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SEFARAD Onde o passado se f as futuro A chegada dos judeus a Portugal confunde-se com o nascimento do país. Ficaram enquanto os deitaram e mantiveram sempre õ laço às origens. Na semana em que o Parlamento votou alei da Nacionalidade, histórias de famílias que não desistiram <|e voltar CHRISTIANA MARTINS E LUCI ANA LEIDERFARB

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SEFARADOnde o passado

se fas futuroA chegada dos judeus a Portugal confunde-se com

o nascimento do país. Ficaram enquanto os deitarame mantiveram sempre õ laço às origens. Na semana em

que o Parlamento votou alei da Nacionalidade, históriasde famílias que não desistiram <|e voltar

CHRISTIANA MARTINSE LUCI ANA LEIDERFARB

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frase ainda ecoa na cabeça de quem a ouviu, hámui Las décadas: "logurlcs Veneza, a saúde à suamesa." Anunciava o primeiríssimo iogurte em Por-

tugal e quem a dizia na rádio, com sotaque estran-

geiro e dicção impecável, chamava-se Trio T.evy.Tralava se do primeiro passo na íixação desle ho

mom no pais de adoção. Mas era mais do que isso.

Na verdade, Ino retornava ao lugar que a famíliadeixara no século XV, um lugar que era seu, em-bora nele não livesse nascido nem crescido. O seu

passado acabou por ser o seu luLuro, num percursocircular que é o de muitos sefarditas portugueses.

Duplamente exilados, os descendentes de se-farditas encontram na evocação desse passado o

consolo de quem, íinalmenle, mesmo transcorridos

séculos, percebe quem c c aonde pertence. E paraquem a pertença tornou inteligível um percursolabiríntico, a geografia de um exílio que, em cada

caso, assumiu nova configuração. Todas as histórias

Leni Porlugal como ponlo de saída c de chegada,todas tem Scfarad (Península Ibérica cm hebrai-co) como terra de memória e de identidade. Todas

guardam símbolos do que foram — do que são — as

raízes: o refrão radiofónico a divulgar o sabor nun-ca antes provado, um documento com o registo an-cestral dos casamentos da família, um sacrário comum fundo falso que, lá dentro, tem gravada (quaseapagada) uma estrela de David.

Não há fundos falsos no caminho de Sara Levy.Aos 42 anos, foi aos poucos tomando posse da histó-ria familiar que trouxe o seu avó Ino Levy para Lis-boa. "A maior parle da minha vida não liguei muiLo

a esla origem. Não Lenho qualquer ligação religiosaao judaísmo. Porém, depois de ter filhos, comecei a

sentir curiosidade" , explica. Ajudou-a ter lido o li-vro que a investigadora americana Sarah AbrevayaSlein escreveu sobre um judeu seíardila nascido emSalónica nos anos 20 do século XIX, de nome Sa'adi

a-Levi, que por acaso era seu trisavô. Não tardou a

perceber que muitos dos lugares por onde ela pró-pria tinha passado e onde, por vezes, havia residido

coincidiam com o iLinerário sinuoso dos seus anle

passados, com "ligações à Europa toda".A primeira coincidência é sem dúvida Portugal,

onde tudo começa e acaba. Mas saber que os I.evyaqui esLiveram no século XV não signiíica conhecer-lhes os dclalhcs. Só cm Salónica, mais Lardc,rcvclar-sc-ão dois costumes de família que apon-tam para um passado português: além do hábi-to de inscrever o primogénito no Consulado para"manler a Lradição" , em casa falava se ladino, língua fortemente ligada à diáspora sefardita, que se

sobrepunha ao Lurco correnLe e ao francês. A dada

altura, a cidade entrou cm decadência, pelo que o

clã decidiu mudar-se. A exceção de um dos irmãosde Ino — Jacques, que foi para Barcelona —

, rumoua Paris, passando por Genebra e Berlim. Na capitalfrancesa, Ino fundou uma empresa de imporLaçãoc exportação, tornando-se caixeiro-viajante.

Até 1942. A ocupação de França pelos alemães

e um ataque dirigido aos judeus de origem gre-ga apenas poupa Ino, o único dos irmãos que, en-quanLo primogénito, Linha papéis portugueses. Ele

pede um visto ao Consulado, que lhe é outorgadoum ano depois. A viagem para Portugal faz-se na

companhia de uma jovem austríaca, 20 anos mais

nova, que fugira do campo de Drancy e com quemviria a casar. "Existem cartas cm que o meu avô dizter ficado cm dívida com Salazar pelo visto" , conta

Sara, apesar da recusa aos pedidos de visto defen-dida na altura pelo ditador. "F mais provável que a

autorização de entrada no país tenha sido obra de

um funcionário desobediente", acrescenta. Os pais

de Ino refugiaram-se na França de Vichy c sobrevi-veram à guerra. Mas os irmãos foram deportados e

levados para campos de concentração. As mulheres

também, e não mais se soube delas.

InLcrnado no campo de Lrabalho de OLLmuLh e

transferido para Blcchhammcr, um dos subcam-

pos de Auschwitz, Jacques viveu para regressar a

Barcelona e ser um dos fundadores da Danone. Fm

Portugal, Ino, o irmão mais velho, morou na Cú-ria, na Figueira da Foz e por iim cm Lisboa, onde

iniciou um negócio inédito no país: o dos iogurtesVeneza, os primeiros nacionais, que anunciava narádio com voz de tenor e sotaque estrangeiro. O paide Sara, diz ela, também tinha boa voz, herdadado pai. E ela herdou o 'bichinho' das viagens — jáviveu cm seis países, hoje na mesma Paris que um

dia acolheu o avô. I lerdaram Lambem um judaísmolaico, que não celebrava o shabbate apenas recorriaà sinagoga "se morresse alguém".

A presença dos judeus sefarditas em Portugal e

Espanha não é motivo de consenso entre os Instoriadores. O que sobra desLe primeiro conLacLo como território que viria a ser Scfarad são escassos si-

nais, como uma moeda ou medalha de origem fe-nícia encontrada em Portugal e que remete a che-

gada dos judeus para o período pré-romano, comoexplica ao Expresso Carla Vieira, investigadora da

Cátedra Bcnvcniste, da Faculdade de Letras de Lis-boa. Mas uma moeda não é suficiente para revelarse esta presença estava consolidada ou se apenasterá sido um resto de uma relação comercial, envol-vendo algum judeu de passagem pela Ibéria. Inscri-

ções hebraicas cm duas lousas funerárias achadas

em Espiche, Lagos, e hoje integradas no espólio do

Museu Arqueológico do Carmo, parecem datar nosséculos VI ou VII uma presença judaica mais regu-lar no território hoje português.

Para Inácio Stcinhardt, jornalista c investigador,no livro "Raízes dos Judeus em Portugal", a longe-vidade desta pertença traz em si direitos adquiri-dos. "Além de constituírem então a mais importan-te diáspora judaica no mundo, os judeus de Scfa-rad distinguiam-se das comunidades judaicas nos

outros países pelo seu estatuto local. Fies não eramum estrato de imigrantes recentes, uma colónia de

estrangeiros na terra onde viviam (a população da

Península fora, desde o seu início, heterogénea),mas sim um elemento indígena, estabelecido ali há

séculos, que já lá estava quando chegaram algunsnovos senhores. Fies haviam absorvido e adotadoos usos e costumes da terra, salvaguardando, po-rém, os seus próprios, como judeus." Uma identida-de complexa, nem por isso ambígua, em que cada

papel estava bem estabelecido e tinha o seu espa-ço de atuação: aos monarcas o apoio que lhes era

devido; à religião e às origens, Loda a identidade."Os judeus de Portugal desenvolveram uma

identidade própria, que se manteve íicl à pátriaanfitriã, mesmo quando a hospitalidade, que lhes

foi concedida pela nação portuguesa e pelos seus

soberanos, íoi assombrada pelas Lrevas de longosperíodos de perseguição c espoliação, cruel coa-ção e morte pelo estrangulamento c pela fogueira.[...] Mesmo aqueles que, para fugir às perseguições,tiveram de optar por novo exílio, a que os histo-riadores chamaram 'Diáspora Portuguesa', lembra-

ram, com saudade, os bons tempos que viveram na

hospitalidade portuguesa." Uma "memória coleti-va" que, continua Steinhardt, pode ser encontra-da "nas muitas comunidades judaicas, um pouco

por toda a parte, mas sobretudo cm Amcstcrdão,Londres, Nova lorque, que ainda hoje se intitulamportuguesas, ou hispano-portuguesas, e conser-vam expressões inteiras em português vernáculono seu ritual".

Certa é a presença de judeus ao lado dos reis

portugueses, desde que a monarquia foi instaurada.Se o legado documental sobre o passado sefardita

português não é vasto, segu ndo expl ica a i nvestiga -

dora Susana MaLcus, Lambem associada à CáLcdra

Bcnvcniste, o que existe é suficiente para sublinharo papel relevante desempenhado pelos judeus naCorte lusitana, seja como fínanciadores, interme-diários culturais, ao traduzirem textos de e para vá-rios idiomas, seja como médicos ou cienLisLas. Daía dificuldade de D. Manuel I cm cumprir o édito de

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expulsão por si lançado em 1496, para poder casar-se com a filha dos reis de Aragão e Castela.

APESAR DA FUGA, SAUDADEA grande rufura dar-se ia com o século XVI a ba-Ler à poria, mas, apesar do Lrauma colelivo, nãofoi um abandono total do chão de Sefarad. "Não se

diga que a conversão forçada de 1497 interrompeua presença dos judeus em Portugal. Paradoxalmen-

te, as medidas tomadas por D. Manuel I para impe-dir os judeus de obedecerem ao seu próprio editode expulsão, negando-lhes os meios de transportee mandando que fossem arrastados pela força paraas pias batismais, só tiveram como efeito que os ju-deus, que representavam um quinto da população

portuguesa, se integrassem como cristãos-novosno seio do resto da população", escreve Steinhardt.

Sobreposta à dor da conversão ou do afastamentoficou sempre a nostalgia de um tempo de prospe-ridade. "A evocação de Porlugai como a pátria da

diáspora é feita como a memória de uma herançacultural e genética vinculada à Península Ibérica",refere Carla Vieira. "Estes últimos momentos do ju-daísmo peninsular, o ocaso do que foi o esplendordas judiarias ibéricas ganha importância simbólica.Ií deixa saudades", resume Susana Mateus.

"A minha família esteve sempre virada paracá e, quando as circunstâncias o permitiram, veio

logo", corrobora Samuel I.evy. Convertidos, perse-guidos, exilados c interditos várias vezes de regres-sar, os seus antepassados sentiram sempre Portugalcomo a "casa" à qual pertenciam, na qual só nãoviviam porque não podiam. Aos 91 anos, Samuel,presidente honorário da Comunidade Israelita de

Lisboa, traça rotas, evoca cidades longínquas, lem-bra o contexto histórico em que cada passo fami-liar foi dado. O primeiro, inaugural, aconteceu em

Lisboa, onde em 1465 nasce Meir Ha-I.evi, origemdas suas origens, um dos judeus 'convertidos de

pé' por D. Manuel I que, de seguida, se exilou paraa fortaleza portuguesa de Safim, em Marrocos, es-

capando à Inquisição.Samuel reconhece aqui um hiato na extensa li-

nhagem que o antecede. Retoma a em Tetuão e emGibraltar, sob domínio inglês desde o século XVIII,após o Tratado de Utrecht. Neste território, o seu

trisavô Moscs Lcvy prosperou como comerciante."Tinha uma frota de cem barcos e comércio com

Portugal, Europa, Brasil e fvorle de África", conta o

descendente. Em 1808, o almirante inglês Lord Jer-

vis, comandante da esquadra portuguesa duranteas invasões napoleónicas que receberia o título de

conde de São Vicenle, convidou Moses a regressara Portugal. Perante tal hipótese, oito gerações deexílio em Marrocos não pesaram quase nada, nemmesmo quando, à chegada a Lisboa, lhe foi sugeri-do que alterasse o seu nome, para o que ainda res-tava da Inquisição não o identificar como judeu. Aisso Moses negou-se, e o príncipe regente teve de

lhe emitir um salvo conduto.Vinha com o cunhado, Isaac Aboab — ascen-

dente da família Bensaúde e do ex-Presidente da

República Jorge Sampaio —, c ambos íormaram

uma empresa que negociava azeite e cereais, comescritórios na Praça do Município. Foram trazendoos netos, entre os quais o avô de Samuel Levy, quechegou em 1869, já casado, de Gibraltar e que cá

teve o primeiro filho, nascido com nacionalidadeinglesa, pois, à época e até a I República, a portu-guesa estava vedada aos judeus. "A dificuldade em

LEGADO Colocação da primeirapedra na sinagoga Shaarê Tikvah,

em Lisboa, em 1902. 0 tio-avô de

Samuel Levy presidiu à cerimónia

(em cima e a esquerda). Livro

de Samuel Usque, financiado

por Gracia Nasi no século XVI,

que só foi publicado em Portugal350 anos mais tarde. Samuel

Levy, presidente honorário da

Comunidade Israelita de Lisboa,

na varanda da sua casa (em baixo)

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obter a nacionalidade nunca os impediu de gostarde Portugal" , observa Samuel, que também do ladomaterno guarda uma história tipicamente sefar-dila: a mãe EsLhcr Scqucrra possui genealogia ale1537 cm Sanla Comba Dão, leira de Salazar, quan-do a íamília fora denunciada à Inquisição c vários

membros morreram. Um braço foi para Hamburgo,seguindo para Amesterdão e Londres, onde um tri-savô se apaixona por uma judia de Gibraltar e, em

1819, compra casa em Faro e funda a ComunidadeIsraelita daquela cidade algarvia.

A porlugalidade imemorial dos judeus sclardilasnão era uma qucslão de dcbalc público ale que, cm

2013, a Assembleia da República aprovou por una-nimidade uma alteração à I.ci da Nacionalidade quepermitiria aos descendentes conquistar um novo

passaporte. A adesão que a legislação portuguesa,promulgada em 2015 com menos exigências do quea congénere espanhola, conquistou nas mais diver-sas paragens começou a alrair atenções c, esle ano,a deputada socialista Constança Urbano de Sousa

apresentou uma proposta que visava exigir mais ga-rantias dos pretendentes ao vínculo com Portugal.Levantaram se muitas vozes, sobretudo entre os

próprios socialistas. Estes dividiram se entre nomes

como Maria de Belém Roseira c Vera Jardim c mes-mo o ministro dos Negócios Estrangeiros, AugustoSantos Silva, preocupado com as relações bilateraiscom os Estados que concedem vistos automáticos a

Portugal, e uma geração mais nova liderada pela ex-ministra da Administração Interna, secundada pela

responsável pela pasta da Justiça, inquietada como crescimento do número de advogados nacionaise estrangeiros a fazerem negócio com a instruçãodos processos de candidatura. A polémica perdu-rou até que, há alguns dias, Constança Urbano deSousa recuou em toda a linha, e assim, esta semana,o Parlamento irá votar uma versão sem diferendos:

em lugar da exigência de dois anos de residência no

pais, a nova proposta prevê apenas a necessidade de

"cumprimento efetivo de requisitos objetivos de li-gação a Portugal" para obtenção do passaporte. "OGoverno pode conceder a nacionalidade por natu-ralização a descendentes de judeus sefarditas atra-vés da demonstração de tradição de pertença a umacomunidade sei ardila de origem portuguesa, combase em requisitos objetivos comprovados de ligaçãoa Portugal, designadamente apelidos, idioma fami-liar, descendência direta ou colateral e que possuamefetiva ligação à comunidade nacional." Depois, ca

bera ao Executivo regulamentar a lei. Em cinco anos,através da legislação de "reparação histórica", cer-ca de 62 mil pedidos de cidadania portuguesa foram

apresentados por descendentes de sefarditas. Des-

tes, quase 17 mil obtiveram o passaporte nacional.

MUITO MAIS DO QUE COINCIDÊNCIASHá cerca de um mês, o documento chegou às mãosde Sérgio Poggi Aubert, brasileiro de 46 anos que,de quipá colocada, não evita o pranto ao evocar as

suas raízes portuguesas. Depois de muita pesqui-sa, descobriu-se herdeiro de uma história que co-

meçou com o desembarque em Recife, no século

XVI, de uma jovem órfã chamada Brites Mendes de

Vasconcelos. A documentação encontrada na Torre do Tombo aponta para que fosse filha de Joana

Mendes de Vasconcelos, queimada nas fogueiras da

Inquisição, c de Baltazar Mendes de Vasconcelos,

desaparecido na História. Acolhida no Brasil pelamulher de um dos primeiros donatários das terras

FAMÍLIA Trisavô de Sérgio

Poggi Aubert com filhos e netos,em 1930, em Recife (em cima).Casamento dos avós em 1926

(à direita). Pisa-papéis de cristal

da família com a forma da estrelade David

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em Pernambuco, Brites deixou uma vasta descen-

dência, que terá chegado a Sérgio Poggi Aubert."Desde criança, sempre tive uma forte proxi-

midade a Portugal c aos anciãos da família. Co-nheci a minha bisavó, que viveu até os 106 anos, e

dos mais de 60 nelos da minha avó, Maria da Con-

ceição, acredilo que possivelmente eu Lenha sido o

mais próximo. Mãe de 18 filhos, carregava consigomemórias de tempos idos, pouco partilhadas, qua-se secretas, das quais tive a felicidade de tornar-meguardião", conta, emocionado. E é o segredo quedefine a pertença judaica daquela família. Marranosou cristãos-novos, viveram cm privado os vestígiosda religião, dando origem a um misto de rituais queIsrael tem dificuldade em reconhecer. Os sinais são

muitas vezes quase cifrados, mas perduram, envolvidos pelo respeilo e por uma Lradição que nin-guém ousa interromper.

A consanguinidade na família era banal. "Oscasamentos endogàmicos eram frequentes — de

12 casamentos, 9 realizaram-se entre primos direi-tos. No começo do século XX, o pai da minha avó

casou-se com a filha de portugueses católicos fer-

vorosos, cristãos-vclhos, de Azurara, no Norte de

Portugal. Assim consolidou se uma vigilância maisforte dessa prática, em especial por parte da minhaavó Conceição, que Linha medo das deformidades e

a condenava com veemência", relala Sérgio.No Nordesle brasileiro, os judeus sefardilas fize-

ram-se senhores de engenho, médicos, comercian-tes e poetas. Pistas que marcaram o assumido cris-tão-novo e judeu de coração: "Cresci ouvindo histó-rias da minha família portuguesa, dos engenhos de

cana de açúcar, sobre os meus antepassados, sobre a

vocação para o empreendedorismo, comércio, artes,

como também pelo respeito às tradições da culináriafamiliar. Venda de miudezas, de bacalhau, de cul-livo e Iransporle de açúcar, enlre oulros negócios,figuraram como bases de suslenlo daqueles que me

precederam." Com 17 anos, Sérgio esLudou na Ho-landa, onde contactou com a comunidade judaica de

Amesterdão, ligação que não mais perderia. E, comoacredita que "as coincidências não foram apenas umacaso"

, chegaria a trabalhar uma década para o Go-verno da Alemanha, nos processos de Compensaçãoe Devolução da Nacionalidade Alemã a Judeus Ale

mães que perderam a cidadania duranle o 111 Reich.

Um percurso que só encontrou paragem quan-do o passaporte português desembarcou em Reci-fe: "A devolução da cidadania portuguesa aos des-cendentes de judeus sefarditas é, para mim, mui-to mais do que um ato documental e burocrático.E algo espirilual, lão forte que me faliam palavras

para o definir. Sinlo-me herdeiro da dor, da sauda-de de algo que não conheci, do orgulho de carregarnas minhas veias sangue português sefardita. Te-nho plena certeza de que a cidadania portuguesaé parte de algo muito maior, que vem consolidaruma rcaproximação definitiva às minhas origens c

identidade." Algo maior, com novas significações,como a estrela de David gravada no interior de umoratório em madeira, presenle na família há seis

gerações, que Sérgio recebeu da avó e já doou aofuturo Museu Judaico, a ser construído em Lisboa.

Não é objeto único. Existe também um pisa-pa-péis em cristal de quartzo, conhecido na famíliacomo o "coração de David", objeto de devoção de

Maria da Conceição, que o mantinha guardado dos

olhares e jamais o utilizou para fins práticos. A avó

morreu em 2005, depois de 95 anos de uma vidacom um casamenlo aos 15 e 23 filhos. De todos os

descendentes, Sérgio foi aquele que mais forte ouviuo apelo das raízes, de tal forma que não tem dúvidas

em afirmar: "Somos marranos, não só sefarditas. Aortodoxia judaica tem reticências face ao marranis-mo, mas não acredito numa conversão ao judaísmo,é mais um retorno. Não se pode converter alguém ao

que sempre foi", garante, visivelmente comovido.Num percurso marcado por relatos históricos,

mas lambem por muilas memórias imaginárias,uma imagem mítica dá rosto à ligação do povo se-fardita à geografia ibérica: Gracia Nasi, nascida Bea-triz de Luna. "E um símbolo de resistência. Nasceu

cristã, já após a conversão forçada de 1497, saiu daPenínsula Ibérica antes da escalada de aculturação,e toda a sua deambulação pela Europa até ao ImpérioOtomano faz dela uma líder", conta Susana Mateus.

Integrada na família Mendes Benvenisle por ca-samento com um próspero comerciante de especia-rias e metais preciosos, Francisco Mendes, Beatrizterá chegado a Portugal em 1492, vinda da zona de

Aragão, em Espanha, fugida do édito de expulsão dos

reis católicos Fernando c Isabel. A pujança da famíliaera tal que acabaram convertidos em financiadores

da Corte portuguesa, mas, com a morte de Francisco

cm 1535 c a ameaça do estabelecimento da Inquisi-ção em Portugal, a família abandonou Lisboa.

Em Antuérpia, a família, composta por Beatrizde Luna e a filha Ana, a irmã Brianda e dois sobri-nhos, reúne -se à volta de Diogo Mendes, irmão de

Francisco, que para lá se dirigira com o objetivo de,no centro da Europa, distribuir as especiarias. ComBeatriz seguia uma fortuna de 300 mil ducados emouro. Brianda casou-se com Diogo cm 1539, mas cm

quatro anos também ficou viúva. Curioso é que, no

testamento, o comerciante deixa a herança não à

mulher mas à cunhada. Mais dois anos e os MendesBenvenisle vollam a partir, primeiro para Veneza,onde as duas irmãs se separam, depois para Ferrara.Fm 1557, a "Senhora" — como Beatriz de Luna fica-ria marcada na memória judaica — entra em Cons-

tantinopla cercada de fausto. Muda o nome paraGracia Nasi, transformando -se na matriarca dos

judeus da diáspora. Contribui para a construção de

sinagogas, apoia judeus em fuga, consegue até o be

neplácito do sultão para estabelecer judeus em Tibe-

ríades, onde terá morrido por volta de 1569. F con-

quista espaço no imaginário do povo que a adotou.De Tclavivc, a voz de Yaffa Biton também fala de

misticismo. Quer vir para Portugal porque "sempreteve a forte sensação de que haveria de viver" aqui. A

família conta como certa a origem no sul de Sefarad,

na região de Córdova, e o posterior exílio em Marro-

cos, Casablanca. Os avós emigraram para Israel nos

anos 1960, onde o resto dos familiares nasceu, inclu-indo ela própria e o irmão, Shimon Reem Biton. Shi-

mon morreu em 2019, a bordo do avião da EthiopianAirlines que se despenhou com 157 passageiros. Es-

tava em processo de obtenção da nacionalidade portuguesa, invocando uma origem sefardita alargada,mais aíetiva do que nacional. Em memória do irmão,Yaíía fez lambem o pedido de passaporte para ela e os

cinco sobrinhos. Mal a covid-19 o permitir, quer apa-nhar um avião e viver no apartamento que já alugouno Porto. Como explica, trata-se de um retorno. "Es-

tamos felizes de regressar à terra de onde os nossos

antepassados foram deportados", diz-nos ao telefo-ne. É Sefarad, chão concreto de onde sabe ter saído,chão mítico sem fronteiras definidas, que a chama. •

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