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1 SEGREDO DE ESTADO Jorge Bacelar Gouveia 1 SEGREDO DE ESTADO: a proibição do acesso a informações cujo conhecimento por pessoas não autorizadas põe - ou pode pôr - em causa a defesa do Estado. SUMÁRIO 1. Introdução 2. Fontes 3. Objecto 4. Conteúdo e duração 5. Decretação e fundamentação 6. Extinção 7. Tutela 1. Introdução I. Na sociedade pós-industrial que domina o mundo desenvolvido neste virar de milénio, valor fundamental é o da liberdade de acesso e difusão da informação, que bem justamente faz dessa sociedade uma sociedade de comunicação. E a importância que é lhe atribuída é de tal ordem que já muito distantes estamos nós da sociedade liberal do século XIX, marcada pela abstenção do Estado, na qual a liberdade de informação era concebida apenas como reflexo concreto da liberdade de expressão natural do homem. Os interesses que agora surgem em torno da temática da informação são tão significativos que fazem dela não só um 1 Mestre em Direito. Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

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SEGREDO DE ESTADO

Jorge Bacelar Gouveia1

SEGREDO DE ESTADO: a proibição do acesso a informações cujo conhecimento por pessoas não autorizadas põe - ou pode pôr - em causa a defesa do Estado. SUMÁRIO 1. Introdução 2. Fontes 3. Objecto 4. Conteúdo e duração 5. Decretação e fundamentação 6. Extinção 7. Tutela

1. Introdução I. Na sociedade pós-industrial que domina o mundo desenvolvido neste virar de milénio, valor fundamental é o da liberdade de acesso e difusão da informação, que bem justamente faz dessa sociedade uma sociedade de comunicação. E a importância que é lhe atribuída é de tal ordem que já muito distantes estamos nós da sociedade liberal do século XIX, marcada pela abstenção do Estado, na qual a liberdade de informação era concebida apenas como reflexo concreto da liberdade de expressão natural do homem. Os interesses que agora surgem em torno da temática da informação são tão significativos que fazem dela não só um

1 Mestre em Direito. Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

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novo bem de consumo 2 como justificam ainda a construção de um novo ramo jurídico - o Direito da Informação. No campo específico da Administração Pública, esta moderna tendência traduz-se naquilo a que se tem chamado o princípio da administração aberta3, pelo qual o poder administrativo deve disponibilizar as informações que possui aos seus administrados. Mas a prática tem evidenciado a sua aplicação muito para além do estrito sector do poder administrativo, insuflando, em associação com os princípios da transparência e da publicidade de âmbito mais geral, toda a actividade do poder público, incluindo os órgãos de natureza político-legislativa, bem como a actividade desenvolvida no seio da sociedade civil. O Direito Português mostra-se favorável à abertura das estruturas de poder aos cidadãos, até como princípio complementar do princípio democrático, com nítido apoio na letra da CRP. E fê-lo também com referência a outros sectores do poder político não administrativo e ao mundo da actividade privada indirectamente através da consagração da liberdade de comunicação social4. II. Mas seria ingénuo pensar que se está em face de uma orientação que se apresente de um modo absoluto, ao não comportar constrições de variadíssima ordem. Se é certo que os interesses subjacentes ao livre acesso à informação - sobretudo à informação que o poder público detém - são dignos de tutela, não é menos certo que outros interesses também 2 MARIA EDUARDA GONÇALVES, Direito da informação, Coimbra, 1994, pp. 23 e ss. 3 Sobre o princípio da administração aberta em Portugal, v. JORGE MIRANDA, O direito de informação dos administrados, in O Direito, ano 120º, 1988 III-IV, pp. 457 e ss.; J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª ed., Lisboa, 1993, pp. 934 e 935; JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, O direito à informação e os direitos de participação dos particulares no procedimento e, em especial, na formação da decisão administrativa, in Procedimiento Administrativo, Santiago de Compostela, 1994, pp. 80 e 81; MARIA EDUARDA GONÇALVES, op. cit., pp. 125 e ss.; FERNANDO CONDESSO, Direito à informação administrativa, Lisboa, 1995, pp. 273 e ss. 4 Cfr. o art. 38º da CRP.

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merecem protecção, quebrando essa liberdade nos casos mais ou menos frequentes em que se verifica a colisão entre eles. São por isso de diferente recorte as hipóteses que progressivamente as ordens jurídicas vão delineando de limitação externa à liberdade de informação, levando em consideração, por um lado, a natureza pública ou privada dos elementos informativos existentes, e, por outro lado, os tipos de interesses que se visa proteger e que se entende serem prevalecentes, em certas circunstâncias, sobre a liberdade de informação. Como exemplos de algumas dessas situações, podemos mencionar 5: - o segredo profissional6; - a reserva da vida privada e familiar7; - o segredo bancário8; - a protecção dos dados pessoais informatizados 9; - a confidencialidade da situação tributária dos contribuintes10; e 5 Assim, MARIA EDUARDA GONÇALVES, op. cit., p. 114. 6 Cfr. em geral para os funcionários, o art. 383º do CP. Sobre o segredo profissional, v., por todos, MARIA EDUARDA GONÇALVES, op. cit., pp. 82 e 83; 7 Cfr. o art. 26º, nº 1, da CRP, o art. 80º do CC e os arts. 190º e ss. do CP. Sobre a reserva da vida privada e familiar, simultaneamente da perspectiva constitucional e civil, v. RITA CABRAL, O direito à intimidade da vida privada, in Estudos em memória do Professor Doutor Paulo Cunha, Lisboa, 1989, pp. 373 e ss.; J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, op. cit., pp. 181 e 182; RICARDO LEITE PINTO, Liberdade de imprensa e vida privada, in Revista da Ordem dos Advogados, 1994-I, pp. 62 e ss.; MARIA EDUARDA GONÇALVES, op. cit., pp. 74 e ss. 8 Cfr. o Decreto-Lei nº 2/78, de 9 de Janeiro. Sobre o segredo bancário, v., por todos, MARIA EDUARDA AZEVEDO, O segredo bancário, in Ciência e Técnica Fiscal, nºs 346/348, pp. 73 e ss. 9 Sobre a protecção dos dados pessoais informatizados, v. JORGE BACELAR GOUVEIA, Os direitos fundamentais à protecção dos dados pessoais informatizados, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 51, III, 1991, pp. 700 e ss.; AGOSTINHO EIRAS, Segredo de justiça e controlo de dados pesoais informatizados, Coimbra, 1992, pp. 65 e ss.; J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, op. cit., pp. 215 e ss.; MARIA EDUARDA GONÇALVES, op. cit., pp. 85 e ss. 10 Cfr. o art. 17º, al. d), do CPT. Sobre a confidencialidade fiscal, v., por todos, CARLOS PAMPLONA CORTE-REAL, JORGE BACELAR GOUVEIA e

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- o segredo de justiça11. III. Indubitavelmente que o segredo de Estado, no seio desses possíveis entraves a uma plena liberdade de informação12, assume um particular vigor no seu carácter odioso, por normalmente impor uma regulação jurídica mais duramente limitadora das liberdades fundamentais, sentimento que vai aumentando, aliás, à medida que vamos tomando nota de algumas das condicionantes que acompanharam o seu tratamento normativo, em directa ligação à evolução do Estado nos dois últimos séculos. Tendo em conta que o segredo de Estado, do ponto de vista histórico, foi frequentemente utilizado por regimes ditatoriais, quer o Estado Absoluto do século XVIII, quer os Estados nacional-socialista e soviético do século XX13, fortes razões encontramos para repudiar tal mecanismo, numa altura em que, um pouco por toda a parte, se divulga - e se pratica com êxito que se sabe - o regime democrático, precisamente a antítese do regime totalitário. Atendendo à proliferação do Estado Social, pelo qual o Estado assume múltiplas tarefas económico-sociais, com isso aumentando consequentemente o caudal da informação que possui14, outros argumentos descobrimos no sentido da condenação do segredo de Estado, o qual faria assim perigar, de um modo mais visível, a segurança dos cidadãos. E com isto poderia até concluir-se que não mais haveria lugar, no século XX, para o segredo de Estado, figura incompatível, afinal, com os novos valores inspiradores da novíssima sociedade de informação.

JOAQUIM PEDRO CARDOSO DA COSTA, Breves reflexões em matéria de confidencialidade fiscal, Lisboa, 1992, pp. 10 e ss. 11 Cfr. o art. 371º do CP e o art. 86º do CPP. Sobre o segredo de justiça, v. AGOSTINHO EIRAS, op. cit., pp. 21 e ss. 12 GERMÁN GÓMES ORFANEL, Secreto de Estado y Publicidad en España, in Estado e Direito, nº 1, 1987/1988, p. 25. 13 Cfr. ADRIANO MOREIRA, Notas sobre o segredo de Estado, in Revista de Ciência Política, nº 5, 1º semestre de 1987, p. 31. 14 MARIA EDUARDA GONÇALVES, op. cit., p. 76.

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IV. Não é essa, contudo, a tendência dos Estados mais avançados no exercício da Democracia, que estão devidamente providos de instrumentos de protecção das informações mais importantes em ordem à respectiva defesa interna e externa15. Da ampla consagração do princípio democrático, resultou um mais amplo acesso dos cidadãos aos assuntos da governação, que se efectiva não só pelos protagonistas políticos aquando dos actos eleitorais, ao revelarem os respectivos programas, como ainda pela realização de referendos, nos quais o povo toma decisões concretas de governação, normalmente precedidas de campanhas públicas de esclarecimento. A prática do segredo de Estado tem um benéfico efeito moderador na natural tentação de devassa do Estado conatural ao exercício da democracia representativa e da democracia referendária. Pensando na crescente facilidade das comunicações, principalmente através dos mass-media, que hoje fazem coisas inimagináveis há poucos anos atrás, o segredo do Estado é um dos possíveis meios de assegurar a contenção da comunicação social em matérias que não devem pertencer ao domínio público. São bem elucidativas, a este propósito, as palavras de ADRIANO MOREIRA: “ ... a própria evolução das sociedades para pós-industriais, afluentes e de consumo, que não pode deixar de reflectir-se na política internacional de defesa, alarga a necessidade do secretismo a domínios onde a experiência é nova e o saber se adquire praticando. São os avanços técnicos e científicos, em clima de paz ambígua, que alargam a necessidade do segredo a domínios antes abertos pelo sentido da universalização do saber, cujos avanços tinham apenas protecção legal derivada de razões económicas, em regimes de livre concorrência, enchendo os registos das patentes e das marcas com uma espécie de orgulhosa genealogia da inteligência nacional “16. V. Por aqui se percebe que a existência de um regime jurídico sobre o segredo de Estado é claramente admissível e corresponde mesmo, na fase do Estado Social e Democrático que vivemos, a uma

15 V. a descrição de ADRIANO MOREIRA, op. cit., loc. cit., pp. 34 e ss. 16 Op. cit., loc. cit., p. 37.

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necessidade mais premente do que no tempo dos Estados com regimes de ditadura, em que o segredo de Estado era apenas uma peça numa decoração bem mais recheada com outros processos de repressão das liberdades básicas. Difícil é saber qual o grau de intensidade regulativa que o deve caracterizar, sobretudo no delicado ponto das matérias que lhe estão submetidas, havendo aqui uma tensão dialéctica entre uma regulação demasiado minuciosa - que tem o inconveniente de se prestar a omissões que inviabilizem a utilidade prática do segredo de Estado - e uma regulação generalizante - que tem também a desvantagem de ser demasiado permissiva no volume das informações que lhe podem estar sujeitas. O equilíbrio que importa alcançar depende de muitos factores, neles decerto sobressaindo a tradição constitucional do Estado e a prática antecedente. À luz dos padrões constitucionais modernos, a regulação do segredo de Estado dever ainda abarcar outros importantes domínios, como a sua ampla e correcta procedimentalização e as garantias de defesa dos cidadãos. Desiludam-se, no entanto, aqueles que pensam que, nas sociedades democráticas de informação, a perspectiva jurídica é a única via para a definição da disciplina do segredo de Estado. Há que fazer apelo, ao mesmo tempo, tanto à responsabilidade ético-social dos titulares dos órgãos políticos17 como aos controlos político-democráticos, parlamentares e populares, a respeito da sua utilização. 2. Fontes

17 ADRIANO MOREIRA, op. cit., loc. cit., p. 38.

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I. É precisamente de acordo com essa necessidade que a CRP18 prevê um regime sobre o segredo de Estado, o qual lhe merece três particulares referências que só foram introduzidas na 2ª revisão constitucional, cerca de treze anos depois de ter entrado em vigor o texto constitucional da IIIª República Democrática. Essas alusões constitucionais distribuem-se pelas partes da CRP que se referem aos direitos fundamentais e à organização do poder político, sendo justificadas como contraponto ao princípio da administração aberta também previsto19. A primeira liga o segredo de Estado à matéria da protecção dos dados pessoais informatizados, relativamente aos quais, a par do segredo 18 Adoptaremos o seguinte quadro de abreviaturas: CC - Código Civil - Decreto-Lei nº 47 344, de 25 de Novembro de 1966, com alterações posteriores CJM - Código de Justiça Militar - Decreto-Lei nº 141/77, de 9 de Abril CP - Código Penal - Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro, revisto pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março CPA - Código do Procedimento Administrativo - Decreto-Lei nº 442/91, de 15 de Novembro CPP - Código de Processo Penal - Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro CPT - Código de Processo Tributário - Decreto-Lei nº 154/91, de 23 de Abril CRP - Constituição da República Portuguesa, aprovada em 2 de Abril de 1976, e revista, em 1982, pela Lei nº 1/82, de 30 de Setembro, em 1989, pela Lei nº 1/89, de 8 de Julho, e em 1992, pela Lei nº 1/92, de 25 de Novembro. EDFAACRL - Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local - Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro LADA - Lei do Acesso aos Documentos da Administração - Lei nº 65/93, de 26 de Agosto, modificada pela Lei nº 8/95, de 29 de Março LCSIRP - Lei Complementar do Sistema de Informações da República Portuguesa - Decreto-Lei nº 223/85, de 4 de Julho LI - Lei de Imprensa - Decreto-Lei nº 85-C/75, de 26 de Fevereiro, alterado pelo Decreto-Lei nº 181/76, de 9 de Março, pela Lei nº 13/78, de 21 de Março, pelo Decreto-Lei nº 377/88, de 24 de Outubro, e pela Lei nº 15/95, de 25 de Maio LQSIRP - Lei Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa - Lei nº 30/84, de 5 de Setembro LSE - Lei do Segredo de Estado - Lei nº 6/94, de 7 de Abril 19 Fazendo esta contraposição, acórdão nº 458/93 do Tribunal Constitucional, nº 5, publicado no Diário da República, 1ª série-A, nº 219, de 17 de Setembro de 1993.

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de justiça, surge como importante restrição ao específico direito fundamental que qualquer cidadão tem de controlar as bases de dados que as autoridades públicas possuam a seu respeito20, quer através primeiro do acesso e conhecimento das mesmas, quer através depois da sua rectificação ou completamento21. A segunda, numa mesma tendência restritiva, agora de poderes e não de direitos fundamentais, apresenta o segredo de Estado como a única situação22 que limita a faculdade conferida aos Deputados de fazerem perguntas ao Governo sobre quaisquer actos deste ou da Administração Pública, e de obterem resposta em prazo razoável, não podendo nunca ser exercida sobre matérias que lhe estejam submetidas23. A terceira, integrada num conjunto de normas de competência, assegura que o regime do segredo de Estado pertence ao elenco das matérias que fazem parte da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República24, sendo o respectivo regime particularmente solidificado pela reserva de lei parlamentar que se determinou25. II. O desenho legal de um regime do segredo de Estado - que tem como curiosidade o facto de parte dele ter antecipado, em alguns anos, os preceitos da CRP - foi executado em duas diferentes fases, primeiro unicamente por disposições avulsas, contidas em diplomas reguladores de outras matérias, e depois já a título específico, com a edição de uma lei exclusivamente sobre o segredo de Estado. 20 Cfr. o art. 35º, nº 1, in fine, da CRP. 21 Natureza restritiva que, no dizer de J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (op. cit., pp. 217), faz o regime legal do segredo de Estado comungar do respeito pelos princípios que fazem parte do regime constitucional das restrições dos direitos, liberdades e garantias. Sobre o regime constitucional das restrições aos direitos, liberdades e garantias, v. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, IV, 2ª ed., Coimbra, 1993, pp. 296 e ss.; J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, 6ª ed., Coimbra, 1993, pp. 601 e ss.; JORGE BACELAR GOUVEIA, Os direitos fundamentais atípicos, Lisboa, 1995, pp. 455 e ss. 22 Cfr. o art. 159º, al. c), in fine, da CRP. 23 Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, op. cit., p. 636. 24 Cfr. o art. 168º, nº 1, al. r), da CRP. 25 Assim, J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, op. cit., p. 676.

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As disposições avulsas existentes foram sendo elaboradas a propósito de outros institutos e localizam-se em diversos momentos da evolução do novo regime democrático português. Ainda da época pré-constitucional é a que consta da LI, a qual não permite o acesso dos jornalistas às fontes de informação “... em relação aos processos em segredo de justiça, aos factos e documentos considerados pelas entidades competentes segredos militares ou segredos de Estado, aos que sejam secretos por imposição legal, aos que afectem gravemente a posição concorrencial das empresas referidas no nº 1, e ainda aos que digam respeito à vida íntima dos cidadãos “ 26. Aquando das reformas dos CP e CPP, novas disposições foram introduzidas relativamente ao segredo de Estado, criminalizando-se a sua violação 27 e disciplinando-se o testemunho a respeito de factos por ele abrangidos 28. A elaboração da LCSIRP - diploma que vem na sequência da LQSIRP - determinou a existência de uma norma de proibição do acesso à informação qualificada como segredo de Estado, definida como aquela que, se divulgada, poderia “... causar dano à unidade e integridade do Estado, à defesa das instituições democráticas estabelecidas na Constituição, ao livre exercício das respectivas funções pelos órgãos de soberania, à segurança interna, à independência nacional e à preparação da defesa militar do Estado” 29. III. A regulação sistemática que marca a segunda fase do regime legal do segredo de Estado só veio a aparecer em 1994, com a aprovação da LSE, assente nos princípios da excepcionalidade, subsidiariedade, necessidade e proporcionalidade, tempestividade, igualdade, justiça e imparcialidade e fundamentação30. 26 Art. 5º, nº 2, da LI. 27 Cfr. o art. 316º do CP. 28 Cfr. os arts. 137º e 182º do CPP. 29 Art. 5º, nº 1, da LCSIRP, disposição que é reiterada pelos diplomas que, por seu turno, regulam especificamente o Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (Decreto-Lei nº 224/85, de 4 de Julho) e o Serviço de Informações de Segurança (Decreto-Lei nº 225/85, de 4 de Julho), respectivamente nos arts. 8º e 9º. 30 Cfr. o art. 1º, nº 1, da LSE.

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A despeito dos seus dezassete artigos, tal lei não contém a totalidade do regime aplicável ao segredo de Estado, uma vez que outras fontes são consideradas como fontes complementares. É o que acontece com a LADA, acto legislativo que deve ser genericamente utilizado para colmatar os casos omissos que se verifiquem, havendo a sua menção especial em matéria de prazos31. O mesmo se passa também com os direitos e regalias dos membros da Comissão para a Fiscalização do Segredo de Estado, matéria que deve ser regulamentada pelo Governo32. A LSE só pôde ser definitivamente aprovada depois de corrigida em alguns pontos que mais polémica suscitaram na opinião pública e junto do Tribunal Constitucional33, que foi chamado a pronunciar-se quanto à respectiva constitucionalidade pelo Presidente da República em sede de fiscalização preventiva. IV. A LSE salvaguarda ainda a existência de outros regimes de restrição de acesso a informações, aos quais não se aplica: “ As restrições de acesso aos arquivos, processos e registos administrativos e judiciais, por razões atinentes à investigação criminal ou à intimidade das pessoas, bem como as respeitantes aos serviços de informações da República Portuguesa e a outros sistemas de classificação de matérias, regem-se por legislação própria”34. Alguns dos casos que aqui se enunciam para a restrição do acesso aos arquivos e registos justificam-se plenamente por serem situações que nada têm que ver com o segredo de Estado, fundando-se noutros valores e pressupondo um regime obviamente diverso. A exclusão que se lhes faz numa lei sobre o segredo de Estado é, por isso, de algum modo, redundante, porque já decorreria da própria natureza desse segredo.

31 Cfr. o art. 16º, segunda parte, da LSE. 32 Cfr. o art. 16º, primeira parte, da LSE. 33 Quanto às vicissitudes que rodearam a elaboração da LSE, v. MARIA EDUARDA GONÇALVES, op. cit., pp. 77 e 78; acórdão nº 458/93 do Tribunal Constitucional, nº 7; FERNANDO CONDESSO, op. cit., pp. 405 e ss. 34 Art. 1º, nº 2, da LSE.

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Outras hipóteses aí enunciadas - como a possibilidade de restrição do acesso a informações detidas no âmbito do serviço de informações da República Portuguesa, quando coincida com a natureza do segredo de Estado 35- configura-se, pelo contrário, como um regime especial em face do regime geral que aqui se estabelece. E abre-se ainda a porta à consagração no futuro, por lei da Assembleia da República, de outros regimes especiais do segredo de Estado. O regime de que cura a LSE é, portanto, o regime geral do segredo de Estado, contrapondo-se a regimes de restrição do acesso de informações, que fazem parte de outros tipos de segredo e a outros regimes que, sendo já referentes ao segredo de Estado, tenham ou possam vir a ter disposições específicas. V. A avaliação que podemos fazer da LSE, quanto às principais opções de política legislativa que lhe subjazem36, mostra-nos um articulado razoavelmente satisfatório, embora pudesse ser mais aperfeiçoado em certos aspectos, exigência tanto mais premente quanto é certo tratar-se de um diploma estruturante do Estado. Várias são as omissões que deveriam ter sido evitadas. Nada se adianta quanto à forma, publicidade e natureza do acto de classificação. Do mesmo modo, pouco se diz ao certo relativamente ao papel da Comissão para a Fiscalização do Segredo de Estado quanto à impugnação contenciosa da decisão de não autorização de acesso, suscitando a aplicação subsidiária da LADA problemas delicados pela diferente qualidade das informações com que esta lida, informações que, pelo seu carácter administrativo, não são compagináveis, em termos de gravidade política, com as informações submetidas ao regime do segredo de Estado. Igualmente não são desejáveis as remissões indiscriminadas para diversos textos de Direito sancionatório, penal e disciplinar, sem a devida indicação da qualidade dos funcionários e agentes abrangidos ou das infracções a que a aplicação dessas sanções corresponde. A especificidade do segredo de Estado exigiria, no mínimo, o estabelecimento de um

35 Cfr. supra nº 2/II. 36 Sobre as diversas opções que uma lei sobre o segredo de Estado tem de enfrentar, v. ADRIANO MOREIRA, op. cit., loc. cit., p. 31.

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quadro sancionatório privativo, contemporâneo da criação do respectivo regime geral. 3. Objecto I. A matéria sobre que incide o segredo de Estado - a que a LSE chama erroneamente “ Âmbito do segredo “ - é conceptualmente assumida através da seguinte frase: “ São abrangidos pelo segredo de Estado os documentos e informações cujo conhecimento por pessoas não autorizadas é susceptível de pôr em risco ou de causar dano à independência nacional, à unidade e integridade do Estado e à sua segurança interna e externa “37. Com vista à plena captação do seu significado jurídico, estamos perante uma formulação que é passível de ser desdobrada em três elementos constitutivos: um elemento material, um elemento subjectivo e um elemento finalístico38. II. O elemento material designa “ os documentos ou informações “ que ficam a pertencer ao objecto do segredo de Estado e cuja divulgação se pretende precisamente limitar. A adopção destes dois substantivos, sem o recurso sequer a outras noções mais precisas, seja da Teoria Geral do Direito Civil, seja de outros sectores, leva-nos a pensar que o legislador teve em mente uma visão alargada desses documentos ou informações, bastando-se com a ideia de que apenas importa que estejam em causa instrumentos que armazenem dados39, independentemente da sua forma ou configuração. É assim indiferente o suporte utilizado - desde papel até aos discos informáticos - 37 Art. 2º, nº 1, da LSE. 38 ADRIANO MOREIRA (op. cit., loc. cit., p. 31) define o objecto do segredo de Estado como abrangendo “... os factos e procedimentos do poder político, e das suas estruturas auxiliares, que apenas podem ser do conhecimento de um círculo formalmente delimitado de agentes “. 39 Sobre o conceito de informação, v. MARIA EDUARDA GONÇALVES, op. cit., pp. 15 e ss.

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ou o código ou, em geral, o modo de transmitir o teor dos dados - imagens, texto ou sons40. III. O elemento subjectivo relaciona-se com a preocupação de o conhecimento alargado dessas informações poder pôr em causa alguns dos valores fundamentais do Estado. As informações, por si mesmas, nada adiantam quanto à sua relevância em termos do regime do segredo do Estado, requerendo-se, concomitantemente, a verificação da sua perigosidade em função do respectivo conhecimento subjectivo alargado. A apreciação deste elemento subjectivo é aferida pelo conhecimento dessas informações por parte de pessoas não autorizadas, cujo universo é definido remissivamente por aquelas que não participam no processo de classificação, nem podem ser autorizadas a aceder a informações já classificadas41. IV. O elemento finalístico dá-nos conta dos valores que são protegidos com o segredo de Estado, que segundo a fórmula legal são a independência nacional, a unidade e integridade do Estado e a segurança interna e externa do Estado. Dada a natureza excepcional de tal regime42, sobretudo em face do exercício de alguns direitos fundamentais, são apenas estes os valores que podem justificar a prática da classificação, sendo inadmissível qualquer ideia de tipologia exemplificativa dos mesmos. Nem sequer parece que possam ser aqui acrescentados os valores da liberdade de acção dos órgãos de soberania e da defesa militar do Estado - a que se refere a LQSIRP - uma vez que essa norma se

40 Podendo igualmente recorrer-se, por força do art. 16º da LSE, ao art. 4º, nº 1, al. a), da LADA, a qual apresenta uma noção suficientemente ampla de documentos administrativos, que compreende “...quaisquer suportes de informação gráficos, sonoros, visuais, informáticos ou registos de outrs natureza...”. Sobre o conceito de documento administrativo, v. FERNANDO CONDESSO, op. cit., pp.313 e ss. 41 Definidas no art. 9º da LSE. Cfr. infra nº 4/II. 42 Neste sentido, daí retirando a “... presunção em favor da transparência da Administração, dos seus processos de actuação e decisões “, MARIA EDUARDA GONÇALVES, op. cit., p. 77.

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encontra confinada ao regime especial de segredo de Estado que aí se concebe43. Note-se que o recorte do objecto do segredo de Estado não se dá unicamente quando estes valores fundamentais do Estado são efectivamente violados ou se preveja que o sejam. A LSE admite ainda a possibilidade de a não classificação de informações ser potencialmente danosa para esses valores, não havendo contudo a certeza de que os mesmo sejam atingidos - “... é susceptível de pôr em risco ou de causar dano ...”44. O juízo de verificação acerca da violação próxima ou remota desses valores é considerado sempre de natureza casuística, perante cada documento ou informação que se pretenda classificar, não podendo resultar automaticamente da qualidade desse documento - “ O risco e o dano referidos no número anterior são avaliados caso a caso em face das suas circunstâncias concretas, não resultando automaticamente da natureza das matérias a tratar “45. V. Por forma a permitir uma maior pormenorização do objecto do segredo de Estado, a LSE fornece uma tipologia exemplificativa de documentos que mais se aproximam daquela cláusula geral, não dispensando, porém, a presença dos elementos subjectivo e finalístico referidos, nem do concreto juízo verificativo. Até poderá dar-se o caso de algum dos documentos aí mencionados não corresponder ao objecto do segredo de Estado. O quadro dos tipos de documentos que se menciona é o seguinte46:

43 Ao contrário do que defende MARIA EDUARDA GONÇALVES (op. cit., p. 79), para quem estas disposições ficam sendo exequíveis pela criação do regime geral do segredo de Estado, trata-se de uma regulação especial expressamente permitida pela regulação geral, que não lhe é aplicável, não chegando a haver, portanto, qualquer ponto de contacto entre ambas. 44 Numa clara aceitação conjunta do dano real e virtual, distinção a que se refere SILVANO LABRIOLA, Segreto di Stato, in Enciclopedia del Diritto, XLI, 1989, p. 1030. 45 Art. 2º, nº 2, da LSE. 46 Cfr. o art. 2º, nº 3, als. a) a f), da LSE.

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- documentos relativos a matérias que são transmitidas, a título confidencial, por Estados estrangeiros ou por organizações internacionais; - documentos relativos à estratégia a adoptar pelo País no quadro de negociações presentes ou futuras com outros Estados ou com organizações internacionais; - documentos sobre matérias que visam prevenir e assegurar a operacionalidade e a segurança do pessoal, dos equipamentos, do material e das instalações das Forças Armadas e das forças e serviços de segurança; - documentos relacionados com os procedimentos em matéria de segurança na transmissão de dados e informações com outros Estados ou com organizações; - documentos cuja divulgação possa facilitar a prática de crimes contra a segurança do Estado; - documentos atinentes a matérias de natureza comercial, industrial, científica ou financeira que interessem à preparação da defesa militar do Estado. Como facilmente se percebe, alguns destes tipos de documentos a classificar sob segredo de Estado referem-se a um ou a vários dos valores cuja defesa se considera necessária47. VI. O objecto do segredo de Estado, tal como se nos apresenta, é normalmente de carácter total, abrangendo todo um documento ou elemento de informação, por ser isso o que acontece mais frequentemente em face da unidade temática que usualmente os acompanha. A LSE chama a atenção, todavia, para a circunstância de poder haver uma modalidade menos extensa de segredo de Estado quanto ao objecto - a do seu objecto ser somente parcial. É que a “... classificação como segredo de Estado de parte de documento, processo, ficheiro ou

47 Estabelecendo algumas relações entre eles, mas não inteiramente bem sucedidas, acórdão nº 458/93 do Tribunal Constitucional, Diário da República, I série-A, de 17 de Setembro de 1993, p. 5094, e MARIA EDUARDA GONÇALVES, op. cit., p. 78.

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arquivo não determina restrições de acesso a partes não classificadas ...”48. Esta parte não directamente classificada em segredo de Estado, apesar disso, pode ainda submeter-se ao seu efeito protector se intrinsecamente se relacionar com a parcela classificada, não sendo portanto de livre acesso, de acordo com a seguinte directriz: “... na medida em que se mostre estritamente necessária à protecção devida às partes classificadas “49. VII. Questão que muito se discutiu no Tribunal Constitucional, a propósito da delimitação do objecto do segredo de Estado, foi a do sistema adoptado, tendo-se posto a dúvida sobre se não haveria aqui que respeitar um princípio constitucional de determinabilidade e precisão das normas legais restritivas. O Tribunal Constitucional orientou-se no sentido de considerar que a LSE, na modelação que levou a cabo do objecto do segredo de Estado, não tinha incumprido esse princípio, já defendido pela doutrina especificamente para o segredo de Estado, através de J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, ao entenderem que “... a densificação do conceito não pode bastar-se com fórmulas vagas, como «informações de segurança», «segredos militares»”50. A posição deste alto tribunal apoiou-se, de entre outros motivos, no facto de não “... ser exigível, num domínio plurifacetado como é o do segredo de Estado, que o legislador não possa recorrer a cláusulas gerais, com exemplificações, contendo conceitos com relativa indeterminação “51. Temos muitas dúvidas, em primeiro lugar, quanto à existência de um princípio geral de determinabilidade das leis restritivas - que nada tem de comparável com a eventual consideração de semelhante princípio nas normas penais incriminadoras ou nas normas fiscais de incidência 52 - ou 48 Art. 9º, nº 4, primeira parte, da LSE. 49 Art. 9º, nº 4, in fine, da LSE. 50 Op. cit., p. 217. 51 Acórdão nº 458/93 do Tribunal Constitucional, nº 17. 52 Quanto ao princípio da determinação das normas de tributação, que decorre do art. 105º, nº 2, da CRP, v. ALBERTO XAVIER, Manual de Direito Fsical, I, Lisboa, 1974, pp. 124 e 125; CARLOS PAMPLONA CORTE-REAL, As garantias

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quanto à substancialização excessiva que se pretendia da cláusula do segredo de Estado, cujo regime, do ponto de vista da CRP, permite-nos saber muito pouco acerca do modo como se deve organizar a delimitação do seu objecto. Mas mesmo que admitíssemos que este princípio constitucional seria inequívoco, as normas do decreto sobre o segredo de Estado submetido à apreciação do Tribunal Constitucional respeitavam mais à problemática da legiferação generalizante, por cláususlas gerais, do que propriamente à utilização de conceitos indeterminados53, também não havendo aqui, salvo novamente os casos pontuais das normas penais incriminadoras ou de tributação54, qualquer proibição constitucional do seu emprego em normas restritivas. A pretensão do Presidente da República, bem como a de alguns partidos da oposição, defendendo a inconstitucionalidade do sistema adoptado de delimitação do objecto do segredo de Estado, não poderia, em todo o caso, proceder, pois do ponto de vista prático, sob pena da total ineficiência do sistema, seria impossível tipificar, na íntegra, os documentos ou informações susceptíveis de segredo de Estado, dada a

dos contribuintes, Lisboa, 1986, pp. 18 e ss.; DOMINGOS PEREIRA DE SOUSA, As garantias dos contribuintes, Lisboa, 1991, pp. 113 e ss.; JORGE BACELAR GOUVEIA, Os incentivos fiscais contratuais ao investimento estrangeiro no Direito Fiscal Português - regime jurídico e implicações constitucionais, Lisboa, 1993, pp. 293 e 294, e op. cit., p. 137. 53 Sobre a distinção entre estes dois instrumentos de técnica legislativa, v. J. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1983, pp. 113 e ss.; ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Da boa fé no Direito Civil, II, Lisboa, 1985, pp. 1176 e ss.; KARL ENGISCH, Introdução ao pensamento jurídico, 6ª ed., Lisboa, 1988, pp. 205 e ss.; JORGE BACELAR GOUVEIA, op. cit., pp. 139 e 140. 54 Quanto ao princípio constitucional de tipicidade nas normas fiscais de incidência, v. ALBERTO XAVIER, op. cit., pp. 118 e ss.; CARLOS PAMPLONA CORTE-REAL, Curso de Direito Fiscal, I, Lisboa, 1981, p. 84; PEDRO SOARES MARTÍNEZ, Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 1984, pp. 105 e 106; DOMINGOS PEREIRA DE SOUSA, op. cit., pp. 100 e ss.; JORGE BACELAR GOUVEIA, Os incentivos fiscais..., cit., loc. cit., pp. 292 e 293, e op. cit., p. 70.

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sua variedade e constante mutação dos condicionalismos da política interna e de defesa55. 4. Conteúdo e duração I. Como decorre implicitamente da definição do objecto do segredo de Estado, o principal efeito ligado à sua decretação é o da proibição geral do acesso às informações classificadas. Essas informações deixam de estar sujeitas ao regime de acesso livre que anteriormente as caracterizava, quer fosse de acesso pelos interessados, quer fosse de acesso por terceiros. II. Não quer isso dizer que as informações consideradas como segredo de Estado passem a ser informações inacessíveis ou cujo conhecimento seja subjectivamente vedado a todos. Isso seria logicamente inadmissível, desde logo, para as entidades classificadoras, que para procederem à classificação carecem de avaliar o respectivo teor56. Mas também têm acesso a esses documentos “... as pessoas que deles careçam para o cumprimento das suas funções e que tenham sido autorizadas “57. Não se trata, porém, de um acesso automático, uma vez que há um procedimento prévio de autorização destinado a averiguar da real necessidade desse acesso. A entidade competente para classificar é também a entidade competente para conceder a autorização de acesso, salvo quanto aos Ministros que classificaram, relativamente aos quais é o Primeiro-Ministro que concede essa autorização58. A LSE não refere o prazo durante o qual a decisão de autorizar ou não autorizar deve ser

55 ADRIANO MOREIRA, op. cit., loc. cit., p. 38. 56 Cfr. infra nº 5/I e II. 57 Art. 9º, nº 1, segunda parte, da LSE. 58 Cfr. o art. 9º, nº 2, da LSE.

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tomada, pelo que se deve aplicar a solução contida na LADA, que determina 35 dias, findo o qual há indeferimento tácito59. Mesmo não tendo sido entidades que procederam à classificação, o Presidente da República e o Primeiro-Ministro - quando pretendam ter acesso a informações classificadas por outras entidades - nunca se sujeitam a este esquema da autorização, informações que lhes estão automaticamente disponíveis60, em nome da posição que ocupam no sistema de governo gizado pela CRP. III. O efeito restringente inerente ao segredo de Estado de modo algum se pode eternizar, podendo mesmo afirmar-se que neste domínio vigora o princípio da sua transitoriedade. A determinação do prazo de duração do segredo de Estado é um dos aspectos que o acto de classificação deve contemplar, seja na modalidade de extinção, seja na modalidade de revisão, impondo-se em qualquer caso um limite máximo de duração de quatro anos61. A fixação daquele prazo é definida em função de dois factores que a entidade classificadora deve ponderar: a natureza do documento sujeito a segredo e as circunstâncias que o motivaram62. 5. Decretação e fundamentação I. A decretação do segredo de Estado sobre um documento, se feita em condições normais, é da competência exclusiva destas cinco entidades63: a) Presidente da República; b) Presidente da Assembleia da República; c) Primeiro-Ministro;

59 Cfr. o art. 15º, nº 3, da LADA. 60 Cfr. o art. 9º, nº 3, da LSE. 61 Cfr. o art. 6º, nºs 1 e 2, da LSE. 62 Cfr. o art. 6º, nº 3, da LSE. 63 Cfr. o art. 3º, nº 1, da LSE.

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d) Ministros; e) Governador de Macau64. Apesar de tal conclusão não ser explicitamente afirmada no texto da LSE, parece óbvio que a competência destas entidades não seja simultânea para todos os documentos susceptíveis de serem classificados, havendo necessidade de uma sua repartição ratione materiae por força dos documentos a que cada um tenha acesso em virtude dos seus poderes constitucionais e legais. A observação da diversidade de entidades que podem determinar o segredo de Estado mostra que se ultrapassou uma visão governativa da questão, segundo a qual o segredo de Estado só interessaria ao executivo. Actualmente, na verdade, em face da multiplicação de funções dos diversos órgãos constitucionais, com a paralela abolição da separação orgânico-funcional dos poderes públicos65, não continuaria a fazer sentido reservar o poder de classificação ao Governo66. II. Se razões de urgência o justificarem, a decretação do segredo de Estado pode seguir um outro procedimento, que, diferentemente do que se passa com a sua decretação normal, tem como particularidade a necessidade de haver posterior ratificação, no prazo de dez dias, por parte das entidades que têm essa competência.

64 A versão anterior deste diploma incluía ainda como entidades com poder para classificar os Presidentes dos Governos Regionais dos Açores e da Madeira, segmento normativo considerado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional (acórdão nº 458/93, nº 26), evidenciando-se nos diversos argumentos invocados o relativo ao facto de as Regiões Autónomas não possuirem competência em matérias de segurança interna ou externa do Estado. Com uma visão crítica da posição do Tribunal Constitucional a este respeito, FERNANDO CONDESSO, op. cit., pp. 435 e ss. 65 Sobre esta nova perspectiva do princípio da separação de poderes, bem como as respectivas motivações na passagem do século XIX para o século XX, v. NUNO PIÇARRA, A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional, Coimbra, 1989, pp. 229 e ss.; JORGE MIRANDA, Ciência Política, Lisboa, 1992, pp. 107 e ss. 66 Cfr. ADRIANO MOREIRA, op. cit., loc. cit., p. 31.

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Essa classificação urgente é efectuada, sempre a título provisório, ou pelo Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas ou pelos directores dos serviços do Sistema de Informações da República Portuguesa, os quais têm o dever de fazer a sua comunicação imediata com vista à obtenção da ratificação supra-mencionada67. III. Numa preocupação garantística evidente, a LSE não se limita a indicar os elementos formais do acto de classificação da informação como segredo de Estado e define, complementarmente, alguns critérios de natureza material que o devem sempre acompanhar. Fundamental é salientar aqui o princípio da subsidiariedade, segundo o qual o “ ...regime do segredo de Estado não é aplicável quando, nos termos da Constituição e da lei, a realização dos fins que ele visa seja compatível com formas menos estritas de reserva de acesso à informação “68. Tendo clara consciência dos efeitos gravosos da instituição do segredo de Estado, a LSE pretende limitá-lo ao mínimo: só para quando faltarem outras medidas menos drásticas que permitam alcançar o mesmo objectivo de protecção da informação. A demarcação concreta dos documentos a classificar, bem como as respectivas parcelas se se tratar de um documento que não seja de classificar na totalidade, igualmente se sujeitam ao princípio da proporcionalidade, agora quanto à vertente da proporcionalidade em sentido restrito69. IV. Embora se possa considerar que a fundamentação é uma exigência de qualquer acto ablativo dos direitos fundamentais70, o certo é

67 Cfr. o art. 3º, nº 2, da LSE. 68 Art. 1º, nº 3, da LSE, princípio que é apenas enunciado no nº 1 do mesmo artigo. 69 Sobre as diversas dimensões do princípio da proporcionalidade, v. J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, op. cit., p. 152; J. J. GOMES CANOTILHO, op. cit., pp. 382 e ss.; VITALINO CANAS, Princípio da proporcionalidade, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, Lisboa, 1994, pp.618 e ss. 70 Sendo inequivocamente assim no caso dos actos administrativos desfavoráveis aos administrados, conforme consta do art. 124º, nº 1, do CPA.

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que a LSE cuidou especialmente da fundamentação do acto de classificação - qualificando-o até de princípio do dever de fundamentação71 - por forma a permitir um controlo jurisdicional mais intenso relativamente às medidas tomadas em sede de segredo de Estado. De acordo com o que nela é preceituado, da fundamentação do acto de classificação - que igualmente é exigida para o acto de desclassificação 72 - devem constar essencialmente ”...os interesses a proteger e os motivos ou as circunstâncias que as justificam“73. Na falta de uma indicação completa, os termos dessa fundamentação devem ser orientados pelo que consta do CPA, que a entende “...expressa, através da sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão...”74. 6. Extinção I. Se, por natureza, o segredo de Estado se rege pelo princípio da transitoriedade, é natural que se preveja a existência de algumas causas que determinem a sua cessação, tendo uma delas já sido indiciada quando se falou no prazo legal máximo para a fixação da sua duração. Essas causas de extinção do segredo de Estado não são todas, no entanto, da mesma índole, sendo possível distinguir quatro tipos: a) a desclassificação; b) a não ratificação no caso de decretação através do procedimento de urgência; c) o decurso do prazo estabelecido para a duração, ou até à revisão, do segredo de Estado;

71 Cfr. o art. 1º, nº 1, in fine, da LSE. 72 Hipóteses que correspondem, analogamente, às categorias de actos administrativos ablativos e revogatórios a que se referem as als. a) e e) do nº 1 do art. 124º do CPA. 73 Art. 5º, in fine, da LSE. 74 Art. 125º, nº 1, da CPA.

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d) a desclassificação para efeitos de acção penal75. II. As duas primeiras causas de cessação têm de comum o facto de se constituirem como modalidades de revogação, não obstante relativamente à segunda - a da não ratificação da decretação por urgência - a LSE lhe chamar, erroneamente, “caducidade”76. A natureza de revogação que se detecta em ambos os actos extrai-se da consideração de uma vontade normativa de não pretender prolongar os efeitos do segredo de Estado. O regime da desclassificação segue, em praticamente tudo, o regime do acto primário de classificação: é competente para desclassificar quem foi competente para classificar, pode fazê-lo a todo o tempo, mesmo antes de expirar o prazo de vigência do segredo de Estado, e é ainda necessário fundamentar tal decisão. A não ratificação da classificação efectuada em circunstâncias de urgência, que compete aos órgãos normalmente competentes para a classificação definidos em razão da respectiva área funcional, pode apresentar-se expressa - pela edição de um acto de vontade negativo - ou também tácita - quando, passado o prazo de dez dias, esses órgãos nada fazem no sentido da ratificação devida. III. A terceira causa de cessação de vigência do segredo de Estado, diversamente das duas anteriores, tem a natureza de caducidade, já que opera independentemente da vontade dos órgãos competentes nesta matéria. A diferença entre o termo da duração do segredo de Estado e a respectiva revisão é apenas uma distinção quanto a uma primeira intenção da entidade classificadora, à qual a mesma não está vinculada: por um lado, pode prolongar a vigência do segredo de Estado mesmo que

75 Poderiamos ainda acrescentar, a título lateral, a hipótese de caducidade do segredo de Estado constante do art. 15º da LSE, segundo a qual deixam de estar em segredo de Estado os documentos como tal classificados antes de 25 de Abril de 1974, e assim vigentes à data da entrada em vigor da LSE, que não forem revistos no prazo de um ano. 76 Cfr. o art. 3º, nº 4, in fine, da LSE.

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inicialmente a tivesse fixado por certo período; por outro lado, pode terminar o segredo de Estado a respeito de uma matéria relativamente à qual, a princípio, tinha pensado apenas fazer a sua revisão ao fim de certo período. IV. A quarta possibilidade de extinção do segredo de Estado situa-se no contexto específico do exercício da acção penal em que sejam determinantes dados probatórios submetidos a esse regime77. A regra geral nesta matéria é a de que esse segredo deve deixar de existir quanto a “...informações e elementos de prova respeitantes a factos indiciários da prática de crimes contra a segurança do Estado...”, por forma a que possam “...ser comunicados às entidades competentes para a sua investigação “78. Permite-se, todavia, uma excepção a este dever de desclassificação para efeitos penais quando se decida, apesar disso, manter o segredo de Estado, sendo para tanto necessário: 1) que essa decisão seja tomada “...pelo titular máximo do órgão de soberania detentor do segredo...”; e que perdure apenas “...pelo tempo estritamente necessário à salvaguarda da segurança interna e externa do Estado”79. 7. Tutela I. Em resultado do conteúdo do segredo de Estado, a LSE organiza um conjunto de providências destinadas a proteger as informações que estão abrangidas, providências que se dirigem tanto directamente aos

77 Na apreciação que o Tribunal Constitucional fez sobre este aspecto do acesso dos tribunais a matérias protegidas com o segredo de Estado, o entendimento que vingou (cfr. o acórdão nº 458/93, nº 23) foi no sentido de que a sua não inconstitucionalidade se basearia na ideia de “... que tal restrição se acha justificada pela necessidade de salvaguardar outros valores e interesses constitucionais protegidos, nomeadamente a independência do País, a integridade do seu território, a segurança interna e externa da comunidade política “. 78 Art. 7º, primeira parte, da LSE. 79 Art. 7º, segunda parte, da LSE.

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documentos como indirectamente aos comportamentos das pessoas que deles tomem conhecimento. A partir do momento em que se dá a classificação como segredo de Estado, a LSE determina que os documentos sob esse regime sejam alvo de “...adequadas medidas de protecção contra acções de sabotagem e de espionagem e contra fugas de informação “.80

Quanto às pessoas que venham a tomar conhecimento dos documentos sujeitos a segredo de Estado, separa-se o conhecimento acidental do conhecimento funcional dos mesmos: no primeiro caso, as pessoas em causa têm o dever de entregar os documentos que contenham essas informações “...à entidade responsável pela sua guarda ou à autoridade mais próxima “81; no outro caso, as pessoas ficam sujeitas a um dever de sigilo, que tem a particularidade de se prolongar para lá do termo das funções públicas que exerceram82, pessoas essas que podem ser não apenas funcionários e agentes mas quaisquer outras que, no exercício das suas funções, tenham acedido a informações classificadas83. II. A LSE não se limita à imposição de deveres relacionados com o regime do segredo de Estado, mas vai mais longe ao estabelecer normas sancionatórias para a violação desses deveres, sem as quais, aliás, tal regulação ficaria incompleta. As normas sancionatórias previstas têm uma natureza simultaneamente disciplinar e penal, consoante a configuração concreta da infracção e consoante o diploma aplicável em virtude da qualidade do funcionário ou agente prevaricador. Os diplomas para que a LSE expressamente remete no sentido da aplicação dessas sanções são o EDFAACRL, o CJM, o CP e os respeitantes ao sistema de informações da República Portuguesa84. 80 Art. 8º, nº 1, da LSE. 81 Art. 8º, nº 2, segunda parte, da LSE. 82 Cfr. o art. 10º, nº 2, da LSE. 83 Cfr. o art. 10º, nº 1, da LSE. 84 Embora este última referência nos pareça despropositada na medida em que estabeleça o regime sancionatório para a violação do regime do segredo de Estado regulado nesses diplomas, que por terem uma natureza especial relativamente ao regime geral constante da LSE já usufruem de regime sancionatório próprio.

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O EDFAACRL enuncia como um dos deveres dos funcionários e agentes do Estado o do sigilo profissional, cuja violação constitui infracção disciplinar susceptível de ser punida nos termos do leque de sanções aí previstas, mas não há qualquer alusão específica ao segredo de Estado.85

O CJM prevê como crime essencialmente militar a revelação de segredos que interessem à defesa do país, aplicando-se a pena de presídio militar de dois a quatro anos86. O CP, no tipo de crime que consagra de violação de segredo de Estado, pune, com 2 a 8 anos de prisão, a publicitação de informações classificadas, pena que igualmente se aplica ainda à destruição de documentos submetidos ao mesmo regime87. III. Importante sector que também deve merecer defesa é o das pessoas que, tendo direito a aceder a informações sujeitas ao segredo de Estado, vejam esse acesso negado pela entidade competente, havendo depois a possibilidade da intervenção da Comissão para a Fiscalização do Segredo de Estado. Trata-se de uma entidade pública independente88, que é composta 89 “...por um juiz da jurisdição administrativa designado pelo Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que preside, e por dois deputados eleitos pela Assembleia da República, sendo um sob proposta do grupo parlamentar do maior partido que apoia o Governo e

85 Cfr. o art. 3º, nº 9, do EDFAACRL. 86 Cfr. o art. 63º do CJM. 87 Cfr. o art. 316º, nºs 1 e 2, do CP. 88 Cfr. o art. 13º, nº 2, da LSE. 89 A composição da Comissão para a Fiscalização do Segredo de Estado foi outro dos pontos quentes que o Tribunal Constitucional teve oportunidade de analisar, sendo esta solução legal resultante da reformulação do decreto inicial, uma vez que este órgão jurisdicional se pronunciou contra, por um lado, a circunstância de a presidência dessa Comissão pertencer ao presidente do Supremo Tribunal Administrativo, e por outro lado, a formulação inicialmente dada quanto ao modo de designação dos dois deputados que dela fazem parte (cfr. acórdão nº 458/93 do Tribunal Constitucional, nº s 40 e 41). Discordando dessa posição, FERNANDO CONDESSO, op. cit., pp. 524 e ss.

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outro sob proposta do grupo parlamentar do maior partido da oposição “90. O primeiro passo que deve ser dado é o da apresentação de queixa da decisão negativa, no prazo de 10 dias, junto dessa Comissão, que responde, no prazo de 30 dias91, emitindo o seu parecer. Deve depois a entidade competente fazer uma reapreciação do pedido recusado em função do parecer proferido por aquela Comissão, disfrutando do prazo de 15 para o efeito92, julgando-se indiferente que o parecer seja ou não favorável à pretensão do queixoso, uma vez que o órgão decisor pode mudar de posição mesmo com um parecer desfavorável. Caso essa decisão continue a ser negativa, expressa ou tacitamente, as pessoas queixosas podem impugná-la tanto graciosa como contenciosamente, impugnação contenciosa que está dependente da intervenção da Comissão para a Fiscalização do Segredo de Estado, cujo citado parecer93 é obrigatório mas não vinculativo94. O regime da impugnação contenciosa, por força da aplicação da LADA em matéria que na LSE se encontra omissa, é o correspondente ao processo de

90 Art. 13º, nº 3, da LSE. 91 Cfr. o art. 16º, nºs 1 e 2, da LADA, por força do art. 16º da LSE, entendimento que é expressamente aceite pelo Tribunal Constitucional (cfr. o acórdão nº 458/95 do Tribunal Constitucional, nº 45). 92 Fase do procedimento que, ao contrário das outras, é completamente omissa na LSE, impondo-se pelo art. 16º, nº 3, da LADA, por indicação do art. 16º da LSE. Se assim não fosse, a função consultiva da Comissão para a Fiscalização do Segredo de Estado, ao não poder chegar ao órgão que indeferiu a pretensão do cidadão, não teria qualquer utilidade prática. Pondo esta legítima dúvida, mas não lhe dando solução, acórdão nº 458/93 do Tribunal Constitucional, nº 45. 93 Cfr. o art. 14º da LSE. 94 Neste sentido, invocando o art. 98º, nº 2, do CPA, acórdão nº 458/93 do Tribunal Constitucional, nº 45.

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intimação para consulta de documento ou passagem de certidões95, para o qual são competentes os tribunais administrativos e fiscais96. IV. Já não tanto do prisma jurídico quanto de uma perspectiva política, incumbe ainda à Assembleia da República a fiscalização do regime do segredo de Estado97. Mas não é fácil aquilatar da real dimensão desta fiscalização parlamentar98. Certamente que não significará a ingerência dos Deputados no exercício dos poderes de classificação de cada um dos órgãos competentes para o efeito. Estamos em crer que se trata de uma fiscalização genérica sobre o exercício global do segredo de Estado, podendo o Parlamento obter informações sobre a intensidade da utilização deste mecanismo ou receber reclamações, a título gracioso, de entidades queixosas. O resultado prático dessa fiscalização poderá ser a reformulação do regime legal do segredo de Estado, através da aprovação de alterações legislativas, ou a avaliação da confiança política que outros órgãos - maxime o Governo - merecem à Assembleia da República em razão do modo de aplicação do regime do segredo de Estado, através da aprovação de moções de censura, de declarações políticas ou debates e interpelações parlamentares 99.

95 Cfr. o art. 17º da LADA, ex vi art. 16º da LSE. 96 O sistema de controlo que foi adoptado pela LSE, em contraste com outras legislações, incide apenas no acto que nega o acesso às informações sob segredo de Estado, não quanto ao acto primário que realiza a sua classificação. Sobre a questão da sindicabilidade do acto de classificação, sob a perpsectiva da sua hipotética inconstitucionalidade, v. acórdão nº 458/93 do Tribunal Constitucional, nº 43, e FERNANDO CONDESSO, op. cit., pp. 431 e ss. 97 Cfr. o art. 12º da LSE. 98 Quanto às diversas facetas possíveis do controlo parlamentar, v. SILVANO LABRIOLA, op. cit., loc. cit., pp. 1034 e ss. 99 FERNANDO CONDESSO, op. cit., pp. 531 e 532.

Page 29: Segredo de Estado - fd.unl.pt · 1 SEGREDO DE ESTADO Jorge Bacelar Gouveia1 SEGREDO DE ESTADOa proibição do acesso a informações : cujo conhecimento por pessoas não autorizadas

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BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL A) Portuguesa ADRIANO MOREIRA, Notas sobre o segredo de Estado, in Revista de Ciência Política, nº 5, 1º semestre de 1987, pp. 31 e ss.; J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pp. 217, 636 e 676; MARIA EDUARDA GONÇALVES, Direito da informação, Coimbra, 1994, pp. 76 e ss.; FERNANDO CONDESSO, Direito à informação administrativa, Lisboa, 1995, pp. 375 e ss. B) Estrangeira ENRIQUE GOMÉZ REINO, El principio de publicidad de la acción del Estado y la técnica de los secretos oficiales, in Revista Española de Derecho Administrativo, nº 8, 1976, pp. 115 e ss.; SILVANO LABRIOLA, Le informazioni per la sicurezza dello Stato, Milano, 1978, e Segreto di Stato, in Enciclopedia del Diritto, XLI, 1989, pp. 1028 e ss.; GÉRMAN GOMEZ ORFANEL, Secreto de Estado y Publicidad en España, in Estado e Direito, nº 1, 1987-1988, pp. 25 e ss.