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1 RELAÇÕES DE PODER ENTRE SENHORES E ESCRAVOS E UMA POSSÍVEL TENTATIVA, A PARTIR DO ARTIGO “SENHORES E SUBALTERNOS NO OESTE PAULISTA”, DE DESVENDAR ESSAS RELAÇÕES. Liliane Tereza Pessoa Cunha Departamento de História - UFRN RESUMO As análises referentes às relações de poder entre “senhores” e seus subordinados, isto é, escravos, são apresentadas e generalizadas em torno dos maus tratos, juntamente com uma difícil convivência entre essas diferentes classes, que de fato acontecia. Contudo, não podemos generalizar que a coerção e os maus tratos estavam presentes em todas as casas senhoriais. Segundo Paul Lovejoy, essas relações são muito mais complexas do que parecem. As concubinas são um exemplo disso, uma vez que eram escravas internas, prestavam serviços domésticos e sexuais aos senhores e, consequentemente, exerciam funções na casa senhorial, possuindo certas regalias, se compararmos com a situação dos escravos da senzala, que vivam a margem da casa grande. O historiador Robert Slenes, a fim de desmistificar essa prática generalizada de maus tratos, bem como as relações existentes entre os escravos e senhores, afirma que muitos documentos e relatos da época demonstram relações afetuosas entre essas diferentes classes. O seu artigo, “Senhores e Subalternos no Oeste Paulista”, é redigido a partir de uma documentação encontrada, mais especificamente uma carta de alforria, assinada por um filho comum entre escrava e senhor, libertando a sua mãe. Dessa forma, Slenes, utilizando-se do uso da sensibilidade e da emoção, haja vista que não era comum, no século XIX, um filho ser o proprietário de sua mãe, tentará aprofundar os conhecimentos a cerca das relações de poder entre senhores e subordinados. Palavras-chave: Poder; Senhor; Escravo; Relação. ABSTRACT The analyzes referring to power relation between “landlords” and the slaves, are presented and generalized as mistreatment and a difficult intimacy among them, wich it did occur. However, we can not confirm that this was a common behavior present in all of landlord`s house. According to Paul Lovejoy, those relations are much more complex than it seems. The concubines are a true example of that, once they were slaves kept inside the houses, as housekeepers and paying sexual services, and consequently, exerted a few roles, being privileged, compared with the others slaves outside the house. The historian Robert Slenes, in order to demystify this kind of practice of mistreatment between slaves and landlords, says that many documents and reports from the past shows the affection among those different classes. His article called “Senhores e Subalternos no Oeste Paulista”, was written under documents found, more specifically an “Alphorria” letter, signed from slave-landlord’s son, setting his mother free. In that form, Slenes uses the sensitivity and emotion, though, it was not ordinary in the XIX century, a son who

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Comentário do texto, publicado por historiadora norte-riograndense.

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RELAÇÕES DE PODER ENTRE SENHORES E ESCRAVOS E UMA POSSÍVEL TENTATIVA, A PARTIR DO ARTIGO “SENHORES E SUBALTERN OS NO

OESTE PAULISTA”, DE DESVENDAR ESSAS RELAÇÕES.

Liliane Tereza Pessoa Cunha Departamento de História - UFRN

RESUMO As análises referentes às relações de poder entre “senhores” e seus subordinados, isto é, escravos, são apresentadas e generalizadas em torno dos maus tratos, juntamente com uma difícil convivência entre essas diferentes classes, que de fato acontecia. Contudo, não podemos generalizar que a coerção e os maus tratos estavam presentes em todas as casas senhoriais. Segundo Paul Lovejoy, essas relações são muito mais complexas do que parecem. As concubinas são um exemplo disso, uma vez que eram escravas internas, prestavam serviços domésticos e sexuais aos senhores e, consequentemente, exerciam funções na casa senhorial, possuindo certas regalias, se compararmos com a situação dos escravos da senzala, que vivam a margem da casa grande. O historiador Robert Slenes, a fim de desmistificar essa prática generalizada de maus tratos, bem como as relações existentes entre os escravos e senhores, afirma que muitos documentos e relatos da época demonstram relações afetuosas entre essas diferentes classes. O seu artigo, “Senhores e Subalternos no Oeste Paulista”, é redigido a partir de uma documentação encontrada, mais especificamente uma carta de alforria, assinada por um filho comum entre escrava e senhor, libertando a sua mãe. Dessa forma, Slenes, utilizando-se do uso da sensibilidade e da emoção, haja vista que não era comum, no século XIX, um filho ser o proprietário de sua mãe, tentará aprofundar os conhecimentos a cerca das relações de poder entre senhores e subordinados. Palavras-chave: Poder; Senhor; Escravo; Relação.

ABSTRACT The analyzes referring to power relation between “landlords” and the slaves, are presented and generalized as mistreatment and a difficult intimacy among them, wich it did occur. However, we can not confirm that this was a common behavior present in all of landlord`s house. According to Paul Lovejoy, those relations are much more complex than it seems. The concubines are a true example of that, once they were slaves kept inside the houses, as housekeepers and paying sexual services, and consequently, exerted a few roles, being privileged, compared with the others slaves outside the house. The historian Robert Slenes, in order to demystify this kind of practice of mistreatment between slaves and landlords, says that many documents and reports from the past shows the affection among those different classes. His article called “Senhores e Subalternos no Oeste Paulista”, was written under documents found, more specifically an “Alphorria” letter, signed from slave-landlord’s son, setting his mother free. In that form, Slenes uses the sensitivity and emotion, though, it was not ordinary in the XIX century, a son who

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owns his own mother, and tries to explain the power relation between landlords and the slaves. Keywords: Power; Landlords; Slaves; Relation

DISCUSSÕES HISTORIOGRAFICAS: TRANSFORMAÇÕES NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA, NO TOCANTE A ESCRAVIDÃO.

À luz da historiografia brasileira, algumas considerações precisam ser elencadas, a fim de obter uma compreensão melhor do que representou os estudos do historiador Robert Slenes. Os estudos historiográficos referentes à década de 60 consistiam na coisificação do escravo. A década de 70, por sua vez, é marcada pelos estudos da brecha camponesa, tendo como principal representante o historiador Ciro Flamarion Cardoso e, por fim, na década de 80 tem-se a tentativa de inserção dos sujeitos considerados secundários como agentes históricos. Para isso, os historiadores trabalham com o cruzamento das fontes. É exatamente na década de 80 que o historiador do estudo em questão se enquadra.

O antropólogo de etnia negra, Raimundo Nina Rodrigues, localizado no início

do século XX, afirma que o “caldeamento cultural”, isto é, a miscigenação das diferentes etnias, incluindo a negra que forma o povo brasileiro, torna o país repleto de seres inferiores. Os Estados Unidos, por exemplo, conseguiu alcançar a superioridade à medida que era dirigido por brancos. Gilberto Freyre, por volta dos anos 30 do século XX, valoriza a miscigenação portuguesa que originou o povo brasileiro. Apenas o português é capaz de organizar a sociedade, todavia o negro contribui com a fusão de sua cultura.

A escola sociológica paulista, representada por Florestan Fernandes e

Fernando Henrique Cardoso, busca investigar a história do ponto de vista do negro. Neste contexto, o pensamento marxista brasileiro vai se opor à visão de Freyre. A historiografia dos anos de 1960-70 utiliza o conceito de “classe social” e “lutas de classe”. Para os marxistas brasileiros, Freyre, visando apresentar as elites luso-brasileiras como civilizadas e com uma visão do progresso, apaziguaria as tensões e as agudas contradições características das relações entre senhores e escravos. Segundo Emília Viotti da Costa, com o passar dos anos, “a distância entre senhores e escravos ampliava-se.” (COSTA, p. 334, 1998). Ela afirma ainda que apenas a coerção possibilitava o trabalho dos escravos, ou seja, sem os castigos físicos, os escravos não trabalhavam com eficiência.

No tocante aos estudos referentes à escola sociológica paulista, Florestan

Fernandes pretendeu romper com o Brasil criado pelos portugueses e as elites brasileiras. O processo histórico brasileiro era caracterizado com base na escravidão. Florestan Fernandes afirmava que a escravidão deixou marcas nas relações sociais, caracterizada na fusão cultural, que posteriormente, formam a diversidade na cultura do país. O escravo, diferente do que Freyre afirmava, é reconhecido pela capacidade de transformar a sociedade e por sua resistência e rebeldia. A crítica tecida a Gilberto Freyre ia mais além.

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“A escravidão suave é um mito cruel a ser destruído. Os escravos não eram cidadãos, não podiam ter armas, propriedades, vestir-se como quisessem, sair à noite, reunir-se [...] Moravam em quase prisões, amontoados. Trabalhavam sob coerção, repressão e violência, com longas jornadas. Eram castigados cruelmente e marcados a ferro quente. Suas condições de vida eram as piores. Falar em suavidade e ternura nas relações senhor/escravo é ir cinicamente contra os fatos. [...] Sentiam-se como coisas e não como sujeitos sociais.” (GORENDER, 1990).

O sociólogo Fernando Henrique Cardoso, pretendeu alcançar a totalidade em

uma dada realidade, bem como a compreensão quanto à dinâmica capitalista à luz da realidade brasileira. A partir desta concepção, Fernando Henrique Cardoso reflete com base no método dialético materialista e, assim como Florestan Fernandes, partirá do viés econômico. Em sua tese, escrita em 1962, cujo título corresponde a Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional – o negro na sociedade escravista do Rio Grande do Sul, Fernando Henrique Cardoso analisa a escravidão não pela quantidade, já que era mínima, por não ser ligada ao mercado mundial, mas pela relação de produção. “O tema escravidão é muito importante para o conhecimento do Brasil, pois revela muitos aspectos ainda dominantes: os valores brasileiros, as aspirações brasileiras, as desigualdades e injustiças brasileiras.” (REIS, p. 247, 2007). Fernando Henrique Cardoso remete o fim da escravidão ao baixo número de escravos na região, ao fim do tráfico, a alta taxa de mortalidade e ao avanço capitalista.

Com base nas pesquisas sobre a escravidão, o historiador Carlos Eugênio

Líbano Soares (2010) afirma que seria importante se uma documentação específica, mostrando a trajetória de um dado escravo fosse encontrada - seria o uso da microhistória, tendo como principal representante o historiador italiano Carlo Ginzburg, com a obra O queijo e os vermes. Porém, afirma ainda a baixa probabilidade que isto aconteça, embora não seja impossível. O historiador Robert Slenes, em seu artigo Senhores e Subalternos no Oeste Paulista (1997), principal representante da historiografia que visa inserir o escravo como agente histórico, analisa uma documentação, na qual tenta montar a trajetória da família Gurgel Mascarenhas. Este é um exemplo de que, como afirmou Carlos Eugênio Líbano Soares, não é impossível encontrar uma vasta documentação a respeito da vida de um único escravo. Neste caso, Robert Slenes vai além em suas análises e tenta reconstruir a trajetória de vida de uma família.

De acordo com estas concepções em torno da historiografia brasileira e com base neste estudo específico do historiador Robert Slenes, Senhores e Subalternos no Oeste Paulista, é relevante uma análise acerca das relações de poder entre senhores e subalternos, cujo recorte espacial utilizado equivale a região de Campinas, durante o século XIX. Embora Slenes analise especificamente a região de Campinas, acredita ainda que tais interpretações sejam uma realidade em certas regiões do Rio de Janeiro e em toda São Paulo.

BASE DE SUA PESQUISA: FAMÍLIA GURGEL MASCARENHAS.

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O artigo Senhores e Subalternos no Oeste Paulista é redigido a partir de uma documentação encontrada, mais especificamente uma carta de alforria, assinada por um filho comum entre escrava e senhor, libertando a sua mãe, após recebê-la de herança, posteriormente ao seu casamento.

“Digo eu Isidoro Gurgel Mascarenhas, que entre os mais bens que possuo [...] sou senhor e possuídos, de uma escrava de nome Ana [...] [recebida na herança] de meu Pai, Lúcio Gurgel Mascarenhas [...] e como a referida escrava é minha Mãe, verificando-se a minha maioridade hoje, pelo casamento de ontem, por isso achando-me com direito, concedo À referida minha Mãe plena liberdade, a qual concedo de todo o meu coração.” (SLENES, 1997, p. 234).

Além de lidar com a propriedade escrava, embora este discurso seja carregado

de emoção, já que a dita escrava seria a mãe de seu senhor, recebida de herança, após a morte de seu pai, Lúcio Gurgel Mascarenhas, percebe-se uma relação entre senhor e subalterno, uma vez que este, o “senhor” e “possuidor” da referida escrava, liberta-a com a concepção de que a escrava lhe pertencia por direito, isto é, o senhor, possuidor por direito da sua mãe, a escrava Ana, emocionado pelo devido ato, a libertaria, o que não era uma situação frequente no século XIX.

Slenes, a partir de suas pesquisas, encontra uma vasta documentação, - a carta

de alforria abordada anteriormente também está inclusa - cuja presença do avô de Isidoro, Pedro Gurgel Mascarenhas, é notória. De acordo com esses documentos, o historiador Robert Slenes tentará montar a trajetória de vida dos Gurgel Mascarenhas, bem como analisar as relações de poder provenientes dessa família. Suas pesquisas, assim como na sua obra Na senzala, uma flor, englobam a região de Campinas, embora o mesmo intitule o seu artigo de Senhores e Subalternos no Oeste Paulista, isto é, uma tentativa de analisar Campinas e abranger tais informações com base nos dados obtidos.

Segundo um processo judicial do ano de 1829, no qual o avô de Isidoro, Pedro

Gurgel Mascarenhas, move contra um devedor, Slenes conclui que este comprava negros para revender, visto que o comércio escravista era favorável, o que seria uma possível explicação para a acumulação do seu patrimônio. Conforme os relatos encontrados, Pedro Gurgel Mascarenhas já havia comprado e revendido mais de trezentos escravos, ou seja, tem-se a constatação de um possível mercado de negros. Hebe Mattos de Castro, cujo seus estudos baseiam-se no Rio de Janeiro, especificamente, afirma a dificuldade de um pequeno agricultor obter acesso a escravos e a terra, principalmente pelos riscos que estes agricultores se expunham, - mortalidade, queda na produção, praga, dívidas – provando então que a família Gurgel Mascarenhas é uma exceção. Um aspecto relevante refere-se aos registros de suas propriedades. Quando elas eram registradas, dificilmente o proprietário era identificado como negro.

. Em dezembro de 1843, Pedro redige o seu testamento – estava à beira da morte. Já que nunca havia casado, declara Lúcio, pai de Isidoro, um mulato, como seu filho natural. Na medida em que Pedro é descrito como branco e seu filho natural, Lúcio, é descrito como pardo, constata-se que sua mãe seria negra ou mulata, – no registro, o nome de sua mãe não está antecedido pelo termo “dona”, o que, segundo Slenes, indica pobreza – podendo inclusive ter sido escrava sexual de Pedro. Na condição da possível

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mãe negra ou mulata de Lúcio com o seu pai, Pedro, tem-se uma relação de um homem superior e uma mulher, possivelmente escrava, subalterna. Lúcio só recebe a herança que lhe foi destinada em 1847. Registros criminais apontam que por volta de 1848, Lúcio é detido embriagado, por andar causando desordem. Já em 1850, tem seu nome na lista de votantes, sendo reconhecido e identificado como administrador. Lúcio Gurgel Mascarenhas possuía vinte e três escravos ao falecer, bem como diversas propriedades, enquadrando-o como um homem próspero, de posses.

Algumas considerações devem ser elencadas sobre a população escrava. Tal

população entre os anos de 1779 e 1829 aumentou para 4.800 e até os anos de 1872, aumentou pra 14.000. Conforme Robert Slenes, esse aumento acelerado foi proporcionado pela produção do açúcar e, posteriormente, o desenvolvimento na produção do café, sendo possível, pelo menos a maior parte dele, antes da proibição do tráfico. Todavia, com a proibição do tráfico e o aumento da taxa de mortalidade devido às precárias condições e, consequentemente, as doenças, houve uma baixa na população escrava africana, além do que, com o decorrer dos anos, tais escravos iam envelhecendo. No tocante ao sexo desses escravos, há predominância da população masculina, usada para o trabalho. Assim sendo, gradativamente a população de escravos crioulos aumentou, já que na maioria das vezes, eram os próprios filhos destes africanos.

De acordo com Paul Lovejoy e Stuart Schwartz, há um predomínio da

população africana masculina, uma vez que era inerente ao trabalho. Esta afirmação, de acordo com o artigo em estudo, é pertinente, entretanto em outras regiões, há uma predominância na população de escravas do sexo feminino. Como afirma Carlos Eugênio Líbano Soares, com base nas suas pesquisas sobre a região da Bahia, existia a predominância da população feminina. Assim como a documentação referente aos registros de batismos no Rio Grande do Norte, encontradas no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN), vem apontando uma superioridade no nascimento de crianças do sexo feminino.

À luz das análises de Robert Slenes, a acumulação do patrimônio desta família

é possibilitada com este mercado escravo e com a transformação da região de Campinas em áreas de “grande lavoura”, principalmente na agricultura voltada para exportação do açúcar e, posteriormente, café. A região de Campinas era conhecida como a “região de grande lavoura”.

Seguindo os passos do seu pai, Pedro Gurgel Mascarenhas, Lúcio também não

se casa e à beira de sua morte nomeia seus filhos com escravas, Isidoro (com onze anos), Eufrásia (oito anos) e Martiniano (dois anos) como seus herdeiros legítimos. Já que os seus filhos eram menores de idade, um tutor deveria administrar a herança das crianças até a sua maior idade. Tal aspecto também apresenta uma situação que pode ser relacionada ao poder. Enquanto as crianças não obterem a sua maior idade, devem ficar sobre o poder de um tutor, isto é, elas estão subordinadas a sua vontade. Contudo, o tutor tem o dever de administrar tais bens, de modo que venham a multiplicar-se, visando beneficiar e garantir o futuro dos herdeiros menores de idade.

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SENHORES E ESCRAVAS: POSSÍVEIS FUNÇÕES SOCIAIS EXERCIDAS1 O historiador Robert Slenes tenta abordar mais enfaticamente as relações

existentes entre a escrava Ana e Lúcio Gurgel Mascarenhas, pais de Isidoro, além da função social que Ana exercia. Entende-se como papel social, conceito este utilizado pelo especialista Paul Lovejoy, a utilização das escravas em atividades domésticas e ou sexuais. Tais relações são refletidas na subordinação feminina, nesse caso seria uma escrava, e na dominação masculina

De acordo com este contexto, temos o retrato de uma ordem senhorial

dominante, que utiliza-se de diversos meios para manter o domínio sobre seus escravos. Nenhuma das escravas que Lúcio Gurgel Mascarenhas possuía relação aparece em seu testamento. Possivelmente Lúcio não queria associar seus filhos a mães escravas. Considerando tais possibilidades, seria então uma relação sem afetividade, apenas prestação de serviço que, na maioria das vezes, se a escrava não cedesse, além de correr o risco de ser violentada, poderia ser severamente castigada, assim como no caso da escrava descrita na obra Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava- Brasil Sudeste, século XIX, do próprio Robert Slenes.

Mãe de dois filhos e casada com o também escravo Serafim, Romana sofria

constantes tentativas de violência sexual por parte de seu senhor. O fragmento abaixo, contido na mesma obra, reflete a situação da referida escrava:

“Mais de uma vez o suplicante impediu os atentados libidinosos do seu senhor, e porque na última delas as vidas do suplicante e do seu Senhor, por imprudência deste, corressem iminente perigo, resolveu-se o suplicante aconselhado pela própria mulher do seu dito Senhor, a fugir para o mato com a sua consorte. Este ato de prudência, entretanto, nada garante ao suplicante a sua segurança de vida, nem à sua esposa o pudor, porque (...) [seu senhor] procurou-o tenazmente, dizendo que o há de matar porque precisa da crioula Romana para sua manceba! (SLENES, 1999, p. 27).

Em contrapartida se ficasse a disposição do seu senhor poderia ganhar certos

privilégios. No caso de Ana, a alforria só fora dada com a maioridade do seu filho, visto que os tutores não tinham a intenção de conceder a liberdade das mães de seus “afilhados”, pois não seria favorável, isto é, não produziria renda. A mesma também era tida como escrava fujona - segundo os registros – além do que estava com varíola e com magreza excessiva.

RELAÇÃO DE APADRINHAMENTO

1 O termo função social é utilizado por Paul Lovejoy. Segundo Lovejoy, a população de escravos, quando encontrados em grande quantidade, poderia exercer uma função social, político ou econômico.

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Outro aspecto citado anteriormente e que merece uma devida atenção refere-se à relação de apadrinhamento. Os escravos procuravam escolher pessoas nobres ou em melhor condição para apadrinhar os seus filhos. Era uma espécie de estratégia, na qual o mesmo poderia adquirir benefícios. De acordo com os registros, os escravos domésticos possuíam mais facilidade que os escravos da roça na obtenção de bons padrinhos para os seus filhos. Essa situação poderia gerar conflitos entre os próprios escravos e esse conflito indica relações de poder no convívio dos próprios escravos. Os negros que tinham um contato direto com seus senhores eram “superiores” aos escravos que trabalhavam na roça, produzindo a riqueza dos seus senhores.

A divisão no trabalho também poderia gerar exclusão. Os africanos eram

selecionados para trabalhos braçais, com pouco acesso a proteção dos senhores, enquanto que os “crioulos”, que pertenciam às redes de parentesco formadas nas senzalas, além de falarem a língua local (ladinos) ou os escravos que possuíssem maior vínculo com o senhor, eram destinados aos trabalhos domésticos. Os escravos africanos seriam menos favorecidos em comparação com os crioulos.

PAPEL DA FAMÍLIA ESCRAVA

Dentre esses meios, tem-se o incentivo da formação de parentesco, uma forma

de ligar o escravo a terra e torná-los dependentes e esta iniciativa, conforme Slenes, foi considerada uma política bem sucedida. A formação de laços estreitos entre escravos, que possibilita a formação da família, permite a formação de sua identidade. A figura paterna ao contrário do que se pensa, era bastante presente na família escrava, além do que elas eram nucleares, isto é, eram mais centradas em pais e filhos. O próprio Lúcio Gurgel Mascarenhas, dos vinte e três escravos que possuía, treze constituíam famílias, sendo três casais e sete filhos distribuídos.

Esses laços estreitos fixariam os escravos a terra, visando não separar-se dos

seus entes queridos. Os escravos tenderiam então a ter um melhor comportamento, temendo a venda de algum parente, bem como evitavam fugas, pois as retaliações (coerção) poderiam ser sofridas pelos membros de sua família. “É preciso casar esse negro e dar-lhe um pedaço de terra para assentar a vida e tomar juízo.” (SLENES, 1997, p. 277).

CONCLUSÃO

Como ressaltado anteriormente, os estudos da década de 80 correspondem à

inserção das personagens considerados secundários como agentes históricos. Robert Slenes então seria um importante estudioso desta década. Por meio sua pesquisa incessante de registros que pudessem identificar aspectos da escravidão no século XIX, Slenes constrói um respeitado trabalho, no tocante as produções historiográficas.

Com base no contexto apresentado, uma discussão acerca do trabalho do

historiador é pertinente. Slenes é o representante da concepção historiográfica referente à década de 80. Além desse fato de grande relevância, ele monta o seu trabalho a partir da

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pesquisa em arquivos, ou seja, tenta cruzar os diversos registros encontrados para construir a trajetória de vida da família Gurgel Mascarenhas. Nesse sentido, o historiador trabalharia como um investigador do passado. Slenes busca as marcas deixadas por essa família de aparente importância na sua época, com o intuito de compreender as relações entre senhores e subalternos decorrentes do século XIX. Mais uma vez é perceptível o uso da microhistória, haja vista a tentativa de compreender tal sociedade de acordo com alguns sujeitos particulares do seu tempo.

Dessa forma, a identificação das relações de poder entre senhores e

subalternos está presentes em várias passagens da pesquisa exposta em seu texto “Senhores e Subalternos no Oeste Paulista”. Desde a carta de alforria, em que o filho se intitula “senhor” e “possuidor” de uma escrava, consoante com as relações entre senhores e escravas, escravos africanos e crioulos, escravos domésticos e da roça e a escolha de padrinhos, como apresentado no decorrer do texto. Portanto, as relações não decorrem apenas entre senhores e escravos, como também dentro do convívio entre os próprios escravos.

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