SEIXAS, João - A cidade na encruzilhada.pdf

Embed Size (px)

Citation preview

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    1/352

    A CIDADE NA ENCRUZILHADA Repensar a cidade e a sua poltica

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    2/352

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    3/352

    Joo Seixas

    A CIDADE NA

    ENCRUZILHADARepensar a cidade e a sua poltica

    Z

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    4/352

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    5/352

    Para a Andreia, a Maria, a Madalena e a Lusa

    Reconstrutoras de cidades futuras

    Para o Nuno Teotnio Pereira

    O homem-bom por excelncia

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    6/352

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    7/352

    No h poltica sem cidade.No h realidade da histria sem a histria da cidade.

    A cidade a maior forma poltica da histria.

    Paul Virilio

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    8/352

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    9/352

    AgradecimentosEste livro resultado da minha relao com a cidade e com as suas gentes. Seja ela uma

    real Lisboa, Barcelona, Londres ou Nova Iorque; ou uma ficcional Erslia, Andria, Procopiaou Betsabea. Seja ela como for, sempre essa fascinante e heteronmica babel, expoente darealizao e da perplexidade humana, palco central das luzes e das sombras do nosso pas-sado, presente e futuro.

    Estou muito grato a um conjunto de mestres da minha formao e motivao. EmLisboa, a Nuno Teotnio Pereira, Joo Ferro, Lusa Schmidt, Manuel Villaverde Cabral,Margarida Pereira, Vtor Matias Ferreira, Augusto Mateus, Maria de Lurdes Poeira. Em

    Barcelona, a Oriol Nel.lo, Joan Subirats, Abel Albet, Francesc Muoz. No Rio de Janeiro, aLuiz Csar Queiroz Ribeiro. Em Londres, a Andy Thornley e Mark Kleinman. Em Paris, aChristian Lefvre.

    Estou tambm muito grato aos bons amigos e profissionais que tiveram a amabilidadede escrever, a meu convite, a maior parte das caixas ilustrativas que povoam o livro, tor-nando-o mais colorido e, sobretudo, mais colectivo.

    Agradeo a Antnio Costa, Presidente da Cmara Municipal de Lisboa, pelo interesse econfiana no meu trabalho e no seu desenvolvimento nos estudos da Qualidade de Vida edos novos modelos de governao, bem como no comissariado da Carta Estratgica de

    Lisboa, processos cujo potencial e evoluo tanto mostram sobre as possibilidades da pol-tica e da cidade no Portugal contemporneo.

    Um agradecimento particular ao Observatrio das Metrpoles, sediado na bela cidadedo Rio de Janeiro e com as diferentes antenas nas fervilhantes cidades brasileiras, pelo inte-resse e apoio dado edio deste livro.

    Estarei sempre em dvida para com a Isabel Guerra, cuja sapincia, sagacidade e alegriano trabalho se tornaram numa das minhas maiores referncias do que ser um verdadeiromestre, em prol do bem colectivo. No podia haver outra escolha para o prefcio, que muitome honra.

    Agradeo Andreia, por ser como e por cuidar de mim; Madalena e Lusa, pelavida e esperana que com elas nasceram. Que as cidades futuras onde vivam sejam luga-res de oportunidade, de justia e de felicidade.

    A todos devolvo, muito agradecido, este trabalho. Pois ele no bem meu: foi feito con-vosco, e atravs de vs.

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    10/352

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    11/352

    ndice

    Prefcio, por Isabel Guerra | 13

    1. Por que razo questionar a governao da cidade | 251.1. Ritmos | 27

    1.2. Paradigmas | 341.3. Descompassos | 401.4. Atitudes | 48

    2. A cidade na encruzilhada | 552.1. A revoluo urbana | 572.2. A cidade contempornea | 662.3. Novas (e velhas) esperanas | 97

    3. A poltica glocal | 1013.1. Desafios para a poltica urbana | 1033.2. A recomposio da aco pblica na cidade | 120

    4. Actores, projectos e regimes urbanos | 1514.1. Quem governa as cidades? | 1534.2. Projectos e empreendorismo | 1644.3. Regimes urbanos | 1734.4. Os sistemas de aco sociopoltica nas cidades do Sul da Europa | 180

    5. Redes de governana e de capital sociocultural | 1895.1. A governana urbana: potencialidades e debilidades de um conceito fluido | 193

    5.2. O capital sociocultural: identidade, tica pblica e expresso colectiva | 2046. A reinveno da poltica na cidade | 2196.1. O lugar da cidade | 2236.2. O entendimento da cidade | 2346.3. A poltica da cidade | 245

    7. A governao de Lisboa e a Carta Estratgica | 2577.1. Sistemas de aco em Lisboa | 2597.2. A governao urbana na Carta Estratgica de Lisboa | 267

    8. A regenerao da POLIS | 3078.1. Perspectivas para a reafirmao poltica da cidade | 3098.2. A encruzilhada de Lisboa | 3198.3. Reflexes para seguir em frente | 328

    Referncias bibliogrficas | 335

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    12/352

    | 12 | A CIDADE NA ENCRUZILHADA

    ndice de caixas

    Caixa 1: A cidade e o campo: novas vises e novas paisagens,Mnica Truninger | 61Caixa 2: A urbanizao de baixa densidade,Rui Guerreiro | 77Caixa 3: O agridoce da hipermobilidade,Mrio Alves | 84Caixa 4: A pegada ecolgica a estragar o delrio colectivo de acharmos que temos

    mais do que um planeta, Sofia Guedes Vaz | 88Caixa 5: Novas dinmicas familiares e residenciais, Sandra Marques Pereira | 92Caixa 6: O estatuto da cidade no Brasil, Marianna Olinger | 117Caixa 7: As Sustainable Communities no Reino Unido,Ana Roldo | 124Caixa 8: Polticas urbanas e do territrio em Frana, Gilles Pinson | 128Caixa 9:Arrondissements, secteurs e communes,Joo Seixas | 132Caixa 10: Os distritos urbanos de Barcelona,Joo Seixas | 137Caixa 11: Polticas e estratgias metropolitanas: demasiado importantes para igno-

    rar, ou demasiado grandes para emancipar?,Joo Seixas | 141Caixa 12: Os sistemas de informao geogrfica e a cidade, Frederico Metelo | 144Caixa 13: Os pelouros dos vereadores de Paris,Joo Seixas | 148Caixa 14: A economia das cidades na era do capitalismo cognitivo,Mrio Vale | 158Caixa 15: As polticas urbanas e a Unio Europeia, Jos Carlos Mota | 162Caixa 16: O modelo Curitiba: a ecologia e a mobilidade como pilares de uma estra-

    tgia de futuro,Joo Seixas | 170Caixa 17: Cidades criativas e criatividade urbana, Pedro Costa | 176Caixa 18: Polticas integradas de reabilitao e de regenerao urbana em Portugal,

    Andreia Magalhes | 182Caixa 19: O modelo Barcelona, Abel Albet | 186Caixa 20: O oramento participativo,Nelson Dias | 199Caixa 21: A Agenda 21 Local,Joo Farinha | 202

    Caixa 22: Espao pblico e identidade urbana,Ana Bonifcio | 210Caixa 23: O bairro e a cidade, Ana Louro | 214Caixa 24: O new urbanism,Lus Balula | 233Caixa 25: A qualidade de vida urbana,Joo Seixas | 242Caixa 26: Princpios para um novo urbanismo,Joo Seixas | 244Caixa 27: 20 medidas para uma nova economia: a relevncia e a resilincia do local,

    Joo Seixas | 250Caixa 28: O direito cidade,Joo Seixas | 315Caixa 29: O genoma urbano,Joo Seixas | 318Caixa 30: A cidade mediterrnica,Joo Seixas | 324

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    13/352

    PrefcioIsabel Guerra

    The right to the city is far more than the individual

    liberty to access urban resources: it is a right to changeourselves by changing the city.

    David Harvey (2008), The right to the city,inNew Left Review, n. 53, p. 23

    As cidades na agenda da modernidade tardia

    Este livro de Joo Seixas estrutura uma ampla reflexo em torno da cidade con-tempornea e das suas formas de governao e de cidadania. O autor um inves-tigador (e interventor) na capital do pas e ao escrever tem presente os desafiosque emergem nas metrpoles dos pases desenvolvidos, e muito particularmenteas formas de governao destes espaos. Na sequncia desta reflexo, Joo Seixasestrutura o texto a partir de quatro grandes dimenses: i) o que est a acontecer

    s cidades e que problemas e desafios/encruzilhadas se colocam (captulos 1, 2);ii) quais os actores que fazem a cidade e como interagem (captulos 3 e 4); iii)como modernizar a politica da cidade (captulos 5 e 6); e finaliza com iv) uma an-lise crtica e propositiva dos sistemas e ambientes de governao de Lisboa e pro-postas para uma mais eficaz e estratgica regenerao urbana suportada em prin-cpios e dinmicas democrticas (captulos 7 e 8).

    Sendo um texto de grande erudio, apoiado numa vastssima e actual biblio-grafia, um trabalho sobretudo de ndole programtica, estando bem alicerado

    quer no conhecimento da realidade nacional quer na realidade internacional,sobretudo europeia.A tese central assenta na defesa de que uma cidade moderna, local de desen-

    volvimento, de expresso democrtica e socialmente coesa, o objectivo ltimoda governao urbana. Esta tese emerge articulada com alguns pressupostos

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    14/352

    | 14 | A CIDADE NA ENCRUZILHADA

    epistemolgicos que estruturam todo o livro. Primeiro, o entendimento da cidade,

    antes de tudo, como relao ou como construo social, ou seja, como resul-tado dinmico de um conjunto de actores e da negociao de interesses diver-sos. Em segundo lugar, um entendimento da cidade como processo espacial,dando um peso claro anlise emprica real das configuraes urbansticas earquitectnicas que do especificidade ao discurso sobre o espao urbano. E,finalmente, a defesa da conjugao da teoria com a empiria na edificao denovas polticas pblicas.

    Defendendo a cidade como uma estrutura humana e espacial, essencial aodesenvolvimento socioeconmico e cultural de uma sociedade, considera-se queest numa encruzilhada, ou seja, esto em larga medida por conhecer as suasdinmicas contradies e paradoxos e falta a capacidade para traduzir esse conhe-cimento em programas urbanos concretos e viveis. Sendo a cidade um sistemacomplexo, o aprofundamento das suas dinmicas mais significativas e estruturan-tes nomeadamente as que referenciam a relao entre competitividade, coesoe sustentabilidade merecem um aprofundamento luz da situao actual.

    Porque triunfa a Cidade?A importncia crescente que dada cidade, quer nas polticas pblicas quer

    nos meios acadmicos, repousa em larga medida no reconhecimento da urbaniza-o crescente das populaes em todos os continentes. Mas a defesa do papel cen-tral da cidade no advm apenas da prova emprica de que a populao mundial cada vez mais urbana, mas dos inmeros estudos que mostram a relao entreo grau de urbanizao e a produtividade, a satisfao das populaes, as oportu-nidades de mobilidade social.

    Esta atitude maioritria de admirao pela cidade de alguma forma recente, esurpreendente, e parece contradizer as enormes transformaes introduzidas pelaglobalizao e sobretudo pela difuso das tecnologias que a acompanham e quefizeram com que alguns observadores tenham previsto o fim da geografia ou amorte da distncia (Cairncross, 19971; Ascher, 20012; 20093).

    As transformaes dos meios imateriais de comunicao como a internet e aWeb (www) arrastaram consigo uma profunda alterao da forma como as pes-soas vivem, trabalham e circulam. Os trabalhadores mveis, os conhecimentos que

    1. Frances Cairncross (1997), The death of distance: how the communications revolution will changeour lifes, UK: Harvard Business Press.2. Franois Ascher (2001),Les nouveaux principes de lurbanisme. La fin des villes nest pas lordredu jour, Paris: LAube.3. Franois Ascher et al. (2009), Organiser La Ville Hypermoderne, Paris: Parenthses.

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    15/352

    PREFCIO | 15 |

    transitam, os consumos electrnicos, libertaram-nos de muitos constrangimentos

    espaciais e colocaram-nos num mundo global. Mas, mesmo assim, poderia dizer--se que, paradoxalmente, esta abolio das distncias no tornou obsoletas asrazes tradicionais por que os cidados se aglomeram em cidades para ficaremperto de empregos, equipamentos, culturas e consumos.

    Como refere o autor: No podemos ser excessivamente nafs ao ponto de des-materializarmos ou virtualmente liquidarmos, em suposta sociedade lquida o papel central do territrio (real, fsico e paisagstico) na definio, no entendi-mento e na evoluo urbana e humana. Hoje, mais do que ontem, o espao conta.

    Argumenta-se ainda que na cidade que se desenvolvem novos processos eritmos de interaco, de criao, de inovao, novos modelos de relacionamentoe de desenvolvimento humano, desenhando-se em muitos dos seus espaosnovos paradigmas sociais, econmicos e territoriais. Espao relacional por exce-lncia, o fascnio que a cidade exerce poder estar afinal intacto ou mesmorenovado, na construo de possveis futuras formas de incluso, de habitabili-dade, de mobilidade, de labor, de multiculturalidade, de humanidade, de polticae de sabedoria.

    Ora esta argumentao sobre a importncia da cidade moderna no poderia

    ser mais actual e torna-se til citar Edward Glaeser (2011: 7)4 num livro de grandeprojeco na actualidade There is a near-perfect correlation between urbanizationand prosperity across nations. On average, as the share of a countrys population

    that is urban rises by 10 percent, the countrys per capita output increases by 30

    percent. Per capita incomes are almost four times higher in those countries where

    a majority of people live in cities than in those countries where a majority of

    people live in rural areas.A concentrao de mais-valias econmicas, de capital humano e outro fazem

    da cidade, cada vez mais, a base de sustentao do modelo de crescimento actual:() but since urbanization depends on the mobilization of a surplus product, anintimate connection emerges between the development of capitalism and urbaniza-

    tion (Harvey, 2008: 245).A globalizao um fenmeno multifacetado com enormes consequncias

    nas vidas das cidades e nas vidas dos seus residentes. Do ponto de vista econ-mico significa a integrao dos mercados e dos investimentos, da produo e doconsumo, atravs de empresas que agem a escalas mltiplas. O processo foi ace-lerado pelas tecnologias de informao e comunicao, mas estas no permitem

    apenas a mobilidade do capital, mas tambm a das pessoas, das ideias e dasinovaes.

    4. Edward Glaeser (2011), The Triumph of the City, Nova Iorque: MacMillan.5. David Harvey (2008), The right to the City, in New Left Review, n. 53, p. 23-40.

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    16/352

    | 16 | A CIDADE NA ENCRUZILHADA

    Muito para alm do interesse econmico, interrogamo-nos porque que as

    maiores questes e desafios da sociedade moderna tm lugar em pleno contextoda vida urbana e porque que o conhecimento e inovao tm uma base fsicaresultado de complexas interaces entre clusters econmicos e entre valores eculturas envolvendo residentes, estudiosos, polticos, artistas e mltiplas formase oportunidades de aprendizagem em contexto de interaco (Mario Polse eRichard Stren, 20006).

    Claro que as inovaes no se produzem da mesma forma em todos os territ-rios e a forma como estes reagem determina tambm a fora dos lugares. nestesentido que as polticas locais so centrais na compreenso das encruzilhadas dacidade, procurando as vantagens competitivas dos lugares no apenas em termosprodutivos mas tambm na qualidade de vida dos residentes, que , como se sabe,um factor de localizao das empresas modernas. Para alguns (Sassen, 20027;Glaeser, 2011; Bourdin, 2010), a cidade moderna assume importncia crescente,nomeadamente devido aos factores de proximidade e de coexistncia plural queesto no centro dos processos de inovao. essa proximidade e bem-estar quetorna as cidades amigveis onde a vida urbana se constitui como um factor delocalizao para as actividades mais significativas de inovao, sendo neste crculo

    virtuoso entre proximidade, criatividade e bem-estar que as metrpoles actuais setornaram plos crescentes de produo de modernidade.

    Glaeser (2011: 6) escreve: The rise and fall and rise of New York introducesus to the central paradox of the modern metropolis-proximity has become ever

    more valuable as the cost of connecting across long distances has fallen, new

    Yorks story is unique in its operatic grandeur, but the key elements that drove the

    citys spectacular rise, sad decline, and remarkable rebirth can be found in cities

    like Chicago and London and Milan, as well Cities are the absence of physical

    space between people and companies. They are proximity, density, closeness. They

    enable us to work and play together, and their success depends on the demand for

    physical connection.

    A cidade relacional

    A cidade pode ganhar, mas por vezes perde, e todos temos experincia pessoalde acontecimentos extraordinrios vividos nestas cidades incessantemente promis-

    soras de cultura, de bem-estar, de animao colectiva, ao mesmo tempo de drama,

    6. Mario Polse e Richard Stren (2000), The social sustainability of cities, in Diversity and theManagement of Change, Canada: University of Toronto Press.7. Saskia Sassen (2002), Global networks, linked cities, USA: Routledge.

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    17/352

    PREFCIO | 17 |

    de receio, de tristeza: por cada Avenida da Liberdade h um Casal de Cambra, por

    cada cidade universitria h uma escola secundria da periferia onde os alunos seagridem diariamente, para cada Teatro da Trindade h um casebre onde vive umfamlia que no consegue pagar a luz. Mas como escreve ainda Glaeser (2011: 9):Cities dont make people poor; they attract poor people (constatao que, apesarde tudo, no nos resolve o problema da segregao socioespacial). A cidade feitadestas contradies e rupturas sociais, polticas e culturais porque quem faz acidade uma mirade de actores de interesses desiguais cuja confrontao se fazsob a batuta do Estado e das autarquias.

    Neste livro, a primeira grande preocupao ao identificar as encruzilhadasactuais das cidades confronta-se com uma concepo da cidade como espaorelacional na sua prpria essncia como local heterogneo, diverso e mesmocontraditrio e conflituoso. Entender a cidade como espao de relao, comoelemento em constante processo de construo social, de ordem colectiva, entender tambm as contradies que esta encerra e a luta incessante entre desi-gualdade e equidade que atravessa a sociedade moderna. A cidade no reflectemais do que as contradies que esto presentes na vida social: a uma sociedadedesigual corresponde uma cidade desigual. A defesa de uma aco democrtica

    que considere princpios de justia social est presente de forma transversal emtodo o livro.

    O autor considera que um dos problemas fundamentais do governo da cidade a fraca auscultao e participao das populaes e dos seus interesses. A pro-moo e programao de um urbanismo de coeso social e de garantia do direito cidade implicaria novas ferramentas de planeamento e formas de conhecimentoabertas ao enquadramento dos diversos interesses e tendncias, numa constanteprocura de compromissos entre os actores, em oposio programao e multipli-cao de receitas predefinidas. A cidade seria assim um projecto colectivo e mobi-lizador alargando os horizontes de um viver em conjunto cimentado em interac-es sociais e polticas que alimentariam uma comunidade, e no o resultado depolticas pblicas unilaterais.

    Na senda de Alain Bourdin (2010), faz-se a apologia de uma nova abordagem,ou de um urbanismo de regulao fundado num sistema de valores muito forte,como poderia ser o desenvolvimento sustentvel. Encontram-se aqui os limites doprojecto urbano, tal como foi concebido no contexto do urbanismo liberal, porquedefendia one best way e uma ordem utpica. A partir de agora a eficcia da

    governao residiria em larga medida do lado da regulao, sendo o planeamentoestratgico entendido como um processo e no como um instrumento neutral,amorfo e tecnocrtico.

    A expresso cidade negociada exprime bem a crena de que esta formaurbana gerida por inmeros actores e interesses. Porm, quem negoceia e

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    18/352

    | 18 | A CIDADE NA ENCRUZILHADA

    com quem? uma das questes que nos colocada neste livro. De facto, uma

    caracterstica fundamental do urbanismo contemporneo baseia-se na multipli-cidade de actores, de interesses e na diferena entre as escalas de interveno.A negociao fragmenta-se numa multiplicidade de cenrios que se fazem edesfazem com escalas polticas, econmicas, temporais e espaciais muito dife-rentes. Coordenar tudo isto talvez o maior desafio da governao (AlainBourdin, 2010).

    Uma vez mais, na temtica da cidade relacional emerge a importncia da regu-lao pblica e a interrogao sobre as actuais estruturas polticas e institucionaisde governao, de regulao, de liderana e de aco nas cidades. O livro inter-roga-se se a governao urbana est atenta a estas novas dinmicas e transforma-es; se possui estruturas preparadas para as realidades de uma sociedade urbanae informacional com padres de alta mobilidade e volatilidade e cujas variveis de(re)produo e de simbolismo se encontram em reconfigurao ou mesmo, emalguns casos, em desmaterializao sob e para novas formas.

    O urbanismo entendido assim como agindo no sobre conchas vazias8

    mas sobre espaos habitados, com histria, com presente e com futuro, acredi-tando que os vrios actores sociais tm propostas sobre o devir da cidade e so

    capazes de as definir, negociar e concretizar. O urbanismo relacional associa-sea uma gesto negociada.

    Em sntese, do ponto de vista da governao urbana, as cidades so hoje enten-didas no como meros espaos fsicos, densos e heterogneos, mas antes comoredes relacionais complexas, conflituais, mas que contm em si espaos de nego-ciao potencial em funo de um projecto de cidade.

    Gerindo a nossa coexistncia em espaos partilhados:A indispensvel modernizao da governao urbana de Lisboa

    Poderamos dizer como Patsy Healey (1997)9 que a governana urbana , nasua essncia, a gesto da nossa coexistncia em espaos partilhados e entramoscom esta problemtica no n central do Livro. Diga-se desde logo que Joo Seixastem do conceito de governao urbana uma ideia alargada, como alis tem dacidade como organismo colectivo. Retomando Joo Ferro (2003)10, considera-se

    8. Expresso de J. C. Castel (dir.) (2008),La mobilit qui fait la ville, Lyon: Ed. Certu.9. Healey, Patsy (1997), Collaborative Planning Shaping places in fragmented societies. Houndmillsand London: MacMillan Press.10.Joo Ferro e Teresa S Marques (2000), Sistema Urbano Nacional. Sntese. Lisboa: DGOTDU//Ministrio das Cidades, Ordenamento do Territrio e Ambiente.

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    19/352

    PREFCIO | 19 |

    que a cidade como organismo poltico colectivo compe-se de trs elementos,

    tambm eles representando corpo, vida e alma: a cidade das instituies, a cidadeda governana e a cidade como capital sociocultural colectivo.

    De facto, sem minimizar o conjunto da reflexo realizada ao longo destas trscentenas de pginas, a dimenso mais inovadora deste livro reside na problemati-zao da governao urbana entendida como projecto comum, como projecto decidade onde todos os interesses, mesmo os divergentes, assumem esse espao devida como bem colectivo e colectivamente construdo. A democracia, entendidacomo participao de todos, estaria assim no corao do conceito de governanae a instncia poltica assumiria um papel central no apenas como gesto distantede interesses mas protagonizando um projecto democrtico de cidade. E o pro-jecto colectivo de cidade , obviamente, um projecto de carcter poltico e, comotal, emergente do seu sistema de governao.

    Assim, subjacente governao est, do ponto de vista poltico, um projecto decidade concebido de forma alargada como um projecto de desenvolvimento socio-econmico nas suas mltiplas vertentes de equilbrio social, competitividade eco-nmica e moderao ambiental. O papel da governao ultrapassa em muito asdimenses tcnicas de construo ou de gesto do crescimento urbano para colo-

    car como objectivo ltimo a qualidade de vida dos residentes e a sua expressocomo cidados, o que significa que considera as tradicionais vertentes: de educa-o, de emprego, de equipamentos, etc. Nesse sentido, a modernizao da cidade concomitante com a modernizao das suas formas de gesto colectiva e para tal preciso aproximar actores gerando meios inovadores.

    O autor confronta as suas perspectivas tericas com o contexto real de Portugal,considerando existir um acumular de dfices de governao urbana ao nvel dosmunicpios, que encontra explicao em constrangimentos econmicos mas sobre-tudo em constrangimentos culturais, polticos e institucionais.

    Reconhece-se que o governo urbano se encontra perante graves crises fiscaispois os custos subiram e as receitas desceram num contexto em que o crescimentodas cidades, nomeadamente das cidades centrais, pressiona para novos investi-mentos em infra-estruturas tratamento de lixo, transportes, habitao a custoacessvel, etc. sobrecarregando os j deficitrios oramentos municipais e geral-mente sem grande solidariedade governamental. No entanto, temos de reconhecera crise e o mal-estar profundo das polticas territoriais, que se confrontam em pri-meiro lugar com dificuldades no reconhecimento da sua legitimidade, quer dizer,

    com a aceitao dos fundamentos e das finalidades da aco pblica na organiza-o dos espaos. Da mesma forma como noutros campos do espao pblico sequestiona a autoridade e legitimidade do Estado, tambm a este nvel se desacre-ditam os recursos da autoridade e os valores de que so depositrios os decisorese os tcnicos de urbanismo, bem como os registos instrumentais das politicas ter-

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    20/352

    | 20 | A CIDADE NA ENCRUZILHADA

    ritoriais, questionando os utenslios, os mtodos e os procedimentos das operaes

    de planeamento e de gesto urbanstica.Tais perturbaes incitam a procurar as causas desse mal-estar de identidade

    das polticas territoriais, a elucidar as causas da sua desregulao e a ensaiar novasformas de pensar e fazer. E se teoricamente todos aceitam que hoje o governo dacidade antes de mais um processo de aco colectiva, fundamental lembrar,como o faz Wachter (1989), que diante da subida dos processos de organizao doterritrio que alimenta o fetichismo da cidade-mercado h uma distino elemen-tar celle qui spare la dmocracie de gestion, fonde sur la ngociation et larecherche de compromis, et la dmocracie politique, qui repose sur des valeurs et des

    principes traduits par la dfinition dobjectifs et de choix politiques que lgitime ou

    sanctionne la rgle du jeu lectoral (p. 27). Por ignorarem demasiado esta distin-o, frequentemente os bem-intecionados decisores e gestores do planeamentoestratgico destruram a autoridade do governo urbano a que tanto apelavam edo do planeamento estratgico uma imagem de volatibilidade ao sabor de con-junturas e de interesses no clarificados.

    Aqui, Joo Seixas muito crtico face aos poderes polticos presos em teias deresistncia por parte de diversos grupos polticos, sindicais e socioprofissionais

    ligados ao status-quo existente, pouco inovadores e impeditivos de uma aco inte-grada e multidisciplinar, tendencialmente inovadora e inclusiva. Considerando ametrpole de Lisboa, o autor refere a especificidade das formas de gesto metro-politana, que exigiria modelos administrativos e de gesto diferentes com mlti-plas escalas geogrficas e multifuncionais. Ora, considera que a gesto prejudi-cada pela fragmentao dos sistemas poltico-decisionais, alimentada em impor-tante medida pela incapacidade de reforma das bases sistmicas poltico-adminis-trativas e, por outro lado, pelo aumento da complexidade das problemticas urba-nas e pela multiplicao das perspectivas, dos agentes e das medidas e acespblicas. Uma fragmentao orgnica, de difcil gesto, provocando disperso derecursos e de energias e eventualmente dificultando as capacidades de construode rumos estratgicos mais integrados.

    A ideia a de que esforos de gesto colaborativa, bem direccionados e estru-turados, com agendas polticas definidas de forma pragmtica e focalizada, permi-tiriam desenvolver abordagens estratgicas consensuais face a espaos metropoli-tanos partilhados, gerando nas comunidades polticas e tcnicas capital social,intelectual e poltico que serviria de fonte para a to necessria reformulao ins-

    titucional e administrativa da cidade e da metrpole.No captulo 7 surge uma anlise aprofundada da governao da cidade deLisboa, identificando-se os seus pontos fortes (oportunidades) e pontos fracos (fra-gilidades). luz das reflexes e enquadramentos realizados nos captulos anterio-res, e no seguimento do processo da Carta Estratgica de Lisboa, da qual Joo

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    21/352

    PREFCIO | 21 |

    Seixas foi um dos comissrios, o autor relembra os sete princpios, e respectivas

    linhas de aco, que na altura desenvolveu e props para Lisboa. Estes princpiose linhas de aco apelam construo sustentada de uma comunidade colaborativae gestionria a nvel da capital do pas. Quatro princpios so de ordem transver-sal, interligando-se com as quatro grandes orientaes sistematizadas na propostaglobal da Carta Estratgica: Estratgia e cumulatividade das polticas pblicas (prin-cpio 1); Clarificao da aco sociopoltica para as escalas e as dimenses de umacidade capital (princpio 2); Mxima proximidade na gesto e na administraolocal (princpio 3); Informao e conhecimento na e com a cidade (princpio 7). Osrestantes trs princpios situam-se de forma mais precisa, para os trs vrtices degovernao urbana, no mbito do quadro triangular anteriormente sugerido: Admi-nistrao eficiente e qualitativa (princpio 4); Governana e conectividade ampla(princpio 5); Participao e pleno envolvimento cvico (princpio 6).

    Finalmente, no ltimo captulo o autor retorna ao tema da compreenso globaldas transformaes das cidades no momento actual, dando nova conta das perple-xidades, paradoxos e desconhecimentos em que esto mergulhados todos os quetrabalham nestas reas. O sistema-cidade, nos mais diversos territrios urbanosdo planeta, encontra-se em acelerada mudana de paradigma histrico. Porm,

    no obstante as suas foras e potencialidades que em importante medida lhe sopotenciadas pela prpria mudana de paradigma , este encontra-se presente-mente perante uma srie de desajustamentos que no lhe tm permitindo propor-cionar uma ampla qualificao e afirmao dos seus elementos urbanos maisessenciais. H que reavaliar, inclusivamente, as prprias noes de desenvolvi-mento ou de progresso como objecto central de realizao colectiva.

    Esta reavaliao conceptual, mas feita tambm no mbito da Carta Estratgicade Lisboa poder legitimar um programa de mudana assente no fomento docapital sociocultural, na modernizao das suas estruturas institucionais e admi-nistrativas e no fomento de um panorama de governana mais inclusivo.

    A importncia do conhecimento sobre a cidade

    Este contributo de Joo Seixas igualmente importante porque em Portugal hmuito pouco conhecimento no apenas sobre as cidades e as suas interaces,nomeadamente a metrpole de Lisboa, mas mais concretamente sobre os processos

    de governao e de gesto urbana. Trata-se de uma rea em larga medida melin-drosa no pas, pois o poder local actual, sendo resultado da revoluo de Abril,tem sido quase sempre intocvel, sensvel em demasia s crticas e propostas dereforma, e os poucos acadmicos que se atrevem a produzir sobre as vicissitudesdas formas de exerccio da democracia local, fazem-no com cautelas e tratos de pol.

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    22/352

    | 22 | A CIDADE NA ENCRUZILHADA

    No entanto, parece urgente que os decision-makers (e os cidados) detenham

    um conhecimento mais aprofundado, e fundamentado em pesquisa emprica, dosfactores que impedem as cidades de conciliar de forma ptima inovao econ-mica, coeso social e sustentabilidade ambiental.

    Escreve Alain Bourdin (2010: 62): Para compreender as dificuldades de umaabordagem complexa da cidade e definir os termos do enigma que isto constitui,convm convencermo-nos de duas coisas: por um lado, a fungibilidade da infor-mao urbana continua sempre fraca; por outro, no domnio do urbanismo, ainterdisciplinaridade quase falhou redondamente.

    De facto, as lgicas subjacentes s formas de organizao territorial sempreinteressaram investigadores e planeadores na medida em que agir sobre a cidadeimplicava um conhecimento dos mecanismos que a promoviam. Na diversidadedas formas de abordagem encontramos paradigmas mais descritivos, mais inter-pretativos ou mais prescritivos, numa relao complexa entre o entender e o inter-vir que faz com que McConnel escreva: One critic of town planning, J. G. Davies,has alleged that there is no objective body of knowledge, allied to a coherent theory,

    which can be used as a basis for rational decision-making. Davies believed plan-

    ning theories to be vague in comparison with the diagnoses and policies advanced

    by a genuine profession which were capable of being falsified or verified. Howevera difficulty in meeting such a challenge is the nature of the family of theories which

    together comprise planning theory (McConnel, 1981: 1211).Para a situao actual, Alain Bourdin (2010) identifica as questes no resolvi-

    das, que apelida de enigmas, sobre as quais o urbanismo ps-crise deveria darresposta e que se referem: i) competitividade e o sucesso econmico e social dascidades, 2) forma como se constitui, coexiste e se torna coesa a sociedadeurbana e 3) ao modo como se processam as transformaes das formas urbanasno capitalismo tardio e 4) necessidade de reforar um conhecimento sobre acidade a partir de um urbanismo baseado em saberes mais pertinentes e integra-dos (Bourdin, 2010: 63 e ss.).

    De facto, a cidade medieval construda pouco a pouco, dia a dia, mas a cidademoderna sofre transformaes aceleradas a ritmos muito elevados e antecipar oseu futuro para ensaiar dar alguma lgica ao seu crescimento e transformao um trabalho sociourbanstico de grande complexidade onde se exigem no apenascapacidade para pensar o futuro mas tambm para agir no presente em funodesse futuro.

    A estes nveis do urbanismo e do governo urbano em geral, fazemos muito massabemos pouco, predominando imediatismos e desencontros entre cientistas, tcni-

    11. Shean McConnell (1981), Theories for planning, Londres: Heinemann.

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    23/352

    PREFCIO | 23 |

    cos e polticos das mais variadas formaes e ideologias. Torna-se bem evidente

    com este livro que a complexidade dos espaos exige mais do que competncia tc-nica, apela sobretudo capacidade de gesto de um sistema de relaes e interac-es sociais que se agregue em torno de um projecto de cidade e de sociedade.

    Perante as transformaes actuais e incapacidade que temos manifestado emgovernar as metrpoles, tem-se a sensao de que precisamos de questionar quasetudo de novo. A crise desactualizou os nossos saberes, tornando-os caducos, o ques pode aumentar a nossa humildade e forarmo-nos a interagir entre cientistas,tcnicos, polticos e cidados para partilhar o pouco que sabemos. As questes cr-ticas que o ps-crise levanta devero constituir-se como material de reflexo parauma convergncia e partilha de interesses entre as diferentes profisses, tutelas epoderes institucionais, gerando saberes cruzados simultaneamente mais aprofun-dados e mais operacionais, como escreve Joo Cabral12.

    O pensamento e a pesquisa urbana so escassos, com poucos apoios e finan-ciamentos. Tal deve-se, entre outras razes, ao fraco impacto da sua produo nodecurso da ltima dcada, mas tambm ao domnio dos idelogos sobre os pensa-dores e cientistas, no passado recente. Joo Seixas considera que h uma abso-luta necessidade de conjugao da teoria com a empiria na, com e para a cidade.

    Muito em particular, na necessidade de novas consolidaes tericas face a estesto confusos tempos, e perante tantos discursos e inflexes de recursos orientadospor propostas e conceitos vagos e ambguos.

    Em sntese, este um livro no apenas destinado aos polticos e tcnicos queactuam sobre as nossas cidades e metrpoles, mas a todos os cidados que se inte-ressam, preocupam e anseiam por elas, e que tentam entender como podem estasser projectos de construo colectiva com base em dinmicas de governaomodernas, eficazes, transparentes e, maxime, mais democrticas.

    Lisboa, Abril de 2012

    12. Prefcio ao livro de Alain Bourdin (2010), op. cit.

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    24/352

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    25/352

    Por que razo questionara governao da cidade

    Captulo 1

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    26/352

    As cidades, como os sonhos, so constru-

    das de desejos e de medos, embora o fio do seu

    discurso seja secreto, as suas regras absurdas,

    as perspectives enganosas, e todas as coisas

    escondam outra.

    Italo Calvino,As Cidades Invisveis

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    27/352

    1.1.Ritmos

    Frase de fortssimo efeito, pronunciada desde o incio deste sculo XXI, a deque, pela primeira vez na histria da humanidade, mais de metade da populaomundial vive em cidades.

    Uma frase j banal, mas que se mantm pertinente. H 200 anos, apenas trsem cada 100 habitantes do planeta viviam em cidades; h 100 anos, 13 em cada100. Hoje, de forma notvel, estamos perante um presente em que cidade eurbano conceitos diferentes e nem sempre paralelos se tornaram espao e

    condio centrais onde se jogam dos maiores desafios, receios e oportunidades dahumanidade e do planeta. Encontramo-nos, ao mesmo tempo, perante um tempoque se nos revela como admiravelmente confuso, mesmo vertiginoso. Estaremos,em muitas dimenses do desenvolvimento, no que se poder denominar como ofim de um ciclo (Bourdin, 2011) e em manifesta busca de novos valores, de novasatitudes, de novas polticas de desenvolvimento e de sustentabilidade.

    Este o resultado de uma evoluo que vem de muito longe. De forma con-tinuamente crescente, num processo iniciado h cerca de 9 mil anos no Cres-cente Frtil e nos vales do Nilo e do Indo, pouco aps a inveno da agricultura,tem sido para as cidades, ou melhor, para a realizao dos sonhos que as cida-des mtica e realisticamente possibilitam, que a populao mundial se tem diri-gido e continua a dirigir1. Este processo, de absoluto impacto para a humanidadee o planeta, exige que o estudemos, que o interpretemos, que sobre ele actue-mos. E hoje mais do que nunca, pelo confronto entre oportunidades e desespe-ros, entre passado e futuro, que as nossas cidades diariamente espelham. Nofundo, pelo que a prpria cidade significa e envolve, em termos de construohumana de construo cultural, social, ambiental, poltica e de todos os man-

    tos difanos e mitos urbanos que ela, objecto e cenrio de desejo e de desassos-sego, transporta.

    1. Veja-se a introduo ao relatrio das Naes Unidas State of World Population 2008 (UNFPA,2008): In 2008, the world reaches an invisible but momentous milestone: for the first time in history,more than half its human population, 3.3 billion people, will be living in urban areas. By 2030, this is

    expected to swell to almost 5 billion. () Many of the new urbanites will be poor. Their future, the

    future of cities in developing countries, the future of humanity itself, all depend very much on decisions

    made now in preparation for this growth. Urbanization the increase in the urban share of total popu-

    lation is inevitable, but it can also be positive. The current concentration of poverty, slum growth and

    social disruption in cities does paint a threatening picture: Yet no country in the industrial age has everachieved significant economic growth without urbanization. Cities concentrate poverty, but they also

    represent the best hope of escaping it. Muitas outras reputadas instituies globais (tais como aOXFAM, a Comisso Europeia, ou a United Nations Framework Convention on Climate Change) tmcolocado de forma crescente as cidades e as questes urbanas no centro das interpretaes e acesculturais e polticas perante os mais diversos desafios das sociedades contemporneas.

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    28/352

    | 28 | A CIDADE NA ENCRUZILHADA

    Se se mostra inquestionvel o processo global de urbanizao da humanidade,

    ser que este veloz e rtmico processo significar necessariamente a consolidaoda condio urbana do ser humano? Hoje, pode ser que mais de metade da popu-lao mundial viva em territrios denominados como reas urbanas; mas, segu-ramente, uma importante parte dela no ter ainda alguns dos mais bsicos direi-tos humanos diramos ento, direitos urbanos que qualquer cidade deveria dis-ponibilizar para todos. Uma parte importante da populao vive hoje em territ-rios semiurbanizados, proto-urbanizados ou ruro-urbanizados, no que pode sermuito diferente de cidade. A prpria noo de cidade, produto humano por exce-lncia, inevitavelmente complexa, no podendo ser de forma alguma simplista,unvoca, fechada.

    Temos, assim, uma primeira e simples questo a colocar: a cidade, o que ?Elogo de seguida: o que cidade, hoje?; e entrando em campos to polticos comofilosficos, o que ser a cidade, amanh? No so questes de algibeira. Soquestes que levantam princpios essenciais para a humanidade e para o planeta.Procuremos assim perceber o que e como se poder reconhecer a urbanidadeou a condio urbana. Considerando que cidade e urbanidade podero serelementos indissociveis. Embora distintos. Que tipo de territrios, que tipo de

    paisagens e de fluxos sensoriais, sociais, econmicos, relacionais, podero sercidade; pelos lugares onde dormimos, assumindo-se assim, eventualmente,como cidade, qualquer rua, qualquer urbanizao, qualquer bairro precrio2;pelos lugares onde vivemos e nos movimentamos quotidianamente, assumindo--se como urbano cada um destes diferentes lugares ou mesmo cada diferenteecr e janela virtual por onde a humanidade se intercruza e move, com consi-derveis nveis de velocidade e de informao, de forma cada vez mais frentica;pela assuno de que qualquer territrio urbanizado, semiurbanizado, proto--urbanizado, ruro-urbanizado, ciberntico-urbanizado, ser cidade; enfim, pelainfluncia planetria das transaces e transmisses econmicas, culturais e ima-gticas originadas nos espaos urbanos e virtuais, assumindo-se assim os seuscontedos como fluxos urbanos?

    J longe das muralhas que separavam a cidade do campo, em quotidianossociais e laborais muito mais volteis do que h apenas uma gerao atrs, numa

    2. Podemos questionar-nos se um bairro afastado dos centros mais clssicos e com diversos proble-mas de qualificao (chamemos-lhe subrbio, bairro precrio, bairro crtico, ou outro nome relativa-mente pejorativo e redutor), mas nele vivendo muito mais gente e, nomeadamente, gente jovem

    do que em muitos bairros reconhecidamente cidade, no poder este bairro ser mais cidade do queestes outros? No recente trabalho da jornalista Fernanda Cncio em torno de uma srie de bairrossociais em Portugal, mostrou-se bem como todos os habitantes respectivos desejavam que o seu bairrofizesse parte da cidade. Ainda, os que mais sentiam o seu bairro como a sua cidade (a Cova da Moura,na Amadora) eram os habitantes do bairro cujas condies de vivncia eram piores, porm constru-das por eles, e assim sentidas mais verdadeiramente como suas (Cncio, 2003).

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    29/352

    CAPTULO 1: POR QUE RAZO QUESTIONAR A GOVERNAO DA CIDADE | 29 |

    crescente incerteza quanto s prprias divises poltico-administrativas, com hiper-

    tecnologias desdobrando janelas de informao e canais de comunicao, bara-lhando (ou aprimorando) identidades, talvez seja bom fazer um certo back tobasics ou melhor, um forward through basics3.

    Como h alguns anos disse Jordi Borja, um dos principais pensadores e obrei-ros das transformaes sucedidas em Barcelona nas ltimas dcadas, a cidade arealizao humana mais complexa alguma vez concebida na histria4. Trs ele-mentos, nesta frase de sntese: histria, humanidade e complexidade. A cidade, efectivamente, seja ela Lisboa ou Nova Iorque, So Paulo ou Xangai, Puebla,Maring ou Bragana, uma poderosa e magnfica construo fsica, social e cultu-ral, habitat rtmico que cada gerao recebe da histria, que pulsa, antes de tudo,como local de relao e de sinergia, nos mais diversos ngulos. Resultando, porconseguinte, em locais de construo e de desconstruo, de confronto e de con-flito, de demonstrao e de cultura, enfim de poder e de poltica.

    O urbanista francs Franois Ascher, notavelmente visionrio e em simultneopragmtico, descreveu a cidade como um conjunto de agrupamentos de gentes ede populaes onde ocorrem trocas da natureza mais diversa: bens produzidos emanufacturados, servios, bens culturais, simblicos, informativos e polticos. Que

    subentende, como tal, processos, normas e estruturas de habitabilidade e de mobi-lidade, assim como uma diviso tcnica, social e espacial da produo e da repro-duo5. Enfim, de todas as definies, talvez as poticas sejam as mais completas.Italo Calvino, nas suas belas Cidades Invisveis, descrevia, atravs dos relatos deMarco Plo ao grande Kublai, como as cidades, como os sonhos, so construdasde desejos e de medos, embora o fio do seu discurso seja secreto, as suas regrasabsurdas, as perspectivas enganosas, e todas as coisas escondam outra.

    Complexa realizao humana, complexa realizao poltica. Ou talvez mesmo cidade e poltica uma e a mesma coisa. Etimologicamente, a palavra cidadeprovm do latim civitas, referindo uma comunidade organizada, usado originaria-mente para descrever as cidades-estado das civilizaes clssicas, nomeadamenteas da Grcia Antiga. Da uma ligao umbilical com a polis, e com a base episte-molgica do termopoltica. Palavras como civil, civilizao, cidado ou cidadaniatm ainda a mesma raiz. Para Plato e para outros pensadores que aprofundarama simbiose entre Estado e cidadania (como Locke, Montesquieu ou Tocqueville), apolis compreende, antes de tudo, o colectivo dos seus cidados. Esta , portanto,uma unidade sociocultural e poltica que tanto condensa como multiplica as virtu-

    des e os defeitos dos homens.

    3 Em traduo literal, de volta ao bsico e em frente, atravs do bsico.4. EmA Cidade Conquistada, Madrid: Ediciones Ariel, 2003.5. EmLes Nouveaux Principes de lUrbanisme, Paris: Editions de lAube, 2001.

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    30/352

    | 30 | A CIDADE NA ENCRUZILHADA

    Plato prosseguia argumentando que os governos da cidade deveriam variar de

    acordo com as decises da sua cidadania aPolis era entendida no tanto pelo seuterritrio, antes pelos seus cidados e suas estruturas relacionais. Ora, se a cidadeso os cidados e suas formas de relacionamento, estes so ento a prpria pol-tica. A cidadania forma-se na vivncia e na aprendizagem em conjunto: o sagazAristteles chamou synoikismus sinergtica e vital condio humana do viverem conjunto. A essncia sob a qual a Polis se afirma: o homem, sendo habitanteda cidade, naturalmente um animal poltico e s atravs da sua participao nacomunidade se torna verdadeiramente humano. plena de simbolismo a consta-tao de que o nome da cidade deAtenas provm deAtenienses os adoradoresda deusaAthena e no o contrrio.

    O nosso maior capital so as cidades, exclamou, nos anos 60 do sculo XX, anotvel economista e urbanista norte-americana Jane Jacobs, por entre os seusvivos apelos densidade e diversidade urbana, valorizao dos territrios doquotidiano, dos ambientes urbanos vivos e dos espaos pblicos socialmenteapropriados6. E por entre as suas duras crticas ao urbanismo e ao economicismofrio e calculista que, embora parte essencial dela, da forma como eram (j naaltura) exercidos a desfiguravam e fragmentavam com considervel aspereza.

    Mas se assim, se o enaltecimento e a qualificao das cidades so vectoresprimeiros do enaltecimento e qualificao humanas e, cada vez mais, da susten-tabilidade do prprio planeta , que razes existiro para que se continue a asso-ciar, de forma muito directa, a cidade e seus espelhos a representaes de carcternegativo, interligando-a com o stress, a poluio, o custo de vida, a solido, asegregao, a violncia? Tantas vezes pinculo da realizao humana, mtica edesejada Tria, fonte primeira das mais variadas utopias, a cidade continua afinala ser vista e realizada como uma Hydra7 catica, imparvel e cruel, consequnciade uma descontrolada, desintegrada e gananciosa evoluo. A verdade que, querqueiramos quer no, grande parte das cidades de hoje (mesmo muitas, senotodas, as denominadas cidades mdias e pequenas) so, em significativa medida,e por efeito de profundas mas desequilibradas foras num cenrio de globalizaomuito parcial, j nem sequer convencionais cidades-metrpole que cresciam e secompreendiam em contnuo (como afirmou o gegrafo Edward Soja8); mas sim

    6. Veja-se, entre outros ttulos da notvel obra de Jacobs, The death and life of great American cities(1961), The economy of cities (1969), ou ainda Cities and the wealth of nations (1985).

    7. A figura mitolgica da Hydra, um ser criado pela deusa Hera, surge no mbito do segundo desafiode Hrcules. O heri do Peloponeso deve aniquilar um monstro que cresce de forma exponencialnuma plancie outrora frtil, espalhando-se em grande velocidade pelo territrio por longos braos emltiplas cabeas. Hrcules acaba por conseguir o seu intento atravs da nica forma possvel de feriro monstro de morte: atingindo-o certeiramente na sua cabea central.8. EmPost-Metropolis, Critical Studies of Cities and Regions, Oxford: Blackwell, 2000.

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    31/352

    CAPTULO 1: POR QUE RAZO QUESTIONAR A GOVERNAO DA CIDADE | 31 |

    metacidades (meta-polis) ou mesmo hipercidades (hiper-polis), estendidas as suas

    influncias por sobre vastas escalas e territrios espacio-relacionais, e por sobre asmais diversas cognies e escalas de quotidianos, de oportunidades, de sofrimen-tos. Em formas bem mais difceis de definir e de governar, muito para alm develhas muralhas, colinas e margens ribeirinhas, de estruturas culturais e sociais debase exclusivamente local ou profissional, enfim, de lgicas de evoluo e degovernao estruturadas por simples determinismos, sectorialismos ou relaesdirectas de causa-efeito.

    O gegrafo catalo Oriol Nel.lo colocou, no incio deste nosso sculo (2001), emtrs grandes ordens de dilemas, as problemticas principais para o desenvolvi-mento urbano: na forma da cidade, entre compacidade e difuso; na sua funciona-lidade, entre complexidade e especializao; na sua coeso social, entre integraoe segregao. O que sucede, realmente, nas nossas cidades hoje? Talvez seja neces-srio colocar tudo em re-observao e em re-interpretao. Peguemos no trfegorodovirio, tema e dilema recorrentemente urbano. A intensidade do trfego rodo-virio nas cidades j no se justifica somente pelos picos pendulares da manh edo fim da tarde, ocorrendo agora s mais variadas (e ainda inesperadas) horas,consequncia de um desenvolvimento metapolitano j distante da velha e simples

    urbanizao e suburbanizao. Nas ltimas trs-quatro dcadas, a cidade-cidadefoi gradualmente passando a cidade-metpole; cresceu, multiplicou-se, desdobrou--se; os seus ncleos centrais passaram a deter muito menos populao residente,mas talvez mais populao passageira, reconfigurando a demografia, a sociedadee a cultura, a prpria poltica. Certamente, e de forma muito significativa, a cidade

    As luzes da urbanidade no planeta Terra [Fonte: NASA Visible Earth, 2010]

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    32/352

    fragmentou-se (Barata Salgueiro, 2001; Pereira, 1999). As suas gentes, labores e

    lazeres foram-se reorganizando espacial e temporalmente, nos tabuleiros da ofertae da procura imobiliria, laboral e cultural, por novos territrios e por novas pr-ticas, tendo-se como tal a mobilidade, sobretudo a mobilidade rodoviria, exacer-bado. Os poderosos efeitos da globalizao financeira e econmica, definitiva-mente activos a partir da dcada de 1990, colocaram grande parte do planeta, eas suas mais diversas cidades, nas pticas globais de crescimento econmico e deproduo urbana, a ritmos particularmente acelerados. Os efeitos das migraes,sobretudo os decorrentes de e para as zonas mais degradadas, quer dos centrosquer das periferias urbanas, so profundos. Surgem novas problemticas deordem econmica e social, entre os riscos da desagregao e da excluso e aspotencialidades da maior flexibilidade, da incluso e da diversidade. Entretanto,nascem parques empresariais e tecnolgicos, retail parks, superfcies comerciaiscom centenas de lojas, reconfigurando e relocalizando as estruturas econmicase os hbitos mercantis das urbes. Levantam-se cruciais desafios nos mbitos dasustentabilidade, face ao ritmo dos elevados consumos de solo e de energia norenovvel, e aos prprios padres de rea impermeabilizada e das dinmicas demobilidade. E instalam-se dilemas de ordem cultural e identitria, sob paisagens

    mais banalizadas e trajectrias de vida mais individualizantes, mas tambmperante novas perspectivas de vivncia, de interveno social e de expresso dacriatividade confrontando-nos com a reconstruo de parte das nossas prpriascomponentes cognitivas e culturais, das identidades espaciotemporais, dos quoti-dianos e dos modos de vida (Costa, 1999; Guerra, 2003), maxime com o nossoprprio sentido do poltico e da cidadania (Cabral, 2000).

    A fora e o impacto das transformaes nos mais variados tabuleiros fazem comque as caractersticas destas novssimas geografias nos questionem com particularveemncia. Na verdade, o que se tem passado e ainda o que no se tem passado para tanto acontecer desta forma? So estas dinmicas decorrentes, como algunsparecem dizer, de uma certa inevitabilidade histrica, acentuada pelas compressesdo espao-tempo e pelas novas estruturas e fluxos da globalizao e da flexibili-zao econmica e cultural? Ou, como outros realam, mais um resultado, noto simptico, de cadeias de valorizao financeira (e, em alguns casos, tambmcultural) em crescente espiral esquizofrnica de rentabilidades e notabilidades aqualquer custo, aliadas a estruturas de poder poltico que ou se tornaram cmpli-ces e de valorizao recproca, ou no conseguem (ou no sabem como) trilhar e

    estabelecer estratgias e caminhos pr-activos para as suas cidades, tomando cons-cincia e responsabilidade perante os desafios a responder e as potencialidades aaproveitar? Em Portugal, no obstante a paulatina consolidao (particularmente apartir do incio da dcada de 1990) de uma srie de estruturas e de instrumentosde racionalizao e de planeamento na gesto e no ordenamento do territrio, e de

    | 32 | A CIDADE NA ENCRUZILHADA

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    33/352

    um crescendo de ateno socioprofissional e cientfica e mesmo meditica paraas dimenses urbanas e urbansticas, a verdade que se continua a assistir a umaconsidervel organicidade nos padres de transformao socioespacial, afinalainda muito debilmente estruturados em estratgias e em projectos de mbito maisintegral e de compromisso mais colectivo (Ferro, 2003). Um factor que, em con-junto com as concluses de diagnsticos de base cientfica que felizmente cada vezmais se vo desenvolvendo e aprofundando, nos leva a inclinar-nos, decidida-mente, para o lado dos que consideram necessrio o desenvolvimento de novostipos de interpretaes e, concomitantemente, de novas formas de aco e de regu-lao sobre e com a cidade contempornea. Diagnsticos que tm mostrado comoos custos, para a sociedade e para o planeta, das dinmicas de transformao e daactividade urbana poderiam ser bem menores do que os que efectivamente tmsido, assim como o aproveitamento das potencialidades inerentes ao que a cidade e traz poderia estar a ser de maior grau9.

    De qualquer modo, a evoluo urbana das ltimas dcadas, no obstante os

    elevadssimos desmandos ecolgico-sociais, at h bem pouco tempo encontrar-

    CAPTULO 1: POR QUE RAZO QUESTIONAR A GOVERNAO DA CIDADE | 33 |

    [Foto esq.]. Utopia Urbana de princpio do sculo XX [La Ville Future. Harvey Corbett, Montreal, 1913]; [Foto dir.].Aguardando o barco para Cacilhas [Lisboa, 2008]

    9. Existem hoje mltiplos e excelentes trabalhos de anlise e de diagnstico em torno da evoluo edo estado-da-arte das cidades e das metrpoles contemporneas, nas mais variadas reas. Veja-se, attulo de exemplo, Cheshire e Hay (1989), Moncls (1996), Ascher (1998), Rueda (2002).

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    34/352

    -se-ia sustentada numa conjugao de utopias sociais e polticas de largo espec-

    tro e aparentemente simples. At, talvez, ecloso da grande crise financeira eeconmica de 2008, que ter mostrado finalmente (mas ainda no completa-mente) algumas das maiores fragilidades em que assentaram os mais recentesmodelos de desenvolvimento, e que ter lanado, definitivamente, a viragem deparadigma. Utopias sociais e polticas aparentemente simples, embora resultadotambm elas de complexas estruturas socioculturais, relacionais e de poder nomeadamente as utopias socialistas e capitalistas. Ambas estas utopias desfei-tas, uma h j duas dcadas por imploso isotpica em mnimos denominadorescomuns, quer polticos quer econmicos, outra em presente turbo-desconstruodiante dos nossos olhos, pela profunda financiarizao e hipotequizao da pr-pria vida urbana, pelos decorrentes aggiornamentos financeiros permitidos peloscrculos polticos, pelas derivas neoliberais (como comummente se lhes referem)muito pouco transparentes e com considerveis excluses nas hipotticas entra-das nos mercados, socialmente excludentes e em clara deriva de potenciais apro-fundamentos democrticos. Resultando numa colonizao de muitas cidades porum capitalismo sem grande tica pblica, priorizando os ganhos financeiros aqualquer mais-valia colectiva, de habitat e de sustentabilidade futura, subjugando

    as famlias a um admirvel mundo novo consumista e financiarizado, banaliza-dor de desejos e de hipotecas. Convivendo, em simultneo, com um tecnicismourbanstico corporativista, profundamente funcionalista, distante do cidado esem grande sentido humanista, e com a abdicao de geraes polticas inteiras,enredadas em esquizofrenias de interesses e de mediatismos, menorizando-sepensamento social e inteligncia estratgica.

    Porm, a verdade que, no obstante tamanhos enviesamentos e crescentesquestionamentos a verdade que a cidade permanece, acentua-se mesmo, comoespao primordial de vivncias, de experimentaes, de direitos e de oportunidades.De renovadas esperanas. Tem sido nas cidades e nos seus mais diversos espaosque se tm desenvolvido das mais relevantes experimentaes culturais e polticas,num leque de oportunidades que vai desde novas culturas de mobilidade, de inclu-so social ou de empreendedorismo econmico a novas formas de expresso cvicae ao posicionamento de princpios, processos e instrumentos que podero, mesmo,refundar a prpria democracia.

    1.2. ParadigmasNum dos seus textos sobre prospectiva estratgica e modelos de cenarizao, o

    socilogo Michel Godet escreveu: Os homens tm a memria curta; menosprezamo tempo longo e os seus ensinamentos. Cada gerao tem a impresso de viver uma

    | 34 | A CIDADE NA ENCRUZILHADA

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    35/352

    poca de mutaes sem precedentes. Esta ideia natural: esta poca certamente

    excepcional para cada um de ns, pois a nica que viveremos (1997, p. 47). Umprudente aviso, este, face aos potenciais excessos de egocentrismo histrico queassaltam as mais diversas pocas e, de forma por demais evidente, a nossa.

    No prescindindo deste aviso, nestes tempos onde todos dizem que literalmentetudo parece estar a terminar e a comear, procuremos posicionar-nos e interpretara actual evoluo urbana, e seus impactos. Sabendo que as cidades, como capitalmaior de sociedades, economias e culturas, mesmo de civilizaes inteiras, soperspectiva que tem variado ao longo da histria. Nos seus melhores perodos,sumrios e egpcios, helnicos e cartagineses e, de forma notvel, o imprioromano, foram civilizaes que colocaram as suas cidades nos topos das suas orga-nizaes e hierarquias polticas, econmicas e simblicas. Construindo, nelas ecom elas, muitas das bases civilizacionais em que hoje nos sustentamos. Por voltado ano zero da era crist, Roma tinha j mais de 600 mil habitantes, centro de umarede que em breve comportaria mais de 300 cidades de considervel importncia.No assim com os diversos povos brbaros (que talvez assim tenham sido denomi-nados por falta de cidades notveis) que, no obstante, acabaram por suceder aosescombros de Roma, cruamente demonstrando que as culturas urbanas tambm

    podem cair. Notvel cultura urbana e de razovel tolerncia, no por acaso deti-nham os rabes, que, justamente, reintroduziram na Europa muitos dos seus prin-cpios e valores clssicos. Por volta do ano mil, a maior cidade do mundo eraCrdoba, chegando a cerca de 450 mil habitantes. Roma, sombra do que fora, tinhana altura 50 mil almas. Em Kaifeng, na China, entre uma vasta rede administrativae comercial do outro lado da Eursia, viviam cerca de 400 mil. Com a lenta com-busto urbana da Idade Mdia, a primeira idade moderna vai-se instalando naEuropa a pouco e pouco, a partir da consolidao das redes mercantis e, conse-quentemente, do Renascimento e do boom econmico e sociocultural aberto pelasnovas geografias espaciais e mentais. Os focos urbanos de poder e de conheci-mento vo-se rearticulando, alicerando-se diversos hubs mercantis numa evoluotanto movida pelas crescentes dinmicas econmicas e culturais como condicio-nada pelas contra-reformas. So estes os primeiros tempos modernos para as cida-des, porque comea a singrar nelas um pensamento de projecto, racionalista e dife-renciador, face justamente aos diferentes grupos e indivduos, em busca de auto-nomia dentro da prpria cidade. Justamente, diversas utopias urbanas e sociaiscomeam, nestes tempos, a ser propostas.

    Pouco mais tarde foram-se barrocamente derrubando muralhas e conceitos pr--modernos, assim se preparando o terreno para a era industrial, que se expandiualicerada pela energia proveniente do vapor e do positivismo liberal. Uma era queconsolidaria o Estado-Nao e o sistema capitalista, que se foram sofisticando aoponto de ambos quase se desmaterializarem das prprias cidades (leia-se, das cons-

    CAPTULO 1: POR QUE RAZO QUESTIONAR A GOVERNAO DA CIDADE | 35 |

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    36/352

    trues humanas), retirando-lhes mais ainda do poder que lhes restava do pr-abso-lutismo. Os exponenciais aumentos de produtividade via novas energias nomea-damente o petrleo nos transportes (primeiro ferrovirios, depois rodovirios), naagricultura, no comrcio, nas novas indstrias e suas tecnologias, e a extraordin-ria emigrao (ou xodo, palavra messinica) de uma parte substancial da popula-o rural, ir alterar definitiva e radicalmente a cidade, as suas densidades e os seusritmos. A era industrial consolida-se, no sem duras batalhas, ao longo dos sculosXIX e XX e, face s dimenses da cidade, dos seus projectos e das suas ideias, ficarprofundamente marcada, nas razes e nas aces, por uma trilogia de paradigmasque Ascher designou por fordiano-keynesiano-corbusiana10:

    a) Pela afirmao do pensamento cientfico-racionalista e econmico-positi-vista, construindo novas estruturas cientficas, sociais, culturais e mesmoespirituais, e como tal funcionalizando e racionalizando a vida urbana, dotrabalho e das fbricas sustentadas em grandes economias de escala e naproduo e consumo em massa aos ritmos pendulares baseados no autom-vel e por territrios cada vez mais vastos e metropolizados;

    b) Pela consolidao dos Estado-nao, como garantes e definidores da poltica,da estabilidade e da providncia, reconstruindo-se a prpria vida pblicaem torno das enormes estruturas administrativas e das estratgias, activida-des e (possveis) eficincias do Estado;

    c) Por novas vises de planeamento e de projecto sobre a cidade, baseadas emconcepes morfolgicas e urbansticas sustentadas no desenho, na forma e na

    10. Veja-se emMetapolis Acerca do Futuro da Cidade (1998), Oeiras: Celta Editora.

    | 36 | A CIDADE NA ENCRUZILHADA

    [Foto esq.]. Plano de Reconstruo da Baixa de Lisboa [Museu da Cidade de Lisboa, 1758]; [Foto dir.]. Plano deConstruo da Alta de Lisboa [Cmara Municipal de Lisboa, 1999]

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    37/352

    separao de funes urbanas; bem como em estveis estruturas de agentes

    (dos urbanistas banca e s construturas, do poder local s cooperativas e aopoder central) e das respectivas cadeias de produo imobiliria e urbanstica.

    O mundo parecia razoavelmente estvel e mesmo expectvel, muito especial-mente aps as duas Grandes Guerras. Pelo menos o chamado mundo ocidental.Nos modelos de desenvolvimento, nos ritmos de crescimento econmico, na pro-duo urbana e suburbana, nos quotidianos pendulares entre casa e trabalho, nasexpectativas individuais e familiares, na vida pblica e poltica, no prprio e friobascular entre os principais blocos geoestratgicos do planeta. As bases e fontesdos principais sistemas mantinham-se em plena convico e produo dos poosde crude s paridades financeiras, dos milhes de trabalhadores aos milhes deconsumidores. A urbanizao, ou a produo urbana em contnua extenso e fosseonde fosse, tomava plena conta da cidade e do prprio pensamento em torno dela.Da a umas poucas dcadas, a factura de se fazer suposta cidade em qualquerlado e de qualquer forma factura financeira, ambiental, energtica, social e eco-nmica viria, tremendamente cara. De qualquer modo, a mudana a pouco-e--pouco fermentaria de novo, tanto por novas descobertas cientficas e tecnolgicas

    que entravam adentro da vida de todos, como por novos desejos sociais e indivi-duais de emancipao e de liberdade: de povos inteiros em frica, a milhes depobres na Amrica Latina e na sia, e a outros tantos jovens ocidentais, todos embusca de novos horizontes, de novos direitos, de uma nova liberdade.

    Novos horizontes, novos direitos e novas liberdades, em importante medida nascidades. Ou a praia, por sob a calada11. Alguns pensadores vinham avisando.Desde pelo menos as dcadas de 1940 e 1950 que Henri Lefebvre, filsofo francsde notvel clarividncia, comeara a descrever as profundas mutaes que emer-giam. Mesmo em escritos anteriores aos seus famosos livros O direito cidade,Arevoluo urbana ouA produo do espao, Lefebvre vinha crescentemente classi-ficando os novos mundos que a vinham e seus dilemas vitais como mundosurbanos. Atente-se: mundos urbanos, j no (tanto) mundos industriais. Tambmnos anos 1960, a urbanista Franoise Choay (1965) comeara a alertar para asimportantes diferenas entre cidade (espaos e fluxos de habitat e de relao) eurbano (cultura, identidade, condio). Emerge assim, paulatinamente, a partir dosanos 1960, um movimento de transformao que transmite novas dimenses sociedade urbana e condio urbana, elas prprias os motores e leit motiv das

    prprias transformaes. Uma autntica revoluo urbana, tese que o antroplogoGordon Childe propusera para definir os momentos de particular efervescncia na

    CAPTULO 1: POR QUE RAZO QUESTIONAR A GOVERNAO DA CIDADE | 37 |

    11. Sous les pavs, la plage, um dos slogans que ficou como smbolo da revolta de Maio de 1968em Paris.

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    38/352

    evoluo da humanidade desde pelo menos o Neoltico e que, ao longo das maisrecentes dcadas, alguns dos mais reconhecidos nomes da geografia, da sociologiae do urbanismo como Jane Jacobs (idem), Manuel Castells (1972), David Harvey(1973), Edward Soja (2000) e Franois Ascher (2003) tm aprofundado.

    Assiste-se assim a mudanas de largo espectro que, muito especialmente a

    partir das dcadas de 1980 e 1990, decorrem a uma enorme velocidade e face abertura socioespacial que a globalizao tecnolgica e sociocultural permite comuma absoluta abrangncia geogrfica.

    Mudanas de escala materializadas na geografia, claramente transmutandoas economias (ou os sistemas de produo, de trabalho, de produtividade e dedistribuio) e as sociedades (ou as relaes e interaces sociais). O famososocilogo Alain Touraine (2005) reconhece o surgimento de um novo paradigmade produo econmica e de representao social e pessoal, substituindo o para-digma industrial de base desenvolvimentista e moldando novas paisagens

    desde logo, fragmentando as antigas num ambiente globalizado e num capita-lismo tardio que, ao ver muito diminuda a frico das suas localizaes fsicas(incluindo as familiares e laborais), se move agora por formas essencialmenteinformacionais e culturais. Onde, no obstante a desmaterializao de muitascertezas e paisagens anteriores, o espao, e nomeadamente o espao urbano,parece contar de forma cada vez mais significante. Em primeiro lugar porqueestas mudanas de paradigma, muito colocadas no mbito da acumulao flex-vel de capitais incluindo os capitais de informao e de conhecimento

    (Massey, 1984; Krugman, 1997) , tm uma vital projeco geogrfica nos seusefeitos e nos seus impactos (Jameson, 1984; Harvey, 1990; Soja, 1999). Emsegundo lugar, porque precisamente nas cidades, locais por excelncia da rela-o e da reproduo econmica e socioespacial, que se assiste s maioresexpresses e convulses socioeconmicas da decorrentes, alterando-lhes as

    | 38 | A CIDADE NA ENCRUZILHADA

    [Foto esq.]. Bairro de Alvalade em Lisboa [Antnio Passaporte, anos 1950]; [Foto dir.]. Bairro da Reboleira na Amadora[Barra, Skyscraper City, anos 2000]

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    39/352

    suas estruturas globais e parcelares, bem como tanto os seus espaos de colec-

    tivo como os de individualidade.Como nos lembra a crtica histrica, nas pocas de grandes mudanas os

    medos e as desorientaes so sempre evidentes. Mas, ao mesmo tempo, novase magnficas oportunidades de desenvolvimento, de incluso e justia, de qua-lidade de vida podem e vo-se formando e expandindo. As mquinas a vaporde hoje, ou as variveis definidoras das mais-valias que agora realmente maiscontam mais-valias econmicas, mas tambm relacionais, sociais e ambientais,em crescente capacidade de valorao efectiva , j no se encontram tanto nosespaos e nas lgicas de produo e de regulao massificadas e generalistas,antes esto bem mais, agora:

    a) Nos principais locais das redes de gesto e de intermediao dos capitais eco-nmico-financeiros e da concomitante capacidade de deciso na estrutura-o das cadeias de valor;

    b) Nos locais onde vivem e trabalham os agentes formadores das mais-valiasfinanceiras, dos padres de cultura e de conhecimento, das narrativas cen-trais de imagtica e de consumo;

    c) Nos locais mais nodulares das estruturas de mobilidade globais e regionais;d) Nas sociedades urbanas com maior capacidade de expresso poltico-social

    e cvica.

    At recentemente as metro-polis tinham-se expandido de forma consideravel-mente constante por considerveis ritmos de crescimento econmico e demogr-fico e, mais recentemente, por suporte em crditos de consumo, crditos hipotec-rios e em baixos preos da energia na verdade, ainda uma outra forma de cr-dito12. Entretanto, a fragmentao das metro-polis muito especialmente nas decultura de planeamento mais dbil foi produzindo uma meta-polis com urbani-zaes e paisagens mais descontinuadas, quer nos espaos geogrficos quer nostempos humanos. Mas tambm uma hiper-polis onde, por mudanas tecnocomu-nicacionais e por mutaes sociais ainda pouco estudadas e interpretadas, tais des-continuidades vo dando lugar a um novo rearranjo das actividades urbanas e auma crescente sobreposio das suas Windows, sejam estas reais ou virtuais, quese transmutam em perodos cada vez mais curtos, numa conjugao de fractali-dade com velocidade, e que, cognitivamente, vem alterando de forma importanteas nossas percepes, o nosso prprio superego, tanto nos entusiasmando como

    nos inquietando. Seguramente nos desassossegando. Uma modularidade aparen-temente infinita na diviso do trabalho, das pessoas, dos bens e da informao,

    12. Para uma viso global das grandes questes de mobilidade na cidade ps-industrial, sugerem-seos textos de Banister (2005) e de Hanson e Guiliano (2004).

    CAPTULO 1: POR QUE RAZO QUESTIONAR A GOVERNAO DA CIDADE | 39 |

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    40/352

    enfim da economia, das redes sociais e da prpria vida. Tornando-se mais difcil,mas justamente mais relevante, falar em culturas ou mesmo em geraes. Ouat mesmo em comunidade: perante os canais abertos de absoluta caleidoscopiauniversal no telemvel e no computador de cada indivduo, reprogramando redesrelacionais e vidas inteiras (embora, no poucas vezes, uma reprogramao tam-bm ela virtual, originando novssimos questionamentos em torno da interaco

    humana), Touraine perguntava-se: se dantes era a comunidade como ente colec-tivo que moldava a cidadania, ser agora a cidadania como ente individual que molda a comunidade?

    1.3. Descompassos

    Muitas cidades tm procurado tomar o leme das suas prprias mutaes. Seo lastro actual pelo menos, o ocidental o de umas polis (regio, metro e hiperpolis) inseridas em diferentes redes de diversas escalas, com considervel bem--estar e variveis nveis de incluso, suportadas num vasto mar de crdito hipo-tecrio, do consumo de combustveis fsseis, no renovveis e bastante poluen-tes, e numa claramente excessiva pegada ambiental e social, o vento o da fortemutao de paradigmas, abrindo mil janelas de oportunidades mas tambmoutras tantas de incertezas, e uma ampla ansiedade e considervel desorientao diferente de incapacidade, h que realar face ao que reflectir, que planear e

    como actuar.Sobre planeamento, note-se como o urbanista Franois Ascher intitulava umdos seus livros: Estes acontecimentos ultrapassam-nos, finjamos que somos osorganizadores (2001). A desorientao vigente , tambm diria mesmo, sobre-tudo resultado das polticas econmicas que nas ltimas trs dcadas tm sobre-

    | 40 | A CIDADE NA ENCRUZILHADA

    [Foto esq.]. Paisagem Rodo-Urbana em Lisboa [2008]; [Foto dir.]. Maquetizaes para o Parque das Naes em Lisboa[Parque Expo, 1999]

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    41/352

    posto modelos, agentes e expectativas de rentabilidade financeira acima de outras

    possveis ideologias, polticas e estratgias polticas e socioeconmicas (Harvey,2001 e 2010; Jessop, 1994; Brenner, 2004). Desde os governos de Thatcher no ReinoUnido e de Reagan nos EUA, assim como de diversas outras administraes (dasescalas globais s escalas locais) com estratgias ou dogmatismos poltico-econ-micos similares, que os efeitos de investimentos desregrados na produo urbans-tica e seus derivados esto na origem de parte significativa da crise econmica efinanceira mundial com que hoje nos confrontamos.

    Deu-se assim igualmente, neste perodo, uma profunda revoluo urbananas cadeias de valor econmico e financeiro ligadas urbanizao e aos seusmais diversos agentes, produtos e processos e resultados. Como muitos crticostm dito, as cidades so centrais para a globalizao neoliberal (Massey, 2007: 9),pela crescente concentrao de consumos e dinmicas de mercado. Uma concen-trao que, com poucas regras e atitudes polticas, tem permitido hiperbolizar ren-tabilidades financeiras e centripetar relaes de poder poltico e econmico. Comoo prprio Lefebvre j referira em 1970, a produo urbana definiria, e crescente-mente controlaria, o prprio sistema capitalista.

    Estas inquietaes so efeito da colonizao da prpria produo urbana por

    um sistema poltico-econmico gerido por comunidades de poder relativamenterestritas (em aparente anttese com a difuso dos consumos, da cultura e da pr-pria cidadania) e por um poder financeiro e econmico que se tem paulatinamentereconcentrado por efeito de estratgias de maximizao das suas principais cadeiasde valor acrescentado. Para o caso das cidades, muito notavelmente, as cadeias devalor do imobilirio, da distribuio e da construo de infra-estruturas pesadas.Estratgias defendidas em nome do fazer cidade, seja em extenso (at agora,preferencialmente) seja em reconcentrao (incluindo algumas das novas estrat-gias de reabilitao urbana), mas que no tm necessariamente conexo com asnecessidades das cidades como entes colectivos e sociais, e ainda menos com assuas bases globais de sustentabilidade e de evoluo ecolgica.

    E mesmo que estas perspectivas de produo urbana pseudo-liberal (talvezprefira chamar-lhe assim) estejam crescentemente a incluir, por evidente reco-nhecimento social e como tal por necessidade de manuteno de mercado ,alguns dos princpios de sustentabilidade ecolgica e energtica, como os edif-cios auto-sustentveis, os bairros ecolgicos ou os veculos elctricos, estamosaqui ainda muito longe de uma mutao de paradigma, em escala global, na eco-

    logia poltica, social e econmica das cadeias de valor da produo urbana. Nonos podemos surpreender, de todo, com o facto de parte significativa destascadeias assim como os grandes eventos a elas ligados, como os Jogos Olmpi-cos ou as copas do mundo se terem paulatinamente relocalizado nos pasesemergentes (parte significativa da sia, no Dubai, na China, no Brasil, na

    CAPTULO 1: POR QUE RAZO QUESTIONAR A GOVERNAO DA CIDADE | 41 |

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    42/352

    Rssia), por estes acumularem hoje o que o Ocidente concentrou durante tantotempo: necessidades de habitat, de consumo e de poder.

    Encontramo-nos assim perante um enorme paradoxo. Como espao de encon-tro e de construo, mas tambm de desencontro e de desconstruo, o fascnio

    que a cidade (como observou Vtor Matias Ferreira13) nos provoca envolve hojediversos espelhos, muitas luzes e outras tantas sombras, e um imenso mar demedos e de possibilidades.

    Estas questes urbanas obrigam a um profundo repensar de questes polticas.Questes polticas de largo espectro, estendendo-se estas ao prprio sentido dapoltica e da democracia. Hoje inquestionvel o facto de as cidades deterem umpapel crescentemente central no desenvolvimento, espaos motores da sociedade,da economia, do conhecimento e da cultura, estando j tambm assumida, pela

    magnanimidade da revoluo urbana a que hoje assistimos, a constatao de queser perante a condio urbana que se jogar o nosso futuro comum.Que poltica ento, na nova polis do mundo glocal, consideravelmente trans-

    figurada face s suas paisagens e morfologias clssicas, com estruturas de governodivididas entre aces de afirmao competitiva e dilemas de reforma interna, comnovos alinhamentos de cognio cultural e de mobilizao da sociedade? Quenovos sentidos para os projectos urbanos e como suportar da melhor forma os pro-jectos para a cidade? Ou, salientando a afirmao da sociedade urbana como entecolectivo (Indovina, 1991; Nel.lo, 2001), que formas de construir projectos colecti-

    vos para a cidade? Conceito bem importante, este de projecto colectivo. Na pres-pectiva de que este se desenvolva no tanto num sentido de alguma nova utopiade base racionalista e fechada pois estas, na larga maioria dos casos, deram ori-

    | 42 | A CIDADE NA ENCRUZILHADA

    Paisagens Urbanas, Paisagens Humanas [Lisboa, 2010 e 2006]

    13. O Fascnio da Cidade Memria e Projecto da Humanidade (2004), Lisboa: Edies Ler Devagar.

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    43/352

    gem a profundas distopias , mas num sentido metablico e de constante constru-

    o social (sempre inacabada, portanto), exigindo culturas e estruturas democrti-cas e comunicacionais. Um sentido poltico-metablico a que o grande gegrafoDavid Harvey chamou utopia dialctica (2008 e 2009).

    Neste sentido, e continuando estes primeiros questionamentos: Que novas estra-tgias adoptar para o aprofundamento das estruturas democrticas e das cidadanias?Para as novas realidades, sociedades, dilemas, condies e necessidades urbanas?Em que direces, como e com quem? Com que recursos, com que bases concep-tuais, cientficas e metodolgicas, com que instrumentos, competncias e capacida-des? E finalmente, perante tudo isso, que novo papel e posicionamento da cidadenos prprios quadros globais da poltica, da geo-estratgia e do desenvolvimento?

    Estes questionamentos direccionam-nos para a necessidade de observar, deforma crtica, as estruturas, dinmicas e culturas de governabilidade urbana actual-mente existentes. Encontram-se estas bem adaptadas s novas realidades e neces-sidades, ou existem desajustamentos considerveis que fazem com que as visese as aces poltico-administrativas se expressem numa ordem limitada, fragmen-tada, ou mesmo demitida? E, em simultneo, ser que a prpria sociedade seencontra atenta s efectivas transformaes em curso, ou estar ainda pouco cons-

    ciente da relevncia das mudanas urbanas e da necessidade de reconfigurar algu-mas percepes culturais e estruturas sociopolticas em torno das suas cidades?Para as cidades portuguesas, neste nosso ponto de partida, parecemos inclinar-nosmais para a segunda hiptese, ao percebermos nelas uma estratificao poltico--institucional ampla mas consideravelmente fragmentada nos seus principais espa-os de poder e de responsabilidade. Muito particularmente, ao visualizarmos aindapoucos sinais significativos de uma pr-actividade e de um sentido de mudana deatitude nos sistemas poltico, institucional e administrativo de gesto do territrio,num quadro geral onde a cidade real parece continuar a fazer o seu caminho deforma significativamente separada da cidade poltica. Estando este caminho a sertrilhado de forma demasiado desconexa, devido s lgicas e culturas prprias, sdeficincias e estados-da-arte existentes do lado da cidade poltica.

    Os novos tempos permitem novssimas oportunidades para todas as polis dasmais diferentes escalas, da mais global mais local. E o seu aproveitamentodepender, sobretudo, da capacidade de cada cidade, de cada comunidade, emas perceber e as trabalhar. E em as perceber e trabalhar de forma mais colectivae mais cooperante. Bem mais do que tamanho e massificao, o que cada vez

    mais conta inteligncia sobretudo, inteligncia colectiva e comunitria. Numcenrio de globalizao quase plena, o sucesso de cada polis depender, afinale sobretudo, de si prpria.

    Novos quotidianos e mobilidades trazem novas necessidades incluindo pol-ticas. Mas, por opo, submisso ou demisso, a poltica urbana tem mostrado

    CAPTULO 1: POR QUE RAZO QUESTIONAR A GOVERNAO DA CIDADE | 43 |

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    44/352

    estar com vrias e crescentes excepes de que falaremos ao longo deste livro

    consideravelmente desorientada e desfasada, abrindo constantes brechas, tendomltiplas falhas. Uma organicidade que alguns vm como positiva, prpria de umagovernana inerentemente dinmica mas talvez no to completa como umagovernao pensada e inter-relacionada nas diferentes escalas, e antes de tudo sus-tentada por princpios de democracia e de sustentabilidade. Os desfasamentos dapoltica face polis mostram-se hoje muito evidentes, nomeadamente ao nvel dasgrandes escalas das urbes (as metro ou meta escalas, as escalas dos sistemas urba-nos); ao nvel das pequenas escalas (do verdadeiramente local, prximo e quoti-diano); e ainda ao nvel da capacidade de inovao, de flexibilidade e de inclusocvica e ecolgica nas formas de pensar e de exercer polticas, economias e cida-danias para e com a cidade. Ser necessrio perceber a cidade poltica, tambmela, como ser metablico e de forma alguma rgido ou absolutamente racionali-zado. O carcter de volatilidade e de incerteza dos novos tempos urbanos obrigaa que os direitos de cada cidado estejam no somente ligados a instituies cls-sicas como a nacionalidade e o contrato de trabalho, mas cada vez mais ligados aohabitat e s formas de mobilidade dos indivduos.

    Existem importantes razes para este presente confuso estado-da-arte,

    imputveis s esferas do conhecimento. A cidade moderna tem sido, em grandemedida, urbanisticamente gerida por perspectivas morfofuncionais (Font, 2003;Ferro, idem e 2004), sob pticas consolidadas ao longo dos sculos XIX e XX,estruturadas cientfica e tecnicamente no decurso da afirmao dos paradigmasde desenvolvimento econmico-social de base fordista, e que inclusivamentesustentaram alguns dos principais campos de responsabilidade e de aco dopoder local democrtico. Porm, estas perspectivas parecem hoje excessivamenteunvocas, podendo elas mesmas estar afinal perante sistmicas globais e locaisde ordem j muito distinta a retirar cidade uma parte importante da sua com-pacidade, complexidade e coeso. Na verdade, as estruturas poltico-institucio-nais encontram-se tambm elas pautadas por lgicas e sistmicas de base for-dista para o caso portugus, as Cmaras Municipais, as Juntas de Freguesia, oEstado central e seus mltiplos rgos com tutela influente nas cidades. As estru-turas de governo e de administrao urbana, muito particularmente as degoverno local/municipal, tantas vezes reconhecidas um justo reconhecimento,actualmente em grave processo de desvalorizao como um dos maiores suces-sos do Portugal democrtico, mostram estar hoje em srio risco de incapacidade

    e mesmo de descrdito. So diversas as razes deste risco, mas poder-se-o des-tacar trs. Primeiro, por uma parte considervel do poder local se encontrar apri-sionado por aparelhos partidrios com estratgias laterais e parcelares muitasvezes distintas das que poderiam prosseguir objectivos mais colectivos. Segundo,por as autarquias enfrentarem estruturas e competncias fiscais e financeiras

    | 44 | A CIDADE NA ENCRUZILHADA

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    45/352

    muito limitadas face s suas responsabilidades de governao territorial

    herana de uma cultura e estrutura poltico-administrativa do Estado portugusque as coloca num dos nveis locais/regionais com menor autonomia e capaci-dade de aco de toda a Europa. Terceiro, suportadas que esto por quadros degesto e de regulao to funcionalistas e burocrticos como parciais nas suasenvolvncia e eficincia, originando em si mesmo uma fragmentao de autono-mias e de responsabilidades pblicas, um dbil sentido de estratgia e de planea-mento pr-activo, e exerccios de governao que acabam por ser baseadossobretudo no fomento de projectos parcelares com frgil enquadramento global(Portas, Domingues e Cabral, 2011). Contribuindo estes factores, por sua vez,para uma paisagem sociocultural onde so manifestas as dificuldades ou mesmoo desinteresse no desenvolvimento de culturas activas de cooperao e de sub-sidiariedade, e a considervel distncia face aos cidados e s suas formas deexpresso cvica. Sendo particularmente sentida a falta de espaos e de proces-sos de participao dos cidados na vida da sua cidade, que se cingem quaseexclusivamente aos processos eleitorais que decorrem de quatro em quatro anos alturas em que se debate a cidade, especialmente nos media, para no diaseguinte s eleies tudo parecer voltar aos mesmos ritmos. E quando, paralela-

    mente, os quadros culturais e a prpria expresso da cidadania, em Portugal,parecem tambm eles estar a configurar novas formas e novos processos deconsciencializao, de responsabilidade e de mobilizao.

    CAPTULO 1: POR QUE RAZO QUESTIONAR A GOVERNAO DA CIDADE | 45 |

    A cidade como sistema onde se jogam direitos, princpios, polticas e estratgias

    A cidade uma questo poltica que exige solues polticas

    O direito cidade

    Estratgiae aco

    colectiva

    HABITATS

    MOBILIDADES

    CAPACITAES

    CONSUMOS

    CONHECIMENTOS

    CIDADANIAS

    EQUIDADE

  • 5/23/2018 SEIXAS, Jo o - A cidade na encruzilhada.pdf

    46/352

    Tm-se sucedido dinmicas de reaco e de reconfigurao das estruturas e

    culturas de aco poltica e governativa na cidade (Bagnasco e Le Gals, 2000;Jouve e Booth, 2004), desde a maior autonomia destas ao planeamento e ope-racionalidade de base estratgica, e ainda a inovadores processos de governanae de participao cvica. Um pouco por todo o lado, nas mais de um milho decidades que existem em todo o planeta, no somente no Ocidente protestante (emcidades como Copenhaga, Paris ou Boston) mas tambm em cidades mais meri-dionais (como em Barcelona, So Paulo ou Bogot), vo-se materializando ideias,projectos e processos n