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Seletividade da esfera pública e esferas públicas subalternas: disputas e possibilidades na modernização brasileira Fernando Perlatto Resumo O artigo analisa o processo de constituição da esfera pública no Brasil. Sugere-se a hipótese segundo a qual, pelo menos desde o século XIX, constituíram-se uma esfera pública seletiva e esferas públicas subalternas. Para sustentar o argumento proposto, procura-se, por um lado, estabelecer um diálogo com a literatura internacional dedicada à reflexão em torno do conceito de esfera pública – em especial com as formulações realizadas por e a partir de Jürgen Habermas –, com o intuito de explorar as transformações que essa categoria passou no decorrer dos anos, dando ênfase especial ao conceito de “subaltern counterpublics”, proposto por Nancy Fraser. Por outro lado, busca-se, com apoio de estudos historiográficos realizados no decorrer das últimas décadas sobre a sociedade brasileira dos séculos XIX e XX, construir uma formulação teórica acerca do processo de configuração da esfera pública no Brasil. Além de problematizar as teorias que sustentam a inexistência de uma esfera pública no país, ou que concebem sua constituição somente a partir do final do século XX, procura-se apontar não somente para a necessidade de um olhar histórico mais acurado para a compreensão das esferas públicas “seletiva” e “subalternas”, mas um movimento analítico no sentido de perceber outras formas de associativismo como legítimas que não se prendam ao paradigma organizacional do mundo europeu ou norte-americano. O artigo contribui tanto para uma melhor compreensão histórica do processo de configuração da esfera pública no Brasil quanto para um entendimento mais bem compreendido da dinâmica de organização e mobilização das “esferas públicas subalternas”, chamando a atenção para suas potencialidades ao aprofundamento da democratização do país. PALAVRAS-CHAVE: esfera pública; Habermas; subalternos; modernidade; democracia. Recebido em 17 de Maio de 2013. Aprovado em 30 de Julho de 2014. I. Introdução 1 Já é bem conhecida pelas nossas ciências sociais a capacidade exemplar das elites brasileiras, ao longo dos anos, de mudar para conservar. Os pactos por cima, que procuraram excluir de todas as formas o povo das decisões significa- tivas da nação, não se configuraram como pequenos ínterins na nossa trajetória, mas se constituíram como condição sine qua non capaz de assegurar o anda- mento conservador da modernização no Brasil. O processo modernizador por aqui, ao contrário do ocorrido em outros paradigmas clássicos, não se confi- gurou como uma ruptura com o “atraso”, mas como um longo processo contínuo, marcado pelo entrelaçamento entre o “arcaico” e o “moderno”, logrando constituir uma ordem social altamente desigual, na qual o elemento da continuidade tendeu a prevalecer sobre o da transformação. Durante muitos anos, a razão dualista – que opunha pares de conceito como arcaico-moderno, rural-urbano, agrário-industrial, sociedade fechada-sociedade aberta, sociedade estagnada-sociedade dinâmica, sociedade tradicional-sociedade de massas, feu- dalismo-capitalismo – foi considerada como a chave explicativa da realidade nacional, sendo mobilizada por setores importantes da intelectualidade brasi- leira e latino-americana. A partir dos anos 1960 essa perspectiva começou a sofrer diversas críticas de estudiosos que apontavam para as intrínsecas relações DOI 10.1590/1678-987315235307 Artigo Rev. Sociol. Polit., v. 23, n. 53, p. 121-145, mar. 2015 1 Agradeço os pareceristas anônimos da Revista de Sociologia e Política por seus comentários. Agradeço também a Luiz Werneck Vianna e a Frédéric Vandenberghe pela leitura crítica e fraterna, que me foram de inestimável valia

Seletividade Da Esfera Pública - PERLATTO

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Seletividade Da Esfera Pública

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  • Seletividade da esfera pblica e esferas

    pblicas subalternas: disputas e

    possibilidades na modernizao

    brasileira

    Fernando Perlatto

    Resumo

    O artigo analisa o processo de constituio da esfera pblica no Brasil. Sugere-se a hiptese segundo a qual, pelo menos desde o

    sculo XIX, constituram-se uma esfera pblica seletiva e esferas pblicas subalternas. Para sustentar o argumento proposto,

    procura-se, por um lado, estabelecer um dilogo com a literatura internacional dedicada reflexo em torno do conceito de esfera

    pblica em especial com as formulaes realizadas por e a partir de Jrgen Habermas , com o intuito de explorar as transformaes

    que essa categoria passou no decorrer dos anos, dando nfase especial ao conceito de subaltern counterpublics, proposto por

    Nancy Fraser. Por outro lado, busca-se, com apoio de estudos historiogrficos realizados no decorrer das ltimas dcadas sobre a

    sociedade brasileira dos sculos XIX e XX, construir uma formulao terica acerca do processo de configurao da esfera pblica no

    Brasil. Alm de problematizar as teorias que sustentam a inexistncia de uma esfera pblica no pas, ou que concebem sua

    constituio somente a partir do final do sculo XX, procura-se apontar no somente para a necessidade de um olhar histrico mais

    acurado para a compreenso das esferas pblicas seletiva e subalternas, mas um movimento analtico no sentido de perceber

    outras formas de associativismo como legtimas que no se prendam ao paradigma organizacional do mundo europeu ou

    norte-americano. O artigo contribui tanto para uma melhor compreenso histrica do processo de configurao da esfera pblica no

    Brasil quanto para um entendimento mais bem compreendido da dinmica de organizao e mobilizao das esferas pblicas

    subalternas, chamando a ateno para suas potencialidades ao aprofundamento da democratizao do pas.

    PALAVRAS-CHAVE: esfera pblica; Habermas; subalternos; modernidade; democracia.

    Recebido em 17 de Maio de 2013. Aprovado em 30 de Julho de 2014.

    I. Introduo1

    J bem conhecida pelas nossas cincias sociais a capacidade exemplar daselites brasileiras, ao longo dos anos, de mudar para conservar. Os pactos porcima, que procuraram excluir de todas as formas o povo das decises significa-tivas da nao, no se configuraram como pequenos nterins na nossa trajetria,mas se constituram como condio sine qua non capaz de assegurar o anda-mento conservador da modernizao no Brasil. O processo modernizador poraqui, ao contrrio do ocorrido em outros paradigmas clssicos, no se confi-gurou como uma ruptura com o atraso, mas como um longo processocontnuo, marcado pelo entrelaamento entre o arcaico e o moderno,logrando constituir uma ordem social altamente desigual, na qual o elemento dacontinuidade tendeu a prevalecer sobre o da transformao. Durante muitosanos, a razo dualista que opunha pares de conceito como arcaico-moderno,rural-urbano, agrrio-industrial, sociedade fechada-sociedade aberta, sociedadeestagnada-sociedade dinmica, sociedade tradicional-sociedade de massas, feu-dalismo-capitalismo foi considerada como a chave explicativa da realidadenacional, sendo mobilizada por setores importantes da intelectualidade brasi-leira e latino-americana. A partir dos anos 1960 essa perspectiva comeou asofrer diversas crticas de estudiosos que apontavam para as intrnsecas relaes

    DOI 10.1590/1678-987315235307

    Artigo Rev. Sociol. Polit., v. 23, n. 53, p. 121-145, mar. 2015

    1 Agradeo os pareceristasannimos da Revista deSociologia e Poltica por seuscomentrios. Agradeotambm a Luiz WerneckVianna e a FrdricVandenberghe pela leituracrtica e fraterna, que meforam de inestimvel valia

  • existentes entre o moderno e o atraso na constituio do capitalismo no pas.Respeitadas as singularidades e particularidades, essa nova forma de compre-enso da modernizao brasileira esteve presente em diversos autores, comoFernando Henrique Cardoso, Francisco de Oliveira, Luciano Martins, FlorestanFernandes e Luiz Werneck Vianna.

    Visto desse prisma, portanto, nossa modernizao j se processou, ainda queconservando elementos arcaicos, e no nos diferenciamos de outras naes pelofato de no termos ainda atingido a modernidade pela nossa to propaladaherana ibrica, que nos manteria presos ao mundo da tradio. Ao criticar anossa sociologia da inautenticidade, Jess Souza, dialogando criticamentecom a obra de Gilberto Freyre, demonstra que as instituies fundamentais damodernidade, quais sejam o Estado e mercado, associadas difuso dos valoresocidentais individualistas, estariam presentes em nosso territrio desde osculo XIX, sobretudo a partir da Abertura dos Portos e da chegada da famliareal no Brasil, em 1808. Porm, como destaca Souza, embora essa moderni-zao tenha sido efetiva e no superficial, os mecanismos de integrao social epoltica permaneceram profundamente hierarquizados ao longo dos anos, pro-movendo uma modernizao seletiva (Souza 2000).

    Partindo das sugestes levantadas por Souza em relao ao Estado e aomercado, pretendemos demonstrar que a terceira instituio da modernidade qual seja, a esfera pblica tambm est presente no Brasil desde o sculo XIX.Conforme bem observado por Srgio Costa, durante muitos anos perdurou nopas a ideia da inexistncia de um espao pblico entre ns, na medida em que seacreditava que a esfera privada apresentava-se de tal forma ampliada que algica das relaes pessoais e patrimonialistas seria `contrabandeada para oplano pblico, condicionando os relacionamentos nessa rbita (Costa 2002,p. 30). A partir das dcadas de 1980 e 1990, contudo, diversos estudos contri-buram para consolidar a convico da existncia no pas de um espao pblico(Avritzer 2002; Costa 2002; Avritzer & Costa 2003). Ao criticarem as teorias detransio da democracia focadas em dimenses institucionais e no papel desem-penhado pelas elites, essas pesquisas tiveram o mrito de chamar a ateno paraa importncia da participao dos novos atores sociais emergentes no contextoda redemocratizao do pas (movimentos sociais, associaes de vizinhos,ONGs etc.), trazendo o conceito de esfera pblica para o centro da reflexoanaltica e normativa sobre a democracia.

    No obstante a importncia desses trabalhos, o foco dos mesmos se concen-trou nas dcadas de 1970, 1980 e 1990, como se a esfera pblica apenas tivessese configurado no pas no contexto do fim da ditadura militar, quando novasformas de associativismo voluntrio e novas prticas pblicas renovaram orepertrio de prticas polticas, fomentando, assim, novas formas de engaja-mento cvico (Wampler & Avritzer 2004, p. 212). O processo de construo danao teria sido marcado, segundo se desprende desses estudos, pela desor-ganizao cvica e desmobilizao da sociedade civil, como decorrncia dadominncia de prticas autoritrias e clientelistas. Dessa forma, ainda quedestacando a importncia desses trabalhos para problematizar as formulaesque sustentam a inexistncia de uma esfera pblica no pas, preciso reco-nhecer a insuficincia dos mesmos no sentido de compreender como se proces-sou historicamente a construo da esfera pblica no pas.

    A partir de um dilogo com a historiografia brasileira que tem se debruadopara compreender aspectos dos sculos XIX e XX, esse artigo defende ahiptese de que a esfera pblica, ao lado do Estado e mercado, configurou-se noBrasil desde o sculo XIX, ainda que sua construo tenha sido marcada pelaseletividade, tanto no que tange aos personagens capazes de nela operar, quantoem relao aos temas a serem debatidos em seu mbito. No obstante a

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  • construo dessa esfera pblica seletiva, apontaremos ao fato de que, paripassu, ocorreu a formao de esferas pblicas subalternas, constitudas pordiferentes espaos de sociabilidade nos quais os segmentos subalternos bus-caram se organizar. Nesse sentido, importante ressaltar desde j que, a des-peito de separarmos analiticamente a esfera pblica seletiva e as esferaspblicas subalternas, no se pretende sugerir que elas se configuraram demaneira isolada. Pelo contrrio. Parte-se do pressuposto de que essas esferas serelacionam permanentemente, quer de forma dialgica, quer de maneira confli-tuosa. No obstante se reconhea a existncia de uma circularidade culturalentre essas esferas para utilizar a formulao conceitual de Ginzburg (1998),em dilogo com Mikhail Bakhtin , com cada qual filtrando determinadoselementos da outra, a partir de seus prprios valores e condies de vida, preciso reconhecer que as relaes comunicacionais entre elas se deram, histo-ricamente, de maneira desigual, com a busca constante da primeira em construirum discurso hegemnico sobre a segunda. Alm disso, como bem percebidopor Nancy Fraser, em sociedades estratificadas, as relaes entre os diferentespblicos pertencentes a estas esferas tendem a ser mais de contestao do que depropriamente de deliberao (Fraser 1992, p. 125).

    Baseado nessa discusso acerca da institucionalizao seletiva dos proces-sos deliberativos na histria brasileira, demonstrar-se-, guisa de concluso, anecessidade da ampliao da democratizao da esfera pblica, mediante noapenas a institucionalizao de procedimentos democrticos capazes de darvazo a argumentos racionais, mas de mecanismos que a tornem mais porosaaos valores, demandas, reivindicaes e manifestaes dos setores subalternos.A ideia subjacente a essa perspectiva a da necessidade da ampliao de canaisque permitam que as potencialidades do mundo da vida aqui existente, histo-ricamente manifestadas principalmente por meio de performances e discursosocultos, possam se manifestar em uma esfera pblica renovada e democrtica.

    II. Uma breve introduo sobre o conceito de esfera pblica e seus crticos

    No se tem como objetivo fazer uma ampla discusso sobre a obra haberma-siana, considerada por muitos, com razo, como o momento mais alto de racio-nalizao do mundo existente, sobretudo por perpassar praticamente todos oscampos disciplinares das humanidades e colocar-se em interlocuo com quasetodas as tradies importantes da reflexo contempornea, oferecendo umaperspectiva crtica modernidade sem, contudo, abdicar das suas potencia-lidades tericas e prticas (Eisenberg 2003a, pp. 24-26). Pretende-se, nessesentido, apenas introduzir a discusso de Habermas sobre a esfera pblicacom o intuito de destacar algumas crticas pelas quais esse conceito passou nosltimos anos para, posteriormente, discutir como se deu o processo da suaconstituio no Brasil2.

    A primeira formulao sistemtica em torno do conceito de esfera pblicafoi realizada por Habermas em sua tese de livre-docncia, Mudana estruturalda esfera pblica, publicada em 1962. Nessa obra, Habermas procurou des-crever o processo histrico de configurao de um novo espao a partir dosculo XVIII, principalmente na Inglaterra, Frana e Alemanha, situado entre asociedade e o Estado, que tinha como principal caracterstica o debate livre eracional entre os cidados sobre questes pblicas. A constituio dessa esferaesteve diretamente associada ascenso da burguesia, bem como ao cresci-mento das cidades, proliferao dos cafs e dos sales e, sobretudo, ao novopapel adquirido pela imprensa, que passou a se configurar como um frumapartado das instncias estatais, no qual se debatiam questes pblicas e seconstituam opinies crticas topicamente definidas, capazes de problematizarpublicamente a legitimidade das aes do Estado.

    Seletividade da esfera pblica e esferas pblicas subalternas 123

    2 Alm das obras deHabermas (1984; 1992; 1997;2002; 2012), tem-se comoreferncia, quanto a essetpico, as anlises de Avritzer(1996), Calhoun (1992; 2010),Costa (2002) e Maia (2007a).

  • A esfera pblica se configurou, segundo Habermas, como uma nova fontede legitimidade do poder, que tinha como caracterstica principal a discussolivre e racional entre os cidados. Nesse espao, as opinies passaram a serlegitimadas pela fora dos melhores argumentos racionais mobilizados no de-bate pblico, que deveriam ser considerados e valorizados independentementede fatores como poder, riqueza ou status social. De acordo com Habermas, aolongo dos anos, a esfera pblica sofreu uma srie de mudanas estruturais,passando a se constituir, no sculo XIX, como um espao de presso, comodecorrncia do prprio processo de democratizao e da ampliao do pblicoque passou a exigir a considerao de seus interesses no sistema poltico. J nosculo XX, a esfera pblica teria passado por um processo gradativo de dege-nerao, como decorrncia da obliterao da diviso entre as esferas privada epblica, quer pela privatizao de espaos outrora pertencentes ao domniopblico, quer pela interveno cada vez mais ampliada do Estado no domnioprivado, que teriam conduzido transformao do cidado em cliente ouconsumidor de servios.

    Conforme destacado por diferentes autores, nos trabalhos posteriores deHabermas sobretudo em A teoria do agir comunicativo e Direito e demo-cracia , a esfera pblica deixa gradativamente de se referir a uma instituiohistrica especfica ou a suportes institucionais particulares, passando a sevincular capacidade a-histrica do homem para a comunicao humana(Calhoun 1992; Lavalle 2002). Ao pensar a esfera pblica mais associada aosfluxos comunicativos espontneos que emergem na sociedade, a partir do de-bate e da discusso livre sobre questes de interesse comum entre os cidadosconsiderados iguais, poltica e moralmente, Habermas procurou inserir essacategoria no ncleo de sua teoria procedimentalista da democracia, apon-tando-a como uma arena discursiva do agir orientado para o entendimento, naqual os valores democrticos se formariam e se reproduziam a partir de redes decomunicao de contedos e tomadas de posio (Habermas 1992; 2012).

    O que interessa reter dessa discusso o fato de a concepo de esferapblica burguesa, desenvolvida por Habermas em Mudana estrutural daesfera pblica, ter gerado diversas crticas no decorrer dos anos, que condu-ziram a uma reformulao conceitual da categoria, inclusive nas obras poste-riores do autor. Se alguns trabalhos enfatizaram a ausncia de uma discussomais detalhada de aspectos culturais e identitrios na obra de Habermas de 1962(Baker 1992; Elley 1992), outros procuraram destacar a pouca importnciaconferida religio na configurao da esfera pblica (Zaret 1992). Algunsestudiosos buscaram problematizar o enfoque pessimista de Habermas sobre osculo XX, focado no processo de degenerao da esfera pblica, com o intuitode demonstrar o quanto sua anlise sobrevalorizava o quadro de homogenei-zao da mdia e as consequncias de sua massificao e alienao fazendoeco aos diagnsticos pessimistas da Dialtica do Esclarecimento descon-siderando a emergncia de novos segmentos sociais e a possibilidade de quefluxos comunicativos originrios do mundo da vida pudessem ser mobilizadosno debate pblico, por meio da presso de associaes voluntrias desvin-culadas do mercado e do Estado (Calhoun 1992; Avritzer 2000; Costa 2002).

    No obstante a importncia dessas objees a Mudana estrutural da esferapblica, interessa-nos enfatizar outra ordem de crticas, que contriburamsobremaneira para repensar a temtica da esfera pblica a partir de novasperspectivas tericas. De modo geral, pode-se dizer que essas crticas procu-raram problematizar a formulao de Habermas sobre a esfera pblica, cha-mando a ateno para a desconsiderao, em sua obra, quanto existncia deoutras esferas pblicas na sociedade, constitudas por segmentos como osoperrios e as mulheres que, no obstante excludos da esfera pblica burguesa,formularam discursos e participaram de diferentes maneiras dos debates sobre

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  • questes pblicas. Se Negt e Kluge (1993) tiveram o mrito, em 1972, derealizar uma primeira crtica mais ampla formulao habermasiana, no livroThe Public Sphere and Experience. Toward an analysis of the bourgeois andproletarian public sphere, demonstrando como uma esfera pblica proletriaatuava em paralelo esfera burguesa, foi Nancy Fraser quem melhor siste-matizou essas objees, ao desenvolver o conceito de subaltern counter-publics (Fraser 1992).

    No obstante reconhecesse a importncia da elaborao de Habermas emtorno do conceito de esfera pblica, Fraser o criticava por idealiz-la, ao noperceber como essa esfera se constitura pela excluso de diversos segmentos dasociedade, como as mulheres e os operrios. Frente a esse quadro de excluso,os subaltern counterpublics constituram arenas discursivas paralelas por meiodas quais criaram e circularam discursos contestadores, de sorte a formulareminterpretaes e definirem suas identidades, interesses e necessidades (idem).Posteriormente, alguns trabalhos exploraram essas ideias dos counterpublics,quer teoricamente (Warner 2002; Calhoun 2012), quer empiricamente (Asen &Brower 2001; Squires 2002), ao passo que outros autores aproximaro essacategoria de outros conceitos como o de new publics (Cohen & Arato 1992) relacionado emergncia de novos pblicos e de formas crticas de comu-nicao, vinculados aos movimentos sociais, que se constituem paralelamenteao crescimento da grande mdia e diasporic publics (Gilroy 2001) que dizrespeito ao desenvolvimento, junto com a dispora africana, de uma contra-cultura fora da rbita da poltica formal, que se valeu da performance, da danae da msica como forma de manifestao (Avritzer & Costa 2004, pp. 710-714).No obstante, importa destacar que apesar das crticas realizadas a Habermaspela desateno a outras esferas pbicas existentes na sociedade, ele j desta-cava no Prefcio da Mudana estrutural da esfera pblica que concentrariasua anlise no modelo liberal da esfera pblica burguesa. Dessa forma, ele nose debruaria sobre a sua variante plebeia, que reuniria a plebe ignara, e queteria emergido no perodo da Revoluo Francesa, permanecendo atuante nomovimento cartista e nas tradies anarquistas do movimento operrio (Haber-mas 1984, pp. 10-11). A despeito dessa ressalva, Habermas admitir posterior-mente que o enfoque por ele privilegiado obstou uma percepo mais bemformulada da dinmica interna da cultura plebeia e de seu potencial para adinamizao do debate pblico (Habermas 1992).

    Seguindo as sugestes levantadas por Habermas sobre as mudanas estru-turais da esfera pblica e por seus variados crticos, em especial Nancy Fraser eseu conceito de subaltern counterpublics, a construo da esfera pblica noBrasil ser analisada buscando-se demonstrar como ela se configurou de ma-neira seletiva, tanto em relao aos personagens do mundo subalterno, quantoaos interesses que vinham de baixo e aos temas que poderiam colocar a ordemdesigual aqui construda em cheque. Em seguida, ser destacado o desenvol-vimento daquilo que chamaremos de esferas pblicas subalternas, por meio dasquais os setores populares procuraram estabelecer arenas discursivas alter-nativas quelas constitudas pelos segmentos elitistas.

    O conceito de esferas pblicas subalternas se inspira na categoria de sub-altern counterpublics de Nancy Fraser, mas dele se diferencia por no colocartanta nfase na ideia segundo a qual os pblicos subalternos seriam necessaria-mente contrrios esfera pblica seletiva. Ainda que em alguns momentos dahistria brasileira eles tenham assumido essa perspectiva de contestao, seriaequivocado defini-los apenas a partir da sua oposio esfera pblica seletiva, oque equivaleria tanto a reduzir a importncia da prpria dinmica interna dessasesferas pblicas subalternas quanto as complexas relaes existentes entre asdiferentes esferas pblicas.

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  • III. Seletividade da esfera pblica brasileira

    De acordo com Warner (2002), a ideia de pblico se configura como umaespcie de fico prtica presente no imaginrio social de diferentes socie-dades. Na maior parte das vezes, noes como pblico, esfera pblica esubaltern counterpublics so tomadas como se trouxessem em seu bojo umsignificado explicativo universal, independente dos contextos ao quais soaplicadas. Porm, como destacado pelo autor, as experincias nacionais possui-riam um papel importante para a investigao dessas categorias, na medida emque os solos nos quais elas decantam recolocam novos desafios para a prpriainvestigao terica. Nesse sentido, pensar a dimenso do pblico implicaatentar para um imperativo descentramento da teoria social que leve em contaas diversas formas pelas quais categorias sociolgicas produzidas em determi-nados contextos so interpretadas e mobilizadas em outras realidades (Connell2007). Refletir, portanto, sobre o processo de configurao da esfera pblicaem pases perifricos ou semiperifricos como o Brasil contribui sobrema-neira para esse processo de descentramento, possibilitando o dilogo entrediferentes experincias de modernidade, sem que se conceba a priori a superio-ridade de alguma delas sobre as demais, de modo a pensar de maneira maisampliada o prprio conceito de esfera pblica3.

    A construo de uma sociedade altamente excludente como a brasileira,marcada por altos ndices de analfabetismo e pelo desprezo frente ao trabalhomanual, tido como coisa de escravo, desde a Independncia, permitiu aedificao da noo de que apenas alguns seletos seriam aptos a operar na esferapblica, organizando o debate pblico e instituindo o campo semntico em queele se deu, selecionando temas e constituindo interlocutores legtimos. Essaforma de modernizao, marcada pelo afastamento, quando no a excluso, damaioria da populao dos espaos de discusso pblica e de deliberao,conduziu conformao de uma esfera pblica seletiva, a partir da qual setoresdominantes formularam ideias e percepes que decantaram com enorme forapor toda a sociedade. Ao sustentar-se a noo da seletividade da esfera pblicano Brasil, no se pretende dizer que as esferas pblicas constitudas em outrospases, em especial na Europa e nos Estados Unidos, no foram tambmseletivas. Pelo contrrio. Diversos estudos tm procurado apontar justamentepara o fato de que as esferas pblicas nesses contextos foram marcadas pelaexcluso, na medida em que apenas aos homens burgueses era facultada aparticipao, resultando, consequentemente, na excluso de diversos outrossegmentos da sociedade (Fraser 1992; Ryan 1992; Calhoun 2012). Contudo,no resta dvida de que em sociedades estratificadas como a brasileira, carac-terizadas pela escravido e por altos ndices de analfabetismo, essa seletividadeganhou novos contornos, configurando-se de forma mais significativa e siste-mtica. Desde 1808, quando ocorre a chegada da famlia real, trazendo em seubojo uma srie de transformaes polticas, sociais, econmicas e culturais,verificar-se-o os primeiros indcios da construo de uma esfera pblica noBrasil, ainda que pouco permevel tanto aos setores subalternos e aos seusinteresses, quanto aos temas capazes de introduzir o novo nesse mundo, pondoem questo o status quo.

    Junto com as mudanas desencadeadas a partir da Abertura dos Portos sNaes Amigas, em 1808, a chegada da famlia real ao Brasil, alm de promo-ver a criao de instituies culturais como a Biblioteca Real, a Imprensa Rgia,o Jardim Botnico, a Academia de Belas Artes, alm de teatros e museus,estimulou o desencadeamento de uma srie de transformaes, em todos osaspectos da vida e dos costumes, criando um ambiente favorvel para reunies,encontros e discusses pblicas. Dessa forma, corroborando a anlise feita porAntonio Candido, possvel destacar que a vinda da Corte para o Brasil marcou

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    3 Os trabalhos de Arjomand(2001) e a coletneaorganizada por Hoexter,Eisenstadt e Levtzion (2002),respectivamente sobre a ndiae as sociedades mulumanas,so exemplos de investigaessobre o processo deconfigurao da esfera pblicaem contextos perifricos.

  • definitivamente o comeo da nossa poca das luzes, haja vista que foi a partirde ento que o pas viu surgir os primeiros pblicos consumidores regulares dearte e literatura, dando incio a uma verdadeira, ainda que incipiente, vidaintelectual (Candido 1971).

    Segundo Jos Murilo de Carvalho, at o incio do Segundo Reinado(1840), o debate poltico estava restrito a espaos escassos, concentrando-seprincipalmente na tribuna do Parlamento e na imprensa (Carvalho 2007). Aexceo foram os anos da Independncia, em especial aps a aps a RevoltaLiberal do Porto, em 1820, e o perodo da Regncia (1831-1840), quandojornais, associaes e clubes polticos se organizaram, sobretudo na capital doImprio. Conforme destacado pela historiografia, no decorrer desses anos, oprocesso de aparecimento dos jornais e de diferentes espaos de sociabilidade,como associaes e clubes, favoreceu a formao de uma opinio pblica nopas que, ultrapassando os limites do julgamento privado, passou a influir odebate pblico, colocando em questo a legitimidade discursiva do Estado. Osmomentos marcados por maior agitao, no decorrer do perodo imperial,como os que se seguiram Independncia e Regncia, foram aqueles nosquais a imprensa foi mais mobilizada, com a proliferao de espaos abertosao debate pblico (Basile 2000; Lustosa 2000; Neves 2003; Morel 2005).Alm disso, transformaes nas prprias cidades, em especial na capital fe-deral como a disseminao de cafs, confeitarias e restaurantes criaroambiente favorvel para o encontro das pessoas em locais pblicos (Alen-castro 1997, p. 85).

    No decorrer do sculo XIX, as associaes cientficas, culturais e literrias com especial destaque para a Sociedade Auxiliadora da Indstria Nacional, aAcademia Imperial de Medicina, a Sociedade de Geografia, o Clube de Enge-nharia, o Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro e o Instituto dos Advoga-dos Brasileiros tambm se configuraram como espaos de animao intelec-tual e debate sobre questes pblicas (Rezende de Carvalho 2007, p. 19).Conforme destacado por Luiz Felipe de Alencastro:

    Num contexto em que a poltica parlamentar e os debates importantes stomavam corpo e expresso verdadeiramente nacionais nas estreitas camadasda populao escolarizada, os jornais, panfletos e revistas desempenhavam umpapel decisivo. Na ausncia de um verdadeiro mercado editorial de livros e deuma massa de leitores formados pelo ensino acadmico e a frequentao debibliotecas pblicas, os peridicos apareciam como veculos quase exclusivosda difuso de ideias (Alencastro 2001, p. 116).

    Embora a liberdade da imprensa s tenha sido implementada em 1821,desde 1820, aps a revolta liberal do Porto, houve uma intensificao do debatepoltico principalmente mediante a publicao de folhetos e jornais. Essesmateriais foram mobilizados pelos polticos e intelectuais do Imprio, consti-tuindo-se nos principais veculos de debates pblicos (Carvalho 2006, p. 139).A imprensa da Corte contava com trs grandes jornais Correio Mercantil,Dirio do Rio de Janeiro e Jornal do Commercio. Ao lado da publicao dessasfolhas, no decorrer do perodo imperial foram se multiplicando os panfletos elivros, que tambm formavam um campo de debate entre a elite alfabetizadanaquele contexto (Barbosa 2007). Embora a conformao dessas esferas dereunio e discusso se desse com maior fora na Corte, elas no se restringiam aessa geografia. Como exemplo, basta observar o que ocorria na provncia deMinas Gerais, onde a primeira metade do sculo XIX testemunhou o apareci-mento de novas formas de convvio, sociabilidade e reunio no espao pblico(Barata 2009).

    Nem preciso dizer que os debates alados principalmente pela eliteintelectual e poltica do Imprio a essa restrita esfera pblica alcanavam um

    Seletividade da esfera pblica e esferas pblicas subalternas 127

  • nmero muito reduzido da populao. escassez de espaos democrticos paraque os setores subalternos deles participassem se somava um nmero elevads-simo de analfabetos, que se no inviabilizava, ao menos reduzia significati-vamente a possibilidade de interao autnoma por parte dos segmentospopulares. De acordo com censo realizado em 1872 e divulgado quatro anosdepois, na populao livre, apenas 23,43% dos homens e 13,43% das mulheressabiam ler e escrever. Caso os escravos fossem includos, somente 15,75% dapopulao era considerada alfabetizada (Chalhoub 2006). Alm da excluso daparticipao dos debates na imprensa, o analfabetismo era decisivo para areduo da participao eleitoral. A lei eleitoral de 1881, que introduzia o votodireto em um turno, sob o pretexto de moralizar as eleies, reduziu drasti-camente a participao eleitoral. Ao exigir dos eleitores saber ler e escrever,restringiu o eleitorado que era de 10% da populao, a menos de 1% numapopulao de cerca de 14 milhes (Carvalho 1998a, p. 92).

    Nessa esfera pblica seletiva, nem aos personagens do mundo subalternoera permitida a participao e nem os temas que pudessem pr essa ordem emcheque, como a escravido e o exclusivo agrrio, eram mobilizados, com ointuito de serem, de fato, enfrentados. Observando a produo dos principaispublicistas do Imprio, tanto do campo liberal como do conservador, podemosconstatar que os debates que ocorriam na cena pblica se davam entre as elites eenvolviam, no mximo, a populao urbana letrada. Essas disputas relacio-navam-se principalmente com questes polticas e institucionais, sendo relega-das para segundo plano as questes sociais. Dessa forma, os temas da mo-de-obra livre e da democratizao da terra no sero enfrentados e os personagensdiretamente relacionados a esse mundo no sero chamados cena pblica4.

    As elites intelectuais e polticas do Imprio buscaro, de todas as maneiraspossveis, controlar aqueles movimentos que porventura contestassem o statusquo, na medida em que eles efetivamente representavam uma ameaa frag-mentao territorial. Isso pode ser evidenciado pela represso s rebeliesescravas, aos quilombos e a qualquer forma de organizao dos escravos, assimcomo o combate s revoltas provinciais no perodo regencial (1831-1840), queculminaram no Regresso Conservador, com a Lei Interpretativa do Ato Adi-cional (1840), a reforma do Cdigo de Processo Penal (em 1841) e o restabe-lecimento do Conselho de Estado (em 1841). A prpria forma como o Impriolidou com o tema do serto exemplar nesse sentido, relacionando esse barbrie, violncia, s paixes ferozes e fragmentao, ao passo que o litoral,exemplificado pela Capital Federal, seria a representao da ordem, da civili-zao e da coeso nacional (Coser 2008, pp. 151-152).

    A despeito da excluso existente dos atores e temas aptos a participarem daesfera pblica seletiva, essa aos poucos se via pressionada a democratizar-sesob a presso de diversos segmentos. A crise da hegemonia imperial apresen-tou-se quando o Estado comeou a mostrar-se incapaz de atender s necessi-dades da sociedade em modernizao econmica, expanso demogrfica eampliao do leque de demandas sociais (Salles 1996). Diversos movimentosocorridos na segunda metade do sculo XX a crise de 1868, com a intervenodo Imperador na queda do Gabinete Zacarias, o surgimento do Partido Repu-blicano em 1870, a Questo Religiosa e a Questo Militar, a Guerra do Paraguai(1864-1870), a Lei do Ventre Livre e a Lei dos Sexagenrios evidenciavamque novos interesses buscavam sua participao na esfera pblica seletiva e queo Imprio e a ordem escravista no eram mais capazes de absorv-los.

    No contexto da crise do sistema imperial e escravista, iniciou-se, de fato, aconfigurao de uma esfera pblica mais democrtica e consistente no pas. Nofinal da dcada de 1860 e incio dos anos 1870, vrios clubes radicais foramorganizados, propondo, alm da descentralizao poltico-administrativa, a

    128 Fernando Perlatto

    4 Se porventura pudesse haverexistido um debate sobre ademocratizao das terras, aLei de Terras de 1850 ps porgua abaixo essaspossibilidades, ao consagrar olatifndio e impedir a efetivarealizao de uma reformaagrria no pas (Costa 1982).Quanto ao tema da escravido,houve uma produo dosilncio sobre a raa nodecorrer do Imprio por parteda elite intelectual, inclusivecomo um requisito para sealcanar o ideal dehomogeneidade da nao(Chalhoub 2006).

  • abolio do Conselho de Estado, da Guarda Nacional, da vitaliciedade doSenado e, em alguns casos, da escravido (Carvalho 2007). Nos anos queantecederam a Abolio (1888), no apenas a ordem imperial, mas tambm aescravido perdeu visivelmente a legitimidade na sociedade brasileira, criandoum ambiente favorvel proliferao de diversas associaes abolicionistas,sociedades literrias e jornais em defesa do abolicionismo (Azevedo 2003).

    O movimento abolicionista ganhava fora em todos os setores da sociedade,no se restringindo somente aos debates na Cmara e organizao de asso-ciaes contrrias escravido. Na imprensa em jornais como A Onda, AAbolio, Oitenta e Nove, A Redeno, A Liberdade, O Alliot, A Gazeta daTarde, A Terra da Redeno, O Amigo do Escravo, A Luta, O Federalista bemcomo por meio de dezenas de panfletos e pasquins, intelectuais como Franciscode Paula Brito, Andr Rebouas, Jos Ferreira de Menezes, Silva Jardim, LuisGama, Antonio Bento e Jos do Patrocnio produziam artigos a favor daabolio e, por mais que o governo tentasse recorrer a tticas reformistas, essemovimento indicava o final da escravido no Brasil (Schwarcz 2007, p. 23). Emtodos os ambientes debatia-se a questo da escravido, seja nas ruas, teatros ousales. Conforme destacado por Joaquim Nabuco, no pas j se consolidara umaopinio pblica aderente ao abolicionismo, com jornais e associaes denun-ciando os horrores da escravido, faltando unicamente vencer a batalha noParlamento (Nabuco 2000).

    Pessoas de todas as concepes polticas, de todas as cores, credos enacionalidades organizavam manifestaes, boicotes e protestos contra a escra-vido. Arrecadavam-se fundos para promover alforrias e milhares de annimosmilitantes, profissionais liberais, biscateiros, libertos, escravos, capoeiras, ne-gros, mestios, brancos brasileiros, africanos e imigrantes participavam doprocesso (Machado 1994; Soares & Salles 2005). Nesse contexto de intensaagitao intelectual e poltica, a possibilidade da esfera pblica abrir-se aospersonagens do mundo subalterno e aos temas que colocassem em cheque aordem de maneira concreta estava na ordem do dia.

    No obstante todo esse processo de mobilizao, fato que a fora do movi-mento abolicionista desapareceu com a prpria escravido (Hasenbalg 1979,p. 154). A Repblica que vir na esteira da abolio, inaugurada com aConstituio de 1891, no ser acompanhada da incluso social dos libertos e dapopulao pobre em geral, assim como da democratizao da terra. O novo re-gime no logrou romper com as relaes costumeiras tpicas da escravido,sustentadas por hierarquias sociais rgidas (Rios & Castro 2007). Todo esseprocesso sustou a construo de uma esfera pblica democrtica, que parecia seforjar no momento anterior abolio. Nesse sentido, convm destacar queembora tenha havido uma ampliao da esfera pblica no perodo republicano,ela ainda permaneceu pouco permevel aos personagens do mundo subalterno eaos temas perigosos estabilidade da ordem. Em relao ao direito de voto, aRepblica manteve a excluso da maioria da populao. A Constituio de1891 eliminou a exigncia da renda para o voto, mas manteve a restrio aosestrangeiros, menores de 21 anos e analfabetos. Esse ltimo critrio foi o maisdecisivo para alijar parte significativa da sociedade brasileira das votaes. NoCenso de 1920, na populao de 7 anos ou mais, o Brasil possua 31% dealfabetizados. Entre estes, apenas 7,8% possuam direito de voto, mas mesmoassim poucos se utilizavam dele. No perodo que se estende de 1894 a 1930, aparticipao eleitoral girou entre 1,4% e 3,4% da populao. Somente na ltimaeleio da Primeira Repblica que houve um aumento mais significativo docomparecimento s urnas, apesar desse no chegar a 6% da populao. Almdos critrios legais que restringiam a participao eleitoral, havia um receiogeneralizado de se sair nas ruas em dias de eleio, haja vista a violncia doscapangas a servio dos candidatos. Ao reduzido nmero de votos e violncia

    Seletividade da esfera pblica e esferas pblicas subalternas 129

  • somava-se a elevada corrupo e manipulao das eleies pelos chefes locais,estaduais e nacionais (Carvalho 2001, pp. 72-73).

    O tempo republicano parecia ser mais acelerado, impulsionado por novospotenciais energticos e tecnolgicos, no qual a exigncia de acertar os pon-teiros brasileiros com o relgio global trouxe consigo a hegemonia dos dis-cursos tcnicos, confiantes em representar a vitria do progresso e da moderni-zao. As aes concretas desencadeadas por esses discursos comoexemplificam a represso a Canudos e o combate Reforma da Vacina, porexemplo se traduziram em formas extremas de opresso quando voltadas paraas populaes destitudas de qualquer educao formal e afastadas dos proces-sos decisrios. No af do discurso modernizador, as novas elites se empenha-vam em reduzir a complexa realidade social brasileira ao ajustamento emconformidade com os padres abstratos de gesto social sob a inspirao demodelos europeus ou norte-americanos, buscando cancelar toda a herana dopassado histrico do pas5. Nesse sentido, prevaleceu o sentimento de vergonhaem relao ao passado, aos grupos sociais e rituais da cultura que evocassemhbitos passados, sobretudo quando relacionados populao afro-brasileira(Sevcenko 1998).

    As primeiras dcadas do sculo XX testemunharam notveis transfor-maes na sociedade brasileira, impulsionadas, em grande medida, pela indus-trializao e pela urbanizao. Esse processo resultou em uma ampliaosignificativa da presso de novos atores sociais no sentido de participarem maisativamente da seletiva esfera pblica brasileira (Domingues 2003). amplia-o do pblico consumidor de bens simblicos e de meios de comunicao demassa, que imprimiu novos ritmos, linguagens e direcionamentos esferapblica (Gomes 1999, p. 13), somou-se, nesse contexto, uma ampla movi-mentao social e intelectual de diversos segmentos da sociedade, representadapor movimentos como a criao do Partido Comunista Brasileiro (PCB), aSemana de Arte Moderna de 1922 e a Coluna Prestes. Ainda que o movimentodos intelectuais ligados a essa animao intelectual e poltica no significassenenhuma ida ao povo e nem expressasse o impulso jacobino de se pr nadireo poltica e cultural dos setores subalternos (Werneck Vianna 2004,p. 203), o fato que, em decorrncia das foras populares que emergiram comfora nos anos 1910, a esfera pblica seletiva teve que se abrir, ainda que comrestries, e a elite intelectual e poltica se viu na necessidade de encontrar no-vas formas de representar e lidar com as classes populares.

    O perodo que se estende de 1930 a 1945 representou uma mudanasignificativa no processo de configurao da esfera pblica no pas. O governoVargas, especialmente, com sua busca em superar o liberalismo da Constituiode 1891 e imprimir um novo ritmo modernizao tendo como ator principal oEstado, teve papel decisivo na ampliao da esfera pblica e dos direitos sociaisno Brasil sobretudo com a entrada em seu mbito das classes mdias e dostrabalhadores urbanos , ainda que esse processo tenha se dado na chaverepressiva e sob o domnio da cidadania regulada (Santos 1979). Atravs daorganizao e dos direitos corporativos, que instituram uma nova relaopblico-privado, buscou-se elevar o interesse, seja ele do empresariado, seja dooperariado, ao plano da esfera pbica, mediante a subsuno do mundo dotrabalho razo do Estado (Boschi & Diniz 1991). A despeito do autoritarismodesse perodo, sobretudo no contexto do Estado Novo (1937-1945), esse mo-delo logrou sucesso em solidificar um cenrio institucional favorvel agre-gao e solidarizao de interesses, bem como afirmao da prevalncia dacomunidade sobre o indivduo liberal, e, em certa medida, do pblico sobre oprivado (Werneck Vianna & Rezende de Carvalho 2000).

    130 Fernando Perlatto

    5 O processo deestabelecimento de uma ordempblica moderna nas primeirasdcadas do perodorepublicano esteve associado,em grande medida, ao discursode criminalizao de prticasmgico-curativas,consideradas feitiaria oucurandeirismo pelasautoridades, sobretudo quandoassociada aos negros(Schritzmeyer 2004).

  • A nova ordem estabelecida em 1946, aps o fim do Estado Novo, retomou oiderio liberal, ampliando as liberdades e a autonomizao da vida associativa,inclusive do mundo do trabalho, mas, de maneira geral, reproduziu padres daordem corporativa anterior, acabando por favorecer uma concepo de rep-blica orientada por valores comunitrios, na qual o indivduo, apesar de reco-nhecido como dotado de autonomia e portador de direitos prprios, via-seenvolvido com a ideia de bem-comum. A despeito desse processo de fortaleci-mento do pblico, as instituies permaneciam carentes de procedimentosdemocrticos por onde pudessem transitar os temas substantivos da democra-tizao social do pas (idem). De modo geral, possvel dizer que a partir de1946 houve uma notvel expanso da esfera pblica, embora permanecessemalgumas restries importantes, como a participao eleitoral dos analfabetos, odireito de organizao sindical dos trabalhadores do campo e o direito de grevedos trabalhadores urbanos e servidores pblicos (Santos 2006).

    O golpe militar de 1964 representou um retrocesso significativo no processode democratizao da esfera pblica ento em curso. A ditadura que ento seinstaurou no pas foi marcada pelo controle sobre a esfera pblica e sobre todasas formas de manifestao da vida associativa que pudessem hipoteticamentecolocar em perigo a segurana nacional, em especial os sindicatos e organi-zaes culturais ligadas ao campo da esquerda. Nesse contexto, as concepesorientadas para a produo de consenso e de solidarizao social que marca-ram o perodo anterior foram substitudas pela sobrevalorizao exacerbada doindividualismo, com todas as consequncias da advindas para a vertebraoassociativa. A poltica foi travada pelo autoritarismo, ao passo que a economiaganhou autonomia e se expandiu, resultando em uma brutal separao entre oprivado e o pblico, com a sobreposio do primeiro sobre o segundo (WerneckVianna & Rezende de Carvalho 2000, pp. 27-28).

    Seria equivocado ignorar a expanso dos bens simblicos no contexto daditadura militar (Ortiz 1986), bem como a ampliao de alguns direitos, como ovoto dos analfabetos, a organizao dos trabalhadores no campo e o lequeconstitucional de bens politicamente regulados, como fundos de penso, segu-ros de sade etc. Contudo, a regresso da esfera pblica foi muito maissignificativa do que esses avanos pontuais, sobretudo pelo fato de a ditaduramilitar ter sido responsvel pela regresso da capacidade estatal de asseguraraos cidados o exerccio dos direitos constitucionais garantidos (Santos 2006,p. 116). Nesse sentido, que se pode dizer que houve uma perda, ao longodesses anos, da ideia de uma esfera pblica capaz de atuar como uma espcie deespao de pedagogia para o civismo, na medida em que ela se converteu em umasimples alavanca dos interesses dominantes na esfera privada, com o predo-mnio da dimenso econmica sobre o campo da poltica (Werneck & Carvalho2004, p. 217).

    O processo de degenerao da esfera pblica impulsionado pelos governosmilitares resultou em uma srie de desafios, que tiveram que ser enfrentados nocontexto de redemocratizao do pas. A Constituio de 1988 apareceu como ocoroamento de uma conjuntura de intensa mobilizao da sociedade civil,constituindo-se como elemento decisivo para as lutas que tiveram curso nasdcadas seguintes pela democratizao da esfera pblica brasileira. Admitindoa inspirao comunitria da nossa tradio republicana, com a fixao deprocedimentos que viessem a favorecer a cultura do civismo, a Carta de 1988ampliou os mecanismos de participao popular na esfera pblica para alm dademocracia representativa por meio do estabelecimento de instrumentos parti-cipativos, como plebiscitos, referendos e conselhos (Dagnino 2002; Wampler& Avritzer 2004). Alm dos instrumentos participativos, a Constituio de1988 tambm abriu novos canais de participao funcional por meio dasinstituies do Judicirio, recuperando o tema da pedagogia cvica exercida

    Seletividade da esfera pblica e esferas pblicas subalternas 131

  • pelo Direito, suas instituies e procedimentos, de modo a ampliar as formas darepresentao da sociedade civil com vias prprias para chegar esfera pblica.Dessa forma, ela retomou a tradio de fazer da dimenso pblica um lugar depedagogia do civismo, agora animada pelo princpio da auto-organizao e nomais pela presena tutelar do Estado (Werneck Vianna & Rezende de Carvalho2004, p. 222).

    Nos anos recentes, diversas transformaes vm se processando na esferapblica, com destaque para a expanso e o aumento do impacto do poder domercado, da mdia e da internet nas relaes culturais, polticas e sociais. Asredes sociais, em especial, tm aberto novas possibilidades de reinveno eampliao da esfera pblica. Ainda que exista uma batalha em curso em tornoda definio dos padres de apropriao da internet, sem que se saiba ao certo seser a soberania do consumidor ou a soberania do cidado que ser privilegiadanesse processo (Eisenberg 2003b), no restam dvidas quanto ao fato de que arede tem atuado na ampliao da esfera pblica. Conforme destacado poralguns autores, a internet tem contribudo para a configurao de diferentesformas de interao por parte das organizaes cvicas, gerando conhecimentotcnico-competente, memria ativa, recursos comunicativos, exigncia de pres-tao de contas e solidariedade distncia, facilitando a operacionalizao deformas variadas de participao em mbitos distintos e expandindo o dilogoentre diferentes atores da sociedade (Maia 2007b).

    IV. Esferas pblicas subalternas

    A construo de uma esfera pblica seletiva no pas permitiu a organizaode uma hegemonia por parte das classes dominantes, que logrou sustentar aconstituio de uma sociedade altamente desigual. O conceito de hegemoniaadotado aqui, embora assumindo a noo de um consenso permanentementeconstrudo que envolve todo o processo social organizado praticamente porsignificados e valores especficos e dominantes e que se equilibra com o uso dafora, de modo que esta parea apoiada no consenso da maioria (Gramsci 2000,p. 95), pressupe a ideia de que a hegemonia no se configura como um blococoncreto e fechado, imposto mediante um discurso que assumido passi-vamente pelas classes populares. O conceito aqui assumido de hegemoniasupe permanentemente a ideia de antagonismo (Laclau 1990). A hegemonia sempre viva, porque se v impelida a se refazer, a recriar-se, a ser defendida emodificada, posto sofrer a todo o momento resistncia daqueles que esto foraou na margem, constituindo-se como um complexo de experincias e relaes,com presses e limites especficos e mutveis (Williams 1979, p. 116).

    Dessa forma, observa-se que a tendncia hegemnica de represso e con-trole social sobre as classes subalternas no logra extinguir as diversas concep-es de mundo a que ela se contrapunha. A cultura popular, ainda que aceita,interiorizada e reproduzida, a todo o momento relida e transformada pelosdominados, constituindo-se como uma arena de consentimento e resistncia(Hall 2003, p. 263). Assim sendo, ainda que a construo da esfera pblicaseletiva tenha sido uma prtica estruturante da sociedade brasileira, ela nopossuiu um grau de organizao to coeso, abrindo, por conseguinte, brechas nosistema para que os subalternos resistissem e se exprimissem de diversasmaneiras contra a predominncia das formas sistmicas de ao no interior dosdomnios societrios. Dialogando com Spivak (1988), possvel dizer que, adespeito dos subalternos dificilmente serem ouvidos, eles foram capazes defalar, de diferentes maneiras, contra os discursos hegemnicos e as prticasrepressivas do cotidiano.

    O que interessa destacar o fato de que a resistncia nem sempre passavapor falas pblicas, podendo assumir formas ocultas, nos termos de Scott

    132 Fernando Perlatto

  • (2003). O autor engloba essas formas de resistncia em um conjunto de aes,que se configurariam como a infrapoltica dos subalternos que, ao buscaremresistir explorao material e s formas de dominao simblica, manteriam aresistncia viva, exercendo presso, provando e questionando os limites dopermissvel. Ao espao negado no discurso pblico, os setores popularesexerceriam prticas e criariam formas expressivas fora de cena, constituindodiscursos ocultos por meio dos quais buscariam romper, de alguma forma,com a aparente homogeneidade da fala oficial.

    possvel conectar essa perspectiva da infrapoltica dos subalternoslevantada por Scott com a discusso dos subaltern counterpublics abordada naprimeira parte desse texto. A despeito das tentativas constantes da fala oficialpara construir discursos hegemnicos a partir da esfera pblica seletiva, seja pormeio da violncia fsica e/ou simblica, fato que, mesmo em sociedadesestratificadas e extremamente desiguais como a brasileira, os subalternos logra-ram descobrir e articular espaos de manobras, por meios dos quais, mesmo emuma aparente homogeneidade, construram discursos ocultos, muitas vezessustentados em performances que, tornando ou no falas pblicas, testavam atodos os momentos os limites da ordem. Em sociedades marcadas pela violnciapermanente, o silncio, o implcito, o invisvel so, frequentemente, maisimportantes do que o manifesto (Chau 1986, p. 33).

    Nesse sentido, possvel perceber que as aes dos segmentos subalternospoderiam assumir carter reativo, localizadas em aes coletivas como oexemplificam as diversas formas de protestos abertos contra o sistema que sedesenrolaram no decorrer da histria brasileira ou irromper por outras formasde manifestao mediante a manuteno de todo um circuito de contatossociais, trocas culturais e prticas ritualizadas em redes clandestinas, cercadaspor cdigos de silncio e jarges indecifrveis, acessveis apenas aos inicia-dos, que se construam como meio peculiar de garantir-se contra as invasesda autoridade arbitrria e intolerante (Sevcenko 1998, p. 32). Essa segundaforma, caracterizada pela resistncia difusa como na irreverncia do humorannimo que percorre as ruas, nos ditos populares, nos grafites espalhadospelos muros das cidades (Chau 1986, p. 63) , foi mais presente na histriabrasileira e configurou um tipo de manifestao consciente dos subordinadosem contextos nos quais o discurso oculto era mais seguro do que a falapblica. Dessa forma, os setores populares, no Brasil, foram capazes de resistir imposio hegemnica construda na esfera pblica seletiva, logrando estabe-lecer, em determinados momentos, esferas pblicas subalternas, que a despeitode no conseguirem alar suas demandas esfera pblica elitista e, por conse-guinte, disputarem a hegemonia da sociedade, foram capazes de construiroutros discursos, ancorados em uma cultura popular repleta de fora inovadora,criatividade e potencialidade.

    importante destacar que a existncia de esferas pblicas subalternas noconfere automaticamente a elas um carter virtuoso. Ao discutir acerca daexistncia dos subaltern counterpublics, Nancy Fraser faz uma importanteressalva, destacando o fato desses pblicos no serem necessariamente demo-crticos e igualitrios, no obstante serem fundamentais para a expanso doespao discursivo, sobretudo em sociedades estratificadas:

    I do not suggest that subaltern counterpublics are always necessarily virtu-ous. Some of them are explicitly antidemocratic and antiegalitarian, and eventhose with democratic and egalitarian intentions are not always above practic-ing their own modes of informal exclusion and marginalization. Still, insofar asthese counterpublics, they help expand discursive space. In principle, assump-tions that were previously exempt from contestation will now have to be pub-licly argued out. In general, the proliferation of subaltern counterpublics means

    Seletividade da esfera pblica e esferas pblicas subalternas 133

  • a widening of discursive contestation, and that is a good thing in stratified soci-eties6 (Fraser 1992, p. 124).

    A perspectiva da existncia de esferas pblicas subalternas, ainda que nonecessariamente virtuosas, abre um dilogo direto com pesquisas recentes quevm sendo desenvolvidas por diversos historiadores brasileiros no sentido decriticar aquilo que seria concebido como paradigma da ausncia. Esse para-digma se sustentaria na ideia segundo a qual setores populares no Brasil, em fla-grante contraste com os povos de outros paradigmas nacionais, em especial oseuropeus, seriam bestializados, passivos e pouco afeitos sociabilidade e organizao. Em uma perspectiva contrria, estudos historiogrficos orientadospelo paradigma da agncia analisam concretamente as negociaes, escolhase decises que os segmentos subalternos estabeleceram tanto entre eles mes-mos, quanto frente aos poderes constitudos (Chalhoub & Silva 2009). Mais doque julgar se o nosso povo seria naturalmente propcio ao insolidarismo so-cial, como estabelecido classicamente por Oliveira Vianna, em PopulaesMeridionais do Brasil (1920), e seguido por outros estudiosos nas dcadasseguintes, objetiva-se inquirir acerca das redes sociais efetivamente estabe-lecidas pelos segmentos subalternos.

    Partindo dessa perspectiva possvel dizer que, assim como destacado notpico anterior, esboos de esferas pblicas subalternas podem ser encontradosno Brasil desde a Independncia do pas, ainda que a consolidao das mesmastenha se processado no contexto da crise do imprio e da escravido7. Conformedemonstrado por Ribeiro (2003), ao contrrio de uma Independncia feitaplacidamente s margens do Ipiranga, diversas manifestaes populares ocor-reram na Corte nesse contexto, envolvendo, inclusive, a populao de cor.Prova dessa movimentao foi o esforo das foras policiais poca no sentidode explorar as ruas e as vielas atrs de papis e proclamaes incendirias e deajuntamentos perigosos de negros. Alm de coibir panfletos insidiosos epunir com rigor as desordens e os ajuntamentos, buscava-se proibir o funcio-namento de tavernas, lojas e botequins que continuassem abertos ao pblico emhoras indevidas, com o intuito de impedir que aquele processo adquirisse umafeio radicalizada.

    No contexto das revoltas regenciais, a luta poltica atingiu nveis nunca an-tes alcanados, abrindo espao para que discursos alternativos fossem formu-lados com maior sistematicidade nas esferas pblicas subalternas. Nesse mo-mento de exploso da palavra pblica (Morel 2003, p. 10) marcado poragitaes na Bahia (Sabinada, de 1837 a 1838), Par (Cabanagem, de 1832 a1835), Rio Grande do Sul (Farroupilha, de 1835 a 1845), Maranho (Balaiada,de 1838 a 1841) , a despeito das diferenas existentes e do grau de radicalismode cada um, os movimentos contestatrios valorizaram as manifestaes pbli-cas coletivas como forma legtima de ao poltica. Envolvendo pessoas dasmais diversas camadas sociais, essa politizao das ruas inclusive, mediantea mobilizao de panfletos e jornais animou a resistncia construo deprojetos de cima para baixo e atuou como lcus de exerccio da cidadania(Basile 2007, pp. 56-57).

    Mesmo entre os escravos foi possvel a construo de redes de sociabilidadee organizao coletiva. Muitas pginas j foram gastas e ainda o sero no debatea respeito da resistncia escrava. abordagem de Gilberto Freyre, em CasaGrande e Senzala que, segundo seus crticos, suavizava as relaes entresenhores e escravos no Brasil colonial, seguiram os estudos que procuravamenfatizar apenas a rigidez e a violncia do regime escravista, demonstrando ocativo somente como vtima passiva e objeto da ao dos senhores8. Por outrolado, algumas pesquisas buscaram realar que somente atravs das fugas, daviolncia contra os senhores e da formao de quilombos, que os cativos

    134 Fernando Perlatto

    6 No sugiro que as esferaspblicas subalternas sejamsempre virtuosas. Algumasdelas so explicitamenteantidemocrticas e anti-igualitrias, e mesmo aquelascom intenes democrticas eigualitrias eventualmentepraticam seus prprios modosde excluso informal emarginalizao. Ainda assim,na medida em que so esferaspblicas, eles ajudam aexpandir o espao discursivo.Em princpio, assumpes queforam previamente excludasda contestao tero de seragora publicamente discutidas.Em geral, a proliferao dasesferas pblicas subalternassignifica uma ampliao dacontestao discursiva, e isso uma coisa boa em sociedadesestratificadas (Traduo doRevisor).

    7 Caso desejemos retrocederno tempo para analisar espaosde sociabilidade dossegmentos subalternos que,inclusive, permaneceramexistindo no decorrer doperodo imperial, poderamosdestacar a importncia dasirmandades religiosasconstitudas pelos negros.Sobre esse tema, ver Reis(1997), Souza (2002) e Borges(2005).

    8 Entre os estudos queseguiram essa perspectiva,podemos destacar as anlises

  • negariam a escravido. Alguns lderes dessas revoltas eram transformados emheris e os pequenos mocambos ou revoltas rapidamente sufocadas ou atmesmo a resistncia cotidiana eram considerados de menor ou de quase ne-nhuma importncia histrica (Gomes 2005).

    Visando contestar a dicotomia destes estudos que colocavam de um ladoZumbi dos Palmares o escravo que luta revolucionariamente contra osistema e de outro Pai Joo o cativo submisso e conformado , surgiramnovas abordagens baseadas em profundas pesquisas empricas, assim comodialogando com outros aportes tericos e metodolgicos, que visavam reexa-minar e problematizar a resistncia escrava em diferentes pticas. Esses estudosapontam para o fato de que os escravos negociaram mais do que lutaramabertamente contra o sistema (Reis & Silva 1989). Essas novas abordagens, quepassaram a valorizar o escravo como um agente histrico, preocuparam-se emevidenciar que antes de chegar ao Brasil essas pessoas possuam uma histria euma cultura, que influenciaro decisivamente as relaes estabelecidas entreeles, seus senhores e a sociedade (Priore & Venncio 2004).

    As pesquisas historiogrficas desenvolvidas nas ltimas trs dcadas tmprocurando enfatizar os aspectos multifacetados da resistncia negra durante aescravido, visando demonstrar de que forma os cativos reelaboraram, reor-ganizaram e transformaram, sempre que possvel, o universo em que viviam,desenvolvendo noes prprias sobre o conceito de liberdade (Chalhoub 1990).As variadas formas de resistncia escrava evidenciam que no somente rea-giam, mas que agiam, enfrentando processos de lutas, conflitos e acomo-daes, desenvolvendo uma contracultura fora da rbita da poltica formal, quese valeu fundamentalmente da performance, nos termos de Gilroy (2001).Embora os senhores procurassem controlar sistematicamente a populaoescrava, os cativos buscavam modificar seus destinos, alargando seus espaosem busca de autonomia dentro da escravido, ampliando e reinventando asestratgias de resistncia, valendo-se principalmente dos discursos ocultosem um momento no qual a crtica aberta era demasiadamente arriscada.

    Conforme destacamos no tpico anterior, sobretudo a partir das dcadas de1870 e 1880, houve um aumento significativo da presso de diferentes setoresda opinio pblica em favor da abolio da escravido. Somado ao aumento daresistncia escrava, essas manifestaes contriburam para a configurao deum contexto no qual discursos ocultos e personagens outrora relegados sesferas pblicas subalternas pudessem participar com maior fora dos embatesna esfera pblica seletiva. Em seu estudo sobre associativismo na AmricaLatina, Leonardo Avritzer chama a ateno para a criao, a partir da dcada desessenta do sculo XIX, de diversos clubes abolicionistas no Rio de Janeiro,Ouro Preto e Recife, os quais se destacariam pela organizao de manifestaespblicas e pela utilizao da imprensa para a realizao de discusses comcontedo moral na esfera pblica (Avritzer 1997, p. 158). Contudo, Avritzerno explora de forma mais sistemtica o impacto desse movimento para aconstituio da esfera pblica no pas. Em estudos recentes, Angela Alonsoparte de hiptese diferenciada, sustentando a importncia das mais de duzentasassociaes abolicionistas que foram constitudas desde o incio da campanhaantiescravista at 1888 no apenas no sentido de transformar a agenda abolicio-nista em um tema do debate pblico, mas em trazer para a vida poltica outsid-ers polticos, como ex-escravos, mulheres e, at mesmo, crianas, expandindo,dessa maneira, tanto o pblico quanto o espectro de agentes sociais praticantesda poltica (Alonso 2011, p. 189).

    Contudo, importa destacar que, findo o processo de Abolio, os ex-escra-vos, libertos por alforria, ingnuos (nascidos no ps-1871) e a populao delivres e pobres, em geral, tiveram que lidar com uma nova etapa da violncia

    Seletividade da esfera pblica e esferas pblicas subalternas 135

    da chamada escola paulistade sociologia, especialmenteos estudos de Cardoso (1962)e Ianni (1978).

  • fsica e simblica, forando-os a encontrar novas performances habilidosas deresistncia e manifestao. Nesse novo contexto, os setores subalternos tiveramque, atravs da conquista, do convencimento e da contnua produo de inter-pretaes, buscar espaos por meio dos quais fosse possvel resistir ao projetodisciplinar construdo na esfera pblica seletiva que instituiu juridicamente afigura do cidado. Essa resistncia, por sua vez, longe de constituir exemplode crtica social envolta num discurso poltico nico, esteve mais presente emsituaes aparentemente triviais, experimentadas em todos os momentos emque esteve em jogo o poder do exerccio da igualdade para homens e mulheresmarcados por origem social ou cor (Cunha & Gomes 2007, p. 14).

    A primeira quinzena republicana, que vai de 1889 at a Revolta da Vacinaem 1904, testemunhou a busca das esferas pblicas subalternas no sentido de semanifestarem com mais nfase, sobretudo durante o perodo jacobino quedurou at 1897, marcado por assassinatos polticos, golpes de Estado, revoltaspopulares, greves, rebelies militares, guerras civis, com elevada participaopopular. Apesar disso, a paz oligrquica inaugurada a partir do governo Cam-pos Sales (1898-1902) promoveu a verticalizao da ordem poltica atravs daexcluso do demos e do controle sobre a dinmica legislativa e sobre a geraode aes coletivas legtimas (Lessa 1999), consolidando o regime mediante oalijamento da participao popular. Conforme destacado por Jos Murilo deCarvalho, organizar um governo republicano vivel significava afastar-se dademocracia (Carvalho 2001, p. 62);

    No obstante as dificuldades advindas da violncia vertical e horizontal esta ltima relacionada ao reduzido mercado de trabalho e aos conflitos exis-tentes entre os operrios, principalmente brasileiros e imigrantes (Chalhoub2001) , o movimento operrio, que comeava a se organizar nesse perodo,logrou criar espaos por meio dos quais pudesse se manifestar. Antes dos anos1920, no havia propriamente uma cultura operria, mas sim culturas mili-tantes, em particular a dos anarquistas, que se pretendiam alternativas culturadominante (Batalha 2004, p. 99). Alis, ao contrrio do que alguns estudosprocuraram evidenciar e do que a memria varguista tentou construir, o movi-mento operrio no se constituiu a partir de 1930. Alm da ecloso de greves, dacriao de sindicatos, sobretudo por ofcio, federaes e confederaes, darealizao de congressos e encontros, havia uma vida popular ativa, inclusivecom a organizao de jornais, panfletos e manifestos, ainda que efmeros, quebuscavam disputar a opinio entre o reduzido nmero de trabalhadores (Batalha2000). A ttulo de exemplo, basta observar a proliferao de jornais anarquistasnesse perodo (Carvalho 1987, pp. 56-58), constituindo esferas pblicas subal-ternas que buscavam, mesmo em uma cultura marcada pela violncia vertical ehorizontal, difundir suas ideias e mobilizar os trabalhadores. Nos momentos demaior mobilizao, como as greves de 1902-1903, 1906-1907, 1917-1919 ou omovimento contra a carestia de vida de 1913, as aes coletivas transcendiamos interesses corporativos, envolvendo muito mais gente do que o nmerorestrito de trabalhadores (Batalha 2003, pp. 172-173). Nessas ocasies, osmovimentos foram duramente reprimidos pelas foras da ordem. Assim comoevidenciado no episdio da Revolta da Vacina (1904), cuja represso brutal eindiscriminada buscou eliminar da cidade todo o excedente humano, poten-cialmente turbulento (Sevcenko 1993, p. 70), qualquer tentativa de organi-zao popular implicava em intensa violncia vertical9.

    Enquanto a grande maioria da populao permanecia alijada de espaosinstitucionalizados de organizao e do acesso esfera pblica seletiva, umapequena parte procurava se manifestar publicamente atravs de queixas emjornais relativas segurana, qualidade dos servios pblicos urbanos e scondies de vida (Silva 1988) e/ou recorrendo ao poder Judicirio no apenaspara reagir contra a represso, mas para reivindicar direitos novos ou pretritos

    136 Fernando Perlatto

    9 Outra situao exemplar derepresso a um movimentopopular foi aquele verificadoquando da Revolta da Chibata,que ocorreu no Rio de Janeiroentre os dias 23 e 26 denovembro de 1910.

  • considerados legtimos (Ribeiro 2009), ao passo que outra encontrava nasdiversas associaes existentes espaos nos quais pudessem assegurar umamparo atravs da proteo frente doena, velhice, ao desemprego e scondies adversas ligadas morte de um familiar. Alm disso, muitas dessasassociaes funcionavam como espaos de lazer e solidariedade, bem comocontribuam para o reforo e ressignificao de identidades coletivas, funcio-nando como instrumentos facilitadores do processo de construo de cidadaniae como instrumentos de pedagogia poltica (Viscardi & Jesus 2007).

    Contrariando diversas anlises, diferentes pesquisas historiogrficas recen-tes vm procurando demonstrar que, desde o Imprio, se consolidou uma ricavida associativa entre os setores populares, possibilitando a construo deesferas pblicas subalternas. Esse processo, contudo, era controlado pelasforas da ordem e nem sempre o processo de obteno da permisso para ofuncionamento dessas associaes era tranquilo, sobretudo quando se tratavamde organizaes coletivas de negros (Batalha 1999; Chalhoub 2007; Jesus2007). Na Primeira Repblica, em um contexto de afirmao de uma ideologialiberal, que convivia com uma sociedade civil ainda muito fragmentada, ofenmeno associativo se ampliou de maneira significativa, sendo criadasdiversas associaes no apenas de ajuda mtua, mas tambm tnicas, culturaise recreativas (Carvalho 1987, pp. 143-145; Batalha 2004).

    Os anos 1920 e 1930 testemunharam processos de transformao nosespaos de sociabilidade dos setores subalternos, em geral, e dos trabalhadores,em particular, impulsionados pelo aceleramento da urbanizao e da indus-trializao, que estimularam a entrada de novos atores e interesses na esferapblica seletiva, sobretudo devido ampliao do acesso educao. A ttulode exemplo, basta observar que em 1922 foi fundado o Partido ComunistaBrasileiro (PCB), que a despeito de ser significativamente constitudo porsegmentos da classe mdia, representava uma primeira tentativa dos segmentospopulares de se organizarem partidariamente para intervir na esfera pblica.Tambm nesse contexto diversos movimentos de minorias comearam a seorganizar, pressionando a esfera pblica seletiva com suas reivindicaes. Nosanos 1930, aps mobilizao por parte da imprensa negra, foi criada a FrenteNegra Brasileira, movimento social que se transformou em partido poltico,para ser extinto em 1937, com o Estado Novo (Guimares 2004, p. 274)10. Almdisso, a presso das mulheres por uma participao mais efetiva na esferapblica tambm comear a ganhar contornos mais claros a partir desse contex-to. Nos anos subsequentes, alternando momentos de avanos e retrocessos, omovimento feminista lograr consolidar esferas pblicas subalternas capazes detecer discursos alternativos ao status quo (Pinto 2003).

    No h como deslocar a anlise da reorganizao das esferas pblicassubalternas a partir da dcada de 1930 sem que se tome em conta a relaocontraditria de incluso e represso, estabelecida pelo Governo Vargas e osgovernos que o seguiram at 1964, sobretudo devido s relaes heternomasestabelecidas entre eles e o movimento operrio que ento se fortalecia. Duranteanos, as relaes entre esses governos e os trabalhadores foram analisadas sob achave explicativa do conceito de populismo que, em linhas gerais, traziaconsigo a ideia de uma poltica de massas, sob a liderana de um lder caris-mtico, que agregava para dentro do Estado o movimento operrio organizado,implicando, de um lado, em pequenos benefcios aos trabalhadores, e por outro,na cooptao dos mesmos pelo regime ento em vigor, impedindo que ostrabalhadores adquirissem conscincia e sentimento de classe (Weffort 1973).Nos ltimos anos, contudo, a interpretao populista tem sido alvo constantede crticas e revises. Diversos estudos vm sendo desenvolvidos, questionandoa pertinncia da utilizao do termo populismo para compreenso desseperodo da histria brasileira, recusando-se a noo de uma posio poltica

    Seletividade da esfera pblica e esferas pblicas subalternas 137

    10 Aps o fim do EstadoNovo, haver umrenascimento dasorganizaes negras, comdestaque para a Unio dosHomens de Cor (UHC), grupofundado em Porto Alegre em1943 e que cinco anos maistarde se ramificou por maisdez estados da Federaomediante a mobilizao deperidicos da imprensa negra(Silva 2003). Variados estudosrecentes vm procurandodestacar a importncia doprotesto negro no decorrerdo sculo XX, queculminaram nas diversasconquistas simblicas junto aopoder institucional realizadasnos ltimos anos (Rios 2012).

  • passiva dos trabalhadores e destacando sua atuao como sujeitos, em per-manente interlocuo com o Estado, que embora fosse marcada por uma relaoassimtrica, no se constitua somente pela mera represso e cooptao. A ideiade pacto trabalhista visa alcanar justamente o objetivo de evidenciar queembora desiguais, as relaes entre Estado e classe trabalhadora no erammarcadas exclusivamente pelo predomnio total do primeiro sobre a passi-vidade da segunda (Gomes 1988; Ferreira 2001).

    Dessa maneira, as pesquisas passaram a valorizar a atuao dos segmentospopulares como agentes desse processo, que buscavam, nos meandros dosistema autoritrio, encontrar maneiras de conseguir benefcios concretos e, sepossvel, construir esferas pblicas subalternas capazes de questionar a ordemem questo. O processo de fortalecimento das esferas pblicas subalternas tevenovo nimo principalmente a partir do incio dos anos 1950 e 1960, quandodiversos movimentos sociais em constituio passaram a pressionar cada vezmais a esfera pblica seletiva para promover reformas estruturais profundas, in-clusive contando com a participao dos trabalhadores do mundo agrriomediante a organizao das Ligas Camponesas e com a difuso do sindicalismorural. O golpe militar de 1964 veio interromper esse andamento e constituiu-secomo um interregno de perseguio, censura e represso a quaisquer tentativasde organizao popular.

    O perodo da ditadura militar foi uma poca por excelncia da constituiode discursos ocultos, na formulao de Scott (2003) que, devido represso,buscavam expressar principalmente por meios informais sua oposio em ummomento no qual a crtica aberta era demasiado arriscada. Aquele mundo que,aparentemente, comportava-se de maneira submissa diante daquele contexto deviolncia institucionalizada, movia-se por meio de performances habilidosas deresistncia na luta pelo reestabelecimento do Estado de Direito. Foi justamentea partir desses discursos ocultos, tornados aos poucos falas pblicas, quecomearam a se constiturem esferas pblicas subalternas pujantes e contes-tatrias da ordem. O perodo de redemocratizao foi marcado pela emergnciade novos atores que buscava pressionar a esfera pblica seletiva para fazer ouvirsuas vozes e pressionar pela consecuo de seus interesses (Sader 1995).

    A mobilizao de diversos setores da sociedade civil como a Ordem dosAdvogados do Brasil (OAB), a Associao Brasileira de Imprensa (ABI), aSociedade Brasileira para o Progresso da Cincia (SBPC), alguns setores daIgreja Catlica, instituies cientficas pblicas e privadas, assim como movi-mentos de minorias no decorrer destes anos teve como smbolo principal asreivindicaes dos metalrgicos no ABC paulista, que desembocou na criaodo Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central nica dos Trabalhadores(CUT). Essa movimentao evidencia o grau de organizao da sociedadebrasileira e dos movimentos sociais, que desejavam influir decisivamente noprocesso de construo da nova democracia. O aparecimento de novos movi-mentos sociais ligados s mulheres, aos negros, s causas ambientais, reforma agrria e urbana , vitalizando a infraestrutura comunicativa do mundoda vida, desencadeou uma ampla discusso de temas at ento no proble-matizados, tornando-os questes de relevncia social e passveis, por conse-guinte, de interveno poltica (Costa 2002).

    guisa de concluso desta seo, convm destacar que, no decorrer dahistria brasileira, a msica e a religio talvez tenham sido as principais formasde expresso e sociabilidade dos setores populares na busca pela construo deesferas pblicas subalternas. Durante o perodo imperial, por exemplo, paralela-mente s festas oficiais organizadas pela realeza, havia uma profuso de festaspopulares, como as cavalhadas, congadas, batuques, folia de Reis efesta do Divino, que tinham como palco a rea central da cidade (Schwarcz

    138 Fernando Perlatto

  • 1998, pp. 247-278). As prticas musicais no decorrer da histria brasileira fossem elas organizadas em senzalas, quilombos, rodas de samba, sedes dassociedades carnavalescas, sales de bailes populares ou teatro de revistas faziam parte da vida, do lazer e das demandas polticas de setores populares e,embora muitas das suas modinhas, lundus, sambas, msicas de protesto, rap,hip hop, funk etc. tenham sido alvo de represso, as canes produzidas pelossubalternos irreverentes, obscenas ou graciosas lograram alcanar osespaos da esfera pblica seletiva11.

    Em relao religio, a despeito de no colocarem em cheque a institu-cionalidade oficial, os setores subalternos a interpretaram de maneira prpria,apropriando-se dos smbolos e crenas de acordo com suas experincias enecessidades, mesclando-os com outras formas no necessariamente oficiaispara o exerccio da religio. Houve, no decorrer da histria, uma permanentetenso entre o catolicismo da hierarquia eclesistica e o catolicismo popular,assim como no interior destes, revelando a pluralidade de possibilidades deapropriao existentes. Essa sociabilidade, portanto, no era organizada pelainstitucionalidade oficial catlica, embora essa fornecesse o arsenal interpre-tativo sobre o qual o mundo popular edificava novas interpretaes. Trata-se,portanto, de uma religiosidade aberta, em constante movimento e criao, queenvolve rezadores, curandeiros, pais e mes-de-santo, benzedeiras etc. e supeuma vida comunitria ativa. As festas e a profuso de irmandades e associaesreligiosas revelam um mundo popular que se associava e continua se associan-do, lendo de maneira criativa as tradies, que tentam regular essas mani-festaes12.

    Dessa forma, possvel perceber que, no obstante a existncia da violnciavertical e horizontal s quais os setores subalternos estiveram submetidos nodecorrer da histria brasileira, eles buscavam se organizar por diferentes meiose de diversas formas, seja para resistir, seja para criar novos mundos alterna-tivos quela ordem repressora, pressionando, de diversas maneiras, a esferapblica seletiva. Os populares possuam noes prprias de justia e, quandoenvolvidos em situaes de conflito, seguiam rituais de conduta que mostravamapego a valores muitas vezes opostos queles prezados pelas classes domi-nantes (Chalhoub 2001, p. 209). Da, a permanente postura repressiva esuspeita dos segmentos dominantes diante de possveis manifestaes dessasesferas pblicas subalternas.

    V. Concluses

    Conforme discutiu-se no presente artigo, desde o comeo do sculo XIX, aolado das duas instituies fundamentais da modernidade, quais sejam, o Estadoe o mercado, foi construda no Brasil uma esfera pblica, ainda que a forma desua configurao tenha ocorrido de maneira seletiva. Pari passu a esse pro-cesso, houve a construo de esferas pblicas subalternas que procuraramresistir de diferentes maneiras aos discursos hegemnicos, sobretudo por meiode performances e falas ocultas, embora tenham ocorrido momentos nosquais elas tenham se tornado discursos pblicos, adquirindo mais fora paradisputar vises de mundo com aqueles formulados na esfera pblica seletiva.

    A percepo da existncia dessas esferas pblicas demanda no apenas umolhar histrico mais acurado, mas um movimento no sentido de perceber outrasformas de manifestaes como legtimas para a configurao de esferas pbli-cas que no se prendam ao paradigma organizacional do mundo europeu ounorte-americano13. Sobretudo quando se analisa a dinmica das esferas pblicassubalternas, deve-se ter em mente que formas de organizao e associativismono Brasil no foram as mesmas do modelo classista dos padres europeus, eos discursos mobilizados na esfera pblica no adotaram necessariamente

    Seletividade da esfera pblica e esferas pblicas subalternas 139

    11 Para uma discusso sobreesses aspectos, vale consultarvrios dos artigos contidos nostrs volumes da coleoDecantando a Repblica. Uminventrio histrico e polticoda cano popular modernabrasileira (Eisenberg,Cavalcante & Starling 2004).

    12 Para uma discusso sobre arelao entre religio e esferapblica no Brasil, ver Montero(2006).

    13 Alguns trabalhos vmprocurando, nos ltimos anos,chamar a ateno para anecessidade de se pesquisar amodernidade no Brasil de

  • padres crticos racionais centrados na dinmica dos interesses, mas assumi-ram, diferentemente, mecanismos mais expressivistas, carnavalescos e ldi-cos, muito mais ancorados na emoo, nos sentimentos, no humor, na ironia ena pardia do que nas palavras de ordem prontas e bem formuladas. Nessesentido, essa perspectiva de pensar os discursos subalternos a partir de lgicasdistintas do mundo europeu estabelece um dilogo direto com os trabalhosproduzidos em torno do grupo dos Subaltern Studies, por autores como GayatriSpivak, Ranajit Guha, Dipesh Chakrabarty e Partha Chatterjee que, em dilogodireto com as formulaes de Gramsci, contribuem para lanar luz sobre novaspossibilidades de investigao em torno dos pblicos subalternos14.

    Talvez um dos principais mritos de Gilberto Freyre (1990) tenha sidojustamente o de perceber o carter solidrio dessa sociabilidade popular, herda-da dos quilombos e atualizada pelos mocambos, marcada pela miscigenao epela pluralidade, que permitiria a ns, inclusive, um ingresso distinto moder-nidade. A importncia da cultura popular, nas suas variadas expresses emnossa vida nacional atuou como o mdium privilegiado de reproduo ereinveno da linguagem dos sentimentos, com sua ambio de reabrir o mundo potncia da multido (Barboza Filho 2008, pp. 33-34). Observada pelaslentes da linguagem dos sentimentos, essa multido fez do improvvel a marcada sua presena e o programa de sua potncia, atuando como combustvel de umprocesso de democratizao, ainda que numa chave passiva15.

    Diversos autores criticaram nos ltimos anos a ausncia de um vaziomotivacional na teoria habermasiana, destacando o fato de seu procedimentalis-mo ser demasiadamente racionalista (Ottmann 1992, p. 65)16. As crticas maissistemticas, nesse sentido, do ponto de vista terico, foram produzidas porautores associados ao chamado comunitarismo, como Charles Taylor, MichaelSandel, Alasdair MacIntyre e Michael Walzer. A despeito das diferenasexistentes em seus trabalhos, os comunitaristas criticaram o procedimentalismoracionalista, universalista e deontolgico presente no apenas nos trabalhos deHabermas, mas tambm de John Rawls, que desconsideraria a importncia dosvalores e configuraes morais historicamente partilhados de uma comunidadepara se pensar normativamente questes de justia e democracia17.

    Rubem Barboza Filho estabelece uma crtica pertinente ao modelo dedemocracia deliberativa habermasiano ao enfatizar que no obstante ele con-temple as exigncias de uma razo bem compreendida, recusando a inevitabili-dade de sujeio ao interesse egosta e ao clculo estratgico, ele incorporaapenas parcialmente o sentimento bem compreendido, isto , os valores, queseriam elementos fundamentais para pensar analiticamente e normativamenteformas de vida democrticas. Nesse sentido, a formulao habermasiana tornasecundria a importncia dos processos expressivistas e dos sentimentos paraa construo da democracia (Barboza Filho 2003)18. No caso do Brasil, formascada vez mais aperfeioadas de organizao democrtica s podero ser conso-lidadas caso sejam acompanhadas de uma vontade ou de um sentimento dedemocracia, que reinvente a nossa tradio expressivista, presente de maneiraintensa na nossa cultura popular, em vez da sua substituio simplista pelamatriz utilitarista do liberalismo19.

    Ao estabelecer um paralelo comparativo entre as obras de Habermas eBakhtin, Gardiner (2004) aponta para o fato de o primeiro concentrar suaateno em uma forma de racionalidade abstrata, distante das situaes da vidacotidiana. Dessa forma, separando as razes morais das consideraes sobrejustia e colocando no primeiro plano as formas de reivindicao de validade,Habermas teria dedicado pouca ateno ao humor, ironia e pardia, idea-lizando o ato de fala como uma situao de pureza. Bakhtin, ao contrrio, semcair no relativismo, colocar-se-ia de maneira crtica ao universalismo abstrato

    140 Fernando Perlatto

    modo a superar modelos quetomam a ideia demodernidade a partir de umreferencial nico, e que tmcomo corolrio a avaliaoda modernidade brasileiraassociada s ideias deausncia einautenticidade. Para umadiscusso terica sobre esseaspecto, ver Tavolaro(2005).14 A obra de Spivak (1988),em especial, inspirada pelaexperincia indiana, abre umcampo importante deinvestigao sobre estespblicos nas periferias aoproblematizar a ideiasegundo a qual um sujeito,como o movimento operrio,seria o portador do discursosubalterno. Para a autora, aexperincia perifrica apontapara a heterogeneidade devozes que constroem suasfalas e subjetividadesprecrias em contextosdiferenciados do paradigmaeuropeu.15 A despeito dereafirmamos o fato dasesferas pblicas subalternasno serem necessariamentedemocrticas e igualitrias,reproduzindo padres dehierarquia inclusive, porestarem inseridos em umasociedade que possui umacultura poltica fortementeautoritria , dar voz a elesimplica na expanso doespao discursivo,permitindo conferir primaziaao princpio de integraosocial e da solidariedade, apartir da perspectiva dosprprios participantes.16 Habermas (1990) criticaRousseau pelo fato deste, aoacreditar que a virtude cvicados cidados individuaisproporcionar per se aconstituio de um conjuntode cidados orientados parao bem comum, darpreferncia mais aoconsenso dos coraes doque aos argumentosracionais, desejando ele, porconsequncia, umademocracia sem debatepblico. A moralidade queRousseau advogava queresidisse nas motivaes evirtudes dos indivduosdeveria estar, segundoHabermas, ancorada noprprio processocomunicativo, operado no

  • kantiano, focalizando o fazer prtico dirio e as possibilidades de transformaoe mudanas de significados em contextos concretos diferenciados. Essa percep-o de Bakhtin pode ser articulada com o debate sobre as esferas pblicassubalternas no Brasil, posta a sua valorizao da pluralidade de vozes existentesno mundo pblico que, apesar de combinarem consentimento e resistncia,questionam e subvertem a ordem a todo o momento, por meio de estratgiascarnavalescas, marcadas pela inventividade e pela criatividade.

    Nesse sentido que se coloca a tarefa da construo de estruturas especficasde captao dos interesses e pblicos subalternos, no apenas mediante a foraexpressiva dos argumentos, mas tambm das performances, da linguagem dossentimentos e das formas no verbais de comunicao. As expresses culturais,contudo, importante dizer, no se apresentam em sua concretude como projetopoltico, devendo, para tanto, serem apropriadas por grupos sociais mais am-plos, que as reinterpretaro e as orientaro politicamente (Ortiz 1986, p. 142).Conforme destacado pelo prprio Habermas, a soberania do povo, diludacomunicativamente, no pode impor-se apenas atravs de discursos pblicosinformais para gerar poder poltico, devendo sua influncia abranger tambm asdeliberaes democrticas da formao da opinio e da vontade, assumindo aforma autorizada (Habermas 1997, p. 105). O desafio que se coloca, portanto,relaciona-se necessidade da conexo das instituies polticas com essasesferas pblicas subalternas, de modo a converter suas potencialidades organi-zativas em uma verdadeira poltica de transformao do pas.

    Fernando Perlatto ([email protected]) Doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Polticos (IESP), daUniversidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e Professor Adjunto do Departamento de Histria e do Programa dePs-Graduao em Histria da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

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    Seletividade da esfera pblica e esferas pblicas subalternas 141

    interior da esfera pblica evoltado para a formao daopinio e da vontade coletiva.17 Para uma discusso maissistemtica sobre esse aspecto,ver Walzer (1990) e Taylor(2000).18 Em ensaios recentes,sobretudo em seus estudossobre religio e esfera pblica,embora venha admitindo apertinncia do papel dosvalores, Habermas (2001)continua a aprision-los nosprocedimentos enquantocondies prvias democracia, conferindo-lhesum papel secundrio nodesenho normativo dodeliberacionismo.19 O brasilianista RichardMorse (1988), em sua obra Oespelho de prspero, foi umdos primeiros autores achamar a ateno para aspotencialidades civilizatriasda opo ibrica com suasconotaes organicistas ecomunitrias, quandocomparada com o mundoanglo-saxo, sobretudo por suaporosidade diversidade dognero humano, o seu idealrousseauniano de justia e davontade geral comoinstrumento poltico deconstruo de identidade eemancipao, bem como porsua crena em uma realidadesocial transcendente aoindivduo e a vitalidade doelemento ldico, fundamentalpara o desenvolvimentocultural e a improvisaosocial.

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