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Senso Comum, Representações Sociais e Representações Cotidianas

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Livro de crítica da ideia de senso comum e da abordagem das representações sociais de Moscovici e outros, apresentando a teoria das representações cotidianas, baseada na teoria de Marx e outros marxistas.

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  • Nildo Viana

    SENSO COMUM, REPRESENTAES SOCIAIS E REPRESENTAES COTIDIANAS

  • VIANA, Nildo. Senso comum, representaes sociais e representaes cotidianas. Baru: Edusc, 2008.

  • NDICE

    Introduo...............................................................................................................................3

    A Idia de Senso Comum.......................................................................................................5

    A Abordagem das Representaes Sociais..........................................................................17

    Teoria das Representaes Cotidianas.................................................................................39

    Consideraes Finais............................................................................................................82

    Referncias Bibliogrficas...................................................................................................84

  • INTRODUO

    O presente livro aborda a temtica das representaes cotidianas. A emergncia, desenvolvimento e abordagem de determinados termos (cientficos, filosficos, tericos, etc.) so produtos sociais e envolvidos nas lutas sociais, bem como as opes que os indivduos assumem no uso ou determinado tipo de uso destes termos. Os termos senso comum e representaes sociais se referem a uma determinada realidade, que, no entanto, como em toda ideologia, invertida, aparece, como j dizia Marx, de cabea para baixo. por este motivo que preferimos trabalhar com o conceito de representaes cotidianas. Mas a escolha de um conceito ao invs de trabalhar com outros pretensos conceitos existentes e dominantes requer uma justificativa. por isto que iremos seguir a seguinte forma de exposio: iniciaremos com uma crtica do termo senso comum, passando posteriormente para uma crtica do termo representaes sociais e finalizaremos com uma exposio e defesa do conceito de representaes cotidianas.

    Assim, no captulo 01, iremos apresentar uma discusso histrica e terica a respeito do termo senso comum. Suas razes sociais sero explicitadas, bem como das mudanas de enfoque e abordagem que recebeu, e seus limites sero expostos. O mesmo procedimento ser realizado no captulo 02, dedicado abordagem das representaes sociais. Aps mostrar que ambos os termos so produtos de um discurso ideolgico, que expressam interesses de classe e revelam os valores dominantes, alm de, devido a isto, no dar conta da realidade, iremos buscar resgatar em Marx e alguns pensadores que se inspiraram nele, uma concepo de representaes cotidianas, isto , um conceito que apresente a realidade do que se chama cultura popular, saber comum, saber popular, conhecimento comum, senso comum, representaes sociais, etc., sem deform-la, sem coloc-la de cabea para baixo, tal como no mundo ideolgico.

    A referncia fundamental aqui Marx. A sua contribuio terica e metodolgica fundamental. Alm disso, ele mesmo fez referncias ao problema das representaes e apresentou um esboo de anlise das representaes que denominamos cotidianas, por motivos que mais adiante sero explicitados e que o prprio Marx apontou. Marx ao tratar das representaes, das representaes ilusrias ou reais, bem como ao colocar a questo das concepes cotidianas, abriu o caminho para a elaborao de uma teoria das representaes cotidianas. Bloch, Gramsci, Sorel, Korsch, entre outros, ao lado daqueles que contribuem com a discusso de termos como os

  • de cotidiano, so aqui resgatados para elaborarmos uma teoria marxista das representaes cotidianas.

    Assim, aps uma reflexo crtica sobre os termos senso comum e representaes sociais, iremos apresentar um esboo de uma teoria das representaes cotidianas a partir da contribuio de Marx e outros pensadores. Obviamente que este estudo poder servir de ponto de partida para diversas pesquisas sobre as mais variadas formas de representaes cotidianas e contribuir para uma anlise mais crtica da cultura e de algumas abordagens existentes. Um ponto de partida que poder ser enriquecido com novas contribuies que posteriormente podero surgir.

  • A IDIA DE SENSO COMUM

    O presente captulo apresenta uma anlise crtica do termo senso comum. Iremos realizar uma contextualizao histrica e social do surgimento das diversas concepes de senso comum e representaes sociais e realizar uma anlise crtica de seu contedo. Este o ponto de partida para recuperarmos, no captulo seguinte, a concepo que ir orientar o desenvolvimento de nossa pesquisa, a idia de representaes cotidianas.

    Por qual motivo a idia de senso comum est sempre presente no discurso cientfico? A resposta mais comum, que refutaremos mais adiante, est na necessidade de separar o saber popular, o conhecimento vulgar, ou qualquer outro nome que se lhe d, do pensamento cientfico, pois o primeiro est cheio de equvocos, contradies, preconceitos etc. e o segundo um pensamento fundamentado, verdadeiro.

    Burguesia e Gnese do Termo Senso Comum

    Na histria das idias veremos sempre uma oposio entre as idias daqueles que se dedicam exclusivamente ao trabalho intelectual e as daqueles que se dedicam ao trabalho manual, que, como todo ser humano, tambm desenvolvem idias. Esta oposio realizada pelos trabalhadores intelectuais. Estes, iro valorar, sobremaneira, o mundo das idias, considerando este mundo superior em contraposio ao mundo do trabalho manual e das idias comuns como inferior. Ao lado e impulsionado por estes valores. Eles produziro um conjunto de idias que justificam, legitima e fundamentam estes mesmos valores. Uma das formas de se fazer isto se encontra na separao entre idia e realidade. Marx e Engels (1991) colocaram que com o surgimento da diviso entre trabalho intelectual e trabalho manual se tornou possvel se pensar em um desenvolvimento autnomo das idias e assim nasce a ideologia.

    Os trabalhadores intelectuais, por se dedicarem exclusivamente atividade intelectual, iro produzir um conjunto de idias sobre os mais variados fenmenos, tanto naturais quanto sociais. Tambm se defrontaro com a questo do saber produzido fora de sua esfera e assim iro opor o seu saber, superior, privilegiado, ao saber popular, inferior, desprezado. O exemplo clssico na antiguidade reside na distino feita por Plato (1970) entre doxa e logos, isto , entre o

  • mundo da opinio (das trevas) e o mundo da razo (das luzes), magistralmente exposta em sua Alegoria da Caverna (Viana, 2000).

    Assim, a partir do momento em que surge a diviso social do trabalho na sociedade de classes, surge a oposio entre o saber dos trabalhadores intelectuais, intimamente ligados ao poder, e, por conseguinte, fazendo destes representantes intelectuais da classe dominante, e o saber do resto da populao, que se torna, a partir da concepo fornecida pela primeira forma de saber, inferior, carregado de preconceitos, equivocado etc.

    A formao da sociedade capitalista ocorreu em meio a um amplo debate e luta cultural. A burguesia nascente e os seus representantes intelectuais realizavam um amplo combate contra a nobreza e, posteriormente, contra o proletariado. Assim, no caldeiro fervilhando da luta de classes, as idias so armas de combate e na luta cultural em que elas so usadas vence aqueles que conseguem a supremacia na sociedade e no a verdade.

    Os representantes intelectuais da burguesia iro buscar construir uma forma de saber adequada aos interesses desta classe. Esta forma de saber deveria romper com as anteriores (filosofia, teologia) e possuir uma especificidade que a legitimasse e, ao mesmo tempo, estivesse em consonncia com as novas relaes sociais da sociedade moderna em formao. Em outras palavras, precisa ser um saber ao mesmo tempo funcional s novas relaes sociais, possuindo, pois, eficcia prtica, e legitimador, o que lhe faz ocultar o verdadeiro carter destas mesmas relaes sociais. Esta forma de saber a cincia.

    Na sua luta contra o mundo feudal, os representantes intelectuais da burguesia encontraram nas cincias naturais nascentes, o recurso ideolgico que precisavam. A cincia, enquanto ideologia burguesa, no podia assumir o seu carter burgus, pois desta forma no conseguiria se legitimar. Isto ocorre devido ao fato de que o saber est intimamente ligado dominao de classe mas no pode assumir-se como tal.

    Assim, a filosofia antiga, a teologia medieval e a cincia moderna no assumem seu carter de classe, mas dizem ser expresso da razo, de Deus ou da verdade, sendo, portanto, formas de saber verdadeiras e neutras. Atravs deste recurso tambm se realiza a oposio ao saber das demais classes sociais. A luta cultural da burguesia se centra, num primeiro momento, numa oposio radical ao saber da nobreza, tal como se v na filosofia iluminista com seu anticlericalismo. As primeiras tentativas de se criar uma cincia social ainda estaro submetidas a esta lgica:

    O cientificismo positivista aqui (...) um instrumento de luta contra o obscurantismo clerical, as doutrinas teolgicas, os argumentos

  • de autoridade, os axiomas a priori da Igreja, os dogmas imutveis da doutrina social e poltica feudal (Lwy, 1987, p. 20).

    Assim, um conjunto de pensadores (Condorcet, Saint-Simon, etc.), num momento histrico em que se prioriza a luta contra a nobreza e que a ruptura do pensamento cientfico como pensamento filosfico ainda no havia ocorrido, buscava romper com o saber teolgico e tradicional.

    Mas, uma vez derrotada a nobreza e com a consolidao das relaes de produo capitalistas, o que pressupe a existncia de uma classe operria, o discurso cientfico passa a priorizar sua oposio em relao outra forma de saber. Augusto Comte (e no apenas ele) ser um dos arquitetos desta transformao:

    No por acaso que Augusto Comte e no Condorcet ou Saint-Simon seja considerado o fundador do positivismo. De fato, ele que inaugura a transmutao da viso de mundo positivista em ideologia, quer dizer, em sistema conceitual e axiolgico que tende defesa da ordem estabelecida. Primeiramente, discpulo de Condorcet e Saint-Simon, Comte ir romper com um discurso cuja carga crtica e negativa lhe parece ultrapassada e perigosa. Considerar, como alguns autores o fazem, a obra de Comte simplesmente como a continuao da metafsica naturalista da filosofia do Iluminismo e de Saint-Simon, como coroamento sistemtico de um movimento que remonta ao sculo 18, significa passar ao largo da novidade e da especificidade do positivismo comtiano, que representa precisamente o ponto de vista reconhecido da escola positivista moderna nas cincias sociais. Conforme a feliz expresso de George Lichteim, em Comte o otimismo generoso do Iluminismo congelara-se numa inquietude ansiosa para com a estabilidade social (Lwy, 1987, p. 22).

    Comte ir criticar os seus antecessores (que to-somente anunciaram uma cincia da sociedade, mas continuaram no campo filosfico), principalmente Condorcet e Saint-Simon, devido ao carter crtico e negativo presente em suas concepes, que poderiam ser apropriadas tal como efetivamente ocorreu pela classe operria e seus representantes intelectuais. O socialismo utpico, e posteriormente o marxismo e o anarquismo, demonstravam a necessidade de legitimao do pensamento cientfico, que no podia mais apelar para a palavra de deus ou para a tradio e por isso deveria criar uma nova fonte de legitimao.

  • Assim, o pensamento cientfico tinha a dupla tarefa de combater as idias socialistas e da classe operria, por um lado, e se legitimar, por outro. Isto realizado atravs das teses da neutralidade e objetividade, sendo que a primeira tomada como condio necessria da segunda. A cincia se apresenta como saber neutro e objetivo. O pressuposto da neutralidade significa que o cientista deve estar livre dos preconceitos, valores, crenas. Este pressuposto a distingue radicalmente tanto do saber popular quanto do pensamento socialista (marxismo, anarquismo, etc.) e lhe garante a objetividade e esta, por sua vez, lhe fornece a possibilidade de se colocar como um pensamento verdadeiro, oposto ao pensamento falso, no caso o saber popular e o socialismo. A objetividade garante a veracidade e permite ao saber cientfico elevar o seu status diante das outras formas de conscincia.

    O termo senso comum surge com um panfleto de Thomas Paine (1979), escrito em 1776, embora ele tivesse um significado positivo, contrrio ao pensamento preconceituoso da nobreza. Segundo Santos,

    O senso comum, enquanto conceito filosfico, surge no sculo 18 e representa o combate ideolgico da burguesia emergente contra o irracionalismo do ancien regime. Trata-se, pois, de um senso que se pretende natural, razovel, prudente, um senso que burgus e que, por uma dupla implicao, se converte em senso mdio e em senso universal. A valorizao filosfica do senso comum esteve, pois, ligada ao projeto poltico de ascenso ao poder da burguesia, pelo que no surpreende que, uma vez ganho o poder, o conceito filosfico de senso comum tenha sido correspondentemente desvalorizado como significando um conhecimento superficial e ilusrio. contra ele que as cincias sociais nascem no sculo 19 (Santos, 1995, p. 39-40).

    Desta forma, observamos que o iluminismo ir combater os preconceitos, os valores, as pr-noes (da nobreza) e alguns filsofos iro utilizar o termo senso comum como significando bom senso, tal como colocou Voltaire1. No entanto, com o surgimento das cincias sociais, o termo senso comum assume o significado atual: saber espontneo e imediato da coletividade, e, por conseguinte, perpassado por preconceitos, crenas, valores, o que lhe caracteriza como falso, imediatista, tradicional, conservador2.

    1 Senso comum significa apenas o bom senso, razo grosseira, razo comeada, primeira noo das coisas

    ordinrias (Voltaire, apud. Cuvillier, 1969, p. 146). 2 (Vrios termos semelhantes sero utilizados com o mesmo significado: saber popular, conhecimento vulgar,

    opinio pblica, etc.).

  • A Ruptura entre Cincia e Senso Comum

    O nascimento do positivismo, isto , das cincias sociais, marca a busca de ruptura da cincia com o senso comum. Augusto Comte, tal como colocou Lwy em vrias oportunidades (1987; 1987b; 1985), seria o primeiro a declarar a necessidade desta ruptura e Durkheim o primeiro, na esfera das cincias sociais, a sistematizar isto em uma ideologia cientfica. Segundo Durkheim:

    Com efeito, noes ou conceitos, seja qual for o nome que queiramos dar, no so substitutos legtimos para as coisas. Produtos da experincia vulgar, tm eles por objeto, antes de tudo, harmonizar nossas aes com o mundo que nos cerca; so formados pela prtica e para a prtica. Ora, uma representao, mesmo teoricamente falsa, pode estar em estado de desempenhar utilmente esse papel (Durkheim, 1974, p. 14).

    Durkheim acrescenta que:

    Esta maneira de proceder est to de acordo com a inclinao natural do nosso esprito que a encontramos de novo na prpria origem das cincias fsicas. ela que diferencia a alquimia da qumica, a astrologia da astronomia. Foi por ela que Bacon caracterizou o mtodo que combatia e que seguiam os sbios de seu tempo. As noes que acabamos de citar so as notiones vulgares ou praenotioes, cuja existncia aquele autor assinala na base de todas as cincias, nas quais tomam o lugar dos fatos. Constituem os idola, espcie de fantasmas que desfiguram os verdadeiros aspectos das coisas e que consideramos, no entanto, como sendo as prprias coisas (p. 15).

    Para Durkheim, preciso afastar sistematicamente todas as prenoes (1974, p. 27). Desta forma, Durkheim o primeiro cientista social a sistematizar a questo da ruptura entre cincia e senso comum. Mas ele no o nico, pois toda uma tradio cientfica presente nas cincias sociais e tambm nas cincias naturais reproduziu tal oposio3. A fonte de Durkheim, e no somente dele,

    3 Este o caso do psiclogo social Gustave Le Bon, que realizou toda sua obra produzida entre o final do

    sculo 19 e incio do sculo 20 - se dedicando ao perigo das multides e realizou a distino entre crenas e opinies, por um lado, e o conhecimento (cincia), por outro (Le Bon, 1957) e sempre tomando como exemplos de crenas as idias socialistas.

  • Comte e o positivismo clssico. Este o caso, por exemplo, do epistemlogo Gaston Bachelard, o mais renomado arquiteto do que ele denominou ruptura epistemolgica, que consiste na superao do senso comum pela cincia.

    Bachelard defende a necessidade dessa ruptura e evoca a importncia do positivismo para o conhecimento cientfico. Assim, em primeiro lugar, Bachelard coloca a ruptura entre senso comum (conhecimento vulgar) e cincia:

    As cincias fsicas e qumicas, em seu desenvolvimento contemporneo, podem ser caracterizadas epistemologicamente como domnios de pensamentos que rompem nitidamente com o conhecimento vulgar (Bachelard, 1977, p. 121).

    No entanto, Bachelard, seguindo Comte, vai colocar a importncia do positivismo mas acrescenta a novidade da quarta idade (ou quarto estdio) do pensamento:

    Acreditamos, pois, que devido s revolues cientficas contemporneas se possa falar, no estilo da filosofia comtiana, de uma quarta idade, correspondendo, as trs primeiras, Antiguidade, Idade Mdia e aos Tempos Modernos. A quarta idade, poca Contempornea, realiza precisamente a ruptura entre conhecimento vulgar e conhecimento cientfico (1977, p. 121).

    Esta quarta idade deve reconhecer a importncia e a necessidade de compreenso da terceira idade, que , precisamente, representada pelo positivismo (clssico). Assim, Comte o ponto de partida e fonte de inspirao para os epistemlogos adeptos da tese da ruptura entre cincia e senso comum

    Assim, a oposio entre cincia e senso comum serve, em primeiro lugar, tal como j colocamos, legitimar o saber cientfico, dot-lo de status de superioridade sobre o saber popular. O saber verdadeiro o produzido pelas camadas intelectuais em nossa sociedade. Ao legitimar o saber cientfico, se deslegitima o saber popular. Mas convm recordar que o senso comum em que os primeiros cientistas sociais combatiam era fundamentalmente as idias socialistas, o que fornecia a tendncia ao determinismo, ou seja, a negao da liberdade (da a utilizao dos mtodos das cincias naturais e a descoberta de leis que regulam a sociedade, tal como no positivismo clssico). Segundo Bauman:

    A sociologia, tal como a conhecemos, nasceu da investigao do regular, do invarivel, do ingovernvel na condio humana. Nos seus momentos de maior zelo e fervor religioso, tende a conceber a sua

  • prpria atividade em termos de uma cruzada da cincia contra a noo de livre arbtrio. Em termos mais sbrios, mais seculares, a sociologia aceita de boa vontade as idiossincrasias do indivduo, mas declara-as cientificamente no interessantes: o campo da investigao sociolgica onde o nico, o irrepetvel e o insubstituvel termina (Bauman, 1977, p. 52-53).

    Bauman trata aqui da sociologia, mas se lembrarmos de sua ascendncia metodolgica sobre as demais cincias sociais e o papel fundamental de Comte e Durkheim na construo da oposio entre cincia e senso comum, veremos que tal anlise pode ser estendida a todas as outras cincias.

    Devemos lembrar que o sculo 19 foi marcado por uma intensa luta operria contra o capitalismo e pela existncia de um amplo conjunto de concepes socialistas (marxismo, anarquismo, etc.) e de uma forte cultura operria. As lutas operrias, tal como a Comuna de Paris, em 1871, o fortalecimento e luta dos sindicatos nascentes, da social-democracia, etc., marcam este contexto histrico. Assim, o senso comum deveria ser criticado e deslegitimado.

    Cincia e Senso Comum: A Reconciliao

    No final do sculo 19 e incio do sculo 20, a situao mundial comea a se alterar. O capitalismo consegue uma relativa estabilidade e prosperidade (Dobb, 1987), ocorre a institucionalizao da social-democracia, resultado da burocratizao e integrao da classe operria no capitalismo, e a classe dominante, atravs de sua produo e difuso cultural, supremacia financeira e ao estatal (passagem da democracia censitria para a democracia partidria, por exemplo), marcam o fortalecimento da hegemonia burguesa na sociedade civil, criando um novo senso comum. Isto tudo vai gerar a supremacia cultural burguesa, tornando o senso comum mais conservador. Aqui temos a fonte da nova posio da cincia em relao ao senso comum: a reconciliao. No entanto, as tentativas de revolues operrias jogam um balde de gua fria sobre esta pretenso e a posterior ascenso do nazi-fascismo adia tal projeto de reconciliao, embora as sementes tenham sido lanadas pela fenomenologia husserliana. Aps a segunda guerra mundial, e a nova estabilidade capitalista conquistada, o projeto de reconciliao entre cincia e senso comum pode ser concretizado.

    As concepes que buscam demarcar a ruptura entre cincia e senso comum de forma radical encontraram concepes distintas que tentam reconciliar estas duas formas de conscincia. As primeiras concepes que tentaram realizar esta reconciliao possuem sua origem na filosofia. A

  • fenomenologia e o existencialismo so concepes filosficas que executam esta reconciliao (Bauman, 1977).

    A fenomenologia nasce no contexto acima colocada pela relativa estabilidade do capitalismo, mas tem uma razo de ser mais complexa e altera seu papel com o desenvolvimento histrico do capitalismo. Alm da j citada estabilidade relativa do capitalismo no final do sculo 19 e incio do sculo 20, temos um processo de constituio de uma sociedade cada vez mais desenvolvida tecnologicamente e organizada burocraticamente. O desenvolvimento cientfico e o cientificismo tomavam conta da produo intelectual da poca. Neste contexto, a filosofia parecia ter perdido todo o seu papel e significado, surgindo, assim, a crise da filosofia a ser tematizada por pensadores como Husserl, Heidegger, Jaspers, Sartre, Merleau-Ponty, entre outros (Viana, 2000). Iremos destacar aqui as concepes de Husserl e seus desdobramentos sociolgicos.

    A categoria de compreenso assume papel fundamental na fenomenologia husserliana. Ela parte da distino inaugurada por Dilthey entre explicao e compreenso, sendo que a primeira seria da esfera das cincias naturais e a segunda da esfera das cincias do esprito. Husserl retoma a crtica de Dilthey s cincias humanas por utilizar os mtodos das cincias naturais, pois isto um empreendimento questionvel, tendo em vista que seu objetivo e objeto so outros.

    O que Husserl quer sobretudo rejeitar, o naturalismo dessas cincias que, no tendo destacado a especificidade de seu objeto e tratando-o como se se tratasse de um objeto fsico, confundem a descoberta das causas exteriores de um fenmeno com a natureza prpria deste fenmeno (Dartigues, 1973, p. 19).

    As cincias humanas, ao se dedicarem ao estudo do homem e de sua conscincia, no podem tom-los como fenmenos naturais, como coisas. A experincia assume importncia capital, pois nela que se constitui o homem e sua conscincia. A questo passa a ser a da compreenso da experincia em sua totalidade. neste contexto que surge a proposta husserliana: o retorno s coisas mesmas.

    (...) um postulado da fenomenologia que o fenmeno seja lastrado de pensamento, que seja logos ao mesmo tempo que fenmeno, no se pode pois conceber o fenmeno como uma pelcula de impresses ou uma cortina atrs da qual se abrigaria o mistrio das coisas em si. Hegel j dizia que atrs da cortina no h nada a ver. Falar de uma viso das essncias no significar pois devotar-se a uma contemplao mstica que permitiria a alguns iniciados ver que o comum dos mortais

  • no v, mas ao contrrio ressaltar que o sentido de um fenmeno imanente e pode ser percebido, de alguma maneira, por transparncia (Dartigues, 1973, p. 22).

    Todo fenmeno possui uma essncia e esta permite identific-lo. A essncia sempre idntica a si mesma e por isso no importa o contexto no qual se manifesta. Dartigues cia o exemplo do tringulo, que em qualquer poca ou lugar ser um tringulo.

    Sem dvida, h uma essncia de cada objeto que percebemos: rvore, mesa, casa, etc., e das qualidades que atribumos a estes objetos: verde, rugoso, confortvel, etc. Mas se a essncia no a coisa ou a qualidade, se ela somente o ser da coisa ou da qualidade, isto , um puro possvel para cuja definio a existncia no entra em conta, poder haver tantas essncias quantos objetos nosso esprito capaz de produzir; isto , tantas quantos objetos nossa percepo, nossa memria, nossa imaginao, nosso pensamento podem se dar. Independentes da experincia sensvel, muito embora se dando atravs dela, as essncias constituem como que a armadura inteligvel do ser, tendo sua estrutura e suas leis prprias (Dartigues, 1973, p. 23).

    A tarefa da fenomenologia esclarecer este puro reino das essncias e suas regies (natureza objeto das cincias naturais; esprito objeto das cincias humanas; conscincia condio de inteligibilidade das outras regies e objeto da filosofia husserliana). A preocupao fundamental de Husserl reside nesta ltima regio. neste contexto que surge a intuio enquanto modo de conceber a essncia, chamada intuio das essncias. Mas tal intuio no tem o mesmo sentido fornecido por Plato, que postula uma concepo metafsica de intuio e de essncia. Isto iria contra o princpio da volta s coisas mesmas. Para avanar em sua tese, Husserl apela para a conscincia e a idia de intencionalidade, inspirada em Brentano.

    O princpio da intencionalidade que a conscincia sempre conscincia de alguma coisa, que ela s conscincia estando dirigida-para um objeto (sentido de intentio). Por sua vez, o objeto s pode ser definido sem sua relao com a conscincia, ele sempre objeto-para-um-sujeito. Poderemos, pois, falar, seguindo Brentano, de uma existncia intencional do objeto na conscincia (Dartigues, 1973, p. 24).

  • Assim podemos compreender que a essncia s possui existncia na conscincia (Husserl, 1983; Dartigues, 1973). Nesta concepo se v a base da anlise intencional proposta pela filosofia fenomenolgica:

    A anlise intencional uma explicao da vida da conscincia que segue os fios condutores das intenes significativas. Assim sendo, compreender um ato humano implica em compreender a plenitude de sua significao, em fazer aparecer a totalidade de suas conexes, das suas inter-relaes, em situ-lo na totalidade da experincia (Capalbo, 1977, p. 36).

    Disto resulta a tese de que no existe objeto em si mas to-somente objeto para uma conscincia, pois fora da correlao entre ambos no h nem conscincia nem objeto.

    Se, com efeito, a correlao sujeito-objeto s se d na intuio originria da vivncia (Erlebnis) de conscincia, o estudo dessa correlao consistir numa anlise descritiva do campo de conscincia, o que conduzir Husserl a definir a fenomenologia como a cincia descritiva das essncias da conscincia e de seus atos (Dartigues, 1973, p. 26).

    neste contexto que surge a chamada reduo fenomenolgica proposta por Husserl, que visa ultrapassar o que ele denomina atitude natural, prpria do senso comum e das cincias objetivantes. Este ultrapassar a atitude natural significa, ao mesmo tempo, adotar a atitude fenomenolgica. preciso, para efetivar isto, superar a crena na objetividade do mundo exterior e colocar a conscincia como sendo transcendental, condio de apario desse mundo e doadora de sentido (Dartigues, 1973, p. 28). Assim, se faz necessrio o retorno ao mundo da vida, livre dos preconceitos e concepes objetivantes. A conscincia no parte do mundo, pois ele o que aparece conscincia. Ele se torna, nesta abordagem, um fenmeno. Assim, ele s tem sentido na vivncia. A fenomenologia objetiva analisar as vivncias intencionais da conscincia buscando compreender o sentido dos fenmenos.

    Assim, a filosofia husserliana fornece duas concluses para a concretizao de sua fenomenologia: o sujeito transcendental ou a conscincia no mundo (Dartigues, 1973)4. esta

    4 Esta posio criticada por Gorman (1979), que sustenta que no h uma ruptura no pensamento de Husserl

    mas apenas aprofundamento. No entanto, independentemente de qual destas duas interpretaes da filosofia husserliana mais adequada, no se pode deixar de perceber a diferena ocorrida na abordagem, seja por aprofundamento ou por mudana de concepo.

  • ltima soluo que exercer maior influncia sobre a sociologia, pois aproxima Husserl e o existencialismo (Bauman, 1977).

    Em seus ltimos escritos e (...) sob a influncia de Heidegger, Husserl acentua ao contrrio a prpria correlao conscincia-mundo, que ser bastante fcil de traduzir por ser-no-mundo. Se o verdadeiro resduo da reduo fenomenolgica essa correlao, e ano o Sujeito transcendental ou sujeito puro que aproximava Husserl dos neokantianos, a fenomenologia poder ento se tornar o estmulo das novas filosofias da existncia. A evidncia primeira, o terreno absoluto para o qual cumpre voltar no ser mais o sujeito, mas o prprio mundo tal como a conscincia o vive antes de toda elaborao conceptual (Dartigues, 1973, p. 32).

    A partir do novo contexto marcado pelo fim da Segunda Guerra Mundial e pela nova estabilidade do capitalismo na Europa Ocidental, surge o projeto de uma sociologia fenomenolgica que trar uma nova abordagem sociolgica do senso comum5. Alfred Schutz ser o principal articulador da busca em se criar uma cincia social fenomenolgica (Bauman, 1977), para utilizar expresso de Gorman (1979). Schutz busca destranscendentalizar a fenomenologia husserliana:

    O prprio pensamento de Schutz deve muito aos trabalhos husserlianos sobre o Lebenswelt. Aceita as definies de Husserl da

    5 neste contexto tambm que ir se desenvolver o existencialismo, j esboado antes da Segunda Guerra

    Mundial, mas organizado e desenvolvido aps tal perodo histrico. Embora o existencialismo possua vrias correntes, algumas com tendncias conservadoras, h a perspectiva sartreana e de outros existencialistas que assume uma posio de crtica ao capitalismo e de proximidade com o marxismo, tendo por base sua recusa do mundo burocrtico e mercantil organizado a partir da segunda metade do sculo 20. Segundo Oizerman, embora com alguns exageros em sua qualificao do existencialismo como humanismo burgus, existe uma relao intrnseca entre existencialismo e o desenvolvimento capitalista: o capitalismo monopolista de Estado traduz-se numa centralizao e burocratizao crescentes, num sistema de manipulao dos comportamentos e no condicionamento dos espritos, graas aos meios de comunicao de massa. O papel da publicidade, que exerce to grande influncia na formao da opinio pblica, aumentou prodigiosamente. A produo capitalista d origem constantemente a novas necessidades, muitas vezes artificiais. A alienao, que ainda muito recentemente parecia no passar duma categoria filosfica especulativa, surge hoje como um fato emprico, tangvel, evidente mesmo, para a conscincia mais comum e, o que mais inesperado ainda, a organizao cada vez mais desenvolvida, em regime capitalista, refora os fatores de anarquia no desenvolvimento social. Da a idia de que a anarquia prevalece contra as relaes institucionais criadas pelos homens em conformidade com os seus ideais racionalistas. Os antagonismos do sistema capitalista so, para o existencialismo, contradies entre a organizao social e o humanismo abstrato. por esta razo que [o existencialismo NV] preconiza a ruptura com relaes sociais despersonalizantes, o retorno a si mesmo, a uma vida autntica. Esta concepo do humanismo burgus abstrato reflete sua maneira a realidade, pois o capitalismo , efetivamente, incompatvel com o humanismo (Oizerman, 1974, p. 11-12).

  • natureza e da importncia do mundo da vida pr-reflexivo, pr-dado, da existncia cotidiana, e devota a maior parte de sua vida profissional tentativa de atingir o objetivo husserliano de compreend-lo cientificamente. Admitindo isso, qual dos dois mtodos de Husserl foi escolhido por Schutz: uma ontologia das nossas experincias conscientes filtradas atravs de redues e purificadas pelo ego transcendental de um Lebenswelt, ou uma investigao fenomenolgica mais geral das essncias de todo fenmeno emprico? Surpreendentemente, Schutz no escolhe nenhum dos dois. Tenta investigar cientificamente o Lebenswelt, mas no usa nenhum dos mtodos de Husserl considerados necessrios para sua tarefa (Gorman,1979, p. 41).

    Schutz concebe o senso comum como um mundo de intersubjetividade no qual os sujeitos possuem o dom de atribuir significado e assim interagem6.

    No mundo do bom senso comum os sujeitos com o dom de atribuir significado interagem uns com os outros, principalmente, pela adoo de frmulas socialmente manipuladas e adotadas que categorizam, tipicamente, tanto o mundo como o comportamento esperado por deles e dos outros no mundo (Gorman, 1979, p. 59).

    Assim, podemos perceber que a concepo de senso comum de Schutz vai pelo mesmo caminho que o da fenomenologia husserliana, no qual ele no mais tido como saber falso e sim como um saber verdadeiro, j que a inteno que fornece a essncia7. Aqui estamos distantes da concepo que busca realizar uma ruptura entre cincia e senso comum, pois na concepo fenomenolgica estas formas de conscincia so igualmente verdadeiras.

    Os Limites do Termo Senso Comum

    O termo senso comum sempre foi, como vimos at aqui, uma unidade de um discurso ideolgico. Desde Paine, o criador do termo, ele se faz presente na histria das idias polticas e cientficas. O curioso de notar que o termo surge no contexto das idias polticas e filosficas,

    6 Gorman (1979) aborda a influncia de Weber sobre Schutz, mas tambm aponta as crticas do ltimo ao

    primeiro. 7 Outras concepes iro desenvolver estas teses, com mais ou menor sistematicidade e originalidade.

    Podemos colocar como exemplo o construcionismo de Berger e Luckmann (1987), a etnometodologia (Coulon, 1995), e a abordagem das representaes sociais, da qual trataremos adiante.

  • sendo que somente chega ao discurso cientfico mais tarde. Carregado de positividade, devido ao contexto social e interesses a que estava ligado, o senso comum, a partir de sua chegada no discurso cientfico, passa a ser contaminado pela negatividade, tal como se v no positivismo de Comte e Durkheim, passando por seus herdeiros contemporneos. Posteriormente, o termo retoma sua positividade diante do novo contexto histrico e dos novos interesses surgidos na sociedade contempornea. Juntamente com isto, vimos o contexto histrico e os interesses por detrs da concepo de senso comum. Resta, agora, realizar uma anlise dos limites intrnsecos presentes neste termo.

    Comte e Durkheim foram pioneiros na busca de ruptura com o senso comum. A crtica de Bauman a estes dois pensadores se caracteriza pelo fato deles terem feito apenas uma traduo do senso comum sob a forma de sociologia (Bauman, 1977). O senso comum, na abordagem de Bauman, se apresenta como um saber fetichista, que toma a sociedade como uma segunda natureza, isto , de forma determinista. Assim, quando Comte e Durkheim pensam a sociedade, reproduzem o senso comum, tal como se v na concepo durkheimiana dos fatos sociais como coisas. Durkheim concebe a sociedade, tal como o senso comum, como uma segunda natureza. Portanto, a anlise de Bauman uma excelente crtica da sociologia conservadora, mas no do termo senso comum.

    Bauman realiza uma anlise crtica bastante convincente da relao entre cincia, especialmente da sociologia, e senso comum. No entanto, sua viso de senso comum cai em um equivoco prximo ao que ele critica. A sua concepo reproduz a viso de senso comum do positivismo clssico, enquanto pensamento sempre equivocado e fetichista. Este o grande problema do termo senso comum. O senso comum um produto da sociologia e do pensamento cientfico. Assim, o pensamento cientfico, e o sociolgico mais precisamente, produzem o termo senso comum, seja como algo que deve ser descartado por ser falso, seja como algo presente na realidade social e por isso verdadeiro. Mas o que temos aqui uma produo de uma indiferenciao. O senso comum um bloco monoltico, uma unidade, seja verdadeiro ou falso8.

    O senso comum um bloco homogneo, monoltico. Para Comte, Durkheim, Bachelard e outros, um bloco homogneo, monoltico, falso, e por isso deve ser superado pelo saber cientfico. Esta construo busca distinguir o pensamento privilegiado dos intelectuais, dos cientistas, em

    8 A nica viso alternativa entre os que usam o termo senso comum Gramsci (1987), mas que um autor

    que busca se inserir na tradio marxista e produziu seus escritos na priso, sem poder realizar uma pesquisa mais precisa do pensamento de Marx e sem poder utilizar, devido a isto, uma terminologia mais adequada ao marxismo, razo pela qual o deixaremos de lado e o retomaremos mais frente, quando tratarmos das representaes cotidianas.

  • relao ao saber desprivilegiado das pessoas comuns, ou, em outras palavras, o saber legtimo e digno dos trabalhadores intelectuais contra o saber equivocado e nebuloso dos trabalhadores manuais. Tarefa ingrata, pois ao mesmo tempo que realizou a crtica do chamado senso comum, o reproduziu (Bauman, 1977). Para Husserl, Schutz e outros, o senso comum um bloco monoltico verdadeiro, um saber das essncias to legtimo quanto qualquer outro, inclusive o filosfico e o sociolgico (embora, como veremos adiante, tambm deva ser superado, tal como no caso anterior). No entanto, ao fazer isto acaba, tal como a abordagem anterior, reproduzindo o conhecimento cotidiano (Bauman, 1977):

    O mundo intersubjetivo da cultura de Schutz tende a produzir, a perpetuar e a fortalecer a autonomia e a singularidade de cada membro de uma entidade cognitiva. Schutz mostrou admiravelmente como a singularidade dos membros criada e continuamente recriada com a mesma inevitabilidade que o durksonianismo atribuiu ao impacto uniformizante da cultura. Os dois testemunhos incompatveis da experincia foram, portanto, reconciliados no plano cognitivo: lanado num mundo cultural compartilhado, incapaz de escolh-lo como um ato de vontade, confrontando o seu mundo cultural como uma realidade inescapvel, o membro est ainda (devido mais a este fato do que apesar dele) condenado a tornar-se e a permanecer um indivduo nico. precisamente a partilha das mesmas regras estruturais da percepo do mundo que assegura a singularidade de cada experincia e de cada mundo individual de significado (Bauman, 1977, p. 105).

    O que Bauman revela aqui e em outras passagens a semelhana entre o positivismo clssico e o positivismo fenomenolgico9. Ambas as concepes so tradues do senso comum. Tanto a sociologia de Durkheim e outros se revela uma reproduo da viso da sociedade como natural viso tpica do senso comum, tal ele mesmo coloca quanto sociologia fenomenolgica que realiza uma crtica da sociologia positivista mas no do seu objeto10, e assim tambm reproduz o senso comum. Assim, a crtica de Bauman uma crtica do senso comum enquanto fenmeno real, ao invs de ser uma crtica do senso comum enquanto fenmeno

    9 Husserl mesmo reconhece o seu positivismo, afirmando que o fenomenlogo o nico verdadeiro

    positivista: se por positivismo se entende o esforo, absolutamente livre de preconceito, para fundar todas as cincias sobre o que positivo, isto , susceptvel de ser captado de maneira originria, somos ns que somos os verdadeiros positivistas (apud. Dartigues, 1973, p. 31).

    10 O sistema schutziano existencialisticamente inspirado (...), especificamente, uma crtica sociologia e no a seu objeto (Bauman, 1977, p. 111).

  • ideolgico. O senso comum uma construo ideolgica. uma construo ideolgica que se revela tanto na sua oposio entre cincia/filosofia e senso comum, produto do elitismo intelectual conservador, quanto no papel que cumpre no pensamento cientfico.

    A oposio entre cincia e senso comum pode ser vista facilmente no tema da ruptura, postulado por Comte, Durkheim e Bachelard, mas no to visvel quanto na fenomenologia. Mas se lembrarmos a epoch, a reduo fenomenolgica, justamente o ultrapassar da atitude natural que havamos colocado anteriormente. Segundo Rabuske:

    A fenomenologia opera uma ruptura com as certezas que povoam a conscincia ingnua do senso comum. Esta ruptura uma reduo fenomenolgica, um pr-entre-parentesis (epoch) da adeso s aparncias e ao saber constitudo das Cincias objetivantes. A epoch a suspenso da adeso irrefletida visa fazer aparecer uma relao mais profunda, natural e imediata (Rabuske, 1987, p. 121).

    Tanto o positivismo clssico quanto o positivismo fenomenolgico prope a ruptura com o senso comum. A diferena reside no fato de que no positivismo clssico a ruptura no apenas epistemolgica (superao das iluses do senso comum) como tambm expressa uma avaliao negativa do senso comum enquanto que o positivismo fenomenolgico a ruptura apenas epistemolgica, incluindo, contraditoriamente, uma avaliao positiva do senso comum. A contradio da fenomenologia reside no fato de considerar o senso comum verdadeiro e ao mesmo tempo querer se desvencilhar dele, o que perde o sentido tendo em vista a primeira assertiva. Assim, se o senso comum verdadeiro, ento por qual motivo ultrapass-lo? Este o dilema que muitas concepes sociolgicas e de outras cincias humanas ainda mantm: quando se trata de discurso metodolgico, o chamado senso comum execrado, mas quando se trata de anlises cientficas da cultura popular (senso comum...), ele exaltado. A nvel metodolgico o senso comum falso, mas ao nvel da pesquisa emprica tido como verdadeiro e tal postura se encontra, como veremos adiante, em Durkheim (1996), quando este ir abordar a questo das representaes coletivas.

    Bauman critica a sociologia e enfatiza a crtica do objeto da sociologia sem perceber que este objeto, no caso do senso comum, foi construdo pela sociologia. A sociologia crtica esboada por ele, inspirada em Marx, critica a realidade social a sociedade capitalista, aps sua crtica da

  • sociologia em sua relao com o senso comum, mas no o senso comum, ou seja, este objeto especfico. A crtica ao senso comum dever ser, na verdade, uma crtica ao termo senso comum11.

    Assim, o termo senso comum s existe no interior de um discurso positivista (clssico ou qualquer outro), ideolgico, e carrega o equvoco fundamental de ser apresentado como um bloco monoltico. A temtica, para utilizar expresso de Holton (1979) do senso comum produto de uma determinada concepo de saber, o positivismo, ligado a interesses sociais precisos. As variaes na abordagem deste tema produto do desenvolvimento histrico do capitalismo. Assim, os usos do termo senso comum sempre remetem problemtica positivista e esto inseridos no conjunto de suas teses que lhe proporcionam um carter monoltico. O contedo que se busca expressar por este termo muito mais rico do que os limites que ele impe e por isso preciso partir de um novo conceito que consiga dar conta desta riqueza.

    11 No se trata somente do termo em si, pois termos semelhantes so abordados de forma idntica ao do senso comum, o que significa que o termo (expresso formal de um contedo) deve ser criticado e junto com o ele o contedo que lhe atribudo.

  • A ABORDAGEM DAS REPRESENTAES SOCIAIS

    A abordagem das representaes sociais surge na dcada de 60, mas tem como fonte inspiradora a concepo durkheimiana de representaes coletivas. por isso que iniciaremos nossa discusso sobre representaes sociais partindo da abordagem durkheimiana.

    Durkheim e as Representaes Coletivas

    A partir do final do sculo 19 e incio do sculo, com o maior desenvolvimento das cincias sociais (sociologia, antropologia, psicanlise, etc.) o tema do saber cotidiano deixou de ser visto pelo prisma do senso comum enquanto pensamento falso e passa a ter uma nova interpretao. O prprio termo senso comum comea a ser abandonado e substitudo por outros, sendo que sua utilizao continuou forte, na rea da epistemologia e filosofia (fenomenologia, especialmente). O saber cotidiano passou a ser domnio temtico de outras cincias sociais, alm da psicologia (Tarde, Le Bon), ganhando mais espao tambm na sociologia, assim como na antropologia. A sociologia, por sua vez, atravs de Durkheim, buscava consolidar a sociologia enquanto cincia autnoma e especfica. O prprio Durkheim foi um dos arquitetos da tese da ruptura entre cincia e senso comum, em As Regras do Mtodo Sociolgico. No entanto, passado alguns anos, ele ir apresentar uma nova discusso, j no no contexto da relao com o mtodo sociolgico, e no interior das mudanas histricas acima apontadas.

    Como colocamos anteriormente, o processo de desenvolvimento capitalista foi o responsvel por esta mudana de perspectiva, e juntamente com o desenvolvimento e consolidao das cincias sociais, isto se torna ainda mais forte. neste contexto que ir surgir a abordagem durkheimiana das representaes coletivas.

    A obra de Moscovici que inaugura sua tese das representaes sociais coloca o termo representaes coletivas, de Durkheim, como sua fonte inspiradora. Por este motivo iremos apresentar uma breve discusso sobre a concepo durkheimiana de representaes coletivas.

    Como colocamos anteriormente, Durkheim foi um dos idealizadores da ruptura entre cincia e senso comum, tal como se v em As Regras do Mtodo Sociolgico, de 1895. Os seus textos nos quais aborda as representaes coletivas parecem realizar uma reviravolta em sua concepo original.

  • O que so as representaes coletivas? Durkheim realiza sua anlise partindo de sua sociologia da religio. A religio uma forma de representaes coletivas. As representaes coletivas pertencem ao real:

    um postulado essencial da sociologia que uma instituio humana no pode repousar sobre o erro e a mentira, caso contrrio no pode durar. Se no tivesse fundada na natureza das coisas, ela teria encontrado nas coisas resistncias insuperveis. Assim, quando abordamos o estudo das religies primitivas, com a certeza de que elas pertencem ao real e o exprimem (...) (Durkheim, 1996, p. VI-VII).

    por isso que ele afirma no existir religies falsas, pois todas correspondem a determinadas condies da existncia humana, embora sua maneira. Os primeiros sistemas de representaes, segundo Durkheim, possuem origem religiosa e por isso a sua compreenso contribui para o entendimento das representaes coletivas. As representaes coletivas expressam realidades coletivas, estados da coletividade, sendo eminentemente social. Elas dependem da forma como a sociedade se organiza e constitui:

    As representaes coletivas so o produto de uma imensa cooperao que se estende no apenas no espao, mas no tempo; para cri-las, uma multido de espritos diversos associou, misturou, combinou suas idias e seus sentimentos; longas sries de geraes nelas acumularam sua experincia e seu saber (Durkheim, 1996, p. XXIII).

    As representaes coletivas so fatos sociais e, por conseguinte, so dotadas da mesma objetividade destas. As representaes coletivas possuem um carter coletivo e sui generis. Elas possuem como substrato a sociedade e esta, por sua vez, tem como substrato o conjunto de indivduos associados. Elas, como qualquer fato social, so exteriores s conscincias individuais, formam uma totalidade e, para Durkheim, o todo mais do que a soma das partes. Elas formam realidades parcialmente autnomas, atraindo, repelindo e sintetizando representaes anteriores, o que significa que as representaes coletivas possuem como causas outras representaes coletivas.

    Esta concepo, comparada com a expressa em As Regras do Mtodo Sociolgico, parece marcar uma mudana de perspectiva. Segundo alguns, Durkheim teria adotado uma nova postura, uma espcie de sociologia espiritualista1. No entanto, consideramos que o mais adequado

    1 A esta luz, a ltima parte da vida intelectual de Durkheim surpreendente: desde 1907 at sua morte,

    nota-se uma orientao cada vez mais explcita que C. Bougl justamente caracterizava: o sociologismo durkheimiano um esforo para fundar e justificar de nova maneira as tendncias espiritualistas. Isto no vlido apenas para os textos reunidos por Bougl em Filosofia e Sociologia, mas tambm para As Formas

  • considerar que, em que pese sua inflexo idealista, para utilizar expresso de Cuvillier (1975)2, ele permanece com o mesmo ponto de vista, embora promovendo uma autonomizao parcial das representaes.

    Durkheim busca, em suas obras sobre representaes coletivas, afastar a sua concepo de diversas outras abordagens do conhecimento (psicologia, empiricismo, apriorismo, materialismo histrico)3 e defender a objetividade da religio e das representaes. O problema que Durkheim confunde veracidade com objetividade, tal como se v nas suas afirmaes sobre o seu pertencimento ao real, ao fato das representaes coletivas no se fundamentarem no erro e na mentira e que so realidades coletivas que expressam estados da coletividade4. Isto pode ser visto em algumas de suas afirmaes:

    Todo o nosso estudo repousa no postulado de que esse sentimento unnime dos crentes de todos os tempos no pode ser puramente ilusrio. Da mesma forma que um recente apologista da f, admitimos, portanto, que as crenas religiosas se baseiam numa experincia especfica cujo valor demonstrativo, num certo sentido, no inferior ao das experincias cientfica, embora diferente. Tambm pensamos que uma rvore se conhece por seus frutos e que sua fecundidade a melhor prova do que valem suas razes. Mas do fato de existir, se quiserem, uma experincia religiosa e de ele ater, de alguma maneira, fundamento (...) no se segue de modo algum que a realidade que a fundamenta esteja

    Elementares da Vida Religiosa e todos os outros textos do autor durante este ltimo perodo (Duvignaud, 1982, p. 35). Cf. tambm Bougl (1970).

    2 Apesar desta inflexo idealista, Durkheim nunca renegou a explicao, pelo menos parcial, da ideologia e

    do conhecimento pelo substrato [social NV], nem o papel da morfologia social. Apenas limita o seu alcance (Cuvillier, 1975, p. 32-33).

    3 A sua tese da autonomia parcial das representaes a distingue da psicologia, do empiricismo e do

    materialismo histrico. Durkheim critica a abordagem psicolgica que considera a conscincia individual um epifenmeno do sistema nervoso, colocando-a como independente do seu substrato fsico, tal como as representaes coletivas so autnomas em relao s representaes individuais (Durkheim, 1970); critica o materialismo histrico por este considerar, segundo Durkheim, que as representaes so um epifenmeno da base econmica e retoma a idia do carter sui generis e autnomo das representaes coletivas; contra o empiricismo e o apriorismo defende o carter social das representaes coletivas (Durkheim, 1996).

    4 Diz-se que a cincia nega a religio em princpio. Mas a religio existe, um sistema de fatos dados, em

    uma palavra, uma realidade. Como poderia a cincia negar uma realidade? (Durkheim, 1996, p. 476). O argumento de Durkheim mais problemtico do que esclarecedor. Obviamente que, quando algum afirma que a cincia nega a religio quer dizer que contesta a veracidade de seus postulados e no sua existncia. Trataremos disto mais detalhadamente adiante, quando formos colocar os limites da abordagem das representaes sociais.

  • objetivamente de acordo com a idia que dela fazem os crentes (Durkheim, 1996, p. 461).

    Num primeiro momento, Durkheim diz que a religio (representaes coletivas) no pode ser puramente ilusria e que diferente, e depois coloca que a idia que os crentes fazem da realidade no necessariamente objetiva. Outras afirmaes vo neste sentido:

    Os ritos mais brbaros ou os mais extravagantes, os mitos mais estranhos traduzem alguma necessidade humana, algum aspecto da vida, seja individual ou social. As razes que o fiel concebe a si prprio para justific-los podem ser e muitas vezes, de fato, so errneas; mas as razes verdadeiras no deixam de existir; compete cincia descobri-las (Durkheim, 1996, p. VI-VII).

    Assim, a viso do fiel pode ser e muitas vezes errnea. Uma outra afirmao de Durkheim retoma sua idia contida em As Regras do Mtodo Sociolgico de afastar os preconceitos:

    Ora, contrariamente s aparncias, constatamos que as

    realidades s quais se aplica ento a especulao religiosa so as mesmas que serviro mais tarde de objeto reflexo dos cientistas: a natureza, o homem, a sociedade. O mistrio que parece cerc-las completamente superficial e se dissipa ante uma observao mais aprofundada: basta retirar o vu com que a imaginao mitolgica as cobriu para que se mostrem tais como so. Essas realidades, a religio se esfora por traduzi-la numa linguagem inteligvel que no difere em natureza daquela que a cincia emprega; de parte a parte, trata-se de vincular as coisas umas s outras, de estabelecer entre elas relaes internas, de classific-las, sistematiz-las. Vimos at que as noes essenciais da lgica cientfica so de origem religiosa. Claro que a cincia, para utiliz-las, submete-as a uma nova elaborao; depura-as de todo tipo de elementos acidentais; de uma maneira geral, em todos os seus passos ela utiliza um esprito crtico que a religio ignora; cerca-se de precaues para evitar a precipitao e o juzo antecipado, para manter a distncia as paixes, os preconceitos e todas as influncias subjetivas. Mas esses aperfeioamentos metodolgicos no so suficientes para diferenci-la da religio. Sob esse aspecto, ambas perseguem o mesmo objetivo: o pensamento cientfico to-s uma

  • forma mais perfeita do pensamento religioso. Parece natural, portanto, que o segundo se apague progressivamente diante do primeiro, medida que este se torne mais apto a desempenhar a tarefa (Durkheim, 1996, p. 475-476).

    Desta forma, Durkheim apresenta o pensamento religioso antecessor do pensamento cientfico, mas este o depura, afasta os juzos antecipados, os preconceitos, as paixes, as influncias subjetivas. Pode parecer que Durkheim oferece um carter religioso cincia, mas justamente o contrrio que faz: ele oferece um carter cientfico (embora embrionrio) ao pensamento religioso, tornando esta um pensamento racional. Sem dvida, este procedimento retira a especificidade do pensamento religioso, tornando-o uma forma de conhecimento, predecessor da cincia. Mas o que importa que Durkheim mantm a necessidade da prtica cientfica se pautar pelo controle que o distancia das representaes coletivas (senso comum).

    Em sntese, Durkheim mantm, de forma amenizada, sua concepo anterior. As idias de Durkheim se desenvolvem a partir de seu projeto de construir uma cincia da sociedade, a sociologia, e da ter que buscar legitimar o seu objeto de estudo, dotando-lhe de objetividade. Da sua idia de fato social e sua extenso s representaes coletivas, pois ele amplia cada vez mais os fenmenos abarcados por sua sociologia. As representaes coletivas so to objetivas quanto qualquer outro fato social. Durkheim consegue distinguir sua concepo de outras e garantir, ao mesmo tempo, a objetividade (via autonomizao) das representaes coletivas. Em As Regras do Mtodo Sociolgico Durkheim estava preocupado em construir os fundamentos metodolgicos da sociologia e em legitimar esta nova cincia e por isso a demarcao da necessidade de ruptura com o senso comum. Nos textos sobre representaes coletivas, Durkheim se ocupa de um novo objeto de estudo, o que faz trat-lo como um fato social, dotado de objetividade e autonomia. A nica mudana efetiva se encontra na sua radicalizao da autonomia e importncia das representaes coletivas.

    Moscovici e as Representaes Sociais

    A emergncia e difuso da chamada teoria das representaes sociais colocam novas questes para a teoria da sociedade. O que so representaes sociais? Qual sua relao com a realidade social? Estas so questes antigas e que foram discutidas com outras linguagens (idias, conscincia, viso de mundo, conhecimento vulgar, ideologia etc.) tanto pela filosofia quanto pelas cincias sociais, perpassando tambm diversas outras formas de pensamento.

  • Coube a Serge Moscovici o papel de elaborar a chamada teoria das representaes sociais, que teve diversos desdobramentos. Podemos falar em pr-histria da teoria das representaes sociais, retomando as idias de Le Bon, Wundt etc. (Farr, 1997) ou ento os clssicos da sociologia (Minayo, 1997). Mas tal idia surge efetivamente com Moscovici (1978). O parentesco da concepo de Moscovici com a idia de representaes coletivas de Durkheim visvel, e o prprio Moscovici reconhece ser esta a fonte de sua inspirao. Porm, representaes coletivas e representaes sociais no so a mesma coisa, apesar de sua proximidade.

    As representaes coletivas se referem s tradies5, e so homogneas, enquanto que a idia de representaes sociais apresentada por Moscovici deixa claro o seu carter marcado pela diversidade e pelo dinamismo. Esta diferena provocada pelo fato de que, segundo os adeptos da teoria das representaes sociais (Farr, 1997; Guareschi, 1997; S, 1995), as representaes coletivas so produzidas nas sociedades simples e as representaes sociais so produzidas nas sociedades contemporneas e por isso trazem em si as caractersticas destas sociedades. Vejamos o que diz R. Farr:

    Moscovici afirma que a noo de representao coletiva de Durkheim descreve, ou identifica, uma categoria coletiva que deve ser explicada a um nvel inferior, isto , em nvel da psicologia social. aqui que surge a noo de representao social de Moscovici. Ele tambm julga mais adequado, um contexto moderno, estudar representaes sociais do que estudar representaes coletivas. O segundo conceito era um objeto de estudo mais apropriado num contexto de sociedades menos complexas, que eram do interesse de Durkheim. As sociedades modernas so caracterizadas por seu pluralismo e pela rapidez com que as mudanas econmicas, polticas e culturais ocorrem. H, nos dias de hoje, poucas representaes que so verdadeiramente coletivas (Farr, 1997, p. 44-45)6.

    5 Tradies, aqui, significa o conjunto de representaes que so passados de gerao a gerao.

    6 Moscovici tinha conscincia que o modelo de sociedade de Durkheim era esttico e tradicional, pensando

    para tempos em que a mudana se processava lentamente. As sociedades modernas, porm, so dinmicas e fluidas. Por isso o conceito de coletivo apropriava-se melhor quele tipo de sociedade, de dimenses mais cristalizadas e estruturadas. Moscovici preferiu preservar o conceito de representao e substituir o conceito coletivo, de conotao mais cultural, esttica e positivista, com o de social: da o conceito de Representaes Sociais (Guareschi, 1997, p. 196). Veja tambm S (1995) e Moscovici (1978).

  • Mas o que so as representaes sociais? Elas podem ser compreendidas como fenmeno (objeto de estudo), como teoria (no sentido de explicao cientfica do fenmeno) e como metateoria (a discusso em torno da teoria):

    As representaes sociais so teorias sobre saberes populares e do senso comum, elaboradas e partilhadas coletivamente, com a finalidade de construir e interpretar o real. Por serem dinmicas, levam os indivduos a produzir comportamentos e interaes com o meio, aes que, sem dvida, modificam os dois. De Rosa distingue entre trs nveis de discusso e anlise das RS: nvel fenomenolgico as RS so um objeto de investigao. Esses objetos so elementos da realidade social, so modos de conhecimento, saberes do senso comum que surgem e se legitimam na conversao interpessoal cotidiana e tm como objetivo compreender e controlar a realidade social; nvel terico o conjunto de definies conceituais e metodolgicas, construtos, generalizaes e proposies referentes s RS; nvel metaterico o nvel das discusses sobre a teoria. Neste colocam-se os debates e as refutaes crticas com respeito ao postulado e pressupostos da teoria, juntamente a uma comparao com modelos tericos de outras teorias (Oliveira & Werba, 1998, p. 105-106).

    Porm, consideramos estas trs dimenses da expresso como inadequadas, pois seria o mesmo que dizer que a sociedade , ao mesmo tempo, o fenmeno, a sua teoria e a sua epistemologia. Tal procedimento no possui legitimidade, pois significaria fundar uma nova cincia a cincia das representaes sociais que teria objeto e mtodos prprios (alis, este o motivo de tal concepo no definir sua filiao seja psicologia seja sociologia). Podemos dizer que as representaes sociais so fenmenos sociais e a teoria de um fenmeno no se confunde com ele e nem denominado como ele, ou seja, as representaes so uma coisa e a explicao (ou teoria) outra coisa, assim como o Estado no a mesma coisa que a Teoria do Estado e a sociedade no a mesma coisa que a sociologia. Isto mais verdadeiro ainda no que se refere epistemologia.

    Devemos, pois, buscar outros elementos para compreender as representaes sociais. Moscovici, em seu livro fundador da concepo, define representaes sociais apenas como o fenmeno. So os continuadores e colaboradores que iro buscar enquadrar outros elementos na

  • definio7. O que, do nosso ponto de vista, complica muito mais do que resolve. Assim, consideramos, tal como Moscovici, que representaes sociais se refere apenas ao fenmeno, enquanto que reconhecemos que tambm existe o termo (ou conceito) de representaes sociais e a teoria (ou ideologia) das representaes sociais, mas que so coisas distintas.

    Assim temos: representaes sociais = fenmeno, isto , o objeto concreto de estudo, no caso, o saber cotidiano/representaes cotidianas; termo de representaes sociais = definio do fenmeno, expresso conceitual do fenmeno, ou seja, o construto elaborado pela abordagem das representaes sociais, um conceito; abordagem das representaes sociais = abordagem do fenmeno, isto , alguns elementos, terminolgicos, metodolgicos e de anlise utilizados para abordar o fenmeno8.

    A partir destas consideraes podemos avanar em nossa discusso sobre as representaes sociais. Segundo Moscovici e outros pesquisadores que trabalham com este termo (Moscovici, 1978; Farr, 1997; Guareschi, 1997; Oliveira & Werba, 1998; S, 1995), as representaes sociais so as formas de conscincia que so chamadas geralmente de populares ou senso comum.

    Moscovici afirma que as representaes sociais so objetos (de estudo) que est inscrito numa realidade dinmica e ativa. As representaes sociais so concebidas parcialmente pelas pessoas ou pela coletividade, como se fossem um prolongamento do comportamento. Elas s existem, para seus produtores, devido ao papel que cumprem: permitem conhecer o comportamento, so expresses de sua atitude frente aos objetos que lhes cercam. Da sua capacidade criativa, destacada por Moscovici.

    As representaes sociais no so opinies sobre, imagens de e sim teorias, cincias coletivas sui generis, destinadas interpretao e elaborao do real (Moscovici, 1978, p. 50). As representaes sociais tornam familiar e presente o que estranho e ausente. As representaes so sempre representaes de alguma coisa, formam universos de opinio, que so tantos quanto as classes, culturas e grupos. Cada universo de opinio possui trs dimenses: a) informao ela organiza os conhecimentos de um grupo; b) campo de representao o contedo concreto e limitado das proposies atinentes a um aspecto preciso do objeto das representaes

    7 Veja exemplo de S: O termo representaes sociais designa tanto um conjunto de fenmenos quanto o

    conceito que os engloba e a teoria construda para explic-los, identificando um vasto campo de estudos psicossociolgicos (S, 1995, p. 19).

    8 Utilizamos o termo abordagem ao invs de teoria, utilizada pelos representantes desta concepo,

    porque consideramos uma teoria como sendo uma explicao da realidade, o que no ocorre neste caso, havendo, na verdade, como colocaremos adiante, descrio. Da chamarmos de abordagem das representaes sociais e no teoria das representaes sociais.

  • (Moscovici, 1978, p. 69); c) atitude: significa a orientao global em relao ao objeto da representao.

    Mas at aqui o que Moscovici apresentou foi o carter psicolgico das representaes, falta, portanto, destacar o seu aspecto social. Moscovici afirma que uma representao social por ter a dimenso dos grupos sociais mas que isto superficial, sendo preciso ir alm desta constatao:

    Para qualificar uma representao de social no basta definir o agente que a produz. Tampouco nos mostra, ficou agora claro, em que ela se distingue de outros sistemas que so igualmente coletivos. Saber quem produz esses sistemas menos instrutivo do que saber por que se produzem. Em outras palavras, para se poder apreender o sentido do qualificativo social prefervel enfatizar a funo a que ele corresponde do que as circunstncias e as entidades que reflete. Esta lhe prpria, na medida em que a representao contribui exclusivamente para os processos de formao de condutas e de orientao para as comunicaes sociais (Moscovici, 1978, p. 77).

    As representaes sociais so criadas para tornar o no-familiar em familiar. Segundo Moscovici, o propsito de todas as representaes o de transformar algo no familiar, ou a prpria no familiaridade, em familiar (apud. S, 1995, p. 35). Esse processo de familiarizao realizado atravs da objetivao e da amarrao. A objetivao busca tornar real, concreto, atravs de imagens, um esquema conceptual. A objetivao realiza um duplo esforo, tal como coloca Moscovici no contexto de sua anlise das representaes sociais da psicanlise:

    O primeiro (...) um salto no imaginrio que transporta os elementos objetivos para o meio cognitivo e prepara para eles uma mudana fundamental de status e funo. Naturalizados, julga-se que o conceito de complexo ou de inconsciente reproduzem a fisionomia de uma realidade quase fsica. O carter intelectual do sistema em que eles participam perde importncia; o mesmo ocorre com o aspecto social de sua extenso. O segundo esforo de classificao, que coloca e organiza as partes do meio ambiente e, mediante seus cortes, introduz uma ordem que se adapta ordem preexistente, atenuando assim o choque de toda e qualquer nova concepo (Moscovici, 1978, p. 113).

  • A amarrao, tambm chamada de ancoragem, significa a integrao do objeto representado em um sistema de representaes pr-existentes, que o converte num instrumento de que passa a dispor e o coloca numa escala de preferncia, transformando-o em quadro de referncia e rede de significaes (Moscovici, 1978; S, 1995).

    As representaes sociais no so todas as formas de conhecimento. Moscovici distingue duas classes de pensamento: os universos consensuais e os universos reificados. As representaes sociais pertencem ao primeiro universo, enquanto que a cincia e o pensamento erudito pertencem ao segundo universo. Estes universos consensuais so lugares onde todos querem se sentir em casa, a salvo de qualquer risco de atrito e disputa (Moscovici, apud. S, 1995, p. 36). O que dito, nas representaes sociais, busca confirmar as crenas e interpretaes estabelecidas, reforando as tradies.

    Moscovici ope, assim, os universos consensuais (saber cotidiano ou representaes sociais) aos universos reificados (cincia, pensamento erudito) ou, segundo outras expresses utilizadas por ele, o pensamento natural e o pensamento cientfico.

    Moscovici coloca como caractersticas das representaes sociais (pensamento natural): a) a disperso da informao: os dados so insuficientes e superabundantes; b) a focalizao: a ateno voltada especificamente sobre um objeto; c) a presso para a inferncia: que provoca inflexes e desvios no desenrolar de operaes intelectuais (Moscovici, 1978, p. 252), pois a necessidade constante de responder postas pelas circunstncias produz efeitos, tais como: a adoo de um cdigo estvel, frmulas aceitas, lugares comuns, etc.

    O pensamento cientfico (como o filosfico e todo o pensamento que tem como objetivo a apreenso de categorias) coloca, segundo Moscovici, dois sistemas em ao: a) o sistema operatrio, que realiza associaes, incluses, discriminaes e dedues; b) metassistema: que controla, verifica e seleciona com o auxlio de regras (lgicas ou no), isto , reelabora a matria produzida pelo sistema operatrio.

    O mesmo ocorre com o pensamento natural, salvo uma diferena, a saber: no metassistema, as relaes que o constituem so, habitual e primordialmente, relaes normativas. Em outras palavras, temos de um lado relaes operatrias e de outro relaes normativas que controlam, verificam e dirigem as primeiras. Os valores ou princpios normativos esto necessariamente ordenados (Moscovici, 1978, p. 256).

  • Apresentamos, assim, resumidamente, a concepo de Moscovici a respeito das representaes sociais. Alguns elementos sero aprofundados adiante, quando formos apresentar os limites da abordagem das representaes sociais.

    Os Limites da Abordagem das Representaes Sociais

    Antes de colocarmos os limites da abordagem das representaes sociais iremos apresentar o contexto histrico do seu nascimento e desenvolvimento.

    Uma melhor compreenso da obra de Moscovici (e seus desdobramentos atravs de seus colaboradores) pode ser conquistada atravs da contribuio de Bourdieu. A idia de competio e luta pelo monoplio no mundo cientfico contribui bastante para isto:

    O campo cientfico, enquanto sistema de relaes objetivas entre posies adquiridas (em lutas anteriores), o lugar, o espao de jogo de uma luta concorrencial. O que est em jogo especificamente nessa luta o monoplio da autoridade cientfica definida, de maneira inseparvel, como capacidade tcnica e poder social; ou, se quisermos, o monoplio da competncia cientfica, compreendida enquanto capacidade de falar e de agir legitimamente (isto , de maneira autorizada e com autoridade), que socialmente outorgada a um agente determinado (Bourdieu, 1994, p. 122-123).

    Segundo Bourdieu, o campo cientfico produz uma forma especfica de interesse. O interesse reside justamente na busca do monoplio ou da autoridade. As prticas no interior do mundo cientfico se orientam para a aquisio de autoridade cientfica e isto se revela no interesse por uma atividade cientfica seja uma disciplina, um setor dela, um mtodo, etc.

    neste contexto que se insere tambm a questo das escolas e correntes de uma dada cincia. Os estudos de Coulon (1995; 1995b) sobre a Escola de Chicago e Etnometodologia so esclarecedores, pois, embora estas obras tenham carter meramente descritivo, apresentado ao leitor a formao, difuso e estratgias na formao de escolas e correntes.

    Assim, como coloca Greimas (1976) o discurso cientfico realiza a narrativa da descoberta, e por isso que a originalidade vai ganhar tanta importncia (Bourdieu, 1994). A Abordagem das representaes sociais est envolvida nesta dinmica. Robert Farr, colaborador de Moscovici,

  • bastante claro em histria da abordagem das representaes sociais. Moscovici representa uma forma sociolgica de psicologia social que entra em contradio com a forma psicolgica, predominante nos Estados Unidos. So duas concepes concorrentes:

    Desde o incio, a teoria das representaes sociais de Moscovici se constituiu numa importante crtica sobre a natureza individualizante da maior parte da pesquisa em psicologia social na Amrica do Norte. Isso est claro na sua reviso da pesquisa sobre atitudes e opinies [feita em 1963 NV]. Ele ataca a esterilidade da maioria das enquetes de opinio pblica. Considera toda essa rea da pesquisa como mera coleta de informao. Do ponto de vista do desenvolvimento da psicologia social, ela um beco sem sada. Ela pode ser metodologicamente sofisticada e refinada, mas ela teoricamente estril. Moscovici suspirou pelo dia em que as representaes sociais pudessem substituir as opinies e imagens, pois estes termos so demasiados estticos e descritivos (Farr, 1997, p. 49).

    Farr coloca que o processo de individualizao da psicologia social realizada nos EUA provoca uma difcil coexistncia entre as duas formas rivais de psicologia social (Farr, 1997, p. 33).

    Assim, a tese de Moscovici vem para abrir um espao novo, um novo domnio temtico (as representaes sociais) e uma nova abordagem deste domnio, o que lhe faz tentar garantir a descoberta e originalidade. Mas a tese de Moscovici, como veremos adiante, no to original assim, pois Durkheim (1996) e Marx, tal como colocaremos adiante, j havia desenvolvido teses semelhantes e inclusive mais complexas do que as de Moscovici. Moscovici realiza um escotoma cultural e histrico na esfera da cincia9.

    9 Sacks utiliza a idia neurolgica de escotoma (esquecimento) para explicar lacunas, esquecimentos,

    hiatos, no desenvolvimento do pensamento cientfico (Sacks, 1997). A contribuio de Marx e de Durkheim foi escotomizada por Moscovici, no primeiro caso sem fazer nenhuma referncia (em seu texto inaugural da abordagem das representaes sociais) e no segundo por marcar uma diferenciao inexiste na realidade, o que demarcaria sua originalidade, tal como Darwin fez com Lamarck (Viana, 2002b). Isto mais visvel ainda quando se sabe que Moscovici sempre teve proximidade com as idias marxistas e que no primeiro semestre de 1962 participou de um debate da Revista Arguments, em co-autoria com Claude Fauchex, no qual comenta texto de Georges Lapassade e Edgar Morin e aborda a relao entre psicologia social e marxismo, citando Marx, Lnin, Plekhnov, Gramsci, e outros marxistas (Moscovici & Fauchex, 2001). Embora o texto sobre representaes sociais da psicanlise tenha sido publicado no ano anterior, isto deixa claro o conhecimento de Moscovici a respeito da obra de Marx e de diversos marxistas, que certamente no foi produto de um estudo de um semestre.

  • Obviamente, que tais lutas no mundo cientfico, como coloca Bourdieu (1994), no esto desligadas das lutas polticas e pelo poder. A poca da produo das representaes sociais marca a continuidade de um perodo de estabilidade relativa do capitalismo, s rompida no final da dcada de 60 e incio da dcada de 70, o que justifica, tal como coloca Sawaia (1995), a busca de conceitos mais (sic) neutros. A cincia do final do sculo 20, a partir do final da Segunda Guerra Mundial, torna-se cada vez mais profissional e mais desligada das lutas sociais, provocando um conservadorismo crescente. Somente em perodos de ruptura social que ela recebe um banho de criticidade, tal como no final dos anos sessenta e incio dos setenta. neste contexto conservador que surge a abordagem das representaes sociais e ocorre o seu desenvolvimento.

    Passemos, agora, crtica da abordagem das representaes sociais. Iremos criticar alguns pontos desta concepo, a saber: a) a sua utilidade para a pesquisa social, o que est relacionado com a originalidade ou novidade da concepo; b) a falta de sistematicidade da concepo, o que est relacionado com a definio e anlise do fenmeno das representaes, bem como com o carter puramente descritivo desta abordagem.

    Comecemos pela originalidade ou novidade da concepo. O ponto forte da abordagem das representaes sociais reside no prprio fenmeno que seu objeto de estudo. As representaes sociais so consideradas como a viso contempornea do senso comum10.

    Porm, inmeras outras palavras podem ser consideradas equivalentes, tais como: idias, vises de mundo, conscincia, conhecimento vulgar, saber popular, conscincia coletiva, conhecimento comum, cultura popular, ideologia (alm dos prprios termos senso comum, representaes e representaes coletivas, dependendo de como se concebe este ltimo termo) etc.

    Alm disso, a concepo de Moscovici de representaes sociais idntica concepo durkheimiana de representaes coletivas. Vejamos as diferenas apontadas entre estas duas concepes. A diferena bsica e que constantemente re-colocada a de que as representaes coletivas so representaes das sociedades simples e as representaes sociais das sociedades complexas. No entanto, outras diferenas so apontadas. Segundo S (1995), as diferenas entre as duas concepes so as seguintes: a) representaes coletivas: ampla e heterognea forma de conhecimento; representaes sociais: uma modalidade especfica de conhecimento que elabora comportamentos e comunicao entre indivduos; b) representaes coletivas: esttica;

    10 Moscovici, em um artigo posterior ao livro A Representao Social da Psicanlise, oferece a seguinte definio de representaes sociais: por Representaes Sociais queremos indicar um conjunto de conceitos, explicaes e afirmaes que se originam na vida diria no curso de comunicaes interindividuais. So o equivalente, em nossa sociedade, aos mitos e sistemas de crenas das sociedades tradicionais; poder-se-ia dizer que so a verso contempornea do senso comum (apud. Leme, 1995, p. 47).

  • representaes sociais: dinmica; c) representaes coletivas: dados, entidades explicativas absolutas, sem necessidade de anlise; representaes sociais: fenmeno que deve ser explicado (S, 1995, p. 23). A estas diferenas poderia se acrescentar questo de que Moscovici trabalha com grupos e Durkheim com a sociedade como um todo (Moscovici, 1978).

    No entanto, tais consideraes so questionveis. A primeira diferenciao entre representaes coletivas e representaes sociais no foi fundamentada em lugar algum, alm do que, algo to genrico como elaborar comportamentos e comunicao entre os indivduos tambm estar presente na concepo durkheimiana, embora no seja explicitado nestes termos (no com estas palavras). Alis, como veremos mais detalhadamente adiante, o especfico das representaes sociais no , na verdade, to especfico assim.

    A segunda diferenciao, que apresenta o carter esttico das representaes coletivas e o carter dinmico das representaes sociais, no se sustenta. Durkheim apresenta uma concepo de representaes que no se limita s sociedades simples, tal como coloca Moscovici, embora o seu exemplo bsico tenha sido o totemismo, a religio primitiva, ele concebe a religio moderna e outras concepes como sendo representaes coletivas, bem como se desenvolvendo na histria, o que significa que possuem dinamismo (Durkheim, 1996), e s assim se pode entender o que ele quer dizer quando afirma que as representaes novas so derivadas de representaes anteriores (Durkheim, 1970).

    A terceira diferenciao carece de sentido, pois a abordagem das representaes sociais no explicativa, tal como colocaremos adiante, e sim descritiva. Se a considerarmos explicativa, a abordagem de Durkheim tambm deveria s-lo.

    A quarta diferenciao entra na questo da pluralidade do pensamento: Na medida em que ele no aborda frontalmente nem explica a pluralidade de modos de organizao do pensamento, mesmo que sejam todos sociais, a noo de representao perde, nesse caso, boa parte de sua nitidez (Moscovici, 1978, p. 42). Moscovici tambm no realiza isto que cobra em Durkheim, nem se se considerar que tal pluralidade derivada dos diferentes grupos sociais que produzem representaes nem se se considerar os tipos de conhecimento, pois neste caso Moscovici s distingue, em A Representao Social da Psicanlise, as representaes sociais e o pensamento cientfico, tal como Durkheim s aponta, em As Formas Elementares da Vida Religiosa, a semelhana entre representaes coletivas e cincia, distinguindo-as ao mesmo tempo. No que se

  • refere aos grupos sociais, Durkheim coloca sua existncia11 e se nos textos sobre representaes coletivas no aprofunda, se encontra passagens sobre isto em outras obras.

    Mas, se Moscovici pretendia realizar uma anlise especfica, dinmica, explicativa e reconhecendo sua pluralidade, resta saber por qual motivo deixou de lado Marx e os marxistas que desenvolveram algumas de suas teses relativas questo das representaes? Assim, temos em Marx outro pensador que j havia apresentado vrias teses depois defendidas por Moscovici.

    A existncia de diversas palavras com sentidos equivalente ou semelhante coloca em evidncia a seguinte questo: se surge a proposta de utilizao de uma nova expresso (no caso, representaes sociais), ento ela deve ter uma razo de ser (uma motivao) e deve significar algum avano ou proporcionar alguma vantagem, seja de qualquer ordem, ao pesquisador.

    Qual a vantagem da adoo do termo representaes sociais? Na verdade, no h nada que justifique ou legitime tal modificao. Por isso, torna-se necessrio o questionamento desta concepo, principalmente quando constatamos que o seu ncleo j foi elaborado e desenvolvido pela teoria marxista, tal como veremos adiante. Isto apenas mais uma confirmao da famosa afirmao de Sartre, segundo a qual toda tentativa de superao do marxismo significa uma volta ao pr-marxismo ou um desenvolvimento de uma idia j contida nele (Sartre, 1967). A chamada teoria das representaes sociais se encontra neste ltimo caso.

    Encontramos um autor que realiza uma crtica semelhante a esta. Trata-se de G. Jahoda, que em 1988 publicou um artigo no European Journal of Social Psychology, intitulado Critical Notes and Reflections on Social Representations, colocando que j que no se trata de algo to novo assim, poderia ser encampado, com vantagens, por teorias melhor estabelecidas (Leme, 1995).

    Mas a falta de novidade e apenas um item dos limites da abordagem das representaes sociais. Tendo em vista isto, iremos realizar, a partir de agora, uma crtica de outros elementos problemticos contidos na abordagem das representaes sociais e posteriormente iremos abordar a concepo de Marx e de alguns de seus continuadores a respeito do que denominamos representaes cotidianas.

    J iniciamos nossas crticas teoria das representaes sociais quando colocamos que suas idias fundamentais j esto presentes em Marx e seus continuadores, bem como Durkheim, mas tal concepo possui ainda alguns limites que no se encontram na concepo marxista e isso que iremos discutir agora.

    11 As representaes que so a trama dessa vida, originam-se das relaes que se estabelecem entre os indivduos assim combinados ou entre os grupos secundrios que se intercalam entre o indivduo e a sociedade total (Durkheim, 1970, p. 33).

  • Outro problema desta concepo se encontra em sua falta de sistematicidade, tal como vrios crticos j colocaram (Leme, 1995; Spink, 1995; Spink, 1997; S, 1995). No entanto, o prprio Moscovici j havia percebido esta fraqueza em sua abordagem das representaes sociais:

    No decorrer do presente estudo, tratamos as representaes sociais como modos de conhecimento autnomos. O fato de engendrarem linguagens prprias um dos sinais de sua especificidade. Podemos encontrar outros sinais partindo de nossas entrevistas. Tal incurso, estamos conscientes disso, no redundaria em concluses seguraras e precisas. Mas tampouco seria complemente intil. Com efeito, a explorao fenomenolgica do discurso das pessoas que refletiram perante ns acerca da Psicanlise suscetvel de esclarecer um domnio to mal conhecido quanto o do pensamento concreto, real, dos indivduos, a propsito de um objeto social. No queremos, nesta oportunidade, formular o catlogo das distores, dos desvios da lgica formal e das principais incoerncias. Numerosas experincias foram consagradas demonstrao de tais desvios e servem para alimentar os preconceitos referentes ao carter ilgico ou irracional dos raciocnios correntes. Entretanto, se refletirmos bem, uma sistematizao minuciosa, uma busca compulsiva de coerncia tambm podem ser a manifestao nos indivduos e por que no nos grupos? de srias deficincias epistemolgicas e patolgicas (Moscovici, 1978, p. 248).

    Aqui Moscovici reconhece que a) sua incurso no levaria a concluses seguras e precisas e b) que no era seu propsito apresentar as distores e incoerncias das representaes sociais e conclui que c) a busca de coerncia e sistematizao minuciosa pode ser a manifestao de deficincias epistemolgicas e patolgicas. No primeiro momento temos o reconhecimento da falta de sistematicidade da prpria abordagem, que no chega a concluses seguras. Num segundo momento temos um reconhecimento de que no era objetivo da pesquisa reconhecer a falta de sistematicidade das representaes sociais. Num terceiro e ltimo momento, temos uma defesa da falta de sistematicidade de ambas: a busca de sistematizao agora se transformou em manifestao

  • de srias deficincias epistemolgicas e patolgicas12. Desta forma, est legitimado e justificado a falta de sistematicidade da abordagem das representaes sociais.

    Moscovici e a abordagem das representaes sociais recebem vrias crticas. Harr, por exemplo, fala da impreciso do termo social e diz que Moscovici aborda apenas grupos taxionmicos ao invs de grupos estruturados. Potter e Linton criticam a tese do consenso e vrios criticam a falta de clareza do conceito de representaes sociais (Leme, 1995).

    As respostas a estas crticas no demonstraram capacidade de resolver as questes. Mas preciso ir alm das crticas. Por exemplo, a questo do social. O social em Moscovici est relacionado muito mais com o objetivo (ou, como ele diz, funo): as representaes so sociais por buscarem formar comportamento, orientar a comunicao, tornar o no-familiar em familiar13.

    Do ponto de vista da constituio de uma representao, toda as representaes so sociais, mesmo as individuais. Um indivduo formado socialmente via processo de socializao e esta formao lhe proporciona a linguagem, forma social, meio de comunicao, e as representaes. Assim, as representaes dos indivduos so representaes sociais e por isso que as entrevistas so feitas com indivduos, pois eles so os portadores das representaes sociais. Neste sentido, dizer que uma representao social um trusmo.

    A afirmao de que uma representao social por ser produzida por um grupo mais inteligvel, embora o ideal, nesse caso, fosse falar em representao grupal. Mas no neste sentido que Moscovici trabalha, pois, embora trabalhe com grupos (geralmente taxionmicos, como coloca Harr), no este o motivo que qualifica as representaes de sociais.

    Assim, resta a conotao dada pelo prprio Moscovici, uma representao social devido sua funo. Ora, a funo ao qual Moscovici fala (comunicao e comportamento) comum a todas as representaes, pois qual representao no objetiva comunicar ou formar comportamento? O pensamento cientfico seria puramente contemplativo se no visasse a

    12 No que se refere ao saber cotidiano, a exigncia de sistematizao questionvel, mas no que se refere ao pensamento cientfico, que um dos seus elementos definidores, necessria e sria deficincia epistemolgica est em recus-la.

    13 Diz ele (Harr NV) que se sente completamente desconcertado com o que significa social para a escola francesa, da qual se considera um ardente admirador. Aponta para uma tripla ambigidade quando a noo usada para qualificar uma representao: indicaria que a representao de algo social, ou ainda que a representao, enquanto uma entidade, ela mesma social e, por ltimo, seria social por estar distribuda em um grupo, isto , o que cada membro tem igual ao que cada outro membro individual do grupo tem (Leme, 1995, p. 54). Este autor considera isto um erro, pois o sentido correto do social seria algo social porque se realiza coletivamente no grupo, cada membro tendo parte do que necessrio mas que s passa a existir quando todo o grupo se intercomunica, distribui papis, etc. (Leme, 1995, p. 54). Da ele afirmar que o estudo de Moscovici e da maioria dos adeptos da abordagem das representaes sociais se dedicar aos grupos taxionmicos, derivados de uma classificao artificial, e no de grupos estruturados, baseados em deveres, direitos, laos biolgicos, etc.

  • comunicao e a ao. A teologia, a filosofia, a religio, etc., tambm. Enfim, esta definio no define nada. O outro elemento da definio, tornar familiar o no-familiar tambm, da forma como concebida por Moscovici, no est ausente das vrias outras formas de saber. O mito, por exemplo, busca tornar os fenmenos naturais familiares, considerando-os ao de agentes sobrenaturais.

    Aqui entramos na falta de clareza do conceito de representaes sociais apontados por alguns pesquisadores:

    Tanto Potter e Linton como Jahoda consideram a falta de clareza do conceito e tambm das teorias das representaes. Moscovici responde da seguinte maneira: vrios autores me recriminam por ser vago e me recusar a definir o significado das Representaes Sociais. Poderia citar vrios textos de Bacon a Freud que sustentariam o valor de minha posio. Mas minha recusa tambm representa um modo de assumir posio contra uma tendncia de dar definies fceis. Quando se pensa nos conceitos de esquema ou atribuio, poder-se-ia dizer que foram definidos adequadamente?. Tambm em sua resposta a Jahoda indaga: ser que algum sabe uma definio para conceitos gerais como conscincia coletiva, classe social, mito?(Leme, 1995, p. 55).

    Moscovici no consegue dar uma resposta satisfatria. Apelar para textos de Bacon e Freud apenas utilizar argumento de autoridade e ir contra a recusa de definies fceis no faz ningum se omitir de dar definies difceis, sob o pretexto de recusas fceis de definio. Sem dvida, os conceitos de conscincia coletiva, classe social e mito j tiveram suas definies. Mas para se fazer isso preciso algo que precisamente falta abordagem das representaes sociais: a viso da totalidade. Esta abordagem fica presa nas representaes sociais como objeto isolado e sem filiao a uma teoria mais ampla. Assim, a abordagem das representaes sociais possui um problema metodolgico grave, a falta de uma concepo abrangente