime político definidos em Aristóteles.

Entretanto, ao incluir o terceiro deles, Eiximenis manifesta sua inclinação natural ao acordo “democrático”, a partir do qual se “senyoreja tot lo poble en alscuns elegits per ells a temps cert” e que buscam o profit de la comunitat. Neste último, chamado por ele de regiment del poble, há uma comparação com a experiência cívica das

18. BUC, Philippe. ‘Principes gentium dominantur eorum’: Princely Power Be-tween Legitimacy and Illegitimacy in Twelfth-Century Exegesis. In: BISSON, Thomas N. (org.). Cultures of power: lordship, status, and process in twelfth cen-tury Europe. Philadelphia: University oh Pennsylvania Press, 1995, p. 316-319.

19. Esta máxima foi divulgada através da aplicação analógica dada pelas decretais pontifícias de um texto de direito privado justiniano (Codex, V, 59, 5). Ele foi repetido nas decretais de Inocêncio III e de Gregório IX, manifestado também em Bonifácio VIII (Liber Sextus 5, 12, 29), servindo de antecedente para os con-ciliaristas dos períodos seguintes. Sua presença na tradição textual hispânica tem larga precedência, incluído pelas Partidas do rei castelhano Alfonso X (Lib. II, t. XVI, l. V), e retomado pelo tratado de espelho de príncipes do infante frade Pere de Aragão, contemporâneo de Eiximenis. Nestes últimos exemplos, há uma interpretação limitada ao decisionismo dos súditos sobre questões militares. (Pere d’Aragó. Tractatus de vita, moribus et regimine principum. Ed. Alexandra Bea-champ. Biblioteca Electrònica Narpan, dec. 2005. Disponível em: <http://www.narpan.net/ben/>).

Cf. MARAVALL, José Antonio. La corriente democrática medieval en España y la formula “quod omnes tangit”. In: Estudios de Historia del Pensamiento Español. Serie primera. Edad Media. Madrid: Ed. Cultura Hispánica, 2001, p. 153-167.

20. Regiment de la Cosa Pública, cap. I.

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comunas italianas, diretamente indicada como aquele regime que se “fa hui en Italia”21. Todavia, Eiximenis tem em mente que é preciso adequar tais valores sobre o contexto institucional catalano-arago-nês, compondo um híbrido de governo que converge os sentidos vo-luntaristas da participação comunal à tradição monárquica ibérica22. Na vasta produção escrita do frade catalão, esse modelo recupera sentidos muito próprios, sensíveis aos fatores políticos que ele teste-munhara e às orientações intelectuais que se desenvolveriam a partir dos ambientes universitários, que tanto influenciaram sua formação.

II. Sociedade estamental e titular régio no Regiment de la cosa Pública

Ainda que por largo tempo o conhecimento sobre a educação intelectual de Eiximenis fosse objeto de variadas indagações, hoje se tem concordado com um trajeto biográfico para seus primeiros assentos. Após ingressar na Ordem Menor de São Francisco no con-vento de Girona, também sua cidade natal, ele receberia sua orde-nação em Barcelona – a 22 de dezembro – no ano de 1352, por ocasião da transposição do convento franciscano para aquela cidade. Todavia, no intervalo que marca de 1355-65, quando já se via junto aos franciscanos de Valência, é que se registrariam seus primeiros estudos em teologia e filosofia, completados mais tarde pela breve permanência nos famosos studia de Colônia, Paris e Oxford23. Par-

21. Terç del Crestià, cap. DCIII.

22. Sobre essas valorizações, remeto a um trabalho preparatório que aborda a tran-sição dos posicionamentos franciscanos no coletivo discursivo catalano-aragonês da segunda metade do século XIV: TOSTES, Rogério R. Francesc Eiximenis e o Infante Pere d’Aragó: duas perspectivas franciscanas sobre o titular régio. (A publicar nos anais do II International Medieval Meeting Lleida, Universitat de Lleida, 2012).

23. CERVERA, Luis. Francisco de Eiximenis y su sociedad urbana ideal. Madrid: El Escorial, 1989, p. 20.

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ticularmente em Oxford, se beneficiou do estúdio franciscano e da proximidade com importantes teóricos da ordem, uma proximidade que mais tarde transpareceria em seus escritos, absorvendo influên-cias de pensadores como Thomas Bradwardine, Alexandre Hales, Guilherme Ockham, Duns Scotus, onde ainda figuriam as ideias de João de Gales24. Depois, na corte papal de Avignon, se apresentara a Urbano V, completando seu ciclo de viagens em uma peregrinação pela península itálica que duraria de 1365 até 1370. De seu regresso à cidade condal é que se iniciam as relações que o aproximariam da casa régia de Aragão, relações que lhe garantiriam patrocínio para a estada universitária no estúdio de Toulouse e a obtenção do título de magister theologiae em 137525.

Temos um testemunho sobre a experiência formativa dessas via-gens no manuscrito de sua Vita Cristi (52, II), onde além de deixar detalhes de suas impressões de passagem a respeito do funcionamen-to das instituições comunais italianas ainda expõe suas opiniões so-bre outros modelos de governo local como os que encontrara em terras inglesas e germânicas26. Em todos esses itinerários ele manteve atenção em apontar a superioridade dos regimes de participação e o protagonismo dos elementos urbanos no equilíbrio de suas forças.

24. HAUF, Albert G. Eiximenis, Joan de Salisbury i Fr. Joan de Gal×les, OFM. Miscel·lània Sanchis Guarner, vol. I. Quaderns de Filologia. Universitat de Valèn-cia, 1984, p. 167-174.

25. A 3 de agosto de 1373, o rei Pere III expede uma ordem ao tesoureiro-mor, Pere de Vallo, para que envie a quantidade de 50 florins de ouro ao frade Eixime-nis, quos nos sibi in sustentacione sumptuum per eum fiedorum pro obtinendo magisterium in sacra pagina, ad quod habendum in Studio Tolosano noviter. In: Rubió Y LLUCH, Antoni (ed.). Documents per l’història de la cultura catalana mig-eval, vol. II. Barcelona: Institut d’Estudis Catalans, 1908-1921 (Ed. facsím. de 2000), doc. CLXXVI, p. 168. Em nota, Antoni Rubió menciona outra carta, dada pela rainha Eleonor, de 5 de agosto de 1372, que também visava cobrir seus estudos naquele primeiro ano mediante a concessão de 25 florins aragoneses.

26. Francesc Eiximenis. Vita Christi. Biblioteca Universitària de València, ms. 209.

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Essa insistência responde a uma difusão que já vinha de seus contemporâneos de ordem27 e ajuda a compreender algo frisado por Paolo Evangelisti como a “notevoli interconnessione struturali e linguistiche” praticada pelos franciscanos como meio de forjar uma discursividade particular à ideia de consenso político28. O pleno de-senvolvimento dos valores consensualistas indica, desde Marsílio de Pádua, uma forte indicação da prevalência representativa da valen-tior pars. Uma prevalência que seguia concorde às interpolações bar-tolianas acerca do finalismo corporativo e da obediência ao princípio majoritário, a maior pars, como forma de deliberação mais conve-niente à equidade do direito29.

No pensamento eiximeniano, a guarida da coisa pública deve ser posta nas mãos daqueles que são mais bem habilitados para gerir a

27. Todavia, essa influência chegaria a ultrapassar os limites do franciscanismo, vindo junto de uma pluralidade de vias interpretativas que, egressas de entre os mendicantes, esboçariam os seus regimes políticos ideais segundo as mesmas linhas gerais. Fora Roberto Lambertini quem estudara os escritos de outros franciscanos em perspectiva comparativa, a exemplo do que relacionaria entre De Mayronis e Ockham, ambos discutindo a respeito da monarquia universal; ambos traziam nestas discussões um questionamento sobre a eficácia das potestades e a hierarquia delas na posição do regime mais desejável. Cf. LAMBERTINI, Roberto. Governo ideale e riflessione politica dei frati mendicanti nella prima metà del Trecento. In: Etica e politica: le teorie dei frati mendicante nel due e trecento. “Atti del XXVI Convegno storico Internazionale”, Assisi, 15-17 ottobre 1998. Spoleto: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, 1999, p. 266-277.

28. EVANGELISTI, Paolo. I pauperes Christi e i linguaggi dominativi. I francesca-ni come protagonisti della costruzione della testualità politica e dell’organizzazione del consenso nel bassomedioevo (Gilbert de Tournai, Paolino da Venezia, Francesc Eiximenis). La propaganda politica nel Basso Medioevo. “Atti del XXXVIII Con-vegno storico Internazionale”, Todi, 14-17 ottobre 2001. Spoleto: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, 2002, p. 315-392.

29. O tema, muito considerado pelo medievalismo italiano, recebe uma discus-são alentada in: D’ANGELIS, Gianmarco. ‘Omnes simula ut quot plures habere potero’. Rappresentazioni delle colletività e decisioni a maggioranza nei comuni italiani del XII secolo. In: Reti Medievali, nº 12, Firenze, 2011/2. Disponível em: <www.retimedievali.it>.

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vida de toda a comunidade, porquanto “la multitut dels bons con-sells solament està en pocs hòmens”30. Assim, também na percepção que encerra o significado do interesse comum ou do “profit de la cosa pública”, Eiximenis cooptaria uma variada gama de vocabulários po-líticos que simultaneamente justificariam o posto do governante da república cristã e os deveres deste para com seu imediato regiment.

Na sua doutrina política, o titular régio é integrado à ordem mís-tica da sociedade como um seu servidor, atuante no papel de prove-dor da prosperidade – aquela de feição econômica, conquanto moral e espiritual – dos participantes da comunidade. Fala-se ademais em utilitas publica como em sentido tradicional, mas atrás do acréscimo semântico que subordinaria as antigas formas de ação política dentro desta nova doutrina. Logo, os vetustos conceitos do ideário político passariam a ser preenchidos por sintagmas bastante ressignificados. Pois se por um lado ainda se reempregavam os axiomas teológicos de São Paulo da caridade, da fé e da esperança, agora este tripé resultaria em um modelo imediato de justiça política que também serviria a tutelar os interesses de um grupo social mui específico, feito deposi-tário direto da generalidade da comunidade política31.

Essa hibridação conceitual, composta como que transitivamente aos sentidos que quer fixar, alinha um modelo desejável (“així com se fa hui en Italia”)32 com outro mais concreto, ou simplesmente realista ante a constituição de lideranças políticas que Eiximenis co-nhece, o qual o leva a manter a ancoragem de sua “reforma filosófi-ca” no mesmo ideal monárquico teorizado por seus antecessores. A “imagem” do príncipe é aquela que reúne em si todos os predicados

30. Regiment de la Cosa Pública, cap. XVI.

31. EVANGELISTI, Paolo. Credere nel marcato, credere nella res publica. La comunità catalano-aragonese nelle proposte e nell�azione política di un esponente del francescanesimo mediterraneo: Francesc Eiximenis. Anuario de Estudios Me-dievales, nº 33/1, Madrid, 2003, p. 88.

32. Terç del Crestià, cap. DCIII.

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do referencial universalizante, ele integra em sua própria abstração institucional a abstração da comunidade política que outorga sua soberania33; entretanto, apesar de tudo isso, e adotando a escatologia joaquimista, o frade catalão chega a considerar esta vigência do regi-me monárquico um tipo de contingência temporária. Esta convic-ção, que haveria de ser afirmada diversas vezes – em algumas ocasiões com imensa sutileza, e noutras, de maneira mais ostensiva –, leva-o a insistir na forma pactual do liame político presente entre os “naturais da terra” e o senhor que os governa, atuando vicária e eletivamente neste posto hierárquico. Com essa ideologia de governo, o ponto de vista é justificado pela averiguação de que as sociedades humanas são livres desde seu aparecimento, razão que impõe constatar que “les comunitats són totes franques” ou livres, e por esta mesma liberdade elas também mantêm os seus cônsules ou seus soberanos subordina-dos a partir de um voluntarismo tácito da soberania. Em tal vontu-larismo, elas se fazem reger sempre “per amor de si mateixa”:

cascuna comunitat féu ab sa pròpia senyoria patis e convencions proffitosos e honorables per si matexa principalment, e après que aquell o per aquells a qui donà la potestat de son regiment. Assò appar per tal car la comunitat no alagí senyoria per amor del regi-dor, mas elegí regidor per amor de si mateixa34.

Sustenta-se assim uma origem da soberania comunitária (ou co-munal) que se adianta in nuce a um posto muito mais profundo que o daquela atribuída ao protagonismo monárquico35. Afinadas essas singularidades, Eiximenis reposiciona o lugar do monarca na ordem

33. D’ABADAL, Ramon. Pere el Cerimoniós i els inicis de la decadència política de Catalunya. Trad. Xavier Fort i Ramon Pinyol. Barcelona: Edicions 62, 1987, p. 166. [Publicado originalmente in: MENÉNDEZ, R. (dir.). Historia de España, vol. XIV. Madrid: Espasa-Calpe, 1966.]

34. Dotzè del Crestià, cap. DCVII.

35. LÓPEZ-AMO, Ángel. El pensamiento político de Eiximeniç en su tratado del Regiment de Princips. Anuaria de Historia del Derecho Español, XVII, Madrid, 1946, p. 5-139.

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política medieval. Logo, o vértice real não passa de um “representan-te” dos transcendentes interesses da comunidade e não uma entidade que detém justificação em si mesma. A mesma potestade que confere os limites de um agir político da persona ficta do soberano se vê su-bordinada aos mandamentos divinos que fundaram o todo humano (donde transparece a figura da cidade), já que sua finalidade é prover a salvação social dos membros do corpo político. É a entidade mu-nicipal, ou a comuna, que recebe a virtude política da universitas, repondo o papel fundamental conferido até pouco tempo à noção mais integradora de regnum.

No olhar profético de Eiximenis, um olhar que em tudo se coa-duna ao franciscanismo espiritualista difundido no território da Co-roa catalano-aragonesa36, o destino fatal daquelas entidades monár-quicas seria o da aniquilação. Mesmo após ter recebido os favores do rei Pere III, ocupando mais tarde lugares de destaque entre os altos conselheiros do rei Joan I, Eiximenis manteria uma ideia bem clara sobre a duração daqueles regimes de governo. Para ele a senhoria real continuaria se mostrando justa na mesma medida em que se lhe pesasse certas limitações ao seu proverbial iure divino.

Em uma das passagens mais densas do Dotzè, nas mesmas em que sua vocação joaquimista se mostra por completo, Eiximenis profeti-zaria que estava próximo o dia em que todos os potentados senhoriais se extinguiriam, marcando uma nova era na história humana:

En lo derrer centenari del món, qui serà in apercione sexti signaculi ecclesie, qui diu que començarà Anno Domini millesimo CCCC, d’aquí avant ço diu, no y haurà reys, ne duchs, ne comtes, ne no-bles, ne grans senyors, ans d’aquí avant fins a la fi del món regnarà per tot la justícia popular; e tot lo món per consegüent serà partit e regit per comunes, axí com huy se regeix Florença, e Roma, e Pisa, e Sena e d’altres ciutats de Ytàlia e de Alemanya37.

36. WEBSTER, Jill R. Els Menorets: The Franciscans in the Realms of Aragon From St. Francis to the Black Death. Toronto: Pontifical Institute for Medieval Studies, 1993.

37. Dotzè del Crestià, cap. CDLXVI.

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III. Os traços espiritualistas no pensamento eiximeniano

É preciso observar o quanto há de joaquimismo, ou dos resíduos dele na teoria política do frade catalão. Há pois uma relação parcial-mente evidente nos seus escritos com a larga difusão dos vaticínios de Gioachino de Fiore, a mesma que desde o século XIII daria causa ao sectarismo dos espirituais dentro da ordem dos franciscanos, e que, ulteriormente, criaria novas subdivisões a exemplo dos fraticelli, condenados como hereges pela ameaça subversiva que sua doutrina trazia para a alta hierarquia eclesiástica. Bem, é mediante uma in-terpretação milenarista do repertório bíblico vétero-testamentário, ancestral indireto do Expositio in Apocalysim do abade De Fiore, que se produzia a convicção de um vindouro reino messiânico, lugar de justiça e equidade, e acima de tudo, um paraíso terrestre em que a restauração das desigualdades eliminaria as distinções corporativas em nome de uma grande e perfeita comunidade cristã.

Tal como a inscrição trinitária do joaquimismo, que recuperada pela investigação de Jean Delumeau, inserta os estágios de uma his-tória escatológica: “o tempo da lei natural e mosaica anterior a Cristo [a idade do Pai]; o tempo marcado pela vinda de Jesus ‘sob a letra do Evangelho’ [sendo a idade do Filho]; enfim o tempo, doravante próximo, em que triunfará a ‘inteligência espiritual’ [e portanto, a idade do Espírito]”38. Com este telos propugnado na forma de um termo inescapável do destino histórico, tendo em jogo a própria sal-vação espiritual dos homens, a comunidade humana – ou a societas christiana – terá enfim cumprido seu desígnio providencial, no qual também fora definido o motor primeiro de sua existência.

Mesmo depois que a condenação feita em 1318 pelo papa Jo-hannes XII, com a bula Gloriosam Ecclesiam, eliminasse a facção dos espirituais, seus seguidores continuariam agindo com força, con-

38. Delumeau, Jean. Mil Anos de Felicidade. Uma História do Paraíso. Trad. Pau-lo Neves. São Paulo: Cia das Letras, 1997, p. 42.

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centrados como estavam em algumas partes da Itália meridional, na Provença, e também na Catalunha39.

Embora um tanto contestada, a pista mais explícita que temos de que ele tivesse seguido essas vias fica por conta do escrito De Triplici Statu Mundi, quando prontamente se declara que “enim tres status mundi penes similitudinem summe Trinitatis et increate, ideoque primus status mundi apropriatur Deo Patri, et secundus Deo Filio, et tercius Deo Spiritui Sancto”. Embora haja questionamentos sobre a autoria de Eiximenis neste pequeno tratado40, ainda há de perma-necer a patente circulação dos mesmos temas – desde fins do XIII até todo o XIV, de Arnau de Vilanova ao enérgico predicante Vicent Ferrer –, tal como o foram apropriados pela posteridade joaquimita, a qual também figura como coetânea das concepções vigentes ao tempo do frade genonino41.

Além de tudo, a redação do Crestià também vem repleta dos mesmos temas quiliastas, reproduzindo a divisão cronológica da his-tória em sete eras, por sua vez subestabelecidas por uma divisão ter-

39. JASPERT, Nikolas. El perfil transcendental de los reyes aragoneses, siglos XIII al XV: santidad, franciscanismo y profecias. In: La Corona de Aragón en el Centro de su Historia (1208-1458). La Monarquía aragonesa y los reinos de la Corona. Colección Actas, vol. 74. Zaragoza y Monzón, 1 al 4 de diciembre de 2008, p. 183-218.

40. A respeito da controversa questão desta autoria, pode-se retomar dois tra-balhos especializados, cf.: Hauf, Albert G. D’Eiximenis a sor Isabel de Villena. Aportació a l’estudi de la nostra cultura medieval. Institut de Filologia Valencia-na/Publicacions de l’Abadia de Montserrat, 1990. Perarnau, Josep. Documents i precisions entorn de Francesc Eiximenis (c.1330-1409). Arxiu de Textos Catalans Antics, I, 1982, p. 191-215.

41. Sobre a presença da tradição escatológica nas terras catalano-aragonesas, cf. Toldrà, Albert. Mestre Vicent ho diu per spantar. El més enllà medieval. Tesi Doc-toral en Història, Facultat de Geografia i Història, Universitat de València, 2006, p. 335-3375. Aurell, Martin. Escathologie, spiritualité et politique dans la confé-dération catalano-aragonaise (1282-1412). Cahiers de Fanjeaux, “Fins du monde et signe des temps. Visionnaires et prophètes en France méridionale (fin XIIIe--debutXVe siècle)”, nº 27. Toulouse: Privet, 1992, p. 191-235.

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nária da igreja “segons diverssos temps passats del començament del món ençà sots tres lleys justes e sanctes” – as leis da natureza, das escrituras e da graça42. Todas elas a se consumarem com a parousia, a iminência apocalíptica do reinado milenar cristão, no qual viriam em sucessão a conversão dos judeus, a extinção da “seita maometana”, a recupe-ração de Jerusalém pela cristandade latina e, finalmente, o apareci-mento do Anticristo místico deste tempo.

Esses dados seguiriam bem ajustados aos termos adventícios do messianismo joaquimita e ao impacto adicional de um acontecimen-to coevo a Eiximenis, o chamado “cativeiro de Avignon”, uma crise no seio da Igreja provocada com a disputa de duas sés apostólicas sobre o primado de São Pedro. Tal acontecimento fora interpreta-do pelo menorita e por outros franciscanos, como um destino da purificação provada pela Igreja dos últimos dias, o que abriria um momento decisivo na transformação universal do mundo: “E açò farà la purgació dels ecclesiàstichs e del món aprés, que ja és a les portes. Emperò, jatsia que la dita terra sia presa, per poch temps durarà e estarà en mans de crestians, e açò fins a la fi del món”43.

Sendo Eiximenis um homem reconhecido pela sua ortodoxia, talvez seja de causar surpresa que alguns dos pontos fundamentais de sua doutrina caminhem tão próximos de concepções escatológicas imersas em teor herético. Porém, sem nenhum risco de achar nisto uma verdadeira incongruência, o visionário eiximeniano não neces-sita que o salvemos da apostasia44.

42. Primer del Crestià, Biblioteca Nacional de Madrid, ms.1790, f.139v.

43. Primer del Crestià, cap. CCLXX, Biblioteca Nacional de Madrid, ms.1790, ff. 188v-189r.

44. Após tudo o que se fez levantar na obra eiximenia em matéria de evidência textual, fica-se mais perto das motivações que mantiveram esses escritos afastados como tradição apócrifa. Há que se encarar entre elas a convicção de uma orto-doxia teológica interessada na habilitação espiritual de Eiximenis. Com efeito, é o que transparece da fala de Nolasco del Molar: “después de desechar nosotros escritos y actos que le han sido falsamente atribuidos, aún nos resulta inquie-

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Observando melhor, compreende-se que estas e outras particu-laridades de sua apreensão filosófica são consubstanciais de um co-letivo de pensamento historicamente apropriado; por esse mesmo aspecto, havia feito notar Lluís Brines: “hem de dir que si bé po-dem considerar Eiximenis com a home del seu orde, aquest (l’orde franciscà), així com la resta d’ordes mendicants, tenen un trets ben específics i al mateix temps arrelats a la terra catalanoaragonesa on es desenvoluparen”45.

tante su inclinación a Giochino de Fiore y a Ubertino de Casale, muchas de sus citas misteriosas su afición a la astrologia y a las profecías, así como sus ataques a eclesiásticos en general y a los campesinos, entre otras clases de hombres; però se hace mas atractivo Eiximenis cuando en sus escritos algunas veces se humilia, no sin alguna expresión chocante, y cuando manifiesta su completa adhesión a la Iglesia romana” Molar, Nolasco del, OFM. Perfil espiritual de Eiximenis. Revista de Girona, nº 22, 1963, p. 67-75. Também, cf. Fuster, Josep. Rebeldes y heterodoxos. Barcelona: Ariel, 1972. Saranyana, Josep-Ignasi. El debate sobre la adscripción al joaquinismo de Francesc d’Eiximenis. In: Filosofía y Teología en el Mediterráneo Occidental (1263-1490). Pamplona: Ediciones Universidad de Navarra, 2003, pp. 174-180.

45. “Segons aquesta profecia, el món havia de passar per moltes misèries; els cris-tians havien de sofrir greus tribulacions de part dels infidels, però de França havia d’eixir un emperador, restaurador del poder cristià, destructor dels sarraïns i domi-nador universal, el qual havia d’imposar una era de pau. Més endavant, els enemics de la casa d’Alemanya identificaren aquest emperador amb Carles I d’Anjou. Mort aquest i no havent reaparegut Frederic en la data predita, els interpretadors con-tinuaren aplicant les profecies als successors de Frederic i de Carles, especialment quan eren representants significats dels partits de güelfs i gibel.lins. Els nostres reis no quedaren fora d’aquesta activitat profètica. Casat Pere el Gran amb Costança, filla de Manfred de Sicília, emparentat, per tant, amb la casa d’Alemanya, podia ell, o algú dels seus descendents, ésser l’emperador universal enemic de l’Església” (“Prediccions i profecies en les obres de fra Francesc Eiximenis”. Dins Aportació a l’estudi de la cultura catalana. Barcelona. PAM. 1982, p. 97-8).

“La doctrina de Joaquim [de Fiore] admetia l’adveniment de dos Anticrists, el pri-mer del qual havia d’ésser precursor de l’Anticrist final i perseguidor de l’Església, emparat per un fals emperador heretge. Aquest rol fou donat a l’emperador Fre-deric d’Alemanya, mort en 1250. Els autors de profecies volien que reaparegués en 1260 o 1261 – la data assenyalada per Joaquim –, i ocasionés a l’Església les calamitats que havien de precedir la terça edat del món” (Ibidem, p. 97).

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Lemos na aprofundada análise que Lluís Brines fez do assunto, esclarecendo melhor o longo filão joaquimita na obra do Eiximenis, após o que se recuperam as disposições mais polêmicas que o pon-tuam, desde o Crestià aos tratados De Triplici Statu Mundi e Vita Christi46. Em sua vocação franciscana, vemos a acentuação de uma escatologia popular da qual a própria teologia erudita e canônica já havia programaticamente se afastado47, aliando com ela uma auste-ridade jungida pela primeira regra de São Francisco, que enaltecia os preceitos destinados ao ideal de urbanidade comunal e tornaria particularmente atraente o discurso professado por uma “escatologia coletiva”. Também segue imprescindível que incluamos esse sistema escatológico junto aos demais pontos-chave de sua reflexão política, os quais ao montante de tudo isso o levam ao complexo de ulteriores formulações teocráticas; sobretudo, entre a posição eiximeniana, que se mostrara simultaneamente favorável ao papel social desempenha-do pela burguesia, e sutil em suas declarações de antimonarquismo.

Iv. Linguagem e representação política

Apesar do idealismo da proposta eiximeniana, ela reflete favora-velmente a pletora de concepções aliadas à base de justificação dos setores urbanos. Tem ainda o privilégio de expressar, em um comple-xo institucional marcadamente mediterrânico, “categorie linguistiche

“És evident que ací la font d’on Eiximenis recull aquesta profecia, o potser el mateix Eiximenis, identifiquen l’Emperador restaurador del poder cristià amb l’Emperador d’Alemanya. Per tant sí que ha fet un canvi llavors en el seu sistema escatològic, car ara ja no encomana aquesta tasca a un Emperador eixit de la casa de França, com feia al capítol 466.” Brines, Lluís. La filosofia social i política de Francesc Eiximenis. Sevilla: Novaedició, Grupo Nacional de Editores, 2004, p. 203, nota 668.

46. Idem, ibidem, p. 397-459.

47. Libânio, João B. Bingemer, Maria Clara L. Escatologia Cristã. O novo céu e a nova terra. Série III: A Libertação na História. Col. Teologia e Libertação. Petró-polis: Ed. Vozes, 1985, p. 59-64.

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e codici discorsivi” utilizados na organização de um discurso e de uma ação política direta48. Em certo sentido, essa posição é garantida pelo repertório de argumentos avant-garde dos teóricos franciscanos49 e por sua conexão ideológica com as aspirações sociais estreitadas no protagonismo ético-cívico do ambiente citadino. É desta relação que aparece o resultado já destacado por Evangelisti: “grado di osmose tra etica di governo ed etica mercantile”50. Depois de um longínquo pe-ríodo de alinhamentos, a associação de interesses burgueses acabaria por fundir-se ao núcleo de um bem comum, passando por vez a in-tegrar o próprio telus da função primaz da monarquia catalã. Agora, a tangibilidade do poder soberano dependeria dos bons serviços que ele fosse capaz de oferecer em proveito da comunidade, de onde este justificadamente arrancaria a col ligació legal de seu principado51. É por isso que, ao mirar o contexto imediato do qual emerge, a fala

48. EVANGELISTI, Paolo. Credere nel marcato, credere nella res publica. La comunità catalano-aragonese nelle proposte e nell’azione política di un esponen-te del francescanesimo mediterraneo: Francesc Eiximenis. Anuario de Estudios Medievales, pp. 73-78. TODESCHINI, Giacomo. Guardiani della soglia. I Frati Minori como garanti del perímetro sociale (XIII secolo). Reti Medievali, nº 8, Firenze, 2007. Disponível em: <www.retimedievali.it>.

49. “A quanto ci è noto, l’opera del lettore francescano ebbe scarsa diffusione, ma costituisce un valido esempio del fatto che agli autori era aperto un ventaglio di possibilità nell’utilizzo di materiali linguistichi ed argomentativi precedentemente elaborati, che si poteva estendere dalla semplice ripresa strumentale alle proprie tesi fino ad una rielaborazione ulteriore, di modo che l’uso stesso produceva un arrichiamento del patrimonio [i.e., un patrimonio de argomentos a favor da mo-narquia universal].” LAMBERTINI, Roberto. Governo ideale..., p. 265-266.

50. EVANGELISTI, Paolo, op. cit., p. 75.

51. Dotzè del Crestià, cap. DCCCXXXIII: “Sobiranament és necessari al príncep que aprés que ha ates al regiment damunt dit de la col×ligació natural, qui és un dels fonaments de la cosa públic, que après atena al bon regiment del segon fonament [ ], lo qual fonament s’apella col×ligació legal.E deus saber així, primerament, que legal col×ligació no és sinó ajustament de diverses persones faents una comunitat, volents viure sots unes mateixes lleis, furs e regidors; [ ] mas per raó quants tots són units en voler viure principalment sots unes mateixes lleis, per tal són dits en unitat e lligament legal, així com dit és. [ ]

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institucional de Eiximenis tem débitos suficientes com as circuns-tâncias políticas da década de 1380. O Dotzè, o livro XII de seu tra-tado inacabado, contém reverberações um tanto explícitas das reso-luções emanadas das Cortes de Montsó em 1383, consolidando por fim um posicionamento para o estatuto real: “en aprovada ordinació d’estaments, en justícia de vida, en defensió de la comunitat”.

Nos últimos anos de seu reinado, à beira de um jubileu de cin-quenta anos desde sua ascensão ao trono, o rei Cerimonioso está mais próximo de reconhecer o realismo contido nas exortações de seu tio quando expressas no seu speculum principum52. A propósito de evocar a licitude que motiva a guerra justa, o infante Pere recorre à cláusula Quod omnes tangit, interpretada como o consórcio dos sú-ditos aos desejos do rei, em que para além de retificar uma ideologia ibérica do soberano como líder militar, reconhece as contingências à legitimidade do poder real e as dependências deste junto aos seus súditos53. Assim, toda razoabilidade política, inclusive aquela que justifica a guerra – e convém lembrar as referências concretas ao en-fretamento com Castela –, está sujeita ao condão consiliar de um povo que assiste ao monarca. E bem, não há muito que dizer sobre a composição política desse coletivo nem quais grupos o representam. Ao fim e ao cabo, o tratado do infante traz consigo essa particulari-dade: fala em proveito da autoridade do rei, mas reconhece o papel

E nota ací que... la col×ligació legal està fundada principalment en los fonaments següents, als quals lo príncep, sib é vol regir, deu molt atendre, ço és: en religiositat de fe, en aprovada ordinació d’estaments, en justícia de vida, en defensió de la comunitat, en disposició de costumes, en temprament de fortunes, en varietat de facultats e de possessions, en treballants ociosos e reposats dels quals direm per orde davall, si a Déu plau.”

52. Cf. RIBAGORÇA, Pere de. Tractatus de vita, moribus et regimine principum, cap. XXIV, especialmente, no qual determina noções pragmáticas para os assuntos bélicos e discute a necessidade do acordos estamentais.

53. BEUCHAMP, Alexandra. De l’action à l’écriture: Le De Regimine Principum de l’infant Pierre D’Aragon (V. 1357-1358). Anuario de Estudios Medievales, nº 35/1, Madrid, 2005, pp. 266-269. Também, cf. nota 19 supra.

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institucional que lhe é permitido diante do complexo contexto his-tórico dos trezentos. Tão próclive quanto possível aos interesses da Casa Real, o seu discurso também está preso ao conjunto de pergun-tas e respostas formuladas em seu próprio coletivo de pensamento.

Esse contraste de interpretações era atravessado por uns argu-mentos consideravelmente semelhantes, assentados pelo mesmo con-junto de termos jurídicos e filosóficos da teoria política adotada pelos grandes expoentes da Coroa. São nestas condições que em paralelo ao pronunciamento de Pere III, ao afirmar sua superioridade hierárquica em atenção da prerrogativa legal de plenitudo potestatis54, caminha o paradoxo de uma equivalente justificação romanista a postular efeitos contrários. A convicção régia de que seus súditos estavam conectados pelo dever supremo junto ao seu senhor natural era assim eclipsada pela via contrária, que defendia a função ministerial do rei ao serviço da corporação civil55. Bem por isso, as singularidades da proposta e da contemporaneidade eiximeniana estão na racionalização semântica desses termos; ao oferecer tais limitações sobre a potestade monárqui-ca, revela-se um testemunho que serve à síntese dos enunciados e do diálogo institucional, manifestos em portentosos verba iuris durante os plenários das assembleias estamentais.

A presença dos reunidos em cortes se torna fundamental para assegurar esse organismo de cúpula defendido por Eiximenis. A su-premacia legal de seus pactuados aliada à permanente gestão fiscal da Diputació leva o franciscano a prodigalizar um notável interesse por seu funcionamento. Então, além de uma descrição alentada so-bre os encargos da burocracia régia56, ainda oferece um relato mui

54. PACHECO, Francisco Luis. “Non obstante”. “Ex certa scientia”. “Ex plenitu-dine potestatis”. Los reyes de la Corona de Aragón y el principio “princeps a legibus solutus est”. El Dret Comú i Catalunya. “Actes del VII Simposi Internacional” (Bar-celona, 23-24 de maig de 1997). Barcelona: Fundació Noguera, 1998, p. 91-127.

55. SABATÉ, Flocel. Discurs i estratègies del poder reial a Catalunya al segle XIV. Anuario de Estudios Medievales, nº 25/2, Barcelona, 1995, p. 639-641.

56. Dotzè del Crestià, caps. DCLXXIX-DCCL.

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preciso sobre as obrigações que vinculam o monarca a tal coletivo institucional presente em cortes57. Assim, consigna o primeiro dever de que, por si mesmo ou mediante seus oficiais, repare os agravos e reclamos de súditos e vassalos: sobretudo, no examinar das possí-veis arbitrariedades do braço nobiliárquico, desferidas injustamente a seus dependentes, provocando uma situação diante da qual o rei deve exigir reparação e promessa de sã observância dos usos “consti-tucionais” do principado.

Todo o mais redunda em sempre agir no proveito do reino e do bonum commune, a deliberar com os braços: elaboração de estatutos, solicitação de graças e liberdades, decisões colegiadas em respeito às estratégias de guerra e de defesa dos reinos e das terras da Coroa; que sublinha, ademais, a regularidade do instrumento de cortes pela pro-messa de convocatórias trienais, em sua forma acordada no tempo de Jamue II, para atuar tanto em procedimentos “extraordinários”, ou não discutidos pela assembleia (inopinats), quanto na definição das políticas de aliança monárquica (como as escolhas matrimoniais dos infantes), ou no empreendimento de conquistas, aliciamento de pa-trimônio, “en els quals casos ell demana ajuta la seva gent i els braços deliberen si són tinguts de prestar-la o si se la mereix pel seu capteni-ment invers ells”58. Por estas prescrições resta inequívoca a trancada situação pública do encargo e da propriedade régia, a salientar sua absoluta inalienabilidade, que quer drenar toda vontade subjetiva da potestade por meio de uma específica noção da plenitude do poder.

Após a manifestação contundente dos súditos reunidos nas cor-tes, a prova final do debate estamental mostra suas conexões com as prescrições de um regime político eiximeniano. A definição de um espaço público elimina as divergências plantadas pelas monarquia entre um desejo essencialmente privado da Coroa e do bem comum.

57. Idem, caps. DCLXVIII-DCXXV.

58. ABADAL, Ramon d’. Pere el Cerimoniós i els inicis de la decadència política de Catalunya, p. 279.

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Apenas este último é quem pode custodiar o pleno ideal justiceiro do vetor soberano. Tal o diriam: “majorment car no.s deman cosa apta ne convinent de apropriar a si ne a son interès propri et singular, mas a honor, diüturnitat et profit de tota la cosa pública”. O argumento ainda há de se completar pela adição de um elemento de força; pois, ao definir a superioridade daquela res publica, os braços repersonalizam o estatuto régio à maneira de um coletivo político, dotando-o com uma persona equivalente: “la qual és et consesteix en vós, senyor, qui sots cap et príncep et en la dita cort representant tots vostres vassalls et sotsmeses qui són menbres de la dita cosa pública”59.

A ficção corporativa dos dois corpos, propagada de diferentes maneiras entre as monarquias reinantes da Inglaterra e da França60, é alinhada na Coroa de Aragão a essas demarcações estamentais, re-cebendo textualidade e devendo muito de sua vocação ideológica ao grande poder de síntese do pensamento eiximeniano. O trunfo retórico trazido com essas ideias estaria em fazer impor e corrigir a pretensão dos monarcas catalães na consolidação de um atributo pessoal de soberania, que ao ser plasmado ao corpo político das ge-neralidades eliminaria toda intenção de agir em nome próprio e de resguardar os atributos da potestade régia. Por essas divisas o pensa-mento eiximeniano soluciona a questão momentânea com o desen-lace providencial da consumação do tempo histórico.

59. Cort General de Montsó: 1382-1384. Text en català i llatí. SANS I TRAVÉ, Josep Maria et alii (ed.). Barcelona: Departament de Justícia de la Generalitat de Catalunya, 1992, p. 160-161.

60. KANTOROWICZ, Ernst H. Pro patria mori in Medieval Political Thought. American Historical Review, nº 56, New York, 1951, pp. 472-492.

a ParticiPação Política E o rEgimEnto...

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tRaBaLHaR HOnEStaMEntE

Hermógenes Harada*

Apresentamos aqui algumas idéias a respeito do modo de tra-balhar do homem medieval. Como ponto de partida das reflexões, tomamos pequenos trechos de Francisco de Assis e de um dos seus primeiros companheiros, Fr. Egídio.

No testamento e na regra de S. Francisco encontram-se orienta-ções aos seus frades em relação ao trabalho, que podem indicar um modo específico do homem medieval compreender a arte do traba-lho. Um ponto central em seus escritos acentua que o trabalho deve ser feito honestamente.

Com base em dois textos, abaixo transcritos, de S. Francisco e de um texto do Beato Egídio de Assis, procura-se refletir a seguir sobre a compreensão medieval da arte do trabalho. Todo e qualquer traba-lho é, para o homem medieval, o lugar de aprimoramento da arte de viver. Em toda atividade, há que se visar o aprimoramento do todo, a pertença e gratidão da grandiosidade da obra do criador. Mas há um modo adequado de adentrar e de apropriar-se desse modo-artesão de trabalho. Há que se trabalhar honestamente. Assim, é preciso refletir o que o homem medieval compreende por trabalhar honestamente.

E eu trabalhava com as minhas mãos e quero trabalhar. E quero firmemente que todos os outros irmãos se ocupem num trabalho honesto. E os que não souberem trabalhar o aprendam, não por interesse de receber o salário do trabalho, mas por causa do bom exemplo e para afastar a ociosidade (Francisco. Testamento).

* Transcrição de uma conferência proferida em cursos.

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No veio inaugurado por Francisco, podemos ver também seus primeiros companheiros.

Encontramos, por exemplo, no livro Frei Egídio – Homem san-tíssimo e contemplativo – que conta a vida e os feitos de Fr. Egídio de Assis, a menção do mesmo conceito de trabalho, e a descrição de como, dia após dia, trabalhava honestamente com suas próprias mãos, e não aceitava dinheiro como pagamento, mas apenas outras coisas necessárias ao sustento. Longe de ser um retrocesso no tem-po – comércio de troca – trata-se de um cuidado com outro tipo de crescimento.

Frei Egídio não se envergonhava de fazer qualquer trabalho vil, contanto que pudesse realizá-lo honestamente. No tempo da vin-dima, ajudava os homens na colheita de uvas. Levava-as também aos lagares e as esmagava com seus pés1.

Ajudava os camponeses a colher nozes, e recebia em pagamento apenas nozes, que levava consigo e repartia com os pobres.

No tempo da ceifa, ia com outros pobres colher espigas abandona-das. E se alguém quisesse dar-lhe, de graça, uma porção de grãos, não queria recebê-los, dizendo: Não tenho celeiros para guardá-los2.

Tanto Francisco quanto Egídio afirmam que é preciso trabalhar com as próprias mãos, trabalho braçal e trabalhar honestamente.

O texto da regra não bulada refere isso do seguinte modo:

Todos os frades, em qualquer lugar em que estiverem em casa de outros para servir ou trabalhar, não sejam mordomos nem chance-leres nem estejam à frente das casas em que servem; nem recebam algum emprego que cause escândalo ou produza detrimento para sua alma (Mc 8,36); mas sejam menores e submissos a todos que estão na mesma casa. E os frades que sabem trabalhar trabalhem e exerçam o mesmo ofício que sabem, se não for contra a saúde da

1. Vida de Frei Egídio – Homem Santíssimo e contemplativo. Santo André: Men-sageiro de Santo Antônio. 2001, p. 91.

2. Id. Loc. cit. p. 91-92.

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alma e puder ser feito honestamente. Pois diz o profeta: Comerás os trabalhos dos teus frutos; és feliz e será bem a ti (Sl 127,2); e o apóstolo: Quem não quer trabalhar, não coma (cf. 2Ts 3,10); e cada um fique na arte e ofício em que foi chamado (cf. 1Cor 7,24). E pelo trabalho possam receber tudo que for necessário, menos di-nheiro. E quando for necessário, vão em prol da esmola como os outros pobres (Regra não bulada).

No texto, Francisco diz aos irmãos que sabem trabalhar, que o façam e exerçam aquela profissão que souberem, se não for contra a saúde da alma e puder ser trabalhado honestamente, pois como diz o profeta, comerás os trabalhos dos teus frutos. Aqui há algo que parece invertido, mas que é um ponto muito importante para tentar compreender o que o homem medieval compreende por trabalhar honestamente. Usualmente compreendemos isso invertido. Não esta-ria invertida essa informação? Vamos tentar compreender.

Comer os trabalhos dos frutos e o ser honesto

Em primeiro lugar, vamos tomar “comer os trabalhos dos teus frutos”. Trata-se de tradução literal. Não se costuma falar assim. A gente fala “comer dos frutos do trabalho”. Na oração eucarística, por exemplo, ouvimos “fruto da terra e do trabalho do homem...” Que diferença haverá aqui, nessa inversão? Ninguém come trabalho. En-tão, tentemos inverter a formulação para buscar compreender. Egídio ajudava os lavradores a colher as azeitonas e pisar as uvas. Mas o que significa a frase “quem trabalha come, quem não trabalha não come”? Acho que não quer dizer que quem não trabalha está proibido de co-mer. A afirmação deve estar ligada, de alguma maneira, com o modo de trabalhar. Todavia, ainda assim não dá para “comer trabalho...”

- Nós sempre pensamos o trabalho do seguinte modo: eu aqui e o trabalho lá. Como seria um trabalho em que ele próprio já fosse um alimento? Quando a gente está no trabalho de uma grande cau-sa, por exemplo, não interessa se vai dar resultado ou não; o próprio trabalho já é satisfatório, já é gratificante, já é honroso; digamos,

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um casal, se o marido trabalha, está fazendo o trabalho pela esposa, aquele trabalho já é fruto, já é gratificante, já é alimento para ele...

- Imaginemos o trabalho do camponês desse modo, não o cam-ponês industrial, mas o camponês que cultiva e vende para viver, e não explora o outro. Será que ele não pensa assim: o fruto dá na ponta da árvore, mas, até que a árvore floresça e dê fruto, tem um trabalho enorme da árvore? Todavia, não só da árvore, mas do sol, da chuva, do clima e também do camponês. O camponês não é dono do fruto, ele é alguém que colaborou, trabalhou junto e, então, sur-giu o fruto, e ele vende aquele fruto. Tentemos compreender como o homem medieval: quando se produzem azeitonas ou uvas, eu não sou dono dessas uvas e azeitonas; eu sou apenas um colaborador para que essa uva tenha surgido como fruto. Temos então a colaboração de Deus, do clima, da árvore, disso, daquilo... Talvez o medieval pense assim: o fruto tem seu trabalho. Quando personificamos tal fruto e vemos uma uva bonita, será que um São Francisco não diria: “uva, como tu trabalhaste”, e pensa “tu trabalhaste, mas não foste só tu que trabalhaste, Deus trabalhou contigo, aliás, ele fez a maior parte do trabalho, eu também ajudei a Deus etc.” Então, comer do trabalho do fruto talvez signifique que, se vou vender para comer, tenho de respeitar esse trabalho que o fruto fez. E, quando alguém explora o outro ou vende mais caro do que vale, só por mero interes-se, então essa pessoa é desonesta...

Vamos dar um exemplo: tem pessoas, artistas, que fazem um trabalho muito bom. Fazem uma obra. E quando vem, por exem-plo, um milionário, que aprecia seu trabalho, propondo: O senhor me vende esse quadro, porque é muito bom, e vou lhe pagar muito dinheiro. O artista responde: não posso vender esse quadro para o senhor. – Mas o Senhor vai ganhar muito dinheiro. – Não posso, porque esse quadro não é meu. – Então, não foi o Sr. quem pintou? – Fui. Mas a inspiração não vem de mim. Além do que, quem me ajudou muito para ter essa inspiração foi minha esposa. De modos que essa obra não é só minha. Por trás dela tem um enorme trabalho

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de uma comunidade, como do céu e da terra. Portanto, esse fruto, que é concentração do trabalho, não posso fazer dele algo, não posso vendê-lo para lucrar. Todavia, posso dar o quadro ao Senhor, em troca de algo de que estou necessitando; pedindo ao Senhor que cuide bem dessa obra. Isso eu posso fazer. Nesse exemplo podemos ver, então, que, se alguém vive do trabalho, o que ele produz não é produto, não é produção, é participação na criação. Que brote como fruto, para isso, tem todo um trabalho, que é do próprio fruto. E é desse trabalho do fruto que eu vivo. Mas, para viver do trabalho do fruto, tenho que fazer como alguém que não é dono, que dignifica o fruto e não o usa para explorar ou lucrar. Não será esse modo de ser que se chama no texto de honesto?

Suponhamos outro exemplo, alguém que fabrica remédio. Sécu-los a fio, uma família de médicos se dedica à pesquisa de um remédio. Médicos dedicados à humanidade. Nesse serviço, num determinado período, um dos médicos descobre um remédio muito importante, que se torna o segredo daquele médico. Ele vai passando esse segredo de geração para geração. Mas passa-o com a seguinte recomendação: esse remédio é fruto, mas dentro desse fruto-remédio tem meu tra-balho, mas também o trabalho de muitas gerações; está concentrado nele o trabalho de todo uma linhagem a serviço do povo. Entre-go esse segredo a você, portanto, para que pesquise mais, para ir melhorando-o cada vez mais e depois o passe adiante. Mas não use esse fruto como produto de venda para lucro dos seus interesses. Você não pode fazer isso, porque não é seu. Você pode ter participa-ção nele, mas não é dono. Agora, você pode viver do trabalho desse fruto, significa que todo esse trabalho feito por toda nossa raça, de alguma maneira, disso você pode viver. Significa: você pode comer dos trabalhos do fruto. Esse médico pode criar uma firma e vender o remédio; mas vende o mais barato possível, para todo mundo poder dispor do remédio de que necessita; fabrica-o, ao mesmo tempo, do melhor modo possível, para que tenha realmente efeito. Ainda podemos encontrar, hoje em dia, certos produtos assim; poucos, é claro, mas existem.

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Essa atitude é honesta e digna de um trabalhador que participa da ação operária que o próprio Deus criador faz, Deus, o grande servo trabalhador. Então, esse provérbio que diz “quem não trabalha não come” significa bem mais do que aquilo que a gente entende à primeira vista: Seu preguiçoso, não trabalhou, não come, vai traba-lhar! Encontramos ali uma compreensão totalmente nova e plena do que seja trabalho. O medieval, quando pensa no trabalho, pensa em participação no modo de Deus trabalhar. Deus criador não é o se-nhor dominador. Ele é o servo de toda humana criatura. Assim, eles compreendiam que, desde o cabelo de ouro dos anjos, até o esterco do chão, e o verme que está nele, tudo isso Deus está sustentando, trabalhando, elementarmente, braçalmente, corpo a corpo.

Ao dizer “creio em Deus pais todo poderoso, criador do céu e da terra”... o medieval não está pensando em poder de dominação. Po-der é a competência artesanal do servo que serve. “Serve”, no sentido de que seu serviço é bom, “presta”.

Quando se encontra, por exemplo, um vendedor ou um traba-lhador que é honesto nesse sentido, não passa na alma da gente uma espécie de um hálito refrescante, e se segue em frente mais contente e mais nobre? Não se sai de tal experiência como que tendo tido notícia de que o mundo está redimido? Trata-se de um tipo de expe-riência como quando, depois de ter sido enganado uma infinidade de vezes, de repente se encontra uma pessoa limpidamente honesta desse modo, que lhe diz, você está sendo enganado, pode deixar co-migo, que eu cuido disso.

Temos a impressão, no entanto, de que, no mundo de hoje, acontece só e basicamente bem o contrário: cada um explora o outro como pode. Mas, se a gente pegar uma “lupa” e sair por aí, não só aqui no Brasil, mas pelo mundo a fora, observando com calma e precisão, será que a exploração é tanta assim? Ou será que não haverá um exército de gente honesta? Que trabalha elementarmente, corpo a corpo, sem ser notada? Será que não nos deixamos influenciar de-mais pela imprensa, pelas notícias?

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Uma das primeiras coisas que me impressionou quando eu era estudante, que me deixou contente – no estrangeiro, a gente fica com medo de ser enganado por todo mundo, tem medo de pegar táxi etc. etc. –, ao chegar numa estação, carregado de malas e livros, sozinho não conseguia carregar tudo. Pedi a um carregador para aju-dar. Quando lhe pedi quanto custava, ele disse “cinco”. Dei uma nota a ele e pensei que correspondia ao valor. Já estava dentro do táxi, quando ouvi alguém chamar, gritando; ele veio correndo. Era gordo, ofegava. Tinha ido até o jornaleiro trocar o dinheiro, e me trouxe troco de 50 pfenigs. Eu fiquei impressionado. Ele poderia ter embolsado o troco tranquilamente, pensando “é estrangeiro, nem vai notar, ligar”.

É o mesmo que acontece com Frei Egídio, por exemplo, quando ajudava os lavradores...

Temos que imaginar o lavrador desse tipo antigo, quando colhe azeitonas, colhe quase agradecendo à árvore. Existem também pes-cadores assim.

A honestidade não estará intimamente ligada com a percepção da comunidade universal? Com a percepção de justiça, no sentido de medida adequada? Então, deve estar ligada com pobreza, porque pobreza significa fazer uso das coisas, não como alguém que é dono, mas como alguém que participa da grande riqueza da doação de Deus. Se por exemplo você sobe numa árvore e corta o galho para poder tirar as maçãs, um Egídio diria: Não és honesto para com a árvore. E, contigo também, pois se estás trepado na árvore e não cais, é porque o Senhor sustenta o galho e te sustenta também. Egídio está vendo o todo, e não só a parcelazinha particular dele mesmo. Ele vê sempre o todo. A gente pode perguntar pela ligação existente entre essa concepção e o trabalho das uvas, por exemplo. Quando se pisa uva para sair o fruto, que é o vinho, aquele vinho não é fruto do meu trabalho. Quando digo que, se trabalho, tenho direito, não vejo o todo. Não, eu vivo do trabalho desse fruto. A uva tem todo um trabalho, com a colaboração de todo o mundo. O que posso

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fazer é pedir emprestado a ela. Eu trabalhei contigo, então você me deixa viver um pouco de ti. E assim, comerás dos trabalhos do fruto. Será que o camponês honesto, quando colhe, não tem esse jeito de colher, de pisar?

Há um relato de um antropólogo que teria ido para Minas Ge-rais, a uma vila de pescadores, que moravam perto de uma lagoa onde havia muitos peixes. Esses pescavam de barco a remo. Apareceu uma turma de pescadores da cidade grande, com tarrafas, barcos a motor etc. Queriam fazer uma grande pescaria, junto com os pesca-dores, até para “ajudá-los”, e pediram a esses para que batessem na água e fizessem muito barulho para espantar os peixes para caírem na rede. Os pescadores disseram que não fariam isso. Com o traba-lho daquele dia de pescaria, eles ganhariam mais do que ganhavam usualmente num ano de trabalho. Mas ninguém moveu um dedo. Disseram: peixe não é nosso, peixe é da lagoa. A gente pega o que precisa, para vender, trabalhar e viver, mas peixe não é da gente. Essas pessoas são maiores do que alguém que diz: peixe é o produto do meu trabalho. Para evitar isso, o latim medieval dizia “trabalho do fruto”, e nós não entendemos direito. Para nós, é “fruto do tra-balho”, produto do trabalho, é meu, faço o que bem entendo. Uso como meio instrumento para explorar os outros etc.

- Então, o que é do homem, ali, é insignificante, é o mínimo; e quando se tem essa concepção, aquela outra frase também funciona: Comerás o pão com o suor do teu rosto. Só que nós colocamos como centro do trabalho o homem; o homem seria como o agente, como o dono e proprietário.

- O filósofo Heidegger tem um escrito que diz que o conceito fundamental do mundo de hoje é o trabalhador, e tem um livro cha-mado O trabalhador. Essa reflexão está ligada com Marx. Ele diz que é tarefa nossa, hoje, repensar essa categoria chamada o trabalhador. Heidegger parece ensinar que aquilo que Marx disse não é o que está pensando muita gente que se diz marxista. Que a intenção de Marx, como pensador, era resgatar a concepção de trabalho como

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se tinha no início da criação. Para a pastoral operária, por exemplo, não basta só trabalhar com o operário; ela tem a grande tarefa de re-pensar, resgatar a concepção de trabalho e Fr. Egídio, no fundo, está fazendo isso. É por isso que Egídio trabalha muito bem. Quando ia colher nozes, cuidava para que a nogueira não fosse prejudicada. Mas, mesmo assim, procurava colher bastante. Então, o dono queria pagar-lhe mais, e ele não aceitava. Esse “mais”, eu não aceito. Porque esse mais pode viciar, criar cobiça.

Um dia, como de costume, voltando da floresta com lenha, en-controu uma mulher querendo comprar-lhe a lenha. Feito o acor-do, levou-lhe a lenha até a casa. Vendo que ele era religioso, a mulher queria dar-lhe mais do que prometera. Ele, porém disse: Não quero que me vença a cobiça3.

Se eu criar cobiça, caio fora do grandioso plano dessa grande or-denação, de ser participante universal da obra do Senhor. Esse mais é o desonesto. A razão de não aceitar não é porque combinou uma coisa e depois receberia mais; é porque tem outra concepção do lu-cro. É a mesma concepção que no seguinte capítulo aparece quando diz “não receba pecúnia”, dinheiro, pois dinheiro sempre está ligado com especulação, não é coisa por coisa.

Então, é preciso comer o trabalho do fruto, e tem que usar com gratidão a remuneração.

Quando vai vender seu produto, o camponês pobre volta trazen-do presentes para seus filhos, faz festa, contente; está cheio de grati-dão. Mas, se vê seu filho jogar fora pão amassado, o chama e lhe diz: não pode jogar fora o pão, ajunta do chão! E, na refeição, diz: que negócio é esse de comer sem agradecer ao Senhor? E o filho, então, diz: “Pai, fomos nós que trabalhamos, por que agradecer? E, o pai: tua alma está ficando sem vergonha, sem respeito. Mas, olhando por outro lado, não se estaria ficando mais autônomo, mais gente? Não, na verdade se está ficando sem alma, está se perdendo a alma. Com

3. Vida de Frei Egídio, loc. cit. p. 91.

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o tempo, quando essa atitude aumenta muito, nasce a agressividade. Agressividade e exploração criam dominação, exploração e falta de participação. No princípio, começa com uma mínima concepção distorcida do trabalho, mas que é fatal com o tempo.

História da macieira

Há uma velha história que pode ilustrar essa questão do trabalho dos frutos.

Havia uma aldeia pobre, muito pobre. Para ela, sempre vinha um negociante de maçãs, vender maçãs. Certo dia, como de costu-me, chegou à aldeia com uma carroça cheia de belas maçãs... mas, na carroça, já estava a inscrição: não vendo fiado! E vendia caro, e daqueles pobrezinhos, coitados, ninguém conseguia comprar. Então vinham aqueles meninos pobres, famintos, e por ali também passou um monge velho, pobre, magrinho, e pediu, pelo amor de Deus, uma maça. O vendedor disse: Não! Não sou assistente social. Compra quem pode, fiado também não vendo. O monge velhinho chorava de tristeza. Então passou um rico, viu o monge chorando, ficou com pena e comprou uma maça para ele. O velho monge tinha tanta fome que não repartiu com as crianças, devorou a maçã. Mas a semente, ele não comeu, cuspiu a semente. A semente caiu no chão e, quando olharam, brotou na hora uma macieira; cresceu num instante; flo-resceu e deu maçãs, uma mais bonita do que a outra. A criançada, que assistia a tudo aquilo, caiu em cima e comeu até não ter mais; o monge comeu. O dono também comeu e disse: Que maçã gostosa! E disse para criançada: ajunta a semente, e dá pra mim. A criançada ajuntou e deu a ele: Toma tio, toma tio. Ele ficou contente, satisfeito. A criançada foi embora, o monge também sumiu, o dono olhou para carroça ... estava vazia?! O monge havia hipnotizado todo mundo, fez pressentir que a carroça era a macieira e a criançada comeu tudo.

Qual a moral da história? Quem é dono das maças? A macieira. É ela que diz a todo mundo: por favor, comam! Ora, o vendedor

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honesto tem que saber dessa lógica. Se não conhece essa lógica, não é vendedor de maçãs, é explorador de maçãs.

O homem medieval compreende a natureza, Deus, a proprie-dade... assim, e o trabalho também. Mas quando uma pessoa, por exemplo, diz “eu não sou mais capitalista, para mim não tem mais propriedade. O que tem é trabalho” etc. Todavia, pode compreender o trabalho como sendo propriedade. E a coisa continua na mesma. De novo, entra uma hierarquia de eliminação. No socialismo acon-tece isso.

Com essa concepção, podemos compreender melhor o que segue no texto. “És feliz e será bem a ti”. Ser feliz é ser honesto desse jeito. É bem a ti significa isso lhe fará bem. Isso lhe dará saúde de alma.

O trabalho como arte, habilidade

“E cada qual permaneça naquela arte e ofício em que é chamado”.

“... Fazer obra”. Fazer obra era para o medieval uma arte. Para nós, a arte é artístico. Chamamos de arte, de artístico, por exemplo, à arte musical; mas também se diz “aquele irmãozinho só fica fazendo arte”, que quer dizer, “bagunça”.

Estando num lugar, certa vez, com muita sede, sentei num bar-zinho e pedi um refrigerante. Tenho costume de beber todo o re-frigerante num gole. Com sede, não pensei em nada, tomei tudo num gole. Quando percebi, todo mundo estava olhando para mim. Pensei que era porque nunca tinham visto um japonês. Mas aí ouvi uma mulher dizendo: “Que artista!” Pensei: “mas que uso esquisito da palavra artista.

Será que esse uso que fazem os cearenses da palavra artista não é o mesmo que o medieval entende por arte? Arte não é artístico, não é arteiro, arte é habilidade. Mas habilidade que não é um talento natural. Uma habilidade trabalhada por um longo tempo. Então, se diz que existe arte de viver, arte, habilidade de viver, conquistada,

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bem trabalhada. Arte de plantar, arte de escrever..., toda e qualquer profissão tem que ser arte; é uma habilidade, uma competência útil, que serve. Uma habilidade conquistada, bem trabalhada. Significa, por exemplo, que o medieval compreende vida religiosa como arte. E, ao exercer uma profissão, ao ter um trabalho, a pessoa não tinha só o trabalho. Aquele trabalho que ele fazia era arte, habilidade, e essa ha-bilidade estava intimamente ligada com o sentido de sua vida. Trata--se de uma grande experiência humana, muito interessante, pela qual, um lixeiro, um porteiro, um hortelão que era muito bom, considera-va esse seu ofício como arte. Considerava isso como uma habilidade, e nessa habilidade, ele tentava também ser artista, quer dizer, artista do bem viver. Havia, então, pessoas, por exemplo, religiosos, que, em trabalhando na portaria, eram grandes mestres da espiritualidade. A portaria era o lugar onde ele exercia a arte de porteiro e ao mesmo tempo a arte de bem viver a vida religiosa. Significa que ele não estava restrito, simplesmente bitolado, àquela funcionalidade. Trabalho não é função, trabalho é lugar e exercício para se trabalhar a si mesmo na busca e aprendizagem do sentido de viver. Uma pessoa que exercia um ofício assim podia ser simplesmente alguém que só trabalha na roça, na horta, mas a sabedoria que adquiria da vida universal era muito grande. Através dessa compreensão universal, se estabelecia um canal de comunicação entre diferentes ofícios. Uma pessoa que rezasse, assim, que exercesse a arte de rezar, desse modo, e através de todo esse exercício chegasse a uma iluminação e sabedoria, podia falar do modo como rezava, do modo como trabalhar, a um artista, e em-bora rezar e pintar nada tivessem exteriormente em comum, o artista aprendia do religioso sobre o modo de como pintar. Mas, escutando o pintor contar sobre o modo como ele trabalha, o religioso aprendia a arte de rezar, e assim por diante. Acontece uma intercomunicação, sem sair de seu próprio ofício. Hoje também encontramos esse tipo de experiência. Será que não é assim, que na conversa com outra pessoa, cujo modo de ser externo é completamente diferente do seu, de repente você descobre certas coisas que você mesmo já experimen-tou em sua vida? E se surpreende dizendo, mas isso eu também já

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experimentei. Vez por outra, é possível que cada um faça esse tipo de experiência de comunicação.

Como exemplo dessa intercomunicação, talvez sirva um epi-sódio um tanto engraçado. No decorrer de um curso, em Minas Gerais, eu estava tentando montar uma apostila. Depois de muitas discussões, compilei as mesmas num caderno bem resumido. Uma irmã religiosa, que participava do curso, tinha um irmão que era vendedor de xampu. Aquela apostila acabou caindo nas mãos daque-le vendedor. Ele começou a se interessar muito pela apostila, porque diz que o ajudava a vender xampu. Nós, espirituais, intelectuais, até nos sentimos um tanto “humilhados” com o fato. Mas, pensando bem, significa que a apostila estava direita, porque houve intercomu-nicação. Um dia talvez se pudesse chamar essa pessoa para fazer uma conferência sobre o modo de como estudar. Mas, seguramente, ele não iria falar sobre o estudo; falaria sobre o modo de como vender. Todavia, dá para entender.

O homem medieval era muito hábil. Quando Francisco diz “aprenda uma arte, um ofício” ... e quando usa a palavra arte, ofício, ele tem essa mentalidade. Significa que não é só um ganha-pão e, por isso, ele recomendava que se deve trabalhar bem, honestamente.

A honestidade está diretamente ligada com comunidade univer-sal. A atividade que exerço no ofício que desempenho está ligada com a totalidade das relações humanas. É por isso que aprimorando a arte do trabalho honesto, o homem medieval se tornava mestre, não importando qual atividade exercesse. Mestre é alguém que aprendeu a aprender e onde quer que esteja e atue exercita esse aprendizado.

trabalhar honEstamEntE

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a ORganIzaçãO CuRRICuLaR DOS

EStuDOS FILOSóFICOS DO Guia Dos EstuDantEs

Idalgo J. Sangalli*

Resumo: Este estudo pretende apresentar a divisão e a classifica-ção da filosofia nos ensinamentos filosóficos da Universidade de Paris até 1240. Partindo do modelo de divisão das ciências de Domingos Gundissalvo, a exposição e análise parcial culminam na concepção e no lugar ocupado pela filosofia, particularmente as obras de Aristóte-les, no esquema curricular de estudos do Guia dos Estudantes (Ripoll 109). A contribuição desses dois esquemas e a comparação entre eles dá uma boa ideia da evolução doutrinária e, principalmente, dos tex-tos estudados e do espírito que animava os mestres e estudantes no ensino e no estudo da filosofia no ambiente universitário parisiense.

Palavras-chave: filosofia, teologia, organização curricular, Guia dos estudantes (Ripoll 109).

abstract: This study aims to evaluate the division and classifica-tion of Philosophy on the philosophical teachings at the University of Paris until 1240. Based on the sciences division model of Domi-nic Gundissalvo, the exposure and partial analysis culminate in the idea and the place occupied by philosophy, particularly the works of Aristotle, in the scheme of the curriculum of studies from the Guide for Students (Ripoll 109). The contribution of these two schemes and the comparison between them provides an idea of the doctrinal

* Professor doutor em Filosofia da Universidade de Caxias do Sul – UCS.

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evolution, and especially from the studied texts and the spirit that stimulated teachers and students in the teaching and study of phi-losophy in the University of Paris.

Keywords: Philosophy, Theology, Curriculum, Guide for Stu-dents (Ripoll 109).

O aristotelismo latino existente por volta de 1250 em Paris ainda era um “aristotelismo eclético” ou “aristotelismo avicenizante e agos-tinizante”, como queria Nardi1. Aristóteles foi o principal expoente grego em que os filósofos latinos se apoiaram. O não conhecimento de todo o sistema aristotélico, assim como as dificuldades surgidas pelas passagens obscuras (como no De Anima) ou mesmo as lacunas (como na Metafísica) – percebidas pelos leitores cristãos que as liam já a partir do paradigma do Deus criador –, favoreceram as tentativas de explicar, comentar e mesmo completar tais lacunas. Este “ajuste” foi facilitado pela influência neoplatônica e pela experiência árabe. Isto é, na fusão da filosofia de Aristóteles com a tradição neoplatô-nica, foram decisivos os dois escritos neoplatônicos: a Teologia de Aristóteles, composta de extratos das Enéadas de Plotino, conheci-da e presente nos comentários árabes e desconhecida diretamente pelos escolásticos2, e o Liber de causis, baseado em Proclo, que foi considerado pelos escolásticos como obra de Aristóteles3. Acrescen-tando-se os escritos de Agostinho, dos Padres da Igreja, dos Árabes

1. NARDI, Bruno. Studi di filosofia medievale, p. 196-200. Nesta obra, Nardi distingue três correntes principais do aristotelismo do século XIII: antes de 1250 (aristotelismo avicenizante e agostinizante); depois de 1250 (aristotelismo averro-ísta, tendo Alberto Magno como iniciador) e (aristotelismo concordista de Tomás de Aquino).

2. Cristina D’Ancona COSTA observa que “Le idee guida sostenute nelle parti ori-ginali della Teologia hanno esercitato una influenza indiretta anche sul mondo di lingua latina: l’autore del De Causis, infatti, le ha conosciute e approvate alpunto di ispirarsi ad esse, nelle parti della propria opera indipendenti da Proclo” (“Un pro-filo filosofico dell’autore della ‘Teologia di Aristotele’”. In: Medioevo, p. 83-134).

3. Cf. STEENBERGHEN, F.V. La philosophie au XIIIe siècle, p. 170.

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e Judeus, daí partiu a caracterização, sustentada principalmente por Steenberghen, de que o aristotelismo latino foi um “aristotelismo neoplatonizante”4.

Das traduções5 do árabe ou do grego para o latim e do conheci-mento completo do Corpus aristotelicum, o pensamento do Estagiri-ta passou a ser cada vez mais o centro das discussões e das preocupa-ções dos escolásticos. Por um lado, de “ajustá-lo” ao dogma cristão como fizeram Boaventura e Tomás de Aquino (aliás, de modo muito diferente) e, por outro, seguindo uma motivação filosófica mais ra-dical. Motivação respaldada apenas na razão natural com a pretensão de total fidelidade interpretativa ao filósofo grego, embora usando constantemente os comentários e renunciando à questão da conci-liação com a fé, por exemplo, foi o empenho dos mestres de artes comandados por Síger de Brabante. Não era mais possível ignorar a sabedoria pagã, que mais e mais se impunha com o seu método de análise e os seus critérios de cientificidade. A ideia de scientia, no sentido aristotélico, era diferente da ideia agostiniana de sapientia, de um tipo de conhecimento imediato e intuitivo plenamente possí-vel apenas na beatitude celeste.

Qual era o lugar ocupado pela filosofia neste contexto doutrinal, dominado pela teologia e catalogado de escolástica? Como e o que se ensinava de filosofia? Até metade do século XII a divisão da filosofia mesclava as artes liberais com a tripartição especialmente estóica em física, lógica e ética, assumida por alguns autores da patrística como Orígenes e Agostinho. A partir da segunda metade do século XII é a

4. Idem. Ibid. p. 171s. Este autor afirma: “De même, la formule ‘aristotélisme néoplatonisant’ est, a mes yeux, une formule heureuse et exacte pour caractériser, par exemple, la philosophie de Guillaume d’Auvergne”.

5. Sobre a invasão da filosofia pagã no final do século XII e primeira metade do XIII, vide: STEENBERGHEN, F.V. Introduction à l’étude de la philosophie médiévale, p. 75-81. Quanto ao problema das traduções e à influência árabe na transmissão do pensamento aristotélico, vide a recente publicação: DE BONI, L. A. A entrada de Aristóteles no Ocidente medieval, p. 23-56.

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divisão aristotélica em física, matemática e teologia que começa a se fazer presente pelas traduções de Severino Boécio e pelas contribui-ções de Al-Farabi e de Domingos Gundissalvo. Como era dividida, classificada a filosofia no período de surgimento dos estudos pro-priamente universitários e, especialmente, nas primeiras décadas de estudos na Faculdade de Artes?

Convém ter presente que não nos ocuparemos em distinguir e analisar detalhadamente cada tipologia e nem mesmo tratar da dis-tinção que pode ser feita entre a introdução à filosofia da classifi-cação do saber. Das diferentes facetas que constituem o complexo sentido do que tradicionalmente se denomina “escolástica”, abor-daremos apenas uma delas, por julgá-la suficientemente relevante às análises sobre métodos de ensino ou metodologia que foram utili-zadas ou poderiam ser aplicados nos estudos filosóficos atuais. Para tanto e apenas para exemplificar, escolhemos duas fontes6, dentre muitas, que apresentam a divisão e a classificação da filosofia nos ensinamentos filosóficos em Paris até 1240. De qualquer modo, a seguir, a contribuição desses dois autores dá uma boa ideia da evo-lução doutrinária7 e, principalmente, dos textos estudados e do es-pírito que animava os mestres, com particular atenção ao Guia dos

6. A escolha da classificação das ciências de Gundissalvo foi por ser uma síntese da dupla tradição árabe-latina e a do anônimo de Barcelona “Guia dos estudantes”, por representar a organização escolar na Faculdade de Artes. Para conhecimento de outras obras de introdução à filosofia, na Faculdade de Artes de Paris, além da Divisio scientie, de Jean de Dacie e a Philosophia, de Aubry de Reims e o De ortu scientiarum, de Roberto Kilwardby, situadas em torno de 1230 a 1250, vide: C. LAFLEUR. Quatre introductions à la philosophie au XIIIe siècle, 1988. O autor apresenta a edição crítica de quatro textos sobre o assunto: Accessus Philosopho-rum VII artium liberalium, anônimo; a Philosophia disciplina, também anônima; a Divisio scientiarum, de Arnoul de Provence e o Compendium circa quadrivium, anônimo. (p. 01 e 02). Não menos significativo, neste sentido, é o De partibus philosophie essentialibus, de Egídio Romano.

7. Para tanto, sugerimos o artigo de C. Lafleur, “Scientia et ars dans les introduc-tions à philosophie …”, p. 45-65.

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Estudantes. Assim facilitará o entendimento sobre o contexto de um período muito profícuo de ensino e estudo da filosofia no ambiente universitário parisiense.

1 O modelo de gundissalvo

Domingos Gundissalvo compôs em 11508 o Sobre a divisão da filosofia (De divisione philosophiae), obra que, segundo Steenberghen, foi marcante na história dos escritos introdutórios à filosofia: “[...] é com esta obra, de fato, que se opera pela primeira vez a síntese de uma dupla tradição, árabe e latina, ambas resultado do pensamento grego”9. O autor introduziu a classificação das ciências no contexto da escolástica latina, seguindo de perto as fontes árabes e divergindo da tradicional classificação da preponderância e domínio exclusivo da abordagem teológica – que algumas décadas antes Abelardo inau-gurou como theologia christiana, diferente da especulação pagã ou puramente filosófica sobre a divindade, adotada pela linhagem neo-platônico-agostiniana – com a clara distinção entre saber humano e saber teológico. A lógica foi entendida como instrumento de pesqui-sa e ocupa um lugar como ciência “intermediária” entre as disciplinas propedêuticas e as disciplinas filosóficas no sentido estrito. Seguindo o modelo aristotélico de ensino, Gundissalvo dividiu a filosofia em teorética e prática, tendo como novidade a redistribuição das disci-plinas integradas das chamadas artes liberais (Trivium: gramática, retórica e dialética. Quadrivium: aritmética, geometria, astronomia e música). E, separadamente, está a “Divina Scientia”. Para facilitar

8. Foi publicado o texto por L. BAUR, em 1909, seguido de um estudo crítico de-talhado. Este trabalho, que trata também de Miguel Scot e de Roberto Kilwardby, foi resumido e completado, com informações mais recentes, por STEENBER-GHEN, F.V. La philosophie au XIIIe siècle. p. 111-113.

9. STEENBERGHEN, F.V. Siger de Brabant d’après ses oeuvres inédites: Siger dans l’histoire de l’aristotélisme, p. 569.

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a compreensão da classificação de Gundissalvo, veja-se o esquema apresentado por L. Baur e reproduzido por Steenberghen10:

HUMANA SCIENTIA (ou PHILOSOPHIA, Filosofia em sen-tido amplo)

I. Scientiae eloquentiae (ciências, propedêuticas)

1. Scientia litteralis (gramática)

2. Scientiae civiles (poética e retórica)

II. Scientia media (lógica, em 8 partes).

III. Scientiae sapientiae (Filosofia em sentido estrito)

Physica (8 ciências) 1. Philosophia theorica Mathematica (7 ciências) Theologia, Prima Philosophia

Politica 2. Philosophia practica Economica (inclui as artes mecânicas) Ethica

DIVINA SCIENTIA (é a teologia ou a ciência da Revelação).

É evidente a consolidação da necessidade da filosofia, mesmo como propedêutica à formação teológica. A teologia (divina scientia) é a ciência dominante; na parte “scientiae sapientiae” da philosophia, no seu âmbito teórico aparece, porém, a theologia, no sentido aristo-télico. Resultado: a theologia é scientia sapientiae humana e, também,

10. STEENBERGHEN, F.V. La philosophie au XIIIe siècle, p. 112s e 116. Gui-lherme Fraile apresenta um esquema mais detalhado desta mesma classificação, re-produzindo as divisões principais do esquema de Baur, sem incluir a Divina Scien-tia. Em outras palavras, Fraile expõe unicamente o esquema que compreende as divisões da Humana Scientia. (FRAILE, G. Historia de la filosofia. Filosofia judía y musulmana. Alta escolástica: desarrollo y decadencia. II (2), p. 113). Nesta mesma obra, o ilustre histórico apresenta uma série de esquemas que reproduzem as dife-rentes classificações realizadas pelos escolásticos, facilitando a compreensão de suas concepções de filosofia e o lugar que esta ocupava em relação ao saber teológico.

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divina scientia, ciência da revelação. Terão ambas o mesmo objeto de investigação? Num contexto mais amplo desta particular classifi-cação, cabe perguntar, embora sem pretender responder, pois reme-teria a um complexo problema que resultou na teoria do intelecto único para toda a humanidade, de Averróis: há uma relação entre o modelo aristotélico de “ciência teológica” e o ideal da teologia como ciência da revelação? A teologia de Aristóteles pode ser dividida, por um lado em metafísica e, por outro lado, em teologia revelada?

2 O esquema do Guia dos Estudantes

Quanto ao anônimo de Barcelona, o autor desconhecido do fa-moso Guia dos Estudantes, um escrito presente no manuscrito de Barcelona conhecido como Ripoll 109, foi encontrado por Grab-mann em 1927, no Arquivo da Coroa de Aragão e publicado em edição provisória pela primeira vez por Claude Lafleur, em 1992. O manuscrito apresenta não apenas uma divisão diferente da divisão de Gundissalvo, mas é muito importante, pois foi escrito provavel-mente em Paris entre 1230 e 1240, por um mestre da Faculdade de Artes, com o propósito de auxiliar (vademecum) os estudantes na preparação dos exames11. Segundo Steenberghen,

O guia dos estudantes nos fornece uma soma de dois grupos de dados interessantes: de uma parte, sobre a ‘concepção’ que o autor desconhecido fazia da filosofia e de sua estrutura; da outra parte, sobre a organização efetiva dos estudos na faculdade de artes no momento em que ele escreve12.

O escrito mostra claramente os textos conhecidos, o que real-mente estudavam e a contraposição nascente que será cada vez maior

11. Claude LAFLEUR, apresenta um completo estudo sobre isto em sua obra: Le ‘Guide de l’étudiant’ d’un maître anonyme de la Faculté des arts de Paris au XIIIe siècle. (Ripoll 109), 1995; vide, também, seu artigo “Les ‘guides de l’étudiant’ de la Faculté des Arts de l’Université de Paris au XIIIe siècle”. In: Philosophy and Learning – Universities in the Middle Ages, 1995, p. 137-199.

12. STEENBERGHEN, F.V. La philosophie au XIIIe siècle, p. 111.

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à organização escolar anterior, que reduzia as ciências profanas às artes liberais. Por mostrar as condições e as circunstâncias reais da faculdade, esse guia de estudos permite uma maior compreensão ao pesquisador do que as interpretações restritas aos documentos e es-tatutos da Universidade de Paris. Aliás, essa relação entre filosofia e teologia que o plano apresenta e suas possíveis consequências, leva-ram alguns estudiosos a apresentar leituras diferentes. Grabmann13, por exemplo, avaliou o texto do Guia dos Estudantes, que é anterior a 1250, como uma antecipação das controvérsias entre filósofos e teólogos, que eclodiu posteriormente, especialmente num prenún-cio das teses condenadas em 1277. Ou, ainda mais recentemente, também Lohr14 interpretou que o texto evidencia uma nova atitude intelectual em prol do interesse dos próprios artistas, como um novo intelectual, e representaria o testemunho do avanço do aristotelismo sobre a teologia cristã, que nas décadas seguintes vai definitivamen-te triunfar. Por outro lado, os estudos de Steenberghen e Celano15 demonstram outra leitura, em que não houve uma antecipação no Guia dos Estudantes em relação à metodologia que foi aplicada na segunda metade do século XIII, na relação entre filosofia e teologia.

De qualquer forma, quanto mais as obras e o pensamento de Aristóteles eram conhecidos, e o Guia apresenta-o como a principal fonte de referência nos estudos, maior era a tendência a dar à filosofia um novo lugar e um novo papel científico; que, segundo Domanski, na identificação “[...] das artes liberais, a filosofia, preparou a con-

13. GRABMANN, M. Der lateinische Averreismus des 13. Jahrhundertes und seine Stellung zur christlichen Weltanschauung. Munich, 1931, p. 76s.

14. LOHR, Charles. “The medieval interpretation of Aristotle”. In: The Cam-bridge History of Later Medieval Philosophy. Cambridge, p. 86s.

15. STEENBERGHEN, F.V. La philosophie au XIIIe siècle. 1991; CELANO, Anthony J. “The understanding of the concept of felicitas in the pre-1250 Com-mentaries on the Ethica Nicomachea”. In: Medioevo. Rivista di storia della filo-sofia medievale, p. 29-53; Idem. “The ‘finis hominis’ in the Thirteenth Century Commentaries on Aristotle’s Nicomachean Ethics”. In: Archives d’Histoire Doc-trinale et Litteraire du Moyen Age, p. 23-53.

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cepção puramente teórica e ‘científica’ da filosofia, tão características do século XIII”16. A filosofia era definida como amor e estudo da verdadeira sapiência e contemplação das coisas divinas e da natureza com estudo e amor. No § 3 do texto latino, deste mestre anônimo, se lê: “Ora, a filosofia é definida assim: filosofia é amor e estudo da verdadeira sapiência. De outra maneira definiu Ysaac: filosofia é a contemplação das coisas naturais e divinas com estudo e amor”17.

Este escrito, que representou o começo do aristotelismo em tor-no de 1240 e mostra a situação dos estudos filosóficos na Faculdade de Artes na primeira metade do século XIII, parte da tríplice divi-são platônico-estóica: natural, prática ou moral e racional (naturalis, pratica sive moralis e rationalis), sem esquecer-se da divisão aristoté-lica teórico-prática. Não pretendendo uma análise mais detalhada de todo o plano de estudo18, o que nos interessa aqui é, primeiramente, que a Metafísica de Aristóteles, tanto a versão antiga (vetus) quanto a “nova” tradução, juntamente com o Liber de causis, aparecem em primeiro lugar, no âmbito teórico, como metaphysica. Ela designa o que é separado do movimento e da matéria segundo o ser e a defini-ção, conforme afirmou Aristóteles na Metafisica VI 1, 1026a 10-22. Em segundo lugar, que a teologia, diferentemente do esquema de Gundissalvo, é apenas uma das partes da Philosophia Practica e, as-sim, ela é uma disciplina prática. Como bem observa Steenberghen,

16. DOMANSKI, J. La philosophie, théorie ou manière de vivre, p. 42.

17. LAFLEUR, C. Le “guide de l’étudiant” d’un maître anonime de la faculté des arts de Paris au XIIIe siècle, p. 27. “Diffinitur autem philosophia sic: philosophia est amor et studium vere sapientie. Aliter diffinit Ysaac: Philosophia est contem-platio rerum divinarum et naturalium cum studio et amore”.

18. O excelente trabalho de Claude Lafleur com a colaboração de Joanne Carrier destaca quatorze contribuições específicas do Guia dos Estudantes que refletem a importância deste documento, vide: LAFLEUR, Claude. L’enseignement de la philosophie au XIIIe siècle. Autour du “Guide de l’ étudiant” du ms. Ripoll 109. Collaboration de Joanne Carrier, Collection “Studia Artistarum”, vol. 5, Turn-hout, Brepols, 1997, XVIII, 722 p.

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3. animatum … … …

Esta maneira de ver a ciência sagrada como um saber de ordem prática responde muito bem às tendências da faculdade de Teolo-gia de Paris no começo do século e, mais geralmente, à concepção agostiniana de sabedoria teológica; mais longe de subordinar as ciências profanas à teologia, nosso autor faz desta uma modesta seção da filosofia prática!19

Eis o esquema da classificação da filosofia do Guia dos estudantes20:

PHILOSOPHIA

I. NATURALIS

1. Metaphysica ... ... ... ... Aristoteles: Metaphysica vetus Metaphysica nova Liber de causis

2. Mathematica:

a) Astronomia ... ... ... traditur secundum unam partem in Tolomeo, secundum aliam partem in Almagesto

b) Geometria ... ... ... Euclides: Elementa c) Arithmetica ... ... ... Nicomachus-Boethius: Institutio

arithmetica d) Musica ... ... ... Boethius: Institutio musica

3. Physica (scientia naturalis inferior):

a) Corpus mobile in generali Aristoteles: Physica b) Corpus mobile in particolari:

1. ingenerabile … … … Aristoteles: De caelo 2. generabile: 1. simplex … … … Aristoteles: De generatione 2. mixtum … … … Aristoteles: Meteora

Aristoteles: De plantis De animalibus De anima [rationali] Parva naturalia [Alfredus]: De motu cordis

19. STEENBERGHEN, F.V. La philosophie au XIIIe siècle, p. 116.

20. Cf. Idem, ibid. p. 115s.

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II. PRACTICA SIVE MORALIS

1. Vita animae in Deo: teologia (supernaturalis) 2. Vita animae in bono aliorum:

a) in familia: ypotica (=yconomica?) … … [Cicero]: Liber de vera justitia (= De officiis)

b) in civitate: politica … … … Leges et decreta

Aristoteles: Ethica nova Ethica vetus Plato: Tymeus Boethius: De consolatione

III. RATIONALIS

1. Retorica … … … Cicero: De inventione2. Grammatica … … Priscianus: Institutiones grammaticales

Donatus: Barbarismus

1. de esse logicae Aristoteles: Kategorica Perihermeneias Analytica priora Topica Elenchica

Porphyrius: Isagoge Boethius: De syllogismo categorico De syllogismo hypothetico De differentiis topicis De divisione [Gilbertus]: Liber sex principiorum

Numa análise mais detalhada da segunda parte do esquema, Practica sive Moralis, pode-se perceber: as relações entre filosofia e teologia; o lugar ocupado por elas; e, também, permite identificar os movimentos que antecederam a segunda metade do século XIII na

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3. Vita animae in seipsa: ethica sive monastica … … …

3. Logica:

2. de bene esse logicae ...

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tomada de posição dos aristotélicos radicais nas décadas seguintes e as suas diferenças em relação ao próprio Guia dos Estudantes.

Primeiramente pode-se observar que a parte correspondente a philosophia moralis, isto é, o estudo da vida moral, está subdividido em três partes diferentes: 1) vita animae in Deo que corresponde à theologia supernaturalis ou ciência sagrada; 2) vita animae in bono aliorum, que corresponde a duas ciências: a oeconomica chamada ypotica que diz respeito aos assuntos na família, e a politica que trata dos assuntos civis, do cidadão na vida pública; 3) vita animae in se ipsa que corresponde a ethica sive monastica, isto é, a ética individual, baseada na ética de Aristóteles, no Timeu de Platão e na De consola-tiones philosophiae de Severino Boécio.

Muito influenciada pelo pensamento agostiniano, a tradição cristã tratou os problemas morais dos cristãos pela abordagem do “fi-losofar na fé”, respaldada nos preceitos do Evangelho, dando respos-tas do tipo teológico, como exemplo de vida ética a opção religiosa. No caso do Guia dos estudantes, o modo de entender os problemas relacionados à ética é diferente desta tradição, pois o espaço para este “saber da sagrada escritura” fica reduzido apenas a uma das três partes constituintes da filosofia moral e a apenas uma das quatro ci-ências que tratam da vita animae. Sem dúvida, isto indica a perda do monopólio teológico na ética, cedendo espaço para as outras ciências (oeconomica, politica, monastica ou ethica) tratarem da importante questão da determinação do fim último do homem.

Na leitura da parte que trata da vida da alma em si mesma (a ética individual) e da possibilidade de ela e também de o corpo do homem alcançar a felicidade depois da morte, fica claro que, além de reduzir o campo da teologia, a atitude do autor é de filósofo. Ele se atém aos limites da razão natural e àquilo que pode ser demonstrado racionalmente, sem apelar para argumentos teológicos, diferencian-do-se do modo tradicional de explicar e entender as questões éticas. Afirma o autor anônimo no § 94:

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Da mesma forma se indaga se o corpo é apto para gozar da felici-dade como a alma. E parece que sim, visto que é o instrumento pelo qual a alma opera o bem. E assim parece que o corpo merece da mesma forma que a alma. – Dizemos a respeito que, segundo os teólogos, isto é verdadeiro [que o corpo pode alcançar a felici-dade depois da morte], porque afirmam que a alma se reúne ao corpo depois da morte. Mas isto é mais por milagre do que pela via natural. No modo normal das coisas isto é inatural, e por isso não é assunto da filosofia. E por causa disto, como a felicidade acontece depois da morte, como prova este autor, e os filósofos não afirmam que a alma se reúne ao corpo depois da morte, por essa razão a felicidade pela via natural é devida propriamente só à alma e não ao corpo21.

A passagem é clara e, considerando que o seu autor é um mestre da Faculdade de Artes dos anos 30/40 do século XIII, é muito signi-ficativa quanto ao limite do discurso filosófico e o alcance da filosofia que não deve ir além da demonstração racional, posição defendida e destacada posteriormente pelos aristotélicos radicais. Percebe-se que cabe apenas ao teólogo e à teologia tratar da felicidade do corpo de-pois da morte. Ao filósofo cabe tratar e fundamentar filosoficamente a felicidade de um ponto de vista natural e, portanto, a verdadeira felicidade só pode ser atribuída à alma depois da morte (felicitas per naturam debetur solum anime) e não ao corpo. Em termos de vida pós-morte, a felicidade existente para a alma e para o corpo só pode ser sustentada pelos teólogos. Ao filósofo cabe o silêncio, já que ao seu alcance só é possível demonstrar racionalmente a existência de

21. LAFLEUR, C. Le “guide de l’étudiant” d’un maître anonime de la faculté des arts de Paris au XIIIe siècle, p. 59. “Item queritur utrum corpus sit natum recipere felicitatem sicut anima. Et uidetur quod sic, cum sit instrumentum per quod anima operatur bonum. Et ita uidetur corpus mereri sicut anima. — Ad hoc dicimus quod secundum theologos hoc habet ueritatem, quia ponunt animam reiungi corpori post mortem. Sed hoc est plus per miraculum quam per naturam. Simpliciter enim hoc est innaturale, et ideo non ponitur a philosophis. Et propter hoc cum felicitas sit post mortem, sicut probat hic auctor, et non ponunt philo-sophi animam post mortem coniungi corpori, ideo proprie felicitas per naturam debetur solum anime et non corpori”.

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uma felicidade da alma, isto é, a estratégia metodológica pressupõe evitar toda e qualquer incursão da teologia nas respostas construídas pela filosofia.

Avançando no texto, o autor acrescenta outros argumentos para demonstrar os limites da filosofia e a própria limitação da linguagem humana. Isto quando pensa e fala como filósofo (loquendo philoso-phice) ao tratar sobre assuntos como a causa de nossas boas ou más ações e a necessidade da graça, já que pela perspectiva do discurso teológico (loquendo theologice) não basta fazermos o bem sem a ajuda da graça divina.

Esta divisão da filosofia é uma importante antecipação, no sen-tido de tornar-se concepção comum no ambiente universitário, em relação ao lugar, o ensino, o papel da filosofia e de seu status científi-co, que encontraremos firmemente defendidos nos próprios escritos dos mestres de artes, depois de 1250. O resultado desses escritos introdutórios da filosofia é evidente, segundo Putallaz e Imbach: “[...] a filosofia cessou de ser uma simples propedêutica às faculdades superiores de teologia, de direito e de medicina; o estudo da filosofia tornava-se um fim praticável e uma profissão”22. Neste sentido, a busca do ideal de sabedoria e de felicidade especulativa parece aos olhos dos “artistas”, isto é, dos professores e estudantes de filosofia, da Faculdade de Artes da Universidade de Paris, possível de ser re-alizado. E não somente pela alma na vida futura, como antecipou o Guia dos Estudantes, mas também terrenamente com o auxílio da poderosa razão. Aos olhos dos teólogos, este ideal usurpa o domínio teológico, que é concebido como o único que pode realizar a felici-dade da alma e do corpo, no plano da salvação; esse projeto, para a filosofia, seria impossível demonstrar. É nesta moldura que se enqua-dram às condenações de 1277.

22. PUTALLAZ e IMBACH. Professione filosofo. Sigieri di Brabante, p. 24.

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Considerações finais

As classificações, as divisões e a especialização dos saberes cada vez mais frequentes, indicavam um reordenamento progressivo dos estudos em níveis de ensino, acompanhando a criação das univer-sidades no século XIII. Surgem as faculdades e uma hierarquia en-tre elas, sendo a formação básica garantida pela Faculdade de Artes, onde se ensinava basicamente as sete artes liberais acompanhadas de obras de Aristóteles recentemente conhecidas. As faculdades ditas superiores eram as de teologia, medicina e direito, almejadas pelos estudantes como coroamento de seus estudos e profissão. Obvia-mente, permanecer mais tempo do que o necessário ou pretender ocupar-se profissionalmente no estudo e ensino na Faculdade de Ar-tes não era uma opção desejada, exceto para os aristotélicos radicais.

Tratar do problema da sistematização dos saberes empreendida na escolástica e, assim, compreender o lugar ocupado pela filosofia, como ela se tornou o exercício de especulação escolar, como a filo-sofia passou a ser valorizada e o próprio ideal filosófico defendido, exige uma ampla investigação, que não pode ser feita aqui. No en-tanto, pareceu-nos possível escolher duas fontes representativas que apresentam a divisão e a classificação da filosofia nos ensinamentos filosóficos em Paris até 1240. Nesta cidade iniciava uma nova fase da filosofia na difícil tarefa de síntese entre as posições ortodoxas e as novas propostas realizadas no seio da Faculdade de Artes.

Por outro lado, falar dos tipos de métodos de investigação, da for-ma de discussão, de expressão e de ensino que constituíram a própria concepção de universidade medieval é uma tarefa complexa, da qual a breve análise acima apenas esboçou uma pequena parte. As próprias concepção e definição de “escolástica” não se restringem aos métodos de ensino e de disputas. Não dá para desconsiderar a relação entre filosofia e o local de ensino nas escolas e, depois, na universidade; a relação com a religião cristã e a teologia; a relação com a filosofia an-tiga e a patrística e a própria influência de aspectos da vida cotidiana.

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Parece ser uma tarefa interessante e trabalhosa, que exige adentrar também nos estudos historiográficos da história da filosofia.

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FILOSOFIa MEDIEvaL

Emmanuel Carneiro Leão*

A filosofia medieval é uma árvore de 3 troncos: um tronco cris-tão, um tronco árabe e um tronco judaico. Do tronco cristão brota-ram três ramos: o cristão-sírio, o cristão-árabe e a escolástica.

Em todos os três troncos, a filosofia medieval se distingue da filosofia da antiguidade clássica por uma relação íntima com as três religiões monoteístas, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. São as chamadas religiões abrahâmicas. É tão íntima a relação que, den-tro da experiência grega de pensamento, é inevitável a pergunta se é possível nascer, crescer e se desenvolver uma filosofia propriamente dita, isto é, uma filosofia não somente autônoma, como sobretudo autosuficiente, no solo de uma experiência de pensamento, cons-truída na base e com base numa fé sobrenatural revelada? A única questão colocada no fundo, e, como fundo de todos as problemas levantados e desenvolvidos pelos medievais de qualquer um dos troncos, é a possibilidade de uma filosofia. A comunidade primitiva cristã sentiu a questão em todo o seu desafio, ao entrar em contato com a filosofia grega do helenismo. E São Paulo deu uma primeira resposta negativa à pergunta, em forma de apóstrofes que rejeitam radicalmente toda “sabedoria do mundo”. Contudo, como toda ra-dicalidade de exclusão não é suficientemente radical, o mesmo São Paulo, em construindo uma teologia alternativa para as comunida-des cristãs, faz uso abundante das categorias e posições filosóficas do neoplatonismo e do estoicismo.

* Prof. do IFCS, UFRJ.

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Em suas varias fases e em seus diferentes representantes, a fi-losofia medieval dá um encaminhamento diferente e, por vezes, conflitual às relações de convivência entre fé e saber, entre razão e revelação, entre teologia e filosofia, nos seus muitos modos de ação e reação, em suas diversas instituições, em seus variados padrões de relacionamento. As religiões monoteístas fundem, numa unidade de experiência, uma interpretação do mundo e da historia, uma visão do homem e da natureza em sua origem e constituição, em seu fim e destino que, em muitas consequências, se chocam com o saber e o conhecimento da razão. Assim, ao longo de todo o desenrolar da filosofia medieval, a racionalidade, a finitude, a imaginação formam as três áreas principais, em que vem desembocar e a que remetem em última instância todos os encontros e desencontros do pensamento com as experiências da fé revelada.

Apesar de os medievais, de uma maneira geral, reconhecerem, em princípio, que a filosofia é um conhecimento fundado em bases próprias, construído com métodos próprios e seguindo procedimen-tos específicos, a harmonia de ambos os modos de pensar em níveis de conhecimento impõe e exige na prática que as interpretações da fé, propostas pela Escritura e tradição e definidas pelas instituições religiosas, ocupem um lugar central e desempenhem uma função normativa, e não somente negativa, na elaboração do conhecimen-to filosófico. Quase todos os problemas levantados e discutidos na Idade Média nasceram e serviram a um interesse religioso em todos os seus níveis, doutrinário, político, social, vivencial etc. Todo fi-lósofo medieval, sem exceção alguma, é e quer ser teólogo. Tanto a forma, como o conteúdo de seu conhecimento provêm de uma experiência religiosa monoteísta e respondem ao impulso de viver e conhecer melhor as verdades reveladas por Deus. Mesmo quando se empenham todos em conhecer e pensar a filosofia dos filósofos chamados pagãos, só o fazem com vistas a um aperfeiçoamento da compreensão religiosa e buscando uma maior transparência para a inteligência da fé. Em sua operação, o conceito de pagão é uma cate-goria religiosa, pois o que é um pagão senão um não cristão, ou um

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não maometano, ou um não judeu. Só há e só tem sentido goyim pava as hassidim! Santo Agostinho exprimiu esta relação de intrínse-ca e recíproca dependência entre fé e inteligência numa formulação lapidar: credo, ut intelligam, intelligo, ut credam! A famosa passagem é a seguinte: Ao entenderem os filósofos gregos, ao interpretarem os filósofos árabes, ao lerem os filósofos judeus, os escolásticos traziam como diapasão e parâmetro de escolha e compreensão das doutrinas os dogmas de sua fé e os princípios de sua própria experiência reli-giosa, ambos estabelecidos em lutas ao longo da tradição histórica das comunidades e forjados em disputas pelo trabalho secular dos concílios e pelo esforço reflexivo e variado dos padres apostólicos, dos padres apologetas e dos padres de toda a patrística.

A escolástica atravessou e se desenvolveu em três grandes períodos:

1° A pré-escolástica: é o período propedêutico de preparação do material e dos primeiros exercícios de elaboração, vai do século I ao século X. É o primeiro trabalho de “compor as palavras e os dis-cursos” das muitas experiências de fé e pensamento tanto da Es-critura como da tradição. Em toda a escolástica os termos scientia et doctrina indicavam sobretudo este esforço de componere verba et sermones. A famosa scientia experimentalis da Escola de Oxford do franciscano Rogério Bacon, que muitos consideravam precursor de Francisco Bacon de Verulam, não passou de um sucessor de Aris-tóteles e sua empeiria, i.e, defensor de uma observação rigorosa da percepção dos sentidos. Para um escolástico, os dados das sensações integravam, como acidentes, a substância material, um composto hi-lemórfico de matéria e forma. O real era, então, entendido dentro de uma concepção de criatura de Deus que não podia nem necessitava do experimento no sentido moderno. O fato de um mesmo termo, “ciência”, ser utilizado para designar conhecimentos essencialmente diferentes, em uma estrutura metafísica, como a filosofia e a teologia medieval e a ciência e filosofia modernas, este fato não nos deve ofus-car e confundir, induzindo-nos ao erro de pensar que se trata de uma mesma atitude ontológica e de um mesmo perfil epistemológico!

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2° A protoescolástica: É o período das primeiras tentativas de fun-damentação e síntese. Estende-se da primeira metade do séc. XI até o final de séc.XII.

O termo scholasticus se acha plenamente consolidado. É o termo que designava inicialmente qualquer pessoa que ensinasse as septem artes liberales, as sete artes liberais, herdadas do antigo sistema de en-sino. São elas a gramática, a dialética, a retórica, que formam os três primeiros caminhos, o trivium, da educação; enquanto a aritmética, a geometria, a música e a astronomia compõem os quatro outros caminhos da formação fundamental de toda a idade média. São en-sinadas desde Carlos Magno nas escolas do palácio, das catedrais e dos conventos. Como os mestres de todo ensino, seja do primeiro, do segundo ou do terceiro grau, são quase sempre teólogos, o ter-mo scholasticus, na forma de doctores scholastici, foi sendo transferido também para os professores e docentes de teologia, chegando, por fim, a designar todos os que se ocupavam com a scientia numa ins-tituição de ensino. O termo é uma latinização do grego skholastikos, cujo uso mais antigo pode-se constatar numa carta de Teofrasto, su-cessor de Aristóteles, na direção do Perípato, escrita a seu discípulo Fanias, conservada em parte por Diógenes Laércio, um compilador do segundo século (V; 5°). O termo grego se deriva do substantivo skholé, em alemão Schule, em inglês school, em latim schola, nas neo-latinas école, scola, escola, escuela. Skholé, em grego, diz o ócio criativo de forças e valores culturais, os latinos traduziram por otium, o ócio, e o contrário a-skholé, por neg-otium, o não ócio. Assim, o negócio, supõe que se suspenda a criação e a inventividade cultural e se opere com os recursos já criados em condições já dadas!

Assim, o termo scholastica, para designar um dos troncos da filo-sofia medieval, não diz padronização nem esteriotipia. Ao contrário, induz criação e diz pluralidade. As tentativas que se fizeram de carac-terizar a escolástica pela uniformidade e repetição não correspondem nem ao apelo da designação verbal dos séculos XI-XII, nem à outra dos séculos XIII ou XIV. É uma em Santo Anselmo de Cantuária e outra em Pedro Abelardo. A escolástica de São Boaventura, Alexan-

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dre de Hales, Henrique de Gent, não é a mesma nem entre si nem muito menos ainda em Sigério de Brabante, Sto. Tomás, Alberto Magno, João Duns Escoto ou Guilherme de Ockham, para lembrar só alguns nomes mais significativos. Toda denominação abrangente nunca deve perder de vista a transcendência singular de sua origina-lidade. Por isso deve-se entender numa concretização plural as ca-racterísticas que distinguem a filosofia escolástica, tanto da filosofia antiga como da filosofia moderna. Estas características são próprias e comuns ao mesmo tempo. São comuns por se fundarem numa unidade de pressuposições iguais e por se plantarem em condições culturais partilhadas por todos. São próprias, por estimularem a cria-tividade e provocarem respostas múltiplas e diversas em seus autores. Tais características remetem sempre às seguintes constantes com suas respectivas variáveis:

a) Na escolástica vigora um estreito entrelaçamento com a teo-logia, a fé e a religião. A filosofia, a razão e o conhecimento, embora constituam um setor da vida cultural diferente da teologia e reli-gião, dependem, contudo, de ambas e só têm sentido na medida em que servem à fundamentação, ao esclarecimento e ao progresso da fé revelada e da doutrina definida pela tradição e pela autoridade do magistério. Para o medieval, é pressuposto, espontaneamente dado, a subordinação da criatura ao criador e, em consequência, a sujeição da razão à revelação e a obediência da filosofia à teologia. Philoso-phia ancilla theologiae. Com isto, a escolha dos problemas a serem tratados e a concordância das respostas a serem dadas já se acham determinadas de antemão ou ao menos indicadas por instâncias ex-trafilosóficas.

b) A dependência rigorosa da filosofia antiga, sobretudo de Pla-tão e Aristóteles, através da intermediação do neoplatonismo, das patrísticas e dos comentários e interpretações dos árabes e judeus. Os conceitos, as categorias e os princípios, bem como toda a terminolo-gia da filosofia grega, transmitidos e adaptados pelos neoplatônicos, pelos estoicos, pelos árabes e judeus constituem o acervo comum de toda a escolástica.

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c) Uma criação original da escolástica foi seu método de inves-tigação e ensino, que abrange tanto a pesquisa quanto a exposição. Apresenta formas rígidas internas e externas de funcionamento. Apesar de toda esta rigidez formal, oferece espaço para as mais di-versas correntes de pensamento. E, não obstante tal pluralidade de endereço, a rigidez externa causa a impressão de uma uniformidade de conteúdo doutrinário e dá a aparência de igualdade e monotonia ao trabalho filosófico.

d) a outra criação original da escolástica é a mística especulativa. Não se trata de uma ascese em que o espírito procura dominar as sensações dos sentidos e controlar os impulsos do corpo, as deman-das e exigências da carne. E por motivo muito simples. Não há aqui distinção entre corpo e espírito. A mística é a superação contínua de toda e qualquer dicotomia. Existe ascese mas a ascese da mística é o treinamento e a disciplina da unidade de tudo que é humano, corpo, carne, alma, mente e espírito, cuja perda gera as dualidades todas, tanto no corpo como no espírito, tanto na história como na socieda-de, tanto no sentimento como na ação e no conhecimento. A mística especulativa, seja no século XI com Santo Anselmo de Cantuária, seja no século XII, com Bernardo de Claraval e os Victorinos, seja no século XIV com mestre Eckhart, seja no século XV com Nicolau de Cusa, não se opõe ao conceito e à reflexão, nem à dialética e ao discurso da razão, antes os integra todos numa dinâmica concreta das atividades de videre, sentire e experiri pela interiorização de um ituitus originarius.

Duas questões de princípio pertencem a toda introdução na fi-losofia medieval. A primeira diz respeito à escolha da escolástica. A escolha da escolástica, ramo de um dos três trocos da árvore, para se aprender a pensar com a filosofia na Idade Média, não é arbitrária ou indiferente. É a melhor escolha, pelas seguintes considerações:

a) As contribuições filosóficas dadas pelos dois outros ramos, a cristã-síria e a cristã-árabe, bem como pelos dois outros troncos da árvore da filosofia, a filosofia dos árabes e a filosofia dos judeus me-

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dievais foram utilizadas e absorvidas pelos escolásticos. Claro que o fizeram adaptando-as à sua própria perspectiva teológica. A filosofia árabe e judaica, que eles nos propõem, já nos chega batizada pela especificidade da fé cristã. Ademais, um mesmo ar respiravam todos os pensadores medievais, um ar que se poderia caracterizar por uma atitude de acolhimento e aceitação da realidade tal como se oferece na diversidade do mundo, da natureza, da fé no monoteísmo reve-lado. Nenhum medieval, de qualquer credo que seja, pretende as conhecer, transformar a realidade e colocá-la a serviço do senhorio do homem sobre a natureza e de sua maestria sobre a realidade, tal como é o espírito e a mentalidade da idade moderna.

b) A riqueza e variedade dos muitos caminhos desbravados pelos escolásticos superam em número, gênero e grau, todas as contribui-ções dos filósofos árabes e judeus da idade média. Os escolásticos abriram novos horizontes de questões e rasgaram outras dimensões de interrogação que não se encontram nem entre os árabes nem en-tre os judeus, embora tanto uns quanto os outros tenham dado uma contribuição decisiva aos desempenhos da escolástica e tenham de-senvolvido também uma mística própria, não, porém, uma mística especulativa, no sufismo e na cabala.

c) Por que pertence a todo currículo de formação filosófica es-tudar o pensamento medieval? O que há com a filosofia que não se pode desvencilhar destes vencilhos históricos do pensamento no passado? Que originalidade nos traz o pensamento já pensado na escolástica para levar-nos a pensá-lo de novo?

Nestas perguntas, e em inúmeras outras, que se poderiam for-mular no mesmo sentido, está em jogo nossa capacidade de pensar. Quando criticamos as deficiências de um pensamento, denunciamos a insuficiência de nossa própria proficiência em pensar. Somos tão indigentes em pensar que não temos condições de chegar ao que ain-da não foi pensado, mas nos foi legado, por isso mesmo, pelo pensa-mento passado. Ora, na sucessão do pensamento, só nos tornaremos verdadeiros herdeiros quando transformarmos a herança em novos

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caminhos de pensar e descobrirmos no já pensado as provocações e desafios do ainda não pensado, que aqueles que nos antecederam nas peripécias do pensamento nos convidam sempre de novo a pensar. Toda dificuldade dos dias atuais reside em aceitar este convite. Numa preleção de 1953 na Universidade de Friburgo na Alemanha, intitu-lada Was heisst denken?, sobre o sentido, a provocação e o chamado do pensamento, Heidegger nos traz um apelo com a seguinte denúncia: o que mais nos faz pensar em nosso tempo que nos dá tanto a pensar é não pensarmos ainda, apesar de todo convite, de toda provocação e de todo chamado, que o pensamento nos faz nas indigências, nas carências, nas penúrias de nossa situação! Os ruídos da técnica, as distonias do progresso e as ansiedades do crescimento, enchem nossos ouvidos de surdez para a voz de todos estes convites do pensamento. Por isso, dos escolásticos só nos encontramos com o dito e pensado de seus problemas, do seu ensino, de suas doutrinas. Já não escutamos a voz de sua origem no mistério de ser e realizar-se de todo real.

Não estudamos os medievais, nem qualquer outro pensador da história, para pensar, como eles pensaram, para repetir em outra lín-gua as palavras que disseram, os problemas que colocaram, as res-postas que deram. Estudamos os escolásticos para pensar, com o que eles pensaram, novos caminhos de pensamento. Só assim é que nos sentiremos conosco em todo esforço que fizermos de estar com eles.

De certa feita, Nietzsche disse que o grande inimigo da verdade não é a mentira. Pois a mentira só tem pernas curtas porque as per-nas da verdade são mais curtas ainda. O grande inimigo da verdade é a convicção das ideologias, porque são cegas para si mesmas, opacas para suas origens e impermeáveis aos limites de suas próprias possi-bilidades.

Por isso, continua Nietzsche, temos de seguir os caminhos da origem de todas as nossas certezas, pois, então, tudo a nosso redor far-se-á estranho e nós mesmos sentir-nos-emos estrangeiros em toda veneração e em qualquer culto; pois, então, tudo tornar-se-á mistério do desconhecido, mas do seio do próprio mistério irá cres-

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cendo uma árvore, cujas sombras há de nos dar nova vida, a árvore do que está por vir.

Com esta disposição para o porvir, o estudo da filosofia escolásti-ca descobrirá no cruzamento de antigos caminhos, novas encruzilha-das de ser e não ser num contínuo e diuturno vir-a-ser!

a passagem

Todos os esforços filosóficos na e da passagem de Santo Agosti-nho para a escolástica se ligam a sete nomes: Claudianus Mamertus, Martianus Capella, Martinus de Bracara, Isidorus Hispalensis, Beda Venerabilis, Severinus Boethius, Magnus Aurelius Cassiodorus.

Claudianus Mamertus é um padre de Vienne na Gália, no Dau-phiné. Nasceu no início do século V e combateu nos meados do século o semipelagianismo de Faustus. Faustus era, desde 452, bispo de Reglum na Gália, que, juntamente com Gennadius e Hilarius de Poitier, defendia a corporidade da alma humana, pois somente Deus não tem corpo. Para Faustus, toda criatura é uma unidade de matéria e forma e por isso mesmo limitada em sua natureza, dispon-do, em consequência, de uma localização no espaço e, portanto, de uma existência e modo de ser corporais. Tudo que é criado possui qualidade e quantidade, visto que somente Deus se acha acima de qualquer categoria e delimitação. Ora, quantidade inclui necessa-riamente corporidade e, portanto, espacialidade. De vez que a alma mora num organismo e não pode existir fora dele, é sempre uma substância corporal.

A esta maneira estoicizante de entender a relação entre corpo e alma no homem, Claudianus Mamertus se opôs num pequeno escrito composto em 468-69, De statu animae, o Estado de alma, de inspiração neoplatônica e augustiniana. Concedia que toda criatura, portanto, também a alma humana, se enquadra em categorias, i. é, em modos de ser genéricos e universais, concretizados em diferenças específicas e princípios singulares. Como substância, a alma possui

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também determinações, mas exclusivamente de qualidade, i. é, seus limites são ordinais e não cardeais, em outras palavras, a alma tem ordens de qualidade, mas não tem nenhuma quantidade. Assim, não se enquadra em todas as categorias, como um corpo qualquer, e, sobretudo, não realiza seu modo de ser em nenhuma extensão ou grau numérico, em sentido local. A sua grandeza não é espacial, é superior, i. é, está acima de qualquer divisão de partes. O movimen-to da alma é temporal, no sentido de mudanças de condição de ser e nunca de lugar no espaço ou de troca de partes, como um corpo. Por isso, o tempo da alma não é quantificável e, em consequência, é essencialmente diferente do tempo dos corpos, cujo movimento é troca de partes e de lugar no espaço. Em outras palavras, os corpos se movem no espaço e no tempo, a alma só se pode mover nas diferen-ças qualitativas do tempo. Como se pode ver, a distinção cartesiana entre res cogitans e res extensa remonta há muito tempo na história qualitativa do pensamento.

Outro argumento produzido por Claudianus Mamertus se refe-re à unidade qualitativa. O modo de unidade da alma não se dá por aglutinação de partes, não é, portanto, uma coesão. Trata-se de uma exigência de sua incorporidade: A memória, o pensamento, a von-tade, o sentimento não são partes que se combinam para formar a unidade da alma. São modos de a alma realizar-se a si mesma, são re-lações da alma consigo mesma e com os outros. Não induzem, por-tanto, uma pluralidade de almas mas uma unidade simples, numa multiplicidade sem fim de relacionamento e comportamento. É esta simplicidade da alma que torna a clonagem humana impossível. Por ser simples, a alma está toda presente, atuando ontologicamente, na memória, no pensamento, na volição da vontade, no sentir do sentimento. A alma não existe e depois sente, pensa, quer, recorda. Não! É sentindo que a alma existe toda, e quando se diz aqui toda, quer-se dizer, que ao sentir, a alma simultaneamente, pensa, quer, se lembra e vice-versa. Enquanto pensa, a alma sente, quer, se lembra e vice-versa. É no pensamento que a alma se realiza toda, como alma, é querendo, que a alma é alma; é recordando que a alma vem a ser toda a alma que ela é.

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Mas também no tocante ao corpo vivo e orgânico, a alma é e realiza um todo simples. É também pela unidade de sua simplicidade que a alma reúne as sensações de todos os sentidos na percepção e, para isto, está presente vigindo em toda sensação e percepção. Assim, o corpo não abarca a alma, é a alma que abrange o corpo, mantendo--o coeso na multiplicidade de suas funções e organização. Pela alma, a fisiologia e anatomia não somente se limitam como também se visi-tam. Seguindo Santo Agostinho e todo o neoplatonismo, Claudianus Mamertus entende que a alma está toda presente em todas e em cada uma das partes do corpo, tanto na estrutura como no funcionamento, assim como Deus está presente continuamente criando todos os seres do mundo. A alma, por ser livre de quantidade, extensão e movimen-to espacial, sobretudo por sua unidade simples assemelha-se a Deus, enquanto, por sua condição de criatura e pela dependência de quali-dades, princípios de ordem e movimento temporal, se distingue essen-cialmente de Deus, e se assemelha ao mundo dos corpos. Quando se amputa um membro ou uma parte do corpo ou quando se interrompe uma função micro- ou macro-fisica do corpo, a alma não perde nada nem se encolhe. Quando o dano é de monta a impossibilitar a união das estruturas e funções orgânicas, o corpo desfaz sua composição e integração. É a finitude da unidade simples da alma que não pode manter a integridade e integração do corpo em suas partes e funções. Assim, a força de integração corporal é sempre acompanhada de uma contra-força de desintegração, porque a animação do corpo pela alma é limitada por condições de possibilidade vital.

É esta doutrina de incorporeidade da alma que constitui a con-tribuição de Claudianus Mamertus para a filosofia escolástica do ho-mem, que servirá de ponto de partida e modelo de intermediação entre a patrística latina de Agostinho e o movimento da escolástica. O aperfeiçoamento posterior vai se concentrar em refinar a integra-ção de corpo e alma e diminuir um pouco a dicotomia demasiado acentuada de corpo e alma! A influência recíproca, na singularidade do indivíduo, de corpo e alma em mão dupla, ainda tem muito chão a percorrer, sobretudo para descobrir o papel da personalidade!

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O segundo nome na transição da patrística para a escolástica é Martianus Capella. Trata-se de um cidadão romano que não se con-verteu para o cristianismo. Lá pelos anos 430 produziu um escrito de grande influência em toda a cultura da idade média. O título do escrito é De nuptius mercurii et Philologiae, as núpcias de mercúrio com a filologia. É um compêndio das artes liberais. Contém o mais antigo manual que se conservou sobre o ensinamento das escolas do 1° e 2° de toda a idade média cristã. Foi comentado ao longo dos séculos por muitos autores escolásticos, como por exemplo, por Remigius de Auxerre. No século XI, Notker Labeo o traduziu para o alemão. O conteúdo ensinado se restringe ao trivium e ao quadri-vium, isto é, às disciplinas da linguagem, a saber, gramática, retórica e dialética, e às disciplinas práticas, a saber, aritmética, geometria, astronomia e música.

O terceiro nome desta passagem é de longe o mais importante, é Anicius Manlius Torquatus Severinus Boethius, nasceu em Roma no ano de 475-80 e morreu executado em 525. Seguindo o costume neoplatônico desde Plotino, Boécio concebeu um grande plano, o plano de traduzir para o latim todas as obras de Platão e Aristóteles. Pretendia também mostrar como ambos os filósofos concordavam nos principais pontos da filosofia. É o que ele mesmo nos diz no proêmio de seu comentário ao livro De Interpretatione, Peri hermé-neias, do Organon, de Aristóteles. De todo o seu projeto, só conse-guiu realizar uma pequena parte. Possuímos a tradução do livro Peri herméneias, junto com dois comentários — um para principiantes, o outro para mais adiantados, escrito entre 507-509. Junto com a Consolatio, é a sua obra mais importante em filosofia.

Temos ainda a tradução das categorias junto com um comentá-rio de 510 e o comentário de antes de 505 à tradução de Hilarius Victorinus da Isagoge de Porfirio. Ele mesmo preparou uma tradução da Isagoge com um comentário também anterior a 510. Além das traduções e comentários, Boécio escreveu os seguintes tratados de lógica: Introductio ad categoricos syllogismos, De syllogismo categori-co, De syllogismo hypothetico, De divisione, De differentis topicis. O

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comentário aos Tópicos de Cícero não se conservou todo. Para os comentários à Isagoge, valeu-se da interpretação do neoplatônico Amnamius Hermiae.

As traduções de outras obras de Aristóteles constantes das obras não são de Boécio, mas de Jacobus Venetia, de 1128, usadas em 1468 pelo Humanista João Argyropulos. A confusão de autoria se deve ao fato de o próprio Boécio dizer que traduziu do grego para o latim os Tópicos e os Primeiros Analíticos e trabalhava na tradução dos Segundos Analíticos. Ambas as referências são confirmadas no sé-culo XI por Abelardo e por um anônimo tradutor do século XII dos Segundos Analíticos. Entre os escritos de Boécio, constam duas obras apócrifas, a saber, De definitione de Marius Victorinus e De unitate de Dominicus Gundisalvi.

Pelos anos 500, Boécio já trabalhava em obras de matemática da Antiguidade: De institutione musica é compilada de Nicomachus de Gerasa. De institutione arithmetica é um breve resumo da aritmética de Nicomachus de Gerasa. De geometria, uma tradução quase literal dos stoxeia de Euclides. Tanto nos escritos de lógica quanto nos de matemática, a finalidade de Boécio não é originalidade, mas a educa-ção e o ensino, visando transmitir de modo simples e compreensível as produções dos filósofos antigos. A contribuição destes escritos nos séculos posteriores da escolástica foi enorme e decisiva.

Por intrigas políticas, Boécio foi encarcerado, onde escreveu sua obra original Consolatio philosophiae, em prosa e verso, onde nos proporciona uma visão de sua concepção de vida e de mundo. Toda a obra se funda em princípios neoplatônicos e estoicos. A finalidade é escrever uma obra do gênero protréptico, demonstrando que tudo que acontece de bom e de mau nesta vida é um envio de Deus para o bem dos homens. Por isso só temos de ter esperança e gratidão em nossas esperas. Todas as preces, orações e pedidos testemunham fé, esperança e gratidão.

A contribuição filosófica mais importante da Consolação se re-fere às investigações da experiência e do conceito de tempo e eter-

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nidade. Boécio continua e completa famosos pensamentos de Sto. Agostinho. O mundo não teve começo nem terá fim, mas nem por isso perde temporalidade e se identifica com a eternidade de Deus. Boécio propõe, então, uma definição da eternidade que atravessou séculos: aeternitas est interminabilis vitae tota simul et perfecta posses-sio: a eternidade é a posse perfeita e totalmente simultânea de uma vida sem fim. É aqui que se encontra a reflexão escolástica sobre a duração, que vai alcançar em João de Pedro Olivi e Guilherme Ockham sua completa compreensão. Para os escolásticos três são os modos de duração no ser dos seres:

O modo temporal: duram e perduram no tempo os seres que começam a ser, têm seu ser em sucessão e findam, deixando de ser. Os seres temporais têm seu ser com principio, com sucessão e com fim: começam, se desenvolvem e terminam. São os seres materiais que duram no tempo. Mas há ainda o modo de duração, que não é temporal, mas eviterno. São os seres espirituais que começam a ser, têm, portanto, princípio, e desenvolvem seu ser em momentos, têm, portanto, sucessão, mas nunca findam, não têm, portanto, fim. São os seres eviternos cuja duração se mede e avalia pelo evo! Por fim, existe ainda, um ser, cuja duração não tem nem princípio nem fim nem sucessão; é a duração eterna que Boécio definiu. Como ainda veremos, dois escolásticos franciscanos, João de Pedro Olivi e Gui-lherme Ockham não aceitam o modo intermediário de duração, o aevum, entre tempo e eternidade. Toda duração ou é temporal ou eterna. Ockham é curto e grosso: angeli mensurantur per tempus et non per aevum, quia aevum nihil est: “os espíritos angélicos medem sua duração pelo tempo e não pelo evo, porque o evo não é nada”. Ockham não diz simplesmente que o evo não existe. Ele diz muito mais! Pois o evo poderia não existir e ser alguma coisa. Ockham diz as duas coisas: o evo nem existe nem é coisa alguma.

Boécio entende que a ilimitação temporal faz do mundo uma cópia e imagem da eternidade de Deus, de um lado, porque não ter fim assegura à duração do mundo uma sucessão interminável, de

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outro, porque em toda duração temporal, o presente é o único modo real de os seres temporais durarem (Consol. 5,6).

Os tratados teológicos de Boécio são: De Sancta Trinitate; De persona e duabus naturis Christi contra Etnychen et Nestorium; Utrum Pater et Filius et Spiritus Sanctus de divinitate substantialiter praedi-centur; e o chamado liber de hebdomadibus, que tem como questão a pergunta: “quomodo substantiae in eo quod sint, bonae sint, cum non sint substantialiter bona?” Trata-se da antecipação da famosa discussão sobre os transcendentais que, a partir do século XIII, vai ocupar a preocupação da metafísica escolástica. Estes tratados cha-mados de opuscula sacra tiveram a autoria posta em dúvida pelo fato de se questionar a fé cristã de Boécio, em razão de a Consolatio philo-sophiae não se referir explicitamente ao cristianismo. É uma alegação sem consistência diante da tradição manuscrita e do testemunho ex-presso de Cassiodoro, um discípulo de Boécio. O escrito, porém, De fide christiana não é de Boécio, mas de autor posterior.

Os estudos teológicos foram estudados e comentados em todas as fases da escolástica, assim no século IX por João Scotus e Remígio de Auxerre, no século XII pelo chamado Pseudo-Beda e Gilberto de la Porrée; no século XIII por Sto. Tomás de Aquino.

Ainda mais numerosos são os comentários da Consolatio philoso-phiae, um dos livros mais estudados da Idade Média, mesmo fora do âmbito da escolástica, como demonstram Dante Alighieri e Boccaccio.

Também encontram numerosas traduções para as línguas na-cionais e um sem número de imitações, como Consolatio rationis de Pedro de Compostella, no século XII a Consolatio theologiae de João de Tambach no século XIV, e muitas outras.

Esta história da obras de Boécio deixa clara a grande influência que exerceu em toda escolástica. Junto com Agostinho, Boécio seja talvez o maior mestre e autoridade decisiva de toda a primeira fase da escolástica. É muitas vezes chamado de noster summus philosophus. Através de seus escritos a passagem da Patrística Latina para a Pré-es-

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colástica foi efetuada sob a égide do neo-platonismo e do aristotelis-mo. Foi ele que legou à Idade Média Latina a lógica e a metodologia de Aristóteles e um apanhado da ontologia de Aristóteles e do neo-platonismo. Tornou-se o paradigma e o modelo das interpretações filosóficas e teológicas de toda a latinidade medieval. Com base e fundamento neoplatônico e estoico construiu a primeira concepção de vida e de mundo harmonizada com a teologia cristã. Ensinou aos medievais como uma teologia cristã pode-se valer da filosofia clássica para construir um sistema de conteúdo religioso e de fé revelada. Os conceitos filosóficos e as distinções filosóficas fundamentais, tais que substância, acidente, essência, natureza, pessoa, potência e ato, matéria e forma, principium quod e principium quod agendi et essendi, eternidade e temporalidade e muitos outros, encontraram em suas obras definições e explicações paradigmáticas para a evolução futu-ra dos pensamentos escolásticos. O lema que guiava todos os seus escritos se tomou padrão de todos os esforços na teologia e filosofia cristã. Seguindo Sto. Agostinho, Boécio estabeleceu a divisa: Fidem si poteris rationemique coniuge!: se puderes, junta a fé e a razão.

Obras de Boécio

1°) Traduções, Compilações e Comentários

1.1. Traduções: De categoriis

Organon - De interpretatione - De primis analyticis - De secundis analyticis - De sophisticis Elenchis

Isagoge de Porfirio: a tradução

Praedicabilia

a) Genus est unum, quod de pluribus specie differentibus in eo quod quid est praedicatur: = gênero é algo que se diz de várias coisas especificamente diferentes, enquanto se diz que é algo. Exemplo: linha: curva, linha reta, elipse, círculo. Linha é o gênero que se diz de uma pluralidade de espécies. Isto significa: a linha designa o que em si mesma cada espécie é.

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b) Species est unum, quod de pluribus solo numero differentibus in eo quod quid est praedicatur = a espécie é algo que se diz de várias coisas diferentes apenas em número, enquanto se diz que é algo. Os diversos círculos.

c) Differentia specifica est unum quod de pluribus praedicatur in quale essentiale = a espécie é algo que se diz de várias coisas como uma qualidade essencial. Racional do homem.

d) Proprium est unum, quod de pluribus praedicatur in quale ne-cessarium = o próprio é algo que se diz de várias coisas como uma qualidade necessária.

e) Accidens est unum, quod de pluribus praedicatur in quale con-tingens = o acidente é algo que se diz de várias coisas como uma qualidade contingente.

O quarto nome desta passagem da antiguidade posterior para a idade média latina é Magnus Aurelius Cassiodorus (ou Cassiodo-rius), um senador do império dos Ostrogodos, discípulo e continua-dor de Boécio. Nasceu em 477 no lugarejo de Squillace na Calábria e morreu com mais de noventa anos em 570. Durante muitos anos foi secretário particular na corte dos Ostrogodos. Em 540 abandonou o posto e recolheu-se ao convento Vivarium que ele mesmo fundara. Desde então desenvolveu uma rica atividade intelectual, empenhado em estimular e promover o cultivo das ciências nos diversos conven-tos. O cultivo consistia predominantemente num trabalho de multi-plicar as cópias dos escritos disponíveis.

A grande atividade literária de Cassiodoro não procurava estimu-lar o progresso do conhecimento. Ele estava convencido de que tal desenvolvimento pressupõe um nível de informação bastante alto. E neste sentido concentrava suas forças em divulgar o mais possível o conhecimento disponível. Das obras, que lia e estudava, oferecia sempre uma compilação do que achava mais importante. Com tal intenção, escreveu, além de uma crônica e história dos Godos, uma “Historia ecclesiastica tripartita”, composta de material de 3 historia-

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dores gregos (Sócrates, Sozomeno e Teodoreto), que foi muito utili-zada em toda a idade média. Em 537 publicou as Variedades (Variae) e alguns escritos de exegese, como as “Complexiones in psalmos”.

Sua obra mais importante são de 544, “Institutiones divinarum et saecularium lectionum”. O primeiro livro é uma introdução à Te-ologia, que no essencial consta de estudos da Bíblia. O segundo livro é um resumo das Septem artes liberales.

No escrito, De anima, fundado em Agostinho e Mamertus, de-fende que só o homem possui uma alma substancial e imortal. A vida dos seres vivos destituídos de razão se reduz às condições e vitalidade do sangue (De an.1). A alma humana apesar de sua racionalidade, não é uma parte de Deus, nem mesmo uma participação de Deus, por dois motivos. Primeiro porque Deus não pode ter parte e, segun-do, porque a alma não é imutável, de vez que pode escolher o mal. Todavia a alma humana é capaz de se aproximar e assemelhar a Deus através do cultivo e exercício da virtude (De an.2). Criada como e para ser a imagem de Deus, é espiritual, visto ser capaz de conhecer o universal e transcendente. O corpo, na sua generalidade, consta de extensão, de vez que se estica em três dimensões, comprimento, largura e altura. Possui limites e só pode ocupar de cada vez um lugar determinado no espaço, estendendo suas partes no vazio do espaço. A alma, ao contrário, não tendo partes, pode estar toda em todo lugar do espaço e por isso no corpo orgânico do homem está toda presente em todas suas partes, não podendo ser limitada a nenhu-ma parte do corpo. No De an.2, escreve Cassiodoro: “Quia ubique substantialiter inserta est; tota ergo est in partibus suis, nec alibi maior, alibi minor, sed alicubi intensius, alicubi remissius, ubique tamen vitali intensione porigitur; 4). Em oposição a Mamertus, Cassiodoro não aceita a categoria da qualidade em sentido próprio, na alma. Como é para ser entendido isto? As determinações do ser material são, quale, quantum, quid, tempus, ubi locus. A questão é a distinção da qualida-de em sentido próprio e uma definição distintiva que se acrescenta como acidente à substância. ... (De na.3) A imortalidade da alma é um exercício da simplicidade e espiritualidade.

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No segundo livro das Institutiones de artibus ac disciplinus libera-lium litterarum, Cassiodoro trata das sete artes e ciências liberais: as três primeiras, que chama de artes seu scientiae sermocinales: a gramá-tica, a dialética, a retórica, e as quatro outras, que chama de disciplinae seu scientiae reales: aritmética, geometria, música e astronomia. Ele as recomenda para uma compreensão das sagradas escrituras e para se conhecer a Deus, embora seja possível conhecer a verdade cristã sem elas e é o que, na grande maioria dos fieis, acontece (De hist. 28). Esta exposição de Cassiodoro rivaliza, com a de Martianus Capella, enquanto manual de ensino fundamental em todos os séculos da es-colástica. Aduzindo material de Cícero e Mário Víctorino mas sobre-tudo de Boécio compõe uma dialética, que apresenta um resumo de todo o Organon de Aristóteles. O conteúdo das disciplinas reais, ele retira de Boécio, Apuleius, Nicômaco, Ptolomeu e Agostinho.

O quinto e o sexto nome da transição para a Escolástica são Martinho de Braga e Isidoro de Sevilha, denominado Isidorus His-palensis. O papel que representaram na Itália Boécio e Cassiodoro para os visigodos, desempenharam aqueles na Espanha para os sue-vos e os godos ocidentais. Foram eles que conservaram e transmiti-ram os tesouros e as riquezas culturais da antiguidade.

Martinus de Braga, foi primeiro abade, depois bispo de Dumio e terminou metropolita de Braga. Morreu em 580. Em suas obras se dedicou sobretudo a questões de ética. Sua obra principal se intitu-lava: formula vitae honestae ou De quattuor virtutibus e foi dedicada ao rei dos suevos, Miro (570-583). Contém uma exposição da ética filosófica, seguindo as quatro virtudes cardeais de Platão: prudentia, magnanimitas, continentia, iustitia. Ele se apoia na obra de Sêneca, De officiis, bem como, depende de Sêneca o tratado De ira, e o De paupertate se compõe de material retirado das cartas de Sêneca. Trata--se de coleções de excertos, bem como os dois outros escritos, Ae-gyptiorum patrum sentenciae e Verba seniorum, nos quais apresenta traduções do grego que o próprio Martinus fez primeiro e que depois seu companheiro de mosteiro, Paschasius realizou sob sua orientação.

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A ética desde a antiguidade tem sido uma ética das virtudes e dos vícios. Já Filon de Alexandria conciliou os ensinamentos de Aristóte-les e dos estoicos com os ensinamentos da Bíblia. A lei dada por Deus serve para aperfeiçoar as virtudes inatas no homem pela criação.

Para o cristianismo, a doutrina das virtudes constitui a estrutura moral e o pensamento ascético da vida cristã. Para transmitir tanto a estrutura como o pensamento, os Padres Gregos e Latinos, sobre-tudo Evrágrio do Ponto e Santo Agostinho, retomam os princípios e axiomas sobre as virtudes dos estoicos: por exemplo, a virtude é o único bem e o vício, o único mal, o resto é indiferente. A virtude está no justo meio entre os dois extremos. O prêmio da virtude é a própria virtude. A via da virtude é difícil, o caminho do vício, fácil. A virtude é uma só, os vícios são muitos. A pluralidade das virtudes são aplicações da unidade da virtude. Todas as aplicações incluem a unidade. É a famosa anakolouzia das virtudes = uma virtude supõe e acompanha todas as virtudes.

Martinho de Braga se baseia em Origines, que identifica as vir-tudes com Cristo. Pois Cristo é a Justiça, a Sabedoria, a Verdade. Enquanto os cristãos e os homens não são as virtudes, no máximo têm virtude, na medida em que participam da vida de Cristo. Mar-tinho ainda não distingue, como depois se faz na Alta Escolástica, entre virtudes “materiais” e virtudes “substanciais”. Seguindo Santo Agostinho e os Padres da Patrística, aceitou com Sêneca e os estoicos a divisão de Platão das 4 virtudes cardeais: 1º) a prudência, que aper-feiçoa a mente; 2a ) a coragem, que mobiliza a energia da vontade contra o mal; 33) a temperança, que resiste à concupiscência; 43) a justiça, que harmoniza e equilibra na devida proporção o exercício das virtudes.

Seguindo os estoicos, Martinho parte da convicção de que a maldade, a malícia não pertence à natureza do homem, dotado de integridade. A maldade vem de fora; é criação no pensamento do es-pírito do mal. Orígenes diz que a fonte de todo mal são pensamentos adventícios, que se implantam em 3 etapas: a primeira rebelião é a

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prosbolé, a sugestão, que Santo Agostinho chama de suggestus; a se-gunda rebelião é o deleite do trato e da conversação com a sugestão. A terceira rebelião é o consentimento, é gunkatazesid, dado à sugestão. Estas três etapas compõem uma luta interior entre o apelo da malícia e resistência para libertar-se. Esta resistência é a paxé. O consentimen-to repetido cria dependência do vício, a aixmalosia. Santo Agostinho fala de suggestus – delectatio – consensus – contentio – consuetudo.

A sugestão, diz Martinho de Braga, é impossível evitar. E para não dar o consentimento deve-se contornar as conversações através de distrações.

A condição prévia para a distração é o discernimento, a identi-ficação das formas de sugestão. Seguindo Evrágrio, Martinho apre-senta o elenco dos sete vícios capitais: 1°) a gula; 2°) fornicação; 3°) avareza; 4°) inveja; 5°) a ira; 6°) o ócio 7°) orgulho — vanglória; 8°) soberba.

Isidoro, arcebispo de Sevilha, chamado de Isidorus Hispalensis, morto em 636. É o mais erudito dos escritores eclesiásticos de Espa-nha na época. Desenvolveu extraordinária atividade na transmissão da cultura antiga para a formação teológica e profana de seus con-temporâneos. Na verdade, os seus escritos têm caráter compilatório. Mas justamente porque traziam extraordinária quantidade de mate-rial da tradição tornaram-se indispensáveis para a evolução posterior. Suas crônicas e histórias dos godos, dos vândalos e suevos bem como o liber de viris illustribus continuavam a linha desenvolvida por Jerô-nimo e Gennadius no final do século IV e até meados do século V, em suas histórias da literatura cristã. As obras teológicas de Isidoro também são compilações, exceto o De fide catholica contra iudaeos, que tem caráter apologético.

A obra mais importante de Isidoro, por ser a maior e a mais rica em informações de toda espécie é intitulada Origines seu Etymolo-giae. É uma enorme coleção enciclopédica de todo o conhecimento disponível tanto profano quanto patrístico. São 20 livros. Esta obra serviu de modelo para toda a literatura medieval de enciclopédias e

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glossários de toda espécie e foi amplamente utilizada na tradição dos cursos das diversas escolas da primeira etapa da escolástica. Outros escritos também enciclopédicos, como o De ordine creaturarum e sobretudo o De rerum natura, compilado de autores clássicos latinos, Suetônio, Higino, Lucrécio, Palladius, Servius e de padres latinos, Ambrosio, Agostinho e muitos outros, apresentam uma descrição da natureza e do mundo e servem de fonte de conhecimento para as épocas posteriores. Especial menção merecem os livros das senten-ças, Libri sententiarum, um compêndio de teologia doutrinária (1) e de Ética (2 e 3) elaborado com passagens retiradas de Agostinho e Gregório. Esta obra junto com a coleção de sentenças de Prosper de Aquitania, discípulo fiel de Agostinho (450), e no século VII com o livro de sentenças do bispo Samuel Tajus de Saragossa, deram o im-pulso decisivo e o modelo para a proliferação de sentenças em toda a idade média.

O último nome da transição é o abade Beda Venerabilis, nas-cido em 674 na Inglaterra e morto em 735 no mosteiro de Jarrow. Também produziu para os ingleses coleções de excertos e compên-dios enciclopédicos, como Isidoro na Espanha. Assim, os escritos De Arte Métrica, De Schematibus et tropis, De Orthographia visam à primeira formação dos anglo-saxões. A obra mais importante é De Rerum Natura, que exerceu em toda a escolástica uma influencia decisiva no tocante ao conhecimento da natureza, da cosmografia, meteorologia e geografia. Trata-se também de uma compilação de autores antigos. A ele se atribuía ainda o escrito, De Mundi Constitu-tione, importante para os conhecimentos medievais de astronomia, mas que certamente é-lhe posterior. Também escreveu sobre crono-logia, Liber de Temporibus, De Ratione Temporum, importantes para o calendário medieval. Suas homilias sobre quase todos os livros da Bíblia apresentam rico material haurido das obras da Patrística. A sua Historia ecclesiástica Gentis Anglorum inaugurou a historiografia entre os povos germânicos.

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as fontes da escolástica

O surgimento da Escolástica se prende a fontes que lhe fornece-ram problemas e doutrinas da Filosofia e Teologia da Antiguidade. O modo e a medida do acervo recebido vão determinar as tendências e as correntes, características e limites das fases de sua evolução na pré-escolástica, na proto- e na alta escolástica. Por isso, é de suma importância para compreender a escolástica ter uma ideia geral dos mananciais de que a filosofia na escolástica retirou as forças, a dinâ-mica e os endereços de seu crescimento. São três as vertentes, com suas bifurcações, que chegaram, ao longo dos séculos, até o esforço de pensamento e reflexão dos medievais: o acervo filosófico da an-tiguidade clássica e posterior e o depósito da teologia cristã com a Bíblia, a tradição e os concílios.

No séc. XII se completou o cânon de 7 escritos lógicos que ser-viu de base para as atividades de ensino, pesquisa e reflexão.

Para se compreender o espírito da filosofia escolástica, é indis-pensável conhecer o método de exercício, i é, o conjunto dos prin-cípios de interpretação, dos padrões de organização, das práticas de operação, que caracterizam as diversas formas de exposição, de investigação e transmissão do conhecimento e ensino. O método escolástico é uma criação original da idade média cristã. Como há sempre uma unidade prática e subordinada da filosofia à teologia, os procedimentos, os instrumentos e técnicas criados valem para ambos os níveis de conhecimento. A lectio, a disputatio e compositio são as formas de procedimento tanto na teologia quanto na filosofia.

A essência da filosofia escolástica reside e está numa a sistema-tização de um imenso material múltiplo e diverso, herdado da tra-dição filosófica e teológica. O caráter do método escolástico está a serviço desta essência, comprometido sempre com um esforço de síntese. Por isso, o entendimento dos escolásticos de scientia e doctri-na é, em qualquer diferença, aplicação; “componere verba et sermones” é a atividade de todo escolástico, o que exclui o sentido moderno de

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pesquisa da produção do conhecimento, seja na filosofia, seja na ci-ência. Isto equivale a dizer que a atitude em que o medieval entendia o conhecimento não tem nada a ver com a atitude em que o homem moderno entende o conhecimento da ciência moderna. Em outras palavras, o ideal de saber medieval é da aceitação da herança recebi-da, que será, então, harmonizada entre si, enquanto o ideal de saber moderno é de transformação do real pela reflexão da experiência e pela operação do experimento. A operação transformadora do real é o supremo tribunal em que se avalia e julga da verdade a herança recebida. A essência da verdade já não é adequação e correspondên-cia entre o conhecimento e o real, como na escolástica. A essência da verdade do conhecimento é operativa, depende da segurança com que a operação do real obtém sucesso. A vigência da técnica apodera--se progressivamente do conhecimento da ciência.

No início do séc. XX, M. Grabmann publicou uma obra sobre o método da escolástica. “Geschichte der Scholastischen Methode”, que se tomou clássica. O primeiro Volume (1,36) define com pre-cisão histórica e sistemática o método escolástico: “O método es-colástico pretende, com a aplicação da razão filosófica às verdades reveladas, alcançar uma percepção, a maior possível, do conteúdo da fé, a fim de, assim, aproximar a verdade sobrenatural, em seu conteúdo, do pensamento do espírito humano, para, deste modo, possibilitar uma exposição sistemática, organicamente coerente, da verdade da salvação e poder, destarte, dissolver as objeções e argu-mentos levantados pela razão contra o conteúdo da revelação. Num desenvolvimento gradual, o método escolástico criou uma determi-nada técnica externa, uma forma, e, por assim dizer, encarnou-se e se tomou sensível”.

Die scholastische Methode will durch Anwendung der Vernuft, der Philosophie, auf die Ofenbarungswahrheiten möglichst Einsicht in den Glaubensinhalt gewinnen, um so die übernatürliche Wahrheit dem denkenden Menschengeist inhaltlich näher zu bringen, eine systematische, organisch zusammenfassende Gesamtdarstellung der Heilswahrheit zu ermöglichen und die gegen den Offenbarun-

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gsinhalt vom Vernunftstandpunkt aus erhobene Einwände lösen zu können, in allmählicher Entwicklung hat die scholastiche Methode sich eine bestimmte äussere Technik, eine äussere Form geschcafen, sich gleichsam versinnlicht und verleiblicht.

Contra esta definição de Grabmann, M. de Wulf (Hist. de la Phi-losophie Mediévale, 1924, p. 3) alegou que ela só vale para teologia escolástica e não para a filosofia escolástica. Não há dúvida de que a filosofia na Idade Média estava a serviço da teologia, mas não es-gotava com isso sua função, pois a filosofia era um setor de conheci-mento e ensino autônomo e próprio, ao lado da teologia. E com isto, a questão do método na escolástica não pode, de forma alguma, ser respondida completamente com o serviço que ela presta à teologia.

O termo “método escolástico” teve três sentidos de acordo com o uso que dele fez a escolástica em todas as suas fases de desenvolvi-mento: num primeiro sentido, designa o serviço que a filosofia presta à teologia. Num segundo sentido, o termo se refere ao procedimen-to lógico de qualquer conhecimento, seja teológico, seja filosófico. Num terceiro sentido, o termo indica o conjunto dos procedimentos de ensino, investigação e exposição de que se valia a escolástica, tanto na teologia quanto na filosofia.

No primeiro sentido, o método escolástico remonta à patrísti-ca, tanto grega como latina, em Clemente de Alexandria, Orígenes, Gregório de Nissa, João Damasceno, Agostinho, Boécio, Ambrósio etc. A escolástica medieval é a continuação da teologia patrística e realiza, em consequência, uma integração da filosofia na teologia. No entanto, o modo de fazê-lo foi diferente, devido à nova maneira de se determinar os limites e com eles as relações entre filosofia e te-ologia. Esta novidade está em se reconhecer, em principio, a filosofia como uma ciência em si mesma própria e autônoma. Até a maneira como a escolástica tratava e construía a teologia era uma maneira específica e particular, pois os escolásticos, em parte, elaboravam a teologia de acordo com os princípios e as regras de procedimento da epistemologia de Aristóteles. Era uma atitude nova, que realçava a autonomia e especificidade da filosofia.

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Todas estas objeções à definição de Grabmann não tocam no ponto nevrálgico da questão. São alegações que se restringem a fa-tos, ao que acontecia na escolástica. Todavia são magni grassus, sed extra viam, usando o procedimento da disputa escolástica, devemos dizer: “concedo forum, sed quid ad vem!” Pois a questão é se houve ou não na idade média escolástica um método de investigação que não estivesse a serviço da teologia. O ponto de partida e o fundamen-to de todo esforço filosófico da escolástica, seja metodológico, seja lógico, seja ontológico, é sempre a verdade revelada, seu esclareci-mento, como tal, i. é, como revelada, e sua defesa contra objeções. O progresso filosófico provém sempre de dificuldades referentes à crença de verdades reveladas. As questões dos universais, a questão dos transcendentais, a questão dos princípios do ser e agir, a questão da diferença entre natureza e pessoa, entre tempo e eternidade, entre emanação e criação, entre processão e divisão, e todas as demais nas-cem direta ou indiretamente de questões teológicas a respeito de ver-dades reveladas. Assim, geneticamente qualquer problema filosófico da escolástica é teológico, mas não somente geneticamente, também sistematicamente é um problema que recebe seu encaminhamento em dependência da verdade revelada pelas Escrituras ou decidida pela função magisterial da Igreja. O medieval acreditava na infali-bilidade da Igreja e não necessariamente na do Bispo de Roma. A famosa sentença de Sto. Agostinho: Roma locuta, causa finita, é uma convicção pessoal que ele aduz em sua própria (2) causa (1). Não se trata de definição de um concílio que comprometa a Igreja toda.

O mesmo sentido de processamento e não de invenção tem o método escolástico no tocante ao material filosófico herdado da Antiguidade. A filosofia na escolástica, do ponto de vista do pro-cedimento, é também uma síntese de elementos legados pelos fi-lósofos antigos. Não resulta de novas descobertas, não propõe algo que ainda não havia nem estivesse dado e processado na experiência humana. Os medievais não conheciam a reflexão da experiência e muito menos o experimento como fontes independentes e autôno-mas de dados e conhecimentos filosóficos. Seu ponto de partida e

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fundamento é a tradição teológica das verdades religiosas reveladas. Sua tarefa e finalidade consistiam em apropriar-se e elaborar, em de-senvolver e compatibilizar, em articular e ordenar, em fundamentar e demonstrar o material herdado referente à fé e à revelação. Cons-truir sistematizações constitui o cerne e a orientação da atividade de pensamento na idade média, tanto na teologia, como na filoso-fia. Os desempenhos mais originais e as contribuições admiráveis se concentram na virtuosidade de suas performances de sistematização. Nos livros das sentenças do século XII, nas sumas e ordenações do séc. XIII e XIV, o trabalho criativo dos escolásticos encontrou os frutos e o auge de seu gênio.

Se a meta era sistematizar o acervo herdado, o caminho para alcançá-lo só poderia ser mesmo o método dedutivo, com seus ins-trumentos de divisões, definições, distinções, classificações, argu-mentações, que a silogística herdada dos gregos proporcionava.

Na lógica aristotélica, cujos escritos do Organon conhecidos des-de meados séc. XII, a escolástica dispunha de um instrumental de raciocínio e explanação de primeira ordem. E nos Elementos de Eu-clides, traduzidos do grego por Boécio e do árabe por Abelardo de Bath, encontram um modelo clássico de sistematização axiomático a que se poderia aplicar a lógica dedutiva. Ademais, em seu Liber de Hebdomatibus e em outros opúsculos teológicos, Boécio apresentava o método matemático, como o método mais perfeito de todo conhe-cimento e de toda ciência. No proêmio de seu livro escreve Boécio: “Ut igitur in mathematica fieri solet caeterisque etiam disciplinis, prae-posui terminos regulasque, quibus carreta, quae scientur efficiam”. As-sim não é por algum acaso que se pode constatar um vigoroso surto de sistematização a partir da segunda metade do séc. XII, quando se tornaram conhecidas as principais obras do Organon de Aristóteles. Assim também não é de se admirar o caráter fortemente dedutivo nas obras dos escolásticos a partir de então. Definições, sentenças e axiomas começam a seguir em cadeias ordenadas de silogismos e se impõem, como a chave mestra que promete abrir todas as portas do conhecimento e da ciência. Desde a primeira fase, a dedução cons-

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tituía o método lógico predominante que só fez crescer e ampliar-se no período áureo da alta escolástica do século XIII. Somente com o conhecimento dos escritos físicos e biológicos de Aristóteles é que começaram a aparecer as primeiras tentativas de um procedimento empírico e analítico mas que não foram suficientes para estimular e promover o desenvolvimento sistemático de uma lógica e meto-dologia indutiva. Somente em alguns círculos restritos de interesse pelos fenômenos materiais, em escolásticos, como Alberto Magno, Rogério Bacon, Dietrich Von Freiberg e outros, sentiu-se a necessi-dade de se aprofundar procedimentos empíricos de pesquisa, o que só veio a crescer e alargar-se’ na chamada Escolástica posterior dos séculos XIV e XV.

Ao lado do método dedutivo de sistematização, impressionam também as formas técnicas e externas com que os escolásticos reves-tiram suas criações metodológicas. São formas e instrumentos des-tinados ao ensino e à transmissão de suas sistematizações. Aqui se verifica a originalidade do espírito medieval. Trata-se das três formas e instrumentos de ensino que dominavam todas as fases da Escolás-tica. A lectio, a disputatio e o procedimento conhecido como sic et non. São formas e instrumentos criados e elaborados de dentro da es-pecificidade do conteúdo doutrinário e do método correspondente.

É que a ciência escolástica foi sempre um conhecimento acadê-mico dependente da atmosfera técnica da escola. As salas de aula e os quartos de estudo das escolas nas catedrais, nos conventos e abadias dos primeiros séculos e, desde 1200, nas universidades e nos Studia Generalia das ordens, constituíam os únicos espaços, onde a ciência escolástica tinha condições e encontrava forças para desenvolver-se. Neste ambiente a lectio, isto é, o comentário e explanação de textos dados, tanto teológicos quanto filosóficos, era a única maneira não somente de ensino mas de reflexão e pensamento. Este método de transmissão do conhecimento encontrava paradigma e modelo nos comentários de Boécio de início e mais tarde nos escritos traduzidos dos comentadores árabes e judeus, nas interpretações e na herme-

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nêutica das Escrituras dos padressobretudo dos padres latinos. Os frutos e resultados deste método e procedimento didático se acham conservados na rica literatura dos escritos escolásticos. Nos séculos XIII e XIV multiplicaram-se os comentários às Sentenças de Pedro Lombardo e aos escritos de Aristóteles, de Avicena e Aveirois e dos neoplatônicos com o nome de Aristóteles.

As lectiones encontraram desde o século X um complemento nos exercícios e na prática das disputationes. Uma disputatio era um de-bate público, rigorosamente ordenado de acordo com as regras do silogismo, em que se discutiam e decidiam questões controversas, quer deliberadamente escolhidas antes, quer sorteadas na hora. João Saresberiense, em seu escrito Metalogica II, 10 (PL 199, 910 C) diz que a organização destas disputas tinha por base o oitavo livro da tó-pica de Aristóteles. Na estruturação dos cursos das universidades do século XIII as disputas constituíam o principal recurso de formação acadêmica, tanto na forma de disputationes ordinariae, cuja questão era selecionada de antemão, quanto na forma de disputationes de quolibet, cuja questão era sorteada, como ainda veremos em detalhes.

Tanto a Lectio como a disputatio se caracterizavam, em seu pro-cedimento, por operarem com autoridades. Todo conhecimento e ciência da idade média se fundam na autoridade: organizam-se e se vestem da forma de sentenças. Desde o século XIII, para se obter o tí-tulo de doutor em qualquer universidade medieval era indispensável que o candidato comentasse os quatro livros das Sentenças de Pedro Lombardo. As sententiae auctorum formam o material sobre o qual se edifica, pelo método dedutivo, o sistema da teologia e filosofia. As sentenças se apresentam como definições e axiomas. Delas retiram-se as distinções e classificações bem como as premissas dos silogismos e das demonstrações. Esta metodologia fundada sistematicamente na autoridade não é uma característica externa e adventícia na escolás-tica. Decorre de sua concepção sobre a natureza do conhecimento e da ciência escolástica, que consistia essencialmente em “compor pa-lavras e discursos” da tradição teológica e filosófica. O medieval via

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na tradição o maior tesouro de sua crença. Junto com a Escritura a tradição forma o depositum fidei, o acervo da fé. Suas sentenças, suas teses e doutrinas estavam cingidas pela auréola da verdade, garantida pela revelação da Bíblia e pela infalibilidade da Igreja nas decisões de seus concílios. Assim para se conhecer a verdade, bastava aceitar a autoridade e tomá-la como norma de toda e qualquer verdade. E uma atitude que se estendia, em sentido rigoroso, e sem nenhuma exceção, para os autores aprovados da teologia, para as sentenças do Antigo e do Novo Testamento, para as sentenças dos Padres da Igreja e para as decisões dos concílios e os cânones da Igreja.

Esta atitude não valia apenas para a teologia. Aplicava-se também para as autoridades de qualquer conhecimento ou ciência. Aqui só se admitia critica e divergência. quando aparecesse e ocorresse alguma contradição e oposição às verdades da fé revelada. Caso contrário, as sentenças e doutrinas dos autores consagrados eram aceitas como norma e diapasão da verdade. E sobre elas era edificado o sistema do conhecimento de qualquer área. Assim o método da autoridade valia por toda parte. O papel do conhecimento teológico e filosófico era resolver as contradições, harmonizar as oposições e compor as divergências que sempre ocorriam entre as sentenças, de vez que a tradição oferecia as sentenças separadas dos seus contextos nas ta-bulae, nos compêndios e florilégios. Os escolásticos acreditavam até que contradições, aporias e divergências sempre constituíram êmulo de progresso e desenvolvimento. A divergência dos autores forçava a necessidade de tomar posição própria. Mas esta posição própria não passava de composição. Era convicção aceita que qualquer contradi-ção entre as autoridades era apenas aparente. E a tarefa do escolástico consistia em buscar caminhos de harmonização e conciliação. Era o sentido que tinha, então, o verbo, com-ponere, quando usado na determinação do sentido de ciência e doutrina para um medieval. Assim, o principio da autoridade, como método de conhecimento, se transformava, na prática, no princípio de harmonia e conciliação. O percurso desta transformação atravessa três momentos ou fases de operação, no método escolástico de ensino e exposição:

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a) a contraposição: as diferentes autoridades eram contrapostas em suas posições, na forma das expressões pro e contra, de videtur quod non, sed contra: é a primeira fase da exposição;

b) resolução e fundamentação, na forma dos termos: solutio, cor-pus, respondeo dicendum: é a segunda fase da exposição;

c) a composição, na forma dos termos ad primum dicendum, ad secundum dicendum, onde se compunham e harmonizavam as aparentes oposições e contradições.

Este procedimento do método de composição das autoridades assegurava o progresso e desenvolvimento do conhecimento esco-lástico tanto na teologia quanto na filosofia. Este esquema de pro-cedimento com suas regras e princípios de harmonização provinha da tradição canônica, muito antes do escrito de Abelardo, sic et non. Através de Abelardo e sua escola e seus contemporâneos, o método foi introduzido na teologia sistemática e levado a sua plenitude no século XIII pelos grandes sistematizadores da Alta Escolástica em suas Sumas e Questões.

Na filosofia aconteceu o mesmo percurso. Assim Roberto Gros-satesta em seu livro, Summa Philosophiae, utiliza o mesmo proce-dimento metódico de exposição. A harmonização das diferenças e contradições entre as doutrinas dos diversos autores força quase sempre a leitura e interpretação das passagens, desgarradas de seu contexto histórico e doutrinário. Conhecida e investigada a este res-peito é a atitude de Santo Tomás face aos textos de Santo Agostinho. É o que demonstrou com pertinência o estudo de G. von Hertling, “Augustinus-Zitate bei Thomas von Aquin”, no relatório diante da Academia de Ciências da Baviera, de 1924.

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DO MODO DE aPREnDER E MEDItaR*

Hugo de São Vítor

1. a humildade é necessária aos que querem aprender

O princípio do aprendizado é a humildade, pois, uma vez que são muitos os documentos, cabe ao leitor principalmente essas três coisas. Primeiro, que não considere nenhum escrito como vil. Se-gundo, que não se envergonhe de aprender de ninguém. Terceiro, quando tiver obtido a ciência, que não despreze os demais. Muitas pessoas se enganam no fato de quererem ver-se sábios antes do tem-po, e assim se envergonham de aprender dos outros aquilo que não sabem. Mas tu, filho, aprende com carinho aquilo que não sabes. Será mais sábio que todos se quiseres aprender de todos. Os que recebem de todos são mais ricos que todos. De modo algum consi-deres qualquer ciência como vil, porque toda ciência é boa. Se tens

* Este opúsculo de Hugo de S. Vítor é provavelmente uma compilação feita no século XIII, por algum discípulo, de extratos de textos do próprio Hugo, com a finalidade de montar um opúsculo destinado à orientação ao aprendizado, ao ensino e ao método de estudo e leitura. O título original soa De modo dicendi et meditandi. Todavia, conforme Javier vergara Ciordia (El de modo dicendi et meditandi de Hugo de San Victor. Una lectio sobre la pedagoría Del Siglo XII, Revista española de pedagogia, LXV, n. 238, 2007, p. 519-544), mais ou menos 85% da obra é extraída do Didascalicon de Studio legendi. Supõem-se e faz mais sentido algum copista ter suprimido o “s” do verbo discendi, ficando dicendi. Uma suposição que se fundamenta pelo conteúdo da obra.

Texto traduzido de Migne, Patrologia latina, vol. 176, cols. 877-880.

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tempo vago, não desprezes nenhum escrito nem sequer qualquer lei. Se nada ganhas, tampouco nada perdes. O Apóstolo, pois, disse: Ler de tudo e reter o que é bom (1Ts 5). O bom leitor deve ser humilde e manso, completamente alheio aos cuidados do mundo e à sedução dos prazeres, e diligente para que de tudo aprenda com gosto. Nunca presuma de sua ciência, não se veja a si mesmo como douto, mas queira sê-lo, que busque os ditos dos sábios, e se esforce ardentemen-te para mantê-los sempre diante de seus olhos, sendo como que um espelho diante de seu rosto.

2. três coisas são necessárias ao estudante

Três coisas são necessárias aos estudantes: natureza, exercício e disciplina. Na natureza vem considerado que perceba facilmente o que ouve e retenha firmemente aquilo que percebeu. No exercício, que cultive o senso natural com trabalho e diligência. Na disciplina, que vivendo de forma louvável, conjugue costumes e ciência.

3. Que seja capaz de inteligência e memória

Os que trabalham com ensinamento devem ser capazes de ter ao mesmo tempo inteligência (ingenium) e memória. Pois essas duas estão tão interligadas em todo estudo que, se faltar uma delas, tam-pouco a outra pode levar à perfeição, assim como todo lucro não pode trazer utilidade onde falta custódia; e em vão guarda o baú aquele que nada tem para guardar.

4. Da inteligência

A inteligência é certo vigor natural implícito no ânimo, que tem vigência por si mesmo. A memória é a percepção das coisas, das palavras, das sentenças e dos sentidos, firmíssima do animo ou da mente. A inteligência descobre, a memória custodia. A inteligência

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enuncia a partir da natureza, é auxiliada pelo uso, vai se apagando pelo trabalho imoderado, ganha acuidade pelo exercício temperado. A memória é auxiliada maximamente e adquire vigor pelo exercício de reter e de meditar assiduamente. São duas as coisas que exercitam a inteligência: a leitura e a meditação. A lição se dá quando somos instruídos, através de regras e preceitos, a partir do que está escrito. Assim, a leitura tem por assunto a investigação do senso. O gênero da leitura tem três modalidades, docente, discente ou autodidata. Dizemos pois, leio o livro para ele, leio o livro por ele, e leio o livro.

5. Da meditação

A meditação é um cogitar freqüente, com instrução, que inves-tiga prudentemente causa e origem, modo e utilidade de cada coisa. A meditação toma seu princípio da leitura, embora não se construa com as regras ou preceitos da lição. Deleita-se pois em discorrer num espaço aberto, onde afixa aguda e livremente a vista para contemplar a verdade; e tocar essas causas das coisas, ora aquelas, ora penetrar algo profundamente, nada deixando de duvidoso ou de obscuro. O prin-cípio da doutrina está na leitura, a consumação na meditação. Pois se alguém aprendesse a amá-la com familiaridade, querendo dedicar-lhe bastante tempo, a vida se torna agradável e, na tribulação, presta-lhe o máximo consolo. É ela, pois, que maximamente separa a alma do estrépito dos feitos terrenos, e permite degustar nesta vida também, de algum modo, a doçura do repouso eterno. E uma vez que já apren-deu a buscar e compreender quem fez, a partir daquilo que foi feito, então instrui a alma igualmente pela ciência e aprofunda-a pela ale-gria: e com isso, resulta que na meditação está o máximo de deleite.

6. três gêneros de meditação

Três são os gêneros da meditação. Um consiste no exame dos costumes, outro em perscrutar os mandamentos, e o terceiro na

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investigação das obras divinas. Os costumes estão nos vícios e nas virtudes. Dos mandatos divinos, uns são prescritivos, outros de pro-messas e outros assustadores. A obra de Deus é aquilo que cria pela potência, modera pela sabedoria e coopera pela graça. Quanto mais conhece alguém das coisas que são dignas de admiração, tanto mais atentamente se habitua a meditar as maravilhas de Deus.

7. Deve-se confiar à memória aquilo que nos foi ensinado

Recolhendo, a memória custodia aquilo que a inteligência in-vestiga e descobre. Aquilo que divisamos aprendendo, é preciso que recolhamos e confiemos à memória. Recolher (colligere) é redigir aquilo que se escreveu ou sobre o que se disputou de forma mais prolixa num breve ou compendioso resumo, chamado pelos grandes de epílogo, ou seja, uma breve recapitulação do que foi dito acima. A memória do homem, portanto, goza de brevidade, e quando divi-dida em muitas coisas fica menor em cada uma. Portanto, em todo estudo ou doutrina, devemos recolher algo breve e certo, que seja reconduzido à pequena arca da memória, donde, depois, quando a situação o exigir, de lá se derive algo. Mas isso também deve ser repassado seguidamente, sendo necessário invocá-lo do ventre da memória para o gosto do paladar para que não obsolesça por um intervalo muito longo.

8. três visões da alma racional. Diferença entre meditação e contemplação

Três são as visões da alma racional. A cogitação é quando a mente é tocada pela noção transitória das coisas, quando essa coisa se apre-senta de súbito ao ânimo através de sua imagem, ou tendo entrado pelos sentidos ou surgindo da memória. A meditação é a reaborda-bem assídua e arguta da cogitação, esmerando-se por explicar algo de obscuro, ou sondando para penetrar no oculto. A contemplação é

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um intuir perspicaz e de espírito livre de coisas a serem investigadas e difusas por toda parte. Entre a meditação e a contemplação parece haver esse intermédio, que a meditação é sempre de coisas ocultas à nossa inteligência; mas a contemplação, de coisas manifestas, segundo sua natureza ou segundo nossa capacidade; e que a meditação sempre se ocupa em buscar com cuidado algo singular; mas a contemplação se estende a muitas coisas ou até a universalidade das coisas a serem compreendidas. Assim, a meditação é certo vigor da mente, curiosa e sagaz, para investigar coisas obscuras e explicar coisas intrincadas. A contemplação é aquela vivacidade da inteligência que, tendo todas as coisas presentes, compreende-as numa visão manifesta, e assim, de certo modo, aquilo que busca a meditação, a contemplação possui.

9. Dois gêneros de contemplação

A contemplação é de dois gêneros, um, que é o primeiro e dos principiantes, está na consideração das criaturas, o outro, que é o último e dos perfeitos, está na contemplação do Criador. Nos pro-vérbios, Salomão como que avança meditando, no Eclesiastes sobe para o primeiro grau de contemplação, no Cântico dos Cânticos se transporta ao supremo. Portanto, para distinguirmos esses três com suas próprias palavras, o primeiro é a meditação, a segunda é a espe-culação, e a terceira a contemplação. Na meditação, a perturbação das paixões carnais que surgem inoportunamente obscurece a mente incendiada por uma devoção piedosa; na especulação, a novidade da visão insólita subleva-a para a admiração; na contemplação, o gosto da doçura admirável transforma toda a mente em gozo e alegria. Portanto, na meditação há solicitude, na especulação admiração e na contemplação doçura.

10. três coisas na exposição

A exposição contém três coisas, a saber, letra, sentido (sensum) e sentença (sententia). A letra é uma ordenação congruente das pa-

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lavras, que também chamamos de construção. O sentido é certa fi-guração fácil e apta, oferecida pela letra à primeira vista. A sentença é intelecção mais profunda, que não pode ser encontrada a não ser pela exposição ou interpretação. Nelas, a ordem exige que venha primeiro a letra, depois o sentido, e por fim a sentença: através disso, a exposição é perfeita.

11. três gêneros de vaidades

São três os gêneros de vaidades. A primeira é a vaidade da mu-tabilidade que inabita em todas as coisas caducas como condição. A segunda é a vaidade da curiosidade ou do desejo, que inabita nas mentes humanas pelo deleite desordenado das coisas transitórias e vãs. A terceira é a vaidade da mortalidade, que inabita o corpo hu-mano como penalização

12. Funções da eloqüência

Disse alguém eloqüente e falou a verdade que se deve chamar de eloqüente a quem ensina, deleita e convence (AGOSTINHO, De doctrina Chtistiana, Lib. IV, cap. 14). Por fim acrescentou: Ensinar é questão de necessidade, deleitar, de suavidade, convencer é questão de vitória. Dessas três coisas, a primeira , isto é, a necessidade de ensinar está radicada nas coisas que dizemos e as duas restantes no modo como as dizemos. Quem, portanto, dizendo, busca persua-dir sobre o que é bom, nada dessas três deve desprezar, para poder ensinar, deleitar e convencer; diga e aja para ser ouvido de modo inteligente, com gosto e com obediência. Pois, ao fazer isso de forma apta e conveniente pode ser chamado com razão de eloqüente, mes-mo que o assentimento do auditório não o siga. A essas três coisas, a saber, que ensine, que deleite e que convença, o próprio autor da eloqüência romana vê pertencerem outras três coisas, ao dizer ainda: Será eloqüente quem consegue dizer as coisas pequenas de forma

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submissa, as medianas de forma temperada e as grandes de forma grandiosa. Quem quer conhecer e ensinar aprenda todas as coisas que devem ser ensinadas e obtenha a faculdade de ensinar adequada a um homem eclesiástico. Quem pois, quer ensinar pelo dizer, não considere ter dito aquilo que quer dizer a ele quem quer ensinar, enquanto não for compreendido; pois, mesmo que diga o que ele mesmo compreende, não se deve considerar que o tenha dito a quem não o compreendeu. Mas se foi compreendido, seja lá de que modo o disse, ele o disse. O doutor e defensor da reta fé e o delator do erro devem ensinar as coisas boas das Sagradas Escrituras, e pela obra do sermão conciliar os que estão separados, erguer os remidos, intimar os ignorantes sobre o que devem fazer, o que devem esperar. Mas onde encontra pessoas benévolas, atentas, dóceis, ou que ele próprio consegue fazer com que fiquem assim, há que se agir no mais confor-me exige a ocasião. Se os que ouvem são os que devem ser ensinados, deve-se fazê-lo com narrações, se for o caso de que o assunto em questão fique claro. Mas é preciso que as coisas duvidosas fiquem certificadas, deve-se raciocinar acrescentando testemunhos.

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normas para publicação

• Os artigos devem ser formulados obedecendo às normas téc-nicas de publicação da ABNT, e encaminhados à nossa edi-toria em modelo eletrônico e com cópia impressa.

• A editoria da Revista se reserva o direito de, após criteriosa análise consultiva, publicá-los ou não. Os artigos não publi-cados não serão devolvidos.

• Os autores articulistas receberão três exemplares da revista em que tiver sido publicado seu artigo, abdicando, com isso, em favor da revista, dos direitos autorais dos artigos.

• Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores e não precisam coincidir com o pensamento da Fa-culdade.

• O idioma de publicação é o português, não estando excluída a publicação ocasional de textos ou artigos em outras lín-guas. Os artigos deverão conter no mínimo 15 e no máximo 25 laudas (1 lauda = 2.100 toques) e vir acompanhados de um resumo de no mínimo 8 e no máximo doze linhas.

• Em folha de rosto deverão constar o título do trabalho, o(s) nome(s) do(s) autor(es) e breve currículo, relatando experi-ência profissional e/ou acadêmica, a instituição em que tra-balha atualmente, endereço, número do telefone e do fax e e-mail.

A editoria agradece qualquer contribuição, no sentido de melho-ria da revista, sejam comentários, sugestões, críticas...

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